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www.fae.unicamp.br/etd PESQUISA © ETD Educ. temat. digit. Campinas, SP v.14 n.2 p.186-201 jul./dez. 2012 ISSN 1676-2592 CDD: 302 APROXIMAÇÕES EM TORNO DA ZONA MUDA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE CICLOS DE APRENDIZAGEM ENTRE PROFESSORES APPROACHES AROUND THE ZONE DUMB OF SOCIAL REPRESENTATIONS OF CYCLES LEARNING AMONG TEACHERS Laeda Bezerra Machado 1 Resumo Este artigo identifica a provável zona muda das representações sociais de ciclos de aprendizagem de professores da Rede Municipal de Recife-PE. O texto está fundamentado na abordagem estrutural das representações sociais. Participaram da pesquisa 52 professores de escolas municipais. Como instrumento de coleta de dados, utilizou-se a técnica de substituição, uma variação da entrevista aberta, em que se solicitava aos profissionais que comentassem uma assertiva sobre o tema ciclos. Os dados foram interpretados através da análise de conteúdo. Os resultados sugerem uma zona muda de ciclos, que rejeita a proposta de ciclos de aprendizagem implantada na rede municipal, sobretudo devido ao fim da retenção dos estudantes por ela preconizado. A existência de uma regularidade de conteúdo negativo presente nas falas dos professores ajuda a compreender as razões pelas quais a adoção dessa nova forma de organização escolar não vem ensejando um quadro educacional de democratização do ensino fundamental no país, como direito de cidadania. Assim, admitiu-se que as políticas educacionais, embora promissoras, confrontam-se com as representações sociais dos professores. Palavras-chave: Zona muda. Representações sociais. Ciclos de aprendizagem. Professores. Abstract This article identifies the likely area change of social representations of learning cycles for teachers in city of Recife-PE. The text is based on the structural approach of social representations. 52 teachers participated in the survey of public schools. We used as data collection instrument replacement technique, a variation of the open interview, which called for an assertive professional to comment on the issue cycles. The data were interpreted using content analysis. The results suggest a zone change that rejects the cycles of learning cycles implemented in public schools, mainly due to the end of the retention of students recommended by it. The existence of a regularity of negative content present in the speech of teachers helps us understand the reasons for adopting this new form of school organization is not giving rise to a democratization of the educational situation of school in the country as a right of citizenship. Thus, we assume that educational policies, while promising, faced with the social representations of teachers. Keywords: Zone changes. Social representations. Cycles of learning. Teachers. 1 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Prof. Associado I do Departamento de Administração Escolar e Planejamento Educacional e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected] Recife, PE, Brasil. Recebido em: 03/12/2011 / Aprovado em: 24/08/2012.

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CDD: 302

APROXIMAÇÕES EM TORNO DA ZONA MUDA DAS

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE CICLOS DE APRENDIZAGEM

ENTRE PROFESSORES

APPROACHES AROUND THE ZONE DUMB OF SOCIAL REPRESENTATIONS OF

CYCLES LEARNING AMONG TEACHERS

Laeda Bezerra Machado

1

Resumo

Este artigo identifica a provável zona muda das representações sociais de ciclos de aprendizagem de

professores da Rede Municipal de Recife-PE. O texto está fundamentado na abordagem estrutural das

representações sociais. Participaram da pesquisa 52 professores de escolas municipais. Como

instrumento de coleta de dados, utilizou-se a técnica de substituição, uma variação da entrevista

aberta, em que se solicitava aos profissionais que comentassem uma assertiva sobre o tema “ciclos”.

Os dados foram interpretados através da análise de conteúdo. Os resultados sugerem uma zona muda

de ciclos, que rejeita a proposta de ciclos de aprendizagem implantada na rede municipal, sobretudo

devido ao fim da retenção dos estudantes por ela preconizado. A existência de uma regularidade de

conteúdo negativo presente nas falas dos professores ajuda a compreender as razões pelas quais a

adoção dessa nova forma de organização escolar não vem ensejando um quadro educacional de

democratização do ensino fundamental no país, como direito de cidadania. Assim, admitiu-se que as

políticas educacionais, embora promissoras, confrontam-se com as representações sociais dos

professores.

Palavras-chave: Zona muda. Representações sociais. Ciclos de aprendizagem. Professores.

Abstract

This article identifies the likely area change of social representations of learning cycles for teachers in

city of Recife-PE. The text is based on the structural approach of social representations. 52 teachers

participated in the survey of public schools. We used as data collection instrument replacement

technique, a variation of the open interview, which called for an assertive professional to comment on

the issue cycles. The data were interpreted using content analysis. The results suggest a zone change

that rejects the cycles of learning cycles implemented in public schools, mainly due to the end of the

retention of students recommended by it. The existence of a regularity of negative content present in

the speech of teachers helps us understand the reasons for adopting this new form of school

organization is not giving rise to a democratization of the educational situation of school in the

country as a right of citizenship. Thus, we assume that educational policies, while promising, faced

with the social representations of teachers.

