Apostila Sobre Linguagem Gestual Brecht

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    Para a disciplina Ensino e Prticas Educativas 3, estudaremos aspectos

    da linguagem corporal, sob diferentes pontos de vista de alguns educadores,

    pensadores, artistas, homens engajados no seu tempo que, ou de uma formaespecificamente social, poltica ou profissional, ou abarcando vrios desses

    aspectos da vida ao mesmo tempo, trouxeram significativa contribuio para o

    conhecimento humano.

    De Brecht, dramaturgo alemo, veremos como ele lidou com a

    linguagem gestual; para fins didticos, tomei a liberdade de reproduzir

    determinados trechos que particularmente nos interessam, do texto de Willi

    Bolle,A linguagem gestual no teatro de Brecht1.

    1Este texto poder ser encontrado na ntegra na separata da Revista Lngua e Literatura, n5. SO

    PAULO, USP, FFICH, 1976.

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    Trechos extrados do texto de

    BOLLE, Willi. A LINGUAGEM GESTUAL NO TEATRO DE BRECHT.

    No ensaio Sobre poesia sem rimas com ritmos irregulares (1939),Bertolt Brecht explica a elaborao de uma nova tcnica de linguagem, tantodo verso, quanto da prosa, que ele chama gestual2. Isto significa que aexpresso verbal deve impregnar-se inteiramente do gestus da pessoa quefala. Assim, a frase bblica Arranca o olho que te aborrece pode ser expressacom maior fora gestual da seguinte maneira: Se teu olho te aborrecer,arranca-o!. De fato, Lutero, tradutor da Bblia para o Alemo e empenhado emcaptar os fatos lingusticos na boca do povo, optou por esta formulao.

    A referncia figura do Reformador e a utilizao do termo latino gestus,empregado por Ccero no sentido de atitude do corpo, em particular gestosdo ator ou do orador so significativas: Brecht focaliza a linguagem na suafuno pblica. No mesmo sentido vo suas observaes sobre os gritos dosvendedores de jornais e os coros improvisados por manifestantes operriosnas ruas de Berlim. Como uma das circunstncias histricas dessa novartmica, gestual, transparece a percepo de fortes dissonncias sociais.

    A linguagem gestual aparece como um dos traos mais marcantes daobra de Brecht, como um instrumento de expresso que atinge amplasdimenses comunicativas e que subjaz no apenas s suas peas de teatro,

    mas tambm produo potica e aos escritos tericos. Este trabalho seprope sistematizar as informaes tericas de Brecht sobre linguagemgestual, sem a inteno de estabelecer um sistema normativo. O conjunto dasdefinies visto com relao a dois momentos histricos: 1) as circunstnciasda gnese do teatro pico, na Alemanha dos anos 1920 a 1933; 2) a atuaoda dramaturgia brechtiana na teoria esttica, a partir dos anos 50.

    Definies preliminares

    A principal fonte de informaes sobre a teoria brechtiana da linguagemgestual so seus Escritos sobre o Teatro3. indispensvel definir

    preliminarmente trs termos-chave, semelhantes entre si e que, no entanto,no se confundem: Gestik Geste Gestus,

    Brecht estabelece uma separao entre Gestik(comunicao por meiode gestos) e Pantomime (pantomima): esta expressa tudo sem palavras,mesmo a fala, e considerada exclusivamente como manifestao artstica, aomesmo ttulo que a pera, o espetculo teatral, a dana (ST 6:212)4. A

    2ber reimlose Lyrik mit untegelmssigen Rhythmen, in: Gesammelte Werke 19, Suhrkamp

    Frankfurt/M., 1975, p. 398.3Schriften zum Theater1-7, Suhrkakmp, Frankfurt/M., 1963-1964.

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    Schriften zum Theater6, p. 212.

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    proposta de Brecht consiste em estudar a comunicao por meio de gestos talcomo encontrada na vida cotidiana, o teatro funcionando como uma espciede laboratrio.

    Elemento constitutivo da Gestik o gesto individual (Geste) (ST 6: 213).Expresso em lugar de palavras, sua compreenso dada pela conveno,como (na nossa cultura) o curvar afirmativamente a cabea. Brecht distinguegestos ilustrativos, como os que descrevem o tamanho de um pepino ou acurva de um carro de corrida, e gestos que manifestam atitudes emotivas, taiscomo desprezo, tenso, perplexidade.

