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Draft 1/1/2012 - Claudio F. Costa, ppgfil/UFRN COMO EXPRESSÕES REFERENCIAIS REFEREM? 1

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Draft 1/1/2012 - Claudio F. Costa, ppgfil/UFRN

COMO EXPRESSÕES

REFERENCIAIS REFEREM?

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A filosofia é perene, mas é também efêmera. Está constantemente sendo confundida e destruída e transformada em algo que não é ela mesma, de modo que se desejamos filosofar estaremos continuamente fazendo face à tarefa de redescobri-la e restaurá-la.Thomas Proffen

A filosofia fantasmológica triunfa porque mundos possíveis elegantemente estruturados são tão mais agradáveis de explorar do que a realidade de carne e sangue que nos cerca aqui na terra... Uma tradição filosófica que sofre endemicamente do vício do horror mundi condena-se à futilidade.Kevin Mulligan, Peter Simons, Barry Smith

Não se deve confundir a importância com a dificuldade. Um conhecimento pode ser difícil sem ser importante. Por isso a dificuldade não decide nem pró nem contra o valor de um conhecimento. Esta depende da magnitude e pluralidade de suas conseqüências.Immanuel Kant

Não existe uma qualidade refinada de conhecimento que se possa obter do filósofo.Bertrand Russell

Tudo está bem como está.Wittgenstein

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PREFÁCIO

Meu primeiro encontro com as teorias filosóficas dos nomes próprios aconteceu

há mais de vinte anos, quando me encontrava na Alemanha escrevendo uma tese

sobre a concepção de significado na última filosofia de Wittgenstein. Como era

de se esperar, a melhor resposta parecia-me ser a teoria do feixe de descrições,

tal como fora defendida por Wittgenstein na seção 79 de suas Investigações

Filosóficas. Por contraste, as poucas leituras que fiz na época sobre a concepção

causal-histórica da referência dos nomes próprios proposta por Kripke me

deixaram escandalizado. O recurso ao batismo e às cadeias causais soava-me

como uma explicação mágica da referência. Não que eu me sentisse à vontade

com a teoria do feixe. Minha opinião era a de que seria necessário impor uma

ordem ao apanhado arbitrário de descrições constitutivas do feixe, e que isso só

poderia ser feito pelo recurso a alguma regra-descrição de ordem superior, capaz

de estabelecer o papel e a força das regras-descrições a ele pertencentes. Mas

logo me esqueci do assunto.

Só voltei a me interessar pela questão dos nomes próprios em 2006, por

razões acidentais. Lembrei-me então de meu antigo projeto. Escrevi um breve

esboço no qual propunha a existência de uma regra cognitiva meta-descritiva

para nomes próprios, capaz de conferir papel e valor aos diversos tipos de

descrição pertencente aos feixes de descrições a eles associados a partir de uma

demanda fundamentadora de localização e/ou caracterização. Apresentei esse

esboço em várias ocasiões, sempre surpreso com a forte reação de rejeição dos

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ouvintes. Contudo, como ninguém me apontava um erro de princípio e como um

pouco de reflexão me mostrava que as objeções seriam facilmente refutáveis,

prossegui. A teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se

exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo ela o que posso oferecer de mais

interessante. Embora ela seja uma teoria mista, incorporando inovações

provenientes da concepção causal-histórica, ela às condiciona às categorias

descritivistas, o que faz com que ela se deixe mais propriamente classificar

como uma refinada elaboração da velha teoria do feixe de descrições. Embora

inevitavelmente mais complexo, o metadescritivismo causal possui maior poder

explicativo do que as teorias anteriores, sendo capaz de vários feitos que o

recomendam: ele é capaz de explicar melhor a maneira como o conteúdo

cognitivo (sentido) do nome próprio contribui para a identificação do seu

portador (referência), de gerar a idéia de que nomes próprios são designadores

rígidos do próprio interior do descritivismo, de explicar de dentro do próprio

descritivismo porque se dá o contraste entre a rigidez dos nomes próprios e a

flacidez das descrições definidas e, finalmente, de responder mais eficazmente

aos contra-exemplos apresentados à teoria do feixe.

Uma vez que me encontrava investigando a função dos nomes próprios, meu

interesse alargou-se para a história das teorias descritivistas e também para a

necessidade de alcançar um entendimento crítico da concepção causal-histórica

que fizesse justiça ao trabalho genial de Kripke. Disso resultaram os capítulos 7

e 8 desse livro.

A investigação do funcionamento dos nomes próprios inevitavelmente me

levou a considerar outras expressões referenciais, como descrições definidas,

termos indexicais e mesmo termos gerais, onde a mesma disputa entre

cognitivismo e referencialismo se repete. Minha pergunta foi irreprimível. Se

havia obtido tão bons resultados defendendo uma espécie de cognitivismo

metadescritivista para o caso dos nomes próprios, por que semelhante maneira 4

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de ver não poderia produzir resultados igualmente interessantes quando aplicada

às outras expressões referenciais? A tarefa me parecia imensa, mas a intuição

era boa, de modo que decidi considerar também essas questões. O objetivo era

duplo. De um lado, queria demonstrar as limitações das teorias referencialistas

aplicadas às outras expressões referenciais; de outro, considerando as objeções,

queria desenvolver melhores explicações cognitivistas (neo-descritivistas ou

neo-fregeanas) para os modos como descrições definidas, indexicais e termos

gerais referem. Foi isso o que tentei fazer nos capítulos 5, 6, 10, 11 e 12 desse

livro. Alguns resultados me parecem memoráveis. Entre eles está a

compatibilização do descritivismo de “Russell” com o de “Frege”, a defesa da

irrelevância das incongruências parciais no resgate descritivista do conteúdo dos

indexicais, a tese da elasticidade do pensamento, a crítica ao externalismo

semântico de Putnam e a proposta de regras meta-descritivas parcialmente

análogas às dos termos singulares na constituição de regras de aplicação dos

termos gerais. Muito do que escrevi, porém, não passa de esboços rudimentares,

que lanço na expectativa de que venham a ser mais adequadamente

desenvolvidos por outros. Assim deve poder ser, dado que a filosofia é work in

progress por definição.

Finalmente, senti a necessidade de esclarecer as assunções filosóficas que me

conduziram a abordar as expressões referenciais da maneira como fiz. Meus

heróis são Frege e Wittgenstein. A meu ver não há nada na filosofia da

linguagem contemporânea comparável à obra desses dois filósofos. Ombreados

por Russell, eles foram “até o osso” das questões filosóficas no que concerne à

amplitude e profundidade de seus insights, longe de permanecerem na

exterioridade dos problemas, ou na discussão de hipóteses sobre hipóteses, tão

comum à filosofia contemporânea (uma razão para tal seria que a filosofia é um

produto cultural e porque as filosofias de Frege e Wittgenstein foram produzidas

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em um tempo no qual a cultura ainda era a principal fonte de valor, ao invés da

ciência, como veio a se tornar o caso).

Escrevi os capítulos 1, 2 e 3 desse livro com o objetivo de aclarar

pressupostos geralmente motivados pelas concepções semânticas desses dois

grandes filósofos. Foi à luz de meu entendimento de Frege que procurei definir,

nos três primeiros capítulos desse livro, o meu desiderato como sendo o de fazer

uma defesa sustentada de uma concepção que é pelo menos tão antiga quanto a

doutrina aristotélica dos conceitos e a doutrina estóica das lekta: o ponto de vista

de senso comum, segundo o qual uma expressão referencial só é capaz de referir

devido a um elo intermediário, que não pertence nem a ela mesma nem ao que

ela se refere. Procurei esclarecer essa tese geral interpretando o elo intermediário

em termos de sentidos (modos de apresentação), que só diferem dos sentidos

fregeanos por serem incapazes de existir fora de suas instanciações cognitivas.

Esses sentidos, por sua vez, são analisáveis em termos de regras e/ou

combinações de regras semântico-cognitivas, determinadoras dos usos

referenciais das expressões correspondentes – uma idéia de inspiração

wittgensteiniana.

Ao fazer isso percebi, em retrospecto, que aquilo que eu estava tentando

fazer poderia ser entendido como a retomada de um programa deixado

inconcluso por Ernst Tugendhat em seu livro de 1976. Esse programa poderia a

meu ver ser fregeanamente concebido como sendo, para o caso fundamental da

frase predicativa singular, o de analisar o sentido epistêmico (Erkenntniswert)

do termo singular como a sua regra de identificação, do termo geral como a sua

regra de aplicação e da frase predicativa completa como a sua regra de

verificação. Essa última regra seria a resultante da aplicação combinada das

duas primeiras, o que foi visto por Tugendhat como uma forma analiticamente

aprofundada de se falar da condição de verdade identificada ao significado. Por

conseguinte, meu desiderato nesse livro deixa-se também explicar como sendo o 6

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de justificar e analisar em maiores detalhes cada uma dessas regras em sua

natureza, subdivisões e relações, além de esclarecer atributos a elas

relacionados, como os de existência e verdade.

Reconheço que a minha tentativa de produzir uma elaboração geral dessas

assunções nos três primeiros capítulos permaneceu inevitavelmente esquemática

e em alguns momentos selvagemente especulativa. Mas o próprio sucesso do

tratamento posterior das expressões referenciais – que depende apenas do que há

de mais bem fundado nessas assunções – em certa medida também as vindica.

Essas são as estações do presente texto, que foi escrito na intenção de ser

entendido por leitores sem conhecimento especializado de filosofia da

linguagem, pois como a entendo ela deve servir antes de tudo aos que se

interessam pela filosofia em geral.

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AGRADECIMENTOS

Devo agradecer ao CNPq por uma bolsa de pós-doutorado na Universidade de

Konstanz junto ao professor Wolfgang Spohn, onde permaneci no período de

2009/2 a 2010/1 e onde pude desenvolver uma primeira versão completa do

presente texto. Tenho muito a agradecer a muitas pessoas, mas em especial

gostaria de agradecer ao professor Wolfgang Spohn por ler e discutir comigo

versões em inglês e em alemão de minhas idéias sobre nomes próprios e termos

gerais. Também gostaria de agradecer ao professor João Branquinho pelas

discussões sobre nomes próprios e verificacionismo em seus colóquios na

Universidade de Lisboa. Outras pessoas a quem sou grato são ao professor

Manuel Garcia-Carpintero, que em 2006 me incentivou a dar início a essa

pesquisa, assim como aos professores Nelson Gomes, André Leclerc e Daniel

Durante, por objeções e estímulos. Devo também agradecimentos ao professor

John Searle, que me recebeu como pesquisador em Berkeley em 1999 e que em

termos de metodologia e idéias é, junto com Ernst Tugendhat, o filósofo vivo

que mais me influenciou no desenvolvimento das idéias aqui expostas.

Finalmente, gostaria de agradecer aos professores Raul Landin e Guido Antônio

de Almeida por me terem, há muitos anos, tornado consciente da importância de

uma aproximação sistemática das questões filosóficas através do exemplo

incomparável dos grandes clássicos.

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SUMÁRIO

PREFÁCIO

PARTE I: SEMÂNTICA FILOSÓFICA

1. INTRODUÇÃO2. SEMÂNTICA WITTGENSTEINIANA3. FREGE: PARÁFRASES SEMÂNTICAS

PARTE II: TERMOS SINGULARES

4. CLASSIFICANDO OS TERMOS SINGULARES5. A SEMÂNTICA DOS TERMOS INDEXICAIS6. A SEMÂNTICA DAS DESCRIÇÕES DEFINIDAS7. NOMES PRÓPRIOS (I): TEORIAS DESCRITIVISTAS8. NOMES PRÓPRIOS (II): TEORIAS CAUSAIS- HISTÓRICAS9. NOMES PRÓPRIOS (III): META-DESCRITIVISMO CAUSAL

PARTE III: TERMOS GERAIS

10. INTRODUÇÃO: DESCRITIVISMO VERSUS CAUSALISMO11. PUTNAM, A TERRA GÊMEA E A FALÁCIA EXTERNALISTA12. AS IRREGULARIDADES DO TERRENO CONCEITUAL

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PARTE I: SEMÂNTICA FILOSÓFICA

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1. INTRODUÇÃO

Explicar os mecanismos pelos quais as expressões referenciais referem tem sido

o problema seminal de toda a filosofia da linguagem iniciada com Frege. Mas o

que são expressões referenciais? Ora, elas são todas as expressões (palavras,

combinações de palavras) capazes de referir (designar, denotar). Tais expressões

são chamadas de categoremáticas, distinguindo-se das expressões

sincategoremáticas, de palavras como ‘e’, ‘não’, ‘se... então’, ‘alguns’, cuja

função na linguagem é meramente estrutural.

Em frases há duas espécies mais gerais de expressão referencial: os termos

singulares e os termos gerais. Os assim chamados termos singulares são

expressões cuja função é a de especificar um objeto (um particular) específico,

ao indicar qual ele é dentre todos. Eles referem no sentido mais estrito da

palavra, sendo a forma mais distintiva a dos nomes próprios. Os termos gerais,

por sua vez, são expressões que designam propriedades de objetos ou relações

entre eles, podendo por isso serem predicados de mais de um objeto. Nas frases

predicativas singulares os termos singulares comparecem como sujeitos e os

termos gerais como predicados. Tais frases são tipicamente capazes de ser

verdadeiras ou falsas. É característico dos termos gerais que eles possam se

aplicar a uma variedade indefinida de objetos, identificados pelos termos

singulares aos quais se associam. Assim, o termo geral ‘planeta’ se aplica ao

objeto Vênus, mas também se aplica a Marte e a Saturno, enquanto o termo

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singular ‘Vênus’ só pode ser aplicado ao planeta Vênus. O tema desse livro

serão os termos singulares e gerais em suas várias formas e os variados

mecanismos através dos quais eles são capazes de alcançar as suas referências.

A metafísica da referência

Uma grande parte do conteúdo desse livro será, todavia, crítico. Em minha

opinião, a filosofia da linguagem contemporânea se encontra assolada pelo que

eu gostaria de chamar de metafísica da referência. São idéias prima facie

contra-intuitivas, como é o caso da sugestão de Saul Kripke, Keith Donnellan,

Michael Devitt e outros, de que o mero recurso a cadeias causais externas

ligando o objeto ao seu nome possa bastar para explicar a sua função referencial,

independente do que possamos ter em mente com esses nomes, ou da tese de

Hilary Putnam, Tyler Burge, John McDowell e outros, segundo a qual os

significados das palavras, os seus entendimentos, os pensamentos, e mesmos as

próprias mentes, possam existir no mundo externo (físico ou social) fora de

nossas cabeças, ou ainda, da posição de David Kaplan, John Perry, Nathan

Salmon e outros, segundo a qual muitas de nossas sentenças contém elementos

do próprio mundo como constituintes daquilo que estão a dizer. Não obstante o

fato de semelhantes idéias ofenderem as mais elementares intuições semânticas

de qualquer pessoa que não tenha sido filosoficamente iniciada, elas são hoje

vistas por muitos especialistas como resultados “sólidos” da reflexão filosófica.

Quero nesse livro tornar plausível o insucesso das doutrinas mais

propriamente metafísicas desses filósofos. Isso não é o mesmo que rejeitar o

interesse filosófico de muitos dos argumentos por eles desenvolvidos. Se tal

interesse não existisse, não haveria porque perder tempo com a sua discussão.

Pois insights filosóficos equívocos, na medida em que forem sugestivos, são

indicadores de alguma coisa importante, possuindo um potencial esclarecedor

em filosofia, onde o progresso costuma ser dialético. Sem o criativo e ousado 12

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revisionismo desses filósofos, sem os desafios e problemas por eles criados,

idéias concorrentes dificilmente seriam providas do combustível intelectual

necessário para levantarem vôo.

O primado do saber comum

Para combater a metafísica da referência são necessárias algumas armas. A

primeira delas diz respeito à decisão metodológica de levar a sério o um tanto

esquecido princípio fundamental da filosofia da linguagem ordinária admitido

por filósofos como J.L. Austin e G.E. Moore, segundo o qual ao menos o ponto

de partida de nossas investigações deve residir em nossas intuições pré-

filosóficas de senso comum, refletidas nos usos das expressões em nossa

linguagem corrente. A idéia subjacente a isso é conhecida: os usos correntes das

palavras sedimentam a experiência milenar das comunidades humanas, e uma

atenção excrupulosa a esses usos pode ser capaz de revelar distinções categoriais

importantes e prevenir confusões. Exemplos de princípios do senso comum que

foram selecionados por filósofos como Moore são “Sabemos com certeza que

existe um mundo externo”, “Sabemos que existem outras pessoas”, “Sabemos

que o mundo tem um passado”, “Sabemos que o preto não é branco” e ainda

“Sabemos que uma coisa é ela mesma”.1

O problema é que parece claro que ao menos alguns dos princípios do senso

comum foram falseados, quer pela ciência, quer por alterações em nossa própria

concepção de mundo (Weltanschauung). Para exemplificarmos o primeiro caso,

basta nos lembrarmos que crenças de senso comum de que o sol gira em torno

da terra e de que os corpos mais leves caem mais lentamente foram refutadas por

Galileu. E para exemplificarmos o segundo caso basta nos lembrarmos das

crenças de que um Deus pessoal existe e de que temos uma alma que pode

1 Ver G.E. Moore: “A Defense of Common Sense”. 13

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existir fora do corpo. Houve tempo em que essas crenças poderiam ser

consideradas verdades de “senso comum”.

Uma resposta a essa dificuldade consiste na alternativa de muitos dos

filósofos que defenderam o senso comum, que consistiu na adoção do assim

chamado sensismo comum crítico (critical commonsensism)1, segundo o qual os

princípios de senso comum são altamente confiáveis, mas não são indubitáveis.

Contudo, essa opção enfraquece a própria posição de quem defende o senso

comum como ponto de partida, pois se os princípios do senso comum podem ser

falsos, então parece que precisamos de um critério para distinguir os princípios

verdadeiros dos falsos. Esse critério, porém, não pode se basear no senso

comum, sob pena de circularidade.

Não pretendo, nos argumentos que se seguem, garantir os princípios do senso

comum contra toda e qualquer objeção. Mas quero demonstrar que a força das

objeções contra a confiabilidade dos princípios de senso comum advindas do

progresso da ciência e das mudanças de concepção do mundo como as recém-

consideradas é aparente e deriva da confusão entre formas de “senso comum”

inautênticas com a forma mais autêntica, que gostaria de chamar de forma

modesta.

Comecemos com as objeções vindas da ciência. Quanto à ciência empírica,

considere os enunciados

(a) O sol circunda a terra diariamente,(b) Os corpos mais pesados caem mais rapidamente, mesmo descontando a

resistência do ar,(c) O tempo flui igualmente, mesmo quando um corpo se desloca a

velocidades próximas às da luz.

