Aprender a Profissão Em Diferentes Espaços Da Vida

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Rev. educ. PUC-Camp., Campinas, 18(3):237-248, set./dez., 2013 Seção Temática: Escritas, narrativas & formação docente em Educação Matemática Aprender a profissão em diferentes espaços de vida Learning a profession from different life contexts Teresa Sarmento 1 Resumo No presente artigo conceitualizam-se os contextos de vida pessoal e profissional dos professores enquanto espaços de vida influenciadores da aprendizagem da profissão, entendendo-se que a formação como pessoa é significati- vamente transferida para a ação profissional, constituindo, enquanto tal, modelos para a ação docente. A abordagem à temática é feita a partir de narrativas biográficas as quais se cruzam com referenciais teóricos sobre a formação dos professores. Palavras-chave: Contextos de vida pessoal-profissional. Formação de professores. Métodos biográficos. Abstract In the present article we conceptualize common personal and professional life contexts as living spaces that influence the learning of a profession, understanding that the training of a person is significantly transferred to professional action and thus it becomes models for teaching action. Our approach is based on biographical narratives that meet theoretical references concerning teacher training. Keywords: Personal and professional life contexts. Teacher training. Biographical narratives. 1 Professora, Universidade do Minho, Instituto de Educação, Departamento de Ciências Sociais da Educação. Campus de Gualtar, 4710-057, Braga, Portugal. E-mail: <[email protected]>.

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Aprender a profissão em diferentesespaços de vida - TEeresa Sarmento

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    Rev. educ. PUC-Camp., Campinas, 18(3):237-248, set./dez., 2013

    Seo Temtica: Escritas, narrativas &formao docente em Educao Matemtica

    Aprender a profisso em diferentesespaos de vida

    Learning a profession from different lifecontexts

    Teresa Sarmento1

    Resumo

    No presente artigo conceitualizam-se os contextos de vidapessoal e profissional dos professores enquanto espaos devida influenciadores da aprendizagem da profisso,entendendo-se que a formao como pessoa significati-vamente transferida para a ao profissional, constituindo,enquanto tal, modelos para a ao docente. A abordagem temtica feita a partir de narrativas biogrficas as quais secruzam com referenciais tericos sobre a formao dosprofessores.

    Palavras-chave: Contextos de vida pessoal-profissional.Formao de professores. Mtodos biogrficos.

    Abstract

    In the present article we conceptualize common personal andprofessional life contexts as living spaces that influence the learningof a profession, understanding that the training of a person issignificantly transferred to professional action and thus it becomesmodels for teaching action. Our approach is based on biographicalnarratives that meet theoretical references concerning teachertraining.

    Keywords: Personal and professional life contexts. Teacher training.Biographical narratives.

    1Professora, Universidade do Minho, Instituto de Educao, Departamento de Cincias Sociaisda Educao. Campus de Gualtar, 4710-057, Braga, Portugal. E-mail: .

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    Introduo

    Com Goodson diz-nos que As experinciasde vida e o ambiente scio-cultural so obviamenteingredientes-chave da pessoa que somos, do nossosentido do eu (1992, p.71), o que no permite iniciar aincurso na anlise sobre a relevncia dos contextosde vida pessoal enquanto andaimes na construode um perfil profissional de professor. Segundo esteautor, para compreender os professores e as suasprticas h que comear por conhecer as suas vidas,o que viabilizar a anlise da interseco entre ahistria de vida e a histria da sociedade e iluminaras escolhas, as contingncias e as opes individuais.Alicerada em fundamentos humanistas, nesta linha,valorizam-se as crenas, pensamentos e atitudespessoais do professor, isto , parte-se da pessoa nasinteraes que a mesma promove nos diversoscontextos (formais e informais) em que estabelecerelaes significativas.

    O paradigma ecolgico especialmentevalorizado neste texto encontra as suas razesfundamentadoras em Bronfenbrenner (1987),entendendo este que o desenvolvimento profissionalenvolve o estudo do processo das interaesconstantes entre o profissional - neste caso, osprofessores -, e os contextos (micro, meso, exo emacro) em que habita. Nesta linha, acredita-se que aao reflexiva que o professor realiza sobre as suasprticas num contexto micro (por exemplo, na salade aula) est influenciada pelas interaes que serealizam entre os contextos meso (por exemplo, aescola) e macro (os valores da sociedade a quepertence, por exemplo). Assim, ao se olhar para a vidados professores, tem-se que atender sua inscriono grupo geracional dos adultos e s interaes que,enquanto tais, estabelecem entre os seus diferentespapis sociais nos diferentes espaos que habitam,com relao aos seus valores, s suas crenas e ssuas atitudes.

    A voz dos professores como base de conhecimen-to das suas experincias formativas

    Com base nestas perspectivas, entende-se quea abordagem mais adequada para a construo deste

    artigo implica o acesso a histrias de vida, por umlado, como recurso metodolgico e, por outro, comoforma de acesso ao conhecimento de como asexperincias de vida e o significado que os atoressociais atribuem s mesmas so entendidos comoresponsveis pela sua formao profissional. Assimsendo, as histrias de vida cumprem o objetivo deproduzir conhecimento para o sujeito em si mesmoe para ns enquanto co-construtores dessas histrias.Ao narrar, o sujeito cria sentido s suas experinciasprvias, transformando essa atribuio de significadoem formao (Josso, 2002) e, ao mesmo tempo, permiteque se asceda ao conhecimento sobre as vidas dosprofessores.

