Apostila Redefor - Lógica e Filosofia da Ciência

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    Cursos de Especializao para o quadro do Magistrio da SEESPEnsino Fundamental II e Ensino Mdio

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    BLOCO 1

    Sumrio

    1. A Lgica como Clculo Raciocinador .......................................9 1.1 - O Incio da Lgica ........................................................................ 101.2 - A Lgica como Calculus Ratiocinator .......................................... 14 1.3 - A Lgica como um clculo

    raciocinador: consequncias e limites ............................................ 18

    2. Falsificacionismo ......................................................................222.1 - Por que uma definio de cincia importante?............................22 2.2 - O aspecto lgico do critrio de falsificabilidade ............................24 2.3 - O aspecto metodolgico do critrio de falsificabilidade ................262.4 - O mtodo falsificacionista ............................................................282.5 - A generalizao do falsificacionismo ............................................30

    3. A cincia contempornea e a noo de modelo ........................333.1 - Como a Realidade? ....................................................................34 3.2 - A caracterizao da Cincia emprica

    segundo Granger: os modelos ....................................................... 36 3.3 - A verificao do conhecimento cientfico ...................................... 413.4 - Consequncias da definio de Cincia e

    a impossibilidade de um nico modelo da Realidade .................... 43

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    4. A Epistemologia Gentica .......................................................484.1 - Viso geral .................................................................................... 49 4.2 - O incio da Epistemologia Gentica: as questes

    de fato sobre o conhecimento ........................................................ 50 4.3 - Epistemologia Gentica e Psicologia Gentica ............................. 514.4 - Biologia e conhecimento ............................................................... 534.5 - O sistema de esquemas de ao ..................................................... 554.6 - Os perodos da construo das estruturas

    necessrias ao conhecimento ......................................................... 584.7 - Epistemologia Gentica e conhecimento cientfico .......................60

    Bibliografia ................................................................................ 62

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    BLOCO 2

    Lgica e Filosofia da Cincia

    Ricardo Pereira Tassinari

    Professor assistente doutor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP) e pesquisador junto ao Centro de Lgica, Epistemologia e Histria da Cincia (CLECH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atua na rea de Lgica, Filosofia da Cincia e Teoria do Conhecimento. Possui doutorado em Filo-sofia pela UNCAMP (2003), mestrado em Psicologia pela Universidade de So Paulo (USP) (1998), graduao em Fsica (Bacharelado) pela UNICAMP (1992), com iniciao cientfica em Lgica-Matemtica, e graduao em Matemtica (60%, Bacharelado, no concludo) pela UNICAMP (1994). Realizou em 2010, ps-doutorado nos Arquivos Jean Piaget da Univer-sidade de Genebra.

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    Jzio Hernani Bomfim Gutierre

    Possui graduao pela Universidade de So Paulo (1977), mestrado em Filosofia pela Uni-versity of Cambridge (1994) e doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual e Campinas (2000). Atualmente professor doutor do Departamento de Filosofia e do Programa de Ps--Graduao em Filosofia da Unesp. Realiza pesquisas na rea de epistemologia, atuando princi-palmente nas seguintes reas: epistemologia, filosofia da cincia, falsificacionaismo, e ontologia da cincia. Desde 2001 exerce a funo de Editor Executivo da Fundao Editora da Unesp.

    Ementa

    A disciplina, dividida em quatro temas, trata de questes atuais em Lgica e Filosofia da Cincia. No Tema 1, tratada a questo da Lgica como um clculo raciocinador, algumas de suas consequncias e limites dessa concepo. No Tema 2, abordado a necessidade de carac-terizao do que cincia, o critrio de falsificabilidade do filsofo da cincia Karl Popper e algumas consequncias de sua reflexo. No Tema 3, discutida a concepo de cincia do fil-sofo da cincia Gilles-Gaston Granger e algumas consequncias dessa concepo, incluindo a questo da existncia de limites Cincia. No Tema 4, se aborda a Epistemologia Gentica do epistemlogo e psiclogo Jean Piaget, a concepo geral da rea como Epistemologia e Teoria do Conhecimento e a sua relao com a Psicologia Gentica de Jean Piaget.

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    Lgica e Filosofia da Cincia

    Tema 1A Lgica como

    Clculo Raciocinador

    1.1 - O Incio da Lgica

    1.2 - A Lgica como Calculus Ratiocinator

    1.3 -A Lgica como um clculo raciocinador: consequncias e limites

    Tema 2 Falsificacionismo

    2.1 - Por que uma definio de cincia importante?

    2.2 - O aspecto lgico do critrio de falsificabilidade

    2.3 - O aspecto metodolgico do critrio de falsificabilidade

    2.4 - O mtodo falsificacionista

    2.5 - A generalizao do falsificacionismo

    Tema 3 A cincia

    contempornea e a noo de modelo

    3.1 - Como a Realidade?

    3.2 - A caracterizao da Cincia emprica segundo Granger: os modelos

    3.3 - A verificao do conhecimento cientfico

    3.4 - Consequncias da definio de Cincia e a impossibilidade de um nico modelo da Realidade

    Tema 4 A Epistemologia

    Gentica

    4.1 - Viso geral

    4.2 - O incio da Epistemologia Gentica: as questes de fato sobre o conhecimento

    4.3 - Epistemologia Gentica e Psicologia Gentica

    4.4 - Biologia e conhecimento

    4.5 - O sistema de esquemas de ao

    4.6 - Os perodos da construo das estruturas necessrias ao conhecimento

    4.7 - Epistemologia Gentica e conhecimento cientfico

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    TEMA 1

    A Lgica como Clculo Raciocinador

    Como diversas reas atuais do conhecimento, a Lgica hoje um vasto campo de conheci-mento com uma profundidade e complexidade que uma vida humana parece no ser suficiente para abrang-lo. Portanto, no nossa inteno, neste texto, tratar dos diversos contedos da Lgica atual, mas apenas abordar o tpico A Lgica como um Clculo Raciocinador a fim de estimular o leitor a reflexes sobre este tpico.

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    1.1 O Incio da Lgica

    Comecemos pelo incio histrico da Lgica.

    Muitos lgicos consideram o filsofo grego Aristteles (384322 a.C.) como o fundador da Lgica. Isso porque, apesar de certos temas da lgica terem sido tratados por pensadores anteriores a ele, Aristteles quem realiza um primeiro estudo sistemtico que permanecer como referncia por vrios sculos, a ponto do filsofo alemo Immanuel Kant (17241804), em 1787, mais de dois mil anos depois, escrever, no incio do Prefcio a segunda edio da Crtica da Razo Pura, que ainda digno de nota que tambm ela [a Lgica desde Aristteles] at agora no tenha podido dar nenhum passo adiante, parecendo, portanto, ao que tudo indica, completa e acabada.

    Ironicamente, menos de cem anos depois, devido principalmente aos trabalhos do filsofo e matemtico ingls George Boole (1815-1864) e do filsofo e matemtico alemo Friedrich L. G. Frege (1848-1925), a Lgica comear um desenvolvimento que culminar na disciplina ampla que se tornou em nossos dias. Mas no adiantemos as coisas voltemos ao nosso velho Aristteles.

    O conjunto das obras de Aristteles que trata da Lgica foi tradicionalmente chamado de rganon (palavra grega que significa instrumento), a denominao da rea com o termo Lgica s surgiu posteriormente, na medievalidade (cf. BLANCH e DUBUCS, 2001, Captulo VI). O rganon se constitui de seis obras nas quais Aristteles trata da significao dos termos (em Categorias), das proposies (em Da Interpretao), dos raciocnios (em Anal-ticos Anteriores) e do uso correto e incorreto dos raciocnios (nas trs ltimas obras: Analticos Posteriores, Tpicos e Refutaes dos Sofistas).

    importante salientar que, nesse contexto, a Lgica surge como um instrumento ao conhe-cimento (em Grego, episteme) contraposto a mera opinio (em Grego, doxa), distino essa (entre conhecimento e opinio) que remonta, ao menos, ao filsofo grego Plato (429347 a.C.), mestre de Aristteles. Vamos aqui assumir que, em especial, essa noo de conhecimento satisfaz as exigncias que Plato expe em seu livro Teeteto: opinio verdadeira racionalmente justificada.

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    Nesse sentido, a funo mais importante da Lgica, segundo Aristteles, ser instrumento para o conhecimento do verdadeiro, daquilo que (oposto ao que no , ao falso).

    Mais ainda, por meio do raciocnio demonstrativo1, segundo Aristteles, podemos no apenas vir a conhecer o que (o verdadeiro), mas tambm a razo de ser das coisas, suas causas, permitindo-nos atingir o inteligvel daquilo que . Assim, a Lgica condio necessria (mas no suficiente) para chegar ao conhecimento.

    Em Grego, o termo silogismo significa raciocnio. Em Portugus, mantivemos os dois termos raciocnio e silogismo, atribuindo ao termo silogismo uma acepo mais estrita, qual seja, a acepo que o prprio Aristteles define, no rganon, a partir de uma anlise mais profunda do raciocnio a fim de desvelar seus constituintes mais elementares e suas relaes. Em Aristteles (2005) temos:

    O silogismo um discurso argumentativo no qual, uma vez formuladas certas coisas [as premissas], alguma coisa distinta destas coisas [a con-cluso] resulta necessariamente atravs delas pura e simplesmente (Tpi-cos I.1.100a 25, cf. tambm Analticos Anteriores I.1.24b e Refutaes Sofsticas 1.165a.1).

    Consideremos um dos modos de silogismo, chamado posteriormente, por lgicos medievais, de Barbara.

    Todo M P.

    Todo S M.

    Logo, todo S P.

    Um exemplo de um silogismo desse modo :

    Todo homem animal.

    Todo grego homem.

    Logo, todo grego animal.

    1 Tambm chamado de raciocnio dedutivo.

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    O desenho a seguir representa esse modo.

    S - grego

    M - homem

    P - animal

    Notemos que no importa quais letras usamos para representar os termos do silogismo: poderiam ser quaisquer, desde que diferentes entre si; aqui, usamos a letra M para indicar o termo que aparece nas duas primeiras premissas (chamado, por Aristteles de termo mdio), S para indicar o sujeito da concluso (chamado, por Aristteles de termo menor) e P para indicar o predicado da concluso (chamado, por Aristteles de termo maior). A premissa que contm o termo menor chamada de premissa menor e a que contm o termo maior chamada de premissa maior.

