Apresentando o Brasil_filosofia
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APRESENTAO
DO
BRASIL
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
-
Ronie Alexsandro Teles
da Silveira professor de
filosofia e trabalha na
Universidade Federal do
Sul da Bahia (UFSB).
Veja mais em
roniefilosofia.wix.com/ronie
Contato:
-
Caro Leitor,
Como voc, estou tentado
por este livro. Nas coisas
que se olha rapidamente
para decidir se se compra
ou no, se se l ou no, h
vrias que tocam e
repelem. A foto de um
autor vestido com cores da
bandeira brasileira diz-me
algo sobre o desejo de
fazer-se obra de arte. A do
caminho de carga mal
amarrada, ameaando
tudo fazer tombar, faz
lembrar aquele morreu na
contramo, atrapalhando o
trnsito, o arriscarmo-nos
trabalhador-todo-dia. Tudo
isso fala muito de mim
prprio: europeia, a me;
asitico, o pai; indgena, a
feio e o desejo. Estou
tentado por este livro
porque vi indcios de um
desconforto com o prprio
lugar no mundo a produzir
um experimento de
pensamento. Minha
hiptese : um autor,
algum formado na
moldura ocidental, tenta
pensar, do exlio territorial
e cultural, os encontros
inditos: os ntimos, de
que somos frutos felizes;
os fatais, que interditaram
quaisquer frutos No sei
se este livro vai
ajudar-nos a transformar
algo do que pudemos e
poderamos ser e no ser.
Apenas tive a impresso
que o autor compartilha
as dores e sorrisos das
contradies nossas:
povos originrios, fuga
poltica e festa, a
continuar a desaparecer
sob outras coisas que sou:
botas, plvora e ambio.
Se vanc resolver ler,
quem sabe queira contar
se valeu a pena, ento,
tomamos um cafezinho l
na Bahia e juntos
c o m e m o r a m o s o
desaparecimento da
i d e n t i d a d e e o
reaparecimento da
experincia de ser mora-
dor no mundo...
Eduardo Sugizaki
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4 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
Para Melissa
Silveira, Ronie Alexsandro Teles da.
S586a
Apresentao do Brasil. / Ronie Alexsandro Teles da Silveira. Santa Cruz Cabrlia, 2015.
353 f.; 30 cm.
Inclui Referncias. ISBN 978-85-919478-0-5 1. Filosofia brasileira. 2. Homem. 3. Liberdade. I. Ttulo.
CDD 100
Capa, rodaps e ilustraes internas desenvolvidas pelo autor a
partir de motivos Caduveos registrados por Lvi-Strauss.
Foto da contracapa: Melissa Worm.
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ndice
Introduo...........................................................................................6
1 - O Homem Moderno...................................................................19
2 - A Experincia do Homo brasiliensis.......................................34
3 - A Liberdade.................................................................................68
4 - O Paraso......................................................................................79
5 - Contra o Vrtice Antimatria da Modernidade...................92
6 - Estratgias da Blindagem Ontolgica....................................99
7 - A Tecnologia Ldica................................................................105
8 - A Vida Cnica...........................................................................130
9 - O Desapego Existencial e o Catolicismo..............................146
10 - A Potncia Semntica ............................................................158
11 - Natura brasiliensis.................................................................178
12 - A Razo Ornamental.............................................................191
13 - A Educao..............................................................................208
14 - Moralidade Moderna e Mtodo..........................................225
15 - A Sociabilidade......................................................................236
16 - Desconfiana e Indignao ..................................................264
17 - Democracia e Tolerncia.......................................................284
18 - A Cultura da Imolao..........................................................301
19 - Poltica e Amor.......................................................................316
20 - A Violncia..............................................................................331
Concluso........................................................................................341
Referncias......................................................................................345
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6 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
Introduo
Esse livro se prope a alterar o ponto de vista a partir do qual temos olhado
para o Brasil. A perspectiva que adoto aqui no pode, como qualquer outro ponto de
vista, ser considerada verdadeira. Isso porque ela consiste em uma narrativa e no em
uma representao do Brasil que pretende retrat-lo tal como ele . Nesse sentido, essa
narrativa poder demonstrar sua pertinncia enquanto um instrumento para
falarmos e pensarmos o pas, mas nunca mostrar-se verdadeira. Prefiro dizer, ento,
que se trata de uma narrativa que apresenta o Brasil de um ponto de vista que me
parece superior quele que tradicionalmente temos adotado at agora. Porm, essa
superioridade s poder se mostrar no decorrer da prpria narrativa e nos seus
eventuais usos futuros para falarmos, pensarmos e agirmos com respeito ao pas.
Elaborar uma apresentao do Brasil exige, de sada, contornar a dificuldade
ligada ao carter heterogneo do nosso pas. De norte a sul, de leste a oeste, as
diferenas regionais na mentalidade parecem tornar qualquer abordagem unitria
impossvel. verdade que a configurao da vida de um gacho est mais prxima
da de um argentino do que daquela que possui um habitante da Amaznia. Tambm
verdade que os valores bsicos de um sertanejo nordestino so muito distintos
daqueles que orientam a vida de um carioca.
Entretanto, meu objetivo aqui no o de promover uma descrio das
diferenas, de tal forma que cada indivduo ou regio se sintam bem representados
por ela. A despeito da diversidade, parece haver um conjunto de elementos que se
tornou culturalmente predominante ao longo desses pouco mais de 500 anos da
histria do Brasil. Esses valores do forma a grande parte da vida brasileira,
independentemente de que os compreendamos de uma forma positiva ou negativa.
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7 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
Positiva, quando se entende que eles devem ser aceitos e assimilados como parte
constituinte de nossa maneira de ser e, ao contrrio, negativa, quando se pretende
que eles devem ceder terreno a outro conjunto superior de elementos morais. Em
ambos os sentidos, esses valores so essenciais embora no sejam permanentes.
Tratarei aqui de um conjunto de valores hegemnicos que caracterizam o modo de
vida do brasileiro, sem a pretenso de que todos se sintam igualmente bem
representados por eles.
Meu objetivo ressaltar um ncleo significativo de valores para qualquer
tentativa de se lidar com o Brasil de um ponto de vista contextual e concreto. Isso
requer certamente um elevado grau de abstrao das particularidades regionais. Para
no se tornar inadequada, essa abstrao ter que ser capaz de apresentar elementos
que permitiro compreender e agir sobre nosso modo de vida. Ou seja, mesmo se
constituindo como um tratamento que pode ser equivocamente entendido como
abstrato, uma apresentao do Brasil deve ser funcionalmente adequada. Para isso, ela
deve ser capaz de apresentar uma figura do pas a partir do qual problemas e
solues contextualizadas se tornem possveis.
De certa maneira, minha pretenso principal fornecer uma apresentao do
Brasil que possibilite que os problemas e as solues possam ser postulados de
maneira orgnica. frequente que se lide com nosso modo de vida sem ter clareza
de com o que se lida exatamente. Nesse caso inevitvel que problemas sejam
identificados e solues sejam indicadas de maneira abstrata e descontextualizada.
para contornar essa relativa abstrao com relao maneira como lidamos com o
pas que uma apresentao do Brasil se faz necessria. A abstrao a que me referi no
significa exatamente que entendo que h uma compreenso errada do Brasil que
precisa ser substituda pelo que tenho a dizer. A questo me parece mais de falta de
articulao entre um conjunto de elementos que se apresenta fragmentado e, em
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8 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
funo disso, dificilmente compreensvel no seu todo. Da a necessidade de uma
apresentao unitria da vida brasileira ou do Homo Brasiliensis (Hb).
A proposta de uma compreenso desse tipo no uma novidade. Oliveira
Vianna (1938, p. 45) j postulava algo semelhante quando defendia a necessidade de
exercitarmos um conhecimento de ns mesmos j que, com isso prepararamos as
bases de uma poltica objectiva e experimental, de uma poltica orgnica, induzida
das condies especificas da nossa estructura social e da nossa mentalidade
collectiva. Com efeito, esse tipo de apresentao do Brasil nos permite contornar
dificuldades como aquelas oriundas de certa tendncia imitao systematica das
instituies europas (idem, p. 45). Embora a posio de Vianna seja fortemente
marcada pela crena no potencial de uma poltica cientfica, com a qual no estou
de acordo, adoto aqui o mesmo tipo de impulso inicial ligado necessidade de
solues contextuais para os problemas brasileiros. Acredito que muita energia tem
sido gasta com a proposio de projetos que no possuem nenhuma conexo com o
universo de possibilidades fornecido pelas condies brasileiras.
Portanto, o Hb ser meu objeto de ateno aqui justamente por se apresentar
como um gnero independente que no se confunde com as espcies subordinadas
ou com os demais gneros prximos. Ele um tipo puro que talvez no se iguale a
nenhum brasileiro, mas que poder fornecer certa unidade imagem que fazemos de
ns mesmos.