Keywords: Zone changes. Social representations. Cycles of learning. Teachers.

1 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Prof. Associado I do Departamento

de Administração Escolar e Planejamento Educacional e do Programa de Pós-Graduação em Educação da

Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected] – Recife, PE, Brasil.

Recebido em: 03/12/2011 / Aprovado em: 24/08/2012.

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INTRODUÇÃO

A escola brasileira foi tradicionalmente organizada em séries; no entanto, nos

últimos anos, vem sendo introduzida uma mudança – várias instituições, de norte a sul do País

implantaram o regime de ciclos de aprendizagem. Os ciclos de aprendizagem se caracterizam

como possibilidade de reorganização do tempo e do espaço escolares, respeito aos processos

de aprendizagem dos alunos e eliminação da repetência. Um de seus maiores objetivos é

garantir a democratização da escola, o que deveria assegurar, aos alunos matriculados na

educação básica, aprendizagem, permanência e continuidade dos estudos.

Vários autores, tais como Mainardes (2007), Arroyo (1999), Barretto e Mitrulis

(2004) e Freitas (2003) têm destacado que a implantação dos ciclos não constitui uma

mudança pontual, mas pressupõe a construção de programas integrados que se preocupem

com a promoção e a aprendizagem dos alunos, com um currículo claro e explícito, com a

avaliação formativa e a formação permanente do professor. A complexidade da política dos

ciclos reside no fato de impor grandes desafios e mudanças na dinâmica escolar. Representa

uma alternativa de enfrentamento do fracasso escolar e, também, um avanço na construção de

uma escola mais justa e igualitária.

Este artigo resulta de uma pesquisa que dá continuidade a estudos que realizamos

sobre o tema, no período compreendido entre os anos de 2006 e 2007. Ao longo desses dois

anos, estudamos o conteúdo e a estrutura geral da representação social de ciclos de

aprendizagem de professores da rede municipal de Recife-PE. Os resultados dessa pesquisa

revelaram que, naquela ocasião, os docentes apresentavam um discurso racionalizado, ou seja,

embora se revelassem contrários e apresentassem críticas aos ciclos de aprendizagem, ao

responderem a um teste de associação livre, manifestaram-se em pleno acordo com a nova

organização curricular vigente na rede municipal. Os resultados dessa pesquisa indicaram a

necessidade do desenvolvimento de outros estudos que melhor caracterizassem as

representações sociais dos ciclos de aprendizagem na rede (MACHADO; ANICETO, 2010).

Assim, o presente artigo procura identificar a zona muda das representações sociais de ciclos

de aprendizagem entre professores de escolas públicas do Recife-PE.

Abric (2005) destaca a existência de uma região de difícil explicitação das

representações sociais, que denominou “zona muda” (zone muette). Esse fenômeno

aconteceria, sobretudo, para determinados tipos de objetos mais sensíveis, fortemente

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marcados por valores e normas sociais, entre os quais incluímos os ciclos de aprendizagem,

dadas as mudanças que provocam em relação à organização geral da escola e ao processo de

ensino-aprendizagem em particular.

Como destaca o autor, em algumas situações pode ser detectada uma dupla faceta da

representação social: uma explícita, verbalizada pelos sujeitos; e outra não explicitada, que

consistiria em uma zona muda, pois as pessoas selecionam os aspectos expressáveis das

representações sociais de determinados objetos, em razão da normatividade que percebem

estar em jogo na situação na qual se encontram; e, por conseguinte, apresentam aquilo que

imaginam ser a “boa resposta” ou o discurso “politicamente correto” (ABRIC, 2005).

A zona muda ou mascarada de uma representação social integra a consciência dos

indivíduos, contudo não pode ser expressa por eles, devido à situação social em que se

inserem. Conforme Guimelli e Deschamps (2000)2, citado por Abric (2005), ela constitui um

subconjunto específico de cognições e crenças que, mesmo disponíveis, não são verbalizadas

pelos sujeitos nas condições normais de produção, pois, se assim o fossem, poderiam pôr em

questão os valores morais do grupo. A zona muda existe porque, em toda situação (em

algumas, em especial), há normas sociais, tendo aquela, portanto, caráter contranormativo.