    A seguir temos um outro modo importante, chamado posteriormente por lgicos medievais, de Celarent.

    Nenhum M P.

    Todo S M.

    Logo, nenhum S P.

    Um exemplo de um silogismo desse modo :

    Nenhum animal imortal.

    Todo homem animal.

    Logo, nenhum homem imortal.

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    O desenho a seguir representa esse modo.

    S - homem

    P - imortal

    M - animal

    Aristteles mostra, em Segundos Analticos, que todos os outros modos de raciocnios vlidos pode ser reduzidos a esses dois modos. De certa forma, a cincia, segundo Aristteles, deveria vir a classificar adequadamente os seres do mundo e podemos perceber como os modos de silogismo acima permitem uma classificao perfeita dos seres. Assim esse resultado de reduo de todas as formas de raciocnio aos dois acima muito importante, na filosofia de Aristteles.

    Falamos at aqui sobre Aristteles, devido ao seu importante papel como fundador da Lgica e pela grande influncia que exerceu na histria da Lgica; entretanto, devemos salientar que, depois da formulao aristotlica da Lgica, diversos outros autores, com filosofias muito diferente da de Aristteles, usaram as distines e anlises lgicas feitas por Aristteles. Nesse sentido, a Lgica foi se liberando dos pressupostos ontolgicos e metafsicos da filosofia aris-totlica e se constituindo como uma disciplina autnoma, isto , com grande independncia das filosofias desse ou daquele autor. No entanto, a grande rea da Lgica nunca deixou de ser uma disciplina filosfica, por estar diretamente relacionada questo do conhecimento (e Teoria do Conhecimento, como, por exemplo, vimos acima, na questo do conhecimento como opinio verdadeira racionalmente justificada) e s diversas formas de se pensar a existncia e os valores, principalmente na medida em que o pensamento da existncia e dos valores se faz por juzos de existncia (tambm chamados de juzos existenciais, de realidade ou de fato) e juzos de valor (como, por exemplo, os juzos morais e estticos), bem como pela justificao desses.

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    1.2 A Lgica como Calculus Ratiocinator

    Vimos acima que a Lgica veio a descrever os raciocnios vlidos apenas a partir da forma sinttica desses argumentos, como nos casos acima de Barbara e Celarent. De um ponto de vista mais contemporneo, podemos nos colocar as seguintes questes que nos interessam em especfico neste texto:

    Seria possvel fazer uma lngua artificial em que os raciocnios corretos fossem reduzidos a operaes precisas sobre os termos dessa lngua?

    Seria possvel uma lngua na qual as caractersticas daquilo que existe fossem expressas adequada-mente a tal ponto que pudssemos, com um clculo dessas caractersticas, deduzir fatos sobre a Realidade?

    Essas duas ideias foram expressas pela primeira vez na histria da Filosofia de forma direta pelo filsofo e matemtico alemo Gottfried W. Leibniz (16461716): a primeira levaria ao que Leibniz chamou de calculus ratiocinator (uma espcie de clculo raciocinador) e a segunda a uma lingua characteristica universalis (uma espcie de lngua universal das caractersticas).

    De uma forma geral e esquemtica, podemos dizer que a primeira ideia deu origem a Lgica Simblica contempornea e a segunda Cincia Contempornea (Fsica, Qumica, Biologia, Psicologia, Sociologia, etc.).

    Nos interessa aqui, neste texto, o primeiro tpico. Desenvolveremos o segundo quando tratarmos do tema da noo de modelo na Cincia Contempornea.

    Tratando ento do primeiro tpico, podemos dizer que Frege um dos principais autores que vem a desenvolver melhor a proposta leibniziana de um calculus ratiocinator. Para termos uma ideia desse desenvolvimento, vamos considerar alguns pequenos exemplos da aplicao da nova anlise que Frege realiza em relao a Lgica (o que nos levar a definir, logo abaixo, as noes de sujeito e predicados lgicos2).

    2 Os termos sujeito lgico e predicado lgico so usados aqui para designar as expresses lingusticas do que

    Frege (2009, cap. 6) distingue como objeto e conceito.

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    Vimos que uma das formas das proposies que interessa a Lgica so aquelas expressas por sentenas da forma:

    A B

    na qual A o sujeito da sentena e B o predicado da sentena. Porm essa forma tem uma ambiguidade que do ponto de vista da Lgica importante desfazer. A sentena A B pode significar, por um lado, que um indivduo expresso por A (por exemplo, Aristteles) tem uma certa propriedade expressa por B (por exemplo, ser sbio); assim a sentena a seguir tem a forma A B.

    (1) Aristteles sbio.

    Por outro lado, assim como B expressa uma propriedade (por exemplo, ser sbio), A tambm pode expressar uma propriedade (por exemplo, ser filsofo); assim a sentena a seguir tambm tem a forma A B.

    (2) Filsofo sbio.

    Ora, mas, no caso (1), a sentena A B tem o sentido de que um indivduo pertence a classe dos B (Aristteles pertence a classe dos sbios), enquanto no caso (2), a sentena A B tem o sentido de que a classe dos A est contida na classe dos B (a classe dos filsofos est contida na classe dos sbios), o que bem diferente do caso (1).

    Podemos ento propor que se diferencie os termos que designam indivduos, que nomeamos sujeitos lgicos, dos termos que designam propriedades, que nomeamos predicados lgicos.

    Nesse sentido, sujeito lgico e predicado lgico no se confundem com o sujeito gramatical (isto , o sujeito da sentena) e o predicado gramatical (isto , o predicado da sentena): por exemplo, na sentena (2) Filsofo sbio, o termo filsofo um sujeito gramatical, entre-tanto, no um sujeito lgico, j que no designa um indivduo, um predicado lgico, pois designa uma propriedade.

    Contemporaneamente, para designar um predicado lgico usamos uma letra maiscula, por exemplo, B, e usamos uma letra minscula, por exemplo a, para designar um sujeito

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    lgico. Para afirmar que um sujeito a tem propriedade B, escrevemos B seguido de a entre parnteses; assim, a sentena (1) Aristteles sbio tem a forma

    B(a)

    na qual a designa Aristteles e B designa ser sbio.

    Podemos ento nos perguntar: E como fica a sentena (2) Filsofo sbio na escrita Lgica contempornea?

    Ora, como dissemos, a sentena (2) Filsofo sbio indica que se algum filsofo, ento ele sbio; em notao contempornea, essa sentena tem a forma

    A(x)B(x)

    que pode ser lida como se x A, ento x B, na qual x designa um indivduo qualquer. Se A designa ser filsofo e B designa ser sbio, a sentena tambm pode ser lida: se x filsofo, ento x sbio.

    Por fim, para expressar a ideia de totalidade, como na sentena Todo homem animal, usamos o signo que se l para todo. Assim a sentena

    x(A(x) B(x))

    pode ser lida: para todo x, se x A, ento x B, ou ainda, mais resumidamente, todo A B. Se A designa ser filsofo e B designa ser sbio, a sentena acima significa que para todo x, se x filsofo, ento x sbio, ou ainda, todo filsofo sbio.

    Podemos agora voltar a ideia de um calculus ratiocinator e mostrar como se representa um raciocnio vlido como um clculo nessa lngua artificial.

    Retomemos um exemplo em Barbara:

    Todo homem animal.

    Todo grego homem.

    Logo, todo grego animal.

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    Se usarmos as letras M para designar homem, P para designar animal e S para designar grego, o silogismo aristotlico

    Todo M P.

    Todo S M.

    Logo, todo S P.

    pode ser expresso por

    x (M(x) P(x))

    x (S(x)M(x))

    x (SxP(x))

    As regras que nos permite passar de certas frmulas a outras, realizando uma espcie de clculo dedutivo em nossa lngua lgica, so chamadas de regras de inferncia.3

    Temos a seguinte deduo formal do silogismo acima:

    1. x (M(x) P(x)) Premissa.

    2. x (S(x) M(x)) Premissa.

    3. M(x) P(x) Instanciao Universal de 1.

    4. S(x) M(x) Instanciao Universal de 2.

    5. S(x) P(x) Silogismo Hipottico de 4 e 3.

    6. x (S(x) P(x)) Generalizao Universal de 5.

    3 Na deduo a seguir, usamos trs regras de inferncia, chamadas de Instanciao Universal, Silogismo Hipottico

    e Generalizao Universal. No vamos dar aqui as definies de cada regra; vamos apenas indicar, na nota seguinte, a

    forma de us-las no caso especfico dessa deduo.

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    Logo, realizando s um clculo sobre as frmulas, a partir das premissas x(M(x)P(x)) e x(S(x)M(x)), chegamos a concluso x (S(x) P(x))4. Ou ainda, a partir das frmulas que representam as premissas de que todo homem animal e todo grego homem, esse clculo nos permite concluir que todo grego animal.

    Vemos assim, em linhas gerais, como um raciocnio seria reduzido a um clculo sobre signos de nossa lngua lgica.

    Essa nova forma de ver a Lgica, conjuntamente com o sucesso da Lgica contempornea em expressar a grande maioria dos raciocnios realizados nas cincias contemporneas, levam-nos a questes sobre as consequncias filosficas de se pensar a Lgica como um clculo raciocina-dor, bem como a se pensar sobre os limites dessa proposta. o que veremos no tpico a seguir.

    1.3 A Lgica como um clculo raciocinador: consequncias e limites

    Vimos, no tpico anterior, como o raciocnio pode ser visto como apenas um clculo sobre signos de uma lngua lgica. Mas, podemos nos perguntar ento:

    Ser que todo raciocnio pode ser visto como um clculo?

    Em nossa histria recente, essa pergunta foi respondida tanto de forma afirmativa quanto de forma negativa.

    4 Na deduo formal apresentada, em cada linha, temos: o nmero da linha, a frmula lgica e a regra que permite

    inferi-la. Assim:

    Nas Linhas 1 e 2, temos as premissas do argumento acima: x (M(x) P(x)) e x (S(x) M(x)). Na Linha 3, pela regra de inferncia chamada de Instanciao Universal, inferimos a sentena M(x) P(x) (se

    x homem, ento x animal) a partir da Linha 1 x(M(x) P(x)) (para todo x, se x homem, ento x animal); Na Linha 4, pela mesma regra, inferimos a sentena S(x) P(x) (se x grego, ento x homem) a partir da

    Linha 2 x(S(x) M(x)) (para todo x, se x grego, ento x homem); Na Linha 5, pela regra de inferncia chamada de Silogismo Hipottico, inferimos a sentena S(x) P(x) (se

    x grego, ento x mortal) a partir da Linha 3 M(x) P(x) (se x homem, ento x animal) e da Linha 4 S(x) P(x)

    (se x grego, ento x homem); e, por fim,

    Na Linha 6, por uma regra de inferncia chamada de Generalizao Universal, inferimos a sentena x (S(x) P(x)) (para todo x, se x grego, ento x animal) da Linha 5 S(x) P(x) (se x grego, ento x animal).