Um segundo aspecto que julgo importante destacar logo de sada que a
apresentao do Hb que proponho no se constitui como uma crtica dessa forma de
vida. Com efeito, a crtica exige o amparo em algum ponto de vista exterior ou algum
critrio independente e essa no a situao que assumo aqui. Pelo contrrio, a
apresentao que pretendo elaborar exige uma atitude de compreenso e, portanto, de
relativa identificao com o modo de vida do brasileiro. Confesso que no possvel
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9 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
adotar essa posio sem algum grau de ternura por esse objeto de estudo. Isso
obviamente facilitado pelo fato de que sou brasileiro desde criancinha. Entretanto,
isso tambm no deve significar que defendo esse modo de vida. A ternura que
possibilita a compreenso da especificidade desse objeto no envolve
compulsoriamente um entrincheiramento dentro dele, nem uma cegueira para seus
eventuais defeitos. Pelo contrrio, sem essa ternura inicial no pode haver
compreenso e, sem essa, nenhuma soluo contextual pode se mostrar possvel.
Minha apresentao do Brasil um contexto geral a partir do qual solues podem se
mostrar pertinentes, mas ela mesma no postula solues de maneira positiva.
Essa metodologia compreensiva e terna, por assim dizer, permite evitar um
tipo de exerccio intelectual que considero ser de baixa eficcia. Esse exerccio
aquele que indica o que est errado e o que essencialmente falso em uma forma de
vida. Entendo que essa atitude crtica uma trivialidade intelectual, na medida em
que tudo que existe pode exibir uma face feia, dependendo apenas do grau de
pessimismo do prprio investigador. O difcil , de fato, o otimismo aquela postura
que consegue desenvolver uma relativa compreenso da maneira como se pensa e se
sente a partir da perspectiva daquilo que se analisa.
O pessimismo flui naturalmente quando tentamos compreender o Brasil por
meio de nossas categorias oriundas de uma matriz filosfica ocidental. O simples fato
de termos sido educados nesse contexto deve tornar nossa apreciao suspeita na
medida em que ela se identifica com o olhar de um estrangeiro que, quando avalia,
reafirma seus prprios pressupostos. A adoo do otimismo permite identificar em
que medida ns intelectuais somos, ainda hoje, estrangeiros ocidentais tentando
avaliar o Brasil.
Ento, meu ponto de partida metodolgico claramente o de simpatia pelo
Brasil, embora isso no deva me cegar para as peculiaridades negativas do seu modo
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10 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
de vida. Em outras palavras, no creio que tudo o que somos bom porque o que
somos. No penso que tudo o que nacional deve ser enaltecido porque brasileiro.
Isso tambm no significa adotar uma postura imobilista e meramente descritiva com
relao ao pas. Esta apresentao um passo inicial e necessrio que poder
engendrar proposies contextuais para futuras alteraes no nosso modo de vida.
Ela no pode ser identificada como a soluo final para nada nem como a concluso
de um tipo de exerccio intelectual sobre o Brasil. Observe que no tenho interesse
em substituir a crtica pela condescendncia porque, afinal, sou brasileiro. Pretendo,
isso sim, substituir o olhar estrangeiro por um olhar interior e mais afeito ao que tem
nos constitudo.
Assim, a ternura metodolgica um artifcio que deve permitir uma melhor
compreenso do Brasil, segundo seus prprios termos, mas que no deve ser
concluda com o enaltecimento de tudo o que nosso. Isso seria substituir a
tautologia da crtica exterior pela tautologia da autocondescendncia interior.
Voltarei a esse assunto adiante em um momento mais adequado.
No me parece pertinente submeter formas de vida, isto , contedos que
possuem efetividade cultural e que so objetos de crenas por parte das pessoas
crtica intelectual. A prpria vigncia dessas formas de vida torna esse exerccio intil
porque, em ltimo caso, elas no exigiram nenhum tipo de defesa ou de
fundamentao ltima para existirem. A filosofia entendeu, por algum tempo, que o
procedimento crtico seria universalmente necessrio, porm a verdade que o que
foi um dia necessrio para a filosofia nunca o foi para o restante da cultura. E mesmo
um eventual acordo sobre a necessidade dessa crtica em algum momento histrico
particular, no garante que ela seja sempre bem vinda.
Uma forma de vida, enquanto uma manifestao cultural, no exige
fundamentao filosfica seno como um exerccio tardio do qual sua existncia de
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11 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
fato nunca dependeu. Ento, a crtica filosfica a formas de vida consiste apenas em
uma manifestao de arrogncia intelectual, que se julga universalmente necessria e
que s admite a validade de algo que passou pelo seu prprio crivo. Ela s pode ser
entendida como a tentativa de autoelevao da filosofia altura que ela prpria se
coloca e to risvel quanto a conhecida histria em que o Baro de Mnchhausen
se levanta pelos cabelos.
Se em algumas passagens o leitor tiver a sensao de que defendo ou que critico
o Brasil, esse no meu objetivo. Trata-se, antes, de falta de recursos lingusticos
adequados de minha parte. Essa sensao pode ser despertada pela dificuldade em
exercer integralmente a ternura metodolgica que me permita construir a lgica
interna de minha narrativa sem ser condescendente. Entenda que caminho no fio da
navalha e que, alm disso, no sou mesmo um bom equilibrista. Minha situao
delicada porque sou um filsofo brasileiro. Como filsofo tendo a me afastar e ver as
coisas daquele ponto de vista distanciado que conformou a filosofia Ocidental em
grande parte de sua histria. Como brasileiro compartilho da maneira de viver dos
meus compatriotas e ainda toro para que as coisas funcionem bem por aqui. Entre
prximo e distante, entre inserido organicamente na vida do Brasil e flutuando sobre
o pas, caminho na lmina afiada de uma navalha.
Mesmo pretendendo obter uma compreenso do modo de vida predominante
no Brasil, alguns elementos de contraste so necessrios para efeitos de clareza da
exposio. O parmetro comparativo que vou utilizar ser o do homem moderno
ocidental - para alguns um resultado da criao dos Estados Modernos na Europa,
para outros um produto da Reforma Protestante e de certos movimentos de
reformismo catlico ou, de acordo com um terceiro modo de entend-lo, um
elemento que se tornou predominante com a adoo do modo de vida burgus.
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12 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
Essa estratgia comparativa visa somente a tornar mais ntido o que prprio
ao Hb e no envolve uma inteno crtica. Ou seja, no adoto essa comparao com a
modernidade para indicar o que nos falta e aquilo que nos seria necessrio para nos
tornarmos modernos, logo crticos (GOMES, 1977). Utilizo a modernidade somente
como um parmetro pedaggico, sem com isso pretender indic-lo como um ponto
de convergncia para o qual deveramos nos mover, como se se tratasse de nosso
destino histrico. Observe que o critrio da modernidade utilizado explicita ou
implicitamente por grande nmero de intelectuais profissionais um tipo moderno
por definio nas anlises sobre o Brasil. Da novamente aquela sensao de
estarmos diante de uma das aventuras do Baro de Mnchhausen, na medida em
que se projeta um tipo de narrativa contada do ponto de vista moderno que visa a
identificar o que no moderno naquilo que se analisa. Sabemos que esse tipo de
narrativa sempre finalizado com a indicao do que necessitamos fazer para nos
tornarmos plenamente modernos. Ao seu final sempre nos tornamos conscientes de
nossa prpria inferioridade e de nossa profunda carncia de modernidade.
Tentei elaborar as comparaes com o homem moderno visando apenas a obter
maior clareza daquilo que nos prprio. Portanto, essas comparaes no devem ser
entendidas como avaliaes. Isto , elas so utilizadas aqui para ressaltar as
diferenas e no para promover algum tipo de hierarquia entre a modernidade e
a brasilidade.
Assim, o leitor perceber que lido com dois personagens: o Hb e o homem
moderno. Mas, de fato, eles no se apresentam historicamente como dois elementos
antagnicos. Com a colonizao do Brasil pelos europeus, o homem moderno entrou
em contato com duas formas de vida distintas: o indgena autctone e o africano
extraditado fora pela pirataria internacional do trfico. Desse encontro, regido
fundamentalmente por atos histricos de violncia, emergiu a forma de vida que
denomino de Hb.
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13 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
Entretanto, isso no significa que ocorreu uma espcie de combinao de foras
composta pelos trs elementos que resultou em um quarto elemento sinttico: o
brasileiro. Do ponto de vista dos valores inegvel reconhecer que o homem
moderno europeu comps a equao, colaborando em alguma medida para ela que
no julgo nem pertinente nem possvel determinar aqui. Assim, no tenho interesse
em estudar a gnese do Hb a partir de seus elementos constituintes, mas apenas o de
expor uma configurao de vida que pode se mostrar til para os brasileiros na
medida em que o apresento para si mesmo.
Com respeito comparao entre o homem moderno e o Hb, importante
perceber ainda que o primeiro se constitui como um elemento histrico cuja fora
latente no cessa de interferir na configurao dos valores brasileiros. Isto , no
apenas ele j colonizou o pas, cedendo valores para a configurao do Hb, como
atua permanentemente sobre ela. A modernidade , portanto, uma personagem de
minha narrativa que desempenha um papel parcial de contraponto ao Brasil.
Ento minha apresentao corre um risco adicional, talvez ainda mais grave do
que as dificuldades que j indiquei: a de funcionar como uma fotografia esttica
de um processo dinmico de interao entre os trs elementos constitutivos da
brasilidade. Isto , acredito que o processo de interao de valores indgenas,
africanos e europeus ainda no chegou a um termo final. Essa constatao no deve
se apresentar como uma novidade para quem est habituado a considerar a natureza
dos processos histricos. Mas isso contraria minha disposio habitual em relatar tais
processos como tendo gerado concluses ou resultados que busco descrever, da
melhor maneira possvel, como cristalizados.