Outro aspecto que levaria à construção de uma zona muda das representações sociais seria o

que Abric (2005) qualificou como gestão de impressões, que diz respeito à tentativa, por parte

dos sujeitos, de gerar uma imagem positiva de si. Assim, o desejo de aceitabilidade social

poderia ser um dos fundamentos para a existência de facetas mascaradas na expressão de

determinadas representações sociais.

No caso específico da proposta de ciclos de aprendizagem, entendemos que há sobre

esse objeto um conteúdo contranormativo que não tem sido explicitado de modo direto pelos

professores. As razões para omiti-lo podem ser de várias ordens, mas, sobretudo, dizem

respeito ao fato de o professor estar submetido às regras e às normas do sistema e ao modelo

de gestão dos sistemas, o que não possibilita ao docente participar do processo de discussão

de políticas educacionais, tornando-o mero executor dessas políticas. Nessa trama normativa

em que está envolvido, não parece interessante para o professor expressar-se sobre o que

realmente pensa das políticas educacionais. A seguir, tratamos dos ciclos de aprendizagem e

das representações sociais, categorias básicas discutidas neste artigo.

2 GUIMELLI, C., DESCHAMPS, J. C. Effet des contextes sur la production d’associations verbales. Le cas des

représentations sociales des Gitanes. Les Cahiers Internationaux de Psychologie Sociale, v. 47, p. 44-54,

2000.

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CICLOS DE APRENDIZAGEM

Os ciclos ultrapassam a segmentação da seriação, pois surgem como alternativa para

romper com a fragmentação do currículo escolar, que não tem respeitado os tempos e os

espaços necessários à aprendizagem efetiva das crianças e dos adolescentes. Arroyo (1999)

revela que os ciclos são bem mais que amontoados de séries. Assim como Arroyo, também

Mainardes (2006, 2007) e Freitas (2003) se preocupam em esclarecer o conceito de ciclo, no

intuito de evitar conclusões equivocadas. Por exemplo, podemos citar termos tomados, muitas

vezes, como sinônimos: promoção automática, progressão continuada e ciclos de formação.

O termo “promoção automática”, segundo Mainardes (2007), emergiu durante os

anos de 1950, sob a justificativa de reduzir as altas taxas de reprovação e o desperdício de

recursos financeiros com a escolarização. Acrescenta o autor que a promoção automática não

garante, por si só, a melhoria da qualidade; sua única intenção era descongestionar o sistema

de ensino.

A progressão continuada é uma forma de organização escolar, também assegurada

pela atual Lei de Diretrizes e Bases nº 9394/1996, no parágrafo 1º, do inciso IV do art. 32,

que consiste numa tentativa de racionalização do currículo escolar, objetivando a diminuição

da reprovação e a aceleração da passagem dos alunos. Nesse sistema, as séries convencionais

são mantidas, e a reprovação escolar é permitida, no ensino fundamental, ao fim de cada etapa

dos ensinos fundamental e médio (MAINARDES, 2007).

Os ciclos de formação, conforme Mainardes (2007), estão concatenados às fases do

desenvolvimento humano (infância, puberdade, adolescência e vida adulta). Essa proposta

sugere mudanças radicais, no currículo e organização escolar, que impossibilitam a

reprovação ao longo do ensino fundamental, pois consideram e valorizam os percursos de

desenvolvimento e aprendizagem dos estudantes.

Os ciclos de aprendizagem, por sua vez, constituem-se numa alternativa de

organização escolar para garantir a aprendizagem de grupos diversificados. Para Mainardes

(2007), eles propõem rupturas menos radicais no currículo escolar, na metodologia e na

avaliação. Além disso, a retenção é permitida ao final de cada ciclo. A literatura revela que a

proposta de ciclos de aprendizagem é inovadora, pois busca modificar os tempos e os espaços

da escola, dá maior atenção à criança, ao adolescente, aos ritmos de aprendizagem e de

desenvolvimento e, também, ao contexto no qual a escola está inserida.

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A década de 1980 foi marcada pela adoção de ciclos de alfabetização por vários

governos estaduais do país. Durante o processo de redemocratização, parlamentares de

diferentes regiões vinculados às agremiações partidárias mais progressistas, engajadas em

resgatar a função social da escola e cumprir as promessas de democratização, adotaram

medidas de reestruturação do currículo escolar.

São Paulo, por exemplo, tomou a dianteira nesse sentido, quando implantou o ciclo

básico de alfabetização. Conforme Palma Filho, Alves e Duran (2003), o ciclo básico foi

implantado pela Coordenação de Normas Pedagógicas (CENP), a partir de 1984. O ciclo

básico correspondia aos dois primeiros anos de escolaridade, que foram condensados em uma

só unidade de escolarização, e o aluno deveria ser avaliado para fins de promoção somente ao

final do segundo ano. Seu objetivo principal era romper com a tradição brasileira de reprovar

os alunos de primeira série. Tratava-se de um projeto ousado, cuja experiência foi mais tarde

implantada definitivamente em todo o sistema de ensino público estadual. Conforme

registram os autores, em 1985, um milhão e quinhentos mil alunos, bem como cinco mil

professores estavam envolvidos nesse projeto do ciclo básico.