    Nas histrias de vida que se recolheram afirma-se particularmente importante a diversidade defiltragens que cada ator social faz da sua prpria vida,sendo nosso propsito asceder a essa vida por meioda voz do prprio agente. Este contar-se, interpretaros seus percursos e informar sobre o(s) seu(s)contexto(s) permite reenviar cada sujeito ao seucampo social, o que aqui interessa particularmentena perspectiva de lograr uma dimenso social ecultural no estudo de um caso individual, salientandoa voz de cada pessoa, o que Nvoa (1992, p.18) salientacomo a possibilidade de fazer Reaparecer os sujeitosface s estruturas e aos sistemas, a qualidade face quantidade, a vivncia face ao institudo.

    O pensar, o sentir e a voz de cada professor soelementos construtivistas na sua identidadeprofissional, na forma como se relaciona com osoutros e promove a sua ao educativa (Butt &Raymond, 1987; Grant, 1995; Kelchtermans, 1995;Sarmento, 2002). Ao contar a sua histria, defendeDubar (1991), o narrador pe em evidncia o modocomo mobiliza os seus conhecimentos, os seusvalores, as suas energias, para ir dando forma suaidentidade, num dilogo com os contextos que habita.Ao cont-la, o ator identifica as continuidades eruturas, as coincidncias no tempo e no espao, osfocos das suas preocupaes e interesses, enfim, osseus referentes nos diversos espaos do quotidiano.

    O processo de construo de uma histria devida comea por ser individual e interno prpria

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    pessoa, baseado nas vivncias e experincias rele-vantes que decorreram no decurso da sua prpriavida, nas diferentes configuraes em que se enleou(Finger, 1986; Denzin, 1989; Connelly & Clandinin, 1990;Hoerning & Alheit, 1995). Na linha de Josso (2002), apassagem que cada ator faz da vivncia enquantoocorrncia factual para a experincia em que h juma seleo e integrao de sentidos leva, pelaatribuio de significado, a um novo conhecimentoincorporado pelo sujeito-professor na sua forma deser e de agir. Cada professor, ao contar a sua histriade vida, acredita estar produzindo um Relato coerentede uma sequncia significativa e orientada deacontecimentos (Bourdieu, 1986, p.69), quando, comodefende o mesmo autor, est de fato a Sucumbir auma iluso retrica, a uma representao comum daexistncia (Bourdieu, 1986, p.70), na medida em quefoi feito um autotrabalho prvio de filtragem e daarticulao entre esses acontecimentos de forma adar resposta a uma inteno global que o biografadopensa existir no investigador.

    Dar voz aos professores, conhecer as suashistrias de vida, tornou-se uma necessidade paraatender Inteligibilidade do social produzido pelainterpretao dos percursos de vida (Conink & Godard,1989, p.23). Com esse propsito, procurou-se partir daaudio de narrativas sobre episdios de vida,memrias de tempos considerados pelos prprioscomo significativas interpretaes subjetivas deincidentes crticos e momentos-chave, para aconstruo do conhecimento da relevncia dasexperincias de vida na promoo da aprendizagemprofissional. Seguindo Pineau (1987), as histrias devida interessam como tentativa de compreenso decomo cada um dos atores sociais abordados desenhae pe em forma os seus pedaos de vida, Semeadose dispersos ao longo dos anos, dos tempos econtratempos (em que) a histria de vida faz construirum tempo prprio que lhes d uma consistnciatemporal especfica, uma histria (Pineau, 1987, p.121).No presente texto, procura-se compreender (semavaliar) como para os professores historiados seconstruram algumas das dimenses educativas, dosmodos interativos, dos princpios e valores que

    norteiam os seus comportamentos, enfim, vertentesdas suas identidades.

    Prosseguindo numa linha interacionista, aapreenso dos significados atribudos por cadapessoa-professor ocorrer na interao social pelo quea compreenso dos pontos de interseco entre abiografia e a sociedade se torna essencial. Nestaperspectiva, a interpretao que cada sujeito d suavida corresponde a um ato partilhado com osreferentes prximos ou distantes - a famlia, os amigos,os colegas de trabalho, os alunos, as comunidades,os investigadores, as figuras pblicas ou annimasetc. Repescando uma posio da antropologia cultural,Dubar (1991) valoriza a incorporao progressiva dacultura da sociedade de pertena na formao e nodesenvolvimento de cada ator social, salientando ocarter construtivo e participativo do sujeito nesseprocesso. Para este autor, a identidade profissional um produto de sucessivas socializaes, valorizandoa importncia da interao social dos atores sociaisnos contextos que habitam. Segundo o mesmo, asidentidades so produtos de uma dupla transao:uma transao biogrfica, que traduz um processotemporal de construo de uma identidade social, euma transao relacional ou estrutural, quecorresponde aos processos relacionais aos atores emespaos estruturados. A primeira transao pode serde continuidade ou de ruptura, enquanto a segundapoder ser de reconhecimento ou de confronto.

    Dentre as quatro linhas principais em que sepodem integrar as histrias de vida, segundo Finger(1989), opta-se pela proposta de Ferrarotti (1983), namedida em que interessa explorar a articulao e astransaes entre as experincias vividas, procurandosaber como diferentes estruturas profissionais - aformao, os contextos de trabalho, a ao associati-va -, articulam-se com as estruturas pessoais - infncia,relaes sociais (familiares e outras), percursos de vida,valores, num processo espiral de mltipla influnciado indivduo com o todo social. Ferrarotti (1983, p.51)defende que Se ns somos, se cada indivduorepresenta a reapropriao singular do universal sociale histrico que o cerca, ns podemos conhecer osocial a partir da especificidade irredutvel duma praxisindividual.