    Com o gesto no deve ser confundido o Gestus. Brecht adverte.Falando de Gestus, no se pretende falar da gesticulao (Gestikulieren): nose trata de movimentos das mos no intuito de frisar ou explicar a fala, mas sim

    de atitudes gerais. Uma linguagem gestual (gestisch) quando se fundamentano gestus, quando revela determinadas atitudes do indivduo que fala,assumidas perante outros indivduos (S1 3: 281). O gestus, portanto, signode interao social. Assim, por exemplo, um homem que vende um peixemanifesta o gestus de vender; um homem redigindo seu testamento, umamulher atraindo um homem, um policial batendo num homem, um homempagando dez homens em tudo isso est um gestus social (ST 4: 31). Outracaracterstica do gestus sua complexidade : seus elementos constitutivospodem ser gestos, expresses mmicas ou palavras, simultnea eseparadamente. As palavras podem estar contidas nos gestos ou na mmica,como acontece no filme mudo. Inversamente, um gestus pode ser expresso

    unicamente por palavras, por exemplo, num discurso de rdio ou de telefone;neste caso, uma determinada postura ou mmica uma reverncia humilde, umtapinha nas costas se projeta dentro das palavras e nelas pode serdetectada. E mais: palavras podem ser substitudas por outras palavras, gestospor outros gestos, sem que haja por isso uma mudana do gestus (ST 4: 32).

    No interessa a Brecht o estudo isolado do sistema dos signos gestuais,mas a sua interao com outras sries semiticas. Mesmo assim, aonipresena do elemento gestual marca uma preponderncia: a projeo dosigno corporal dentro da linguagem verbal. A essa dimenso intersemiticaBrecht d o nome de linguagem gestual5

    Teoria brechtiana da arte

    (...)Em outro ponto, as teorias de Brechte de Lukcs se aproximam. Oautor da Sociologia do drama moderno (1909) se interessava primordialmentepela anlise das interpretaes entre formas de vida e formas de arte6. Brecht,

    5A comunicao por meiio de gestos no teatro de Gerhart Hauptmann foi estudada por Erwin Theodor

    (Recursos expressivos na evoluo da obra dramtica de Gerhart Hauptmann, Boletim n 295 da FFCL da

    USP, 1964, p. 39-61 epassim), sob o nome de linguagem gstiulant, termo esse consagrado pelo

    dicionrio. No caso de Brecht, no entanto, a distino explicitamente feita por ele entre Gestikulieren e

    Gestus/ gestiche Sprache me fez chamar esta ltima de linguagem gestual.6G. Lukcs, Zur Soziologie ds modernen Dramas, in: Scritte zur Literatursoziologie, ed. P. Ludz,

    Lchterhand, Neuwied, 5 1972, p. 261.

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    no ensaio sobre o teatro amador, aponta uma inter-relao semelhante: a arteteatral seria,m por assim dizer, a mais humana, a mais geral de todas as artes,a mais frequentemente praticada, no apenas no palco, mas tambm na vida

    (ST 4: 64).

    Brecht lembra a maneira teatral como se processa a educao do serhumano. A criana, muito antes de ser provida de argumentos, apreende demaneira teatral como tem que se comportar: por exemplo, quando permitidorir ou quando se deve rir. O caso do adulto no diferente, sua educaonunca cessa; so processos teatrais que formam os caracteres, o homemcopiando gestos, mmica, maneiras de falar (ST 4; 63-64). Aqui, Brecht pareceseguir a linha do pensamento de Lucks, embora com uma conceituaomenos rigorosa, o que o faz passar de um domnio para outro com maiorflexibilidade.

    O signo gestual

    (...) a potica brechtiana do discurso gestual (...) trabalha com umacategoria (da teoria semitica7) extremamente flexvel o gestus que visa apercepo da totalidade atravs do pormenor significativo8.

    O cdigo gestual, embora mais antigo, mais elementar, mais primitivoque o cdigo verbal, recebeu sua descrio sistemtica bem mais tarde (pelomenos do ponto de vista da cincia moderna). Na nossa cultura de praxereportar os vrios sistemas sgnicos ao cdigo verbal. Brecht coloca

    explicitamente o problema da tradutibilidade.

    Durante o exlio nos Estados Unidos, elaborou junto com o ator inglsCharles Laughton uma traduo e uma encenao da pea Vida de Galileu.Informa Brecht: O fato desvantajoso de um dos tradutores no saber alemo ede o outro saber s um pouquinho de ingls, exigiu desde o incio arepresentao teatral como mtodo de traduo. (ST IV: 230). Nessaexperincia, Brecht representava tudo num ingls rudimentar ou mesmo emalemo, e Laughton por sua vez repetia a representao da mesma cena emingls correto, de maneiras sempre diferent4es, at Brecht dizer que ele tinhaacertado. Diz Brecht: Fomos obrigados a fazer aquilo que os tradutores com

    melhor domnio da lngua tambm deveriam fazer: traduzir gestos, Pois alinguagem teatral, quando expressa primordialmente o comportamento dosinterlocutores entre si. (ST IV: 230-231).