Observe, assim, que meu propsito arriscado em mais esse aspecto: o da
prpria historicidade do objeto com o qual tento lidar. Ento, o Hb um tipo ideal
que ainda no se encontra consolidado em alguma ontologia definitiva porque isso
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14 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
contraria a sua historicidade. Mas isso no implica a impossibilidade de apresent-lo
desde que isso se faa sob tal considerao de prudncia. Para desembaraar essa
questo, eu poderia lanar mo da feliz expresso de Corbisier (1960, p. 58): seria o
caso de reconhecer que o Hb a descrio do que estamos sendo ou, pelo menos,
do que temos sido at o momento. Assim, o Brasil que apresento no seria nem um
ponto de chegada, nem um ponto de partida. Ele seria uma configurao mutvel,
um momento relativamente distinguvel em um processo em andamento, uma
cristalizao provisria (idem, p. 101). No suponho aqui, portanto, nenhuma
rocha viva ou essncia da brasilidade (AMARAL, 1938, p. 211) que possa ser a
referncia para esse livro.
Adotar essa posio equivaleria a adotar uma perspectiva realista com relao
ao significado dessa apresentao do Brasil. Isto , isso equivaleria a exigir que ela se
apresente como uma representao apropriada de uma realidade exterior. No adoto
essa posio aqui e, portanto, no pretendo que a apresentao do Brasil seja
compreendida como um resumo fidedigno de uma realidade nacional muito mais
complexa. Tambm no reivindico a necessidade de que esta apresentao da
brasilidade reconhea a historicidade essencial da vida nacional, de tal forma que se
torne necessrio evitar as conotaes substancialistas que toda representao parece
possuir.
Inclusive, uma das teses desse livro, afirma que a forma de vida brasileira no
opera sob o registro histrico, tpico da modernidade. Nesse sentido, julgo que as
explicaes histricas de como chegamos ao Brasil de hoje no s no acrescentam
nada de importante nossa autocompreenso, como se constituem como uma forma
no adequada de pensar o pas. Se fao efetiva questo de uma apresentao do Brasil
segundo seus prprios termos, em funo de que [ele] no se enquadra nos
esquemas conceituais elaborados para explicar outro contextos (RIBEIRO, 1995,
p. 247), tenho que reconhecer que o prprio esquema conceitual da histria no pode
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15 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
ser aplicado aqui. A historicidade dos eventos uma criao moderna do sculo XIX
e no me parece apropriado importar tal esquema de compreenso para uma
apresentao do Hb j que, como se ver adiante, ela no possui um vnculo interior
com o Brasil.
Ressalto, ento, que o que o leitor tem em mos somente uma apresentao do
Hb que no reivindica ser adequado prpria realidade exterior da brasilidade, nem
mesmo faz justia sua suposta historicidade. Trata-se de uma narrativa possvel
porque ela no requer uma adequao emprica entre o que se apresenta e o que se
supe existir. Como o meu leitor poder, ento, estar convicto de que ela adequada
sem envolver esse sentido realista da correspondncia de todas as representaes
com um mundo exterior? Bem, ela s poder ser adequada se puder mostrar-se
operativa ou funcionalmente adequada em algum sentido. Algumas dessas
possibilidades operacionais sero sumariamente indicadas ao longo dessa
apresentao, mas elas no se constituem como propostas positivas de solues para
problemas brasileiros. Espero que esta apresentao possa se mostrar til como
plataforma para futuras solues de problemas que tentamos resolver hoje, de
maneira claramente infrutfera, de um ponto de vista moderno.
Uma compreenso da brasilidade pode propiciar um entendimento
contextualizado das solues - a poltica orgnica de Oliveira Vianna (1938) - que se
propem a alterar nosso modo de vida. Obviamente, cabe ao leitor decidir se minha
apresentao do modo de vida do Hb produz uma compreenso til dos problemas
brasileiros e sugere a direo de solues mais pertinentes do que as que tem sido
propostas. Portanto, essa uma questo que envolve o resultado da apresentao e
no pode ser inteiramente resolvido logicamente no interior do prprio texto.
Observe apenas que no solicito aquela correspondncia realista entre o texto e a
uma realidade brasileira exterior. Ento minha apresentao da vida nacional uma
narrativa cuja pertinncia somente se mostrar caso ela puder se tornar utilizvel no
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16 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
futuro. Por isso mesmo no se deve procurar identificar alguma correspondncia
entre minha apresentao e as pessoas empricas que vivem no Brasil.
O Hb est sujeito a foras atuantes, incluindo aquelas que j o influenciaram
no passado, como o caso do homem moderno. Nesse sentido, ele est em constante
contato com as foras hegemnicas da cultura contempornea resultado do
processo constante de expanso da modernidade ocidental. Portanto, as comparaes
com o homem moderno no servem apenas como esclarecedoras das peculiaridades
do brasileiro. Elas funcionam tambm, em alguma medida, como descries de um
ambiente ao qual o Hb est exposto quando visto de uma perspectiva planetria. Isso
decorre justamente da percepo de que aquilo que nos constitui o resultado
parcial de foras exteriores que se tornaram e se tornam interiores, constituindo um
processo permanente de alteraes entre essas duas dimenses.
Gostaria de frisar tambm que a modernidade no apenas um componente
gentico do Hb como tambm um elemento que influencia permanentemente essa
configurao. Exatamente por isso ela me parece o melhor elemento comparativo
para destacar as caractersticas do brasileiro e, ao mesmo tempo, apresentar aspectos
do ambiente hegemnico internacional no qual ele se encontra inserido e com o qual
ter de lidar cada vez mais. Dessa maneira, a modernidade no apenas um
componente gentico da brasilidade, como tambm uma fora cultural externa ainda
atuante sobre ela.
Devo a muitas pessoas e de formas diferentes algum grau de contribuio nesse
trabalho. Aspectos da vida no Brasil me foram oferecidas pelas vrias situaes a que
me expus vivendo aqui. Portanto, em alguma medida difcil de ser precisada, toda
convivncia me possibilitou obter alguma percepo daquilo que pretendo apresentar.
Sendo to difusas essas contribuies, me permito ser evasivo nos agradecimentos a
muitos e limit-los injustamente a poucos.
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17 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
Do ponto de vista da convivncia e da experincia da brasilidade, devo muito a
mineiros, goianos, gachos, baianos e cearenses. Agradeo a Cleudia Antonia
Barbosa da Silva, Lus Claudio de Freitas e Paulo Ghiraldelli Jr. por haverem me
propiciado experincias fundamentais que tornaram relevante o tipo de investigao
que tento realizar aqui. Tambm agradeo a Srgio Schaefer, Aldir Carvalho Arajo e
Jos Crisstomo de Souza pelo mesmo motivo e por haverem realizado uma leitura
prvia dos originais desse livro com a costumeira generosidade e imparcialidade.
Talvez em uma medida que nenhum de ns possa estar claramente consciente,
discusses, intercmbio de ideias e, principalmente, as suas atitudes como
professores, intelectuais e seres humanos me permitiram adotar a postura necessria
para elaborar esse livro. Agradeo tambm aos estudantes do Curso de Filosofia da
Universidade Federal do Cariri, do semestre letivo 2014/1, a oportunidade de ter
discutido com eles vrios dos assuntos contidos nessa apresentao. Evidentemente,
isso no significa que eles so responsveis em alguma medida por quaisquer dos
muitos equvocos que estou pronto para cometer.
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19 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
1 - O Homem Moderno
O Homo brasiliensis (Hb) um ser natural. Essa naturalidade deve ser
compreendida aqui como uma indisposio antropolgica para se constituir como
um sujeito. Um sujeito um homem que se construiu pela autoimposio de uma
intencionalidade. Para efeitos de comparao, note que o sujeito moderno ocidental,
o cidado dos Estados europeus, um homem artificial. Ele artificial porque o
resultado de um ordenamento de disposies que, na falta de uma melhor
perspectiva histrica, chamo de naturais. Tais disposies certamente no so
naturais no sentido de constiturem uma natureza humana ou uma essncia
petrificada, a partir da qual teria se iniciado um processo posterior que resultou no
sujeito moderno. Elas constituem apenas uma etapa particular de um processo
histrico diversificado a partir da qual a modernidade toma impulso.
A sujeio diante de uma autoridade externa parece ter sido a experincia
decisiva para a constituio da artificialidade do sujeito moderno. A passagem da
condio de cavaleiro medieval desimpedido e senhor de si para a de um corteso
inteiramente a merc de um rei, descrita por Elias (2011), corresponde a essa
experincia histrica. Em um segundo momento, se produziu a internalizao dessa
autoridade real e se estabeleceu o desencadeamento do processo de ordenamento
interior do sujeito ou de constituio da subjetividade propriamente dita. Assim, se
criou uma hierarquia interior em que se colocou em questo a necessidade do
homem colonizar a si mesmo, produzir-se atravs da unificao da diversidade
psicolgica natural sob a autoridade de um princpio regulador superior.
O homem moderno desencadeou um processo de unificao de suas
disposies naturais, de tal maneira que dentro dele se estabeleceu um jogo de foras
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20 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
entre um princpio superior e um mltiplo apetitivo e emocional que deveria ser
submetido e controlado. De certa forma, a subjetivao consistiu na internalizao do
conflito entre um poder central e a disperso geogrfica e poltica que precisava ser
reunida para se constituir o Estado moderno europeu.