1 C.S. Peirce: “Critical-Commonsensism”; ver também Roderick Chisholm: Theory of Knowledge, p. 64.

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Esses pretensos enunciados do senso comum foram todos corrigidos pela

ciência. Galileu demonstrou que (a) e (b) são enunciados falsos, o primeiro

porque é a terra que circunda o sol e o segundo porque no vácuo todos os corpos

caem com a mesma aceleração. E Einstein demonstrou que (c) é falso, pois a

passagem do tempo torna-se exponencialmente mais lenta conforme o corpo se

aproxima da velocidade da luz. O filósofo Bertrand Russell, por exemplo,

procurou tornar claro que a teoria da relatividade veio a demonstrar que não só

essa, mas várias outras crenças de senso comum não resistem a uma

consideração mais acurada.1

Meu ponto, porém, é que nenhum dos enunciados acima é legitimamente

pertencente ao senso comum no sentido próprio da expressão, que chamei de

modesto. Esses enunciados são na verdade extrapolações radicadas nos

enunciados do senso comum mais modesto, feitos no interesse da ciência por

cientistas e mesmo por filósofos. Os verdadeiros enunciados do senso comum,

dos quais (a), (b) e (c) são extrapolações, podem ser versados respectivamente

como se segue:

(d) O sol cruza os céus diariamente,(e) A pedra cai mais rápido do que a pluma,(f) O tempo flui igualmente para todos nós, estejamos em movimento ou

parados.

Vemos que o senso comum cientificamente ou especulativamente motivado

historicamente interpretou esses enunciados de senso comum como implicando

respectivamente (a), (b) e (c). Não obstante, os enunciados que foram

efetivamente originados de nossas práticas lingüísticas ordinárias são como (d)

(e) e (f), os quais continuam perfeitamente confiáveis, mesmo após Galileu e

Einstein. Afinal, é óbvio que (d) é um enunciado verdadeiro, pois ele é anterior à

1 Ver Bertrand Russell: ABC of Relativity, cap. 115

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distinção entre o movimento real e aparente do sol e tudo o que ele afirma é que

aquele círculo luminoso cruza o céu a cada dia, o que ninguém discutiria.1

Mesmo tendo sido provado que os corpos caem em velocidades diferentes no

vácuo (e) também é um enunciado indiscutível, pois tudo o que ele diz é que a

pluma cai mais lentamente do que a pedra em circunstâncias normais.

Finalmente, mesmo tendo sido demonstrado que a passagem do tempo se torna

mais lenta com o aumento da velocidade, o enunciado (f) é correto, pois ele não

foi pensado sob a consideração de medidas impossivelmente acuradas da

passagem do tempo, uma vez que para as diferenças de velocidade dos corpos ao

nosso redor a dilatação do tempo é tão insignificante que seria absurdo não

desprezá-la.2 O que esses exemplos demonstram é que não foram as verdades do

senso comum modesto, radicadas em nossa forma de vida cotidiana que foram

refutadas pela ciência, mas extrapolações do senso comum fora de seu lugar

próprio, produzidas por cientistas e filósofos. Fora isso não há nenhum conflito

entre as descobertas da ciência e as afirmações do homem comum.

Esse mesmo raciocínio se aplica ao conhecimento a priori do senso comum,

como o de que um enunciado não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo,

de que o branco não é preto ou de que não existem frases sem verbos. Considere

o caso de enunciados como (g) “O bem é admirável”, que é gramaticalmente

idêntico a enunciados como (h) “Sócrates é sábio”. Ambos têm a mesma forma

gramatical sujeito-predicado. Como no primeiro caso o sujeito não designa

nenhum objeto visível, Platão teria concluído que esse sujeito precisa designar O

Bem em si mesmo, a idéia do bem, existente apenas no reino inteligível das

idéias eternas e imutáveis.

1 Esse é um enunciado como o de Heráclito, que notou que o sol tem o tamanho de um pé humano. Como notou um intérprete, basta que nos deitemos no chão e levantemos o pé contra o sol para nos certificamos da verdade desse enunciado.2 Mesmo para as missões espaciais a física usada é a newtoniana. Como então supor que tais preocupações pudessem pertencer ao campo semântico do senso comum modesto.

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Para chegar a sua conclusão, Platão se baseou em intuições da linguagem

ordinária concernentes à distinção gramatical entre sujeito e predicado. Todavia,

a introdução da lógica quantificacional por Frege no final do século XIX

demonstrou que frases como (d) se deixam analisar como dizendo que tudo o

que é bom é admirável ou “Para todo x, se x é bom, então x é admirável”, onde a

palavra ‘bem’ passa à função do predicado ‘bom’, deixando de se referir a um

objeto, o que diminui a pressão para a aceitação da idéia platônica do bem.

Contudo, a sugestão de que o sujeito ‘O Bem’ se refere a um objeto abstrato, a

idéia, não pertence ao senso comum e nem se encontra inscrita na linguagem

ordinária. Embora ela seja uma extrapolação especulativa feita por filósofos por

apelo implícito à gramática da linguagem ordinária, seria injusto responsabilizar

esta última por isso. Afinal, o advento da lógica quantificacional não refutou a

gramática da linguagem ordinária, mas adicionou a essa linguagem uma nova e

fundamentalmente diversa dimensão de análise.

O que todos esses exemplos demonstram é a falsidade da freqüente afirmação

de que o desenvolvimento da ciência veio a contradizer o senso comum. O que o

desenvolvimento da ciência veio a contradizer foram extrapolações

especulativas que cientistas e filósofos fizeram com base no senso comum e na

linguagem ordinária, como a sugestão de que o sol gira em torno da terra e a de

que existe um outro mundo formado por objetos abstratos. Pois nada disso tem a

ver com a aplicação do senso comum modesto e da linguagem ordinária no

contexto em que essas intuições emergiram.1

Consideremos agora alterações do senso comum que foram colocadas em

questão por alterações em nossa concepção do mundo, como a crença de que

Deus existe ou de que temos mentes independentes de nossos corpos.

Praticamente em todas as culturas humanas a crença em Deus e na alma foi

admitida inquestionável, mesmo na cultura européia, até dois ou três séculos

1 Ver C.F. Costa: Filosofia da Mente, pp. 22-23. 17

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atrás. Mas hoje não se pode dizer que essas crenças sejam mais universalmente

obtidas. Assim, parece que o senso comum pode se alterar com a alteração de

nossa concepção do mundo.

Minha reação a essa objeção não difere muito da que tenho para a objeção

proveniente do progresso da ciência. Essas crenças não pertenceram

propriamente ao cerne que chamo de senso comum modesto. Elas resultaram do

senso comum modesto adicionado ao wishful thinking. Era certamente mais fácil

acreditar na existência de um Deus pessoal ou de uma alma independente do

corpo há dois mil anos atrás, na falta de informações divergentes produzidas

pelo progresso científico; contudo, mesmo assim sempre foi aqui adicionado um

elemento de fé, de crença para além dos fatos, ao que foram aduzidas razões.

Isso se demonstra linguisticamente: uma pessoa comum geralmente não diz que

“sabe” que é uma alma independente do corpo ou que “sabe” que Deus existe:

ela prefere dizer que “acredita” nessas coisas, enquanto ela mesma em momento

algum recusa a admitir que “sabe” que existe um mundo externo, que o mundo

existia antes de ela ter nascido etc., mas não que apenas “acredita” nisso.

Espero ter com isso tornado plausível a idéia de que o mais alto tribunal da

razão é realmente o senso comum modesto. Afinal, como a própria ciência só

pode ser construída sob a assunção de conhecimentos de senso comum modesto,

não parece ser sequer em princípio possível destruir o senso comum sem que

com isso se destrua os próprios fundamentos da racionalidade. Não pretendo,

contudo, considerar sequer o senso comum modesto necessariamente constituído

de princípios indubitáveis, mas apenas mostrar que nem a ciência nem as

alterações em nossa concepção do mundo foram suficientes para desfazer a

força dos princípios do senso comum adequadamente considerado.

Uma conclusão resultante da comparação entre senso comum e ciência é que

quando consideramos a razão natural dentro de seus despretenciosos limites

próprios, a ciência não se revela como oposição, mas como extensão do senso 18

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comum. Essa conclusão reforça nossa confiança em que no começo de tudo se

encontram as verdades do senso comum, adequadamente escolhidas e

interpretadas. (Com isso não estou defendendo que elas sejam suficientes contra

os argumentos filosóficos que as contestam, como pretendia um filósofo como

Reid. O que quero dizer é que elas servem como pontos de apoio confiáveis.

Assim, tomando um exemplo de P.M.S. Hacker concernente ao ponto de vista

de Wittgenstein, embora a resposta de senso comum ao paradoxo de Zeno seja a

de que Aquiles pode vencer a tartaruga colocando um pé diante do outro não nos

satisfaz, pois não põe à descoberto a fonte de confusão – apesar de ser uma

indubitável verdade de senso comum que Aquiles pode vencer a tartaruga1.

Também um princípio de senso comum modesto, como o de que o mundo

externo existe, pode a meu ver ser justificado contra argumentos filosóficos2

Contudo, nada disso pode ser feito sem base em outros princípios de senso

comum.)

Diversamente do que possa parecer, não acho que devamos nos restringir ao

senso comum ingênuo e ao seu reflexo nas intuições da linguagem comum.

Quero estender a base daquilo que serve de fundamento para nossas atitudes

diante das idéias filosóficas ao senso comum informado pela ciência – o que

gostaria de chamar de saber comum. Melhor dizendo: tanto a ciência formal

quanto a empírica (o que inclui a física, a biologia, a psicologia, a lingüística...)

são capazes de adicionar ao conhecimento de senso comum modesto novas

verdades, como a de que ‘o bem’ na frase “O bem é admirável” não deve ser

interpretado como um sujeito lógico, ou de que a frase “O sol atravessa o céu

diariamente” não implica em que ele circunda a terra. O que chamo de saber

comum é, pois, a extensão daquilo que inclui o senso comum ingênuo e o

conhecimento científico lhe foi adicionado. Esse saber comum não precisa,

1 G.H. Baker & P.M.S. Hacker: Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. 1, p. 303.2 Ver minha prova do mundo externo no artigo “Critérios de realidade”.

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certamente, ser compartilhado por todas as pessoas. Mas ele é comum no sentido

de que é passível desse compartilhamento: ele é aquele conhecimento com o

qual qualquer pessoa razoável irá por-se de acordo, caso esteja habilitada a

compreendê-lo e avaliá-lo. Assim, minha proposta é a de que aquilo que é capaz

de possibilitar um juízo adequado sobre a razoabilidade de nossas teses

filosóficas é o senso comum cientificamente informado, nomeadamente, nosso

saber comum. Podemos construir a respeito o seguinte esquema:

Teoria filosófica

Princípios do senso Conhecimento científico comum modesto (saber comum)

Os vetores sugerem que não é a filosofia que corrige o senso comum modesto

nem o conhecimento científico, mas, pelo contrário, ela deve harmonizar-se a

eles. Não se trata, pois, de equilíbrio reflexivo, mas de harmonização com a base

do saber comum. O ponto a ser acentuado é o da necessidade de coerência das

teorias filosóficas com o saber comum. As nossas teorias filosóficas tornam-se

razoáveis quando alcançam essa espécie de coerência. Quanto às teorias que não

alcançam essa coerência, elas podem ser admitidas como propostas interessantes

e mesmo instigantes do ponto de vista especulativo, mas nem por isso merecem

ser seriamente consideradas em sua face de valor. Esse é, em meu juízo, o caso

das metafísicas da referência.

Essas considerações também oferecem uma solução para o problema que

surge quando a razão (filosófica) e o senso comum colidem. Minha suspeita é

que a razão (quando adequadamente seguida e suficientemente explicitada) e o

senso comum (em seu lugar próprio e devidamente reconciliado com o

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conhecimento científico) nunca colidem, a não ser na aparência, uma vez que a

própria racionalidade da teoria filosófica decorre de seu equilíbrio reflexivo com

o saber comum. Assim, quando uma pretensa contradição emerge, cabe ao

filósofo tratá-la como um paradoxo do pensamento, buscando argumentos que

conciliem a teorização filosófica com o senso comum e a informação científica.

O filosofar por exemplos

Quero complementar esse princípio do primado do saber comum com o que já

foi chamado de método de filosofar por exemplos preconizado por Avrum

Stroll.1 Trata-se do método wittgensteiniano de proceder através do exame

minucioso e comparativo de uma variedade de exemplos de usos de uma

expressão lingüística, possivelmente imaginando novas situações de uso, na

intenção de elucidar os seus sentidos, o quanto isso nos for necessário. Assim,

com base na aplicação do princípio da priorização do saber comum

(nomeadamente, do senso comum informado pela ciência) e com o método do

filosofar por exemplos, pretendo exercitar aqui uma crítica da linguagem, cujo

desiderato é o de demonstrar que as teses positivas mais audaciosas da

metafísica da referência, mesmo que inovadoras e capazes de apontar para

fenômenos de fundamental importância, se tomadas apenas em sua face de valor

não passam de sofisticadas ilusões conceituais.

A noção de uma crítica da linguagem teve proeminência na filosofia

terapêutica do último Wittgenstein. O que ele pretendia era, no seu dizer, trazer

a linguagem de suas férias especulativas para o seu labor cotidiano. E isso era

para ser feito mostrando, através de exemplos, os modos como realmente

usamos as expressões, com o resultado de que os absurdos encobertos da

metafísica acabariam por se demonstrar absurdos evidentes.2 Parece-me que é 1 Este é o método preconizado por Avrum Stroll em seu livro Sketches of Landscapes: Philosophy by Examples, pp. x-xi. 2 Ludwig Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, sec. 109, 111, 122, 125, 129.

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disso que muito da presente metafísica da referência – e de resto muito da

própria filosofia contemporânea – necessita.1

Essa tarefa é especialmente importante em um tempo como o nosso, em que

o veio da filosofia do senso comum e da linguagem ordinária, que vem de

Thomas Reid a G.E. Moore e do último Wittgenstein a J.L. Austin, parece ter se

extinguido, dando lugar ao cientismo e a filosofias compartimentadas, que

servem à curiosidade especulativa de especialistas nesse ou naquele domínio

científico mesmo que ao preço de colocar entre parênteses o saber comum.

Como conseqüência disso estamos a meu ver assistindo, na filosofia da

linguagem, a um entulhamento com efeitos potencialmente obscurantistas do

que Wittgenstein chamou de “castelos de areia conceituais” resultantes de “nós

do pensamento”, bem urgidos equívocos semânticos resultantes do desejo de

inovação acompanhado de uma desconsideração das sutis diferenças de

significação ganhas pelas expressões em seus diversos contextos de uso, o que

conduz a uma sucessão de debates entre teorias cada uma mais implausível do

que a outra, em uma forma de escolasticismo filosófico.

Contra a filosofia terapêutica de Wittgenstein observou que não é plausível a

idéia de que a filosofia não possa nem deva ser também teorética e sistemática,

no sentido de conter generalizações abrangentes e substantivas. Eu concordo

com isso. Mas discordo que essa tenha sido verdadeiramente a posição de

Wittgenstein. Pois ele mesmo era consciente de que por trás das confusões

conceituais, como explicação de seu caráter de profundidade, há insight

teorético legítimo para cuja expressão falta uma conceitologia adequada. Com

efeito, qualquer que seja a crítica da linguagem que venhamos a fazer, a sua

1 Não há mais hoje quem concorde com a tese sugerida por certas passagens dos textos de Wittgenstein, segundo a qual toda a filosofia se reduz a confusões lingüísticas. Apesar disso, é um fato que a prática filosófica é quase inevitavelmente produtora de confusões lingüísticas, mesmo que contenha algum insight substancial por trás do que pretende sugerir. Daí que uma atenção crítica prévia aos sentidos ordinários dos conceitos usados é propedeuticamente desejável e será aqui metodologicamente empregada.

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eficácia se deve ao fato de que ela se encontra inevitavelmente impregnada de

pressupostos teóricos, que podem ser ou não ser explicitamente trabalhados.

Como o próprio Wittgenstein percebeu, é possível e mesmo necessário o

estabelecimento de apresentações panorâmicas (übersichtliche Darstellungen)

da estrutura lógico-gramatical dos conceitos constitutivos dos núcleos mais

centrais de nosso entendimento. Como ele escreveu em uma famosa passagem:

Uma fonte principal de nossa incompreensão é que não temos uma visão panorâmica dos usos de nossas palavras – falta caráter panorâmico à nossa gramática. A representação panorâmica permite a compreensão, que consiste justamente em “ver as conexões”. Daí a importância de encontrar e inventar articulações intermediárias. 1

É interessante notar que as articulações intermediárias não precisam se encontrar

já prontas. Aqui entra o elemento teorético. A articulação intermediária pode ser

simplesmente a regra geral, o elo comum relacionando uma variedade de casos.

Esse elo comum será mais propriamente chamado de descritivo se ele já se

encontrar manifesto na linguagem; mas ele será melhor chamado de teorético se

tiver de ser descoberto como uma maneira de dar conta da unidade na

diversidade daquilo que fazemos com a linguagem. É verdade que ao propor

essas coisas, Wittgenstein também afirmava que a filosofia deve ser descritiva e

não-teorética. Mas como notaram G.P. Baker e P.M.S. Hacker, o que

Wittgenstein quis através disso foi rejeitar o cientismo, entendido como a

assimilação do trabalho filosófico ao modelo de teoria da ciência particular e à

teoretização metafísica que mimetiza a ciência2 – o cientismo, que hoje em dia é

1 L. Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, I, sec. 122. Como notaram G.P. Baker e P.M.S. Hacker, Wittgenstein não rejeita o engajamento em teorizações filosóficas quando elas se fazem necessárias. Ver desses autores Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. 1, cap. XI. Além disso, Wittgenstein também usa a palavra ‘teoria’ para qualificar o seu próprio procedimento teórico, no sentido de um sistema “orgânico” ao invés de “arquitetônico”. Ver Wittgenstein: Wittgenstein’s Lectures, Cambridge – 1932-35, p. 43.2 G.P. Baker & P.M. Hacker: Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. II, p. 260.

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redutivo não só no sentido de abandonar a mediação do senso comum, mas até

mesmo do saber comum, quando se encontra comprometido com o que é

pensado em alguma área específica da ciência. Contra isso, o que desejamos é

encontrar e expor as regras que governam a aplicação de nossos termos

filosoficamente relevantes, sem para tal comprometer o equilíbrio reflexivo com

o nosso saber comum.