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    Para citar um exemplo de uma resposta afirmativa, a possibilidade de se ver o raciocnio como um clculo influenciou o desenvolvimento de uma rea da Computao, chamada de Inteligncia Artificial, cujas bases se encontram principalmente na noo terica de mquina de Turing e na ideia de que Pensar computar, proposta pelo matemtico, lgico e cientista da Computao Alan Turing (1912-1054), no artigo, Mquinas de Computao e Inteligncia (Turing, 1950).

    Os estudos de Turing contriburam para o desenvolvimento da parte da Lgica relacionada com a anlise simblica do raciocnio, principalmente aqueles realizados em teorias formais axiomticas. Entretanto, nessa rea, existem tambm importantes resultados que apontam no sentido contrrio da interpretao feita por Turing, indicando os limites dessa interpretao. Dentre esses resultados, alguns dos mais importantes da Lgica Contempornea so os des-cobertos pelo lgico e matemtico Kurt Gdel (1906-1978): os Teoremas da Incompletude.

    Em especial, os Teoremas da Incompletude formam a base de interpretaes epistemolgicas que concluem que [] mentes no podem ser explicadas por mquinas (Lucas, 1991, p.1; Penrose, 1993, 1995 e 1998; Tassinari, 2003; Tassinari; DOttaviano, 2009), pois as mquinas no teriam a capacidade de compreenso matemtica que possvel aos seres humanos e que, em um sentido mais geral, o [...] mecanicismo falso (Lucas, 1991, p. 1).

    No vamos entrar aqui nos detalhes de como podemos mostrar que [] mentes no podem ser explicadas por mquinas. Em relao ao critrio de inteligncia de Turing, ou como mais conhecido, Teste de Turing (segundo o qual uma mquina seria inteligente se pudesse se passar por um ser humano sem que percebamos que se trata de uma mquina), vamos apenas sugerir ao leitor que acesse o link JoVIA e realize, por si mesmo, um pequeno teste de Turing, em relao ao Jogo da Velha.

    Quanto a frase, o [...] mecanicismo falso, ela pode ser interpretada tambm no sentido de que tais resultados implicam na impossibilidade de uma teoria formal axiomtica ou de uma modelagem finita completa da realidade fsica, de acordo com o que foi apresentado por Stephen Hawking em uma conferncia intitulada Gdel and the end of the Physics, no Dirac Centennial Celebration, realizado na Cambridge University, pelo DAMTP/CMS, em 20 de Julho de 2002:

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    Qual a relao entre o Teorema de Gdel e se podemos formular a teoria do universo, em termos de um nmero finito de princpios. Uma conexo bvia. De acordo com a filosofia da cincia positivista, uma teoria fsica um modelo matemtico. Ento, se existem resultados matemticos que no podem ser demonstrados, existem problemas fsicos que no podem ser preditos. [...]

    [...] uma teoria fsica auto-referente, como o Teorema de Gdel. Podemos esperar, portanto, que seja inconsistente ou incompleta. [...]

    Algumas pessoas ficaro muito desapontadas, se no existir uma teoria ltima que pode ser formulada com um nmero finito de princpios. Eu pertenci a este grupo, mas mudei de idia. Agora estou contente porque nossa busca pelo conhecimento nunca chegar ao fim, e que sempre ter-emos o desafio de novas descobertas. Sem isso, estagnaramos. O Teo-rema de Gdel nos assegura que sempre existir um trabalho para os matemticos...

    Voltando para o campo da Lgica, no sentido estrito, temos que, na histria da Lgica, a partir dessa forma de simbolizao, comeou-se a se estudar outras formas de raciocnio que no apenas a forma clssica; por exemplo, ao invs de se assumir que proposies sejam apenas ou verdadeiras ou falsas, podemos estudar formas de raciocnio em que as proposies tenham valores intermedirios. Assim, se considerarmos a sentena Joo msico, na qual Joo ainda est estudando msica, podemos atribuir valores intermedirios a sentena Joo msico, sem ter que ficar restrito a dizer que Verdadeiramente, Joo msico ou que No, Joo no msico5.

    Para o leitor ter uma noo de forma rpida da enorme expanso e da velocidade com que se desenvolveu a Lgica contempornea no ltimo sculo e das diferentes lgicas atuais (isto , dos estudos de diferentes formas de raciocnio), sugerimos visitar o site da Stanford Encyclopedia of Philosophy (plato.stanford.edu) e fazer uma pesquisa usando o termo logics.

    5 A rea da Lgica que estuda formas de raciocnio em que os juzos podem ter outros valores alm do verdadeiro

    e do falso chamada de Lgica Polivalente ou Lgica Multivalorada (traduo do termo ingls Many-valued Logic).

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    O leitor interessado em saber mais sobre o pensamento do autor sobre a implicao da Lgica como Calculo Raciocinador e da sua relao com a Filosofia em geral, pode consultar os links:

    Mquinas e Mentes;

    O Mundo das Ideias;

    Cincia Cognitiva: Cincia ou Filosofia?

    Mais materiais e informaes sobre Lgica, Teoria da Cincia e Teoria do Conhecimento podem ser encontrados no site do autor: Ricardo Tassinari.6

    6 Agradeo a Thiago Carreira Alves Nascimento pela leitura e sugestes que permitiram melhorar este texto.

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    http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/46936/3/02_redefor_d08_filosofia_tema_02.flv

    TEMA 2

    Falsificacionismo

    2.1 Por que uma definio de cincia importante?

    A esta altura, podemos admitir, com tranqilidade, que a cincia influencia a nossa vida de maneira decisiva. Nosso dia a dia cercado de conquistas tcnicas e prticas que so com certa freqncia associadas a conquistas cientficas. Difcil pensar que a medicina atual, por exemplo, seria vivel sem que fosse precedida dos desenvolvimentos de uma cincia como a Biologia; difcil tambm justificar que televises e avies funcionassem, como funcionam, sem que tivssemos os avanos anteriores de uma cincia como a Fsica.

    Mas mesmo que no tivesse esses resultados prticos, pode-se ainda dizer que a cincia emprica preserva a sua importncia pelo que nos d de conhecimento a respeito do mundo

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    que nos cerca. O fato da Terra ser redonda e girar em torno do Sol foi algo cientificamente fundamentado h muito tempo e essa comprovao admitida como uma das importantes conquistas cientficas dos sculos XVI e XVII. Mas, em si, uma comprovao como essa no afeta a vida da grande maioria das pessoas. Tanto quanto antes, muitos de ns agimos como se a Terra fosse achatada e como se o Sol se movimentasse em torno da Terra. Mas mesmo que afirmssemos a irrelevncia prtica da hiptese heliocntrica (segundo a qual a Terra gira em torno do Sol), no podemos negar que, ao que tudo indica, a aceitao dessa hiptese leva a que saibamos mais hoje a respeito da Terra, do Sol e da Cosmologia como um todo. Em outras palavras: independentemente de sua importncia prtica, a cincia atende a vontade que temos de conhecer, de saber mais acerca do universo que habitamos.

    Pelo que foi dito, compreensvel que a humanidade tenha afinal incorporado a cincia como algo desejvel e importante, algo que deve ser estimulado e respeitado pelas pessoas. No entanto, quando podemos dizer que uma afirmao ou uma teoria qualquer cientfica? Se, como dissemos, a cincia e os enunciados cientficos so relevantes, passa a ser fundamental que consigamos identific-los, inclusive para distingui-los daquelas afirmaes que pretendem assumir o estatuto cientfico sem terem as qualificaes necessrias para isso: estamos a toda hora ouvindo coisas como Isso cientfico!, A astrologia uma cincia! ou ainda Existem curas espritas cientificamente comprovadas. Como saber se essas afirmaes so sustentveis? Ou ainda, como dizer que no so sustentveis?

    Vrios autores se debruaram sobre o problema da definio do que seja cincia ou do que seria uma demarcao eficiente entre cincia e no-cincia, mas Karl R.Popper talvez um dos nomes mais imediatamente lembrados pelos filsofos quando se discute essa questo. Para ele esse era um tema absolutamente crucial por se confundir com o que se pode ou no caracterizar como pensamento racional: a cincia emprica seria o melhor exemplo de prtica sistemtica do pensamento racional aplicado ao conhecimento da natureza e, por isso mesmo, um retrato da cincia deveria ser tambm um retrato da maneira de se investigar racionalmente o mundo natural. Conforme Popper, se um cientista genuno aceita uma determinada teoria, ele o faz sendo invariavelmente guiado pelo pensamento racional, pelo ajuizamento racional das vanta-gens daquela teoria sobre suas demais concorrentes.

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    importante notar que, em princpio, existem muitas formas de se escolher uma teoria ou enunciado: podemos tirar par ou mpar, consultar um mdium, ou ainda lanar dados para nos decidir entre duas alternativas. Mas seria esse um procedimento racional? Se Galileu, por exemplo, fosse escolher entre duas afirmaes, como A Terra redonda e A Terra plana, deveria utilizar o par ou mpar ou algum outro processo semelhante, aparentemente aleat-rio? Para Popper ou qualquer outro pensador racionalista isso seria totalmente inadmissvel: se Galileu aceitou a tese de que a Terra redonda e lhe concedeu o estatuto de teoria cientfica isso s se justificaria se ele, conforme algum padro racional especfico, distante do aleatrio, levasse em considerao as evidncias disponveis e, afinal, racionalmente se decidisse em favor da teoria que melhor se adequasse a elas.

    Mas se o par ou mpar ou apelar para mdiuns no parecem ser formatos racionais de deciso ou escolha entre teorias, o que seria um processo legtimo? a que Popper e outros filsofos procuram chegar a uma resposta mais apropriada, resposta que se confunde tambm com uma definio de cincia emprica. Isso acontece porque, para eles, como dissemos, cincia emprica exatamente a rea em que argumentos so empregados racionalmente para o pro-cesso de crtica das hipteses empricas apresentadas. Desse processo crtico sair a aceitao ou rejeio de qualquer teoria sobre o mundo emprico.

