Aprendizagem cotidiana em escritórios de arquitetura.

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Tese de doutorado sobre a aprendizagem na prática, em escritórios de arquiteura.

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  • GLAUCINEI RODRIGUES CORRA

    Belo Horizonte

    Escola de Arquitetura da UFMG

    2014

  • 2 GLAUCINEI RODRIGUES CORRA

    APRENDIZAGEM COTIDIANA EM ESCRITRIOS DE ARQUITETURA

    Tese apresentada ao curso de Doutorado em

    Arquitetura e Urbanismo da Escola de

    Arquitetura da Universidade Federal de Minas

    Gerais, como requisito parcial obteno do

    ttulo de Doutor em Arquitetura e Urbanismo.

    Orientador: Prof. Dr. Marcelo Pinto Guimares

    Belo Horizonte

    Escola de Arquitetura da UFMG

    2014

  • 3

    C824a

    Corra, Glaucinei Rodrigues. Aprendizagem cotidiana em escritrios de arquitetura [manuscrito] / Glaucinei Rodrigues Corra. - 2014. 195f. : il. Orientador: Marcelo Pinto Guimares. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Arquitetura.

    1. Projetos arquitetnicos - Teses. 2. Aprendizagem - Teses. 3. Prtica arquitetnica. I. Guimares, Marcelo Pinto. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Arquitetura. III. Ttulo.

    CDD 720.7

  • 4 Glaucinei Rodrigues Corra

    APRENDIZAGEM COTIDIANA EM ESCRITRIOS DE ARQUITETURA

    Esta tese foi julgada e aprovada para a obteno do ttulo de doutor em Arquitetura do Programa de Ps-graduao em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais.

    28 de fevereiro de 2014.

    ________________________________ Profa. Fernanda Borges de Moraes, Dra.

    Coordenadora do Programa

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________

    Prof. Marcelo Pinto Guimares, Dr. (UFMG) Orientador

    ________________________________ ______________________________ Prof. Otvio Curtiss Silviano Brando, Dr. Profa. Ana Maria Rabelo Gomes, Dra. (EA-UFMG) Membro (FAE-UFMG) Membro ________________________________ ______________________________ Prof. Paulo Roberto Andery, Dr. Profa. Maria Regina A. Correia Dias, Dra. (EE-UFMG) Membro (ED-UEMG) Membro _________________________________ Profa. Ruth Verde Zein, Dra. (FAU-Mackenzie) Membro

  • 5

    Para os meus pais, Albertina e Mivaldo, para minha esposa, Eliene, e para minhas filhas, Clara e Luiza.

  • 6 AGRADECIMENTOS

    Concluir um trabalho como este no seria possvel sem a ajuda de muitas pessoas, por isso, meu agradecimento:

    ao meu orientador, Prof. Marcelo Pinto Guimares, pelas orientaes, pelas

    oportunidades que tive de aprender e por me ter conduzido ao longo deste trabalho;

    aos professores que participaram do exame de qualificao, que muito contriburam para que este trabalho ficasse melhor: Ana Gomes, Paulo Andery e Otvio Brando;

    minha esposa, Eliene, pelo incentivo, por me ajudar a manter o foco do doutorado em todos os momentos e por sua preciosa contribuio nesta tese, fundamentalmente, por

    ajudar na anlise dos dados de campo com as teorias;

    a toda a minha famlia, pelo aconchego e pela alegria de desfrutar momentos prazerosos;

    Marcia Frana, colega e amiga, pelo apoio e incentivo ao comear o doutorado;

    ao NPGAU, por apoiar minha participao nos congressos, sobretudo coordenadora

    Fernanda Borges, e secretria Renata, pelo suporte em todos os momentos do doutoramento;

    diretoria da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFMG, pelo apoio financeiro na

    participao de congressos durante o doutoramento;

    aos colegas do meu departamento, representados pela Profa. Chefe Grace Roel Gutierrez, pelo apoio e, principalmente, por ter aliviado minha carga didtica no

    segundo semestre de 2013.

    Um agradecimento especial aos sujeitos protagonistas desta pesquisa:

    aos arquitetos que participaram desta pesquisa: Alberto Dvila, Jlio Torres, Maurcio Miranda, Dbora, rica, Fernanda, Jrsica, Lucas, Jacqueline, Raquel, Virgnia,

    Fernando, Marco Tlio, Joo Felipe, Lucas Cupertino, Tatiane, Jovina, Aiala, Pedro, Grazielle, Sarah, Bruno, Werner, Afonso, Cleverson, Ibsen, Jos Mauro, Graziella,

    Pdua, Jnia, Lvia, Alessandro, Elozio, Paulinho, Cludia, Simone, Natlia, Flvia e Carlos Alberto.

    aos estagirios que participaram desta pesquisa: Fernanda, Ricardo, Rachel e Ariam.

  • 7 RESUMO

    Nesta tese, aborda-se o cotidiano da produo de projetos em escritrios de arquitetura, com o objetivo de desvelar como as pessoas aprendem a fazer/elaborar tais projetos na prtica. Para isso, relacionam-se duas abordagens antropolgicas aprendizagem de fazer projetos: a aprendizagem situada, de Jean Lave, e a constituio da habilidade, de Tim Ingold. O foco do estudo da aprendizagem aqui proposto centra-se nas prticas que levam o iniciante a compreender o processo baseando-se nas relaes com outros aprendizes e com os mais experientes, diferentemente dos estudos que investigam o ensino na sala de aula que focalizam as prticas docentes, revelando as formas como o projeto ensinado (a didtica). A pesquisa foi realizada em dois escritrios de arquitetura, compreendendo a anlise dos sistemas de gesto de projetos, para entender o funcionamento dos escritrios; a observao cotidiana da produo de projetos, para perceber as prticas do dia a dia e a participao das pessoas no projeto; e as entrevistas, com a finalidade de buscar informaes no percebidas na observao e mostrar como as questes relativas produo de projetos eram vistas pelas pessoas envolvidas no processo. A histria de vida dos sujeitos pesquisados aponta a participao em contextos que envolvem a arquitetura previamente formao acadmica e a prtica da arquitetura desde os primeiros semestres do curso. Percebeu-se que no cotidiano de trabalho nos escritrios de arquitetura h mltiplas situaes que promovem a aprendizagem e que os arquitetos aprendem com prticas especficas desses ambientes, como a manipulao de modelos (arquivo-referncia), a validao/avaliao do projeto (com a canetada) e a participao nas reunies de crtica ao projeto (reunies de CAC). Dentre essas prticas, a repetio, a observao e a relao entre pares fundamentam o processo de aprendizagem. Destaque-se que o acesso e a participao regulam as prticas cotidianas da aprendizagem do processo de fazer projetos arquitetnicos e o que se v no dia a dia a integrao e a interao entre as pessoas; so processos de aprendizagem (e no de ensino). Essas prticas reiteram a ideia de que aprender a projetar uma atividade complexa, que a aprendizagem um processo de mudana das prticas e das pessoas e, sobretudo, que aprender uma atividade mais relacional (coletiva) do que individual. Mostram, tambm, que aprender a fazer projetos arquitetnicos um processo contnuo, lento e requer muitos anos de prtica. As habilidades dos arquitetos so constitudas nesses ambientes e, portanto, nada tm de inatas. So prticas vivenciadas e aprendidas no dia a dia, so processos de redescoberta. Os processos e procedimentos da gesto de projetos, alm de regular, padronizar e ajudar no controle do processo de desenvolvimento de projetos, colaboram para que as pessoas aprendam nesses ambientes. As contribuies desta pesquisa podem servir para arquitetos, professores, professores-arquitetos e alunos. A principal delas traz tona essas prticas, que muitas vezes so invisveis e, em alguns casos, at subestimadas, mas que revelam como um iniciante se torna arquiteto cotidianamente nesses ambientes. Palavras-chave: Projetos de arquitetura. Aprendizagem. Cotidiano.

  • 8 ABSTRACT

    In this thesis, it approaches the daily production of projects in architectural firms, aiming to reveal how people learn to do/develop such projects in practice. For this relate two anthropological approaches to learning making projects: a "situated learning" by Jean Lave and "constitution of skill" by Tim Ingold. The focus of the study of learning proposed here focuses on practices that lead the beginner to understand the process based on relationships with other learners and more experienced, unlike the studies that investigate learning in the classroom - that focus on teaching practices, revealing the ways in which design is taught (the teaching). The research was conducted in two architectural firms, including the analysis of project management systems, aiming to understand the functioning of the offices; everyday observation of production projects, to understand the practices of everyday life and people's participation in the project; interviews, in order to seek information not perceived in the observation and show how issues related to the production of projects were seen by the people involved in the process. The life history of the individuals pointing participation in contexts that involve the architecture prior to the academic education and practice of architecture from the first half of the course. It was noticed that the daily work in architectural offices there are multiple situations that promote learning and that architects learn from these practices specific environments, such as the manipulation of models (file-reference), validation/evaluation of the project and participation in the project review meetings. Among these practices, repetition, observation and peer relationship underlying the learning process. Stand out from the access and participation regulate the daily practices of learning the process of making architectural designs and what is seen in everyday life is the integration and interaction between people; are processes of learning (not teaching). These practices reiterate the idea that learning to project is a complex activity that learning is a process of changing practices and of persons and, above all, that learning is a more relational activity (collective) than individual. They show, too, to learn to do architectural projects is an ongoing process, slow and requires many years of practice. The skills of the architects are constituted in these environments and, therefore, have nothing innate. These practices are experienced and learned day by day, are processes of "rediscovery". The processes and procedures of project managementin addition to regular, standardize and help control project development process, collaborate so that people learn in these environments. The contributions of this research can serve to architects, teachers, teachers-architects and students. The main one brings up these practices, which are often invisible and in some cases even underestimated, but that reveal how a beginner becomes architect daily in these environments. Keywords: Architecture Projects. Apprenticeship. Everyday.