O conhecimento tácito do significado: a explicação tradicional

Também assumimos o fato óbvio de que uma linguagem é um sistema de signos

governados por regras e que essas regras são convencionais. Uma convenção

linguística é uma regra que os participantes da comunidade linguística

geralmente seguem e esperam que os outros participantes também sigam,

mesmo que lhes falte consciência dessas regras.1 É devido a esse caráter

compartilhado das convenções que governam a linguagem que somos capazes

de usá-la de maneira a comunicar verbalmente o que pensamos. Uma das

assunções mais conhecidas da filosofia da linguagem tradicional é a de que não

temos consciência das regras semânticas que governam os usos que fazemos de

expressões centrais de nossa linguagem. Essas regras encontram-se geralmente

automatizadas em nós, de modo que ao usarmos uma expressão não precisamos

tomar consciência do complexo entrelaçado de acordos tácitos envolvidos. Uma

razão disso encontra-se no próprio modo como as expressões geralmente são

aprendidas. Filósofos analíticos – de Wittgenstein a Gilbert Ryle, P.F. Strawson,

Michael Dummett e Ernst Tugendhat – sempre apontaram para o fato de que

nosso aprendizado do significado das palavras, a saber, das regras convencionais

que determinam os seus usos, não costuma se dar através de definições verbais,

mas de modo não-reflexivo, através de exemplificações positivas e negativas

1 David Lewis: Conventions, cap. 1.24

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realizadas em contextos interpessoais nos quais esses usos costumam ser

confirmados ou desconfirmados e corrigidos por outros falantes.1

Se considerarmos que esse aprendizado não-reflexivo inclui termos

filosóficos centrais como ‘conhecimento’, ‘consciência’, ‘causalidade’, ‘bem’, e

mesmo termos da filosofia da linguagem como ‘significado’, ‘referência’ e

‘verdade’, que por sua estrutura conceitual supostamente muito complexa são

particularmente elusivos, torna-se claro que essa falta de consciência semântica

pode se tornar uma grande fonte de confusões quando o filósofo procura

esclarecer o que esses termos querem dizer, especialmente se ele estiver sob a

pressão de alguma finalidade generalizadora extrínseca às demandas do próprio

objeto de sua investigação. A amplitude e força dessa idéia foi aceita por

Wittgenstein do início ao fim de sua trajetória filosófica:

A linguagem ordinária é parte do organismo humano e não menos complicada do que este. (...) As convenções implícitas para o entendimento da linguagem ordinária são enormemente complicadas.2

Nosso esforço pela generalidade tem outra origem maior. Filósofos têm os métodos da ciência natural sob os olhos e são inevitavelmente tentados a perguntar e responder questões ao modo da ciência. Essa tendência é a própria fonte da metafísica e deixa o filósofo em completa escuridão.3 Os homens não se dão conta dos verdadeiros fundamentos de suas pesquisas. A menos que uma vez tenham se dado conta disto. – E isso significa: não nos damos conta daquilo que, uma vez visto, é o mais marcante e o mais forte.4 A filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento de nosso intelecto pelos meios de nossa linguagem.5

Muitos e talvez o próprio Wittgenstein, pensaram no procedimento de

explicitação das convenções implícitas da linguagem ordinária como um

1 Afora Wittgenstein, ver especialmente M. Dummett: “What is a Theory of Meaning? (I)” e “What is a Theory of Meaning? (2)”.2 Ludwig Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus, 4.002.3 Wittgenstein: The Blue and Braun Books, p. 184 Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, seção 129.5 Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, seção 109.

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procedimento revolucionário. Mas à parte artifícios como aquilo que Quine

chamou de ascese semântica (semantic accent) – o uso de uma metalinguagem

de maneira a descrever o conteúdo do que se encontra sob análise1 – e a

cuidadosa consideração dos usos lingüísticos demonstrando consciência das

sutis diferenciações semânticas – não há nada de verdadeiramente

revolucionário nesse procedimento. Pois a análise do significado de termos

filosoficamente relevantes dentro do escopo de uma metafísica descritiva

(dedicada, como a definiu Strawson, “a descrever a verdadeira estrutura de

nosso pensamento sobre o mundo”2) não é mais do que uma retomada, com a

adição de novos métodos de análise e de uma mais rigorosa atenção às sutilezas

da linguagem, de um projeto que perpassou toda a história da filosofia ocidental

e que já havia tomado a forma de análise conceitual nos diálogos de Platão.

Afinal, nesses diálogos Sócrates tipicamente aparecia com uma questão do tipo

“O que é X?”, onde X estava no lugar de termos como ‘conhecimento’, ‘justiça’,

‘beleza’, seguindo-se daí as tentativas geralmente aporéticas de se encontrar

uma definição capaz de resistir a objeções e contra-exemplos.

Duas objeções à explicação tradicional

A idéia de que possuímos cognições implícitas das convenções que determinam

os significados de nossas expressões lingüísticas foi desafiada por defensores do

externalismo semântico. Segundo o externalismo, os significados das expressões

podem residir fora do domínio do psicológico, no mundo físico e social,

dependendo assim apenas de seus objetos de referência, assim como,

eventualmente, de processos neurofisiológicos envolvendo mecanismos causais

autônomos. Em apoio a essa idéia pode ser aduzido o próprio caráter não-

reflexivo das regras semânticas que determinam nossos usos lingüísticos: se não

1 W.V.O. Quine: Word and Object, cap. VII, seção 56.2 P.F. Strawson: Individuals: An Essay on Descriptive Metaphysics, p. 9.

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temos consciência do significado, então por que ele não pode ser simplesmente

não-psicológico, dependente apenas da maquinaria neuronal? Mas nesse caso

não seria em princípio sequer necessário o envolvimento de elementos

cognitivos no significado. Ele poderia envolver apenas mecanismos causais

autônomos, irresgatáveis para a consciência. John McDowell ilustra essa

posição ao observar contra Michael Dummett que

Podemos ter a habilidade de dizer que um objeto visto é o portador de um nome familiar sem ter a menor idéia de como o reconhecemos. O presumível mecanismo de reconhecimento pode ser maquinaria neural [e não psicológica] – suas operações sendo totalmente desconhecidas de quem as possui .1

Para McDowell a função referencial dos nomes próprios não é para ser

explicada com base em regras cognitivas implícitas de identificação do objeto, a

serem descritivamente resgatadas, pois:

As opiniões dos falantes sobre as suas susceptibilidades evidenciais divergentes com respeito a nomes são produtos de auto-observação, tanto quanto isso é acessível, de um ponto de vista externo. Elas não são intimações vindas do interior, de uma teoria normativa implicitamente conhecida, uma receita para o discurso correto, que guia o comportamento do lingüista competente. (grifo nosso)2

Essas considerações encontram-se em oposição ao que pretendo defender

nesse livro. Quero vir a demonstrar que alguma instanciação de regra semântico-

cognitiva interna acaba por ser indispensável à função referencial, se esta for

entendida em seu sentido próprio. Veremos que para haver referência um

elemento cognitivo geralmente não-consciente associado a nossas expressões

1 John McDowell: “On the Sense and Reference of a Proper Name”, p. 178. O conteúdo entre colchetes repete as palavras do autor em sua nota de rodapé sobre essa passagem. McDowell vê na posição de Dummett uma recaída no psicologismo justificadamente rejeitado por Frege.2 John McDowell: “On the Sense and Reference of Proper Names”, p. 190.

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deve precisar ser instanciado em alguma medida, em algum momento e em

algum de seus usuários, ainda que isso não costuma ser necessário em toda

medida, a todo momento e para todo usuário.

Eis como podemos argumentar contra McDowell. Uma diferença entre a

opinião dos falantes resultante da auto-observação do ponto de vista externo

sugerida por McDowell e a opinião resultante da auto-observação do ponto de

vista interno pretendida por Dummett é a de que o resultado da primeira deveria

ser gradualmente reforçado pela consideração de uma multiplicidade de

exemplos, diversamente do resultado da segunda. Mas não parece que esse

reforço indutivo aconteça do modo esperado. Considere, por exemplo, o

significado de uma palavra como ‘cadeira’. Todos nós sabemos o significado

dessa palavra, mas normalmente não nos damos conta de qual seria a

explicitação analítica através de uma definição. Assim, seguindo o motto

wittgensteiniano de que o significado é aquilo que a explicação do significado

explica eis uma definição perfeitamente razoável a explicar o significado da

palavra ‘cadeira’:

(C) Cadeira (Df.) = banco provido de encosto.1

Quando ouvimos essa definição pela primeira vez ela se nos afigura

imediatamente como algo que parece ser correto. Depois que a ouvimos,

podemos tentar imaginar uma cadeira sem encosto, percebendo que não

conseguimos. Mas só isso já basta. Não precisamos ir além, imaginando toda

1 É difícil objetar contra. Podemos sempre imaginar casos limítrofes, como o banco com um encosto de apenas dois centímetros de altura (é banco ou cadeira?) ou a cadeira cujo encosto foi retirado por alguns minutos (ela se transformou em uma cadeira sem encosto ou provisoriamente virou um banco?). Casos limítrofes são inevitáveis, posto que nossos conceitos empíricos são inevitavelmente vagos. O que justifica um conceito é a sua utilidade nas inúmeras vezes nas quais ele pôde ser aplicado sem dificuldades e não os poucos casos nos quais ele deixa de ser útil.

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sorte de cadeiras (cadeiras de balanço, cadeiras de lona, cadeiras de rodas,

poltronas...) de modo a irmos reforçando indutivamente nossa crença na

definição. Mas se McDowell estivesse certo, nosso conhecimento acerca do

significado de um nome comum como ‘cadeira’ fosse resultado da auto-

observação de um ponto de vista externo, então parece que ganharíamos maior

certeza de que cadeiras são bancos com encosto na medida em que isso fosse

indutivamente confirmado pela consideração de um número de exemplos cada

vez maior. Mas não é isso o que acontece e a explicação óbvia é que a definição

apenas recupera a convenção semântica resultante de um acordo tácito entre os

falantes que governa o uso da palavra ‘cadeira’ em identificações de cadeiras.

Mas se o que temos é uma convenção, então um elemento psicológico precisa

estar envolvido, mesmo que de modo não-consciente, mesmo que constituído

apenas do que poderia ser chamado de uma cognição não-reflexiva.

Confirmando a explicação tradicional, a definição torna explícita uma

convenção que se instancia em cognições implícitas, não-reflexivas, não-

conscientes.

Outro argumento que vai contra a idéia de que temos acesso cognitivo

implícito às convenções semânticas que governam nossas expressões foi

desenvolvido por Gareth Evans, o filósofo que mais diretamente influenciou

McDowell. Evans pede-nos para contrastar a crença que um ser humano tem de

que certa substância é venenosa com a disposição de um rato de evitá-la. No

caso do ser humano trata-se de uma cognição no sentido de uma crença genuína

envolvendo conhecimento proposicional; já no caso do rato trata-se de uma

simples disposição para reagir a certo odor, e não propriamente de uma crença.

A diferença se mede no fato de que

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É da essência de um estado de crença que ele esteja a serviço de muitos distintos projetos, e que sua influência sobre qualquer projeto seja mediada por outras crenças.1

Assim, se temos a crença de que certa substância é venenosa podemos com

ela tentar matar um rato na expectativa de que ele venha a ingerir o venenou ou,

digamos, ingerir o veneno na intenção de nos suicidarmos. Nós relacionamos

inferencialmente o conteúdo cognitivo-proposicional da crença de que algo seja

venenoso a uma diversidade de outras crenças, como no caso de alguém que

acredita que se tornará imune a um veneno ao digerir diariamente uma pequena

quantidade dele e ir aumentando gradativamente a dose. Como nosso

conhecimento das regras semânticas não é susceptível de tais inferências,

raciocina Evans, ele não é constituído de estados de crença reais, mas de estados

insulares, semelhantes à disposição do rato. Eles não são, pois, estados

psicológicos propriamente cognitivos.2

A caracterização da crença proposta por Evans é interessante e correta.

Minha dificuldade com o seu argumento, porém, é que ele nos fecha os olhos

para a imensa distância que existe entre nosso conhecimento das regras

semânticas e a mera regularidade disposicional que leva o rato a evitar o veneno.

Considere, como analogia, o caso de nosso conhecimento das regras da

gramática portuguesa. Considere o caso simples das regras gramaticais de

concordância verbal. Uma criança as aplica sem consciência do que faz. Mas

tais regras já permitem à criança realizar uma diversidade de aplicações a verbos

muito diferentes em contextos muito distintos. Noam Chomsky manteve, creio

que corretamente, que mesmo não sendo consciente o conhecimento da

gramática envolve conhecimento proposicional e crença, tanto quanto o

conhecimento ordinário, sendo o conhecimento tácito que o falante tem da

1 Gareth Evans: “Semantic Theory and Tacit Knowledge”, p. 337.2 Evans: ibid. p. 339.

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gramática inferencialmente avaliável na interação com os seus outros sistemas

de conhecimento e crença, sendo sempre capazes de ser trazidos para a

consciência quando sob circunstâncias apropriadas.1

A conclusão clara é que há uma gradação entre o estado mental inconsciente

mais primitiva e outras mais sofisticadas, que incluem crenças e pensamentos. O

problema é o do status da regra semântica implícita. Contudo, se o que

consideramos regras semânticas são aquelas que têm como exemplo mais

simples o caso da regra semântico-criterial (C) para identificar cadeiras como

bancos com encosto, então devemos rejeitar posições como a de Evans e

McDowell. Afinal, (C) também nos permite fazer inferências simples, como a de

que uma cadeira não é um banco, tendo assim muito maior proximidade com as

regras da gramática portuguesa do que com a regularidade disposicional

demonstrada por um rato de evitar alimentos com certos odores. Parece que em

tais casos, diversamente do caso da disposição do rato, inferências implícitas

para outras cognições encontram-se disponíveis, ainda que elas sejam limitadas

e que não se possua uma disponibilidade tão ampla quanto aquilo que possui o

caráter de ser conscientemente colocado a serviço de muitos e diferentes

projetos, como pretende Evans.2 A razão dessa confusão se encontra a meu ver

no fato de que as regras semânticas em questão não têm sido nem seriamente

nem suficientemente investigadas em si mesmas, diversamente do que espero

fazer no curso da presente investigação.

Cognições semânticas não-reflexivas

1 Noan Chomsky: Rules and Representations, pp. 92-93, ver também seu livro Knowledge and Language, pp. 261-265. 2 Freud distinguia a representação inconsciente, mas apta a associar-se a outras em processos de pensamento inconscientes, da representação inconsciente verdadeiramente insulada, não associável a outras, que para ele emergia em estados psicóticos e cujo mecanismo de repressão ele chamou de exclusão (Verwerfung). Evans trata o estado mental de domínio da regra semântica no melhor dos casos como se fosse um conteúdo “excluído” no sentido freudiano. Ver S. Freud: “Die Verneinung”.

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Em apoio ao modo de ver recém-sugerido quero apelar para as teorias reflexivas

da consciência. A idéia introduzida na discussão contemporânea por D.M.

Armstrong1 é a de que existem basicamente dois sentidos da palavra

‘consciência’. O primeiro é o do que ele chama de consciência perceptual, que

consiste no organismo estar acordado, percebendo, reconhecendo os objetos ao

seu redor e a si mesmo. Esse nível de consciência é compartilhado com espécies

inferiores: dizemos que um hamster sedado com éter perdeu a consciência

porque ele deixou de perceber o mundo. Claro que nesse nível já existe

mentalidade e cognição! Mas ao perceber o mundo o organismo não percebe que

percebe, não tem consciência de sua percepção. O rato percebe o gato, mas é

discutível se ele é capaz de tomar consciência disso no sentido próprio; quando

ameaçada, uma serpente deve sentir raiva, mas certamente não tem consciência

da raiva que tem, pois ela não possui autoconsciência... Quando então temos

consciência de que percebemos, sentimos, pensamos? A resposta é dada pela

introdução de um segundo e verdadeiramente importante sentido da palavra

‘consciência’, que Armstrong chamou de consciência introspectiva e que nós,

seguindo Locke, chamaremos de consciência reflexiva (responsável pela

autocosnciência). A consciência reflexiva nasce quando os estados mentais de

primeira ordem, incluindo os da própria consciência perceptual, se tornam

objetos de cognições de ordem superior, a saber, de metacognições, as quais são

reflexivas do que se processa no primeiro nível (o que D.M. Rosenthal chamou

de higher order thoughts2). Só quando temos a consciência reflexiva de um

estado perceptual é que podemos dizer que ele “se tornou consciente” (por isso,

quando dizemos que uma sensação ou sentimento ou pensamento “é

1 Ver o artigo clássico de D.M. Armstrong: “What is Consciousness?”, pp. 55-67. Ver também seu livro Mind and Body: An Opinionated Introduction, cap. 10.2 Mesmo Armstrong concordaria que há um elemento cognitivo na reflexão de estados mentais de primeira ordem. Ver David Rosenthal: Consciousness and Mind, parte I. Para a origem da noção de consciência reflexiva, ver John Locke: An Essay Concerning Human Understanding, livro II, cap. 1, § 19.

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consciente”, estamos querendo dizer que ele se tornou objeto de metacognições).

Isso demonstra que a consciência dita perceptual é na verdade uma consciência

inconsciente, posto que sendo não-reflexiva, nada sabe de si mesma.

Provavelmente só os seres humanos e alguns mamíferos superiores são capazes

de consciência reflexiva.

Frente ao que acabamos de considerar podemos distinguir entre duas formas

de cognição:

(i) cognição não-reflexiva: essa cognição é própria da consciência perceptual, ela é uma cognição que enquanto tal é inconsciente, nada sabendo de si mesma.(ii) cognição reflexiva: trata-se da metacognição de estados mentais de ordem inferior, os quais se tornam por esse meio conscientes no sentido importante da palavra. Entre seus objetos estão cognições não-reflexivas como as que ocorrem na própria consciência perceptual, que podem então ser chamadas de cognições reflexivas, por serem objetos de reflexão.

Podemos agora aplicar a distinção proposta ao entendimento do status dos

modos de uso de nossas expressões. Quando dizemos que as regras

determinantes de nossos usos das expressões, inclusive as regras criteriais

determinantes de seus usos referenciais, não são em geral conscientes, não

estamos querendo dizer que suas instanciações são realmente não-cognitivas,

que lhes falta qualquer forma de mentalidade, ou que elas se encontram

verdadeiramente insuladas ou excluídas. O que queremos dizer é apenas que as

cognições que instanciam psicologicamente essas regras são de um tipo pré-

reflexivo (ou seja, elas não aparecem na forma de cognições reflexivas, falta-

lhes consciência no sentido importante da palavra).1 Mais ainda: parece ser 1 Desconsidero aqui a idéia tradicional de que os estados mentais de primeira ordem geram automaticamente metacognições, o que tornaria impossível termos consciência perceptual sem o acompanhamento de consciência introspectiva. Não só essa idéia retira muitas vantagens explicativas das teorias reflexivas da consciência, como parece faltar a ela uma base intuitiva convincente.