O sujeito encontra-se, no momento de sua constituio, em uma situao de
ordenamento gradativo e de unificao do mltiplo disperso a partir da perspectiva
de uma intencionalidade que revestida de alguma forma de superioridade moral.
Isso torna evidente que, do ponto de vista moderno, o que imprime unidade e
coerncia conduta humana a sua subordinao a um fim, sua referncia a um
ideal que dirige nossos gestos e do qual nos procuramos aproximar por meio
deles (CORBISIER, 1991, p. 116). O sujeito , basicamente, um ordenador de si
mesmo, um homem que se constitui medida que exerce seu poder de unificao
sobre suas disposies naturais dispersas e fragmentadas. Da aquele carter artificial,
a que fiz referncia antes, oriundo do fato de que o sujeito vem a se produzir como
um conjunto ordenado de elementos subjulgados por uma unidade superior. Ele o
resultado do seu prprio ordenamento interior. O sujeito um ser que se produz a si
prprio. Faz sentido, portanto, a afirmao de que O Antigo Regime chama-se
diversidade (LADURIE, 2002, p. 65) porque isso evidencia sua diferena com
respeito ao esprito unificador da modernidade.
Para se tornar um sujeito no sentido pleno, o homem se sujeita mas, mais
importante ainda, ele se sujeita a si prprio, na medida em que o impulso que gera a
disposio para a unificao de suas disposies naturais atua no seu interior. O lance
histrico decisivo aqui foi o da internalizao da autoridade e a instituio de uma
hierarquia dentro do indivduo que permitiu que esse processo de subjetivao fosse
deflagrado.
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21 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
A coero exterior parece ter desempenhado um papel importante como uma
experincia inicial de sujeio, mas esta ltima no se realizou plenamente seno
quando adotou a forma de uma intencionalidade, uma disposio interna para
subordinar a totalidade do homem natural a um valor superior projetado. Sem tal
componente interior, essa coero no passaria de uma fora exterior sem efetividade
psicolgica e cultural uma fora poltica sem substncia psicolgica e, portanto,
sem eficcia para dar forma definitiva e profunda ao sujeito.
Essa limitao da fora foi percebida por Nabuco (1975, p. 952): o princpio
da autoridade no pode viver somente de fora material. Sem a respectiva
internalizao, ela agiria como um poder coercitivo, cuja eficcia dependeria sempre
da presena e da ao da fora fsica sobre o homem. Quando essa fora perdesse
potncia ou se mostrasse ausente, em funo de sua prpria materialidade, seu efeito
diminuiria na mesma proporo e tudo retornaria ao ponto inicial - como ocorre
quando uma represa se rompe e o rio retoma seu curso natural. Com a eliminao da
barreira fsica, tudo tenderia a retomar situao original j que no se produziram
alteraes interiores. Isto , no se produziriam alteraes profundas. Nesse sentido,
dizemos comumente que somente as mudanas interiores so autnticas, porque
somente elas geram resultados definitivos.
Foi a internalizao da coero que permitiu a constituio de uma fora
latente, uma fonte psicolgica de constrangimento permanente e uniforme que, como
tal, no possui as limitaes materiais tpicas da fora fsica. S uma fora interior
pode se estender livremente a todas as dimenses do mundo da cultura e do esprito.
Foi esse processo que produziu efeitos sobre uma vasta regio interior: o palco da
domesticao do sujeito por ele mesmo. o ordenamento e a unificao dessa vasta
regio interior que propicia as condies decisivas para o desenrolar do processo de
constituio da subjetividade.
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22 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
Assim, o sujeito moderno resulta de um processo de unificao da
multiplicidade psicolgica natural. Essa tendncia sntese o resultado de um
princpio que se impe gradativamente a todas as dimenses da vida individual
incluindo o comportamento. A consistncia entre o princpio ordenador e esse
mltiplo natural a meta final e, na medida em que avana, ela resulta no
estabelecimento de uma personalidade disciplinada e homognea um carter.
Se considerarmos a totalidade da vida do sujeito, ela regida pela necessidade
de no permitir a exceo ou a contradio interna e exibir um alto grau de
consistncia interior. O disciplinamento e o enrijecimento de traos da personalidade
so uma meta que se busca permanentemente, como um ajuste definitivo entre os
elementos dspares que se atritam dentro dela. O sujeito moderno , portanto, o
resultado de uma espcie de tecnologia disciplinar, um ciborgue constitudo de
elementos distintos, mas perfeitamente ordenados e subordinados a um princpio
superior dotado de autoridade. A realizao plena da subjetividade exige, portanto,
um reino interior plenamente consistente consigo mesmo, uma unidade produzida
pela subjugao persistente da diversidade natural. O sujeito sofre, portanto, de uma
febre aguda de retido (IBSEN, 1993, p. 284).
Em funo da exigncia de se chegar consistncia plena, o sujeito entende
que um evento traumtico ocorrido no passado, por exemplo, deve ser
explicitamente incorporado sua vida. Isso porque tal evento no pode se apresentar
como uma ilha parte na paisagem psicolgica, como um princpio distinto e no
subordinado, como um outro dentro de si seno continuar sendo traumtico, isto
, no subordinado ao sujeito. Faz parte da lgica da instituio do sujeito moderno
incorporar a diferena interior e orden-la sob um mesmo princpio. Dessa maneira,
ele no desenvolve repositrios psicolgicos incomunicveis e fragmentados, a
menos que se deixe tornar um sujeito patolgico e fracionado.
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23 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
sintomtico dessa lgica de unificao e ordenamento moderno que a
fragmentao e a existncia paralela de extratos psicolgicos independentes tenham
que ser eliminados para que a normalidade psquica e a plena consistncia do sujeito
consigo mesmo sejam obtidas. Tudo no sujeito deve se subordinar unidade imposta
pelo sujeito. Aquela vasta paisagem interior, diversificada e de relevo acidentado,
deve ser submetida a um poder central interior que constri uma perspectiva
panormica e ordenada da totalidade. Uma nica ordem deve se sobrepor a todos a
variedade da vida individual. A normalidade ou a sade psquica se identificam com
a plena subjetivao do indivduo. O sujeito experimenta o ser como provocao,
como projeto, experimenta cada estado existencial como uma restrio que tem de
ser superada, transformada noutra (MARCUSE, 1968, p. 107) e devidamente
incorporada a si.
A persistncia da independncia de algum extrato particular configura-se
como uma limitao do processo de ordenamento e, portanto, compreendido como
a evidncia da fragilidade da vontade do sujeito. Essa debilidade moral, esse defeito
aos olhos do processo modernizador, pode ser constatada quando o sujeito no
capaz de subjugar inteiramente seu comportamento, de tal maneira que suas aes
no reflitam adequadamente um princpio superior intentado. Nesse caso, h uma
inconsistncia interna, uma falta de integridade, uma fratura no processo de plena
sujeio do homem a si. Essa fragilidade da vontade do homem moderno uma
deficincia moral grave, porque inviabiliza a sua plena realizao como um sujeito.
O homem que no d a si prprio a plena feio de um sujeito subordinado
sua vontade, um homem que no obtm autonomia plena e vitimado por
circunstncias aliengenas, mesmo que interiores, um sujeito moralmente inferior.
Essa falta de integridade ameaa deixar pela metade o processo de subjetivao e
fomentar a dissoluo do reino interior do indivduo. Por isso a modernidade exige
integridade moral e unificao da multiplicidade subjetiva. Ela dirigida por uma
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24 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
compulso pela unidade e pela consistncia em todas as dimenses da vida. No
outro o motivo pelo qual alcoolistas e fumantes so considerados patolgicos. Eles
so vtimas impotentes de uma interferncia que impede que consigam fazer de si
mesmos o que desejam. Para isso, se supe que ningum em s conscincia pode
pretender ser alcoolista ou fumante.
A valorizao da plena consistncia interna do agente define um ideal de vida
humana a ser alcanado. Nele se prioriza justamente a conexo de uma
multiplicidade vivida sob um princpio ordenador. Essa capacidade de dar um
sentido nico existncia variada e se impor uma disciplina uma virtude
tipicamente moderna. No plano da ao, o agente deve expressar, todo o tempo e em
vrias circunstncias diferentes, o mesmo princpio, a mesma disposio interna. Isto
, sua vontade deve exercer uma fora constante sobre as suas disposies naturais e
deve deixar transparecer o pleno domnio do elemento superior sobre a totalidade do
comportamento. O sujeito deve se mostrar inabalvel como um asceta que tenta
dominar o que animal e perverso em si mesmo por meio de uma ao que
transforma o mundo configurando aquilo que Weber (2010, p. 52) denominou de
ascetismo intramundano.
A perseverana da vontade a expresso moral da necessidade de
consistncia lgica e narrativa existentes no processo de sujeio. Ela deve se opor
aos extratos particulares, s disposies naturais, como uma fora latente sempre
alerta e em constante atividade de superviso e unificao do mltiplo
eventualmente rebelde. Somente a interiorizao psicolgica de um princpio
superior poderia ter colocado em operao um mecanismo com tamanha capacidade
de exerccio de fora e de domnio sobre o homem. A mera coero exterior, por si s
e sem gerar consequncias interiores, jamais seria capaz de implantar um mecanismo
to potente dentro de cada indivduo, de tal forma a tornar compulsria a
subjetivao.