Nesse contexto de redemocratização, destacamos a experiência do Ciclo de

Alfabetização implantado no município do Recife. Segundo Figueiredo (1990), a proposta

político-pedagógica municipal do Ciclo de Alfabetização incluía a ampliação da jornada

escolar, a capacitação dos professores e a reflexão permanente sobre o papel da escola pública

na sociedade brasileira.

Em que pesem as experiências pontuais de implantação de ciclos nos anos 1980 e

início dos anos 1990, convém ressaltar que somente nos últimos dez anos essa possibilidade

de organizar a escolarização regular em ciclos foi intensificada. Isso ocorreu porque a atual

legislação incorporou o que já se manifestava em diversos sistemas de ensino no Brasil. No

entanto, dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais “Anísio Teixeira” -

INEP (BRASIL, 2006) revelam que, até aquele ano, pouco mais de 15% das escolas de ensino

fundamental haviam adotado o regime de ciclos. Naquele período, os sistemas estaduais

concentravam 45,5% dessa oferta e os municipais, 13,2%.

A Secretaria de Educação do município do Recife, na gestão 2001-2004, amparada

na atual LDB nº 9394/96 e em experiências exitosas desenvolvidas no País, substituiu a

organização do ensino fundamental em série pelo regime de ciclos de aprendizagem. Tal

decisão pautou-se no princípio da democratização da escola, pois a proposta da adoção dos

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ciclos reflete a necessidade de “[...] redimensionar as bases conceituais dos processos de

ensino e de aprendizagem que privilegiam a construção processual do conhecimento”.

(RECIFE, 2003, p.117).

Segundo o documento da Prefeitura do Recife (2003), a implantação do sistema de

ciclos no município justifica-se por três razões: resolver problemas cruciais do ensino

fundamental, como a evasão, a repetência, a distorção idade-série escolar; respeitar os

diferentes ritmos de aprendizagem dos alunos; e distribuir os conteúdos de forma mais

adequada à natureza do processo de aprendizagem, sem rupturas. A proposta sugere uma

mudança no próprio modo de pensar a escola e reconhece o aluno como sujeito capaz de

estabelecer um diálogo com os seus pares, de enfrentar os inúmeros desafios do seu tempo, de

articular e relacionar os diferentes saberes, valores e atitudes construídos dentro e fora da

escola.

A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Moscovici (1978, p. 16) afirma que as “[...] representações sociais são entidades

quase tangíveis, cristalizam-se incessantemente através de uma fala, um gesto, um encontro,

ou seja, elas são fáceis de tipificá-las e difíceis de conceituá-las”. O autor construiu a teoria

que tem por objetivo “[...] estudar a difusão dos saberes, a relação pensamento/comunicação e

a gênese do senso comum” (MOSCOVICI, 2001, p. 45).

Por ser uma teoria da ciência coletiva voltada para a interpretação da realidade, as

representações sociais têm sido alvo de muitas pesquisas, que se desdobraram em correntes

teóricas complementares. Conforme Sá (1998), são três: a de Denise Jodelet, em Paris, mais

fiel à teoria original; a de Willem Doise, em Genebra, de cunho sociológico ou societal; e a de

Jean-Claude Abric, em Aix-en-Provence, que enfatiza a dimensão cognitivo-estrutural das

representações. Nessa abordagem estrutural proposta por Abric nós nos apoiamos para

discutir os ciclos de aprendizagem. Exploramos neste artigo o conceito de zona muda

cunhado por Abric (2003).

Conforme a abordagem estrutural, no interior de uma representação social, algumas

cognições assumem um papel diferente das demais. Abric (2003) afirma que as

representações se organizam em torno de um sistema central, porque são manifestações do

pensamento social, e que em todo “[...] pensamento social há uma certa quantidade de

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crenças, coletivamente produzidas e historicamente determinadas, que não podem ser

questionadas, uma vez que elas são o fundamento dos modos de vida e garantem a identidade

e a permanência de um grupo social” (ABRIC, 2003, p. 39). Assim, o núcleo central é

diretamente determinado pelas condições históricas, sociológicas e ideológicas e, ainda,

fortemente marcado pela memória coletiva e pelo sistema de normas ao qual se refere.

Noutras palavras, constitui a base comum, coletivamente partilhada, da representação;

portanto, sua identificação é indispensável para que se possa avaliar a homogeneidade do

grupo. Desse modo, dois ou mais grupos só terão a mesma representação, se partilharem o

mesmo núcleo central.