  • 9

    Sumrio INTRODUO ............................................................................................................................ 10

    1 CONSTRUO DO OBJETO DE PESQUISA ......................................................................... 12 1.1 Dilogo com a antropologia ................................................................................................... 20

    1.1.1 Aprendizagem situada .................................................................................................... 21 1.1.2 Constituio da habilidade ............................................................................................. 27

    1.2 Os percursos da pesquisa ..................................................................................................... 32 1.2.1 Estudo exploratrio: possveis campos de pesquisa ...................................................... 33 1.2.2 Anlise de documentos: compreendendo o processo de projeto ................................... 36 1.2.3 Segundo estudo exploratrio: a prtica cotidiana no escritrio ...................................... 39 1.2.4 Observao (e observador) ............................................................................................ 42 1.2.5 Entrevistas: novas descobertas ...................................................................................... 52

    2 OS CONTEXTOS DA PESQUISA ............................................................................................ 55 2.1 Os escritrios ......................................................................................................................... 55

    2.1.1 O Escritrio A ................................................................................................................. 55 2.1.2 O Escritrio C ................................................................................................................. 58 2.1.3 Os percursos de acesso (dos sujeitos) arquitetura ..................................................... 62 2.1.4 A rotina de trabalho no Escritrio C ................................................................................ 68

    2.2 As fases na produo dos projetos ....................................................................................... 70 2.2.1 Desconexo do projeto com a execuo ....................................................................... 73

    2.3 Gesto de projetos: Alguns procedimentos eu cumpro, outros incorporo .......................... 79 2.4 A especializao: celeridade na produo de projetos ......................................................... 93 2.5 As avaliaes: mudana na forma de participao ............................................................... 97

    3 ARQUITETURA COISA DE GENTE ADULTA: h necessidade de muitos anos de esforo e repetio ................................................................................................................................... 105 3.1 Acesso e participao nas prticas de produo dos projetos ........................................... 105

    3.1.1 As regras do jogo: o treinamento ................................................................................. 108 3.1.2 De estagirio a arquiteto master: as formas de participao ....................................... 110 3.1.2.1 Reflexes sobre as formas de participao .............................................................. 127 3.1.3 O acesso s informaes na produo dos projetos ................................................... 133 3.1.3.1 O jogo hierrquico entre o trabalho braal versus trabalho intelectual ..................... 137

    3.2 Oportunidades para aprender ............................................................................................. 147 3.2.1 Utilizao de arquivo-referncia ................................................................................... 148 3.2.2 A canetada ................................................................................................................. 153 3.2.3 A participao no CAC ................................................................................................. 156 3.2.4 A repetio ................................................................................................................... 163 3.2.5 Aprendo vendo: a observao ................................................................................... 171 3.2.6 A relao entre pares ................................................................................................... 175

    4 CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................... 180

    REFERNCIAS ......................................................................................................................... 186

  • 10 INTRODUO

    O estmulo para o desenvolvimento desta pesquisa surgiu das minhas inquietaes

    com afirmaes frequentes (feitas em debates nos contextos de formao universitria)

    sobre os processos de aprendizagem relacionados prtica de fazer projetos. Nos

    corredores acadmicos e nas reunies institucionais e pedaggicas, comum ouvir de

    colegas professores, tanto do curso de design quanto do de arquitetura, as seguintes

    afirmaes: Projeto no se ensina; se aprende; Para projetar, tem que ter dom; O

    designer, ou o arquiteto j nasce pronto; preciso ter feeling para projetar. Tais

    afirmativas consideram, em sua maioria, as habilidades do designer ou do arquiteto

    como inatas (dom). No mbito da formao, esse discurso acaba por viabilizar

    hierarquias e leva as pessoas, principalmente professores, a privilegiar os bons alunos

    e, em alguns casos, a afastar os que tm maiores dificuldades com as atividades

    relacionadas ao desenvolvimento do projeto.

    Essa discusso sobre a aprendizagem permeia tambm o campo de outras atividades,

    como os esportes, as artes, o artesanato e a msica, nas quais a ideologia do dom

    ganha fora. Contrastando com a percepo de que a habilidade se trata de dom, h

    estudos demonstrando que essas prticas so aprendidas: a aprendizagem da pesca

    (SAUTCHUK, 2007), a aprendizagem do futebol (FARIA, 2008), a aprendizagem da

    dana (RESENDE, 2011), a aprendizagem da umbanda (BERGO, 2011), e a

    constituio de habilidades no esporte e na msica (BUENO, 2007).

    sobre a aprendizagem no campo da arquitetura que versa este trabalho.

    No captulo 1 apresento a construo do objeto de pesquisa, o ponto de partida da

    trama para colocar a aprendizagem como centro desta tese. Trago, tambm, as

    abordagens analticas para esta pesquisa, principalmente as contribuies da

    antropologia que me permitiram compreender e aprender sobre as relaes sociais e a

    constituio da habilidade para que eu pudesse pesquisar a aprendizagem na prtica,

    nos escritrios de arquitetura.

  • 11 No captulo 2, descrevo e analiso os contextos da pesquisa: o cotidiano dos escritrios

    como so os ambientes, quem so as pessoas; as fases do projeto; os processos e

    procedimentos relacionados gesto de projetos e a relao com a aprendizagem; a

    especializao que proporciona celeridade na produo dos projetos; e as avaliaes,

    que legitimam a mudana na forma de participao das pessoas no processo de

    projeto.

    No captulo 3, exponho e analiso as prticas de produo dos projetos: como o

    acesso s informaes; como so as formas de participao das pessoas no

    desenvolvimento dos projetos; o treinamento dos funcionrios e as regras do jogo; as

    tenses que permeiam as relaes e as oportunidades que as pessoas envolvidas

    nesses contextos tm para aprender.

    No captulo 4, apresento minha concluso, as principais snteses, reflexes e as

    contribuies que esta pesquisa traz, principalmente, para a arquitetura.

  • 12 1 CONSTRUO DO OBJETO DE PESQUISA A arquitetura um campo com muitas prticas e diversas formas de atuao. A

    principal delas o desenvolvimento de projetos arquitetnicos, um processo complexo,

    fluido e dinmico. Complexo, porque depende de uma srie de fatores sociais,

    legislativos, ambientais, tecnolgicos, mercadolgicos, dentre outros e de interesses

    dos distintos agentes envolvidos (usurio, arquiteto, empreendedor, construtor) para o

    desenvolvimento do projeto. Fluido porque se prende s diversas possibilidades de

    configurao que devem estar de acordo com o ambiente e se conformar e configurar

    naquele lugar, para aquelas pessoas, para atender aos seus usos e desejos. Dinmico,

    em razo do grande volume de informaes geradas e trocadas entre as pessoas e,

    principalmente, do movimento das revolues e reviravoltas do projeto durante seu

    desenvolvimento.

    Contudo, no h estudos que abordam como os iniciantes (principalmente estagirios)

    aprendem a fazer projetos na prtica profissional. O que se encontra so

    pesquisas/estudos que tm como foco a sala de aula, o ensino1. Entretanto, no

    somente de prticas de ensino a aprendizagem constituda. Conforme afirma Brando

    (2011, p. 3),

    o conhecimento da histria da arquitetura e da tecnologia da construo civil no habilita ningum a fazer projeto. E para se fazer projeto no suficiente o conhecimento acerca de todos os discursos existentes sobre arquitetura. Esse tipo de conhecimento pode ser suficiente para formar um bacharel, mas nunca um profissional capacitado para a prtica da profisso. Algo alm do que ensinado em disciplinas discursivas precisa ser dominado por aquele que se dispe a projetar. E esse algo no um contedo transmissvel de acordo com o modo convencional de se ver o tema: um professor que transmite um contedo tido como verdadeiro a um grupo de alunos.

    1 Pode-se constatar a supremacia das investigaes sobre o ensino em projetos de arquitetura vrios dos quais tm como foco a sala de aula. Mesmo os que consideram a aprendizagem como destaque (em alguns casos, a palavra aparece no ttulo do trabalho) tm como associao direta a relao com o ensino e em muitos casos, com a sala de aula ou outros ambientes de ensino, onde h predomnio da forma escolar. Alguns exemplos: Carsalade (1997, 2003); Almeida (2001); Lima (2003); Vidigal (2004); Campomori (2004); Valente (2004); Teixeira (2005); Moreira (2005); Amaral (2006, 2007); Rodriguez (2008); Klln (2009); Ges (2010, 2011); Vidigal (2010); Andrade, M.; Andrade, P. (2011); Panet (2011).

  • 13 Se a formao escolar no o suficiente para formar o arquiteto para lidar com o

    desenvolvimento de projetos arquitetnicos, h necessidade de buscar compreender

    onde, ento, acontece essa formao.

    Esse tema da aprendizagem ganha centralidade se, como argumenta Rodriguez (2008,

    p. 174), busca-se reforar a importncia das prticas cotidianas fora da sala de aula

    em relao ao projeto: [...] o envolvimento com prticas que no possuem carter

    acadmico, por exemplo, estgio e trabalho em escritrio, que, segundo a autora,

    mostram-se relevantes quanto a sua influncia no ateli.

    Uma dessas prticas o estgio curricular supervisionado nos cursos de graduao em

    arquitetura. De acordo com a Resoluo n. 2, de 17 de junho de 2010, que institui as

    diretrizes curriculares nacionais do curso de graduao em Arquitetura e Urbanismo O

    estgio curricular supervisionado dever ser concebido como contedo curricular

    obrigatrio. Ainda, segundo o documento, [...] so conjuntos de atividades de

    formao e [...] procuram assegurar a consolidao e a articulao das competncias

    estabelecidas (BRASIL, 2010).

    De acordo com o Projeto Pedaggico do Curso de Graduao em Arquitetura e

    Urbanismo da UFMG, turno diurno, o Estgio Curricular Supervisionado (ECS) :

    Contedo obrigatrio com 300 horas (20 crditos) e pode ser realizado a partir do 6 perodo. Tem por objetivo o aprendizado de competncias prprias da atividade profissional contextualizao curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidad e para o trabalho (PROJETO... 2012, p. 23, grifos nossos).

    Sendo obrigatrio para a formao do aluno, torna-se importante investigar como so

    as relaes e tenses nas atividades dessas prticas sociais, bem como pesquisar

    como se d a consolidao dessas competncias prprias da atividade profissional.

    Alguns estudos sobre a prtica do projeto em escritrios de arquitetura (ALMEIDA,

    1997; LIMA NETO, 2007; BRANDO, 2008; SALVATORI, 2008; KATO, 2012) colocam

    luzes importantes sobre aspectos que envolvem a prtica profissional e mostram a

    importncia dessas investigaes. A pesquisa sobre a aprendizagem de fazer projetos

    arquitetnicos, porm, pode desvelar prticas cotidianas que no so contempladas

  • 14 nesses estudos, mas que so fundamentais para a formao dos futuros profissionais.

