Apresentação da revista Cultura Entre Culturas nº3 por Luiz Pires dos Reys, na Casa Fernando...
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Texto de apresentação da revista Cultura Entre Culturas nº 3,feita por Luiz Pires dos Reys, na Casa Fernando Pessoa,
20 de Setembro de 2011
Acredite-se ou não, entro hoje pela primeira vez nesta Casa.
Mas, será a, por assim dizer, primeira vez a primeira vez de qualquer coisa? Ou será a
decisão de entrar, um dia, nesta ou noutra casa o que é verdadeiramente primeiro?
Chamando a mim adequadas palavras de Casimiro de Brito, a abrir o seu Labyrinthus –
entro aqui “devagar e subterrado”.
Devagar, porque este lugar é para ser visitado com vagar. Subterrado, porque é o seu quê
esmagador o que aqui se respira. Não que seja sufocante, mas porque, pelo contrário, tem algo da
vastidão de um deserto: árido e sufocante apenas para quem não saiba, como eu porventura talvez
não saiba como atravessá-lo incólume.
Entrar é propriamente consentir - sentir com, portanto. Consentir, ou consentir-se, é aceder
ao entre (esse âmbito desprovido de verdadeiro espaço mas, ainda assim, não menos real) ao entre
que vai da soleira da porta até ao ponto mais recôndito, difuso e quase esquecido que há dentro,
passando pelo d’entre que, deste modo, se insinua manifesto entre mim e esse, digamos, antro que
vai entrando por mim adentro.
É portanto, como se vê, pura inter-penetração o movimento de entrar, onde quer que o
esbocemos. Aliás, apetecia-me dizer inter-penentração, não fora isso mais perplexivo do que
propriamente aclarador.
O que isso quereria dizer é que eu (ou outro alguém) que entro na casa, nesta casa, sou,
mediante tal acto, posto no âmbito entre que, misteriosamente, medeia o aquém da porta e o além
dela. Isso, que displicentemente supomos saber, não sabemos realmente o que seja.
É porventura apenas o não ser uma coisa nem outra, nem fora nem dentro, nem
porventura sequer o transcurso de um para o outro.
A casa, acolhe-me assim como o que é abertura de receptividade, pública, digamos –
abrindo-se-me, no abrir-me o seu espaço interno. Mas, este espaço interior é mais propriamente
impasse, para quem entre, e (perdoe-se-me a bizarria da expressão) impasse entre-ior.
O dentro da casa é sempre o fora de mim, e abre-se-me em intimidade na medida apenas
em que eu sinta que ela, a casa - qualquer casa ou espaço, âmbito ou contexto que seja - me
convida a entrar nele, e me acolhe assim.
1
O seio da casa, contanto que eu o não sinta intimidante, e o adopte por assim dizer como
intrínseco ao meu diálogo com o seu espaço visitável ou habitável, passará a ser parte de mim e,
deste modo - ainda que já interior também a mim, em certa medida - mantém-se relativo a um
campo sempre re-visitável, que nesse sentido me permanecerá sempre exterior.
O que medeia entre uma coisa e a outra, isto é, entre a intimidação de alguma eventual
estranheza e a intimidade por assim dizer con-cêntrica comigo - isso, é propriamente, aquele
campo, aquele âmbito, que aqui designamos por Entre.
Visitação, entretanto, é coisa diferente. É algo quase nupcial, num movimento em que dir-se-
ia nos enamoramos por aquilo que visitamos, em quanto isso que visitamos se nos abre,
dialogalmente, entre os sentidos e a emoção que os congrega e colora.
Isso processa-se até um determinado onde, até ao impreciso ponto (para cada um de nós
ddiferente, suponho) em que um e o outro se intimem. Este verbo intimar, usamo-lo aqui em seu
sentido mais inabitual, isto é, aludindo ao que se nos faz íntimo, como o que desperta e inspira
determinado sentir em nós, conquanto possa ter raiz numa qualquer forma de estranheza: ali onde
sentidos e emoção mutuamente se intimam, se inter-permitam e, propriamente, se entre-
permeiem.
O que, deste modo, se nos apresenta é não uma presença, mas o que se nos faz presente: é
um quê e não não alguém.
Entro, pois, nesta casa como quem entra, verdadeira e realmente, no espaço de Ninguém.
Ela chama-se Casa de Fernando Pessoa, mas na verdade ele já aqui não mora.
Mas, pergunta-se: quem a habitou, um dia?