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    Giddens (1993, p.96) diz que A vida social produzida pelos seus atores, precisamente nos termosda sua constituio e reconstituio ativas de quadrosde significado pelos quais organizam a suaexperincia. Ao contarem as suas histrias de vida,as professoras esto a fazer essa Reconstituio ativade significados s facetas que consideram maisrelevantes nas suas vidas. Segundo Schutz (1974), avida quotidiana um processo que envolve sistemasde relevncia em constante mudana, de acordo como entrelaar ou a sobreposio de hierarquias deintenes do agente. Assim, ao contar as suas histriase sabendo de antemo que se pretende procurarcompreender como a aprendizagem da profisso temocorrido ao longo da vida, previsvel que selecionemdo sistema das experincias vividas Sriessobrepostas de temas e horizontes (Giddens, 1993,p.44), que, na sua subjetividade, parea-lhes estaremligadas a essa dimenso. Ao contar a sua histria devida, cada ator social procura transmitir linearidade,sequencialidade e singularidade, que so, no entanto,aparentes, na medida em que a vida de cada um Um fluxo contnuo de atividade com finalidade, eminterao com outras e com o mundo natural(Giddens, 1993, p.100), o que implica que cada vidaesteja sujeita s inflexes que os outros e ascircunstncias introduzem.

    Giddens (1991, p.64) entende que cada um, aocontar a sua vida, utiliza estratgias para desenvolveruma noo coerente da prpria histria de vida comoum meio essencial para escapar priso do passadoe abrir-se para o futuro. Os atores (sujeitos) selecionamintencionalmente incidentes e detalhes, organizamtempos e sequncias, empregam uma variedade decdigos e convenes culturais (Carter, 1993) de formaa tentar transmitir alguma segurana ontolgica dosseus percursos.

    Aprendendo com as histrias de vida deprofessoras

    Como dito anteriormente, privilegiou-se aconstruo do conhecimento a partir da voz dosprprios sujeitos de ao, ou seja, neste caso, tra-balhou-se com 18 histrias de vida de professoras dos

    primeiros nveis, ou seja, com educadoras de infncia(profissionais da docncia que trabalham com crianasde at 6 anos) e professoras do 1 ciclo (profissionaisda docncia que trabalham com crianas de 6 a 10anos). Utilizar-se-, a partir deste ponto, o designativofeminino, uma vez que corresponde realidade socialmais comum destes grupos profissionais.

    Nas Histrias de Vida de Educadoras de In-fncia (Sarmento, 2002), tnha-se identificado algunscontextos centrais para a construo da suaidentidade: a famlia, os amigos, os pares, as escolasde formao inicial, os jardins-de-infncia. O contatocom outras histrias permitiu alargar o nosso campode conhecimento sobre as formas como estasprofessoras tornam significativas, na sua ao quoti-diana, as interaes que estabelecem ao longo davida pessoal-profissional.

    Numa breve introduo, poder-se dizer quenestas professoras se verificou a preocupao emtransmitir uma noo de continuidade de suas vidas:o eixo diacrnico constitudo pelas experinciaspassadas, pelos valores (re)construdos nos diferentescontextos habitados (famlia, escolas, associaes etc.),pelas opes tomadas e pela formao recebida expresso como integrado num contnuo justificvel.A configurao da sua identidade atual parece estararticulada entre esse passado vivido e refletido e ainterao que realizam atualmente com os diferentescontextos que habitam, entendendo-se como numponto situado num espao e num tempo que projetafuturos em que cada uma se assume como ator socialativo. Cada uma selecionou um conjunto de situaesde vida identificadas como momentos fundadores etempos decisivos, construindo uma iluso biogrfica(Bourdieu, 1986) a partir da qual querem transmitir aideia de que possuem uma vida com sentido. Nainterpretao sobre estas histrias de vida possveldesocultar uma forte articulao entre os eixos devida pessoal e os eixos de vida profissional: uns eoutros parecem estar inter-dependentes econdicionarem-se.

    As aprendizagens da profisso em famlia

    A defesa de uma infncia feliz para umdesenvolvimento e uma insero social equilibrados,

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    ainda que muitas vezes referenciada como difcil edura, alicerada como um mito nos discursos destasprofessoras. Mais ou menos explicitamente, todasrealaram que a forma como experienciaram a suainfncia - por confronto ou em identificao -, temtido influncia na forma como se relacionam com ascrianas e nas reas que selecionam como prioritriasno seu trabalho.

    As professoras recrutam muitas vezes asmemrias da sua infncia em famlia a trs nveis:

    1) Por um lado, como reconhecimento peloesforo sofrido pelos pais na perspectiva degarantirem uma mobilidade social ascendente dosfilhos: conta a Auta que:

    Toda a gente que nos conhece sabe que aqueles

    pais fizeram tudo o que podiam fazer, pois s com

    um ordenado e com 7 filhos a tirar um curso, nem

    eu sei como se conseguiu fazer tanta ginstica

    financeira para se conseguir atingir o que se

    conseguiu. Houve vrios fatores que contriburam

    para que ns todos estudssemos, apesar de

    sermos de uma famlia muito humilde e bastante

    pobre em termos de recursos financeiros [] e isso

    devemo-lo ao serem os dois irmos mais velhos

    rapazes e quererem ir para o Seminrio []. A

    minha me no estudou [] por isso tentou dar-

    nos aquilo que ela queria que lhe tivessem dado e

    no deram.