    Investigar a aprendizagem nesse contexto pode favorecer o desvelamento das prticas

    que esto envolvidas no dia a dia dos aprendizes e que, geralmente, no so

    percebidas.

    Os estudos que mais se aproximam do objeto desta tese (a aprendizagem) so os de

    Donald Schn2 e os de Bryan Lawson3.

    Schn (2000), em seu trabalho como pesquisador e consultor, concentrou-se na

    reflexo no aprendizado organizacional e na eficcia profissional. Investigou o ensino e

    a aprendizagem prtica em quatro contextos: em um ateli de projeto de arquitetura,

    em uma master class em performance musical, em uma superviso analtica e em um

    seminrio de habilidades de aconselhamento e consultoria. Para Schn (2000), o

    projeto de arquitetura um modelo do tipo de talento artstico que outros profissionais

    precisam adquirir, e o ateli de projetos, com seu padro caraterstico de

    aprendizagem, mediante o fazer e da instruo, exemplifica as situaes inerentes a

    qualquer aula prtica reflexiva e s condies e os processos essenciais para o seu

    sucesso. Sobre os alunos dos cursos de Design e Arquitetura, o autor afirma: Os

    estudantes aprendem por meio do fazer ou da performance, na qual buscam tornar-se

    especialistas, e so ajudados nisso por profissionais que os iniciam na prtica

    (SCHN, 2000, p. 25).

    De acordo com Schn (2000, p. 22), h um ncleo central de talento artstico inerente

    prtica dos profissionais que reconhecemos como mais competentes [que] um

    exerccio de inteligncia, uma forma de saber. E aponta, ainda, que, da mesma forma

    que deveramos investigar as manifestaes do talento artstico profissional,

    deveramos examinar tambm as vrias maneiras atravs das quais as pessoas o

    adquirem. 2 Schn foi professor de estudos urbanos e educao no Instituto de Tecnologia de Massachusetts e

    obteve seu Ph.D. em filosofia pela Universidade de Harvard. 3 Lawson arquiteto e professor de projeto, estudou na Escola de Arquitetura de Oxford e no

    Departamento de Psicologia Aplicada da Universidade de Aston, em Birmingham, onde obteve seu mestrado e doutorado.

  • 15 nesse sentido, o de pesquisar como as pessoas formam essas habilidades para

    projetar, que, neste trabalho, proponho investigar o processo na elaborao do projeto

    no cotidiano.

    Sobre o ateli de projetos, Schn (2000, p. 71) apresenta um dilogo de um professor

    com uma aluna ao longo do desenvolvimento de um projeto de arquitetura e analisa o

    que ele denomina de reflexo-na-ao: refletir sobre a prtica enquanto a realiza.

    Para ele, o repensar de algumas partes de nosso conhecer-na-ao leva a

    experimentos imediatos e a mais pensamentos que afetam o que fazemos. E segundo

    ele, o que acontece durante o desenvolvimento do projeto de arquitetura e de design:

    o aluno levado a refletir sobre suas decises e atitudes e a modific-las durante o

    processo.

    Em relao aprendizagem de projetos de arquitetura, para ele, h algumas coisas que

    no so ensinveis, mas que podem ser aprendidas4:

    Ao estudante, no se pode ensinar o que ele precisa saber, mas se pode instruir. Ele tem que enxergar, por si prprio e sua maneira, as relaes entre meios e mtodos empregados e resultados atingidos. Ningum mais pode ver por ele, e ele no poder ver apenas falando-se a ele, mesmo que o falar correto possa guiar seu olhar e ajud-lo a ver o que ele precisa ver (SCHN, 2000, p. 25).

    As abordagens de Lawson (2011), por sua vez, tm como referncia as salas de aula

    onde lecionou nos cursos de Arquitetura e Design. Seu foco de pesquisa no processo

    de projeto. Segundo ele, projetar uma habilidade altamente complexa e sofisticada.

    No um talento mstico concedido apenas aos que tm poderes recnditos, mas uma

    habilidade que tem de ser aprendida e praticada, como se pratica um esporte ou se 4 Este um assunto polmico no campo da arquitetura e essa afirmao contestada por alguns

    pesquisadores. Ges (2010, p. 257), que acompanhou duas alunas durante o desenvolvimento de um projeto em uma disciplina em uma escola de arquitetura argumenta: Se, no desenvolvimento deste trabalho, foi possvel perceber, por meio do exemplo da sala de aula de um professor de projeto, que houve uma aprendizagem por parte das alunas durante o desenvolvimento da disciplina, confirma-se tambm, que houve ensino de projeto. Panet (2011, p. 1) tambm, afirma: Esse trabalho localiza-se no inventrio das pesquisas que procuram contribuir para a qualidade do ensino de projeto de arquitetura no contexto da formao do arquiteto brasileiro, numa condio de aceitao da sua ensinabilidade mesmo reconhecendo o carter singular e aberto que deve ter esse saber pedaggico.

  • 16 toca um instrumento musical (LAWSON, p. 25).

    Mas at que ponto pode-se comparar a aprendizagem de fazer projeto (de arquitetura

    ou de design) com a de um esporte ou instrumento musical? Como ser visto adiante,

    h similaridades, como a necessidade de praticar, de repetir, de se engajar, dentre

    outras. Mas h, tambm, especificidades que o diferem das prticas de um esporte ou

    instrumento musical.

    Ao referir-se ao processo de projetar tanto em arquitetura quanto em design, Lawson

    (2011, p. 49) afirma que por definio, esse processo acontece dentro da cabea. Fica

    evidente o foco da abordagem utilizada pelo autor, que aprofundar o conhecimento

    sobre procedimentos e atividades cognitivas do processo de projeto (KOWALTOWSKI,

    2011, p. 7).

    Em outro momento, Lawson (2011, p. 136) afirma que o controle e a combinao de

    pensamento racional e imaginativo constituem uma das habilidades mais importantes

    do projetista. Apesar de afirmar que a habilidade para projetar pode ser aprendida, o

    autor afirma que o processo totalmente mental e denomina de processo vernacular

    quando o processo de projetar est intimamente associado ao fazer, como no caso do

    arteso, que cria sua pea ao mesmo tempo em que a constri.

    A proposta nesta pesquisa se ope a essa abordagem. Ou seja, considera as

    atividades de desenvolvimento do projeto envolvendo a pessoa como um todo, e no

    somente um processo mental. Projetar uma atividade corporal e, como veremos, uma

    atividade mais relacional e menos individual.

    Os estudos de Schn (2000) e os de Lawson (2011) sobre o ensino e a aprendizagem

    foram realizados em atelis de projeto ou em outros ambientes tambm preparados

    para o ensino. Esses estudos e investigaes, os quais congregam a viso da

    aprendizagem como um processo, trazem contribuies relevantes para as reas de

    educao, do design e da arquitetura. Mas esses ambientes/situaes se diferenciam

    das prticas cotidianas por se tratar de ambientes preparados didaticamente para o

    ensino.

  • 17 Situo-me entre aqueles que percebem esse processo (de projetar) como aprendizagem

    e no como dom, nem circunscrito apenas s situaes sociais/formais de ensino (a

    escola). Uma das questes que me instigou a elaborar esta pesquisa foi compreender

    como as pessoas (alunos graduandos) aprendem a fazer projetos no dia a dia, na

    prtica, em escritrios, e no na sala de aula.

    Mas por que, quando falamos em aprendizagem, a maioria das pessoas a associam ao

    ensino? Para responder a essa questo destaco as argumentaes de Vincent, Lahire

    e Thin (2001, p. 11), sobre a predominncia histrica do modelo escolar na Frana: eles

    tratam da inveno da forma escolar para compreender como, no sem dificuldades,

    um modo de socializao escolar se imps a outros modos de socializao.

    Os autores situam a expanso da escolarizao a relao social entre um professor e

    um aluno da sociedade. Segundo eles, [...] a partir de 1815, possvel assistir

    constituio de formas relativamente invariantes (isto , recorrentes) de relaes

    sociais: certas formas escolares de relaes sociais, que de certo modo, destituram

    outras formas de educar (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 28)5. Com isso, o ato de

    ensinar passou a ser o foco e induziu que a aprendizagem fosse considerada uma

    consequncia desse processo, no qual somente haveria aprendizagem onde houvesse

    ensino. De acordo com eles, h cinco pontos que caracterizam a forma escolar: 1) a

    escola como espao especfico, separado das outras prticas sociais est vinculada

    existncia de saberes objetivados; 2) a escola e a pedagogizao das relaes sociais

    de aprendizagem esto ligadas constituio de saberes escriturais formalizados; 3) a

    codificao dos saberes e prticas escolares torna possvel uma sistematizao do

    ensino e, deste modo, permite a produo de efeitos de socializao durveis; 4) a

    escola como instituio na qual se fazem presentes formas de relaes sociais

    baseadas em um enorme trabalho de objetivao e codificao o lugar da

    aprendizagem de formas de exerccio do poder; 5) para ter acesso a qualquer tipo de

    5 Para Vincent, Lahire e Thin (2001), a forma escolar se autonomiza em relao s outras relaes

    sociais: o mestre no mais um arteso transmitindo o saber-fazer a um jovem. Aquele que aprendia em primeiro lugar, a criana fazia a aquisio do saber ao participar das atividades de uma famlia, de uma casa. Ou seja, aprender no era distinto do fazer.

  • 18 saber escolar necessrio dominar a lngua escrita (do grafismo redao e

    gramtica, passando pela leitura) (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001).

    Ainda, segundo esses autores, a forma escolar (em graus diversos) atravessa as

    mltiplas prticas socializadoras e possvel encontrar suas marcas na socializao

    familiar, nas formaes em empresas e nos estgios de formao6:

    A emergncia da forma escolar, forma que se caracteriza por um conjunto coerente de traos entre eles, deve-se citar, em primeiro lugar, a constituio de um universo separado para a infncia; a importncia das regras na aprendizagem; a organizao racional do tempo; a multiplicao e a repetio de exerccios, cuja nica funo consiste em aprender e aprender conforme as regras ou, dito de outro modo, tendo por fim seu prprio fim , a de um novo modo de socializao, o modo escolar de socializao. Este no tem cessado de se estender e se generalizar para se tornar o modo de socializao dominante de nossas formas sociais (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 38).

