Araujo (2014) lá estava o imperador (revista de história) ocr

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O embate do frevo com o samba \ ^ VM0EM PAR* Entrevista com Peter Burke 1 - D. Pedro II e a invenção do telefone Machado de Assis e O Inferno, de Dante BIBLIOTECA NACIONAL C gluu üs ^emiuLUtzCrs \ LL\U YLLll bL\lblL-LL'Ob' ISSN 1808-4 01 ANO 9 I N- 102 I R$ 11,00 j MARÇO 2OI4

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O embate do frevo com o samba \ ^ VM0EM PAR* Entrevista com Peter Burke 1 - D. Pedro II e a invenção do telefone Machado de Assis e O Inferno, de Dante

BIBLIOTECA NACIONAL

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Lá estava o imperadorD. Pedro II foi retirado de filme sobre Graham Bell e virou personagem de memória inventada por Roosevelt

n t r e a i n v e n ç ã o d o t e l e f o n e e o cinema hollywoo-

diano, D. Pedro II (1825-1891) deixou de ser um per­

sonagem real para tornar-se uma referência imagi­

nária. Ao menos no discurso de duas importantes

figuras norte-americanas. Tanto o inventor Alexan-

der Graham Bell (1847-1922) quanto o ex-presidente

Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) declararam

ter se encontrado com D. Pedro II em momentos

cruciais de suas vidas. Um deles contou a verdade, o

outro provavelmente mentiu.

O discurso de Bell foi proferido em Boston, em 2 de

novembro de 1911. O inventor relembra os primór­

dios da telefonia e se concentra nos acontecimentos

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de 1876. Foi este o ano em que Bell patenteou o telefone e revelou ao mundo sua invenção. Segun­do Bell, foi nesse ano também que Dom Pedro II “salvou” o telefone.

Em junho de 1876, os Estados Unidos comemo­raram o centenário da independência com uma grandiosa feira internacional na Filadélfia: a “Ex­posição Centenária”. D. Pedro II e Ulysses Grant, então presidente dos Estados Unidos, abriram oficialmente o evento, que exibia avanços tecno­lógicos da era industrial. Diversos instrumentos e aparelhos competiam entre si em diferentes cate­gorias. Entre eles, o telefone.

Aquele foi um mês especialmente quente na Fi­ladélfia. Em 25 de junho, após um dia extenuante, o júri encarregado de inspecionar os instrumentos elétricos em exibição decidiu suspender os traba­lhos, para desespero de Bell: era justam ente o mo­mento em que o telefone, até então inteiramente desconhecido, seria examinado por D. Pedro II, pelo físico e engenheiro britânico William Thomp­son (futuro Lord Kelvin) e por outros cientistas.

Devido a outros compromissos em Boston, onde lecionava em uma escola para surdos, Bell não po­deria permanecer até o dia seguinte. Sem as suas próprias explicações, o mais provável é que o tele­fone tivesse passado despercebido perante o júri. O imperador, no entanto, já havia encontrado Bell alguns dias antes, pois desejava conhecer a escola para alunos surdos-mudos de que ouvira falar. Ao perceber que se tratava de um conhecido, Dom Pedro II decidiu que, cansados ou não, os mem­bros do júri inspecionariam mais aquele item da exibição. Os outros não tiveram escolha a não ser acatar o desejo do monarca: “Onde um imperador liderava à frente, os outros juizes seguiam”, recor­daria Bell com humor em 1911.

No discurso, Bell se refere ao encontro com D. Pedro II como um “evento notável”. Em uma carta a seus pais, datada em 27 de junho de 1876, ele relata com entusiasmo o “glorioso sucesso” de sua invenção. A sequência desse episódio é bem conhe­cida: o telefone foi aclamado pelo júri e a carreira de Graham Bell, alavancada.

Saiba Mais

BARMAN, Roderick. Imperador cidadão. São Paulo: Unesp, 2 0 12 (publicado em inglês em 1999).

SCH W A RCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador D. Pedro II: Um Monarca nos Trópicos.

São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

FilmeA História de Graham Bell, direção de Irving Cummings, roteiro de Lam arTrotti, produção de Darryl Zanuck, 1939.

InternetAlexander Graham Bell Family Papers at the Library of Congress www.loc.gov/collection/ alexander-graham-bell- papers

The Franklin D. Roosevelt Presidential Library and Museum www.fdrlibrary.maristedu

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Na gravura da página anterior, D. Pedro abre a Exposição de Filadélfia (1876) ao lado do presidente Grant. No detalhe da página 66, aparelho telefônico que perten­ceu ao imperador.