    2) Por outro lado, como formativa de prticaseducativas pelo exemplo das atitudes seguidas pelospais: tambm a Auta que nos relata que: O meu paiera uma pessoa que no mandava, no se impunha, o

    meu pai sempre nos perguntava se o queramos ajudar,quem queria ir com ele para o campo, quem queria

    ajud-lo e ento todos ns s queramos ajudar porque

    ele no pedia. J a Irm Georgina nos salientara que ame, pessoa simples e sem grande cultura, tendoaprendido a ler e a escrever com os filhos, era umagrande pedagoga, na medida em que aliava asegurana afetiva compreenso dos interesses enecessidades dos seus, diversas das que sentiraenquanto criana e adolescente. As opes eramsujeitas a uma reflexo em conjunto, procurando ame que os filhos se alicerassem em racionalidades

    conscientes, ajudando-os a suportar os riscos quecorriam. No os substituindo, assumia-se como ummodelo de Educadora que deixa o outro crescer e ser ele

    prprio".

    3) Num terceiro nvel, referindo-se s prticasde confronto dos filhos com os pais com o propsitode levarem por diante os seus objetivos: a Cndida,vivendo a infncia numa altura em que adiscriminao de gneros se evidenciava nosdiscursos do dia a dia, - Um dia ouvi a me dizer: Sefosse rapaz ainda v! [...] mas no. Nem que fosse rapaz.Estudar no! Nem temos posses [] -, utilizava todas asestratgias para superar essas prticas que sentiacomo constrangedoras: Continuei a guardar todos osapontamentos e todos os livros da minha 4 classe, que

    consultava muito frequentemente para que nada me

    esquecesse. Como no havia livros nem jornais l em casa,

    eu todos os papis que apanhava pela rua eu lia.Tambm a Fernanda, terceira de sete filhos,confidencia como se sentia revoltada por s usarroupa e calado estreada pelos irmos, por ter quePartilhar a parte debaixo de uma cama de casal,juntamente com um irmo mais novo porque

    cabeceira esto os mais velhos, que quando a tia Dade

    fez uma boneca de trapos para a minha irm mais velha

    se esqueceu de mim que era mais nova [], mas essemal-estar, em vez de a submergir, tornou-a umaCriana independente, curiosa, teimosa, persistente e

    ousada.

    A famlia tambm recrutada como muitoinfluente em decises profissionais, sobretudoquando estas exigem esforos de conciliao entre avida profissional e a vida de trabalho, esforos essesque so mais prementes nas professoras-mulheres,dado os mltiplos papis sociais que assumem. ACndida, professora reformada, que desenvolveu a suaatividade profissional num perodo significativo detempo, numa poca de grande precariedade (antesdo 25 de abril), conta que Quando chegava escola jtinha trabalhado mais do que muita gente trabalha um

    dia inteiro: cestos de erva cortados para os animais,bacias de roupa lavadas no tanque pblico da freguesia,

    os animais prontos, o almoo adiantado []. Semmostra de cansao!. Este sem mostra de cansao era

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    uma das estratgias utilizadas para combater osesteretipos sociais da altura segundo os quais oespao da mulher era o lar pelo que as que ousavamultrapassar a porta de casa no podiam queixar-se.Aquelas, como a Cndida, que o fizessem tinham quese sentir capazes de acumularem todas as funesinerentes a uma mulher casada e com filhos, segundoo construto social de que o trabalho domstico e oacompanhamento das crianas pequenas eram ()da responsabilidade feminina.

    Neste balano retrospectivo sobre os seuspercursos pessoais e profissionais em que cadaprofessora produz a sua vida, o exerccio da profisso indicado como um polo central de investimentoque confrontado com esse outro polo deinvestimento que a famlia. No se pode ignorarque estas professoras so mulheres e vivem numasociedade que continua muito marcada por umarepartio de tarefas e de papis entre os gneros queredundam numa acumulao de responsabilidadespara as mesmas (Gelles, 1995). Ainda que nos seusdiscursos procurem racionalizar que h um espao eum tempo para a vida profissional e outro espao eoutro tempo para a vida pessoal, no quotidianoparece no haver uma distino clara entre a vidapblica e a vida privada. A escolha dos seus lugaresde trabalho est condicionada pelo estatuto civil pelofato de terem ou no filhos e, na sua existncia, pelaidade dos mesmos; por outro lado, realizar um cursode formao especializada ou comprar uma casa estdependente das possibilidades econmicas que asituao de emprego d ou da efetivao prxima daresidncia familiar que garanta a possibilidade de ase fixarem.

    A construo de saberes relacionais articula-se com o prprio desenvolvimento profissional dasprofessoras, desenvolvimento esse que decorre dosvrios papis sociais que desempenham: a observaoque realizam junto aos filhos ou a outras crianas domeio familiar, por exemplo, ajuda-as a tomar decisescom os alunos. A experincia enquanto mes muitasvezes recrutada para o tipo de interaes quedesenvolvem com as crianas. Na defesa dareproduo dos papis familiares, relata-nos a Manuela

    um episdio em que um menino lhe diz: professora,tu at s mesmo como minha me, at mais, porque os

    meus pais esto na Suia e eu passo muito mais tempo

    contigo do que com eles, garantindo que pretendemanter este relacionamento com base no afeto atao fim da minha carreira.

    Mas as experincias no cenrio escolar sotambm evidenciadas como influentes nas prticaseducativas familiares - O fato de sermos professorasacho que nos ajuda, pelo menos quando os nossos filhosandam na primria. Se calhar torna-nos mais exigentes

    com eles (Mariana) -, o que revelador da continuidadeque estabelecida por estas pessoas que so mes eque so professoras. A reflexividade crtica sobre oseu desempenho profissional decorre, assim, do seudesenvolvimento enquanto adultas.

    As aprendizagens da profisso em contextosquase informais

    As experincias realizadas ao longo da vida,em contextos mais ou menos formais, soreferenciadas como tendo uma relevnciafundamental quer na opo pela via profissional deprofessor, quer na seleo de atitudes pedaggicas.Associando-se a uma crena segundo a qual asidentidades so construdas de uma forma cooperadaentre os atores sociais e que, como tal, so revisveise reconstruveis (Lopes & Ribeiro, 1995), estasprofessoras procuram transmitir que as opes finaisso suas e decorrem das aes reflexivas produzidasnas interaes que realizam com outros atores sociaisem contextos diferenciados.