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25 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
Numa passagem muito eloquente, Jung (2001) explica como sua experincia
na frica terminou obrigando-o, aps certa relutncia, ao uso da violncia fsica
contra os nativos. Isso se tornou necessrio porque, segundo ele, no havia outra
forma de mobilizar uma vontade que no possua a menor disposio interna para a
ordem. O comportamento dos nativos no era, nesse caso, determinado a partir do
seu interior e por isso ele exibia uma feio errtica, assimtrica e incompreensvel
aos olhos de um europeu. O chicote de pele de rinoceronte, usado por Jung para
mobilizar o comportamento dos nativos, certamente um substituto dessa
disposio da vontade moderna para a persistncia - inexistente no nativo, mas
requerida pelo colonizador moderno.
A modernizao ou colonizao um processo que pode implicar a violncia
como um substituto para a falta de disposio interior do nativo para a disciplina e a
autoconteno. Pode implicar uma expresso que no significa que entendo que a
violncia seja necessria como mecanismo modernizador, mas apenas que possvel
entender a modernizao como um processo de controle de disposies naturais, seja
por meio do mecanismo interno, seja pela fora exterior que certamente no exibe a
mesma eficcia daquele. No se trata aqui de algum suposto direito do homem
moderno em usar de violncia contra nativos no modernos, mas da possibilidade
de seu aparecimento na relao colonial em funo da lgica especfica do processo
de modernizao. Nesse sentido, podemos compreender como a violncia surge
quase que espontaneamente nos processos de modernizao, j que se trata de
instalar disposies interiores nos indivduos de modo a produzir subjetividades de
maneira compulsria. A violncia sempre est presente, de uma maneira ou de outra,
em qualquer processo de modernizao.
Como ilustrei antes, a fora no desempenha a mesma funo que a
compulso interna e nem se estende a uma paisagem to vasta quanto esta. Ela pode
funcionar externamente ou somente quando e na medida em que o chicote for
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26 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
eficiente contra o nativo. Assim que o brao relaxar a presso - j que ela no pode
ser exercida indefinidamente e por toda a parte, nem mesmo nos piores regimes de
uso exclusivo da fora - a energia externa perder a eficcia e o processo que tenta
ordenar o sujeito a partir de fora perder o impulso. Por isso, a modernizao
forada do exterior, o uso exclusivo da violncia fsica, tem produzido resultados to
pfios como estratgias de modernizao. Os dispositivos interiores de ordenamento,
capazes de mobilizar o homem a partir de dentro, so certamente mais promissores
quando se tenta chegar aos resultados intentados pelo processo de modernizao.
A narrativa mais expressiva relativa ao sujeito moderno , portanto, a
descrio do seu embate interior para chegar a dar a si uma feio completa e
derivada de um princpio superior autoimposto. Seu mecanismo essencial se revela
como o desdobramento da necessidade de forjar uma unidade, produzir a
consistncia por meio da perseverana porque o sujeito s obtm plena consistncia
interior atravs de um longo processo de ordenamento interno e externo. O sujeito
moderno realiza-se como expresso de um projeto de disciplinamento e busca de
integridade. Ele se torna um sujeito pela vigilncia constante que exerce sobre si com
o intuito de verificar se algum de seus elementos funciona de maneira fragmentada
ou tende a se separar dele. Para o exerccio dessa vigilncia permanente essencial
que se instaure no indivduo um impulso para a ordem. ele que desencadeia o
processo de unificao ou de subjetivao. Sem a atuao desse impulso no haveria
sujeito.
Para o homem moderno essa narrativa essencial para sua existncia, de tal
forma que ele apenas pode saber quem por meio da histria de seu
desenvolvimento pessoal. Sem uma narrativa do processo de unificao, a prpria
unidade do sujeito que perdida ou que no chega sua plena autoconscincia.
Assim, a compreenso que ele possui de si mesmo tem necessariamente uma
dimenso temporal expressa sob a forma de uma narrativa que agrega os eventos sob
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27 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
um mesmo ncleo significante. Cada episdio particular da vida diz algo de
significativo apenas porque parte constituinte da narrativa que o sujeito pode
apreender como sua autoconscincia (TAYLOR, 2001). Um evento isolado, um
fragmento no possui nada de relevante, a menos que seja incorporado como
elemento de uma narrativa geral constituinte da vida de um sujeito. Em si mesmo
esse elemento particular nada significa e, como tal, se apresenta como aquilo que
deve ceder terreno diante da narrativa do sujeito, perdendo sua independncia e
seu sentido particular em funo de um sentido geral subordinador. O sentido
relevante oriundo de uma narrativa geral de constituio de si mesmo, do embate
consigo para se tornar um sujeito pleno no enfrentamento de suas disposies
naturais.
A memria uma funo de primeira ordem do sujeito porque ela que
permite ordenar os eventos particulares dentro de uma mesma moldura e fornecer a
cada um deles um peso relativo dentro do conjunto. A psicologia cognitiva
identificou alguns erros que fazem parte do funcionamento normal da memria
humana. Ao contrrio do que se cr normalmente, a memria no reproduz as nossas
experincias tal como elas ocorrem no mundo exterior. Um desses pecados
funcionais crnicos da memria consiste no erro em produzir uma narrativa
enviesada dos acontecimentos passados. O vis, nesse caso, o que gera uma
narrativa altamente consistente, a despeito do carter emprico fragmentrio de
grande parte de nossa vida concreta (SCHACTER, 2001). Ou seja, a narrativa criada
pela memria tenta articular os eventos de tal maneira que eles faam sentido como
etapas de um controle intencional pleno e consciente por parte do sujeito. Ela produz
uma narrativa coesa, a despeito do acaso e at da falta de controle efetivo dos
acontecimentos. Ela fornece uma narrativa linear do nosso passado dando a
impresso de que somos os nicos responsveis por tudo o que nos aconteceu. Essa
narrativa produz a sensao de que sempre estivemos no controle de nossa vida e
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28 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
que nossas escolhas so plenamente consistentes com um planejamento j existente
na ocasio em que as realizamos.
La Rochefoucauld j suspeitava desse artifcio ad hoc quando dizia que Se
bem que os homens se gabem de suas grandes aes, estas no so, muitas vezes, o
resultado de um grande desgnio, mas o produto do acaso (1939, p. 20). A noo de
que h um sujeito e uma vontade que so capazes de ordenar a prpria vida e impor
uma ordem aos eventos que acontecem um elemento essencial da vida moderna.
Por isso, que A fraqueza o nico defeito que no se pode corrigir (idem, p. 30).
Da mesma forma, a virtude ser compreendida como a necessidade de tomar os
elementos com o propsito de uni-los e lig-los, para que nunca apaream
separados (idem, p. 98).
Aquele erro da memria, aquele vis sistemtico em direo consistncia,
permite perceber a necessidade experimentada pelo sujeito moderno em produzir
uma conscincia superior de si mesmo que impea o fracionamento e a
desarticulao das partes de sua vida. Esse vis da narrativa autobiogrfica propicia
que o passado adquira o aspecto de uma histria uniformemente guiada por decises
autnomas e conscientes de um sujeito sempre vigilante. Ela revela um sujeito
plenamente consciente e um agente altamente eficiente com respeito ao exerccio do
controle sobre a totalidade de sua vida.
Entendo que esse vis da memria o sinal da necessidade de controle
exercido pelos valores modernos infiltrada dentro das funes cognitivas mais
bsicas do homem. Ele pode ilustrar o quanto a modernidade se internalizou, de tal
forma que no parece mais possvel separar o que um homem submetido a tais
valores e o que a prpria modernidade. Aquilo de que o homem moderno se
lembra como sendo sua vida pregressa uma narrativa gerada pela eficcia
psicolgica da modernidade e no algo de que ele consiga se lembrar por si mesmo.
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29 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
Portanto, no h como separar no sujeito o que o homem e o efeito que sobre ele
exerceu a compulso moderna pela ordem e pelo controle. Os dois se tornaram um
s, de tal forma que faz pouco sentido tentar captar o que seria o homem natural
antes do evento da modernidade.
Podemos ter uma vaga noo do que seria esse estado natural do homem
acompanhando alguns exemplos histricos de incivilidade fornecidos por Elias
(2011, p. 130) e retirados de manuais de boas maneiras dos sculos XVI e XVII:
indelicado cumprimentar algum que esteja urinando ou defecando...
(p. 130, retirado do De civilitate morum puerilium, de Erasmo)
Alm do mais, no fica bem a um homem decoroso e honrado preparar-se para se aliviar na presena de outras pessoas, nem erguer as roupas, depois, na presena delas.
(p. 131, retirado do Galateo, de Della Casa)
Que ningum, quem quer que possa ser, antes, durante ou aps as refeies, cedo ou tarde, suje as escadas, corredores ou armrios com urina ou outras sujeiras, mas que v para os locais prescritos e convenientes para se aliviar. (p. 132, retirado dos Regulamentos da Corte de Wernigerode).
O cheiro do lodaal horrvel, Paris um lugar horroroso. As ruas cheiram to mal que no se pode sair de casa. O calor extremo est provocando o apodrecimento de grande quantidade de carne e peixe, e isto, juntamente com a multido de pessoas que fazem...na rua, produz um cheiro to detestvel que no pode ser suportado.
(p. 132, retirado da correspondncia da Duquesa de Orlans).