Dois anos depois, o americano fez uma de­monstração do invento para a rainha Vitória, na Inglaterra. Foi o suficiente para que Hollywood, no século seguinte, decidisse incluí-la em um filme sobre Graham Bell, deixando de fora o imperador. Com direção de Irving Cummings, A História ãeAle-

xanãer Graham Bell foi lançado em 1939 pelo estú­dio de cinema Twentieth Century-Fox. O filme de-

Roosevelt cativou o público ao aludir a um suposto

encontro com o imperador. Não há qualquer

referência ao episódio em nenhum outro documento

Acima, Graham Bell sagradou profundamente a filha do inventor, Elsieinaugurando o serviço Bell Grosvenor. Em 6 de janeiro do mesmo ano, elatelefônico Nova York- escreveu uma carta para o roteirista, Lamar Trotti,Chicago, em 1892. queixando-se: “Eu ainda não posso deixar de sentir

que o senhor esteja cometendo um erro ao omitir a cena na Exposição Centenária na Filadélfia”.

Como a rainha Vitória era mais conhecida do público americano do que D. Pedro II, a produção do filme decidiu omitir a participação de Bell na Exposição. Havia o receio de que a figura do mo­narca brasileiro acabasse desempenhando o “papel dominante”. Isso ofuscaria a figura da rainha Vitó­ria, interpretada no filme pela atriz Beryl Mercer. 0 período que transcorre de maio até outubro de 1876, decisivo para a carreira de Bell, é apresenta­do no filme apenas por uma sucessão de imagens das folhas de um calendário. 0 “glorioso sucesso” naquele “evento notável” é inteiramente omitido.

0 roteiro original do filme passara por sucessi­vos “tratamentos”. Em algumas versões prelimina­res, as anotações feitas por Darryl Zanuclc, produ­tor do filme, ainda podem ser lidas. Incomodava-o a falta de dramatização, pois o roteiro parecia dar mais atenção ao telefone do que à vida de seu criador. Faltava, segundo ele, “história humana”. Em outra anotação, Zanuclc registra sua indecisão: “Cortar Exposição; cortar Inglaterra?”. No “trata­m ento” subsequente ele é menos reticente: “Deve­mos ter o episódio na Inglaterra OU na Exposição, mas não ambos”. Poucas linhas depois, pondera: “A Inglaterra adorará essa parte, com a invenção tendo sido aplaudida pela primeira vez pela rai­nha Vitória”. A cena com Dom Pedro II, assim, acabou sendo eliminada do filme.

Na carta ao roteirista, Elsie Bell contrasta a frieza com a qual seu pai foi recebido durante a demonstração do telefone para a rainha da Ingla­terra, em 1878, com a informalidade que marcou o encontro com o imperador brasileiro, dois anos an­tes: “Não me parece nem um pouco que essa cena obscureça a cena em que aparece a rainha Vitória, pois o senhor pode amenizar a cena da realeza referente ao interesse de D. Pedro II pelo telefone. D. Pedro II era um senhor muito democrático. O contraste entre sua democracia e a formalidade da corte britânica faria, acredito, uma bela sequên­cia. D. Pedro II ia a toda parte por conta própria, ao passo que a rainha Vitória nem sequer fez uma única pergunta ao meu pai diretamente, mas falou com ele através de seu filho, sua filha, ou seu se­cretário. Tão formal foi a audiência”.

A “audiência” de Bell com a rainha Vitória foi envolta, de fato, em muita formalidade. Em um dado momento, ele inadvertidamente tocou a mão da rainha ao lhe passar o aparelho. 0 gesto deixou os presentes “horrorizados”, pois segundo

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o protocolo da corte ninguém podia tocar a sobe­rana. Este episódio também foi omitido no filme sobre sua vida. Diferentem ente da soberana britâ­nica, o monarca brasileiro ficou tão entusiasmado com a demonstração do telefone que, segundo Bell, teria gritado “Meu Deus! Isso fala!”, e acorri­do “a passos bem pouco imperiais” à sala onde o inventor havia feito a transmissão, a cerca de 100 metros de distância.