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sempre em princípio possível que essas cognições não-reflexivas envolvidas em

nossos usos significativos das palavras se transformem para nós em cognições

reflexivas, conscientes, na medida em que as tornamos objetos de

metacognições reflexivas, e que isso nos sirva de base para a compreensão

consciente e a explicação verbal de sua decomposição analítica. Proponho ser

esse o caminho pelo qual nos tornamos conscientes das regras semânticas

envolvidas nos usos das expressões lingüísticas.

Ainda é preciso fazer uma observação a respeito da sugestão de que a

consciência de um estado mental possa ser o resultado da simples integração

inferencial desse estado mental com os outros estados mentais constitutivos do

sistema. Sob essa perspectiva, uma cognição inconsciente seria aquela que

permanecesse em maior ou menor medida dissociada de outros estados mentais

(embora não insulada, não excluída). Isso pode ser correto. Contudo, por que

pensar que essa maneira de ver é incompatível com uma teoria reflexiva da

consciência? Afinal, parece razoável pensar que a propriedade de um estado

mental de ser objeto de reflexão metacognitiva seja também uma condição

talvez fundamental para que esse estado mental possa ser mais extensamente,

claramente e refletidamente integrado aos outros estados mentais constitutivos

do sistema.

Essas considerações vêm em apoio à tese geral desse livro porque nos

permitirão admitir a existência de ocorrências semântico-cognitivas, mesmo

para os casos nos quais não temos consciência das convenções semânticas que

estamos seguindo. As regras criteriais envolvidas no uso referencial das

expressões não precisam ser usadas de forma verdadeiramente não-cognitiva,

como mecanismos causais irresgatáveis para a consciência reflexiva, como

alguns pretenderam. Elas podem ser consideradas como sendo sempre, de um ou

de outro modo, cognitivamente aplicadas. Só que essas cognições, mesmo sendo

eventos psicológicos, por nunca terem se tornado objetos de metacognições 34

Page 35: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

capazes de torná-las cognições reflexivas, não se fazem conscientes, por isso

mesmo não se tornando facilmente integráveis a outros estados mentais

constitutivos do sistema. Por isso, a falta de consciência do que está envolvido

no uso significativo das expressões não basta para fazer-nos rejeitar a eventual

indispensabilidade semântica de um elemento psicológico-cognitivo.

2. SEMÂNTICA WITTGENSTEINIANA

Quero nesse capítulo esboçar uma apresentação panorâmica do conceito de

significado em nossa linguagem representativa, com base principalmente em

uma leitura reconstrutiva de sugestões feitas por Wittgenstein. No próximo

capítulo irei aplicar os resultados dessa proposta à semântica fregeana, no

intento de produzir uma análise filosoficamente esclarecedora de suas principais

distinções.

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Page 36: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

1. O elo semântico-cognitivo

O ponto de vista que pretendo sustentar nesse livro é o de que uma expressão

referencial, seja ela qual for, só é capaz de referir devido a algum elo

intermediário que a vincula a sua referência. Quero defender que esse elo

intermediário é de natureza semântico-cognitiva no sentido de que ele pode ser

considerado sob duas perspectivas: uma semântica e outra psicológica. Sob uma

perspectiva semântica ele é chamado de sentido ou significado, uso, intensão,

conotação, conceito, conteúdo informativo e ainda modo de uso, critério ou

regra semântico-criterial. Já sob a perspectiva psicológica esse memo elo pode

ser chamado de idéia, representação, intenção, concepção e cognição. Eis um

esquema:

ELO SEMÂNTICO-COGNITIVO a) sentido, significado, conteúdo,EXPRESSÃO intensão, modo de uso, critério, REFERÊNCIA LINGUÍSTICA regra criterial, proposição... b) idéia, representação, pensamento, cognição, intenção, concepção...

Quais são as denominações mais adequadas? Quais as que devem ser

excluídas? Devemos excluir os ítens psicológicos, de modo a não confundir

semântica com psicologia? Ou devemos abandonar as abstrações semânticas

vazias em troca das concretudes empíricas?

Essas são maneiras comuns, mas em meu juízo incorretas, de se colocar as

questões. Quero sugerir que as perspectivas semântica e psicológica não são

alternativas que se excluem, mas que se complementam. Isso é assim pelo fato

de que o elo intermediário entre as palavras e as coisas pode ser aproximado de

dois modos. Enquanto elo cognitivo ele possui natureza psicológica, consistindo

de elementos que devem ser no final remetidos a tokens mentais em indivíduos

concretos; mas enquanto o elo semântico é de natureza semiótica, devendo ser 36

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remetidos a types considerados na abstração de suas instanciações em indivíduos

concretos, não sendo assim psicológicos, mesmo não possuindo nenhuma

realidade fora dessas instanciações. Essa maneira de ver parece confirmar-se

quando notamos a correspondência aproximada que alguns sub-ítens de (a) e (b)

demonstram entre si. Eis algumas:

Perspectiva semântica Perspectiva psicológica:

Sentido, significado ≈ idéia Conceito ≈ concepção, idéia Configurações criteriais ≈ representações, imagens mentais demandadas proposições ≈ ocorrências de pensamento

No que se segue quero buscar alguma elucidação para esses sub-itens e para as

relações entre eles vigentes, usando como fio condutor sugestões feitas por

Wittgenstein.

2. Porque o significado não pode ser a própria referência

As palavras que mais facilmente nos ocorrem são ‘sentido’ e ‘significado’ (em

geral usadas como sinônimas), além de termos cognatos mais técnicos como

‘conteúdo’ ou ‘intensão’. O que é o significado? Uma primeira resposta é

oferecida pelo referencialismo semântico, concepção segundo a qual o

significado de uma expressão é a sua própria referência ou extensão. Essa

concepção nega a existência ou a importância de um elo intermediário.

Wittgenstein considerou essa maneira de ver em sua forma mais primitiva, que

ele chamou de “teoria agostiniana da linguagem”:

As palavras da linguagem denominam objetos – frases são ligações de tais denominações. Nessa imagem da linguagem encontramos as raízes da idéia:

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cada palavra tem um significado. O significado é correlacionado à palavra. Ele é o objeto para o qual a palavra aponta.1

O principal objetivo de Wittgenstein nessa passagem foi o de objetar contra o

seu próprio referencialismo semântico dos nomes de objetos simples defendido

em seu primeiro livro, o Tractatus Logico-Philosophicus. Esse modo de ver tem

um apelo natural. Afinal, é comum que ao esclarecermos o significado de uma

palavra nós apontemos para um objeto que exemplifique o que ela quer dizer.

Explicamos o que queremos dizer com o nome ‘Fido’ apontando para o cão que

leva esse nome. Isso faz parecer que o significado da palavra seja o próprio

objeto referido: aqui está o nome, lá está o seu significado. Contudo, essa foi por

muitos apontada como uma idéia primitiva e enganosa, que tem sido apontada

como uma séria fonte de equívocos em filosofia da linguagem2, ainda que a sua

influência até hoje perdure.3

Há uma variedade de argumentos que parecem tornar evidente a falsidade da

concepção referencialista do significado. Um deles é que muitos termos

singulares têm a mesma referência, mas sentidos (significados) claramente

diversos: os termos singulares ‘Sócrates’ e ‘o marido de Xantipa’ têm

significados claramente diferentes, embora se refiram a um mesmo homem. E o

oposto acontece usualmente com termos gerais: o predicado ‘...é rápido’ na frase

“Bucéfalo é rápido” se refere a uma propriedade de Bucéfalo e na frase “Silver é

rápido” se refere a uma outra propriedade, pertencente a Silver. Mas embora se

referindo a diferentes propriedades, o termo geral guarda certamente o mesmo

significado ao ser aplicado a um e ao outro cavalo. Assim, parece que o

1 Ludwig Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, parte 1, sec. 1.2 Ver especialmente Gilbert Ryle em “The Theory of Meaning”.3 Ainda hoje existem defesas sofisticadas, embora pouco plausíveis, do referencialismo semântico, a mais clara sendo talvez a apresentada por Nathan Salmon em seu livro Frege’s Puzzles.

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significado não pode ser confundido com a referência nem dos termos singulares

nem dos termos gerais.

O principal argumento contra a concepção referencialista do significado,

contudo, é mais básico e em meu juízo o mais destrutivo: trata-se do fato de que

quando uma expressão referencial não tem referência, ela não parece perder

nada do seu significado. O termo singular ‘Eldorado’ e o termo geral ‘flogisto’

não têm nenhuma referência, mas nem por isso deixam de ser significativos.

Consciente dessas dificuldades, Bertrand Russell decidiu defender a

concepção referencialista do significado em uma forma minimalista,

concernente apenas aos supostos elementos atômicos da linguagem e do mundo.

Ele deu a entender que ao menos o significado de alguns termos designadores de

objetos simples, por ele chamados de nomes próprios lógicos, seria o próprio

objeto referido; esse poderia ser o caso de uma palavra como ‘vermelho’. Afinal,

um cego não é capaz de aprender o seu significado.1

Contudo, um pouco de reflexão demonstra ser insustentável a idéia de que o

significado de uma palavra possa em algum caso se reduzir a sua referência tout

court. Suponha que alguém aplique demonstrativamente a palavra ‘vermelho’ a

uma ocorrência do vermelho (seja ela uma ocorrência no mundo externo, como

no caso da propriedade espaço-temporalmente singularizada de um objeto de ser

vermelho (o tropo), seja ela uma ocorrência interna, como seria o caso de

perceptos (sense data) de vermelho presentemente experienciados, como queria

Russell. Poderia ser essa ocorrência o significado da palavra?

Há uma razão óbvia para pensarmos que não, que é a falta de critérios de

identidade. Isso se nota quando consideramos que a ocorrência de vermelho –

seja ela fisicamente ou fenomenalmente pensada – será sempre outra a cada 1 Bertrand Russell: “The Philosophy of Logical Atomism”, pp. 194-5, 201-2. Como notou Mark Sainsbury, a concepção referencialista do significado é pelo menos implicada em certos textos de Russell. Ver M. Sainsbury: Russell, pp. 15-16. A mesma posição foi aceita de forma explícita pelo primeiro Wittgenstein: “O nome significa seu objeto. O objeto é seu significado”. Tractatus Logico-Philosophicus, 3.203.

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nova experiência. Assim, se o significado de ‘vermelho’ for apenas o vermelho-

como-ocorrência, cada nova ocorrência de vermelho poderá ser um novo e

distinto significado.

Russell tinha como se defender dessa acusação, mas só ao preço de cair em

uma dificuldade muito pior. Ele sugeriu que o objeto-significado do nome

próprio lógico fosse um sense datum referido por um demonstrativo como ‘isso’

apenas pelo tempo em que possuíssemos consciência do sense datum. Claro está

que tal solução conduz diretamente ao solipsismo. Como inserir um nome

próprio assim pensado na linguagem? Que regras de correção poderiam ser

aplicadas ao seu uso se nem a sua própria reutilização no mesmo sentido pode

ser considerada? 1

Com efeito, conhecer o significado de uma palavra como ‘vermelho’ é na

verdade saber reconhecer uma ocorrência do vermelho como sendo ao menos

igual a outras ocorrências do vermelho. Mas esse reconhecimento não está

incluido na idéia de que o significado da palavra se reduz à própria coisa a qual

ela se refere. A noção de significado de um termo exige essencialmente que este

unifique múltiplas ocorrências daquilo a que se refere sob um mesmo

significado. Mas essa unificação deixa de ser possível para a palavra ‘vermelho’

se o seu significado for reduzido a sua própria ocorrência.

É verdade que uma concepção realista do significado, segundo a qual o

significado de uma palavra como ‘vermelho’ seria um vermelho-type, entendido

como uma entidade abstrata, comum a todas as ocorrências (tokens), resolveria

esse problema. Mas essa solução nos comprometeria com alguma forma de

platonismo, levantando a justificada suspeita de uma reificação ininteligível do

type em um topos atopos.1 Ver objeção já na discussão de “The Philosophy of Logical Atomism”, p. 203. Também, como notou Ernst Tugendhat, um termo singular tem a função de especificar um objeto, mas se a consciência se refere somente a um sense datum presente, a conclusão é que a palavra ‘isso’ não tem mais nenhuma função. Ver Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, p. 382.

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Uma alternativa seria considerar o vermelho-type em questão como sendo o

conjunto das ocorrências idênticas entre si. Isso diminui o risco do platonismo,

mas não o elimina, pois conjuntos são entidades abstratas aparentemente

irredutíveis. Além disso, conjuntos podem ser maiores ou menores, aumentando

ou diminuindo, enquanto o significado da palavra ‘vermelho’ não tem tamanho e

nem aumenta nem diminui.

A seguinte alternativa parece ser mais viável. Podemos considerar o

significado de ‘vermelho’ como sendo qualquer ocorrência considerada igual a

uma ocorrência que estejamos usando como modelo. Assim, se reconheço aquilo

que me está sendo atualmente dado como sendo uma ocorrência de vermelho,

pode ser porque percebo que essa ocorrência é igual a outra que já me foi dada

antes como vermelho – o modelo do qual guardo memória – o que me faz

ganhar a consciência de que se trata de uma cor igual a que experienciei da outra

vez. Assim, chamando as diversas ocorrências experienciadas de vermelho de

{V1, V2... Vn } e a ocorrência que serve de modelo de Vm, posso dizer que V1 =

Vm, que V2 = Vm... e que Vn = Vm, e que por isso {V1 = Vm = V2}, sem recorrer

a uma entidade platônica ou sequer à noção de conjunto. O que chamamos de

significado da palavra ‘vermelho’ pode, sob esse prisma, ser identificado com a

conexão referencial, a saber, com a regra cognitiva que relaciona a ocorrência

experienciada à ocorrência-modelo de maneira a produzir a consciência do que

está sendo experienciado como sendo uma cor vermelha. Como essa regra

cognitiva requer modelos intersubjetivamente experienciados ou a memória

desses modelos, fica explicado porque o significado da palavra ‘vermelho’ não

pode ser aprendido por um cego. Parece, pois, que o significado da palavra

‘vermelho’ deve ser dado por uma regra semântico-cognitiva dependente de

ocorrências-modelos para a identificação de novas ocorrências como sendo

instâncias de vermelho. Contudo, tal regra é independente dessa ou daquela

ocorrência particular do vermelho. Enfim: ao refletirmos sobre a questão, 41

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mesmo para uma coisa tão simples como a cor vermelha, acabamos por ir além

de uma concepção propriamente referencialista do significado.

Mesmo que o referencialismo estrito jamais se sustente, há uma lição a ser

aprendida. Nossa última sugestão de entendimento salva do referencialismo

russelliano uma sugestão importante, que é a da necessária existência de algum

objeto de referência para os supostos nomes de objetos simples. Mesmo

entendendo a expressão ‘objeto simples’ em um sentido que não é absoluto,

restringindo-se a uma entidade não-decomponível em certa prática linguística,

como bem poderia ser o caso de um percepto de vermelho ou do vermelho como

uma propriedade singularizada dada à experiência (um tropo), a conclusão é a

de que para que tais nomes tenham significado eles precisam ter referência. Eis

porque, em um sentido importante, um cego não pode saber o significado da

palavra ‘vermelho’. Pois não podendo ter contato sensorial com coisas

vermelhas, ele não pode construir a regra semântico-cognitiva constitutiva do

significado da palavra. Ao menos no caso de nomes de objetos simples,

referidos por algum subrogado dos nomes próprios lógicos restrito a certa

prática linguística, é necessário que exista alguma referência. Mas isso não quer

dizer que o significado do nome seja a própria referência. Isso quer dizer apenas

que a referência é necessária à constituição da regra semântica através da qual o

nome do objeto admitido como simples ganha referência.

3. Significado, uso, regra semântica

Passemos agora a outro candidato a elo semântico: o uso ou aplicação.

Wittgenstein sugeriu que o significado de uma expressão lingüística é o seu uso

(Gebrauch) ou aplicação (Verwendung). Como ele escreve em uma famosa

passagem das Investigações Filosóficas:

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Pode-se, para uma grande classe de casos de utilização da palavra ‘significado’ – senão para todos os casos de sua utilização – explicá-la assim: o significado de uma palavra é o seu uso na linguagem.1

Essa sugestão se aplica tanto a palavras quanto a frases. Ela se aplica

claramente aos usos performativos das expressões, como o do verbo pedir em

proferimentos do tipo “Peço que p”. Esses usos constituem tipos de interação

entre o falante e o ouvinte chamadas de forças ilocucionárias.

Contudo, a identificação do significado com o uso não se aplica tão somente

ao significado descritivo, representacional ou semântico-cognitivo das

expressões, que é aquele que está em causa quando tratamos da referência. O

significado da frase descritiva “O céu está azul” não parece se reduzir aos seus

usos. Uma solução consiste em se fazer uma extensão justificada do conceito de

uso. Podemos dizer que aquilo que está em causa é nesses casos o uso

referencial de termos e frases: o uso envolvido no ato de tornar pública uma

descrição de como as coisas são. Podemos entender o uso referencial de

expressões como aquele em que um falante comunica a cognição de como as

coisas são ao ouvinte. Assim, no proferimento “O céu está azul” estou usando a

asserção de modo constatativo, para comunicar o conteúdo por ela descrito.2

Contudo, o que dizer da compreensão de um proferimento pelo ouvinte? O

ouvinte afinal não o está usando ao compreender o seu significado (quando leio

um livro tenho acesso ao significado das frases, mas não as estou usando). Aqui

precisamos recorrer a uma segunda extensão da palavra ‘uso’. Posso dizer que

também uso as expressões em pensamento. Quando penso que o céu está azul,

uso a linguagem no pensamento. E o pensamento é, como o definiu Platão, um

1 Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, seção 43.2 A linguagem não possui apenas uma função comunicacional, mas também organizativa, no sentido de que a usamos para pensar, para organizar nossas idéias e planejar nossa ação. A primeira vista a identificação do significado com o uso não parece fazer juz à função organizativa. Mas isso não é verdade. Se penso que a Torre Eiffel é de metal, estou usando esse nome referencialmente, em um diálogo comigo mesmo, ou seja, em pensamento.

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“diálogo da alma consigo mesma”. Se concordo com algo, se me pergunto algo,

se constato algo para mim mesmo, trata-se de usos internalizados de expressões

determinados por regras também envolvidas na comunicação.

Também importante é perceber que não se trata simplesmente de uso no

sentido de uma mera ocorrência espaço-temporal (token) da expressão

lingüística, pois uma ocorrência difere sempre da outra em sua localização

espaço-temporal. Se fosse assim o significado seria um outro a cada nova

ocorrência, o que tornaria o número de significados de cada expressão ilimitado.