Quem, quem é esse que a habitou durante um certo tempo, e lhe dá hoje nome e motivo
de ser, e nela vive da sua memória e da tamanha presença de um tão grande ausente?
Quem, quem a deixou, num outro dia, do labiríntico oceano do tempo que vivei entre nós,
para apenas a ela regressar como memória, visitável conquanto indefinidamente multivária, de
quantos aqui entram hoje ou noutro dia qualquer?
Mais: será possível, pergunto, real e verdadeiramente, entrar nesta casa?
Quem entra, entra pelos mais diversos ou indiversos motivos. Entra-se até sem motivo.
Ainda que o sem motivo possa ser igualmente um bom motivo para nela entrar. Se não mesmo,
porventura, o menos inadequado.
Pessoa, ele, é, na verdade, uma espécie de phantasma, o phanos que a assombra de memória
e de memórias, ainda que sucessivamente encontradas, mas logo perdidas, e ainda que
desencobertas: ele é, assim, uma espécie de espectro que paira aqui sobre cada um de nós.
2
Visitamo-lo, a Pessoa, conforme queremos, lemo-lo de acordo com o olhar que dele se
logre em nós desentranhar. E assim, de algum modo, penetramos nele, ao entrar no que nos deixou
- pensamos.
Mas, e se tal penetrar, com um certo e determinado olhar (ou será antes um incerto e
indeterminado olhar?), e se tal penetrar, digo, for precisamente a menor das leituras possíveis?
E se lê-lo for sobretudo treslê-lo, inapelavelmente?
Quererá, perdão, quereria ele que o visitássemos? Talvez não. Quase certamente que não.
Duvido, por isso, que ele esteja aqui: ainda que por certo... “esteja”. E certamente está. Sem
sentido, porém, como ele se queria.
Importará, sim, e muito, jamais perdermos de sentido que Pessoa não tem sentido. Pessoa
não faz qualquer sentido.
Não há uma verdade nele. É esse o seu verdadeiro sentido - se há sentido nele que isso e ...
verdadeiro. Há, quando muito, a verdade que há no seu não haver verdade nem sentido.
Por isso, talvez, haver esta casa é (ainda que muito desejável e meritório, certamente) o
maior sem-sentido que haver possa, quanto a um lugar onde ele, ou algo dele, permaneça. Nada
permanece dele, ainda que algo persista em manifestar-se dele permanecente.
Permanecem, por certo, os rastos da sua presença, na memória dos seus papéis, nos seus
livros e outros haveres ou utensílios seus, mas isso não é a sua presença. Isso são meros indícios
do ter havido passagem dele por cá e por aqui.
Por isso, citá-lo - e isto vale para toda a forma de citação ou concitação, por mais subtis
que sejam -, citá-lo (e aliás uma visita é, de algum modo, uma forma ainda que sofisticada de citá-lo
e concitá-lo) citá-lo é a mais incontornável e irremediável forma de traí-lo.
Ao citá-lo, pois, confirmamos e cumprimos as perturbantes, ainda aqui bem vaticinadoras,
palavras de René Char: “La mémoire est sans action sur le souvenir. Le souvenir est sans force contre la
mémoire.”
É certo que o francês é aqui favorecido, e também paradoxalmente prejudicado, pela feliz
semântica da palavra souvenir; tanto quanto, do mesmo passo, em português, nós somos porventura
prejudicados pela (talvez nem tão infeliz quanto isso) dispersão de sentidos entre os nossos verbos
recordar e lembrar.
Na verdade, souvenir remete para a lembrança que se configura seja pela anamnese, seja
pelo não-esquecimento.
Mas remete igualmente, e porventura sobretudo, para o sous-venir, para o que, lembrado,
subjaz ao que surge recordado, ao que sub-urge, a um tempo, como oferenda do passado e como
promessa que já eclode do porvir.
3
É essa, creio, a melhor memória de Pessoa aqui, neste lugar onde ele está porque foi onde
provavelmente nunca esteve verdadeiramente, isto é, nunca aqui esteve inteiro, porque não caberia
aqui, tal como cada um de nós, que aqui está hoje, não cabe jamais inteiro em lugar algum por onde
haja passado esteja ou venha a estar.
Na verdade, somos seres de passagem, passamos, ainda que de alguma relativa estadia nossa
que passa, aqui e ali e além.
Mas, em tal passagem - e esta palavra passagem é, dir-se-ia quase gerúndia - em tal passagem
algum rasto nosso fica.
Fica ao menos, fica no mínimo a nossa ausência que permanece e que, convocada, retorna -
se re-torne às presenças remanescentes no espaço que habitámos ou por onde passámos, e
retorna também nos objectos que o habitam.