    Nesse mesmo sentido o de explicar a associao direta entre ensino e aprendizagem

    , Wolcot7 (1982, p. 83) argumenta que os cientistas sociais ou educadores tm

    considerado ensino e aprendizagem como sinnimos e que por isso, h maior

    interesse em informar as tentativas para transmisso da cultura, subestimando aquilo

    que os aprendizes aprendem. Ou seja, h maior nfase no processo de

    ensino/transmisso comparado ao de aprendizagem. Estudar a aprendizagem

    diferente de estudar prticas de ensino. Enquanto as prticas de ensino podem ser

    mais facilmente localizadas no tempo e no espao (VICENT; LAHIRE; THIN, 2001), a

    aprendizagem algo que perpassa o viver (LAVE; PACKER, 2008).

    O foco do estudo da aprendizagem aqui proposto centra-se no aprendiz, nas prticas

    que o levam a compreender o processo baseando-se nas relaes com outros

    aprendizes e com os mais experientes. Diferentemente dos estudos que investigam o

    ensino na sala de aula que focaliza as prticas docentes, revelando as formas como o 6 Sobre esse assunto da presena da forma escolar mesmo fora da escola veremos, no item 2.5 As

    avaliaes: mudana na forma de participao, como esse predomnio acontece na prtica. 7 O primeiro debate sobre aprendizagem, na antropologia, ocorreu em 1980 quando Wolcot (1982),

    interessado em questes relacionadas aprendizagem em situaes no institucionais, convidou colegas a dividirem seus pontos de vistas no simpsio anual da Associao Antropolgica Americana.

  • 19 projeto ensinado (a didtica), nesta pesquisa lida-se com a ideia de aprendizagem de

    Lave e Packer (2008). Ou seja, de que estamos sempre aprendendo e que no

    dependemos de um local especfico para que a aprendizagem ocorra:

    Um entendimento mais completo do cotidiano traz com ele uma alternativa para o entendimento da aprendizagem: que ela ubqua (que est ao mesmo tempo em toda parte) e em curso na atividade social. um erro pensar a aprendizagem como um tipo especial de atividade que acontece somente em um tempo particular e local especial arranjados para ela (LAVE; PACKER, 2008, p. 19, traduo nossa).

    No se trata de considerar o ensino ou a aprendizagem em sala de aula como uma

    questo irrelevante, mas, sim, de buscar outros olhares para desvelar como a

    aprendizagem ocorre nos locais onde estamos habituados a no perceb-la e, por isso,

    em alguns casos, a trat-la como inexistente; ou, mesmo sabendo que h

    aprendizagem, buscar investigar como ela se d nesses contextos.

    Com esta pesquisa, trago tona os modos de elaborao dos projetos arquitetnicos,

    assim como afirma Vinck (2013, p. 273):

    As prticas tcnicas desenvolvidas nas empresas, nos departamentos e nos laboratrios de pequisa so ainda muito mal-conhecidas. A despeito das especulaes sobre as causas e consequncias sociais das tcnicas e da proliferao de prescries metodolgicas escritas, sempre muito difcil se ter uma ideia precisa das atividades concretas tal como acontecem.

    A escolha pela arquitetura (e no o design, rea de minha formao) se deve,

    principalmente, por ser uma rea que se aproxima do design em alguns aspectos no

    processo de desenvolvimento dos projetos e em alguns mtodos utilizados para

    projetar e se distancia em outros, como na escala do produto, da produo e nos

    meios produtivos. Essa troca de terreno (ou estranhamento) foi uma proposta profcua

    para esta investigao.

    Portanto, o objetivo investigar como acontecem as relaes de aprendizagem dos

    novatos com os mais experientes e como se d a redescoberta8 para os que esto 8 Conforme veremos mais adiante, Ingold considera o processo de aprendizagem como uma

    redescoberta.

  • 20 aprendendo a fazer projetos de arquitetura. Supondo-se que o conhecimento no

    estoque e que se aprende no somente na teoria, o objetivo geral com esta pesquisa investigar como se aprende a fazer/elaborar projetos de arquitetura nas relaes

    sociais cotidianas, ou seja, na prtica.

    Os objetivos especficos so: investigar quais prticas cotidianas afetam a aprendizagem do processo de projetar; pesquisar como so constitudas as habilidades

    nos diferentes nveis profissionais de participao (estagirio e arquitetos) no processo

    de fazer projetos; investigar e elucidar o que se aprende nesse processo, como

    procedimentos, habilidades e recursos; e compreender as relaes e participaes

    sociais de aprendizagem na produo de projetos nos diferentes nveis profissionais.

    O objetivo de pesquisa acima exposto trouxe como desafio a busca por teorias que

    pudessem contribuir para o entendimento dessas prticas.

    1.1 Dilogo com a antropologia

    Diante do desafio de pesquisar a aprendizagem nos escritrios, o dilogo com a

    antropologia se tornou benvolo, sobretudo com as teorias antropolgicas da

    aprendizagem: a aprendizagem situada, de Jean Lave 9 e Etienne Wenger e a

    constituio da habilidade, de Tim Ingold10.

    Elas foram escolhidas por tratarem a questo da aprendizagem explicitamente nas

    teorias antropolgicas, por discutirem a habilidade como um campo de relaes e,

    principalmente, por possibilitarem um olhar de estranhamento para as prticas

    cotidianas, s quais estamos habituados a no perceber a aprendizagem, por isso, na

    maioria dos casos, a trat-la como inexistente.

    9 Jean Lave antroploga social e terica da aprendizagem social. Atualmente, professora de

    Educao e Geografia da Universidade da Califrnia, Berkeley. Juntamente com Etienne Wenger, foi pioneira na teoria de aprendizagem situada.

    10 Tim Ingold antroplogo, atualmente na Universidade de Aberdeen. Faz parte da Academia Britnica e da Sociedade Real de Edimburgo.

  • 21 As argumentaes desses autores permitem perceber a aprendizagem como processo

    e se opem quelas que colocam as habilidades (do arquiteto) como inatas. So

    abordagens que se complementam: a primeira, por colocar foco na ideia de

    participao, por nos ajudar a entender as prticas cotidianas e a posio de cada

    participante no processo. A segunda, por ser uma abordagem ecolgica de cultura e

    por contribuir para nossa compreenso do processo de constituio da habilidade do

    aprendiz.

    Ingold (2007, p. 287-288) nos d uma noo do que seja o trabalho da e com a

    antropologia:

    A antropologia, talvez mais do que qualquer outra disciplina, diz a aprender a aprender. No tanto o estudo de pessoas, e sim um modo de estudar com as pessoas, uma prolongada aula de mestre em que o novio gradualmente aprende a ver as coisas e, obviamente, aprende tambm a ouvi-las e senti-las do modo como fazem seus mentores. Uma educao em antropologia, portanto, serve no somente para nos fornecer conhecimento sobre o mundo e sobre os seres humanos e suas sociedades. Mais do que isso, ela educa nossa percepo do mundo e abre nossos olhos para outras possibilidades de ser. E, medida que essas possibilidades afetarem a nossa prpria experincia, podemos ser levados a novas descobertas. Precisamente por isso, no entanto, a antropologia um assunto sem qualquer corpo estabelecido de conhecimento que o professor possa pretender passar adiante e os estudantes assimilarem. De fato, a tarefa bsica da antropologia compreender a compreenso de outras pessoas no diferente da tarefa com que todos os seres humanos se confrontam diariamente em suas tentativas de forjar uma vida social; o que vale para a educao em antropologia vale tambm para a educao na vida. Uma das coisas que a pesquisa antropolgica tem mostrado, repetidamente, que os novatos/aprendizes no so recipientes passivos cujas capacidades mentais devem ser preenchidas com um contedo peculiar sua tradio, mas, pelo contrrio, so participantes ativos num processo em que o conhecimento est permanentemente sendo criado e descoberto de novo. Se esse o modo pelo qual as pessoas aprendem em qualquer sociedade, ento deve ser tambm o modo pelo qual os estudantes aprendem em nossa prpria sociedade (grifos nossos, traduo nossa).

    1.1.1 Aprendizagem situada

    Lave e Wenger (1991) elaboraram os conceitos sobre aprendizagem tendo como

    referncia cinco estudos que descreviam diferentes experincias: o aprendizado das

  • 22 parteiras maias de Yucatan, no Mxico; o aprendizado dos alfaiates Vai e Gola, na

    Libria; o aprendizado dos oficiais intendentes na marinha americana; o aprendizado

    dos aougueiros em supermercados, nos Estados Unidos; e o aprendizado dos

    alcolatras que no bebem, da associao de Alcolatras Annimos (AA).

    Para eles, a aprendizagem parte da prtica social e trata-se de um processo no

    explcito, um dos motivos que levam ideia do dom, porque, geralmente, as atividades

    do dia a dia no so percebidas. Os autores descrevem a estrutura de organizao da

    prtica social cotidiana, que permite s pessoas se engajarem na prtica e, nesse

    processo, como elas aprendem.

    Para Lave e Wenger (1991, p. 33), no h atividade que no seja situada:

    Isso significa uma nfase na compreenso abrangente que envolve a pessoa inteira, em atividade no e com o mundo; e ver que agente, atividade e mundo se constituem mutuamente, em vez de ver a pessoa como um corpo receptor de conhecimento factual sobre o mundo (traduo nossa).

    Para os autores, a aprendizagem no est meramente situada na prtica, como se

    fosse algum processo independente objetivado, que somente necessita estar localizado

    em algum lugar. Aprender uma parte integral da prtica social generativa na vivncia

    do mundo.

    Como mostra Lave (1999, p. 3), as teorias da aprendizagem so, em sua maioria, sobre

    processos psicolgicos dos indivduos que levam aquisio do conhecimento,

    tipicamente estruturados como (1) transmisso (treino, ensino, inculcao), que leva

    para (2) entrada, estoque na memria, internalizao do que transmitido, seguindo-se

    (3) recuperao e transferncia para a soluo de problemas em novas situaes

    (traduo nossa).

    Para traduzir um enfoque analtico especfico sobre a aprendizagem, Lave e Wenger

    (1991) propuseram o conceito de Participao Perifrica Legitimada (LPP, no original

    Legitimate Peripheral Participation) como um descritor do compromisso na prtica social

    que vincula a aprendizagem como um constituinte integral.

  • 23 Segundo os autores, esse conceito proporciona uma maneira de falar sobre as

    relaes entre os novatos e os veteranos, sobre as atividades, identidades, artefatos e

    comunidades de conhecimento e prtica (LAVE; WENGER, 1991, p. 29, traduo

    nossa). Os autores explicam que o termo legitimado adquire uma caracterstica

    definidora das maneiras de pertencer a um grupo, e no uma condio crucial para a

    aprendizagem. A periferialidade sugere que h formas mltiplas e variadas de

    participao e no h correspondncia/ligao com o centro ou centralidade.