A alternativa plausível é entender o uso no sentido de modo de uso

(Gebrauchsweise) ou modo de aplicação (Verwendungsweise), pois uma mesma

palavra pode ser usada muitas vezes do mesmo modo. Mas o que é o modo de

uso? Ora, ele não parece ser outra coisa senão algo do tipo de uma regra (etwas

Regelartiges). O próprio Wittgenstein chegou a essa conclusão em uma

passagem menos quotada de Sobre a Certeza:

Um significado de uma palavra é um modo de sua aplicação (Art der Verwendung)... Daí que existe uma correspondência entre os conceitos ‘significado’ e ‘regra’. 1

Com efeito: usar uma expressão de modo significativo é usá-la de acordo

com o seu modo de uso. É usá-la corretamente, a saber, segundo as regras de

significação apropriadas. A correspondência entre modo de uso e regra fica clara

através de uma ilustração: imagine que você compre uma câmara de vídeo e que

na embalagem encontre um livreto no qual está escrito “modo de uso”. O que

vem a seguir são instruções que nada mais são do que regras para a correta

utilização do aparelho. O significado só pode ser aproximado do uso se for

entendido no sentido de modo de uso, de algo do tipo de uma regra, que

1 Wittgenstein: Über Gewissheit, seções 61-62.44

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determina os usos-ocorrências singulares. E o uso referencial é uma forma

particularmente importante de modo de uso.

Mas por que então não podemos identificar o significado de nossas

expressões lingüísticas com regras simpliciter? A resposta também foi

aproximada por Wittgenstein com a sua analogia da linguagem com um

cálculo.1 As expressões lingüísticas em seu uso geralmente envolvem cálculos,

os quais nada mais são do que combinações ou concatenações de regras. E os

significados que elas possuem parecem constituir-se dessas combinações de

regras que são convenções automatizadas, mais ou menos compartilhadas entre

os falantes. É isso o que justifica a comparação da linguagem com um cálculo. A

multiplicação 12 . 30 = 360, por exemplo, pode para certa pessoa resultar da

combinação de três regras, uma multiplicando 10 . 30, outra multiplicando 2 .

30, e ainda outra somando os resultados 300 + 60, de modo a obter 360. O

sentido epistêmico da multiplicação 12 . 30 = 360 se encontraria então dado por

essa e por outras calculações equivalentes, pois tal proposição não faria sentido

se tais cálculos não pudessem ser realizados. O que havíamos chamado de algo

do tipo de uma regra parece esclarecer-se, pois, como uma combinação de

regras. O significado de uma expressão lingüística deve ser o mesmo que certas

regras ou combinações de regras que eventualmente determinam usos-

ocorrências corretos, quer pragmáticos, quer referenciais, quer na linguagem

falada, quer na linguagem pensada. Nesse livro usarei o termo ‘regra’ de

maneira a incluir combinações de regras, o que é no final das contas uma

extensão justificada do termo, posto que uma combinação de regras não é mais

do que uma regra composta, que embora não seja ela própria convencional (o

seu compartilhamento pelos falantes não é pressuposto), costuma ser

convencionalmente fundada, a saber, constituída com base em convenções.

1 Ver Wittgenstein: Ludwig Wittgenstein und der Wiener Kreis, p. 168, ver também Wittgenstein’s Lectures: Cambridge 1930-1932, pp. 96-97.

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Há ao menos duas espécies de regras de significação que não podem deixar

de ser distinguidas. A primeira é a das regras cognitivo-criteriais responsáveis

pelo significado epistêmico das sentenças declarativas. Critérios são, no dizer de

Wittgenstein, “aquilo que confere às nossas palavras os seus significados

comuns”.1 Para ele essas regras são baseadas em critérios, que são condições que

precisam ser independentemente dadas para que tenhamos a cognição de que

algo é o caso. Usando um exemplo do próprio Wittgenstein, se alguém afirma

“Está chovendo”, isso envolve a aplicação de uma regra criterial, uma regra que

demanda que sejam dadas certas condições, como a de gotas de água caindo das

núvens, para que haja a cognição, a tomada de consciência do fato de que está

chovendo. A segunda espécie de regras de significação a ser mencinada é a das

regras ilocucionárias, determinadoras do sentido ilocucionário, ou seja,

estabelecedoras da espécie de interação que deve ocorrer entre falante e ouvinte.

Se ao fazer um pedido digo “Por favor, feche a porta”, essa frase não será

verdadeira ou falsa, mas bem sucedida ou não, sendo a regra ilocucionária

aquilo que nela é tematizado. As regras ilocucionárias estão fora do âmbito de

investigação desse livro, sendo mencionadas apenas no intuito de prevenir

confusões.

Contudo, se uma análise do apelo ao uso termina por apontar para regras

cognitivas semântico-criteriais, então por que começar pelo uso? Por que não

começar logo pela investigação dessas regras e de suas combinações? A resposta

é que começar pelo uso tem para Wittgenstein uma importância heurística. As

ocorrências de uso correto, devidamente interpretadas, devem constituir-se nos

hard data semânticos: evidências públicas e indiscutíveis da aplicação das

regras de significação, pois a linguagem é primeiramente um instrumento de

ação e as regras cognitivo-criteriais estão inevitavelmente associadas a funções

ilocucionárias. Ademais, o apelo à ocasiões de uso torna patentes as sutis

1 Ludwig Wittgenstein: The Blue and the Brown Books p. 57.46

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variações semânticas que uma mesma expressão pode sofrer ao ocorrer em

diferentes contextos (práticas, jogos de linguagem), o que permite desfazer

equívocos surgidos de usos filosóficos da linguagem, que venham a confundir

essas variações.

4. Significados e práticas lingüísticas

Há mais a se dizer sobre o significado como função do uso: é que uma expressão

lingüística é normalmente usada dentro de um sistema de regras. Podemos

comparar uma expressão lingüística com uma peça de um jogo de xadrez e o seu

uso com um lance no jogo. Quando movemos a peça de xadrez, o significado do

movimento não é dado somente pela regra segundo a qual movemos a peça. Ele

é mais completamente dado pela estratégia, pelo cálculo das combinações

possíveis de regras na previsão de possíveis movimentos do adversário e das

respostas que poderiam se seguir. Esse cálculo é próprio para o jogo de xadrez e

será diferente, digamos, no jogo de damas. Algo semelhante se dá com um

proferimento lingüístico. As regras lingüístico-gramaticais de superfície são

como as que permitem os movimentos das peças de xadrez. Não são elas as que

mais importam. Elas dão à expressão o seu sentido meramente gramatical. As

regras constitutivas do significado da expressão se assemelham mais às

combinações de regras que justificam o movimento no contexto do jogo de

xadrez. Essas regras de uso de uma expressão linguística só se articulam no

contexto de sistemas de regras geralmente sintáticas, semânticas e pragmáticas,

que Wittgenstein inicialmente chamava de jogo de linguagem e mais tarde

passou a chamar de prática lingüística. Exemplos dados por Wittgenstein de

jogos de linguagem são ordenar, descrever um objeto pela aparência, informar

um acontecimento, fazer suposições sobre um acontecimento, inventar uma

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estória, contar uma história, explicar, descrever uma paisagem, fazer teatro,

contar uma piada, traduzir etc.1

Ao fazer depender o significado das expressões de seus usos segundo as

regras de práticas lingüísticas, Wittgenstein estava endossando o que hoje

chamaríamos de uma forma de molecularismo semântico: o significado da

expressão não depende dela mesma em isolamento (atomismo semântico), nem

de sua inserção na linguagem como um todo (holismo semântico), mas de ela ser

usada no contexto de uma prática lingüística (um subsistema molecular da

linguagem). Em apoio a essa concepção ele descreveu a linguagem natural como

uma nebulosa de jogos de linguagem. Como ele escreveu:

A linguagem do adulto apresenta-se aos nossos olhos como uma massiva nebulosa, a linguagem ordinária, circundada de jogos de linguagem particulares mais ou menos definidos, que são as linguagens técnicas.2

A nebulosa de práticas linguísticas, por sua vez, é algo que só encontra a sua

razão de ser como parte constitutiva do que Wittgenstein chama de uma forma

de vida. Ao que consta, ele teria sido influenciado pela leitura de um artigo do

antropólogo Bronislaw Malinovski, o qual sugeriu que para aprender a língua de

um povo primitivo precisamos compartilhar da vida em sua sociedade.3 O

exemplo usado por Malinovski para ilustrar o seu ponto de vista pode ser útil:

quando os pescadores das ilhas Trobriandes usam a expressão ‘remamos em

lugar’, eles querem dizer com ela que estão próximos de uma aldeia, pois como

as águas, mesmo próximas da praia, são profundas, varar a canoa é impossível e

eles precisam usar os remos para chegar à aldeia. Só quando conhecemos o

1 Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, sec. 23.2 Wittgenstein: Eine philosophische Betrachtung (das Braune Buch), exemplo 6, p. 122.3 Bronislaw Malinowski: “The Problem of Meaning in Primitive Languages”, publicado como suplemento em C.K. Ogden & I.A. Richards: The Meaning of Meaning (1923), um livro lido por Wittgenstein.

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contexto em que os nativos vivem ganhamos condições de entender o que essa

expressão quer dizer.

Como em outros pontos, a importância do que Wittgenstein diz consiste em

ter percebido o alcance e a abrangência de certas idéias. Para ele a expressão

‘forma de vida’ tem o sentido de modo de vida em sociedade, a dizer, do

complexo de regras que determinam a vida das pessoas em um grupo social.

Assim, a linguagem é um sistema imensamente complexo que é multiplamente

divisível em subsistemas que são as práticas lingüísticas, os jogos de linguagem,

os quais se encontram por sua vez enraizados em outro sistema, que é o

constituido pelas regras que determinam a vida das pessoas em sociedade, não

podendo ser inteiramente separado desse último. As práticas linguísticas

constitutivas de nossa linguagem ordinária nascem espontaneamente de nossa

forma de vida e dela dependem. Mesmo o aprendizado dos jogos de linguagem

especializados das ciências, só é possível porque já pressupõe algum domínio

das práticas da linguagem ordinária, também dependendo, por isso, em última

instância, da forma de vida. Eis porque um computador não seria capaz de dar

sentido às palavras com as quais opera: ele não é membro participante de uma

forma de vida.

Podemos sintetizar essas sugestões na idéia de que um significado de uma

expressão (palavra, frase) consiste em seu uso determinado pelas regras de uma

prática lingüística pertencente a uma forma de vida. Ou seja:

Um significado de uma expressão x = um uso de x segundo regras de uma prática lingüística radicada em uma forma de vida.1 1 C.F. Costa: “Wittgenstein e a gramática do significado”, em A Linguagem Factual, cap. 2. Meu pressuposto interpretativo é o de que Wittgenstein não estava fazendo tentativas de explicar a natureza do significado, que sempre acabavam se demonstrando fracassadas, sendo então substituídas por outras, em um processo de tentativas aleatórias, como alguns intérpretes parecem acreditar. O que ele tentou foi desenvolver diferentes sugestões aproximativas, cada qual abordando a mesma problemática sob uma nova perspectiva, sendo

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Com isso temos uma primeira representação panorâmica da gramática do

conceito de significado, com alguma utilidade também como fundamento para

uma crítica da linguagem.

5. Transgressões do uso lingüístico

Gostaria de fazer agora um breve excurso sobre as duas maneiras como, em

concordância com os textos de Wittgenstein, o uso lingüístico correto pode ser

transgredido em filosofia de maneira a produzir maladies que demandam

terapia. Podemos chamá-los de uso deslocado e condensado de uma expressão,

termos que tomo de empréstimo da teoria freudinana sobre os mecanismos do

processo primário.1 No uso deslocado uma expressão é usada em uma prática

lingüística B preservando o seu modo de uso na prática lingüística A (ou seja,

segundo as regras semânticas de A). Já no uso confus tenta-se usar uma mesma

expressão que pode ser usada em duas ou mais práticas lingüísticas, digamos, A

e B, simultaneamente, como se isso constituísse uma única prática lingüística.

Exemplos filosóficos desses mecanismos são sempre contestáveis, por isso

vou considerar dois casos muito simples. Quanto ao uso equívoco, considere o

paradoxo de Estilpão. Esse filósofo negou a possibilidade de predicação. Para

tais sugestões em grande medida complementares entre si. Sob esse ponto de vista é possível encontrar uma continuidade nas concepções semânticas de Wittgenstein, que vai dos Livros de Notas 1914-1916 até Sobre a Certeza.1 Para Freud o deslocamento (Verschiebung) se dá quando a carga afetiva de uma representação passa a outra representação, a qual se torna consciente, enquanto a condensação (Verdichtung) se dá quando a carga afetiva de uma representação complexa se concentra em uma parte dela, a qual se torna consciente. Essa semelhança com os dois mecanismos fundamentais do processo primário, que Freud chamava de deslocamento e condensação, não é mera coincidência. A atividade filosófica é para Freud uma forma do processo primário, assim como a arte e a religião. Para ele o mecanismo de deslocamento é mais relacionado ao inconsciente do que o de condensação, o que também pode acontecer no caso de confusões linguísticas. O próprio Wittgenstein admitia alguma proximidade entre a sua terapia filosófica e a terapia psicanalítica, resguadadas as diferenças. Ver Sigmund Freud: Die Traumdeutung, cap. 7. Que existem dois modos de transgressão já foi notado antes por um intérprete minucioso e sagaz como Anthony Kenny em sua introdução à filosofia de Wittgenstein.

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ele, se digo que Sócrates é sábio, caio em contradição, pois estou negando que

Sócrates é Sócrates... Para ele podemos dizer de alguma coisa que ela é o que é.

Mas se quisermos dizer algo mais do que isso, então caímos em contradição,

pois estamos negando que ela é o que é. Podemos identificar a falácia cometida

por Estilpão distinguindo uma prática linguística do tipo A, na qual o verbo ser é

usado no sentido de identidade (ex: “Sócrates é Sócrates”), de uma prática

linguísticas do tipo B, nas quais o verbo ser ganha um sentido predicativo (ex:

“Sócrates é sábio”). Estilpão começa por assimilar a segunda prática à primeira.

Ou seja: ele tenta usar o verbo ser em práticas do tipo B preservando o sentido

que ele tem em práticas do tipo A, que é o único que ele admite. Com isso ele

produz um uso deslocado que ele reconhece como sendo equívoco. Ao perceber

isso ele conclui pela rejeição da possibilidade de usarmos o verbo ser em

práticas linguísticas do tipo B.

Para tentarmos um exemplo de uso condensado, considere a sugestão de

alguns filósofos, segundo a qual o verbo ser deve ter um sentido unívoco

originário, que tanto é o de identidade quanto predicativo e mesmo existencial!

Digamos que, como comprovação disso, nos seja apresentada a frase: “O Ser é

Ser”, com a qual se pretenderia afirmar que o ‘é’ também tem uma propriedade

mais originária, superior a da mera identidade, que simultaneamente subsume

tanto a predicação da “seridade” do Ser quanto de sua própria existência. Contra

tal sugestão, o crítico da linguagem nos dirá ser muito mais plausível que aquilo

que o filósofo pretende com o ‘é’ da frase “O Ser é Ser” seja uma incoerente

mistura de sentidos, a saber, uma simples confusão decorrente da condensação

de três usos da mesma palavra, advindos de várias práticas lingüísticas distintas:

A (de afirmar identidade: “ser = ser”), B (de predicar algo: “Do ser se predica o

ser”) e C (de afirmar existência: “O ser é, ele existe”), do que resulta no melhor

dos casos em ambigüidade e no pior em confusão e impossibilidade conceitual.

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Apresento essa explicação porque repetidamente nesse livro, ao praticar a

crítica da linguagem, recorrerei a argumentos que denunciam formas do uso

deslocado ou condensado das expressões. Lembremo-nos, porém, que a crítica

(ou terapia) da linguagem não esgota a questão. Usos deslocados e condensados

em filosofia estão geralmente apontando para questões relevantes, ainda que

inadequadamente abordadas.

6. Verificacionismo wittgensteiniano

Por hipótese, sob o suposto de que o sentido referencial das expressões seja dado

por regras semântico-cognitivas, podemos distinguir para cada expressão

referencial uma regra semântico-cognitiva específica. Para chegar a isso sugiro

seguirmos a estratégia de Ernst Tugendhat de nos concentrarmos nas regras

expressas pelos enunciados singulares, sejam eles predicativos ou relacionais.

Afinal, são eles os enunciados mais fundamentais, se considerarmos que

enunciados universais e existenciais podem ser analisados respectivamente

como conjunções e disjunções de enunciados singulares. Assim, lembrando que

a frase singular predicativa é constituida por um termo singular e por um termo

geral e seguindo uma classificação do próprio Tugendhat1, chamo a regra

semântico-cognitiva para o termo singular de uma regra de identificação do

objeto (Identifikationsregel), chamo a regra semântico-cognitiva para o termo

geral de sua regra de aplicação (Verwendungsregel) e chamo a regra semântico-

cognitiva para a frase predicativa singular de sua regra (método, procedimento)

de verificação (Verifikationsregel) do fato, o qual pode ser por enquanto

simplesmente estipulado como sendo o fazedor da verdade independente do

sujeito.2 Também como Tugendhat podemos supor que o significado da frase

singular predicativa envolve uma regra de verificação resultante da aplicação 1 E. Tugendhat: Logisch-Semantische Propädeutik, pp. 235-6, e Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, p. 262. 2 A discussão sobre o sentido coloquial da palavra ‘fato’ será deixada para o próximo capítulo.

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combinada das duas regras anteriores, nomeadamente, da regra de aplicação de

termo geral com base na aplicação da regra de identificação do termo singular.1

No caso da frase singular relacional, a diferença é apenas que o termo geral

relacional tem uma regra de aplicação que se aplica em combinação com duas

ou mais regras de identificação de termos singulares para formar a regra de

verificação da frase relacional. Este recurso à regra de verificação foi, aliás,

visto por Tugendhat como uma maneira analiticamente mais aprofundada de se

falar da condição de verdade da frase,2 identificação à qual deveremos retornar

mais tarde.

Com a admissão teórica de que o conteúdo de significação da frase singular

possa ser dado por sua regra de verificação chegamos a um ponto bastante

polêmico: a admissão do que poderíamos chamar de verificacionismo semântico,

que é a identificação do conteúdo de significação cognitivo ou descritivo ou

factual ou informativo ou (como prefiro chamar aqui, seguindo o termo fregeano

Erkenntniswert) o significado epistêmico de uma frase enunciativa com a sua

regra de verificação. Embora nem todos saibam, foi Wittgenstein a primeira

pessoa a sugerir essa idéia.3 Vale, pois, considerarmos o que ele disse a respeito.