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30 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
As alteraes de comportamento recomendadas pelos manuais de boas
maneiras, citados por Elias, indicam que tais aes eram comuns e passaram a ser
rejeitados em funo de algum tipo de mudana cultural que estava em curso. Essa
mudana era justamente o processo de modernizao com suas exigncias de
controle do sujeito sobre si mesmo e de extenso do autodomnio a todas as
extenses da vida. Entretanto, no devemos tomar esses casos como um quadro
fidedigno de alguma suposta condio natural, mas como exemplos meramente
ilustrativos - no melhor estilo da propaganda atual.
A necessidade moderna de submeter a vida exigncia de uma narrativa
consistente a afirmao de que o sentido de cada experincia particular no est
contido nela mesma. de sua participao no sentido superior e geral da narrativa
subjetiva que cada elemento da experincia retira sua significao verdadeira. Assim,
uma experincia vivida pode ser altamente significativa, caso se revele decisiva para
a obteno de algo que considerado importante do ponto de vista da
autoconscincia atual do sujeito. Pelo contrrio, uma experincia pode ser
insignificante se ela no contribui em nada para essa narrativa mais ampla de
sujeio a um mesmo princpio ordenador.
Assim, notamos, tambm relativamente s operaes semnticas, a presena
dessa compulso moderna pelo ordenamento, pela constante organizao de si
mesmo, pela constituio de um carter e pela necessidade de fixao dos mesmos
elementos significativos em todas as instncias da vida. O que significativo o por
dizer respeito narrativa intencional do sujeito e poder ser integrado a ela. Uma
experincia, mesmo que intensa, que no pode ser incorporada narrativa da
subjetividade no possui sentido e nem deve ser reconhecida como uma experincia
do sujeito. Em ltimo caso, a narrativa do sujeito que determinar o que pode ter
sentido e o que no pode. Portanto, a adequao ou inadequao histria do
sujeito que funciona como critrio semntico decisivo para se reconhecer um
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31 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
episdio particular da vida como sendo importante ou mesmo para ser contado
como um elemento que faz ou no parte dela. Isso porque um evento insignificante
no possui existncia subjetiva, ele no ocorreu.
O ideal da modernidade que se produza uma narrativa plenamente
consistente em que todos os elementos possam ser conectados ao sujeito. Aqueles
eventos particulares que no podem ser incorporados tero que ser descartados por
algum tipo de manobra semntica. Para se preservar a unidade requerida, o ideal
que eles possam ser reinterpretados de maneira a se integrarem j que seu sentido
original no permite que isso ocorra. Essa uma operao semntica formalmente
idntica quele desvio de consistncia da memria humana.
Entretanto, nem sempre isso se torna possvel e, nesses casos, entrevemos o
eventual fracasso da modernidade em incorporar a si todos os elementos dispersos
que possam se mostrar resistentes. Se verdade que a modernidade consiste em um
potente espiral semntico pronto a se expandir, isso nem sempre implica em uma
eficcia completa no sentido de incorporar a si todos os elementos dissidentes.
Depender da potncia semntica do homem o sucesso em se obter uma narrativa
plenamente consistente e unitria e fornecer ao sujeito a plena sade subjetiva e o
pleno controle moral sobre sua vida. No h como separar o sucesso da modernidade
de sua capacidade para produzir a unidade e a consistncia do discurso subjetivante.
Da a expresso usada por Foucault (1976, p. 30) para descrever a necessidade
moderna de permanente articulao e vigilncia: fazer passar o sexo pelo moinho
sem fim da palavra. No h outro meio pelo qual a modernidade poderia lidar com
esse ou com qualquer outro assunto seno atravs do discurso. A resoluo de um
problema exige a sua articulao em uma narrativa, de tal forma que ele possa fazer
sentido nesse contexto geral institudo pelo sujeito. medida que se expande, a
modernidade articula um tipo de discurso que, ao mesmo tempo em que institui um
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32 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
novo domnio de eventos, submete-o a uma ordem narrativa superior. A criao do
espao interno da subjetividade tambm a instaurao de uma narrativa que se
amplia continuamente. Para essa narrativa moderna s h aquilo que pode ser
enunciado e devidamente integrado ao sujeito. A narrativa um dispositivo de
expanso do mundo experimentado pelo sujeito. Quanto mais se narra, maior a
ontologia reconhecida. Em outro lugar, designei esse dispositivo expansivo de vrtice
antimatria da modernidade (SILVEIRA, 20142, p. 197).
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34 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
2 - A Experincia do Homo brasiliensis
Eu sou eu em tudo e por cima de tudo.
Peer Gynt, personagem de Ibsen (1993, p. 59)
Descrevi at agora a maneira como o homem moderno se conforma e se
produz por meio da instituio de um processo de regncia sobre si mesmo, da
fundao de um imprio subjetivo profundo. Passo, agora, a tratar do Homo
brasiliensis (Hb). Essa ordem da disposio do contedo no deve levar voc a pensar
que se trata de explicitar o quanto falta a esse ltimo quando o confrontamos com o
primeiro. No minha pretenso tomar o homem moderno como um parmetro
evolutivo, utilizando-o como uma espcie de padro de medida para avaliar o Hb.
Ou seja, no me interessa avaliar o quanto o Hb expressa uma modernidade
inacabada ou ainda no plenamente realizada. Esse ltimo um discurso trivial de
qualquer perspectiva que toma a modernidade como nosso destino histrico. No
creio que devamos nos modernizar necessariamente.
A modernidade serve aqui como um parmetro comparativo, mas no como
um parmetro teleolgico. Isto , ele no o critrio definitivo para onde tende o Hb
e, quem sabe, toda a humanidade. Voltarei a essa questo adiante quando abordar
algumas posturas intelectuais que lanam mo justamente desse artifcio teleolgico
na anlise dos mundos no modernos.
Certamente no em vo que utilizo essa comparao aqui. O homem
moderno se tornou uma figura sem a qual no podemos compreender nossa poca
histrica e nem seus desenvolvimentos potenciais subsequentes. Por isso,
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35 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
independentemente do juzo que se faa a seu respeito, as questes relevantes com
relao ao nosso tempo passam necessariamente por ele. Entretanto, enfatizo, isso
no significa que ele funcione na presente apresentao como um valor final para
qualquer processo histrico. Ele um parmetro de comparao exterior que se
impe em funo de sua importncia cultural e formativa para o Hb nada mais que
isso.
Por ser natural, o Hb no possui aquela compulso moderna pela unidade e
pela ordem. Ele um homem que no se ordena sob uma intencionalidade e nem
procura apreender-se por meio de uma narrativa unificada. Quando sua vida
narrada sob a perspectiva moderna ela deve parecer um contrassenso ou a expresso
de uma individualidade destituda de uma vontade robusta. Isto , ela deve parecer
como uma individualidade dotada de uma grave imperfeio moral porque se
mostra incapaz de se auto-ordenar. No possuindo o impulso moderno para a
unidade, o Homo brasiliensis simplesmente no busca produzir uma narrativa que d
sentido diversidade de experincias vividas e no impe a si um processo de
constituio subjetivante.
As experincias particulares do homem natural no se subordinam
metanarrativa englobante de uma vasta regio interior. Para ele, o sentido de cada
uma de suas experincias determinado de maneira imanente, sem a necessidade de
um contexto do qual resultaria um significado superior, como uma fonte nica e
central a partir da qual todo o restante pudesse ser subordinado. Os eventos
particulares de sua vida no se ordenam sob um sentido superior de segunda ordem.
Tratarei adiante e com maior detalhe das operaes semnticas prprias da
experincia do brasileiro. Por hora, observe que ela no se configura como uma
operao em duas dimenses, um ordenamento imposto por um princpio superior
sobre um mltiplo disperso. Dessa maneira, o sentido de uma experincia derivado
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36 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
diretamente dos eventos particulares, sem se submeterem a um ordenamento
semntico disciplinador, sem retirarem sua substncia de um princpio regente.
Isso no significa afirmar que a experincia do Hb seja esquizofrnica e
fragmentada como um arquiplago psicolgico, como poderia parecer aos nossos
olhos viciados de modernidade. No se apresenta aqui, portanto, a esquizoidia
aludida por Freyre (1986, p. 46). Segundo o prprio autor, esse termo s se justifica
em moderna linguagem cientfica, ou seja, para aqueles que adotam um ponto de
vista moderno. A prpria noo de fragmentao s se apresenta como uma
experincia efetiva a partir da disposio do sujeito moderno em ordenar-se. Isto ,
ela s surge como um estado - indesejvel e a ser superado - quando o sujeito projeta
sobre sua condio natural a necessidade de unificao. Portanto, a fragmentao e
tudo o que pode ser compreendido como uma anormalidade dispersiva so
elementos decorrentes da maneira como o sujeito moderno busca obter uma
autocompreenso de sua prpria existncia pregressa ou pr-subjetiva. Essa
disperso no se apresenta como uma caracterstica da constituio psicolgica do
homem natural de seu prprio ponto de vista. Isso significa que h disperso ou
fragmentao da vida somente para um olhar exterior, mas no da prpria
perspectiva do Hb.