Somos pois seres de passagem. Mas somos, por igual, seres de permanência, no em que nos
aprisionamos a qualquer forma ou modo de permanecer. Seja por incapacidade, insegurança ou
medo.
Mas somos mais: somos seres de impermanência, se nos elevamos ao mais rente à terra e
ao cume sempre mais inacessível do céu: uma e outra coisa são, na verdade, indistintas, e não
dissociáveis.
Veio pois Pessoa dizer-nos que nada é impossível senão o possível. Isso, e isso apenas, não
vale a pena.
Quanto ao impossível que nos arde, isso não há quem o valha, nisso não há quem nos valha:
isso, o impossível, ainda que seja o que vale a pena, jamais o lograremos, porque sempre
correremos na cauda do seu encalço. Nem Pessoa, aliás, o logrou, que no-lo sinalizou
possivelmente de todas (todas?) as mais incompossíveis maneiras de sê-lo e não sê-lo, no tempo de
uma vida.
Sinal dessa mesma impossibilidade, tão com-possível afinal, como se vê, é o estarmos aqui
hoje a propósito e a pretexto de Fernando Pessoa.
A propósito (o nosso propósito comum de nos interessarmos por ele) e a pretexto desta
revista, neste número a ele tão largamente dedicado.
Porque somos desassossego, isto é, porque algo nos insossega, convergimos hoje para a
casa onde sossego e desassossego se cruzaram, em Fernando Pessoa.
Tudo quanto aqui se disse e dirá, fala (isto é, cala) da revista e do seu projecto armilado na
vastidão de um certo incontível, desencoberto na imensidão sem limite, ainda que do mais ínfimo.
Hoje, aqui, o mais vasto e o mais ínfimo entrelaçam-se aqui - dir-se-ia, manuelinamente, em
nó.
4
Quanto a este nó tão peculiar, ocorre-me Píndaro, na sua 3ª Ode Pítica, quando ele escreve:
“não anseies por uma vida além desta mortal, mas esgota antes o campo do possível.”
É pois neste entrelace de possível e impossível, do possível no impossível, de imortal aqui
em plena mortalidade cumprido, é neste entre-laço manuelino e armilar (sem que isso apele ao
passado, mas ao sem-tempo no tempo) é neste entre-laço que se atam e ligam os mundos e os
entremundos: aí, onde se joga o reinado do King of Gaps, de que fala Pessoa.
Isso, o estranho rei que em nós reina, é o vale, o inter-valo e o abismo, que poderemos
sempre ver e viver seja como infernal e supernal, entre (como o próprio Pessoa diz) “o despertar e
o adormecer, / entre o silêncio e a palavra, entre / nós e a consciência de nós”.
Este, caros amigos, o domínio de encontro e de perdição da Entre, inevitável objecto de
cultura no terreno fértil mas inculto dessa “fenda em seu próprio ser”, conforme Pessoa de modo
definitivamente indefinido define the King of Gaps em nós.
“Todos - termina o poema - imaginam que ele seja Deus – todos menos ele.”
Pois bem, enquanto em sempre ilusória mas incontornável efeito de magia e permanente
incepção, nos não formos tal deus, isto é, enquanto nos não concedermos a liberdade absoluta - a
absolutíssima e, por isso, então inútil - liberdade de ser esse rei que reina no puro intervalo que é
o que somos realmente, enquanto nos não concedermos isso, seremos apenas intervalos, e vale,
sim, mas de pouco isso vale se não valer o isso valha de sumamente a pena.
Imaginar é, dir-me-ão, coisa porventura demasiado irmã de sonhar. Mas isso da liberdade de
ser o que se quiser, pode, ou ser puro arbítrio inconsistente e inconsequente, ou pode ser a plena
assunção da ilimitada potencialidade de ser conforme à inapreensível natureza própria.
Aqui chegados, chegamos ao que não é coisa de palavras: é coisa de acção, isto é, de verbo
activo, e de consubstanciar em acto de sonho - fazer como se já fosse o que já é-, e em acto de
esperança, ou seja, do fazer ser o que nos espera, isto é, o que não espera por nós.
Talvez por tudo isto, no drama estático “O Marinheiro”, Pessoa, a certa altura, põe na boca
da Segunda Veladora as seguintes palavras cripticamente interrogantes:
“De eterno e belo há apenas o sonho...
Porque estamos nós falando ainda?”
Luiz Pires dos Reys
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