    Com um sorriso espelhado no olhar, a Anarelembra a sua pertena Associao Guias dePortugal, em que ingressou pelos seis anos, a partirdos quais passou a acampar, a conviver com outrascrianas, a liderar a sua patrulha, atividades que Essassim, so experincias da vida que me marcaram. Estaexperincia de aprender com o outro resulta, emmuitos casos, em referenciais profissionais precoces,como diz a Ana, referindo que A educadora que eu sou um bocado o resultado da pessoa que eu sou, acho que

    o guidismo me influenciou, sim, de certeza. O guidismo

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    marca muito a nossa relao com as pessoas. Nsconvivemos com os mais novos, com os mais velhos.

    Foi cedo que a Milena iniciou a sua atividadede catequista, o que referenciado pela mesma comouma faceta importante da sua vida, E talvez por issono me tenha custado muito ter ido para professora,

    pois j estava habituada a lidar com crianas e gostavamuito. Que dizer ento que como diz Maria Real, quedeu os primeiros passos na socializao com aprofisso como professora, aos 10 anos, porsolicitao dos professores da escola que frequentavaque lhe pediam que desse aulas aos colegas no perodops-letivo: Eu queria ser professora, eu queria ensinar!Deixava-os brincar mas depois fazamos tudo o que os

    professores mandavam []. Eu era to boa como eles!Corramos por cima das carteiras, a ver quem corria maise quem no caa. Os outros ficavam a ter conta que a

    professora no viesse. Este ambiente ldico era, porvezes, subvertido pela reproduo de prticasobservadas - Mas quando eu pegava na cana, cuidado[]. Tinha de haver respeito! - na perspectiva degarantir que o mandato docente seria cumprido.

    As aprendizagens da profisso na mobilidadeprofissional

    Fala-se na aprendizagem da profisso ao longoda vida; mas a prpria vida profissional que muitasvezes leva ao desinvestimento. Diz-nos a Milena queEnquanto professora agregada tenho conscincia deter sido sempre uma profissional responsvel, mas nunca

    criando grandes vnculos escola, pois sabia que no ano

    seguinte iria para outra. Sendo esta uma profissorelacional por excelncia, a desvinculao afetivagerada pelo sistema de mobilidade profissional constantemente referida pelas professoras como fatorde desestabilizao das prprias e das crianas. Navoz da Ftima Os meninos no eram culpados de nada,no tinham regras [...] eles apanhavam sempreeducadoras de infncia continentais mortinhas por se

    virem embora, o que reforado pela narrativa daFrancisca, que suspira Voltaram as colocaes e todaa ansiedade que lhe inerente. Todos os anos caras novas,

    novos costumes []. Tudo era novo! Assim, com o decorrer

    dos anos, fui-me habituando a no me ligarafetivamente s crianas, pois o fim do primeiro ano detrabalho foi muito doloroso para mim, comprovandoa afirmao de Formosinho (1998, p.34), segundo oqual so desenvolvidas Prticas administrativas queparecem pressupor que para o Estado o ideal umaescola instabilizada.

    Esta mobilidade, na voz das professoras,produz um envolvimento profissional precrio,levando ao no desenvolvimento de algumasdimenses da profissionalidade. O trabalho deenvolvimento com os pais e com as comunidades,por exemplo, exige a construo de empatia e deconfiana mtua que possa influenciar quer arepresentao das comunidades sobre a escola, quera incorporao pelas professoras de que a aoeducativa um projeto comunitrio.

    Os receios face aos problemas que amobilidade coloca s mulheres - esposas, mes defamlia, profissionais -, obrigam a que, as que podem,optem pelo sistema privado (e aqui as oportunidadespara as educadoras de infncia so maiores do que asdas professoras do 1 ciclo), com cujos modelos degesto muitas vezes no se identificam, em que sabemque tero uma autonomia reduzida e noencontraro a gratificao econmica igual dosistema pblico. Ainda que temendo que essa opolimite as suas possibilidades de desenvolvimentoprofissional e lhes crie obstculos nas suasexpectativas de inovao e mudana, a opocontinua a justificar-se pelas oportunidades queoferece de facilitar a estabilidade familiar.

    As aprendizagens da profisso com os pares

    Um frum muito importante para aaprendizagem da profisso e, ao mesmo tempo, paracombater o isolamento prprio de uma profisso quese desenvolve muitas vezes em contextos de reduzidadimenso o contato com os pares profissionais, ouseja, com outros professores ou outros tcnicos deeducao.

    Antes ainda da inscrio numa associao, asprofessoras se referem vantagem de trabalharem

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    com colegas - O que valia era sermos duas eapoivamo-nos nas diversas situaes (Francisca);Depois do jardim fazia grandes passeios pelo campo,

    com outras colegas, pois no havia mais nada parafazer (Paula) -, o que evidencia como o isolamentopode, por si, potenciar a colaborao educativa pelanecessidade de as professoras vencerem o mal-estarque sentem em situaes de solido. Algumassituaes quotidianas, por exemplo as deslocaespara a escola, feitas muitas vezes num mesmo carro,que vai distribuindo os professores de uma reageogrfica, so aproveitadas neste caso pela Milena,que lembra amos quatro colegas para a mesmaescola, cada uma de ns levava o carro uma semana e

    aquela conversa de 1 hora e tal de viagem fazia bem;

    falava-se das didticas, dos alunos, falava-se de tudo eachava que aquilo me ia fazer falta. E fez. Na suanarrativa, refere-se a um novo momento de mudanade escola para outra de lugar nico, na sua prprialocalidade (logo, nem dos contatos de deslocaopodia lucrar), o que comprovativo de como amobilidade dificulta prticas associativas.