    Corresponde s localidades e s diversas formas de participao de cada um nas

    prticas cotidianas. Cada componente indispensvel definio e compreenso do

    outro e ambos no podem ser considerados separadamente: legtimo versus ilegtimo,

    perifrico versus central, participao versus no participao (LAVE; WENGER, 1991,

    p. 35, traduo nossa).

    Segundo Lave (2011), o termo LPP foi uma tentativa de propor um esquema analtico

    para descrever as prticas sociais cotidianas". Tentando explicar em outras palavras,

    para que o aprendizado acontea deve haver participao, a qual tem vrios modos e

    lugares de acontecer na prtica. Ou seja, ser perifrica e tem de ser aceita pelos

    membros do grupo: legitimada.

    Para os autores, os aspectos individuais do enfoque caracterstico de muitas teorias de

    aprendizagem parecem concentrar-se somente na pessoa. A aprendizagem situada

    concentra-se, na estrutura da prtica social, na participao. Ela implica o interesse

    explcito sobre a pessoa, o que, em razo disso, a princpio, pode parecer contraditrio.

    Mas o foco da aprendizagem situada est na relao. Ou seja, esse enfoque promove

    uma viso de conhecimento das atividades de pessoas especficas em circunstncias

    peculiares. E a pessoa definida conforme se definem essas relaes. Alm disso,

    argumentam que ver a aprendizagem como Participao Perifrica Legitimada significa

    que ela no meramente uma condio de membro ou participao, mas por si s uma

    forma evolutiva de participao (LAVE; WENGER, 1991, p. 53, traduo nossa).

    A Participao Perifrica Legitimada constitui um ponto conceitual, como um

    fundamento em relao aos processos comuns e inerentes produo da mudana

    das pessoas. Dessa forma, as questes levantadas pelos autores so sobre: a

  • 24 organizao cultural do espao nos lugares de atividade e circulao do conhecimento

    direto; a estrutura de acesso dos iniciantes atividade em curso e transparncia da

    tecnologia, as relaes sociais e as formas de atividade; a segmentao, a distribuio

    e a coordenao da participao, bem como a legitimidade da mudana de

    participao; seus conflitos caractersticos, interesses, significados comuns e

    interpretaes cruzadas; e a motivao de todos os participantes diante de suas

    mudanas de participao.

    O processo de reproduo deve ser decifrado com a finalidade de entender as formas

    especficas de Participao Perifrica Legitimada atravs do tempo. Ou seja, a

    transformao dos iniciantes em veteranos

    requer uma concepo mais ampla das biografias individuais e coletivas do segmento formado nos estudos sobre os iniciantes. Assim, podemos comear as anlises das mudanas de formas de participao e identidade das pessoas que so incorporados em uma participao sustentada em uma comunidade de prtica: desde seu ingresso como recm-chegado, a sua transformao em um veterano em relao aos novos recm-chegados, at o ponto onde estes recm-chegados se transformam em veteranos (LAVE; WENGER, 1991, p. 56, traduo nossa).

    Para eles, entre as ideias que podem ser proveitosas em uma perspectiva social da

    aprendizagem esto o carter problemtico dos processos de aprendizagem e os ciclos

    de reproduo social, assim como a relao dos dois. Os ciclos emergem nas

    contradies e lutas inerentes prtica social. Em relao ao carter problemtico, os

    autores citam duas questes: a participao sustentada dos recm-chegados, que, ao

    se tornarem veteranos, deve envolver conflitos entre as foras que mantm os

    processos de aprendizagem e aqueles que trabalham contra eles; e, aprender nunca

    um processo simples de transferncia e assimilao: Aprendizagem, transformao e

    mudana esto sempre envolvidas uma com a outra, e o status quo requer tanto

    explicao como a mudana (LAVE; WENGER, 1991, p. 57, traduo nossa).

    Para Lave e Wenger (1991), sempre quando pensamos na aprendizagem, a primeira

    coisa que cogitamos a relao mestre-aprendiz. Mas, na prtica, os papis do mestre

    so surpreendentemente variveis no tempo e no espao, e a relao mestre-aprendiz

  • 25 no uma caracterstica definidora da aprendizagem. Nos casos em que eles

    estudaram h nitidamente essa variao; em alguns, no h sequer essa relao

    como nos aprendizes de parteiras e marinheiros e, em outros, essa relao (mestre-

    aprendiz) que define o acesso legtimo dos aprendizes na participao das

    atividades produtivas. Sobre esse acesso, argumentam que, dessa maneira, a forma

    na qual tal acesso legtimo assegurado aos aprendizes depende das caractersticas

    da diviso do trabalho e do ambiente social no qual a comunidade de prtica est

    localizada (LAVE; WENGER, 1991, p. 92, traduo nossa).

    Esses autores argumentam, tambm, sobre as formas e maneiras que regulam as

    prticas sociais para que a aprendizagem possa ocorrer e que, em muitos casos, a

    relao com os aprendizes do mesmo nvel se torna mais presente e contribui

    significativamente para a aprendizagem do que a relao mestre-aluno.

    Relatam que, nos cinco estudos de caso que analisaram, os investigadores observaram

    uma parcela muito pequena de ensino, sendo o fenmeno mais bsico, nesses casos, a

    aprendizagem. Segundo eles, h incentivos poderosos para o aprendizado, porque os

    aprendizes, como participantes perifricos, podem desenvolver uma perspectiva que os

    leva a ver do que se trata e o que oferecido para aprender (LAVE; WENGER, 1991, p. 93, traduo nossa).

    Para eles, aprender em si uma prtica improvisada: um currculo de aprendizagem,

    implantado em oportunidades para se envolver na prtica (LAVE; WENGER, 1991, p. 93). Asseguram que as oportunidades para aprender esto mais frequentemente na

    estrutura dada nas prticas de trabalho do que nas relaes mestre-aprendiz

    fortemente assimtricas.

    Afirmam que aprender mais do que observao e imitao: envolve a participao

    tanto em absorver como em ser absorvido na cultura da prtica. Um extenso perodo

    de periferialidade legtima proporciona aos iniciantes oportunidades para construir uma

    cultura da prtica: com quem est envolvido; o que fazem; o que parece ser a vida

    cotidiana; como os mestres falam, caminham, trabalham e como conduzem a vida;

    como as pessoas que no fazem parte da comunidade se relacionam com ela; o que os

  • 26 outros iniciantes esto fazendo; o que os iniciantes precisam aprender para se tornarem

    especialistas. Isso tudo inclui a compreenso de como, quando e com quem colaboram

    os veteranos, o que conspiram, se eles se opem, se respeitam e se admiram. Alm

    disso, se oferecem exemplos (que so os fundamentos e a motivao para a atividade

    de aprendizagem), incluindo mestres, produtos acabados e aprendizes mais avanados

    no processo de transformao de um completo especialista.

    Para eles, a finalidade da aprendizagem e a da prtica cotidiana no coincidem: as

    atividades de produo devem ser aprendidas em diferentes sequncias em relao s

    tarefas nas quais o processo de produo se desenvolve. Os iniciantes realizam

    atividades perifricas, menos intensas, menos complexas e menos vitais antes de

    aprenderem os aspectos centrais da prtica.

    Outra forma de delinear o processo de aprendizagem mediante a anlise dos ciclos

    de reproduo que, segundo eles, parecem estar envolvidos em suas relaes. Dito de

    outro modo, o ciclo tem a ver com o tempo no qual o aprendiz leva para se tornar um

    participante pleno. E, para que isso ocorra, preciso que o iniciante tenha acesso, que,

    segundo os autores, a chave para a periferialidade legtima dos recm-chegados e

    tudo o que ser membro acarreta: Transformar-se em um membro completo requer o

    acesso a uma ampla variedade de atividades, aos veteranos e a outros membros,

    informao, aos recursos e s oportunidades de participao (LAVE; WENGER, 1991,

    p. 101, traduo nossa).

    De maneira geral, aprender na prtica implica que os aprendizes aprendam a saber que

    existe um campo de prtica madura que eles esto aprendendo a realizar:

    Ser capaz de participar de maneira perifrica legtima requer que os novatos tenham um amplo acesso a lugares da prtica madura e, ao mesmo tempo, uma periferialidade produtiva requer menos demanda de tempo, esforo e responsabilidade no trabalho, o que os diferencia dos participantes mais completos. As tarefas dos novatos so curtas e simples, os custos por erros so pequenos, o aprendiz tem poucas responsabilidades dentro das atividades como um todo (LAVE; WENGER, 1991, p. 110, traduo nossa).

    Ao transpor a teoria de Lave e Wenger (1991) para o processo de projeto, deve-se

  • 27 observar, dentre outras coisas, o tipo de participao das pessoas no processo e qual o

    lugar (posio) que ocupam no decorrer do desenvolvimento do projeto. Para os

    autores, nas relaes sociais que as pessoas se modificam e, nesse processo de

    mudana, elas aprendem (ou no aprendem). Assim, como acontece esse processo de

    modificao e mudana no cotidiano do processo de projeto? E por que uns aprendem

    e outros, no?

    Outra questo com o tipo de acesso a outros aprendizes ao processo e ao produto

    final de todo o trabalho, que nesse caso o projeto (completo e complexo) de

    arquitetura. Assim, torna-se fundamental tentar perceber como ocorre o acesso dos

    aprendizes a outros profissionais mais experientes, ao projeto completo e, tambm,

    como esse acesso pode influenciar o processo de aprendizagem.

    1.1.2 Constituio da habilidade

    Segundo Velho (2001), Ingold (2000) trata de temas como cultura, aprendizagem e

    habilidade, mas, sobretudo, da abordagem ecolgica do conceito de cultura11, no qual a

    descrio deve incluir o ambiente, o organismo/pessoa que aprende e os instrumentos

    envolvidos.

    Em um de seus artigos, Ingold (2010) se prope a responder questo: Como cada

    gerao contribui para a cognoscibilidade da prxima? De maneira geral, ele discute o

    papel da experincia e o da transmisso geracional nos modos pelos quais os seres

    humanos conhecem e participam da cultura.