Curiosamente, a decisão de cortar a figura de D. Pedro II em um filme de Hollywood se deu no momento em que o governo americano buscava estreitar laços com o Brasil. Em 1936, o presidente americano Franklin Roosevelt esteve no Rio de Ja­neiro com o objetivo de granjear apoio brasileiro às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Logo no início de seu discurso, proferido em um banquete ofereci­do por Getulio Vargas, Roosevelt cativou o público ao aludir a um episódio de sua infância: o encontro com D. Pedro II, na França. “Há mais ou menos meio século, um menininho caminhava com seu pai e sua mãe em um parque em uma cidade no sul da França. Veio em direção a eles um casal de idosos de aparência bastante distinta - D. Pedro II e a sua im­peratriz. Naquela ocasião foi meu primeiro encontro com o Brasil”, contou o presidente americano.

Ocorre, porém, que Roosevelt nunca mencionou esse episódio em nenhum outro documento. Além disso, não há qualquer referência ao encontro em diários, cartas ou depoimentos de pessoas que lhe foram próximas. O mais provável é que a suposta lembrança tenha sido uma obra de ficção criada pela diplomacia americana. O discurso de Roosevelt funcionava como o roteiro de filme. Cena de aber­tura: Menino com roupa de época contempla nobre casal de idosos na idílica paisagem de um vilarejo desconhecido. Corta. Como no filme sobre Bell, folhas de um calendário poderiam simbolizar o transcurso do tempo. Corta. O menino toma-se um adulto importante, e o vilarejo povoado por nobres é agora uma vasta república. O reencontro do herói com o seu passado dá sentido à narrativa e captura a atenção do espectador.

Vargas gostou tanto da narrativa de Roosevelt que registrou mais tarde em seu diário: “O homem (...) é de uma simpatia irradiante”. A comparação do discurso de 1936 com um roteiro de filme não é apenas metafórica. Roosevelt e Hollywood traba­lharam juntos para mobilizar a indústria cinemato­gráfica americana em prol do esforço de guerra. O próprio Zanuck, produtor do filme sobre Graham Bell, envolveu-se em diversas produções deste tipo.

‘A exibição do telefone foi salva’

(...) E esse era o modo como estavam as coisas, quando de repente ocor­reu de haver um homem entre os membros do júri que me conhecia de vista. Tratava-se de ninguém menos do que Sua Majestade Dom Pedro II, Imperador do Brasil. Eu tinha mostrado a ele o que andávamos fazendo ensi­nando linguagem oral para os surdos de Boston, eu o tinha levado até a escola para surdos da cidade, e mos­trado para ele a forma para o ensino da linguagem oral e, quando ele me viu por lá, lembrou-se de mim, e se apro­ximou apertando-me a mão, e disse: “Sr. Bell, como estão os surdos-mudos de Boston?”. Eu disse que eles estavam muito bem e expliquei que o próximo item em exibição no programa era

o meu. "Vamos lá", ele disse, e me tomou pelo braço levando-me dali e, obviamente, onde o Imperador liderava à frente, os outros membros do júri seguiam [risos], E a exibição do telefone foi salva Bem, eu não posso falar muito sobre aquele item em exibição, muito embora tenha sido o ponto crucial em que se encontrava o telefone naqueles dias. Se eu não tivesse tido a oportu­nidade da exibição lá seria bastante incerta a condição do telefone hoje. Mas o Imperador do Brasil foi o pri­meiro a proporcionar aquela situação à época

(Trecho do discurso de Alexander Graham Bell, em 2 de novembro de 19 1 I, em Boston)

Como um filme de sucesso, o encontro ficcio­nal de Roosevelt com D. Pedro II tomou-se bem conhecido, e ainda hoje é mencionado em livros. A curiosa experiência real do imperador junto ao inventor do telefone, por sua vez, jam ais foi às te­las. Esse é o filme que não vimos. H

M A R C E L O DE A R A Ú JO É PRO FESSO R D A U N IV ER S ID A D E D O EST A D O D O RIO D E JA N E IRO E D A U N IV ER S ID A D E FED ER A L D O RIO D E JA N E IRO E A U T O R D E DOM PEDRO II E A MODA MASCULINA NA ÉPOCA VITORIANA (E S T A Ç Ã O DAS LETRA S , 2012).

Roosevelt e Vargas em Natal (RN), em 1943. O episódio do encontro do presi­dente dos EUA com D. Pedro, em sua infância, real ou fic­tício, contribuiu para aproximar os dois países na guen"a.