    Esta situao de solido profissional pode sersentida tambm em contextos de maior dimenso,quando, como diz a Ana, educadora numa instituioprivada com 150 crianas e corpo tcnico respetivo,Em termos de auxiliares e de colegas sentia-me muitodesacompanhada, nas horas mais crticas eu estavasozinha.

    O contato com colegas pode ainda serprodutor de aprendizagem pelo erro que se observa.A Auta, destacada um ano como professora de apoioeducativo, na primeira vez que entrou na sala de outraprofessora para trabalhar com uma criana carentede apoio especial, incrdula, relata que a colega, quemal a viu, disse-lhe: A professora no entra na minhasala. Se quiser trabalhar, pegue no menino e v ali paraa sala ao lado. Acho que se calhar era eu que tinha quetomar essa deciso depois de ver se resultava ou no. Fuiposta na rua com o mido.

    Pese, embora, o fato de a socializao entreprofessores ser segmentada pela pertena a um nveleducativo, nestas professoras historiadas so referidosepisdios de colaboraes positivas, de interaes

    com as colegas ora professoras primrias, oraeducadoras de infncia, que, investindo emmodalidades associativas informais, viabilizamprojetos pedaggicos, partilham de experincias eda construo de novos saberes.

    A pertena a uma equipa multidisciplinar,ainda que rara nestes nveis educativos, referenciadacomo especialmente formativa: a Snia, por exemplo,optou por se manter a trabalhar numa instituioprivada Primeiro porque tinha a vantagem de tertcnicos de muitas reas, o que muito importante

    porque nas reunies de equipa abordvamos os casos e

    eu tinha a possibilidade de conhecer a perspetiva dos

    diferentes tcnicos, de organizar o trabalho em conjunto,

    eu gostei muito.

    As aprendizagens da profisso na escola

    A maior parte do tempo de vida dosprofessores passado na escola, primeiro enquantoalunos depois como professores, da que tenham sidomuitas as narrativas que ouvimos sobre esse contexto,testemunhos esses que se articulam comaprendizagens da profisso: ora por identificao, orapor confronto.

    As memrias que estas professorastransportam da sua infncia na escola so revestidasde uma imagem positiva de resto como a de toda ainfncia, como j foi dito, ainda que contraditada comepisdios de dificuldade. Sobretudo as professorasmais velhas e oriundas de meios sociais maispopulares, em que a escolarizao feminina no eramuito valorizada, referem que tiveram que convenceros pais sobre a importncia da sua frequncia. Estasestratgias emancipatrias que ecoam das vozes dasprofessoras vo ocorrendo em diferentes momentoscrticos das suas vidas, nos quais se jogam conflitoscognitivos reconstrutores de percursos de vida e deidentidades profissionais.

    A escolha da profisso muitas vezesjustificada pela socializao prvia que se tem com amesma - a opo faz-se numa altura em que ainda se aluno -, e sobretudo pelas memrias afetivas que se

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    Rev. educ. PUC-Camp., Campinas, 18(3):237-248, set./dez., 2013

    possui de algum professor. o caso da Auta, que,confrontada com a impossibilidade, por dificuldadesfinanceiras, de realizar o curso de belas-artes, optoupelo ensino primrio porque A recordao que eutenho da escola e isso talvez tenha contribudo para queeu aceitasse muito bem quando se ps a hiptese de euter que ficar na Escola Normal de Viana, portanto vir aser professora primria, foi ter muito boas recordaesda minha professora da 1, 2 e 3 classes. Tambm aSnia referencia uma professora De Histria, acho que sempre uma referncia que eu tenho porque foi semprea diretora de turma e uma pessoa que eu sempreadmirei, at porque gostava muito da personalidadedela, pronto, era assim uma pessoa com as suas regrasdefinidas e no era de outra maneira e bastante coerentecom aquilo que vivia e que depois exigia e fazia tambm.

    Se o mais comum encontrar referncias aprofessores significativos, ouvem-se tambm, comalguma insistncia, narrativas reveladoras daimportncia do reforo vindo de colegas - ainda nafase de alunos ou j na fase de professores -, comomuito importantes no reinvestimento na formaoprofissional.

    A Cndida, mulher lutadora com o propsitode ser professora, afirma o papel fundamental de umacolega que notou que eu era um bocado acima da mdiae que dizia que eu deveria continuar a estudar [] e disse-me: eu acho que o teu futuro deveria ser estudar porquerealmente no faz sentido no prosseguires, isto numaaltura em que trabalhava como regente e que tinhaque optar ou por abandonar a profisso ou por realizaro antigo 5 ano e fazer o curso normal do MagistrioPrimrio. Assim, ao mesmo tempo que se preparavapara acabar o 5 ano - situao que a obrigava adeslocaes em bicicleta e que lhe trouxe algunsproblemas de sade -, continuava a funo de regentee Ainda dava apoio aos alunos com mais dificuldades.Os resultados positivos alcanados por estesconstituam mais um reforo para a Cndida, o quemostra a importncia e as possibilidades dosdiferentes tipos de interaes humanas e profissionaisno contexto escolar.