Nessa linha de pensamento, Abric (2003) reitera que todo questionamento do sistema

central é sempre uma crise, não somente cognitiva, mas concernente aos valores sociais, visto

que o forte do núcleo central de uma representação social é exatamente constituído pelos

valores associados ao objeto representado. A esse respeito, afirma Abric (2003, p. 40) que

“[...] partilhar uma representação com outros indivíduos significa, então, partilhar com eles os

valores centrais associados ao objeto concernido”. Isso significa dizer que, para a Teoria do

Núcleo Central, não é o fato de partilhar o mesmo conteúdo que define a homogeneidade do

grupo em relação a um objeto de representação, mas, sim, o fato de se referir aos mesmos

valores centrais presentes nesse núcleo. O autor reconhece, desse modo, que “[...] procurar o

núcleo central, é então, procurar a raiz, o fundamento social da representação, que, em

seguida modulará, se diferenciará e se individualizará no sistema periférico” (ABRIC,

2003, p. 40).

Uma série de trabalhos experimentais colocou em evidência que existem dois

grandes tipos de elementos no núcleo central: os elementos “normativos” e os “funcionais”

(SÁ, 1996). Segundo Abric (2003), os “normativos” são diretamente originados do sistema de

valores, constituindo-se, pois, na dimensão fundamentalmente social do núcleo central e,

portanto, da representação, visto que estão ligados à história e à ideologia do grupo; já os

“funcionais” estão associados às características descritivas e à inscrição do objeto nas práticas

sociais e determinam as condutas relativas ao objeto representado. A coexistência desses dois

tipos de elementos permite ao núcleo central, conforme Abric (2003), realizar seu duplo

papel: avaliativo e pragmático, isto é, de um lado, justificar os julgamentos de valor; e, de

outro, atribuir sentido às práticas específicas.

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Abric (2003, p. 43, grifos do autor) pondera que, embora os conteúdos do núcleo

sejam estáveis, “são susceptíveis de serem ativados diferentemente, segundo o contexto

social”. Assim, esse conteúdo estável que compõe o núcleo central, em alguns momentos, vai

ser mais utilizado do que outros, quando da definição de objetos ou práticas que lhe são

associadas. Menin (2006) afirma que são elementos “contranormativos” da representação as

crenças que não são expressas pelo sujeito em condições normais de produção, pois, assim,

elas entrariam em conflito com valores morais ou normas de um determinado grupo. Essas

considerações concorrem para a construção da hipótese da “zona muda” das representações

sociais.

Como já dissemos, nos últimos anos, Abric vem dando destaque ao conceito de zona

muda. Segundo ele, a zona muda constituiria um conjunto de representações comuns e

partilhadas que não são reveladas facilmente nos discursos diários. Por não serem

considerados bem aceitos perante a sociedade, esses significados e sentidos atribuídos aos

objetos não viriam à tona assim tão facilmente, o que explicaria o fato de os discursos serem

tão comumente baseados no “politicamente correto”. Abric reitera que a zona muda de uma

representação social é aquela não expressa ou não verbalizada de modo direto pelo sujeito.

Ela faz parte da consciência dos indivíduos, conhecida por eles; contudo, ela não é expressa,

porque o indivíduo ou o grupo não deseja se comprometer de forma pública ou

explicitamente. Os elementos localizados nessa zona seriam os vinculados às avaliações e aos

valores, que aparecem como ilegítimos para o grupo de pertença do indivíduo; portanto,

não viriam facilmente à tona. Eis a novidade deste artigo, que procura identificar esse

conteúdo contranormativo dos ciclos de aprendizagem, ou seja, algo não revelado nas etapas

anteriores dos estudos que realizamos sobre o tema.

MÉTODO

Tipo de estudo

O estudo é de natureza qualitativa, tendo como campo de pesquisa as escolas de

ensino fundamental da rede municipal de Recife-PE. A escolha do campo ateve-se à

implantação dos ciclos de aprendizagem, em 2001, nesse sistema municipal. Desenvolvemos

o estudo com professores de diferentes escolas, situadas nas mais diversas áreas da cidade.

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Participantes

Os participantes da pesquisa são 52 professores de escolas públicas. Adotamos como

critério para participação dos sujeitos: ser professor de turmas organizadas em ciclos e ter

interesse em contribuir com o estudo. Desses profissionais, 46 são do sexo feminino e 6, do

sexo masculino. Eles apresentam formação acadêmica que varia do nível médio à pós-

graduação stricto sensu. No entanto, a maior parte do grupo (82%) havia concluído cursos de

pós-graduação lato sensu.