    2.2 O aspecto lgico do critrio de falsificabilidade

    Mas, afinal, qual a proposta de Popper? De sada, sempre fiel perspectiva racionalista, ele acredita que, para ser cientfica, uma teoria precisa ser criticvel ou falsificvel empiricamente isto , precisa ser uma teoria que possa ter sua falsidade atestada por evidncias, testes empricos. Isso o que chama de critrio lgico da falsificabilidade: se um enunciado no for logicamente falsificvel dessa maneira, no poder ser considerado cientfico.

    Alguns exemplos de enunciados, cientficos (logicamente falsificveis) e no-cientficos (logicamente infalsificveis) podero esclarecer mais as intenes por trs do critrio popperiano de falsificabilidade. Vejamos:

    Exemplo 1. Todos os cisnes so brancos. Este um enunciado falsificvel porque podemos, em princpio, criticar a teoria a partir de enunciados observacionais (enunciados que descrevem observaes) que se sustentariam pela constatao de cisnes de outras cores que no a branca.

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    , por exemplo, perfeitamente possvel que um pesquisador qualquer encontre um grupo de cisnes pretos, digamos, na reserva florestal da Juria. Caso essa descoberta fosse feita, a afir-mao Todos os cisnes so brancos seria falsificada, isto , no poderamos mais consider-la verdadeira, embora seu estatuto cientfico permanecesse intacto: tanto quanto antes da falsifi-cao efetiva, assegura-se que a teoria pode ser falsificada pelos testes e, portanto, pelo critrio falsificacionista, permanece sendo cientfica.

    Exemplo 2. Todo cisne branco branco. fcil perceber que este enunciado, por sua pr-pria estrutura lgica, no pode ser falsificado. trivialmente verdadeiro que objetos brancos so brancos e no existe qualquer possibilidade de se encontrar algo que torne isso falso. Por isso, Todo cisne branco branco ser sempre verdadeiro, no importa que evidncias emp-ricas sejam encontradas. Mas, por no ser falsificvel, esse, segundo Popper, no pode ser um enunciado cientfico: jamais poder ser criticado por observaes.

    Exemplo 3. Amanh chover na cidade de So Paulo. Qualquer um sabe que um enun-ciado meteorolgico como esse pode ser corroborado ou falsificado pela experincia. Basta que no dia subsequente observemos o tempo: caso chova, o enunciado ser corroborado, mas tambm possvel que no chova e, nessa circunstncia, o enunciado estar falsificado. Temos a, portanto, mais um caso de enunciado falsificvel e, conforme Popper, um legtimo enunciado cientfico. E o mesmo se aplicaria a Amanh no chover na cidade de So Paulo: sempre existe a possibilidade de que tal enunciado seja falsificado no dia seguinte, pela constatao de que choveu em So Paulo.

    Exemplo 4. Existem discos voadores. Para que um enunciado seja cientfico, como vimos, necessrio que seja falsificvel e, para que seja falsificvel, necessrio que o resultado de algum teste emprico possa, em princpio, de alguma forma, evidenciar sua falsidade. Nesse caso, que observaes e que testes poderiam aferir a falsidade do enunciado Existem discos voadores (entendendo-se discos voadores como naves espaciais tripuladas por seres extraterrenos inteligentes)? Sabemos bem o que poderia ser a verificao, ou constatao da verdade de uma afirmao como essa: se um disco voador tripulado aliengena pousasse em pleno Corcovado, no Rio de Janeiro, e isso fosse observvel e afervel por qualquer um que estivesse presente, seria foroso admitir a corroborao do enunciado. Entretanto, nada to simples poderia ser dito a respeito da falsificao de uma assero como essa! Que observao acarretaria a demonstrao

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    de sua falsidade? Na verdade, nenhum conjunto finito de observaes poderia estabelecer a fal-sidade dessa afirmao, e ela , assim, infalsificvel e, portanto, no-cientfica. Por outro lado, curioso notar que No existem discos voadores um enunciado falsificvel: basta que haja evidncia, observaes concretas e amplamente admitidas da existncia de um disco voador. Se um OVNI pousar na Praa da S, por exemplo, e isso for atestado empiricamente, o enunciado No existem discos voadores ser falsificado. Desse modo, demonstra-se que temos aqui um enunciado potencialmente falsificvel e, portanto, conforme o critrio popperiano, cientfico.

    O exame dos exemplos acima permite concluir que Popper privilegia em seu critrio no a verdade ou a falsidade do enunciado analisado, mas a possibilidade de que seja criticado e refu-tado: s possvel criticar empiricamente um enunciado ou uma hiptese quando se acredita que ele pode ser derrubado pela crtica, ou seja, quando possvel expor sua falsidade. Note-se que isso bem diferente de se esperar que o enunciado seja falso! Evidentemente, Popper no pretende que a cincia emprica seja composta por enunciados falsos! Muito pelo contrrio: ele espera que a cincia procure sempre por enunciados verdadeiros. Mas tais enunciados, mesmo se verdadeiros, para serem cientficos, devem ser abertos crtica, devem ser potencialmente falsificveis por testes empricos. Essa, sempre conforme Popper, uma precondio necessria a toda hiptese, teoria ou enunciado que almeje ser cientfico.

    2.3 O aspecto metodolgico do critrio de falsificabilidade

    At este ponto, caracterizamos o critrio de falsificabilidade popperiano sob um ngulo estritamente lgico: enunciados sero ou no cientficos conforme a possibilidade de se defron-tarem com enunciados observacionais que os falsifiquem. Particularmente enunciados univer-sais, aqueles tipicamente iniciados pelo quantificador Todos (como em Todos os cisnes so brancos), sero logicamente refutados por uma nica exceo, mesmo que todos os demais exemplos at ento registrados o tenham corroborado. Essa uma constatao extremamente relevante porque todas as teorias e leis cientficas tm pretenses universais e se aplicam a todos os objetos existentes no universo. Considere-se, por exemplo, a Lei de gravitao de Kepler, simplificadamente expressa pelo enunciado Todas as rbitas planetrias so elpticas. Da mesma forma que as leis presentes em cdigos jurdicos, as leis da natureza no admitem transgresses. No caso em pauta, o que a Lei de Kepler exclui a existncia de rbitas que no tenham o formato de uma elipse, como na figura abaixo:

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    Figura 1 - Figura em formato de elipse.

    Se se verificar que algum planeta, em qualquer ponto do sistema solar ou fora dele, obedece trajetria de rbita diferente dessa (digamos, uma trajetria perfeitamente circular ou mesmo quadrada) teremos um choque lgico da lei universal com a observao desse caso anmalo, acarretando a refutao do enunciado universal. assim que, segundo Popper, as leis naturais (ou, antes, as conjecturas que se arvoram a leis naturais) garantem sua cientificidade: elas sempre sero falsificveis, e vrias sero de fato falsificadas no futuro.

    Entretanto a forma lgica de um enunciado no garante que ele seja efetivamente falsificvel. Examinemos uma vez mais os exemplos elencados acima. No h dvida, como dissemos, que enunciados como Todos os cisnes so brancos, Amanh chover em So Paulo e Todas as rbitas planetrias so elpticas so logicamente falsificveis pelos testes. Mas isso no garante que sejam efetivamente testados! Qualquer enunciado - mesmo os logicamente testveis e, por extenso, falsificveis pode ser mantido indefinidamente por um pesquisador. Qualquer sus-penso do processo de teste contnuo acarreta na verdade a infalsificabilidade do enunciado, e isso pode ocorrer por uma variedade de razes. Por exemplo, a comunidade cientfica respon-svel pelo teste pode ter tamanha confiana numa teoria que simplesmente no se preocupa mais em test-la. Popper menciona casos como a teoria newtoniana e mesmo a teoria da rela-tividade que, dado o enorme sucesso que obtiveram por muitos anos levaram alguns cientistas a abandonar o persistente esforo crtico e a no promover os testes rigorosos que precisariam ser constantemente reavivados. Por vezes, cientistas afastam-se dessa linha crtica constante e imunizam as teorias que adotam contra qualquer esforo de teste.

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    Mesmo que de uma forma meio caricata, podemos exemplificar comportamentos de imuni-zao de hipteses muito frequentemente. Imaginemos a hiptese mencionada anteriormente: Todos os cisnes so brancos. sempre possvel questionar qualquer evidncia contrria que aparea. Assim, um adepto empedernido dessa afirmao ao receber o resultado de um teste que ameace a teoria pode, por exemplo, desqualificar o experimentador, pode dizer que seu testemunho sobre a existncia de um cisne preto decorre de alguma iluso de tica; ou que o pssaro observado, na verdade, no seria um cisne; ou mesmo que haveria m f nos testemunhos coligidos pelos experimentadores. Desse modo, sempre possvel desviar-se do poder falsificador dos testes e, no limite, transformar uma assero potencialmente, logicamente falsificvel, em um enunciado no-falsificvel.

    Para Popper, a nica maneira de evitar essa proteo indbita da teoria testada preservar sua testabilidade e procurar, de todas as formas, no proteg-la e sim deix-la cada vez mais aberta s crticas mesmo que o pesquisador tenha sido ele mesmo o propositor original da teoria testada. Para que isso seja alcanado seria necessrio que os enunciados cientficos no fossem apenas logicamente falsificveis, mas que a comunidade cientfica seguisse um mtodo de preservao da falsificabilidade daqueles enunciados: o mtodo falsificacionista.

    2.4 O mtodo falsificacionista

    Como vimos, para que um enunciado seja cientfico, no basta sua forma lgica, mas tambm necessrio que ele seja tratado de determinada maneira - isto , conforme um mtodo especfico - pela comunidade cientfica, maneira que lhe preserve a falsificabilidade. A essncia da metodologia falsificacionista popperiana exatamente essa: um mtodo que procura, ao longo de toda a prtica de avaliao cientfica, preservar a testabilidade ou falsificabilidade das teorias examinadas. No momento mesmo em que a falsificabilidade das teorias ameaada ser tambm ameaado seu teor cientfico.

    A visualizao do funcionamento do mtodo falsificacionista nos ajuda a entender parale-lamente as ideias de Popper a respeito do desenvolvimento da cincia. O esquema padro do mtodo falsificacionista tem o seguinte perfil, a ser discutido na sequncia:

    1. Parte-se de um problema (P);

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    2. Procura-se uma hiptese ou teoria tentativa (TT1) para a soluo de P;

    3. Procede-se a teste (t1) da hiptese;

    A partir deste ponto, temos duas alternativas: ou a teoria TT1 no resiste ao teste e falsi-ficada por ele ou resiste ao exame.