    Ingold questiona as abordagens que defendem o conhecimento como forma de

    contedo mental, que, com vazamentos, preenchimentos e difuso pelas margens,

    passado de gerao em gerao, como a herana de uma populao portadora de

    cultura (INGOLD, 2010, p. 6). Segundo ele, o pressuposto de que o conhecimento

    informao e que os seres humanos so mecanismos para process-lo falso. Ele

    argumenta o contrrio: Nosso conhecimento consiste, em primeiro lugar, em 11 A abordagem ecolgica de Ingold oriunda da psicologia ecolgica de Gibson (1979).

  • 28 habilidades, e que todo ser humano um centro de percepes e agncia em um

    campo de prtica (INGOLD, 2010, p. 6).

    Como afirmam tambm Maturana e Varela (2005, p. 12), argumentando em oposio

    ao representacionismo, a teoria de que nosso crebro recebe passivamente

    informaes vindas j prontas de fora e assim, a mente seria, ento, um espelho da

    natureza. O mundo conteria informaes e nossa tarefa seria extra-las dele por meio

    da cognio. Alegam que se a vida um processo de conhecimento, os seres vivos

    constrem esse conhecimento no a partir de uma atitude passiva, e sim pela

    interao. Aprendem vivendo e vivem aprendendo.

    Para Ingold (2010, p. 7), a habilidade est na relao organismo-pessoa-ambiente, e

    para explicar isso ele utiliza a abordagem ecolgica, que parte da premissa de que a

    capacidade de conhecimento humano no est baseada na combinao de

    capacidades inatas e competncias adquiridas, mas em habilidades:

    Meu ponto que estas capacidades no so nem internamente pr-especificadas nem externamente impostas, mas surgem dentro de processos de desenvolvimento, como propriedades de auto-organizao dinmica do campo total de relacionamentos no qual a vida de uma pessoa desabrocha.

    Nesse sentido, ele argumenta sobre a maturao ou amadurecimento que alcanado

    por intermdio da prtica e com isso dissolve a dicotomia corpo-crebro:

    Da mesma forma, as mltiplas habilidades dos seres humanos, de atirar pedras a lanar bolas de cricket, de trepar em rvores a subir escadas, de assobiar a tocar piano, emergem atravs dos trabalhos de maturao no interior de campos de prtica constitudos pelas atividades de seus antepassados. No faz sentido perguntar se a capacidade de subir est na escada ou em quem a sobe, ou se a habilidade de tocar piano est no pianista ou no instrumento. Essas capacidades no existem dentro do corpo e crebro do praticante nem fora no ambiente. Elas so, isto sim, propriedades de sistemas ambientalmente estendidos que entrecortam as fronteiras de corpo e crebro (INGOLD, 2010, p. 11).

    Ele conclui que, no crescimento do conhecimento humano, a contribuio que cada

    gerao d seguinte no um suprimento acumulado de representaes, mas uma

    educao da ateno. Ele tomou essa frase de Gibson (1979), que, na tentativa de

  • 29 desenvolver uma psicologia ecolgica, tratou a percepo como uma atividade de todo

    o organismo num ambiente, em vez de uma mente dentro de um corpo.

    O autor afirma: O aumento do conhecimento na histria de vida de uma pessoa no

    um resultado de transmisso de informao, mas sim de redescoberta orientada

    (INGOLD, 2010, p. 11). Para explicar, ele d o exemplo de um livro de receitas e faz a

    distino entre conhecimento e informao. O livro de receitas culinrias est

    abarrotado de informao sobre como preparar uma srie de pratos. Mas ser que

    nessa informao que consiste o conhecimento do cozinheiro? O prprio autor adianta

    que no. Quando a receita diz para derreter a manteiga numa pequena panela e

    adicionar a farinha, a pessoa capaz de segui-la s porque ela dialoga com uma

    experincia anterior de derreter e mexer, de lidar com substncias como manteiga e

    farinha, e de encontrar os ingredientes e utenslios bsicos na cozinha. Os comandos

    verbais da receita extraem seu significado no de sua ligao a representaes mentais

    na cabea, mas de seu posicionamento no contexto familiar da atividade domstica da

    pessoa. Segundo ele, isso ocorre tambm com as placas de sinalizao numa

    paisagem, que fornecem direes especficas s pessoas, enquanto elas abrem

    caminho por meio de um campo de prticas relacionadas, o que ele denomina de

    taskscape12.

    Cada comando colocado estrategicamente em um ponto que o autor original da receita, olhando para a experincia prvia de preparar o prato em questo, considerou ser uma juno crtica na totalidade do processo. Entre esses pontos, no entanto, espera-se que o cozinheiro ou a cozinheira seja capaz de achar o seu caminho, com ateno e sensibilidade, mas sem depender de outras regras explcitas de procedimento ou, numa s palavra, habilidosamente (INGOLD, 2010, p. 19).

    Dessa forma, a informao no livro de receitas, em si mesma, no conhecimento.

    Apenas quando colocada no contexto das habilidades adquiridas por meio desta

    experincia anterior, que pode ser seguida na prtica, e apenas uma rota assim

    especificada pode levar ao conhecimento. Por isso, ele afirma que, nesse sentido, todo 12 Taskscape um neologismo com que o autor se refere por associao a uma paisagem (landscape)

    de sinalizaes. Um neologismo em portugus poderia ser tarefagem (INGOLD, 2010).

  • 30 conhecimento est baseado em habilidade. Assim como nosso conhecimento da

    paisagem adquirido ao caminhar por ela, seguindo vrias rotas sinalizadas, o

    conhecimento da taskscape tambm adquirido seguindo as vrias receitas no livro.

    No se trata de conhecimento que foi comunicado, mas, sim, de conhecimento

    construido seguindo os mesmos caminhos dos predecessores e orientado por eles. Isso

    tudo para explicar que

    chegamos a uma concluso quase idntica a respeito do aprendizado humano: no h nenhuma leitura de um roteiro verbal, como o que se encontra no livro de receitas culinrias, que no faa parte do envolvimento prtico do iniciante com o seu ambiente (INGOLD, 2010, p. 19).

    Aproveitando o exemplo da receita, o autor argumenta sobre o processo de cpia.

    Segundo ele, os iniciantes na cozinha, por exemplo, aprendem copiando as atividades

    de cozinheiros j capacitados. No significa que copiar fazer transcrio automtica

    de contedo mental de uma cabea para outra, mas, sim, seguir o que as outras

    pessoas fazem:

    O iniciante olha, sente ou ouve os movimentos do especialista e procura, atravs de tentativas repetidas, igualar seus prprios movimentos corporais queles de sua ateno, a fim de alcanar o tipo de ajuste rtmico de percepo e ao que est na essncia do desempenho fluente (INGOLD, 2010, p. 21).

    Esse copiar um processo no de transmisso de informao, mas de

    redescobrimento dirigido ou guiado, e para alcanar a fluncia da performance no

    basta que o aprendiz somente observe; ele tem tambm que realizar repetidos ensaios

    prticos ou seja, aprender uma questo de redescoberta (INGOLD, 2003). Para o autor, o ensaio tratado como forma fundamental de aprendizagem, como

    processo de incorporao a partir do exerccio de mergulho no que se est aprendendo.

    O ensaio , ento, uma forma de entendimento na prtica. O tipo de know-how

    alcanado no contexto da prtica o processo de habilitao, no qual a aprendizagem

    inseparvel do fazer (INGOLD, 2000, p. 416, traduo nossa). E por meio desses

    ensaios prticos repetidos e guiados por suas observaes que o novato/aprendiz

  • 31 sente as coisas, aprende o ajuste fino do prprio movimento para alcanar a fluncia

    rtmica:

    Como tal, ele envolve um misto de imitao e improvisao: isto pode ser mais bem compreendido, na verdade, como as duas faces de uma mesma moeda. Copiar imitativo, na medida em que ocorre sob orientao; improvisar, na medida em que o conhecimento que gera conhecimento que os iniciantes descobrem por si mesmos (INGOLD, 2010, p. 21).

    Alm disso, ele argumenta que o processo de aprendizado por redescobrimento dirigido

    transmitido mais corretamente pela noo de mostrar. Mostrar alguma coisa a algum

    fazer essa coisa se tornar presente para essa pessoa, de modo que ela possa

    apreend-la diretamente: olhando, ouvindo ou sentindo. Nesse caso, o papel do tutor

    (ou do mais experiente) criar situaes nas quais o iniciante instrudo a cuidar

    especialmente deste ou daquele aspecto do que pode ser visto, tocado ou ouvido, para

    poder assim pegar o jeito da coisa. Por isso afirma: Aprender, nesse sentido,

    equivalente a uma educao da ateno, e no representaes na mente 13

    transmitidas de uma mente (emissor) para outra (receptor). Ou seja,

    a habilidade uma propriedade no de um corpo humano como uma entidade biofsica, mas um campo total de relaes constitudo pela presena do organismo-pessoa, indissoluvelmente corpo e mente, em um ambiente ricamente estruturado (INGOLD, 2001, p. 21, traduo nossa).

    Segundo ele, a diferena entre o conhecimento do especialista e o do iniciante no

    porque o primeiro adquiriu representaes mentais que o capacitam a construir um

    quadro mais elaborado do mundo utilizando a mesma base de dados, mas porque seu

    sistema perceptivo est regulado para captar aspectos essenciais do ambiente que

    simplesmente passam despercebidos pelo iniciante.

    Respondendo questo inicial, ele afirma:

    Na passagem das geraes humanas, a contribuio de cada uma para a cognoscibilidade da seguinte no se d pela entrega de um corpo de informao desincorporada e contexto-independente, mas pela criao,

    13 Como visto na abordagem de Lawson (2001), por exemplo.

  • 32 atravs de suas atividades, de contextos ambientais dentro dos quais as sucessoras desenvolvem suas prprias habilidades incorporadas de percepo e ao. Em vez de ter suas capacidades evolutivas recheadas de estruturas que representam aspectos do mundo, os seres humanos emergem como um centro de ateno e agncia cujos processos ressoam com os de seu ambiente. O conhecer, ento, no reside nas relaes entre estruturas no mundo e estruturas na mente, mas imanente vida e conscincia do conhecedor, pois desabrocha dentro do campo de prtica a taskscape estabelecido atravs de sua presena enquanto ser-no-mundo. A cognio, neste sentido, um processo em tempo real (INGOLD, 2010, p. 21).