Com efeito, a experincia do Hb no apresenta aquela ciso entre o princpio
superior ordenador e o mltiplo psicolgico a ser sintetizado em uma unidade. Sua
constituio psicolgica carece da introjeo da autoridade externa e, portanto, no se
opera como a distino entre a naturalidade das disposies e alguma necessidade
superior de ordenamento. Se considerarmos que essa ciso um advento promovido
pela internalizao da autoridade exterior, ento o estado natural, tpico do Hb,
implica na ausncia desse evento inaugural da subjetividade moderna. Em outras
palavras, ele no s no vive sob a compulso da unificao do mltiplo, como no
experimenta a multiplicidade como um elemento constituinte de si mesmo. Para ele,
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37 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
tal diversidade no se constitui como algo problemtico e, mais ainda, sequer se
apresenta como um elemento especfico de sua experincia concreta.
Ressalto aqui a importncia dessa distino entre o ponto de vista moderno
segundo o qual, em geral, se observa o Hb - como se fosse um objeto para ns - e a
perspectiva interna de uma apresentao que tento adotar aqui a maneira segundo a
qual o Hb experimenta a si mesmo e ao mundo. A primeira levar certamente ao
reducionismo de apreender aquilo que o Hb no a partir do critrio da
modernidade uma encarnao daquele parmetro teleolgico a que j me referi. A
segunda tentar apresent-lo sem tal vnculo de subordinao, embora lance mo da
modernidade como um elemento comparativo. H uma enorme distncia entre
utilizar a modernidade como critrio de avaliao e como parmetro comparativo
que no pode passar despercebida aqui. A perspectiva dessa apresentao exige
tentarmos considerar as coisas do ponto de vista do prprio Hb. Retornemos agora
ao canal principal.
O reconhecimento do mltiplo psicolgico como um elemento constituinte da
vida, como compondo uma experincia efetiva, exige um deslocamento interior que
est ausente do Hb. A diversidade s pode ser reconhecida como significativa
quando a conscincia se desloca para fora dos fragmentos psicolgicos, assumindo
um ponto de vista externo com relao a eles. S posso me tornar consciente de que
agora escrevo, porque desloco meu ponto de vista de dentro do ato de escrever para
fora dele, de tal maneira que me vejo escrevendo como se fosse um outro distanciado
de mim mesmo. A fragmentao s constituir um elemento relevante quando for
possvel operar essa ciso interior entre fazer algo e ter a conscincia de que se faz
algo, entre o ato e sua respectiva conscincia posterior. No estado de imerso
existencial em que o Hb se encontra, no h tal diviso entre fazer algo e ter
conscincia de que se faz algo. Por isso, essa experincia da fragmentao no tem
lugar aqui.
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38 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
A conscincia do Hb no realiza tal movimento de apreenso de si. Ela
permanece inteiramente identificada com sua situao existencial atual. O que lhe
prprio a condio de imanncia ou, se preferirmos, de irreflexo a seu prprio
respeito. Essa condio no envolve o reconhecimento da fragmentao, porque sua
conscincia no se destaca como um elemento a parte, como uma viso externa e
desvinculada da situao vivida que permite o olhar distanciado e panormico.
A conscincia do Hb contextual em um sentido muito especfico: ela est
imersa na sua prpria situao existencial concreta. Na prtica isso implica que o
homem natural no percebe sua condio como sendo composta por estados
fragmentados e inconsistentes uma condio necessria para a constatao de uma
situao esquizofrnica e para o ordenamento moderno. Dessa forma, o homem
natural s aparece como fragmentado para a perspectiva moderna, mas isso no
corresponde sua experincia de vida efetiva ou sua conscincia de si mesmo. Esse
um aspecto importante que nos permitir uma apreenso mais adequada daquilo
que prprio da condio de vida do Hb.
Com ela tento evitar uma compreenso a partir da modernidade que, de seu
ponto de vista, sempre entender essa condio natural como um degrau anterior de
seu prprio processo de desenvolvimento. A perspectiva que estou tentando
enfatizar resulta daquela ternura metodolgica a que me referi na Introduo. Sem
ela, no h nenhuma possibilidade de compreendermos o que prprio do Hb fora
do esquema do desenvolvimento ainda no concludo tpico da lgica interna da
prpria modernidade. Algo se ganha com isso, certamente. O fato de
compreendermos que a fragmentao no uma experincia concreta do homem
natural um desses ganhos. E, no havendo tal experincia, no faz sentido
compreendermos essa situao como sendo idntica quela da qual se iniciou o
processo de unificao de si, tpica dos estgios preliminares do processo de
modernizao e subjetivao.
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39 Apresentao do Brasil
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
Para evidenciar meu ponto de vista socorro-me de uma excelente passagem de
Celso Furtado (1985, p. 15):
O debate sobre as opes do desenvolvimento exige hoje uma reflexo prvia sobre a cultura brasileira. ausncia dessa reflexo deve-se atribuir o fato de que nos diagnsticos da situao presente e em nossos ensaios prospectivos nos contentemos com montagens conceptuais sem razes em nossa histria. Devemos, portanto, comear por indagar as relaes que existem entre a cultura como sistema de valores e o processo de desenvolvimento das foras produtivas, entre a lgica dos fins, que rege a cultura, e a dos meios, razo instrumental inerente acumulao.
No h como compreender elementos particulares sem compreendermos a
totalidade a partir da qual aqueles retiram seu sentido especfico. Ignorar essa relao
equivale a tentar transplantar tomateiros para Marte sem nenhum tipo de ajuste
prvio. No atentar para a especificidade da experincia do Hb equivale a essa
tentativa, claramente fadada ao fracasso.
Sem um fracionamento interior, sem uma intencionalidade panormica e
ordenadora, o Hb no pretende se constituir por meio de um processo de sujeio
sob sua prpria responsabilidade. De fato, ele no se encontra em alguma fase
intermediria de transio para a ordem plena. Ele um homem que no busca dar a
si mesmo uma unidade sob sua prpria regncia. Seu estado de vida no constitui
um ponto de partida problemtico ou um motivo para uma transformao interior
que se seguiria da. Assim, sua naturalidade deve ser entendida na plenitude de sua
dimenso existencial, como algo que o domina inteiramente e na qual ele est
submerso. Aqui, no h qualquer diferena entre o ponto de partida e o ponto de
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chegada. A naturalidade no um motivo ou um patamar inicial para transformaes
subsequentes, mas constitui toda a dimenso conhecida da vida brasileira.
Se ela uma vasta regio, para manter minha metfora espacial e poltica, no
se trata de que o Hb deva percorr-la a fim de submeter cada ambiente especfico
sua prpria jurisdio, unificando-a. Trata-se, antes, de que essa regio a prpria
condio em que ele vive, porm sem essa conscincia de que h uma vasta regio
sua frente. Sua experincia limitada a cada lugar em que ele se encontra atualmente
e sua conscincia se encontra junto a ele, nesse lugar e nessa circunstncia especfica.
Sua conscincia no se desloca para frente e se separa do homem projetando de
maneira prospectiva um mundo ainda no percorrido. De fato, para sua prpria
perspectiva imanente, sequer h uma vasta regio. O que h o aqui e o agora.
Portanto, o Hb no um homem que se projeta para fora de si, que tensiona sua
existncia por meio da vontade propulsora de um devir que almeja a finalidade da
unidade e da ordem.
De certa forma, e ainda no escopo da metfora espacial, podemos dizer que ele
no utiliza o espao como uma forma a priori da intuio sensvel, naquele sentido
defendido por Kant (1989). Isto , ele no sintetiza sua experincia concreta particular
situando-se em um espao geral mais vasto. O Hb no subordina o mltiplo da vida
imediata a algum espao uniforme e indeterminado, constituinte de sua prpria
subjetividade. Essa experincia kantiana de adequar a experincia concreta de um
espao finito a um padro a priori de um espao tridimensional e infinito o
resultado daquele longo adestramento civilizatrio e modernizador do sujeito, no
sentido que indiquei antes, e ela s possui sentido nesse contexto.
Como estou me referindo ao Hb como um personagem, me isento de indicar
exemplos concretos todo o tempo. Entretanto, com certa prudncia, fornecerei alguns
que possuem aquela funo de peas publicitrias: eles so meramente ilustrativos.
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Em certa ocasio pude presenciar a realizao de uma tarefa que implicava em um
processamento cognitivo muito simples com relao ao espao. Como se tratava de
realizar limpeza em um espao contnuo, imaginei-o sendo realizado da mesma
forma como voc provavelmente o faria: uma parte da superfcie de cada vez em um
sentido determinado, de tal forma que o trabalho fosse iniciado de um lado e
terminasse do outro lado: da esquerda para a direita, de norte para o sul etc. Isto ,
imaginei que a limpeza seria realizada a partir da crena em um espao ordenado e
consecutivo da maneira convencional moderna.
Entretanto, para minha surpresa, o procedimento adotado para a limpeza foi o
que eu pude denominar de aleatrio, porque no envolvia aes orientadas em
qualquer direo perceptvel. O trabalho era desenvolvido sem nenhuma ordem
aparente, sem que os espaos particulares estivessem sendo subordinados como
partes de um espao maior e, dessa forma, sendo conectados uns aos outros. Tal
procedimento no parecia envolver nenhuma noo geral subjacente do espao, de
tal forma que cada elemento espacial particular pudesse ser ordenado e adquirisse o
aspecto de um mltiplo unificado. Parecia, ao contrrio, que cada parte valia por si
mesma, sem conectar-se com as demais partes. A parte era o objeto exclusivo da
experincia concreta e o homem se encontrava inteiramente submerso nela ao
realizar o trabalho.