    4a. Caso t1 seja eficiente e falsifique TT1, volta-se ao ponto 2, procura-se nova teoria ten-tativa (TT2) e reinicia-se o processo de teste;

    4b. Caso TT1 no seja falsificada por t1, procede-se a novo teste (t2), distinto do primeiro, que possa ser capaz de refutar a hiptese testada.

    Simplifiquemos bastante os detalhes historiogrficos e complexidades do processo de esta-belecimento da Lei de Kepler, j citada acima, para que possamos aplic-lo a esse esquema. A identificao do formato das rbitas planetrias foi, durante muito tempo, um objeto de ateno por parte daqueles pensadores que se interessaram pela astronomia. Temos assim um problema (P), que poderia ser formulado como Qual seria o formato das rbitas planetrias?. Mais de um astrnomo se debruou sobre essa questo e props uma soluo. Uma das conjecturas apresentadas foi a de que tais rbitas descreveriam um crculo perfeito. Temos a, uma teoria tentativa (TT1): Toda rbita planetria tem o formato de um crculo perfeito. Observaes foram feitas na sequncia, procurando testar a teoria: foram checadas, por telescpios, as rbitas de planetas do sistema solar (t1). Essas observaes demonstraram que a hiptese tentativa da qual se partiu era falsa, isto , incongruente com as observaes concretas dos experimentadores. Refutada a teoria e eliminado o erro, partiu-se para outras alternativas. Kepler sugeriu, afinal, que as rbitas seriam no circulares, mas elpticas (TT2: Todas as rbitas planetrias tm o formato de uma elipse). Essa teoria foi submetida ao teste t1, que havia refutado a hiptese TT1, e resistiu a esse teste, ou seja, o exame das rbitas de planetas do sistema solar corroborou a hiptese de Kepler (TT2). Aps a corroborao desses primeiros testes, a instruo popperiana de que o cientista jamais deixe de proceder a novos testes (t2, t3, ..., tn), todos eles procurando sempre a refutao da teoria apresentada. No caso de algum desses testes alcanar a falsificao da teoria examinada, retorna-se ao ponto original (ponto 2) e procura-se nova teoria que d conta de todos os testes a que se submeteu a teoria precedente.

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    A aparente complexidade do esquema de Popper no esconde tambm sua simplicidade fundamental. Estamos aqui lidando com a aplicao sistemtica de algo similar ao que tra-dicionalmente se chama mtodo de tentativa e erro. As teorias que so apresentadas para a soluo de algum problema devero ser impiedosamente testadas e eliminadas caso as observa-es comprovem sua falsidade. E mesmo se essas hipteses resistirem aos testes permanecero sendo testadas sempre: nunca se chegar ao ponto em que se poder assegurar definitivamente sua verdade. A nica circunstncia em que se admite a suspenso dessa tentativa contnua de falsific-las ocorre quando so afinal falsificadas. Uma nica falsificao (um nico teste efetivo para a sua falsificao) suficiente para que a teoria no seja mais considerada apta a figurar entre as teorias cientficas aceitas pela comunidade cientfica e no merecer mais que os cien-tistas apliquem seus testes sobre ela.

    O processo do desenvolvimento cientfico vive do incessante esforo crtico, dos testes que so aplicados sobre as teorias, da persistente excluso das teorias falsificadas e de sua substituio por teorias cada vez melhores, isto , teorias cada vez mais eficientes na resposta aos desafios que refutaram suas antecessoras. bem verdade que o advento dessas novas teorias enseja novos problemas que demandaro novas teorias tentativas impondo a permanente continui-dade dessa caminhada. Vrias outras escolas e autores anteriores a Popper (os neo-positivistas, por exemplo) associavam a razo e, em particular, a cincia emprica consecuo de teorias verdadeiras definitivas. Com o falsificacionismo popperiano pretende-se assegurar apenas a procura da verdade - busca infinita. Embora essa busca no tenha um fim e no garanta nunca a obteno de certezas, esse processo permite que avancemos sempre e saibamos cada vez mais acerca do mundo que nos cerca.

    2.5 A generalizao do falsificacionismo

    O mtodo falsificacionista popperiano tem sido alvo de anlises, adeses e ataques desde seu enunciado original, na dcada de 1930. Mas independentemente de sua aceitao ou rejeio permanece sendo uma referncia para os estudiosos da cincia emprica e da filosofia da cincia. As questes que evoca e a rede de reas e temas que influencia so muitas e multifacetadas.

    Particularmente instrutiva a respeito da fertilidade da ideia original de falsificabilidade a aplicao mais ampliada que Popper lhe atribui e que desenvolve em obras mais recentes.

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    Como vimos, o critrio de falsificabilidade foi originalmente preconizado como um defi-nidor de cincia que, paralelamente, definiria tambm um modelo de escolha entre teorias (decidibilidade interterica) a respeito do mundo emprico. Nesse sentido, teramos uma imagem de como deveria funcionar o processo de crtica racional quando aplicado a hipteses descritivas/explicativas sobre a natureza. Seria como se o cientista tivesse um manual de ins-trues capaz de lhe dizer como agir racionalmente sempre que se defrontasse com a tarefa de praticar a cincia e escolher uma teoria cientfica. Diria Popper: Voc quer ser cientista e quer fazer escolhas tericas racionais? Muito bem, aja da seguinte forma: sempre que enfrentar um problema ou questo sobre o mundo, proponha uma teoria e, em seguida, proceda a testes rigorosos. Se ela no resistir a esses testes, elimine-a e procure uma nova teoria. Se ela resistir quelas provas, mantenha a teoria, mas permanea sempre aplicando novos testes. Mantendo esse procedimento, voc preservar a racionalidade e o avano da cincia. Desse modo, voc ser um bom cientista! Ou seja, a dica de Popper conscientemente restrita ao papel do cientista e da presena da razo/racionalidade na dinmica da cincia emprica.

    Entretanto, a inteno de Popper ao considerar especificamente a cincia emprica (rea habitada por disciplinas cientficas maduras, como a Fsica, Qumica e Biologia) no quer dizer que veja na cincia o nico terreno legtimo de conhecimento. No esqueamos que Popper mesmo se considera um filsofo e reconhece estar praticando Filosofia, uma disciplina reco-nhecidamente no-cientfica. No h dvida de que via na cincia emprica o campo mais bem sucedido do conhecimento humano, uma rea em que a aplicao sistemtica do mtodo crtico permitiu afinal o progresso. Outras reas de nosso conhecimento no foram to bem-sucedidas e foroso reconhecer que somente na cincia indiscutvel a existncia de progresso cogni-tivo. Mas nem por isso reas no-cientficas, como a Filosofia (ou qualquer uma das chamadas Cincias Humanas), no deveriam ser, elas tambm, balizadas por procedimentos racionais de discusso e crtica.

    O reconhecimento de que escolhas racionais no se circunscrevem cincia, permite a Popper que sugira uma base racionalista ampliada a todo e qualquer tipo de conhecimento terico. Em toda e qualquer circunstncia, o que devemos sustentar, diz Popper, uma atitude crtica, atitude no circunscrita cincia e que se caracteriza pela nossa disposio em abandonar nossas crenas caso encontremos bons argumentos para isso. Devemos estar prontos a rever

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    nossos pontos de vista na cincia, mas o mesmo se aplica a nossas ideias polticas, nossas teorias filosficas e mesmo nossas avaliaes de outras pessoas.

    essa concepo mais abrangente da presena da razo que permite a Popper e seguidores aplicar modelos prximos ao falsificacionismo cientfico mesmo a campos aparentemente afas-tados da cincia, como o desenvolvimento da arte. Em todos esses casos, partimos sempre de (1) problemas/questes, que demandam (2) solues tentativas, que sero criticadas e selecionadas, (3) eliminando-se o erro e (4) ensejando novos problemas que demandaro novas solues.

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    TEMA 3

    A Cincia Contempornea e a noo de modelo

    Sabemos da importncia que a Cincia Contempornea adquiriu em nossa vida atual e que, por isso, vrios pensadores se debruaram sobre a tarefa de exibir critrios que permitam determinar se um conhecimento ou no cientfico.

    Certamente, ao exibirmos critrios para caracterizar o conhecimento cientfico, estamos prescrevendo como a cincia deve ou no ser feita. Mas como determinar esses critrios? Dentre as diversas maneiras de se determinar tais critrios, ope-se aquelas que so meramente prescritivas daquelas que so descritivas, isto , daquelas que realizam uma anlise da forma geral do conhecimento cientfico para, a partir da, chegar a um critrio geral do que deve ser considerado como cincia e do que no deve.

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    Dentre os filsofos da cincia que tem uma atitude descritiva, em oposio a uma atitude meramente prescritiva, encontra-se o filsofo francs Gilles Gaston Granger (1920 - ). Granger tem uma forte ligao com a formao do pensamento filosfico no Brasil e com seu desen-volvimento posterior, pois foi um dos professores franceses enviados pelos Servios Culturais da Embaixada da Frana no Brasil para exercer uma das ctedras do Curso de Filosofia da Universidade de So Paulo (USP), funo que exerceu de 1947 a 1951. De 1986 a 1991, foi professor da cadeira de Epistemologia Comparativa no Collge de France, uma das mais pres-tigiadas instituies de ensino e pesquisa da Frana, tendo se tornado Professor Honorrio do Collge de France em 1990.

    Para entender a fora do pensamento de Granger, vamos comear por uma reflexo geral sobre como conhecimento pode ser expresso at culminar na caracterizao proposta por ele.

    3.1 Como a Realidade?

    Consideremos a questo: Como a Realidade?

    Notemos que a pergunta feita Como a Realidade? e no O que a Realidade? porque no se trata aqui de exibir critrios que permitam determinar o que a Realidade em oposio ao que no Realidade, mas, trata-se apenas de, suposto que algo real, simplesmente expli-citar como a Realidade.

    Tornando mais precisa a questo inicial, podemos perguntar:

    (1) Como explicitar, ainda que parcialmente, como a Realidade?

    (2) Como explicitar, ainda que parcialmente:

    (2.1) os elementos que a constituem e

    (2.2) os comportamentos desses elementos?

    Respondendo parte (2.1), temos que uma das formas de se explicitar, ainda que parcialmente, os elementos que constituem a Realidade fazer uso de signos para designar seus elementos.