    O enfoque desse autor me forneceu elementos que nortearam a investigao e me

    fizeram entender melhor como o aprendiz desenvolve suas habilidades. Ao relacionar

    as abordagens de Ingold s prticas de produo de projetos, surgiram as seguintes

    questes: Como os aprendizes constituem as habilidades necessrias para se tornarem

    arquitetos? Se, para ele, a habilidade no est somente na pessoa, neste caso, que

    faz/executa/produz o projeto, mas relacional e por isso tem a ver tambm e,

    fundamentalmente, com as outras pessoas, as ferramentas (coisas) e com o ambiente,

    como se d essa relao e qual a importncia de cada um no processo de

    aprendizagem? No caso dos projetos de arquitetura, quais seriam e como seriam os

    ensaios e ajustes finos que Ingold argumenta serem importantes para a constituio da

    habilidade e qual a influncia deles no processo de aprendizagem?

    1.2 Os percursos da pesquisa14

    Nesse processo de investigao, para definir os procedimentos metodolgicos, realizei:

    um estudo exploratrio: para identificar os campos de pesquisa potenciais;

    a anlise dos documentos relativos aos processos e procedimentos da produo

    de projetos: para entender o funcionamento dos escritrios de uma forma geral;

    um segundo estudo exploratrio: para compreender o desenvolvimento de 14 Optei por utilizar, nesta tese, os mtodos qualitativos. Brando (2008, p. 33) afirma que a opo pelas

    metodologias qualitativas se deve ao fato de que elas assumem posturas nas quais no se anteveem os resultados seno aps percursos singulares a serem percorridos. Alves-Mazzotti (2002, p. 147) alega que [...] as pesquisas qualitativas diferem bastante quanto ao grau de estruturao prvia, isto , quanto aos aspectos que podem ser definidos j no projeto. Alm disso, a autora refora a importncia de se fazer um perodo exploratrio.

  • 33 projetos, bem como, para avaliar a possibilidade da observao desse processo.

    Baseando-me nesses procedimentos, defini o delineamento de quais seriam os

    mtodos mais adequados para esta investigao: observao e entrevistas15.

    1.2.1 Estudo exploratrio: possveis campos de pesquisa

    O objetivo principal com esse primeiro estudo exploratrio foi identificar, dentre as

    alternativas possveis, os campos de pesquisa (escritrios de arquitetura) que

    pudessem viabilizar a execuo desta investigao. Esse estudo permitiu, tambm,

    entender um pouco mais sobre as prticas dos projetos de arquitetura, sobre a

    organizao dos escritrios pesquisados e uma breve noo sobre a participao dos

    estagirios no processo de produo dos projetos. Ele foi realizado em dez escritrios

    de arquitetura (TAB. 1), em setembro de 2011.

    TABELA 1 Resumo de algumas caractersticas dos dez escritrios de arquitetura pesquisados no estudo

    exploratrio 1.

    ESCRITRIOS FUNDAO N. FUNCIONRIOS N. ESTAGIRIOS SISTEMA DE GESTO TIPO DE PROJETO DESENVOLVIDO

    1 2002 11 4 sim Imobilirios 2 2002 02 1 no Autorais e imobilirios 3 2004 23 2 sim imobilirios 4 1995 ? no tem no autorais e imobilirios 5 ? ? no tem no autorais 6 1974 23 6 sim autorais 7 1997 18 10 no autorais 8 ? ? no tem no autorais 9 ? ? no tem ? ?

    10 1989 96 6 sim imobilirios Fonte: Dados da pesquisa. Obs.: 1) Em destaque, os seis escritrios nos quais houve conversa (pessoalmente) com os responsveis: 1, 2, 3, 6, 7 e 10; 2. Os nomes dos escritrios foram substitudos para manter o sigilo e a ordem segue a sequncia em que foram pesquisados; 3) As interrogaes correspondem s informaes que no foram obtidas nas conversas via telefone.

    15 Uma das possibilidades aventadas como mtodo para esta pesquisa foi a aplicao de um teste para

    os estagirios e arquitetos juniores. Mas, com os estudos exploratrios, optou-se por abolir essa tcnica por acreditar que desvirtuaria o foco da pesquisa que investigar como se d a aprendizagem na prtica, cotidianamente por no representar o que acontece no dia a dia do escritrio e por estar na contramo da prpria compreenso de aprendizagem aqui proposta: a ideia de aprendizagem como processo, e no como produto.

  • 34 Os escritrios pesquisados foram indicados por colegas da Escola de Arquitetura da

    UFMG e tambm por profissionais que atuam nesse mercado. Inicialmente, o contato

    foi via telefone com todos os indicados para saber se havia estagirios de arquitetura

    entre os funcionrios. Posteriormente, busquei maiores informaes em conversa

    pessoal com o responsvel em cada escritrio onde havia estagirios. Nessas

    conversas, utilizei um roteiro com algumas questes: estrutura do escritrio, pessoal

    empregado, fases dos projetos, participao de cada profissional e de cada estagirio

    no processo de projeto, forma de contratao, processo de superviso dos estagirios,

    forma de participao do cliente no projeto e organizao do processo.

    Neste estudo exploratrio, foi possvel perceber, de forma geral, as diferenas em

    relao aos tipos de projeto realizados pelos escritrios, forma de organizao, ao

    gerenciamento e infraestrutura em cada um deles. Uns com maior nfase em projetos

    autorais (projetos nos quais a autoria se torna relevante), outros com foco em projetos

    imobilirios (projetos para as grandes construtoras, considerados projetos em srie ou

    comerciais) e em alguns, projetos mistos, autorais e comerciais.

    Dos dez escritrios pesquisados, quatro deles (n. 1, 3, 6 e 10, na TAB. 1) tinham

    sistemas de gesto para a elaborao dos projetos. Sendo que trs deles (n. 3, 6 e 10)

    tinham certificao pela ABNT (NBR ISO 9001-2008)16 e outro (n. 1 na TAB. 1) estava

    em processo de certificao. Ou seja, os procedimentos j estavam normatizados (em

    setembro de 2011) e no ano seguinte iam requerer a certificao.

    Para definio dos campos de pesquisa (escritrios) utilizei os seguintes critrios:

    16 A ISO 9001 uma norma generalista, e isso quer dizer que pode ser aplicada em todas as

    organizaes, independentemente do tipo, porte ou produto que forneam. O termo produto, conforme descrito na prpria norma, pode ser entendido tambm como servio. Ela aborda diretrizes para a gesto da qualidade com foco no processo conjunto de atividades inter-relacionadas ou interativas que transforma insumos/entradas em produtos/sada. Orienta para que a empresa especifique requisitos para o controle do processo, com definio clara de entradas e sadas, especificao de todas as atividades e funes que fazem parte do processo, requisitos de controle, de avaliao e melhoria do processo. Os requisitos estabelecidos na ISO 9001 no garantem a qualidade final do produto da empresa, mas, sim, a qualidade no processo. Para mais informaes sobre a ISO 9001 e certificao, cf. Mello et al. (2009) e Carpinetti; Miguel e Gerolamo (2011).

  • 35 1 escritrios com estagirios envolvidos no processo de projeto: requisito sine qua non, dado o foco no processo do aprendiz;

    2 escritrios com arquitetos em diferentes nveis de formao: no bastava ter estagirios, era preciso ter tambm arquitetos em funes diversas porque diferentes

    formas de participao na prtica podem gerar processos de aprendizagem;

    3 escritrios com maturidade no desenvolvimento de projetos de arquitetura: escritrios com uma prtica consolidada poderiam facilitar o entendimento do processo

    de produo de projetos se comparados queles que estavam iniciando suas

    atividades, os quais poderiam ter outras variveis no processo.

    Aps analisar as informaes desses escritrios que fizeram parte do primeiro estudo

    exploratrio, acrescentei um quarto critrio para a escolha dos campos de pesquisa:

    4 escritrios com sistema de gesto de projetos consolidado: a deciso por incluir mais esse requisito aos demais, se baseou, principalmente, na percepo de que nos

    escritrios com sistema de gesto de projetos 17 , os processos e procedimentos

    referentes produo de projetos estavam formalizados e descritos dadas as

    prprias exigncias normativas18 e poderiam facilitar o entendimento do processo de

    produo dos projetos se comparado queles sem sistema de gesto estabelecido.

    Os seis escritrios nos quais conversei pessoalmente com os responsveis atenderiam

    aos trs primeiros requisitos, mas somente trs deles possuam a gesto de projetos

    consolidada (tinham certificao ISO 9001 para os processos de projeto). Dessa forma,

    estes foram os selecionados como potenciais campos de pesquisa, representados na

    TAB. 1 pelos nmeros 3, 6 e 10.

    A negociao com um desses escritrios (n. 6 na TAB. 1), porm, no se concretizou.

    Meu contato foi com um dos gerentes de projeto, que forneceu alguns documentos: 17 Sobre gesto de projetos cf.: Silva e Souza (2003); Oliveira (2004); Melhado et al. (2005, 2011);;

    Oliveira e Melhado (2005); Ferreira e Salgado (2007); Emmitt (2010); Andery et al. (2012). 18 No necessariamente para se ter um sistema de gesto h necessidade de obter certificao. Porm,

    observa-se que as empresas buscam a normatizao e certificao para implantarem sistemas de gesto de projetos.

  • 36 Manual da Qualidade (MQ), Manual de Descrio de Funes (MDF), procedimentos

    para desenvolvimento dos produtos e arquivamento de projetos. Em uma das reunies

    com o gerente, o diretor participou e declarou que forneceria todas as informaes

    necessrias para o entendimento do processo, mas que no ia liberar a observao do

    processo de produo 19 . Assim, esse escritrio foi descartado como campo de

    investigao para esta pesquisa.

    Daqui em diante, trato os dois escritrios pesquisados 3 e 10, na TAB. 1 como

    Escritrio A e Escritrio C, respectivamente.

    1.2.2 Anlise de documentos: compreendendo o processo de projeto

    Para comear a entender o processo de produo de projetos, analisei os seguintes

    documentos dos dois escritrios: MQ, MDF, formulrios de procedimentos para

    desenvolvimento de produtos, formulrios de avaliao das pessoas e dos servios

    prestados, dentre outros especficos de cada escritrio.

    Alm da anlise dos documentos, muitas informaes sobre os sistemas de gesto

    desses escritrios, A e C, foram obtidas em conversas com os diretores ou

    responsveis pelo sistema de gesto.

    O objetivo principal com essa anlise foi compreender como funcionava a produo de

    projetos nos escritrios: os processos de desenvolvimento do produto, o controle das

    etapas, a avaliao dos funcionrios em relao s suas atividades, a avaliao do

    cliente em relao ao projeto recebido, a participao dos diferentes agentes

    estagirios, arquitetos, coordenadores, gerentes, diretores e clientes no processo.