Com relação à faixa etária dos participantes, percebemos uma diversidade. Alguns

professores estão na faixa dos 25 anos e outros com até mais de 50 anos, sendo que a faixa

etária predominante é dos quarenta aos 45 anos. O tempo de experiência profissional dos

professores pesquisados é, também, variado, pois localizamos desde iniciantes na profissão

até aqueles em final de carreira.

Concernente ao ciclo em que os participantes atuavam, verificamos que 53% dos

professores do grupo pesquisado ensinavam nas turmas do 1º ciclo; 31%, em turmas de 2º

ciclo (2% ); e 16% dos professores atuavam em turmas de 3º e 4º ciclos. Cada um assinou o

termo de livre consentimento, no qual declarou sua concordância em participar da pesquisa e

também autorizou a publicação e a divulgação dos resultados.

Procedimentos de coleta

Fizemos uso da Técnica de Substituição, com o intuito de obter novos elementos

para caracterizar a representação social de ciclos de aprendizagem dos professores. A técnica

consiste numa variação de entrevista aberta, em que se estimula o participante a “soltar”

representações “proibidas ao seu grupo”, atribuindo-as a outros, isto é, falando de si através

dos outros. No caso, o sujeito é estimulado a comentar o que outras pessoas já disseram sobre

um objeto. Desse modo, conforme Abric (2005), seria possível desvelar possíveis aspectos

mascarados ou omitidos de uma dada representação social. Essa técnica vem sendo utilizada

entre os pesquisadores de representações sociais para captar a sua zona muda ou elementos

não explicitados ou omitidos a respeito de determinado objeto. Para Menin (2006), a técnica

de substituição diminui a força das pressões normativas, pois reduz o nível de implicação

pessoal em relação à representação do objeto por meio do deslocamento dos sujeitos do

contexto de normatividade.

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Para aplicar a técnica de substituição, apresentamos ao entrevistado uma assertiva

sobre os ciclos de aprendizagem e pedimos que ele comentasse, utilizando o maior número de

argumentos possíveis para fazê-lo. A assertiva apresentada aos participantes foi: “Alguns

professores afirmam que os ciclos de aprendizagem não têm sido suficientes para garantir o

sucesso na aprendizagem”. Os comentários feitos sobre a assertiva foram gravados e

transcritos.

Para análise dos resultados dos comentários da assertiva apresentada aos professores,

seguimos a orientação da análise de conteúdo de Bardin (1997). Ela fornece ao pesquisador

condições de ultrapassar o alcance meramente descritivo do conteúdo manifesto da

mensagem, para descobrir, mediante a inferência, o sentido velado na opacidade de palavras,

frases, imagens ou quaisquer outras formas de ação ou realização humana. Para analisarmos o

conteúdo do conjunto das mensagens expressas pelos professores utilizamos com o tema

como unidade de registro.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dos comentários sobre ciclos de aprendizagem dos professores em situação de

substituição, emergiram três categorias temáticas, a saber: Os ciclos de aprendizagem: um

terreno onde prós e contras se misturam; o caráter positivo da proposta de ciclos; e a

face negativa da proposta de ciclos. Nos limites deste artigo, comentaremos aquela mais

reincidente no grupo: a face negativa dos ciclos de aprendizagem.

Um grupo de docentes, ao afirmar que os ciclos não têm contribuído para o sucesso

na aprendizagem, levanta, como primeiro argumento, o modo como a proposta foi implantada

na rede pública municipal do Recife. Os docentes alegam que a implantação dos ciclos foi

feita “de cima para baixo”, sem que professores fossem convencidos e preparados para

trabalhar nessa nova lógica. Afirmam, ainda, que a proposta oficial contém uma série de

exigências, mas as autoridades, ao implementarem a proposta, não empreenderam as

mudanças demandadas por essa nova forma de organização curricular. Assim se coloca um

dos professores:

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houve capacitação de uma semana, mas é muito pouco pra desconstruir uma... Todo

um pensamento, toda uma, toda uma prática de anos, em tão pouco tempo, em uma

semana. [...] na maioria das vezes, os professores tão com a ideia que quando uma

coisa é colocada de cima pra baixo eles não aceitam. (Prof. 83)

A esse respeito, Jacomini (2004) constata algo semelhante em sua pesquisa realizada

no estado de São Paulo. Segundo a autora, é comum aos docentes atribuírem ao insucesso das

políticas diversos fatores, tais como: ausência de discussão e de consulta ao grupo

profissional, estrutura física e material das escolas, falta de preparo dos professores, dos

demais funcionários da escola e dos usuários.