Eis algumas de suas declarações:

Uma frase (Satz) que não se deixa verificar de modo algum não tem nenhum sentido (Sinn).4

São duas frases verdadeiras ou falsas sob as mesmas condições, então elas têm o mesmo sentido (mesmo que elas nos pareçam diferentes).

1 A brilhante conclusão especulativa de Tugendhat em reflexão clássica sobre o que significa compreender uma sentença é a de que se a concepção por ele argumentativamente ganha é correta, então “a regra de aplicação do termo singular e a regra de aplicação do predicado constituem juntas a regra de verificação da frase predicativa”. E. Tugendhat: Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, p. 262.2 E. Tugendhat: Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, p. 259.3 Como nota o autor do dicionário Wittgenstein: “o princípio foi primeiramente defendido pelo Círculo de Viena, mas seus membros o atribuem a Wittgenstein, que o expôs a Waismann em conversações”. Hans-Johann Glock: Wittgenstein-Lexikon, p. 354.4 F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p. 245.

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Determino sob que condições uma frase pode ser verdadeira ou falsa, então determino desse modo o sentido da frase. (Esse é o fundamento de nossas funções de verdade.)1

Para saber o sentido de uma frase, preciso conhecer um procedimento muito bem definido para saber se a frase é verificada.2

O método de verificação não é um meio, um veículo, mas o próprio sentido. Determino sob quais condições uma frase deve ser verdadeira ou falsa, assim determino o sentido da frase.3

O sentido de uma frase é o método de sua verificação.4

O que primeiro chama atenção em tais formulações é que elas são quase

trivialmente intuitivas, parecendo confirmar a sugestão wittgensteiniana de que

teses filosóficas são exposições de lugares comuns acerca dos quais deveríamos

todos estar de acordo. Sem dúvida, se considerarmos exemplos muito simples (e

penso que modelares de condições mínimas) como “O céu está azul” ou “A

chave está em cima do armário”, parece claro que só sabemos o que esses

enunciados querem dizer na medida em que sabemos como eles podem ser

tornados verdadeiros. Outro aspecto importante é que, diversamente do que os

membros do Círculo de Viena fizeram com a sua sugestão, Wittgenstein não se

colocava dentro de uma perspectiva logicista em busca de uma formulação

“formalmente precisa” do princípio, capaz de dar conta de suas mais variadas

aplicações. Suas formulações são genéricas, possuindo um viés operacionalista:

nelas as condições de verdade dadas à experiência seriam melhor entendidas

como constituintes distais da regra (procedimento, método) verificacional.5

Além disso, o princípio não é de antemão apresentado como arma ideológica no

combate à metafísica; a sua função primeira é a de expor uma condição lógico-

1 F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p. 244.2 F. Waismann (ed.): Wittgenstein und er Wienner Kreis, p. 47.3 F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis p. 244.4 F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, pp. 226, 227.5 Nesse aspecto as formulações de Wittgenstein o aproximam do físico norte-americano P.W. Bridgman, que em 1927, no livro The Logic of Modern Physics, defendeu que “nada mais queremos dizer com qualquer conceito do que um conjunto de operação; o conceito é sinônimo do conjunto de operações” (p. 5).

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gramatical que se encontra no fundamento de toda a linguagem factual.

Finalmente, é questionável a sugestão frequente de que Wittgenstein teria mais

tarde abandonado o princípio da verificação em favor da idéia de que o

significado é o uso, posto que as duas sugestões podem ser vistas como

complementares. Como notou Moritz Schlick, o melhor leitor de Wittgenstein

daquele período:

Enunciar o significado de uma sentença é o mesmo que enunciar as regras de acordo com as quais a sentença é para ser usada, e isso é o mesmo que enunciar o modo pelo qual ele pode ser verificada. O significado de uma proposição é o método de sua verificação.1

Uso é aqui modo de uso que é regra de uso que é uma regra cognitiva, uma regra

(método, procedimento) de verificação, a qual é também uma regra criterial,

posto que estabelecedora dos critérios de verificação.

7. Regra verificacional como portadora da verdade

É preciso ter em mente o que a regra de verificação verifica. Ela verifica o

portador da verdade. Ela não verifica a frase, pois a frase não é o portador da

verdade. A frase não possui a estabilidade necessária ao portador da verdade,

que precisa ser sempre verdadeiro ou sempre falso na independência das

circunstâncias.2 Também o enunciado, que entendo como sendo a frase

adicionada ao seu sentido gramatical (ao seguimento de regras sintáticas) não

pode ser portador da verdade pelas mesmas razões. O que a regra de verificação

verifica é o conteúdo ou o sentido epistêmico do enunciado, e como ela mesma é

esse conteúdo, o que ela verifica é a si mesma. A regra de verificação verifica-se

a si mesma por meio de sua aplicação. Por isso a verdade da regra de verificação

é a sua aplicabilidade e a sua falsidade é a sua inaplicabilidade.1 M. Schlick: Gesammelte Aufsätze, p. 340.2 Para uma discussão sobre isso, ver meu artigo “O verdadeiro portador da verdade”.

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Também é preciso considerar que a regra de verificação vem associada tanto

à verificação quanto à falsificação do enunciado. E a razão disso encontra-se no

fato de que essa regra, sendo o próprio significado epistêmico do enunciado, ou

seja, o seu próprio conteúdo cognitivo ou epistêmico verifica-se a si mesma ao

aplicar-se e se falsifica a si mesma ao se demonstrar inaplicável. Considere o

enunciado “Frege usava barba”. Aqui a regra de verificação se aplica a um fato

no mundo, logo o conteúdo enunciativo é verdadeiro, a própria regra é

verdadeira. Considere agora o enunciado “Russell usava barba”: aqui a regra de

verificação não se aplica a nenhum fato no mundo, logo o conteúdo enunciativo

é falso, a própria regra é falsa. (Similarmente, não existem fatos negativos: a

frase “Napoleão não usava barba” não se aplica ao fato negativo de ele não usar

barba. Pois “Napoleão não usava barba” quer dizer o mesmo que “É falso que

Napoleão usava barba”, o que, por sua vez, deve querer dizer o mesmo que “A

regra de verificação para o enunciado ‘Napoleão usava barba’ não se aplica”.)

8. Regra verificacional como regra cognitivo-criterial

Podemos compreender melhor a noção de regra de verificação tal como ela é

apresentada por Wittgenstein pela consideração da noção de critério e regra

criterial que, como já notamos, também tem a sua origem na filosofia de

Wittgenstein.1 As inicialmente supostas regra semânticas de identificação,

caracterização e verificação, também podem ser vistas como regras criteriais, a

saber, regras que estabelecem os critérios de identificação do objeto para o

termo singular, os critérios de classificação da propriedade para o termo geral,

e os critérios de verificação do fato para a frase singular.

A palavra ‘critério’ é ambígua. Ela pode se aplicar (i) a elementos

constitutivos da regra criterial, a saber, a condições que só existem como 1 Uma tentativa de esboçar uma semântica criterial a partir das sugestões de Wittgenstein foi feita por Gordon Baker em “Criteria: A New Foundation for Semantics”. Uma discussão útil encontra-se no último capítulo do livro de P.M.S. Hacker: Insight and Illusion.

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representações em nossas mentes, ou então (ii) à condição correspondente,

objetivamente dada, que satisfaz os elementos constitutivos da regra criterial,

permitindo sua aplicação. Tanto num quanto no outro caso, os critérios

costumam se dispor em configurações. Assim, a regra verificacional se aplica

quando as configurações criteriais concebidas são satisfeitas pelas configurações

criteriais objetivamente dadas, as quais são constitutivas de fatos, entendidos

como sendo os fazedores da verdade encontrados no mundo.

Ora, também essa satisfação não poderia depender de nada concebivelmente

diverso de um isomorfismo estrutural entre, de um lado, os elementos inter-

relacionados que constituem as configurações criteriais pensadas e, de outro, os

elementos inter-relacionados que constituem configurações criteriais

efetivamente dadas no mundo atual. A verdade do conteúdo de significação da

frase enunciativa, que é a própria regra verificacional, resulta da aplicação dessa

regra (constituindo-se ao que parece em sua aplicabilidade), a qual depende da

satisfação de uma variedade das configurações criteriais que são pensadas

quando a regra é pensada pela variedade das configurações criteriais

constitutivas dos fatos como fazedores de verdade independentes do sujeito da

experiência. E a falsidade do conteúdo de significação da frase assertórica, a

falsidade da regra verificacional, resulta de sua inaplicabilidade, a qual se deriva

da ausência da correspondência de suas configurações criteriais com as

configurações de elementos constitutivos do fato. Essa seria a maneira de se

conformar o verificacionismo com uma concepção correspondencial da verdade.

Para esclarecer esse ponto, considere outra vez os critérios para a constatação

de que está chovendo, que podem ser dados quando vemos gotas d’água caindo

das nuvens. Ora, esse processo é constituído de propriedades identificadoras de

gotas e caracterizadoras de seus movimentos e direções. Essas configurações

criteriais podem ocorrer no mundo externo independente de nós, mas elas

também podem ser meramente concebidas na ausência da observação, como 57

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acontece quando alguém imagina gotas D’água que caem das núvens. Para

enunciados completos deve haver critérios que se constituem em configurações

de elementos (propriedades, relações, objetos...) atuando como fazedores de

verdade a satisfazerem a regra de verificação.

A condição de verdade pode ser identificada com a condição de verificação,

nomeadamente, com a regra de verificação, mas sob a abstração das variadas

configurações criteriais específicas que nos permitem inferir que a condição de

verdade está sendo satisfeita, ou seja, que o fato no mundo (a condição de

verdade dada, que satisfaz a condição de verdade concebida) é efetivamente

dado. Como Wittgenstein observa:

Tudo o que é necessário para que nossas frases (sobre a probabilidade) tenham sentido é que nossa experiência em algum sentido (in irgendeinem Sinne) com ela concorde ou não concorde. Isso é: a experiência imediata deve comprovar apenas alguma coisa delas, alguma faceta.1

O seguinte exemplo de Wittgenstein esclarece melhor esse ponto:

A consideração do modo como o significado de uma sentença é explicado torna clara a conexão entre significado e verificação. Ler que Cambridge ganhou a corrida de botes, o que verifica “Cambridge venceu”, obviamente não é o significado, mas é conectado com ele. “Cambridge venceu” não é a disjunção ‘eu vi a corrida ou eu li o resultado ou...’ É mais complicado. Mas se excluirmos qualquer um dos meios de verificar o enunciado, nós alteraremos o seu significado. Seria uma infração de nossa gramática se nós excluíssemos da verificação algo que sempre acompanhou o significado. E se excluíssemos todos os meios de verificação, isso iria destruir o significado. É claro que nem toda espécie de verificação é realmente usada para verificar “Cambridge venceu” nem qualquer verificação dará o significado. As diferentes verificações do vencer a corrida de barcos têm diferentes lugares na gramática de “ter vencido a corrida de botes”.2

1 Friedrich Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p. 282. 2 Wittgenstein’s Lectures, Cambridge 1932-5, p. 29.

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Considerando que “Cambridge venceu a corrida de botes” é uma frase

predicativa singular, devemos notar que as regras fundamentais devem ser a

regra de identificação do termo singular ‘a equipe de Cambridge’ e a regra de

aplicação do predicado ‘...venceu a corrida de botes’. Mas o procedimento

verificacional é mais complexo; ele tem a forma de uma árvore, que pode se

ramificar em variadas formas verificacionais. O significado de uma frase deve

ser constituído pelas formas verificacionais que terminam nas configurações

criteriais cuja satisfação elas requerem. Há configurações criteriais

fundamentais, como a observação direta do acontecimento, feita por alguém que

realmente vê a equipe de Cambridge vencer a corrida de botes... Mas existe

também uma variedade indefinida de configurações criteriais secundárias, de

sintomas, que nos permitem inferir que Cambridge venceu a corrida de botes,

como é o caso da notícia de jornal ou do encontro de um novo troféu na estante

do clube de regatas. Essas regras podem ser aplicadas diretamente, no caso em

que vemos Cambridge vencer a corrida, ou indiretamente, quando a sua

aplicabilidade é deduzida de outros fatos. No primeiro caso Wittgenstein poderia

falar de critérios primários e no segundo ele fala de critérios secundários ou

sintomas. Os critérios primários são definitórios: uma vez dados eles decidem do

que o fato em questão está sendo dado; já os critérios secundários ou sintomas

apenas probabilizam o fato em questão.1 Assim – para tormar um exemplo de

Wittgenstein – pingos de chuva caindo do céu é critério de chuva, enquanto

calçadas molhadas são sintomas ou critérios secundários de chuva, pertencendo

secundariamente ao significado da atribuição de chuva.2 A investigação precisa

e detalhada da estrutura das regras de verificação em diferentes espécies de

enunciados é um empreendimento que me parece importante e que não foi

levado a termo.

1 Wittgenstein: The Blue and the Brown Books, p. 24.2 Wittgenstein: Wittgenstein’s Lectures, Cambridge 1932-1935, p. 28.

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É preciso notar que intuitivamente a condição de verdade é o fato fazedor da

verdade do enunciado, como o de que chove ou de que Cambridge venceu a

corrida. O conceito de condição de verdade tem a mesma ambigüidade que o

conceito de critério: pode ser o fato no mundo (o fazedor da verdade) ou então

um fato meramente concebido. A suspeita que aqui emerge é a de que o conceito

de condição de verdade não pode ser dissociado do conceito de critério. A

condição de verdade é o fato, e o fato é o complexo de configurações criteriais

que nos permitiria verificar diretamente o enunciado. Contudo, se alguém

verifica que Cambridge venceu a corrida por encontrar uma taça no armário de

um clube, esses critérios secundários (sintomas) não serão parte do fato (evento)

de Cambridge ter vencido. Se vejo que o barômetro indica que está chovendo,

esse critério também é secundário, um mero sintoma de chuva, que não é parte

constitutiva do fato de que está chovendo, diversamente dos pingos de chuva

caindo, que posso discernir de diversas maneiras. Essas considerações

aproximam-nos das teorias do significado como condições de verdade.1

1 Uma teoria do significado como condição de verdade é a que foi exposta por Wittgenstein em seu Tractatus Logico-Philosophicus. Segundo a sua versão, o significado de uma frase é o fato possível por ela representado, sendo tal fato a sua condição de verdade. Outra influente teoria dessa espécie foi a sugerida por Donald Davidson com base em Tarski. Segundo essa última teoria, o significado de uma sentença é a sua condição de verdade (ver Donald Davidson: Inquires into Truth and Interpretation, caps. 1-5). Um problema com essas teorias é que enquanto as condições de verdade não forem explicadas com base em configurações criteriais, tais teorias permanecem filosoficamente triviais, não fornecendo uma decomposição suficientemente esclarecedora do significado. Em Davidson, por exemplo, a condição de verdade de uma frase ‘p’ pode ser dada pela própria frase p em seu modo de dizer objetual. A teoria exposta no Tractatus tem a vantagem de supor que as frases sejam analisáveis em frases elementares muito mais complexas, cujos elementos correspondem a objetos simples. Com isso ela já sugere o caminho para uma análise criterial, mesmo que de uma maneira dogmática. Só as análises criteriais do significado, como as que serão desenvolvidas em capítulos posteriores desse livro, permitirão analisar o significado de modo esclarecedor, decompondo-o em múltiplas constelações criteriais capazes de variar de contexto para contexto. Penso que a distinção feita por Michael Dummett entre teoria modesta (modest) do significado, que o traduz para quem já o reconhece, e uma teoria sangüínea (full-blooded) do significado, que é capaz de explicá-lo para quem não o conhece, busca refletir em termos metateóricos a diferença entre uma teoria do significado como condição de verdade e uma teoria criterial. Ver M. Dummett: The Seas of Language, p. 5 e ss. Também Ernst Tugendhat progrediu nesse sentido ao concluir que a

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O mais importante acerca disso é perceber que a condição de verdade não

pode existir na independência de seus critérios. Ela não é algo que se encontra

para além deles, na independência deles, mas, como dissemos, é o próprio

complexo dos critérios que verificam o enunciado da maneira que consideramos

a mais direta. É uma falácia filosófica a crença de que uma condição de verdade

possa existir ou ser concebida sem os critérios que a constituem.

9. Verificacionismo e teoria correspondencial da verdade

A teoria correspondencialista da verdade resulta de uma sólida intuição de senso

comum e não há razão não-filosófica para duvidarmos dela. Por isso ela será

aqui em princípio admitida. Segundo essa teoria, a verdade de um conteúdo de

pensamento (proposição) consiste em sua correspondência com o fato. A

questão é: qual a relação entre correspondencialismo e verificacionismo? Ora,

essa complementariedade se torna clara quando consideramos que o fato que

deve corresponder ao pensamento só pode ser o fato que verifica a regra

verificacional, a qual nada mais é do que o próprio pensamento no sentido de

significado cognitivo da frase.

Para explicar a teoria correspondencial da verdade em sua conexão com o

verificacionismo quero valer-me de uma versão dessa teoria proposta por Moritz

Schlick no início do século XX.1 Traduzindo o que ele sugeriu em uma

condição de verdade seria mais profundamente formulada como uma condição de verificação, baseada obviamente em critérios. Ver E. Tugendhat: Vorlesungen zur Einführung in die Sprachanalytische Philosophie, pp. 259, 410. 1 M. Schlick: “Das Wesen der :Wahrheit nach der modernen Logik”. Ver também C.F. Costa “A pragmática da teoria correspondencial“ e “A verdadeira teoria da verdade“. É curioso notar que Edmund Husserl defendeu uma teoria da adequação não muito diversa dessa, embora vestida em termos de atos intencionais. Para Husserl a coincidência do objeto do ato de doação do significado (bedeutunsgsverleihende Akt) com o objeto do ato de preenchimento de significado (bedeutungserfühlende Akt) é o que objetivamente constitui a verdade. Basta substituirmos a palavra ‘objeto’ pela palavra ‘conteúdo’, ato de doação do significado por conteúdo da hipótese e ato de preenchimento de significado pelo conteúdo da constatação para termos a teoria de Schlick. Mas o apelo aos atos intencionais me parece aqui uma maneira obscurescedora de falar do que Schlick poderia chamar de procedimento

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linguagem mais atual, a correspondência depende de um processo verificacional

constituído de três momentos:

(1) um momento suposicional, no qual se constrói um enunciado hipotético ou suposicional que pode ser abreviado como ?p (onde ? é o operador de suposição e p expressa um conteúdo de pensamento.(2) O segundo momento é o de um ato verificador no qual encontramos um conteúdo de pensamento contextualmente determinado como sendo capaz (ou não) de verificar p. Podemos abreviá-lo como !q (onde ! é o operador da constatação de um conteúdo q entendido como sendo indiscutivelmente certo dentro do contexto e do conteúdo informativo à disposição. Finalmente, há um momento (3) de comparação do conteúdo de ?p com o conteúdo da constatação Cq. Como resultado temos duas possibilidades 3a): “p = q”: nesse caso p é verificado como sendo uma frase de conteúdo verdadeiro, pois seu conteúdo é igual ao da constatação; 3b) “p ≠ q”. Nesse caso p é falseado por possuir um conteúdo diverso do conteúdo da constatação !q.