    A mesma ideia aparece em uma nota de Brecht sobre a tradutibilidadede poemas: Na traduo para um outra lngua, muitas vezes os poemasresultam seriamente danificados, quando se tenta traduzir demais. Talvez sejasuficiente contentar-se com a transposio dos pensamentos e da postura do

    7Observao minha.

    8Outro projetopotico de linguagem gestual foi desenvolvido recentemente por Octvio Paz

    (Conjunciones y disfunciones, Mxico, 1969), com uma anlise comparada do SIGNO CORPO nasculturas hindu, chinesa, mexicana e ocidental.

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    autor. Tentar transpor o que no ritmo do original um elemento do gestus dequem escreve, nada mais. Sua atitude para com a linguagem por exemplo, ainveno de novos modos de dizer, a colocao de determinadas palavras

    numa sintaxe desacostumada - transmitida tambm quando se imita apenasessa atividade, sem deixar que o original prescreva o exato momento.9

    Quando Brecht fala em linguagem gestual, pensa em primeiro lugar naunidade gesto e palavra. A interao entre os dois tipos de signos pode-sefazer num duplo sentido: 1) Do gestus palavra. Na discusso de Antgonecom o coro dos velhos de Tebas (Brecht, Die Antigone de Sophokles, versos748 e seguintes) evitou-se, antes de mais nada, o hbito segundo o qual osatores, antes de longas tiradas, se abastecem com uma emoo mais oumenos suficiente para todos os versos; a alternativa proposta por Brecht evitar qualquer paixo antes ou depois da fala: Caminha-se de verso para

    verso, e cada um deles desenvolvido a partir do gestusda personagem. (STVI: 34).

    2) Das palavras ao gestus. Em cada constelao social, postula Brecht,o indivduo deve ser julgado segundo o que ele mostra de si e segundo o quefaz o que conta so os signos externos. A arte do ator baseia-se mais nacomunicao gestual do que na expresso verbal: tambm as palavras devemser reduzidas a um gestus (ST IV: 31).

    o caso de frisar essa preponderncia da srie gestual, pois o estudodos seus traos distintivos pode3r esclarecer a sua capacidade comunicativa

    especfica.

    Um exemplo, tirado da esfera poltica, em que o gesto se mostra maisforte que a palavra o de Hitler como argumentador (ST V: 95). A uma frase jpronta, declarada com um mximo de fora vocal como verdade inabalvel eindiscutvel, gosta de acrescentar uma conjuno causal, fazer uma pausa eenumerar razes. Vrias dessas razes no possuem carter de raciocnio,mas o gesto o reforo que faz com que o dito se torne argumento. O que lheimporta seduzir o espectador, por via de empatia, com essa postura-impostura de argumentador. Assim, no obstante certos erros de pensamentoque possa cometer, a imagem transmitida a de um orador que raciocina, que

    usa argumentos. No por meio de palavras, mas apesar delas, contra elas tudo isso por obra do gestus.

    O que contribui para tal superioridade do gesto sobre a palavra no apenas o seu carter imagtico, mas o elemento primitivo, corporal,desencadeador de reflexos tudo o que facilita sua gravao na retina e nosmsculos. Brecht recomenda que a encenao no se esquea em nenhummomento que muitos dos acontecimentos e dos discursos so difceis de

    9Die berstzbarkeit Von Gedichten, in GW 19: 404.s expresses grifadas corresponde, no original,

    sempre a mesma palavra: Haltung.

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    entender, de modo que se torna necessrio expressar o sentido bsico j pormeio das posies e das posturas (ST IV: 236). Na pea Katzgraben, acamponesa Kleinschmidt coloca-se frente a Steiner, porque isso uma

    pequena demonstrao e porque assim ele grava melhor o que ela tem a lhedizer. Alm disso, ela no precisar falar num tom demasiadamente rude, poisa postura s por si expressa suficientemente o ataque (ST VIII: 122). Elabora-se sempre um determinado gestus bsico (Grundgestus) que vai alm dosentido individual das frases (ST II: 75).

    Sob este aspecto, a linguagem gestual de u Hitler e de um Brechtparecem aproximar-se de maneira inquietante; teria Hitler sido um ator pico?A diferena reside no fato de o lder fascista ter visado a empatia, ao passoque, no teatro pico, o gestus sempre implica na dimenso dialtica dacontradio do estranhamento. O ator deve marcar, antes de mais nada, os

    traos contraditrios da personagem: o heri, por exemplo, pode ser mostradocomo sendo cruel contra o seu empregado. No permitido ao ator omitir, emnome de uma representao mais cmoda, certos traos individuais que nocalham, sacrfic-los a uma falsa imagem integral (ST IV: 21-22).