    As escolas de formao inicial so entendidascomo contextos privilegiados de aprendizagem da

    profisso, de formas e em reas diversas, as quais noso alheias importncia das lideranas e do ideriodas mesmas que se repercutem em prticas formativasmeramente tcnicas ou, em muitos casos, maisintegradoras. A Belisa, referindo-se mstica quediziam existir sobre a Escola Maria Ulrich, reala asperspectivas e prticas formativas da mesma que sebaseavam no dilogo e no confronto intra einterpessoal: Fazia as pessoas falarem na medida emque achava que para se ser educador um indivduo tinhaque ser responsvel por aquilo que era, pela pessoa que

    era e tinha que assumir determinados valores, tinha que

    assumir aquilo que pensava, no podia dizer hoje umacoisa, amanh outra e depois outra como o vento. AFrancisca, por seu turno, relata as mltiplasaprendizagens conseguidas a partir das estratgiasde desenvolvimento do curso: Lembro-me damanifestao com toda a escola do Aleixo contra o seu

    encerramento, o teatro realizado por ns no cinemaTrindade, a animao do Castelo do Queijo, o trabalho

    de campo sobre a prostituio [] ajudou-me a ver ooutro lado do mundo, contactando com ele, descobrique afinal no era tudo to cor-de-rosa como me

    tinham ensinado. No fim dos 3 anos do curso, no s

    adquiri conceitos sobre a infncia, o ser criana, bemcomo reconstru conceitos bsicos que j tinha e, acima

    de tudo, senti que cresci bastante com estas

    aprendizagens, o que reflete a importncia dapedagogia na formao de professores.

    Alm ou mesmo aqum dos saberes das vriasreas disciplinares, os professores realam aimportncia do clima organizacional que viveram nasescolas de formao inicial, quer como investidoresde posturas profissionais especficas - O ambiente quese viveu aqui ajudou muito, at porque muitos dos nossosprofessores j foram ou educadoras ou professores doensino bsico e... eu no senti assim um choque em termosde [...] passar de estudante a profissional no foi muitocomplicado (Snia) -, quer, em alguns casos para amesma pessoa, como experincias emocionaisdesgastantes:

    A memria mais negativa a de Movimento e

    Drama, eu detestei, no gostei nada; primeiro no

    gostava do professor, no nos dvamos bem e

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    ento, eu no gostava, no que [...] eu gosto

    imenso de teatro, alis as expresses uma coisa

    que me interessa e que eu [...] pronto, nos meus

    hobbies e nos meus tempos livres [...] agora, e com

    ele no dava, no dava porque acho que ns, os

    dois, no funcionvamos bem e, e pronto [...]

    quando no funciono bem com algum um

    bocado difcil.

    As experincias vivenciadas nas escolas deformao inicial valem muito, tambm, pelaconstruo das redes que se estabelecem entrecolegas, pilares fundamentais nos processos iniciaisde insero profissional. Essas redes reorganizam-seao longo da vida profissional pela disperso que setece nas trajetrias de cada uma e pela integrao denovos atores significativos na teia de relaespessoais-profissionais. Voltar escola numa fase maistardia, depois de alguns anos de carreira profissional, muitas vezes um ato sustentado na fora dessasredes. Na sua histria de vida, a Maria considera comoespecialmente positiva a possibilidade de realizaode um curso de estudos superiores especializadoscom um grupo de Educadoras e professores do 1 ciclo,tive de facto uma turma fantstica l, com a qual sesentiu muito identificada por Aquilo que me deu emtroca de experincias, conhecimentos, porque me abriu

    essa tal janela que eu pensava estar fechada. Aparticipao em formao numa fase adiantada dacarreira profissional, referenciada igualmente pelaPaula, relevante como forma de redinamizao dopercurso profissional pelo contato que proporcionacom outras experincias e com situaes diferentes,o que gerador de novo entusiasmo pela profisso.

    A aprendizagem da profisso com as crianas

    O principal contexto de vida em que asprofessoras fazem aprendizagens profissionais , nassuas narrativas, o espao de relao que constituemas suas turmas. A ao educativa entendida comoum projeto de vida num processo de formaopessoal-profissional, projeto esse construdo com ascrianas e com as comunidades. Ao fazerem das suasprticas uma ao total, em que, ao mesmo tempo

    que se trabalham contedos e se experienciamdiferentes expresses, refletem-se e constroem valorese saberes com as crianas, as professoras reavaliam-se continuamente. A Ftima foi Doente para casa, fiqueiincomodada, no conseguia dormir, face reao deangstia e mal-estar (no esperada) de uma crianaquando a colou a uma cadeira com fita-cola comoestratgia para lhe mostrar que tinha que estar sentadapara acabar o trabalho. A Lurdes, numa altura em quese viu a braos com a dificuldade de trabalhar com ascrianas por falta de material, levou a questo a umareunio de pais para procurar decidir com eles oquantitativo a pagarem para a caixa escolar. Mesmocom tudo combinado: Chega-se ao fim do ano ealguns no pagam [...] tenho sobretudo um, coitadinho[...], manifestando assim que a compreenso face scondies reais de cada famlia e a superao dessassingularidades so feitas com vista a facilitar aigualdade de oportunidades s crianas pelas quais responsvel. A Mariana relata as lutas que teve quetravar para vencer os esteretipos de um delegadoescolar que duvidou da sua capacidade de trabalharnuma escola com muitas crianas problemticas (comproblemas a nvel de alcoolismo e roubo), de querecorda em especial a histria do Joo:

    Havia um mido, o Joo [] era um mido queroubava [] muito, muito agressivo [] bebeutanto que entrou em coma alcolico [] tinhafeito asneiras e estava a dormir nos buracos do

    monte, nuns penedos [] juntinho escola tinhaum poste de alta tenso e o Joo tinha subido aos

    postes e ameaava pendurar-se nos fios. Um dia

    levou-me dois porquinhos para a escola para me

    provocar. Os porcos s roncavam l dentro. E

    depois que teve piada: vir com os midos c parafora, ir buscar os porcos, lev-los para o monte,

    no ligar situao, deixar-me envolver. Ele foi-se

    apercebendo que eu estava do lado dele, que era

    amiga dele, que o ajudava e ganhou confiana e

    entretanto apaixonou-se mesmo. Sentava-se no

    fundo da sala e escrevia-me poemas. E no deixava

    nenhum fazer barulho.