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    Sem aprofundar na discusso sobre o que um signo, assumiremos que dentre os signos esto as palavras, as letras ou, de forma mais geral, marcas sobre o papel (ou sobre a tela de um computador), ou os sons da voz, ou seja, o que podemos usar para designar algo.

    Assim, por exemplo, a palavra Sol (escrita ou falada) designa o Sol, a estrela mais prxima da Terra. Ou ainda, a letra H designa um tomo de hidrognio e a letra O um tomo de oxignio, bem como um trao - pode designar o compartilhamento de pares de eltrons entre tomos, de forma que o signo H-O-H designa uma molcula de gua, composta por dois tomos de hidrognio e um tomo de oxignio com o compartilhamento de dois pares de eltrons pelos tomos de hidrognio e o tomo de oxignio.

    Respondendo, ento, parte (2.2) da pergunta (2) acima, podemos, por meio de signos, usar as aes e operaes sobre esses signos para representar as aes possveis dos elementos que os signos designam, ou seja, seus comportamentos possveis.

    Por exemplo, a prpria juno dos elementos hidrognio e oxignio, na formao da gua, pode ser representada pela operao de se juntar os signos que representam tomos desses ele-mentos, respectivamente H e O, e o signo que representam o compartilhamento de eltrons -, escrevendo ento H-O-H, como fizemos acima.

    Chamando de significados aquilo que designado por um signo, temos, ento, o seguinte diagrama, que chamaremos de Diagrama R para signos.

    Significados Signos

    Aes e Operaes sobre ou dos significados

    Operaes

    sobre signos

    Diagrama 1: o Diagrama R para signos.

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    No exemplo da formao da molcula de gua fica, a diagrama acima se torna:

    tomo de hidrogniotomo de oxignio

    Compartilhamento de eltrons

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    Formao da molcula de gua H-O-H

    Diagrama 2: o Diagrama R para signos no caso da formao de molcula de gua.

    Esta forma de representao (por sistema de operaes sobre signos) exatamente aquela presente na Cincia, o que o tema do nosso prximo tpico.

    3.2 A caracterizao da Cincia emprica segundo Granger: os modelos

    Neste tpico, veremos como, segundo o pensamento de Gilles-Gaston Granger, o sistema de operaes sobre signos, exposto no tpico anterior, nos permite caracterizar o conhecimento cientfico.

    Segundo Granger:

    O conhecimento cientfico do que depende da experincia consiste sempre em construir esquemas ou modelos abstratos dessa experincia, em explorar por meio da lgica e das matemticas, as relaes entre os elementos abstratos desses modelos, para finalmente deduzir da propriedades que correspon-dam, com uma preciso suficiente, a propriedades empricas diretamente observveis (GRANGER, 1994, p. 70-71).

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    Nesse sentido, a Cincia uma das formas de se explicitar, ainda que parcialmente, uma resposta questo posta no incio deste texto: Como a Realidade?

    Ou seja, para se responder a essa questo constri-se esquemas ou modelos abstratos com as caractersticas descritas acima por Granger. Assim, de forma geral, os modelos da cincia so sistemas de operaes sobre signos, como descritos no Tpico 2.1, que visam explicar um con-junto de elementos da Realidade e seus comportamentos, presentes nos experimentos cientficos.

    Para dar uma ideia mais precisa do que vem a ser os modelos cientficos, vamos, ao invs de entrar nos detalhes da anlise procedida por Granger, dar abaixo alguns exemplos de mode-los nas diversas reas da Cincia. Lembremos que, como dissemos na introduo deste texto, Granger no postula o critrio de cincia (exposto na citao acima) de forma a priori, mas sim a partir de anlises da forma geral do conhecimento cientfico existente.

    A. Em Fsica: a queda de corpos soltos de uma altura H0.

    Consideremos ento os seguintes signos e suas designaes.

    H0 a medida da altura inicial em que solto o corpo

    H a medida da altura que se encontra o corpo no instante T

    T o prprio instante em que pode ser medida a altura H

    K uma constante determinvel experimentalmente

    Temos ento que a altura H de corpos em queda, soltos de uma altura H0, segue a lei:

    H = H0 K.T.

    As operaes sobre signos (e consequentemente sobre as medidas que eles representam) so regradas pelas operaes aritmticas usuais.

    Podemos observar, desse exemplo, que um modelo abstrato (desconsidera-se, no caso, por exemplo, o atrito do corpo com o ar).

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    B. Em Qumica: a constituio da gua por combusto de gs hidrognio.

    Como vimos, o signo H-O-H usado para representar a molcula de gua.

    Os signos, nele usados, designam, respectivamente:

    H um tomo de hidrognio,

    O um tomo de oxignio, e

    - um par de eltrons compartilhados.

    Em temos das operaes sobre signos, podemos considerar, por exemplo, a equao

    H-H + O=O + H-H H-O-H + H-O-H

    que representa a combusto do hidrognio, resultando em gua; nela o signo + designa a coexistncia das molculas em uma certa regio do espao e o signo designa a transformao que implica na recombinao dos tomos presentes.

    C. Em Biologia: a hereditariedade mendeliana.

    As Leis de Mendel permitem relacionar caracterstica dos indivduos biolgicos (chamada, por definio, de fentipos) com certos elementos endgenos que possibilitam essas caracters-tica (chamados, por definio, de gentipo, constitudo de genes) para, a partir da, estudar a hereditariedade dos seres vivos e suas variaes.

    Assim, por exemplo, usamos dois signos V e v para designar dois genes de ervilhas que podem vir a pertencer a um indivduo, cujas combinaes apresentam os seguintes fentipos:

    vv ervilhas verdesVv ervilhas amarelasVV ervilhas amarelas

    Notemos que devido a presena de V determinar sempre a cor amarela, ele chamado, por definio, de gene dominante.

    Assim, por exemplo (veja Tabela 1 abaixo), podemos, realizar a operao de compor pares de signos para determinar que o cruzamento de dois indivduos amarelos de genes Vv (dispostos

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    na primeira linha e na primeira coluna) pode resultar indivduos verdes (vv) e amarelos (Vv e VV), respectivamente, com a proporo (ou probabilidade): 25% e 75%.

    V v

    V VV (25% amarelo) Vv (25% amarelo)

    v Vv (25% amarelo) vv (25% verde)

    Tabela 1: resultado do cruzamento de dois indivduos amarelos de genes Vv.

    D. Em Economia: leis da Oferta e da Demanda.

    Se os signos P e Q designam, respectivamente, o preo e a quantidade demandada de um produto, podemos ento representar certa ao geral do mercado pelas leis a seguir, na qual o signo representa um aumento na quantidade considerada e representa uma reduo

    na quantidade considerada e o signo representa uma relao de causa e efeito.

    Lei da Demanda o aumento do preo P causa a reduo da quantidade demandada Q , que pode ser representada pelo esquema abaixo.

    P Q

    Lei da Oferta a diminuio do preo P causa a o aumento da quantidade demandada Q , que pode ser representada pelo esquema abaixo.

    P Q

    E. Em Psicologia: a Psicologia Topolgica.

    Na Psicologia Topolgica usamos a noo de espao vital que , por definio,

    A totalidade de fatos que determinam o comportamento (C) de um indi-vduo num certo momento. O espao vital (E) representa a totalidade de possveis eventos. O espao vital inclui a pessoa (P) e o ambiente (A). [Assim, o comportamento C funo de E, ou ainda, de P e A] C = f (E) = f (P, A).(cf. Lewin, 1973, p.242).

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    A partir da, podemos utilizar representaes grficas do espao vital para estudar o com-portamento. Assim, por exemplo, a Figura 1 abaixo representa uma situao de um rapaz que quer ser mdico (LEWIN, 1973, p. 67)

    P Oac c m i cl

    Figura 1: Situao de um rapaz que quer ser mdico. P, pessoa; O, objetivo; ac, exame de admisso; c, colgio;

    m, escola mdica; i, internato, cl, prtica clnica.

    interessante notar que para aplicao dos conceitos da Psicologia Topolgica usamos um mtodo sempre aberto, o Mtodo da Aproximao, tal que Este mtodo determina, primeiro, a estrutura do espao vital como um todo e avana gradualmente, determinando cada vez mais proprie-dades especficas at ser atingido o mximo de exatido. (LEWIN, 1973, p. 236). Ou seja, primeiro o psiclogo desenha um conjunto sem regies, como o contorno da figura acima que representa o espao vital como um todo, ou seja, o conjunto dos fatos que determinam o comportamento do sujeito em relao quele momento; depois, o psiclogo vai determinando as regies que estariam envolvidas na explicao do comportamento do indivduo, como no caso das regies P, ac, c, m, i, cl e O. Tal Mtodo de Aproximao permite que sempre adaptemos a anlise da Psicologia Topolgica s diversas situaes peculiares a cada sujeito.

    Para uma pequena introduo Psicologia Topolgica e Vetorial de Kurt Lewin, consultar Tassinari (2009).

    Visto alguns modelos cientficos das diversas reas da Cincia, passemos agora a outra carac-terstica essencial da Cincia Contempornea segundo Granger: a verificao.

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    3.3 A verificao do conhecimento cientfico

    Voltando ao contexto geral, vimos como a constituio de modelos caracterstica da Cincia Contempornea. Podemos nos perguntar ento: como saber se um modelo est correto?

    A resposta a essa questo, segundo Granger (1992), est relacionada a uma forma de proce-dimento que ele denomina de verificao. De forma geral e esquemtica, a verificao pode ser entendida como a comparao entre o jogo das operaes sobre signos admitidas como possveis pelo modelo e o jogo das aes e operaes possveis dos seus significados, estabelecido pelos resultados dos experimentos cientficos.

    Considerando o procedimento de verificao em seu aspecto mais geral, podemos dizer que, na medida em que um modelo se constitui de signos, de relaes e operaes sobre esses, o modelo estabelece, no domnio desses signos, uma estrutura matemtica abstrata1 que pode ser posta em correspondncia (total ou parcial) com a estrutura existente no domnio dos sig-nificados que esses signos designam, ou seja, na experincia.

    Notemos, de incio, que existem inmeras operaes possveis de serem realizadas sobre signos, como por exemplo, composies e decomposies; no entanto, no caso dos modelos, apenas algumas so admitidas (aquelas que representam as aes e operaes possveis dos significados, na experincia); a verificao relativa ento apenas a essas operaes admitidas pelo modelo.

    nesse sentido que podemos compreender a parte final da citao de Granger acima: de que a Cincia consiste tambm de se explorar por meio da lgica e das matemticas as relaes entre os elementos abstratos desses modelos, para finalmente deduzir da propriedades que correspondam, com uma preciso suficiente, a propriedades empricas diretamente observveis.