Alguns exemplos mostrarão como isso acontece nos diversos casos concretos.

1) O primeiro exemplo é muito simples. Eu ouço o som de gotas de chuva fora

do meu quarto. Minha suposição, minha hipótese ?p, é a de que deve estar

chovendo. Eu vou até a varanda e vejo que está chovendo: faço a constatação

observacional !q. Como “?p = !q”, a minha suposição foi constatada como sendo

verdadeira.

Veja que nesse caso trata-se de um fato observacional. Precisamos admitir

que o observação possui um conteúdo que é ele próprio o fato empírico de que

está chovendo, o qual (dentro do contexto e do pano de fundo informacional à

minha disposição) torna a minha suposição verdadeira. A maioria das

verificações empíricas, porém, não tem como constatação uma simples

observação. Elas são derivadas, resultando de inferências anteriores, por sua vez

baseadas em observações, como os próximos exemplos demonstrarão.

verificacional. Ver E. Husserl: Logische Untersuchungen, vol. 2, parte II, sec. 39.62

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2) Considere agora como exemplo a descoberta das quatro luas do planeta

Júpiter por Galileu em 1610, através do telescópio por ele construído. Primeiro

ele notou que haviam quatro astros alinhados ao redor de Júpiter, que ele pensou

que fossem estrelas fixas. Ao repetir a observação nos dias seguintes ele

percebeu que os astros se moviam. Sua suposição ou hipótese foi ?p “Será que

Netuno tem quatro luas?”. Ao continuar as observações dia após dia ele

percebeu por observação a verdade de r: a constatação de que aqueles astros

realmente circundavam Netuno, o que o levou a concluir que a sua suposição era

correta.

Podemos esquematizar o processo verificacional indireto de modo a mostrar

que ele inclui a constatação de igualdade de conteúdo através de um

procedimento de verificação de correspondência. Primeiro houve a suposição ?

p: “(Será que) Netuno tem quatro luas?”. Depois houve a observação repetida

das mudanças na posição aparente dos quatro astros alinhados ao redor de

Netuno, que levou Galileu a concluir que a proposição r fosse verdadeira: eles

circundam Netuno. Com base em r Galileu concluiu uma constatação factual !q:

“Netuno tem quatro luas”. Finalmente, considerando a correspondência por

igualdade de conteúdo entre a hipótese ?p e a constatação factual !q Galileu

concluiu que essa hipótese era verdadeira.

É importante aqui notar que a constatação, embora derivada de observações,

não é ela própria observacional. Mesmo assim ela precisa ser tomada como

certa, indubitável, para poder servir como fazedor de verdade para a suposição,

caso contrário nós acabaríamos por cair em um regresso ao infinito. Mas é

preciso notar que esse caráter de certeza da constatação não precisa ser

considerado infalível. É assim no contexto dado de uma prática de conhecimento

– a da física – e sob o pressuposto do pano-de-fundo informacional à disposição

de Galileu.

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3) Um outro exemplo de constatação derivada é o de um pastor Americano

chamado David, que logo após seu casamento com a sra. Mary foi internado

com fortes dores abdominais. No hospital descobriram altas doses de arsênio em

seu sangue. Suspeitou-se da verdade da suposição do tipo ?p, que é: “A Sra.

Mary tentou envenenar o reverendo David”. Embora não exista uma evidência

observacional para a comprovação da verdade de p, há uma série de proposições

de base observacional que se acumulam, que são: r = “Descobriu-se altas doses

de arsênio no sangue do pastor John”, s = “Encontrou-se traços de arsênio na

dispensa da senhora Rose”, t = “Exumaram-se os cadáveres dos quatro primeiros

maridos da senhora Rose, mortos por causas desconhecidas, encontrando-se alta

dose de arsênio em seus cabelos”. Note-se agora que a conjunção dos

enunciados r, s e t conduz à conclusão de que (dentro do contexto e pano de

fundo informacional dados) é considerada certa, o enunciado do tipo !q = “A

senhora Rose tentou envenenar o reverendo David” é verdadeira, que ela

exprime um fato. Finalmente, como p e q possuem iguais conteúdos, conclui-se

que a suposição de que a senhora Rose tentou envenenar o reverendo

corresponde ao fato descrito por q.

O interessante nesse exemplo é que ele envolve o que usualmente chamamos

de coerência: as proposições p, q, r, s e t são coerentes entre si. Nisso se

baseiam as chamadas teorias coerenciais da verdade. Mas o que esse exemplo

sugere é que a coerência é apenas um aspecto do mecanismo pelo qual tomamos

consciência da correspondência.

É interessante notar que enunciados formais (da lógica, da matemática, da

geometria...) também podem ter explicado o seu conteúdo cognitivo em termos

verificacionais. Há primeiro o caso de constatações não-derivadas, equivalentes

às constatações observacionais do conhecimento empírico. Por exemplo: “Na

geometria euclideana a reta é a distância mais curta entre dois pontos”, ou “uma

proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo”. Schlick sugeriu 64

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que mesmo princípios como esse precisam de um exemplo que os torne

intuitivamente certos. De tais exemplos retiramos a constatação !q, que é igual à

suposição do princípio ?p, tornando-a verdadeira.

Na maioria dos casos, porém, o procedimento é derivado. Partindo de

axiomas combinamos regras formais de modo a produzir uma prova, que

constitui uma constatação cujo conteúdo é igual ao de uma suposição, tornando

esta última verdadeira por correspondência com a constatação do fato. Isso será

evidenciado nos dois exemplos seguintes.

4. Considere, no caso da geometria euclideana, o teorema da soma dos

ângulos de um triângulo. A hipótese a ser verificada é a de que a soma dos

ângulos internos de qualquer triângulo deva ser 180º. A partir de axiomas

bastante óbvios podemos demonstrar que a soma dos ângulos internos de certo

triângulo é, com certeza, 180º. Comparando o conteúdo da suposição com o

conteúdo desse resultado temos uma verificação da hipótese, que nada mais é do

que a satisfação dos critérios de verificação da hipótese.

5. Considere, por fim, um exemplo retirado da lógica modal. Consideremos

como suposição o seguinte enunciado da lógica modal “P → ◊P”: Esse

enunciado possui um significado gramatical, ao menos. Podemos inicialmente

apreendê-lo como a seguinte suposição: “?(P → ◊P)”. Mas, aceitando o sistema

S5, temos uma verificação, uma prova desse teorema, que é a seguinte:

1 □~P → ~P AS32 ~~P → ~□~P 1TRANS.3 P → ~□~P 2DN4 ◊P ↔ ~□~P AS15 ~□~P → ◊P 4 ↔ E6 P → ◊P 3,5 SD

Este argumento pode ser entendido como uma regra de verificação de “P ->

◊P”. Ele explicita de modo preciso por que temos a impressão de que “P -> ◊P”, 65

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é um enunciado verdadeiro. O procedimento é equivalente ao que se dá na

verificação de enunciados empíricos. Primeiro temos uma suposição plausível,

que podemos expor como sendo ?p: “(P -> ◊P)?”. Depois, com base nos

axiomas AS3 e AS1, que são os equivalentes formais de observações empíricas,

produzimos uma combinação de regras da qual resulta a constatação do tipo !q

de que “(P -> ◊P)”. Ora, aqui vemos que há uma corespondência no sentido de

que ?p = !q, concretamente, que a suposição “(P -> ◊P)?” tem o mesmo

conteúdo que a conclusão do raciocínio que é a constatação (P -> ◊P)! tida como

certa. Como há correspondência, como os conteúdos da constatação que conclui

o raciocínio formal e o da hipótese são os mesmos, nós concluímos que “P ->

◊P” é um enunciado verdadeiro, ou seja, que “├(P -> ◊P)”. Uma diferença

importante com relação a verificações empíricas é que como os axiomas já estão

desde sempre à nossa disposição, de modo que construir a regra de verificação é

aqui o mesmo que verificá-la.

Há duas conclusões importantes a se retirar dessa maneira de se entender a

relação correspondencial tal como ela foi apresentada aqui. Uma delas é que a

teoria da correspondência passa a se aplicar a todo o campo do conhecimento.

Tradicionalmente, as ciências formais têm sido consideradas os redutos

indevassáveis do coerentismo, pois é pela coerência com as outras proposições

do sistema que uma proposição é dita verdadeira. Mas o que a sequência de

exemplos acima acaba de demonstrar é que a teoria da verdade como

correspondência se aplica também às ciências formais. A outra conclusão

importante é a de que a teoria coerencial da verdade é assimilada à teoria

correspondencial da verdade. A coerência continua existindo, mas ela é

absorvida no mecanismo de verificação. A coerência passa a ser apenas um

momento mais ou menos complexo de todo o procedimento verificacional

através do qual a correspondência se comprova.

66

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A adição das intuições provenientes da teoria correspondencial da verdade ao

verificacionismo nos permite analisar melhor o que havíamos chamado de regras

verificacionais ao analisarmos o texto de Wittgenstein. Os procedimentos

através dos quais se constata a correspondência, derivados ou não, nada mais são

do que aquilo que chamamos de regras verificacionais, constitutivas do

conteúdo cognitivo completo do enunciado. As constelações criteriais cuja

satisfação é demandada pela regra variam com a correspondência derivada e

não-derivada. Na correspondência não-derivada elas são o próprio conteúdo da

constatação, que interpretamos como sendo o conteúdo externo, o próprio fato,

que também pode ser chamado de a condição de verdade. No caso da

correspondência derivada, as constelações criteriais em questão são o conteúdo

factual das observações ou dos axiomas dos quais se inferiu a constatação dada

como certa, entendida também como poussuindo o fato como conteúdo e

também podendo ser chamada de condição de verdade. Com isso chegamos a

uma idéia mais clara e precisa daquilo que chamamos de condição de verdade.

Podemos, finalmente, tomar qualquer um dos exemplos acima que consista

em uma frase predicativa singular e traduzi-lo em uma explicação de um ato

verificacional, seguindo o procedimento de Tugendhat de constituir a regra de

verificação através da regra de identificação do termo singular adicionada à

regra de aplicação do termo geral.

Considere, para tal, o enunciado de Galileu de que Netuno tem quatro luas.

Ele se verifica pela aplicação da regra de identificação de Netuno como o

planeta visto pelo telescópio em tal e tal região celeste, adicionada à constatação

de que ele tem quatro luas, que é resultado da aplicação da regra de aplicação do

predicado. Essa regra de aplicação do predicado, porém, só é aplicável pela

constatação da aplicação prévia da regra que teve como critério a série de

observações que demonstraram que os corpos celestes alinhados próximo a

Netuno o circundam. Fundamental é notar que a condição de verdade satisfeita é 67

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o fato de que Netuno tem quatro luas, que esse fato nada mais é do que o

conteúdo da constatação correspondente, mas que nossa cognição desse fato

(dessa condição de verdade) não se sustenta em si mesma; ela é o resultado da

aplicação de regras criteriais, ou seja, é o resultado de inferências advindas de

observações outras.

Embora existam muitas objeções que poderiam ser feitas à teoria

correspondencial e que não posso responder aqui, quero me concentrar na

objeção que talvez seja a mais influente e cuja resposta repercutirá na na

avaliação das doutrinas de externalismo de conteúdo a serem abordadas mais

tarde nesse livro. Trata-se da objeção de que proposições só podem ser

comparadas com proposições e que ao compararmos proposições suposicionais

com costatações observacionais, na linha de base do procedimento

verificacional, mesmo que estes sejam admitidos como certos sob a suposição

do contexto e pano-de-fundo, permanecemos presos no interior de um círculo

lingüístico que exigirá novas verificações, as quais serão inevitavelmente

também intra-linguísticas etc. o que nos fará cair em uma redução ao infinito

cujo inevitável corolário será o ceticismo epistêmico.

Filsófos realistas como Moritz Schlick e A.J. Ayer1 defenderam que

realmente rompemos o círculo lingüístico quando fazemos a observação, mesmo

que seja natural e inevitável usarmos a linguagem para descrever a observação.

Outros filósofos consideraram que apesar de seu bom senso, essa maneira de

pensar desconsidera o fato de que a constatação – mesmo a constatação

observacional – é um conteúdo de crença, e que tal conteúdo precisa possuir um

caráter inevitavelmente psicológico, como o velho argumento que tanto

preocupou os filósofos, de Descartes a Kant, segundo o qual nunca temos acesso

1 “Truth”, in A.J. Ayer: The Concept of Person and Other Essays (London: Macmillan Press 1963) p. 186.

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direto e definitivo às coisas tal como elas são, mas apenas a representações

(sensações, fenômenos, sense-data etc) das coisas.

O dilema recém colocado a meu ver se resolve se admitirmos que a frase

observacional possui uma face de Janus: o seu conteúdo pode ser visto como

psicológico ou como alguma coisa que realmente se dá na realidade, como um

fato empírico. Quando considerado dentro de um contexto de elementos

psicológicos como subjetivo, mas ele também pode ser hipoteticamente visto

como um conteúdo factual objetivo, se ele satisfizer critérios fisicalistas como os

de independência da vontade, de permanência, de máxima intensidade

perceptual, de seguimento de leis naturais e de acordo intersubjetivo sobre as

suas características entre os observadores. Não estou dizendo que nesse caso o

conteúdo observacional é necessariamente objetivo, real, externo ao observador.

A possibilidade de erro, por mais remota que seja, é sempre dada. Mas trata-se

aqui de uma assunção que a satisfação dos critérios nos autoriza a fazer. É no

fato de que essa assunção de objetividade do conteúdo observacional faz parte

de nosso próprio entendimento do que é a objetividade – da própria gramática

desse conceito, para usar uma terminologia wittgensteiniana, que se justificaç a

pretensão de que a observação nos faculta a romper com o círculo lingüístico.1

10. O status ontológico dos fatos

Ainda sobre a teoria correspondencial da verdade cumpre respondermos a uma

conhecida objeção sobre o status ontológico dos fatos. Há aqui uma controvérsia

entre os que julgam que fatos empíricos são entidades objetivas que estão no

mundo e aqueles que, como Frege, acreditavam que fatos são entidades abstratas

ou intra-linguísticas. P.F. Strawson em um artigo influente sugeriu que fatos

empíricos são meros correlatos pseudo-materiais, não se encontrando, pois, no

1 Ver C.F. Costa: “A pragmática da relação correspondencial”, IV-V.69

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mundo.1 Seu mais incisivo argumento é o de que fatos não são espaço-

temporalmente localizáveis, diversamente dos eventos. Assim, o evento da

travessia do Rubicão por Cesar, por exemplo, deu-se no ano 47 a.C.; mas esse

fato não ocorreu no ano 47 a.C., pois fatos simplesmente não ocorrem.

Contudo, essa controvérsia é falsa. Uma maneira fácil de contorná-la foi

proposta por John Searle. Para ele nós precisamos de uma palavrinha para

designar aquilo no mundo que torna o pensamento verdadeiro. A palavra fato

está à mão. Assim, por que não usá-la estipulativamente para designar o fazedor

da verdade, seja ele qual for?2

Acredito, porém, que mesmo esse recurso seja necessário. Pois não me

parece implausível a sugestão de J.L. Austin, segundo a qual os argumentos

contra a realidade objetiva dos fatos empíricos nada têm de compelentes.3 Se

Austin tem razão, mesmo em seu sentido lexical, fatos podem ser correlatos

objetivos dos pensamentos, de modo que fatos empíricos no final das contas

podem ser considerados combinações de elementos dados no mundo.

Minha sugestão tem sido a de que a oposição fato-evento é falsa, pois

eventos nada mais são que sub-espécies de fatos. Melhor dizendo: ‘fato’ é uma

palavrinha guarda-chuva que serve como hiperônimo de uma diversidade de

hipônimos como ‘eventos’, ‘processos’, ‘situações’, ‘estados de coisas’. Esses

hiperônimos, por sua vez, dividem-se em duas classes, entre elas sim ocorrendo

a oposição divisada por Strawson. Essas duas classes são as de:

1. Fatos estáticos (formais ou empíricos): situações, circunstâncias, estados de coisas...

2. Fatos dinâmicos (somente empíricos): eventos, ocorrências, processos, acontecimentos... 4

1 P.F. Strawson: “Truth”. Essa posição foi mais tarde abandonada por Strawson. Ver “Reply to John Searle”, p. 402.2 J.R. Searle: “Truth: A Reconsideration of Strawson’s Views”. 3 J.L. Austin: “Unfair to Facts”. Ver C.F. Costa: “Fatos empíricos”.4 Ver C.F. Costa: “Fatos empíricos”, p. 122 ss.

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Fatos estáticos definem-se como os que mantém as mesmas relações entre

seus elementos durante todo o período de sua existência. Fatos formais da

matemática e da lógica são trivialmente estáticos. Mas também há muitos fatos

empíricos, como o de que a terra é redonda e o de que ela gira em torno do sol,

que são estáticos. Mesmo o fato de a terra girar em torno do sol é estático no

sentido de que a propriedade de girar em torno permanece a mesma.

Já os fatos dinâmicos são aqueles que se deixam analisar em termos de

configurações de elementos que se alteram durante o período de sua existência

seguindo certa ordem. Por exemplo: o evento da queda das torres gêmeas. A

diferença entre o evento e o processo é que o processo é comparativamente mais

duradouro. Assim, a Primeira Guerra Mundial foi um processo desencadeado

pelo evento do assassinato do arquiduque austríaco. E o aquecimento global é

um lento processo. Tudo isso, no entanto, são obviamente fatos: é um fato que

as Torres Gêmeas desmoronaram, que a Primeira Guerra se deu e que o

aquecimento global está ocorrendo.

A travessia do Rubicão por César, por sua vez, é um caso especial. Trata-se

de um fato ambíguo causador de confusões: ela é geralmente entendida de forma

ilustrativa como um fato social estático; o estado de coisas instaurado pela

entrada do exército de Cesar no território italiano, violando a lei e forçando o

estado romano a declarar guerra contra ele. Mais raramente a travessia do

Rubicão pode ser entendida mais literalmente, como um fato dinâmico, o evento

físico da travessia, constituído pelas localizações de César em relação ao

Rubicão em t1, em t2.. em tn.