A face negativa dos ciclos é destacada quando os professores fazem menção à

inadequação dessa proposta ao nosso país; à dificuldade ou desafio de formar o cidadão para a

vida; e à falta de contrapartida do sistema público municipal para garantir a efetivação da

proposta. Além desses argumentos dos professores, essa face negativa se revela com maior

relevo nos depoimentos referentes à não retenção dos alunos. A impossibilidade de reprovar

provoca maior incômodo e resistência por parte dos docentes. Para eles, a não retenção dos

alunos conspira contra o êxito da proposta.

Se pensam que com isso (ciclos) vão formar cidadão, não vão não. A situação tá

ainda pior que antes. De que adianta ficar vários anos na escola e não conseguir

aprender nada? Que cidadão é esse? Sabe votar. Copiaram um modelo e estão

enganados, pois não vai dar certo. Só não vê quem não quer. (Prof. 14)

Os ciclos estão voltados para as estatísticas. Elevar o número de aprovações no

final do ano. O aluno só pode repetir no ciclo 1 ano 3 ou por falta, então,

logicamente que as estatísticas vão ser as melhores. (Prof. 27)

Alguns docentes afirmam que os ciclos não funcionaram em lugar nenhum, nem

mesmo na França, seu lugar de origem. Um dos participantes da pesquisa argumentou que a

proposta de ciclos também não se adéqua ao nosso país, devido ao fato de não sermos um país

de primeiro mundo. Ao referir-se à proposta, ressaltando seu lado negativo, um entrevistado

afirma que há necessidade de descobrir um novo modelo de escola, que garanta o sucesso da

aprendizagem. Ele salienta que é preciso uma mudança estrutural, que coloque a importância

do conhecimento para a vida.

3 Para preservar a identidade dos participantes, eles foram codificados com a abreviatura da palavra professor,

seguida do número de ordem dos protocolos de transcrição das entrevistas.

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Ainda está para se construir essa escola de sucesso, e eu penso que os ciclos podem

até ter dado certo noutro lugar; aqui não. Eu vejo os meus alunos eu me preocupo

com eles, mas eu não posso pôr tudo que ta ali (na proposta). É outra realidade,

muito diferente. (Prof. 07)

Admitir que os ciclos se constituem apenas como uma mudança de nomenclatura na

estrutura da escola é outro elemento que ganha destaque na fala dos docentes entrevistados.

Uma deles salientou que a escola continua funcionando nos moldes da seriação. Justifica,

enfatizando que, com a implantação dos ciclos, não houve alterações na relação professor-

aluno e direção-corpo docente. Ele entende que a proposta dos ciclos deveria ter modificado a

escola como um todo. Assim se expressou o referido professor:

[...] só mudou a nomenclatura, sabe? [...] Eles [os alunos] deveriam ter um

acompanhamento em outro horário, a gente deveria ter dedicação exclusiva, porque

o ciclo é muito trabalhoso [...] a gente num tem tempo pra fazer isso não, continua

do mesmo jeito, só mudou o nome, piorou. (Prof. 23)

A representação de ciclos de aprendizagem forjada na lógica da seriação é reforçada

pela maioria dos professores entrevistados, que, comumente, citam termos, séries e ciclos

como se fossem sinônimos. Alguns afirmam:

É tudo a mesma coisa, no final ninguém aprende mesmo (Prof. 7).

Quem quiser que acredite que mudou, mas o que se vê nas escolas é a mesma coisa:

tudo sem aprender e um nome bem bonito: ciclos de aprendizagem (Prof. 19).

Salientados os aspectos negativos acima, nessa categoria o elemento mais enfatizado

pelos professores é o fim da reprovação e/ou retenção do aluno. A maioria deles afirma sua

resistência à proposta de ciclos, pelo fato de limitar a retenção dos alunos. Consideram que os

ciclos não têm contribuído para o sucesso na aprendizagem, porque, devido à não retenção, os

alunos ficam desestimulados para estudar: mesmo conscientes de que não dominam as

habilidades básicas de ler, escrever e contar, ainda assim são aprovados. Destacam:

a proposta não se adéqua à realidade da rede. O aluno tá muito solto. Ele sabe que

não tem mais reprovação. Sabe que basta assistir aula pra passar. Só que a

prefeitura não vê que, mais na frente, nós vamos ter uma população de analfabetos

funcionais. Isto é, tem o diploma, mas não sabe de nada. Eu penso isso. (Prof. 41).

Minha visão é muito negativa, porque o aluno vai para outro ano com muitas

defasagens e muitas vezes não consegue superar. Então eu acho que aquele aluno

que tivesse muita dificuldade deveria passar mais tempo dentro de um ano/ciclo

para se aprimorar mais (Prof. 28).