    1 De forma geral, podemos caracterizar uma estrutura matemtica como constituda por um conjunto de elementos

    (chamado de domnio da estrutura) e por um conjunto de relaes entre os elementos desse domnio. Nesse contexto,

    uma estrutura matemtica pode ser completamente abstrata e as relaes so definidas como um conjunto de listas de

    elementos (escrevemos para denotar a lista com dois elementos a e b, escrevemos para denotar a lista

    com trs elementos a e b, e c, etc). Exemplo de estrutura matemtica abstrata: a estrutura constituda pelo conjunto {a,

    b, c} e pela relao R = {, }. Um exemplo concreto dessa estrutura abstrata a estrutura constituda pelo

    conjunto {Scrates, Plato, Aristteles} (ou seja, a = Scrates, b = Plato, c = Aristteles) e pela relao R definida por

    ser mestre de, ou seja, R = {, }, j que Scrates mestre de Plato e Plato

    mestre de Aristteles. As operaes so vistas como relaes. Por exemplo, no domnio dos nmeros naturais {0, 1, 2,

    3, ...}, podemos definir a relao soma entre os nmeros x, y e z tal que os nmeros x, y e z esto na relao soma (ou

    seja, pertence ao conjunto soma) se, e somente se, x + y = z.

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    Por exemplo, considerando o conhecimento sobre qumica relativo a formao de molculas com tomos de hidrognio e oxignio e que, no modelo, podemos realizar operaes tais que cada tomo de hidrognio H faz uma ligao (H-) e cada tomo de oxignio O faz duas ligaes (-O-), como na molcula (H-O-H), podemos explorar por meio da lgica e das matemti-cas as relaes entre os elementos abstratos desses modelos e nos perguntar: existe a molcula H-O-O-H?

    O Diagrama 3 representa essa explorao por meio da lgica e das matemticas desse modelo.tomo de hidrognio

    tomo de oxignioCompartilhamento de

    eltrons

    HO-

    Formao de molcula H-O-O-HDiagrama 3: o Diagrama R para um modelo de uma possvel molcula.

    No caso, a verificao da possibilidade de existncia experimental da molcula H-O-O-H, significa a investigao da possibilidade de existncia experimental de substncias com molculas desse tipo tal que essas substncias tenham propriedades empricas diretamente observveis decorrentes das propriedades deduzidas teoricamente no modelo da molcula acima, como, por exemplo, em relao aos seus processos de formao ou de decomposio.

    De fato, essa molcula existe experimentalmente e chamada de perxido de hidrognio.

    O artigo Perxido de Hidrognio: Importncia e Determinao (Mattos; et al., 2003) d uma ideia de como est verificada a existncia dessa molculas atualmente pela Qumica contempornea2.

    Em especial, a gua oxigenada que compramos na farmcia uma mistura de gua e perxido de hidrognio e quando em contato com a pele ou com o sangue, que contm uma enzima,

    2 Agradeo ao Prof. Marcelo Maia Cirino pela referncia bibliogrfica e pelas dvidas respondidas respeito.

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    chamada de catalase, favorece a reao de decomposio do perxido de hidrognio em gua (H-O-H) e gs oxignio (O=O) pela reao representada por

    H-O-O-H + H-O-O-H H-O-H + O=O + H-O-H

    e, neste caso, a liberao do gs oxignio pode se notada pela formao de vrias bolhinhas, formando uma espuma.

    Voltando ao aspecto mais geral do procedimento de verificao, podemos dizer que, na medida em que o procedimento de verificao consiste em comparar a estrutura das relaes e operaes sobre signos, constitutiva do modelo, com a estrutura existente no domnio dos significados na experincia, as cincias fornecem, em um certo momento histrico, a represen-tao mais adequada do domnio da Realidade que elas descrevem.

    Em um outro momento posterior, a representao mais adequada pode vir a ser outra, mas a nova representao conserva, em certa parte, o que foi estabelecido pelo modelo anterior, pois sua sistematizao das aes e operaes possveis de serem feitas na Realidade se conserva, ainda que parcialmente.

    Terminemos este tpico, observando que, como para Granger a existncia de modelos e de verificaes deles condio essencial do conhecimento cientfico, ento os critrios de Granger para caracterizar um conhecimento como cientfico mais estrito que o critrio de falsificabi-lidade de Karl Popper (visto no Tema 2 desta disciplina): o conhecimento cientfico, segundo Granger, tem que fornecer a representao mais adequada possvel da Realidade em termos das aes e operaes possveis de realizarmos experimentalmente nela, em dado momento histrico.

    3.4 Consequncias da definio de Cincia e a impossibilidade de um nico modelo da Realidade

    Voltando ao contexto geral, temos que a constituio do conhecimento cientfico contem-porneo implica a possibilidade da constituio de modelos e verificaes deles.

    Relacionando ento o contedo exposto nos ltimos tpicos, temos que, na medida em que conhecemos bem um domnio de objetos e as aes possveis de se realizar sobre eles (Tpico 2.1), torna-se natural representar o conhecimento desse domnio em sistemas de operaes

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    sobre signos e, portanto, proceder a construo de modelos, como defende Granger (Tpico 2.2), sendo que esse conhecimento tem que estar sempre sujeito verificao (Tpico 2.3).

    Nesse caso, quanto mais as operaes sobre signos, presentes nos modelos cientficos, des-crevem os comportamentos dos elementos, mais precisa se torna a representao de como a Realidade e mais confiana ganhamos em relao aos modelos propostos. Em particular, isso explicaria a confiana e considerao que temos em relao Cincia.

    interessante notar que qualquer discurso sobre como a Realidade pode ser interpretado como um jogo de operaes sobre signos na medida em que o prprio discurso constitudo de signos (palavras) e operaes sobre esses (estabelecidas pelo prprio discurso); no caso do conhecimento cientfico, a explicitao dos elementos (atravs dos signos) e de suas correlaes (atravs das operaes sobre signos) permite um maior controle sobre a explicitao do com-portamento da Realidade.

    Do ponto de vista da linguagem do conhecimento cientfico, interessante notar tambm como, de uma forma geral e esquemtica, a ideia do filsofo e matemtico alemo Gottfried W. Leibniz (16461716) de uma lingua characteristica universalis (como vimos no Tema 1 - A Lgica como Clculo Raciocinador), veio a se realizar pela Cincia Contempornea (Fsica, Qumica, Biologia, Psicologia, Sociologia, etc.), na medida em que a Cincia Contempornea elabora uma lngua artificial, com os diversos modelos criados, na qual podemos deduzir fatos sobre a Realidade, com uma espcie de clculo das caractersticas dos elementos expressos nos modelos. Notemos que o termo caracteres denota, por um lado, os prprios signos e, por outro lado, propriedades, e que esse duplo aspecto considerado pela ideia de uma lngua caracters-tica. Por exemplo, no caso do modelo da formao de molculas com tomos de hidrognio e oxignio, temos a constituio de uma linguagem que, por um lado, convenciona certos signos, como H, O, -, para designar, respectivamente, um tomo de hidrognio, um de oxignio e uma ligao eletrnica entre tomos, bem como, por outro lado, permite expressar diretamente suas propriedades, como, por exemplo, com as expresses H- e -O- que designam o fato de que tomos de hidrognio fazem uma ligao e tomos de oxignio fazem duas ligaes. Assim, a Cincia, como uma espcie de lngua das caractersticas, torna possvel deduzir fatos da Realidade, a partir das operaes sobre signos regradas pela Lgica e pela Matemtica, em uma espcie de clculo raciocinador.

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    Por fim, a partir dessa caracterizao da cincia e, se considerarmos o conjunto de todas as cincias contemporneas e suas relaes, que vamos chamar de Sistema das Cincias, podemos chegar a um importante resultado sobre um dos principais limites da Cincia Contempornea: a impossibilidade de um nico modelo completo para o Sistema das Cincias.

    Para analisar a questo da impossibilidade de um nico modelo completo para o Sistema das Cincias, notemos inicialmente que as cincias do homem fazem parte do Sistema das Cincias e que um modelo completo para o Sistema das Cincias implica a existncia de um modelo que explique completamente o comportamento humano. Granger mostra que existe uma sria limitao na construo de modelos nas cincias humanas, que, de forma geral, decorre da sin-gularidade (e multiplicidade) das significaes envolvidas nos fatos humanos atuais, vividos aqui e agora. Fazendo uma anlise geral, podemos dizer que, para construir um modelo qualquer, necessrio sempre fazer abstraes de certas qualidades. Porm, tais qualidades, na medida em que so notadas por ns, influenciaro o comportamento humano em algum outro contexto. Logo, o modelo construdo no explicar, completamente, o comportamento humano.

    Claro que um novo modelo poder ento ser construdo; mas, novamente, teramos outras abstraes na sua construo e essas faro com que esse modelo no d conta de outros novos tipos de comportamentos; como o processo continua sempre, nunca teremos um modelo nico que explicaria os atos humanos em sua totalidade. Granger no diz:

    O obstculo nico, mas radical, [ao conhecimento cientfico] me parece ser a realidade individual dos acontecimentos e dos seres. O conhecimento cientfico exerce-se plenamente quando pode neutralizar essa individu-alidade, sem alterar gravemente seu objeto, como acontece em geral nas cincias da natureza (GRANGER, 1994, p. 113).

    O obstculo fundamental est, evidentemente, na natureza dos fenme-nos de comportamento humano, que carregam uma carga de significaes que se opem a sua transformao simples em objetos [dentro de modelos], ou seja, em esquemas abstratos lgica e matematicamente manipulveis (GRANGER, 1994, p. 85).

    Um sentimento, uma reao coletiva, um fato de lngua parece que dificilmente podem ser reduzir-se a tais esquemas abstratos (GRANGER, 1994, p. 86).

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    Apesar dessa dificuldade, Granger no pretende diminuir o papel do conhecimento cientfico do homem, caracterizado pela construo de modelos, para substitu-lo por um outro tipo de conhecimento ou recair em um ceticismo profundo; pretende sim refletir sobre as insuficincias essenciais de um conhecimento por modelos.

