Aquilino Ribeiro Caminhos errados · PDF file3 A João Pina de Morais Desta portada,...

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    Aquilino Ribeiro

    Caminhos errados

    Livraria Bertrand 1970

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    Grande bicho o homem! Bate-se e morre de sorriso nos lbios por

    disparates. Trilha sendas speras e espinhosas, atrs de miragens, como se pisasse as mais fofas tapearias.

    Nestas breves frases tiradas do prefcio, Aquilino explica o ttulo do seu livro. Caminhos Errados conta a linha caprichosamente descrita por um punhado de figuras, movidas, nos labirintos da vida, pela bssola da sua prpria inquietude e da sua sede de aventura. Sem o erro, diz-nos, a Terra tornar-se-ia uma morna e desolada charneca, ou pelo menos uma paradisaca e rotunda pasmaceira. Evaristo, jovem e frustrado, erra na procura do amor, que julgara encontrar em Maria Salom, o Lambru erra quando, vencidos tormentos sem conta, v a mulher que trazia nas meninas dos olhos casada com o homem que o atirara para o inferno da guerra.

    H uma certa melancolia nestas seis novelas, a que no escapa at Menos Sete, uma deliciosa aguarela tecida em torno das vicissitudes dos gatos e gatas que povoaram os quintais de Aquilino.

    A velha civilizao, que ouo denominar crist, bruxuleia e no vejo como se reanime. A mim, aqui lhe confesso francamente, no me deixa saudades, tanto me sentia ferido nos acleos da sua frieza.

    Nestas palavras, Joo de Barros, em crtica que acerca do livro publicou na altura, julgava encontrar uma tristeza que o tempo tem acentuado, nobre angstia de quem sente, adivinha e sofre as calamidades e runas da sua poca, precioso testemunho da humanidade intrnseca do extraordinrio e do vitorioso criador e construtor de Beleza

    E glosando este tema, Joo de Barros acrescentava: Humanidade vibrante, sim, doura e fraternidade humanas que o ouro rico da sua frase jamais esconde ou disfara de todo, e que do estilo de Aquilino faz, no a mscara ou a urna vazia da s elegncia formal, mas a imorredoura, a perene cintilao da sua ternura, da sua misericrdia perante a dor, a aflio, a desventura e os desconcertos do nosso universo quotidiano. E no esta, para mim, a menor grandeza, a menor elevao e dignidade do seu gnio e da sua obra de romancista consagrado, de artista e de pensador sempre sfrego de transcender-se a si mesmo. Aquilino, mestre de ns todos, quer-se constante discpulo e servo da sua inelutvel, da sua dominadora sede de perfeio. Honra lhe seja, como j ele honra suprema da nossa literatura de hoje e de sempre.

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    A Joo Pina de Morais Desta portada, to de relance como se passasse nos ares por cima de sua casa e o

    descobrisse janela, sado o autor de Sangue Plebeu. Lembro-me que andmos de companhia por essa Europa e que a estrela que nos guiava, bem embora fosse de primeira grandeza e radiosamente ideal, no nos conduziu a Bethlm. Das rampas desses caminhos errados bem de certo que algum perfume perdura at o fim dos nossos dias. o bolo aos coraes simples. De resto, confortemo-nos com a sina universal, to precrias so as rotas que nestes dias aziagos se oferecem ao mundo e habitantes presumidos de racionais. A velha civilizao, que ouo denominar crist, bruxuleia e no vejo como se reanime. A mim, aqui lhe confesso francamente, no me deixa grandes saudades, tanto me sentia ferido nos acleos da sua fereza.

    Olhando retaguarda, bato e torno a bater no peito. possvel que errar seja o condo inelutvel de tudo, dos homens, das naes, dos prprios astros. No h ningum que, chamado loisa em Josafat, no tenha a rectificar 90 % dos seus passos. A cada viragem se encontra um velhaco e a nossa imprvida boa f, um sandeu e a nossa infinita culposa brandura, dolo, ingratido, piratarias de vau para vau e a impertinente indulgncia se no necessidade da nossa parte. Por outra, que socilogo, perante a marcha histrica da carneirada humana, no corrigira com dedo salomnico aqui e alm as suas parasangas angustiosas e conturbadas? E no falemos da mecnica celeste, pois no est absolutamente garantido que graves erros de clculo se no tenham infiltrado no risco da eclptica, supondo que no seja seu fautor o mesmo astro. Ocorre-me que, prolongando estas premissas, me iria encontrar com Erasmo. Sim, tambm eu direi que sem o erro a Terra se tornaria uma morna e desolada charneca, ou pelo menos uma paradisaca e rotunda pasmaceira. grande bicho o homem! Bate-se e morre de sorriso nos lbios por disparates. Trilha sendas speras e espinhosas, atrs de miragens, como se pisasse as mais fofas tapearias. Sem dvida que o seu egosmo, entre um itinerrio duma rectitude inquebrantvel e esta mareao de caravela, no hesitaria. Mas, repito, o planeta ficaria transmudado no mais fastidiento dos aqurios. O meu livro o antpoda dessas beatitudes apenas sonhadas.

    Dei conta que no vale a pena chorar perpetuamente as cebolas do Egipto que, por descuido, falta de jeito oportuno, impercia, deixmos de desaproveitar para o nosso refogado. Siga a rusga!