    As informaes sobre os procedimentos e habilidades requeridas para as funes 19 O diretor deixou claro que estava fazendo isso em prol da Universidade e, principalmente, por causa de

    alguns professores. Ele solicitou ao gerente que fizesse o apontamento das horas de reunies sobre esta pesquisa para deixar claro quanto (nmero de horas) o escritrio dele gastou com a pesquisa para que essa informao fosse repassada Universidade. Segundo ele, a sala de produo de projetos do escritrio dele sagrada; fazer projeto, para ele, como se fosse uma reza. Disse ainda que se ele chegou at aquele momento e tinha seu trabalho reconhecido era graas ao trabalho realizado naquele ambiente, por isso no poderia liberar a sala de projetos para minha observao.

  • 37 serviram de base para compreender o perfil do aprendiz, as caractersticas e requisitos

    que ele deveria preencher, as habilidades que ele precisaria aprender, como seria a

    participao de cada pessoa (arquitetos e estagirios) no processo, dentre outras

    questes relativas ao processo de projeto. Nesse caso, privilegiei e tentei compreender

    o que estava descrito, determinado e registrado em termos de procedimentos e

    competncias relativas aos processos de elaborao de projetos20.

    Conforme afirmou um dos arquitetos no Escritrio A, todos os procedimentos

    operacionais esto descritos, como plano de carreira, metas, o que cada nvel de

    arquiteto (do I ao V) deve saber fazer, o que se espera dos estagirios, bem como

    todas as fases do projeto. Segundo ele, todos os que entram na empresa, antes de

    comear a trabalhar, tm de ler os documentos de gerenciamento do escritrio. Nos

    documentos de procedimentos dessas empresas, h tambm os diagramas das fases

    dos projetos, descrio de como o cliente participa em cada fase, os resultados

    esperados e a participao de cada profissional no processo.

    Nessa etapa, as normas e procedimentos referentes gesto de projetos serviram de

    base, de pano de fundo para o entendimento introdutrio de como funcionavam os

    escritrios: os processos de produo de projeto, as atividades, as funes e a

    participao de cada pessoa no desenvolvimento dos projetos.

    Trs questes influenciaram a obteno das informaes sobre a produo de projetos

    nesses escritrios e, consequentemente, o andamento da pesquisa de maneira geral,

    por isso merecem destaque: dificuldade e demora em obter as informaes, processo

    em constante alterao e dificuldade em lidar com as informaes sigilosas.

    Questo 1: dificuldade e demora em obter as informaes Nos dois escritrios pesquisados, a situao foi bem diferente em cada um deles. No Escritrio A, o contato

    foi com um dos diretores. O acesso s informaes ocorreu facilmente. Sempre que

    necessrio, eu solicitava a reunio, e ele prontamente agendava, quase sempre na 20 Nos escritrios pesquisados que no tinham sistema de gesto, no havia definio clara e descrita

    (registrada) sobre os procedimentos relativos ao processo de projeto, tampouco registro do perfil, competncias esperadas e determinadas para cada atividade e cargo.

  • 38 mesma semana da solicitao, e, quando necessrio, esclarecia sobre os processos.

    Ele forneceu todos os formulrios referentes ao desenvolvimento dos projetos, bem

    como todas as informaes sobre os processos, procedimentos e normas da empresa.

    J no Escritrio C foi mais complicado, inicialmente21. O contato inicial foi com o diretor-

    presidente e depois com o diretor-administrativo, responsvel pela implantao e

    manuteno do sistema de gesto no escritrio. Concordaram em ceder as informaes

    necessrias para a pesquisa e disseram que se fosse preciso censurariam o que no

    pudesse ser mostrado. O diretor-administrativo explicou como foi o processo de

    implantao do sistema de gesto, mostrou-me os processos, procedimentos,

    formulrios e sistemas de controle de todo o processo de produo de projetos do

    escritrio. Mas no liberou a documentao, apenas o Manual da Qualidade da

    empresa. Segundo ele, a documentao poderia ser consultada na empresa, mas

    nenhum documento poderia sair de l. Em alguns casos, as respostas s minhas

    solicitaes, nesse escritrio, demoraram at quatro semanas. Essa demora tornou a

    fase de anlise de documentos desgastante dada a falta de continuidade e excesso de

    pausas no processo de pesquisa.

    Questo 2: processo em constante alterao A cada reunio, com os responsveis pelos escritrios, eu percebia algumas alteraes nos formulrios e procedimentos em

    relao ao processo de produo de projetos. Como foi possvel observar, o processo

    dinmico e, mais do que isso, havia certa dificuldade em descrever detalhadamente

    cada etapa, procedimentos, sistema de monitoramento e deciso sobre os processos

    de produo de projetos. Havia, basicamente, dois tipos de alterao: uma, proveniente

    de uma real alterao do processo, que antes era feito de um determinado modo e

    depois de certo tempo foi alterado, e em razo dessa alterao havia necessidade de

    atualizar a descrio. O segundo tipo de alterao era na descrio (interpretao do

    processo), que antes era interpretado de uma maneira e, por algum motivo

    observao de algum, solicitao de consultores, auditoria , precisava ser alterado.

    Nesse caso, o processo continuava o mesmo, mas se alterava a forma de descrio e 21 Durante o processo de observao da produo de projetos nesse escritrio, entretanto, foi possvel

    acessar os documentos disponveis na rede interna da empresa.

  • 39 interpretao. curioso notar tambm que, embora a atividade fosse basicamente a

    mesma nos dois escritrios ou seja, produo de projetos , as formas de interpretar

    e descrever os processos e procedimentos eram bem diferentes.

    Questo 3: dificuldade em lidar com informaes sigilosas Essa foi particularmente uma das principais questes, dada a dificuldade de lidar com dados confidenciais dos

    escritrios. Como descrever sobre os processos sem declar-los explicitamente para

    manter o sigilo? Os escritrios tm estratgias diferentes para o controle do

    desenvolvimento dos projetos e, consequentemente, da empresa/negcio. O que

    agravava essa questo (do sigilo) era que os dois, de certo modo, competiam em um

    mesmo mercado. Por essa razo, a descrio detalhada dos processos de produo

    dos projetos como organograma e fluxograma, por exemplo dentre outras

    informaes sigilosas, no sero apresentadas nesse trabalho.

    1.2.3 Segundo estudo exploratrio: a prtica cotidiana no escritrio

    Esse segundo estudo exploratrio teve como objetivo principal fundamentar o

    planejamento da segunda fase da pesquisa. Em outras palavras, (re)pensar e

    (re)planejar qual seria a melhor forma/maneira de investigar o processo de

    aprendizagem na produo de projetos arquitetnicos. Ele foi importante, tambm, para

    ampliar o entendimento sobre o funcionamento da produo de projetos arquitetnicos,

    bem como para responder algumas questes/dvidas que ainda pairavam em relao

    ao objeto da pesquisa: De quais etapas as pessoas em diferentes nveis participavam?

    Quais atividades desenvolviam? Quem repassava as atividades e a quem submetia o

    trabalho?

    Este estudo exploratrio foi realizado durante uma semana, no perodo da tarde22, no

    Escritrio A, em agosto de 2012. Tratou-se da observao da prtica cotidiana da

    produo de projetos. Esse escritrio foi o escolhido para este estudo exploratrio

    porque os diretores foram os mais disponveis (solcitos) e os que demonstraram maior

    22 Definido em razo do horrio de trabalho da estagiria desse escritrio.

  • 40 interesse nesta pesquisa. Alm disso, foi o escritrio que forneceu mais informaes

    sobre seu sistema de gesto.

    Para a observao da prtica de produo de projetos nesse escritrio, no me

    preocupei, inicialmente, em registrar tudo o que acontecia23, mesmo porque isso seria

    impossvel. Meu foco naquele momento era saber se seria possvel observar o

    processo e, principalmente, como eu faria isso: se somente observaria as pessoas

    trabalhando ou se seria necessrio fazer perguntas. Senti-me naquele momento como

    um iniciante: de fato, eu era o aprendiz dos meus mestres no campo (VELHO, 2006).

    O foco da observao a priori era o cotidiano da estagiria. Mas, logo no primeiro dia,

    percebi que seria importante acompanhar outras pessoas por perceber que estavam,

    tambm, em um momento explcito de aprendizagem. Dessa forma, deixei que o campo

    de pesquisa, de certo modo, me orientasse neste sentido: o de perceber quais seriam

    as pessoas e as atividades que eu observaria.

    No decorrer dos dias, estabeleci a estratgia de observar a pessoa que estava

    realizando a atividade (estagiria ou arquiteta trainee) e, em seguida, observar tambm

    quem lhe passava as tarefas, para que eu pudesse entender o que estava acontecendo

    de maneira geral. Assim, observei a estagiria e a arquiteta I, que estava lhe passando

    as tarefas; observei a arquiteta trainee e a arquiteta II, para quem ela estava realizando

    atividades. Alm de observar, senti necessidade de conversar com ambas para melhor

    entender o que estavam fazendo. Conversei tambm com outras pessoas, como o

    gerente de projetos, o gerente administrativo-financeiro, responsvel tambm pela rea

    de gesto, e com o arquiteto III.

    A maioria das atividades de produo de projetos arquitetnicos, nesse escritrio, era

    realizada no computador, um trabalho quase solitrio (pessoa-computador), por isso as

    explicaes foram fundamentais para que eu entendesse o que estavam fazendo.

    23 Mesmo assim fiz relatos dirios do que eu percebia ser importante e relevante para a pesquisa.

  • 41 Cabe aqui fazer um parntese sobre essa questo da forma/maneira de trabalho,

    pessoa-computador, exercido atualmente pelo arquiteto. Arantes (2010, p. 104) faz o

    relato de como foi essa mudana, da utilizao de ferramentas manuais e papel para o

    trabalho no computador:

    Esse trabalho do ofcio artesanal de preparao das pranchas para a obra era um pequeno canteiro de obras, uma experincia fsica com a matria, de controle rigoroso dos movimentos do corpo e dos instrumentos de desenhos. Por ele passavam todos os arquitetos, com extenses e profundidades variveis, e ocupando diferentes posies dentro dessa manufatura. Essa coreografia de ritmos e gestos do desenho de arquitetura foi quase integralmente substituda pelo desenho em computador, que instaurou uma nova relao co