    Embora posteriormente a situao do Joo setenha agudizado e o processo tenha passado parauma instituio de apoio especializado, a Mariana

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    Rev. educ. PUC-Camp., Campinas, 18(3):237-248, set./dez., 2013

    reconhece as mltiplas aprendizagens pedaggico-relacionais que a mesma gerou.

    A insero nas comunidades e a relao queestabelecem (ou no) com as mesmas evidenciada,pelas professoras que a ela se referem, comocolaborativa e gratificante, permitindo, para alm deajudar a combater o isolamento, como j referimosatrs, reforar estratgias de inovao pedaggica.Reportamo-nos, por exemplo, a um episdio narradopela Auta, passado no ano letivo de 1972-1973, numperodo de grande controle estatal:

    Nessa freguesia ainda havia escola feminina e

    masculina e eu com a minha irm (tambm

    professora) e com o acordo de alguns pais, como

    se tornava difcil trabalhar com as 4 classes e eu

    tinha 4 classes femininas e a minha irm tinha 4

    classes masculinas, resolvemos logo no fim de

    outubro transformar as turmas em classes mistas.

    Mas tudo muito em segredo, mas tudo muito em

    segredo, com medo da inspeo da Delegao

    Escolar e da Direo Escolar, portanto s entre ns

    e alguns pais que concordaram, porque tambm

    era vantajoso para os filhos.

    Esta socializao entre pais e profissionaisvividas muitas vezes de forma ldica - Nunca meposso esquecer do dia em que nevou e o boneco enorme

    que fizemos com as crianas e as guerras de neve com os

    pais, avs e tios das crianas (Francisca) -, assumidacomo um cenrio de reconstruo de olhares sobreas crianas e de saberes, quer para os pais quer paraos profissionais.

    Consideraes Finais

    Da leitura destas histrias de vida e da suaarticulao com o conhecimento anteriormenteproduzido sobre as vidas dos professores, possvelenunciar algumas ideias que parecem centrais sobrea relao entre contextos de vida e aprendizagem daprofisso. Assim, em primeiro lugar, evidencia-se arelevncia da profisso professor como profisso dohumano (Boltanski, 1982), em que o ser pessoa ocentro em torno do qual as aes pedaggicas

    ganham significado. Da a importncia da formaopessoal ao longo da vida ser propiciadora (ou no) daconstruo de competncias relacionais queviabilizem o reconhecimento do Outro (alunos,professores, pais) como pessoa com a qual se constriconhecimento. A formao para o exerccio daprofisso professor, como refere Nvoa (2002), no sepode limitar s dimenses tcnicas e tecnolgicas eno acontece s em modalidades formais e nocontexto estrito da escola. Os professores so pessoasque se formam nos seus diversos contextos vivenciaisao longo da vida.

    Formar formar-se (Nvoa, 2002, p.9), peloque as experincias de cada um nas posies queassume nos diferentes contextos e, sobretudo, areflexo que produzem sobre essas mesmasexperincias so sempre significativas e influentes nasua forma de ser professor, seja por continuidade, sejapor oposio a determinadas posturas.

    Os professores identificam como principaiscontextos influentes na sua forma de ser professor afamlia, os amigos, a escola de formao inicial e ospares com os quais se associam informalmente. Asprticas associativas formais, traduzidas pela pertenaativa a uma associao profissional, no so muitocomuns; relatam presena em aes geraispromovidas por uma ou outra associao, mas noidentificam situaes de participao quotidiana nasmesmas. De qualquer forma evidente a importnciaque atribuem ao encontro entre pares, agrupando-sepor afinidades seletivas que lhes permitam algumintercmbio pedaggico.

    A escola central na vida dos professores:passam de alunos a professores, mantendo contatossociais, principalmente dentro deste crculo. Asexperincias pessoais retiram-se muito dasexperincias de trabalho; h uma sobreposio oumesmo integrao das duas reas, o que pode ajudara justificar o isolamento dos professores. Assim, oisolamento tem diferentes sentidos: acontece muitasvezes porque trabalham em escolas de reduzidadimenso, mas h, sobretudo, um isolamento emrelao a outros grupos profissionais, justificado pelofechamento em si prprio, o que, em termos de

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    aprendizagem de uma profisso relacional, comportariscos e pode reforar o corporativismo que, se emcerto sentido positivo na medida em que traduzsolidariedade interna, por outro, pode dificultar aobjetividade na anlise de situaes. No combate aoisolamento dentro do prprio grupo, ganhamimportncia as relaes intergeracionais no mesmo,o que permite cruzar olhares, partilhar experincias ecriar distanciamento para viabilizar perspectivascrticas sobre o quotidiano pedaggico.

    na interao dos professores com as crianase as comunidades que se fazem as principaisaprendizagens no tcnicas, mas fundamentais daprofisso. No confronto com situaes reais, comcrianas no padronizadas, com a diversidade depopulaes, aprendem outra forma de ver o mundo,o que os obriga a racionalizar emotivamente sobre aao de professor: algum que ensina e que transmite,mas, sobretudo, que tem que aprender como tornarsignificativos os saberes com as crianas e consigoprprio, em vista finalidade ltima da educao que promover cada um enquanto pessoa.

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    Recebido em 29/10/2013 e aprovado em 10/12/2013.