    No caso das cincias do homem, temos que o modelo constitui uma representao parcial de um limite jamais atingido:

    No caso dos fatos humanos, ela [a Cincia] se empenha por envolver cada vez mais estreitamente o individual em redes de conceitos, sem esperar um dia poder atingi-lo (GRANGER, 1994, p. 113).

    Assim, a questo no reduzi-los, e sim represent-los, ainda que parcial-mente, em sistemas de conceitos (GRANGER, 1994, p. 86).

    No se trata de substituir, neste caso, o conhecimento atravs de modelos por outro tipo de conhecimento, pois, essa situao no pode ser superada por nenhuma teoria que expresse em detalhes o comportamento humano, j que, como vimos acima, qualquer discurso sobre como a Realidade pode ser interpretado como um jogo de operaes sobre signos (na medida em que o prprio discurso se explicita por palavras e operaes sobre elas) e que, por esse motivo, os modelos em cincias humanas expressam o comportamento humano com a mxima adequao.

    Alm dessa limitao do conhecimento cientfico do ser humano, destacada por Granger, podemos citar ainda as limitaes do uso das estruturas lgico-matemticas (inerentes aos mode-los) para explicar o processo de cognio em geral, limitaes estabelecidas a partir de anlises epistemolgicas dos Teoremas da Incompletude de Gdel (j comentadas no ltimo tpico do Tema 1 desta disciplina, A Lgica como Clculo Raciocinador, e que no vamos retomar aqui).

    Por fim gostaramos de citar uma das consequncias da impossibilidade de um nico modelo completo para o Sistema das Cincias que a constituio das teorias da Auto-organizao como uma parte da Metodologia da Cincia e da Sistmica na qual se elaboram conceitos e mtodos para o estudo de fenmenos classificados como auto-organizados (DEBRUN, 1996). Em especial, segundo uma concepo radical de auto-organizao, na construo de modelos ou teorias para a explicao de fenmenos de um sistema auto-organizado, temos uma sequncia de modelos que explicam cada vez melhor esse sistema, mas sem que exista algum deles que o

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    explique de forma completa, pois, caso existisse, a organizao do sistema no seria auto (como referido na expresso auto-organizada), isto , ela no dependeria apenas de si prpria, mas seria devido a apenas uma forma geral de organizao aplicvel a diversos sistemas.

    Um dos domnios em que ocorre este tipo de auto-organizao aquele da constru-o do conhecimento em geral e, em particular, dos conhecimentos lgicos e matemticos (TASSINARI, 2003), que, por sua vez, so usados, como vimos, em diversos modelos, no Sistema das Cincias.

    Nesse sentido, a auto-organizao surge tambm na medida em que a prpria Epistemologia, ou seja o estudo do conhecimento cientfico, acaba por se voltar sobre si mesmo, ao buscar se conhecer utilizando os prprios mtodos da cincia (cf. o link http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/projetos/toque/podcasts.php?c=46)

    Um exemplo histrico da utilizao dos mtodos cientficos para se estudar a prpria cincia a Epistemologia Gentica, na qual seu fundador Jean Piaget e seus colaboradores, estudam a constituio do conhecimento cientfico no apenas do ponto de vista histrico-crtico, mas tambm do ponto de vista psicolgico, com a construo de modelos no seio da Psicologia Gentica, tambm fundada por Piaget. o que veremos, mais detalhadamente, no Tema 4, a seguir, nesta disciplina.

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    http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/46936/5/02_redefor_d08_filosofia_tema_04.flv

    TEMA 4

    A Epistemologia Gentica

    Neste texto, vamos tratar da Epistemologia Gentica, tal como concebida por Jean Piaget (1896-1980), como uma introduo ao seu pensamento. Veremos que Piaget no se prope a fazer uma epistemologia prescritiva, ou seja, uma epistemologia que diz a priori o que deve-mos ou no devemos considerar como Cincia, mas realiza uma anlise da forma do conhecer, em geral, e do conhecer cientfico, em especfico, estabelecendo, alm de uma epistemologia, tambm uma teoria do conhecimento atual, multi e interdisciplinar. Veremos ainda que uma das maiores contribuies de Piaget para a Epistemologia e para a Teoria do Conhecimento foi a de construir modelos e verific-los (no sentido empregado no Tema 3 desta disciplina - A Cincia Contempornea e a noo de modelo) para responder s questes de fato presentes nessas reas.

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    4.1 Viso geral

    Atualmente, o nome de Jean Piaget, criador da Epistemologia Gentica, tem sido forte-mente associado Educao e, sem dvida, essa associao no gratuita, pois suas pesquisas e reflexes forneceram elementos e anlises originais a respeito do Conhecimento Humano. Devemos notar, entretanto, que a Educao, mesmo sendo uma rea de imenso valor, no foi seu interesse de pesquisa principal. Em poucas palavras, Piaget fundou duas reas do conhe-cimento, a Epistemologia Gentica e a Psicologia Gentica, pertencentes, respectivamente, s reas da Filosofia e Psicologia.

    O cerne das pesquisas de Piaget o Conhecimento humano no sentido filosfico, no apenas como produto, mas tambm como processo. As pesquisas de Piaget sempre foram no sentido de responder questes filosficas fundamentais relativas Teoria do Conhecimento (que estuda a relao entre sujeito e objeto no ato de conhecer), Epistemologia (que um estudo crtico dos princpios, hipteses e resultados das diversas cincias), Metodologia da Cincia e Lgica. Muitas so as contribuies de seus estudos a essas reas da Filosofia, e Epistemologia Gen-tica o termo usado por Piaget para designar a reunio desses estudos.

    Sumariamente, podemos listar algumas dessas contribuies.

    No mbito epistemolgico, podemos mencionar os estudos das constituies de vrias noes e conceitos cientficos (por exemplo, espao, tempo, causalidade, acaso, velocidade, fora, atomismo, quantidades fsicas e matemticas, geometria), bem como as anlises dos mtodos das diversas cincias naturais e humanas (como o estruturalismo e a dialtica) e o estudo do Sistema das Cincias.

    Em relao Teoria do Conhecimento, temos, alm do estudo das noes e conceitos e das anlises acima mencionados, os estudos mais pormenorizados dos elementos necessrios aquisio do conhecimento, como, por exemplo, os estudos relacionados percepo, represen-tao, identidade, classificao, seriao, operao mental, necessidade e possibilidade lgicas, formao das noes de conservao, generalizao, contradio, significao, compreenso, aprendizagem e memria.

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    A Epistemologia Gentica fornece tambm contribuies outros campos Filosofia, em especial, tica contempornea e discusso sobre a natureza do ser humano, com, por exemplo, os estudos da formao das estruturas necessrias moralidade ou do simbolismo inconsciente.

    Saiba mais da Bibliografia de Piaget.

    Vamos, neste texto, estudar alguns aspectos da Epistemologia Gentica e algumas de suas contribuies Teoria de Conhecimento.

    4.2 O incio da Epistemologia Gentica: as questes de fato sobre o conhecimento.

    Desde o incio de sua vida intelectual Piaget decide consagrar sua vida Filosofia1. Nesse incio, Piaget definir tambm uma postura que marcar toda a sua obra: sempre submeter ao teste experimental as questes sobre o conhecimento que dependem dos fatos.

    Podemos nos perguntar, por exemplo: como o ser humano conhece os nmeros? A partir da, podemos ter vrias concepes (filosficas) a respeito. Por exemplo, podemos supor que pelo fato de vermos ou usarmos uma coisa, duas coisas, trs coisas, etc., generalizamos e aprende-mos os nmeros; podemos tambm pensar que basta que algum nos ensine a contar para que reconhecemos a existncia dos nmeros. Qual das diversas concepes a respeito estaria correta?

    Notemos ento que a questo Como o ser humano conhece os nmeros? uma questo de fato e podemos ir aos fatos para buscar respond-la. Nesse sentido, para construirmos uma teoria do conhecimento que no se afaste dos fatos, importante fazer um estudo experimental da gnese do nmero (bem como das demais noes relativas ao conhecimento como, por exem-plo, de classificao, seriao, espao, tempo, causalidade, acaso, etc.) e a Psicologia Gentica, fundada por Jean Piaget, busca exatamente realizar esse(s) estudo(s).

    1 Mais exatamente, o interesse de Piaget pela Filosofia se iniciou no vero de 1911, quando aos 15 anos, s margens

    do lago Annecy, na Suia, seu padrinho, homem de letras preocupado com a excessiva especializao em Biologia do

    afilhado (que poca j publicara seu primeiro artigo sobre malacologia), explicou-lhe A Evoluo Criadora, do filsofo

    francs Henri Bergson (1859-1941). Esse contato com a Filosofia exerceu verdadeiro fascnio sobre Piaget e ele prprio

    nos conta (1983, p. 72): De volta vida escolar, havia tomado minha deciso: consagraria minha vida a filosofia [...].

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    Para termos uma noo de alguns experimentos realizados em relao noo de nmero veja os vdeos abaixo. Notemos que o segundo e o terceiro vdeos mostram que a noo de quantidade no depende s de se saber contar.

    Piaget - Conservao das fichas (http://www.youtube.com/watch?v=rYcAjC_tHkE)

    Piaget - Conservao I (http://www.youtube.com/watch?v=JANEjNpqMOM)

    Piaget - Conservao IV (http://www.youtube.com/watch?v=9wgLsEhHmB4)

    Assim, Piaget escrever:

    O primeiro objetivo que a epistemologia gentica persegue , pois, por assim dizer, de levar a psicologia a srio e fornecer verificaes em todas as questes de fato que cada epistemologia suscita necessariamente, mas substituindo a psicologia especulativa ou implcita, com a qual em geral se contentam, por meio de anlises controlveis [...] (PIAGET, 1973, p. 13).

    A deciso de Piaget de sempre submeter ao teste experimental as questes sobre o conheci-mento que dependem dos fatos o levar a constituir a Psicologia Gentica antes da Epistemologia Gentica, como a parte inicial desta, e far com que a fundao da Epistemologia Gentica s ocorra muito tempo depois.2

    Analisemos melhor, no prximo tpico, a relao entre a Psicologia Gentica e a Epistemo-logia Gentica.

    4.3 Epistemologia Gentica e Psicologia Gentica

    Inicialmente, devemos notar que, apesar de a Psicologia Gentica estar na base da Episte-mologia Gentica, no devemos confundi-las entre si. Como nos diz Piaget:

    A Psicologia Gentica a cincia cujos mtodos so cada vez mais semel-hantes aos da biologia. A epistemologia, em compensao, passa, em