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Ao comentarem sobre a resistência histórica dos professores ao fim da reprovação

como instrumento de controle do ensino-aprendizagem, Barreto e Mitrulis (2004) afirmam

que há uma espécie de intuição generalizada, entre docentes e pais das diferentes redes

escolares, de que a introdução dos ciclos leva a um rebaixamento do nível geral do ensino.

Reforçando o que dissemos, desabafaram alguns dos professores:

a gente tem alunos aqui na quinta, na sétima, na oitava que não sabem ler, que não

sabem fazer uma conta, outros na oitava série não sabia fazer isso, porque não

tinha, conhecimento, não entendia... (Prof. 27)

Você acha que é normal a gente continuar aprovando um aluno que não consegue

ler e escrever ? É isso que a gente muitas vezes tem que fazer... Eu acho que isso

não é bom, e os ciclos tão trazendo isso pra gente. (Prof. 19)

O que me deixa chateado, enquanto professor, com o sistema de ciclos, é a questão

da retenção. É o professor ter certeza que aquele aluno não tem condições de

passar porque não sabe ler e nem escrever, e ele não pode reter. Eu não concordo.

Eu acho que o sistema de ciclos, ele deve ser revisto. (Prof. 35)

Através dos depoimentos dos docentes, é possível entender que, no seu cerne, a

prática da não retenção escolar é o que há de mais negativo na proposta de ciclos de

aprendizagem. Grande parte dos docentes explicitou que os ciclos pioraram a aprendizagem,

porque o professor não pode mais reter o aluno. Expressaram que a não retenção permite que

eles sejam promovidos ano a ano, sem a devida garantia do domínio de competências e

habilidades mínimas requeridas pela sociedade.

Os ciclos podem até ser bom no papel, mas a verdade é que os alunos passam sem

saber. Como a educação pode melhorar com uma proposta dessa? (Prof. 32)

A proposta se torna muito negativa, porque o aluno vai para outro ano com muitas

defasagens e, muitas vezes, não consegue superar. Então eu acho que aquele aluno

que tivesse muita dificuldade deveria passar mais tempo dentro de um ano/ciclo

para se aprimorar mais. (Prof. 43)

Nos ciclos não existe meio de reter o aluno para que o mesmo tenha outra

oportunidade de aprender mais, e isto está tirando o interesse do mesmo, que já

sabe que vai ser promovido para outra série. (Prof. 18)

Pelo aqui exposto, a não retenção constitui a faceta negativa da representação social

de ciclos de aprendizagem dos professores. Segundo eles, a reprovação escolar foi eliminada

do sistema escolar, e sua ausência tem engendrado situações de insegurança, conflitos e

discordância. Neste artigo, apresentamos apenas uma parte dos resultados da pesquisa já

citada, na qual ficou ressaltado o modo como os professores se manifestaram em relação à

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proposta de ciclos. Constatamos que os professores puderam acessar os conteúdos da zona

muda de suas representações sociais de ciclos de aprendizagem e manifestar-se sobre eles,

pois estavam mais livres dos denominados contextos normativos. Assim, cada um falou e se

posicionou sobre o que foi dito por outrem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com os resultados da pesquisa aqui apresentada, fica claro que a composição das

representações sociais de ciclos de aprendizagem associada à negatividade baseia-se em um

sistema que visa orientar comportamentos e interpretar a realidade. Além disso, constrói-se

sobre os efeitos de um conteúdo representacional de escola já pensado e cristalizado na

percepção dos professores. Ressaltamos que não postulamos que os comentários dos docentes

constituem apenas uma transposição linear, para o presente, das representações constituídas

no passado sobre a organização da escola. Ao contrário, trata-se antes de indicar a existência

de estruturas de pensamento que orientam uma forma – que tem efeitos na atualidade – de

representar a escola e o ensino.

O conteúdo negativo e a descrença presentes, regularmente, nas falas dos professores

em relação aos ciclos de aprendizagem indicam as razões pelas quais a adoção dessa nova

forma de organização escolar não vem ensejando um quadro de melhoria da qualidade da

aprendizagem dos estudantes, como prevê a proposta institucional. Assim, fica fortalecido o

postulado de Abric (2003), segundo o qual um comportamento discursivo que revele o

antagonismo entre o que se diz e o que se pensa constitui uma zona muda de representações

sociais. Em suma e de acordo com o exposto, é razoável afirmar que as políticas educacionais,

embora sejam promissoras, confrontam-se com as representações sociais dos professores.

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Como citar este artigo:

MACHADO, Laeda Bezerra. Aproximações em torno da zona muda das representações sociais de

ciclos de aprendizagem entre professores. ETD – Educ. temat. digit., Campinas, SP, v.14, n.2, p.186-

201, jul./dez. 2012. ISSN 1676-2592.