O que esse comportamento parece indicar que agindo assim o homem no
submete o contedo de suas experincias sensoriais a um esquema superior que lhes
d unidade. Sem esse esquema, a atividade se realiza, aos nossos olhos, como de
maneira aleatria e destituda de intencionalidade espacial. O exemplo permite
afirmar que cada parte da superfcie existia de maneira independente, mas ocupava a
ateno integral do homem, a cada momento, de tal forma que ela no se constitua
para ele como uma tarefa problemtica por ser fragmentria. Note que a submerso
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no instante presente que impede que a experincia adquira aquela feio de um
arquiplago de elementos sem nenhum contato.
Dessa maneira, pode-se notar que no se estabelece na experincia do Hb uma
tenso entre a multiplicidade natural e a unidade superior ordenadora. A
fragmentao sequer se constitui como um elemento de sua experincia muito
menos como um elemento problemtico. No havendo o processo de ordenamento
interior, no h trao de sujeio e de agenciamento de energia psquica voltada para
a produo da unidade e da consistncia. Aqui no se estabelece uma hierarquia
interior e, por isso, no se busca submeter a multiplicidade a algum princpio
superior. O Hb vive naturalmente sem se subordinar a valores reconhecidamente
superiores que possam estabelecer um sentido distinto daquele que a experincia
imediata fornece. Ele no constri as metanarrativas tpicas da modernidade
(LYOTARD, 2002).
O Hb no um sujeito: uma diversidade em vias de se unificar, uma
disposio para a transformao e para a produo do seu eu por meio da ao sobre
seu estado natural. Ele no se constitui como um centro de gravidade, atraindo ou
repelindo o sentido de suas disposies naturais e reconfigurando-as dentro de uma
narrativa retrospectiva e prospectiva. Sua experincia de vida no pode, portanto, ser
expressa sob a forma de uma narrativa em que o sujeito conquistaria, ao final, sua
prpria autoconscincia ou um domnio pleno sobre si mesmo. Ela , antes de
qualquer coisa, o gozo do momento presente, o exerccio pleno de sua condio de
imanncia e de submerso na gratificao instantnea, inclusive a sexual.
Nesse sentido, podemos dizer que o Hb um indivduo superficial e no um
sujeito profundo. Isso porque a totalidade da sua experincia se apresenta de forma
imediata para ele e no apreendida por uma instncia distante que lhe fornece um
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sentido superior. a ciso do sujeito moderno que lhe propicia essa noo de
profundidade e que totalmente estranha vida do Hb.
Ele um homem natural no sentido de no se dispor a alterar seu estado atual
em funo da necessidade de impor-se uma ordem e, portanto, iniciar uma histria.
Enfatizo que no se trata de que esse homem expresse o marco zero do gnero
humano ou mesmo a noo de natureza humana no seu sentido metafsico. Trata-se de
algo bem mais modesto: de que o Hb no adota a lgica da autoimposio
compulsria de unidade e de ordenamento e que sua vida no implica no
reconhecimento de um carter psicolgico fracionado. Sua naturalidade se expressa
em uma vida que como deveria ser, sem a imposio de um ideal superior, a partir
do qual surge a necessidade moderna da submisso dos elementos inferiores. E se
sua vida como deveria ser, ela no uma passagem para algo substancialmente
diferente e no se constitui como possibilidade da realizao de um projeto de
aprimoramento.
Essa naturalidade significa que o Hb j est pronto desde sempre, que ele um
ser perfeito e no uma promessa de se tornar melhor no futuro. A crena em sua
prpria perfeio no um tipo de inferncia a que esse homem chega atravs da
comparao com outros indivduos ou consigo mesmo em um momento distinto do
atual uma comparao feita tendo como referncia o seu passado, por exemplo. Ela
uma convico derivada diretamente da prpria situao ontolgica desse homem:
ele se percebe como algum que j se constitui como deveria ser, sua conscincia no
se distingue de sua experincia de vida, da no haver nele uma tenso a ser
desembaraada, um impulso para a autotransformao, uma ciso entre o presente e
o futuro. No se impe a ele nenhum critrio, nenhum projeto, nenhum impulso ou
tenso. Disso decorre sua perfeio.
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O Hb um ser acabado e perfeito que no discrimina em si mesmo, de um
lado, uma intencionalidade que vir a se realizar em um futuro e, de outro, um
estado original que dever ceder terreno quela. Portanto, ele possui uma grande
considerao de si, porque no se percebe em estado de carncia ou de falta. Ele vive
em um estado de perfeio ontolgica, de tal forma que sua conscincia no se
destaca de sua vida nem tensiona sua vontade em uma direo especfica. Ele no
um ser que se projeta em direo a um futuro desejvel porque j tudo o que
poderia ser.
Ressalto que essa avaliao elevada de si mesmo no derivada de reflexes
relativas s suas condies concretas de existncia. Ela simplesmente uma
decorrncia da experincia ontolgica especfica na qual ele est submerso e no
uma concluso derivada de juzos particulares. A experincia da perfeio uma
convico e uma constatao, mas nunca uma concluso silogstica e racional
baseada em comparaes de qualquer tipo.
perfeitamente compreensvel que essa autoestima elevada nos soe artificial
quando a comparamos com a situao concreta de vida em um pas subdesenvolvido
como o Brasil com todas as deficincias materiais e espirituais que lhe so tpicas.
Mas o importante aqui observar que essa autoimagem no o resultado de uma
apreciao equivocada de sua condio concreta da existncia social e econmica. Ela
s aparece para ns, de fora, como se fosse inteiramente inadequada quando
comparamos sua autoimagem e sua condio material de vida. Mas da perspectiva
do prprio Hb no h essa distncia entre o que ele julga ser e suas condies de
existncia material. Na prtica, isso significa que ele no avalia que tais condies so
inadequadas porque, para proceder assim, seria necessrio que ele se apartasse delas
e se avaliasse como um ser em separado de sua experincia atual. Aqui se expressa o
significado pleno da situao de imanncia existencial do Hb. Ela implica em um
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estado de imerso integral no presente e, dessa forma, na convico de sua perfeio
a despeito da eloquncia de qualquer experincia material concreta.
Muito se critica o otimismo crnico presente nas interpretaes brasileiras
sobre o Brasil desde suas modalidades mais suaves at o ufanismo mais agudo. Faz
parte desse otimismo a esperana de que o Brasil faa parte de um movimento
cultural que venha salvar a civilizao ocidental da decadncia moral, em funo do
seu humanismo cristo congnito como defendeu Chaves de Melo (1973). Ou, mais
recentemente a afirmao de Caetano Veloso e Jorge Mautner (2002) de que Ou o
mundo se brasilifica/ou vira nazista. Essa postura est dispersa na mentalidade
brasileira e pode ser identificada em valores das classes populares, assim como na
elite intelectual. Ela pode ser sintetizada na afirmao de que o Brasil uma
esperana para a humanidade (SOUZA, 1996, p. 65).
Em geral, as crticas a essas declaraes de otimismo se baseiam em que elas
no correspondem a nada que seja o resultado de uma anlise concreta dos fatos da
realidade brasileira. Isto , se afirma que o otimismo no se justifica quando
confrontado com a situao efetiva de nossa experincia histrica e social.
Curiosamente, parece que o otimismo parece ganhar fora justamente no contexto
das nossas piores crises econmicas. Tudo indica que quanto pior o pas fatual, mais
otimistas nos tornamos. Para os crticos, esse otimismo seria um componente
semipatolgico da mentalidade brasileira, um sinal de uma ingenuidade tola e
destituda dos traos bsicos do bom senso prtico, uma espcie de trao infantil de
nossa personalidade. Na verdade, tais crticas ao otimismo no o entendem,
justamente porque o criticam.
O otimismo com o Brasil natural nos brasileiros porque a expresso de sua
elevada autoestima ontolgica. Essa, como acabamos de perceber, no decorre de
uma apreciao de fatos econmicos e sociais e sim da situao de imanncia
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existencial plena portanto da autoimagem de perfeio. Ou seja, a autoestima
exagerada tpica da condio de vida brasileira e no algo que seja um produto
derivado de uma avaliao racional equivocada de nossa condio material de vida.
Um homem perfeito no pode nem pensar-se nem sentir-se como indigno ou como
no fazendo parte de algo significativo para a humanidade. Sua importncia para o
mundo derivada diretamente de sua crena como um ser dotado de perfeio
ontolgica. O importante aqui observar que essa conscincia ou sensao de sua
prpria perfeio no derivada da anlise dos fatos nem se alimenta dela.
Portanto, as crticas ao otimismo brasileiro, revelam-se uma postura sem
qualquer eficcia prtica porque so feitas de fora, de uma perspectiva que no se
conecta com a experincia de perfeio ontolgica do prprio brasileiro. A crtica ao
otimismo incua e desnecessria porque supe algo que no faz parte da
experincia do Hb e aponta para algo que no corresponde ao verdadeiro motivo de
nossa elevada autoestima. Ela s exibe no seu exerccio uma profunda
incompreenso do Brasil e do seu modo de vida.
A nossa autoimagem de perfeio e, portanto, nosso otimismo sobre nossa
prpria importncia, no resultado de uma avaliao sobre o que j realizamos no
passado, sobre o que somos agora