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    Querido e admirvel amigo, honra das letras nacionais, aceite com isto um abrao do camarada saudoso dos tempos de Paris, Biarritz, Vigo, esperanado que ainda se nos ho-de proporcionar estdios a percorrer juntos sob a gide do mesmo Hermes, o deus benigno que, plantado beira da estrada, no deixar de nos dizer piedosamente, e quanto basta: ides bem!

    Casa de Santa Catarina, Maio de 1947. Aquilino Ribeiro

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    Maria Salom

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    A camioneta da carreira, destes cangalhos estrepitosos e cheios de birras,

    que vieram suceder potica diligncia com to desairada prosa, botou tarde vila. Tinha tido uma pane na bomba da gasolina logo sada da cidade, e quebrou-se-lhe o semieixo a alturas da granja Velha. Automveis que passavam foram tomando alguns dos passageiros de evidncia social, um padre, um doutor, o rico proprietrio, enquanto os demais, baldeados para o meio da estrada, bocejavam, viam passar as nuvens, ou renovavam com os compa-nheiros de azar um colquio s duas por trs amortecido.

    Por isso a camioneta, que tinha o nome pomposo de Miss Antas-da-Beira, tendo chegado com atraso, dispunha-se a largar em p de vento, quando era da regra queimar ali com o maior dos ripanos nunca menos dos seus bons quinze minutos. Espicaadas, desceram aodadamente umas pessoas com os seus saquinhos de amostras e, por ltimo, aquela senhora de lao vermelho no chapu, que tanto dava no goto. No tinha ningum a esper-la, e quedou perplexa no meio do largo com a mala de mo, smil-coiro, sua banda.

    Entretanto o condutor, que trepara ao tejadilho, desentalava dentre as arcas dos ratinhos, que voltavam do Alto Alentejo, os fardos da mercearia. O senhor Daniel, com o carregador a postos, especara em baixo, testo manobra.

    Escurecia, e em renque pela estrada, sobre a regueira de luz dos faris, os lampies de petroline do Municpio todos se encolhiam encadeados em sua luz morrinhenta, do tempo dos capites-mores. O Tavolado mostrava-se varrido de ociosos, hostil de todo como sempre que descia da Nave com o pr do Sol, mais picante que praganas, aquela carujeira miudinha. No quiosque, a poucos passos, os quatro da vigairada de todos os burgos provinciais, presos bisca lambida, nem viraram a cabea.

    A senhorita, de planto beira da mala, deitava olhos perscrutadores a todos os horizontes, olhos de nufrago, a que anima a esperana que acabe por chegar a subentendida pessoa. De estatura acima da mediana, calava sapatos de estrado alto em cortia, sobre que pairava por altura do joelho a saia em godets, e trazia na cabea um chapelinho, mais do que boina, menos que um gorro, enfeitado com o tal laarote encarnado, que fazia tanto chamariz sem contudo implicar desenvoltura. Alm da carteira e da sombrinha, terava ao pescoo a raposa a cujo contacto fofo, com os solavancos do calhambeque, Evaristo pudera sentir a espuma ligeira de sua fragrncia recatada. Como haviam viajado prensados ombro com ombro, de comeo no a pudera ver bem

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    seno de perfil. Afigurara-se-lhe bonita, mas bonita como tantas mulheres. A pele da face, muito fina e transparente, coisa que sempre o sensibilizara, assim como entre as flores o cetinoso da camlia, circunstncias aristocrticas para a sua visualidade de serrano, Incutira-lhe de princpio um grande respeito e ao mesmo tempo timidez. Quando os joelhos se tocavam, fenmeno a que ela parecia no ligar importncia nenhuma, logo ele refugia com o seu, como se se houvesse tornado ru duma falta de educao. E das vezes que se pusera a estud-la e ela, por mero acaso ou porque lhe picasse o aguilho do olhar insistente, o fitasse, desviava a vista, acobardado. No era uma criatura doutra plana social, ou pelo menos doutra plana de sorte? Sorte no tocante a poder andar moda, trazer uns sapatinhos com que dava a ideia de flutuar no obstante a impacincia que a ralava, ter os olhos dos passageiros assestados nela. Com a barafunda da segunda pane, tivera ensejo de observ-la muito sua vontade. Era o que em linguagem da trama se denomina um peixo. Muito elegante e simples, ultrapassava a linde daquilo a que, no receio de enganar-se, confinara at ento a sua homenagem. Realmente o seu porte inculcava uma distino inata. Peito sem demais, ancas em correspondncia, um rosto simptico, para no dizer formoso, tudo nela estava coordenado de modo a gerar o desejo e obter o sufrgio dos sentidos.

    Coitada, agora no s ela mas at a mala, com os rectngulos niquelados das fechaduras a brilhar, de esguelha em relao s bermas, tinha ares de contrariada. O olhar da senhorita ia e tornava a ir pelo Tavolado abaixo, inutilmente como o de irm Ana. Os raros vultos que descobria tomavam rumos que no lhe interessavam. E Evaristo considerou:

    No era mais simples para a criatura pegar ela prpria da mala e girar? Provavelmente tem vergonha. Segundo a regra da perfeita fidalguia, ora e sempre letra viva para portugueses de gravata, uma pessoa chique ou com pretenses s faz aquilo que no pode ma