Devido à natureza dinâmica dos fatos dinâmicos, deles dizemos não só que

eles se situam, mas também que eles ocorrem no tempo, enquanto dos fatos

estáticos dizemos apenas que eles se situam no tempo. Com efeito, apenas os

fatos dinâmicos têm a propriedade de ocorrer no tempo, sendo a palavrinha 71

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‘evento’ a mais apropriada para designá-la. A meu ver, sem ter notado que

eventos são subespécies de fatos e percebendo apenas que só os eventos ocorrem

no tempo, filósofos como Strawson concluíram apressadamente que só os

eventos estão no tempo, opondo-os aos fatos atemporais. Mas isso não é

verdade. Que eventos são subclasses de fatos é sugerido pela usual

intersubstitutividade salva-veritate: não é incorreto dizer que a ocorrência da

travessia do Rubicão por Cesar foi um fato e que esse fato se deu em 47 a.C. E

não é incorreto se ele for entendido como um fato dinâmico. Por outro lado, o

estado de coisas social estabelecido pela travessia foi muito mais duradouro,

dele resultando, como é sabido, o fim da república.

Continua, pois, aceitável considerarmos o fato dado no mundo como

constituido de uma variedade de configurações de elementos, a qual pode

corresponder ou não à configuração de elementos criteriais (propriedades ou

sistemas de propriedades singularizadas) demandada pela regra de verificação,

tal como ela se deixa conceber por sujeitos cognitivos. Por isso não parece

implausível a sugestão de que a correspondência depende da constatação de

alguma espécie de isomorfismo estrutural entre as configurações criteriais

concebidas e demandadas pela regra, de um lado, e as configurações de

elementos (combinações de propriedades singularizadas) constitutivos ou

indicadores do fato no mundo, de outro. Essa sugestão, como as outras, é tal que

contra ela poderia ser erguida uma muralha de argumentos cujas respostas não

podem ser aqui buscadas.

11. Isomorfismo estrutural e igualdade de conteúdo

A concepção correspondencial da verdade recém exposta pode ser

complementada com a idéia de que a única maneira de se explicar a

representação consiste em se admitir que os conteúdos de nossas frases

assertóricas precisam ser ao menos capazes de alguma espécie de isomorfismo 72

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estrutural com os fatos que eles devem representar. A noção de isomorfismo

estrutural é central à teoria pictorial da linguagem defendida por Wittgenstein

em seu Tractatus Logico-Philosophicus. Ela pode ser resumida na idéia de que o

conteúdo da frase assertórica contém uma combinação de elementos que precisa

apresentar:

(i) uma relação biunívoca de cada elemento seu com um elemento de um fato atual ou possível, e(ii) a preservação de modos de combinação dos elementos do conteúdo semântico que sejam similares aos modos como os elementos do fato atual ou possível se combinam.

No Tractatus essa idéia é apresentada em conexão com uma improvável

metafísica atomista, em que cada pensamento deve ser analisado em elementos

que sejam nomes próprios lógicos de objetos simples e indestrutíveis. Essa

metafísica foi abandonada por Wittgenstein. Mas a idéia de que a representação

demanda isomorfismo estrutural não precisa ser por isso abandonada.1 Afinal,

podemos substituir os nomes elementares por termos singulares e predicados de

enunciados analisados segundo as exigências da prática lingüística, do jogo de

linguagem onde eles ocorrem. E o isomorfismo possível da estrutura do

conteúdo de pensamento com um fato correspondente deve ser buscado segundo

regras de projeção estabelecidas pela própria prática lingüística na qual o

1 Compartilho aqui da opinião de Erik Stenius de que Wittgenstein abandonou apenas a formulação metafísica por ele dada à teoria pictórica da frase no Tractatus, na qual ele supunha haver apenas uma única divisão do mundo em objetos simples, do insight original da teoria pictórica, segundo o qual toda representação demanda isomorfismo estrutural. Como notou Stenius, esse insight comparece nas Investigações Filosóficas sob o nome de radical de frase (Satzradikal). Se tomarmos uma foto de um lutador de boxe, escreve Wittgenstein, temos um radical de frase. Ele só nos irá dizer alguma coisa se a ele adicionarmos uma função. A hipótese do isomorfismo continua, todavia, válida na análise do próprio radical de frase em sua função em jogos de linguagem. (Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, nota à seção 22; ver também Erik Stenius: “The Picture Theory and Wittgenstein’s Later Attitude to it”.)

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pensamento é expresso... Mas o que são essas regras de projeção? A resposta

seria: elas são as próprias regras verificacionais.

12. A objeção da inverificabilidade do próprio princípio

A primeira e mais notória objeção ao princípio da verificabilidade é que ele é

autodestrutivo. O argumento é o seguinte. O princípio da verificabilidade deve

ser tautológico ou sintético. Tautológico, ou seja, analítico,1 ele não pode ser,

pois nesse caso ele seria não-informativo. Mas ele nos parece claramente

informativo. Além disso, enunciados analíticos são auto-evidentes e a sua

negação é incoerente, o que não é o caso do princípio da verificabilidade. Por

conseguinte, ele é sintético. Mas se é sintético, então ele precisa ser destituído de

sentido, posto que quando tentamos aplicar o princípio da verificabilidade a ele

mesmo, descobrimos que é inverificável. Como conseqüência, o princípio é

destituído de significado pelos seus próprios standards...

Positivistas lógicos tentaram contornar essa objeção respondendo que o

princípio da verificabilidade de fato não tem valor-verdade, pois ele não passa

1 Entendo uma proposição analítica como sendo aquela cuja verdade decorre da combinação dos sentidos de suas expressões constitutivas. Enganou-se Quine (em “Two Dogmas of Empiricism”) ao rejeitar essa definição por ela se basear no conceito demasiado vago de significado. Vago ou não, esse conceito cumpre aqui com a sua função de produzir uma definição perfeitamente inteligível e em si mesma irretocável (R.G. Swinburne: “Analyticity, Necessity and Apriority”, p. 228; ver também H.P. Grice e P.F. Strawson em “In Defense of a Dogma”). Também me parece falaciosa a rejeição de Quine à sua própria tentativa de definir analiticidade através de sinonimidade e necessidade, em razão da excessiva proximidade semântica entre os vários conceitos envolvidos (significado, sinonimidade, necessidade...), o que produz, segundo ele, uma quase-circularidade na definição. Afinal, em nossas definições é natural e mesmo indispensável que os conceitos usados pertençam a um mesmo campo semântico. Cadeira, por exemplo, se define como “banco com encosto”, mas tanto o conceito de cadeira, como o de banco e o de encosto pertencem ao domínio da carpintaria e nem por isso essa definição é quase-circular. A crítica de Quine ao conceito de analiticidade só parece convincente por ser confundida com a constatação da vaguidade da fronteira entre o analítico e o sintético, ou a de que alterações em nossas práticas linguísticas podem tornar frases analíticas dispensáveis, relativizando-as por isso. Mas essas constatações já foram feitas, por exemplo, por Wittgenstein.

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de uma recomendação metodológica, uma prescrição, uma proposta.1 A.J. Ayer

defendeu essa idéia desafiando os seus ouvintes a apresentarem uma opção mais

convincente... Todavia, um ouvinte de outra convicção poderia responder que

simplesmente não sente a necessidade de aceitar nem optar por coisa alguma...

Na verdade, a resposta de Ayer não parece apenas ad hoc. Ela vai contra a

sugestão wittgensteiniana de que aquilo que estamos fazendo é tão somente

investigar as intuições subjacentes à nossa linguagem natural em busca de

princípios da gramática conceitual nela embutidos. Por isso, impor à nossa

linguagem uma regra metodológica que lhe seja alheia seria arbitrário e mesmo

confusivo como meio de esclarecer o significado.

Diversamente disso, minha sugestão é manter o insight original de

Wittgenstein de que tal princípio deveria exprimir nosso entendimento do que é

efetivamente caucionado pela linguagem cotidiana, de modo a formar uma frase

gramatical expressiva de uma condição que precisa ser satisfeita pela totalidade

de nossa linguagem factual. Ora, uma vez que admitimos que o princípio faz

explícitas intuições lingüísticas pré-existentes, tornamo-nos autorizados a pensar

que ele é analítico, ou seja, que ele consiste na afirmação de uma sinonimidade

entre as expressões ‘significado (representacional) de uma frase’ e ‘modo como

o seu valor-verdade é estabelecido’. Assim, tomando p como uma frase

assertórica qualquer, podemos definir o significado cognitivo de p através da

seguinte proposição analítico-conceitual:

(Df.) Significado epistêmico de p = regra de verificação para p.

Contra isso se poderia insistir em objetar que sendo analítico, o princípio de

verificabilidade deveria ser não-informativo, devendo a sua negação ser

1 Essa posição foi aceita ou defendida por Rudolf Carnap, Hans Reichembach e A.J. Ayer (ver C.J. Misak: Verificationism, pp. 79-80).

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incoerente, o que não parece ser o caso. Em busca de uma resposta gostaria de

primeiro remontar a uma sugestão que pode ser encontrada em John Locke. Esse

filósofo distinguiu entre conhecimento sensitivo (sintético ou empírico) e

relações de idéias (verdades analíticas); as últimas, por sua vez, foram

distinguidas como provendo conhecimento intuitivo ou demonstrativo.1 As

frases “Vermelho não é verde” e “Três é maior que dois” exprimem para ele

relações de idéias intuitivas, pois são auto-evidentes e a sua negação claramente

contraditória. Mas nem todas as frases analíticas são intuitivas. A frase “A soma

dos três ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos” exprime

conhecimento demonstrativo, mas apesar disso exprime para Locke uma relação

de idéias – uma frase analítica. Para quem pensa que a geometria não é analítica,

podemos escolher exemplos fórmulas matemáticas complexas ou tautologias

complexas como exemplos. Considere o seguinte enunciado “Se não é o caso

que uma figura é ambas, quadrada e redonda, então ela ou não é quadrada ou

não é redonda”. Esse enunciado pode não parecer analítico para pessoas não

familiarizadas com lógica, mas ele tem a estrutura lógica da frase “~(A & B) →

~(A v B)”, cujo caráter tautológico é facilmente demonstrável.

O conhecimento demonstrativo é o que pode ser fundado em demonstrações

cujas premissas são constituidas por conhecimento intuitivo, nomeadamente, por

verdades analíticas intuitivas. Por isso ele não pode ser realmente informativo,

ainda que aparente sê-lo. A questão é: por que o próprio princípio da

verificabilidade não poderia ser ele próprio expresso por uma frase analítica

demonstrativa?

Contra essa sugestão, a objeção mais imediata é a de que o princípio da

verificabilidade não pode ser demonstrativo no mesmo sentido de um teorema

da geometria ou de uma demonstração em lógica. Afinal, em casos como os

teoremas da geometria e das demonstrações lógicas, é fácil repercorrer os

1 John Locke: An Essay Concerning Human Understanding, livro IV, cap. II, § 7.76

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caminhos já pré-determinados que conduziram à sua demonstração. Mas não

parece haver um caminho já percorrido para se demonstrar o princípio da

verificabilidade.

Acredito que a chave para uma resposta seja encontrada quando

comparamos o princípio da verificabilidade com enunciados que, tal como ele,

não parecem à primeira vista demonstráveis, mas através de análise se revelam

verdades demonstrativas encobertas. Um caso simples, que já vimos, é o de

sentenças complexas da linguagem ordinária cuja forma é tautológica. Mas há

exemplos mais sorrateiros, como o do seguinte enunciado:

Uma mesma superfície não pode ser vermelha e verde (ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto).

Esse enunciado não é analiticamente intuitivo. Na verdade ele já foi visto e até

hoje é visto como um exemplo standard do que poderia ser um juízo sintético a

priori.1 Mas se considerarmos que é intuitivamente (analiticamente) verdadeiro

que (i) cores podem ocupar superfícies, que (ii) duas cores diferentes não podem

ocupar a mesma superfície e que (iii) vermelho e verde são cores diferentes,

parece daí se deduzir o caráter analítico do enunciado “Uma mesma superfície

não pode ser vermelha e verde”. Eis como esse argumento pode ser melhor

organizado:

1 Duas coisas diferentes não podem ocupar um mesmo lugar ao mesmo tempo.

2 Uma superfície delimita um lugar.3 (1,2) Duas coisas diferentes não podem ocupar uma mesma

superfície ao mesmo tempo.4 Cores são coisas que ocupam superfícies.5 (3,4) Duas cores diferentes não podem ocupar a mesma

superfície ao mesmo tempo.

1 Ver, por exemplo, Laurence Bonjour: In Defense of Pure Reason, p. 100 ss.77

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6 Vermelho e verde são cores diferentes.7 (5,6) O vermelho e o verde não podem ocupar a mesma

superfície ao mesmo tempo.

A mim, pelo menos, as premissas 1, 2, 4 e 6 são (em contextos adequados)

intuitivamente analíticas. Por conseguinte, a conclusão também deve ser

analítica, ainda que não pareça.

A sugestão que quero fazer é a de que também o princípio da verificabilidade

seja uma verdade analítica demonstrativa encoberta, podendo ter o seu caráter

auto-evidente esclarecido através de elucidação de seus pressupostos. Eis uma

maneira como isso poderia ser feito:

1. Sentidos cognitivos são determinados por regras cognitivas (ou seja: são constituidos por regras cognitivas ou por suas combinações).

2. Enunciados têm sentidos cognitivos (descritivos, factuais, representacionais).

3. (1,2) Os sentidos cognitivos dos enunciados dependem de regras cognitivas.

4. As regras determinadoras do sentido epistêmico são regras criteriais (baseadas em critérios).

5. (3,4) O sentido epistêmico do enunciado depende de suas regras cognitivo-criteriais.

6. O sentido epistêmico de um enunciado depende dos modos de determinação de sua verdade.

7. A verdade do enunciado só pode ser determinada pela satisfação de suas regras cognitivo-criteriais.

8. (5,6,7) O sentido epistêmico do enunciado depende de regras criteriais que são modos de evidenciação de sua verdade.

9. As regras cognitivo-criteriais determinadoras da verdade do enunciado são em conjunto chamadas de sua regra de verificação.

10.(7,8) O sentido epistêmico do enunciado é dado por sua regra de verificação.

Para mim, ao menos, as premissas 1, 2, 4, 6 7 e 9 (que é definicional) soam

mais claramente analíticas do que 10. Com efeito, elas são realmente analíticas

78

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se pensarmos que os sentidos devem ser obviamente regras ou combinações de

regras, se considerarmos que enunciados têm obviamente sentidos

informacionais dependentes de critérios, sendo as suas regras de significação

regras cognitivo-criteriais, as quais não podem ser outras que não as regras

determinadoras do valor-verdade desses enunciados... Muitos filósofos da

linguagem discordarão. Mas filósofos são conhecidos pelo caráter

profissionalmente deturpado de suas intuições lingüísticas. Assim, como não

posso mais me estender nesse argumento, prefiro refugiar-me na escusa de um

personagem de Borges dizendo: “São as vossas impurezas que vos proibem de

reconhecer o esplendor da verdade”.

13. A objeção do holismo verificacional

Uma objeção sofisticada é a proveniente da generalização da tese de Duheim

feita por W.V-O. Quine. Segundo Quine, “nossos enunciados sobre o mundo

externo não fazem frente à experiência sensível individualmente, mas em um

corpo corporativo”.1 A implicação anti-verificacionista disso é clara: como o que

é verificado é todo um sistema de enunciados, e nunca um enunciado

isoladamente considerado, não faz sentido pensar que o enunciado tem uma

regra de verificação distintiva ou intrínseca, que possa ser identificada com o

seu significado.

Em meu juízo, se tomada de maneira suficientemente abstrata, a idéia de que

nenhum enunciado se verifica independentemente de outros enunciados do

sistema é correta. Ela constitui o que poderíamos chamar de um holismo formal

ou estrutural. Mas a conclusão insinuada por Quine, de que isso destrói o

verificacionismo – devido ao que poderíamos chamar de um holismo

verificacional – nada tem de segura, uma vez que nesse último caso

1 W.V-O. Quine: “Two Dogmas of the Empiricism”, p. 41.79

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precisaremos levar em conta a variedade de formas de interdependência vigente

entre os enunciados que formam o sistema.

Vejamos a questão mais de perto. A tese do holismo verificacional é retirada

do fato bem conhecido pelos filósofos da ciência, de que enunciados

observacionais sempre dependem da verdade de assunções ou hipóteses

auxiliares para poderem ser verdadeiros. In abstracto isso é correto; afinal,

nossas crenças são interdependentes. Mas se desse holismo formal ou abstrato se

segue um holismo verificacional em um nível mais concreto é outra questão. Em

meu juízo, a tese de Quine é equívoca porque embora no final das contas o

sistema de enunciados realmente deva se confrontar como um todo com a

realidade, os seus enunciados não se confrontam nem conjuntivamente nem

simultaneamente com a realidade.

Nosso exemplo da descoberta dos satélites de Netuno por Galileu pode aqui

ser mais uma vez útil. Como dissemos, Galileu descobriu a verdade do

enunciado: (a) “Júpiter tem luas” pela observação telescópica. Seus

contemporâneos, porém, desconfiavam dos resultados da observação

telescópica. O aparelho poderia estar enfeitiçado etc. Mas filósofos da ciência

hoje notam que eles não estavam de todo destituídos de razão. Pois uma

assunção auxiliar para a aceitação da verdade do enunciado “Júpiter tem luas” é

que o telescópio seja um instrumento confiável. Ao aperfeiçoar o telescópio

Galileu certamente conhecia a lei da ampliação do telescópio, segundo a qual o

seu poder de ampliação resulta do seu comprimento focal dividido pela distância

focal da ocular. Mas para que essa assunção auxiliar fosse garantida, faltava

ainda no tempo em que Galileu construiu o seu telescópio, a comprovação de

outras assunções auxiliares, como as que constituem as leis da óptica.1

Considere, por exemplo, a fundamental lei da refração, segundo a qual sen i /

sen r = n2/n1. Essa lei só foi estabelecida por Snell, em 1626, enquanto as

1 Merrilee Salmon: Introduction to Logic and Critical Thinking, p. 276. 80

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observações telescópicas de Galileu foram feitas em 1610. Ignorando as muitas

outras hipóteses auxiliares assumidas, a verificação feita por Galileu de que o

planeta Júpiter tem luas pode ser apresentada como resultado do seguinte

argumento indutivo:

1. Observação telescópica de quatro astros orbitando Júpiter.2. (Lei da ampliação do telescópio)3. ((sen i / sen r = n2/n1)) . 4. Conclusão: O planeta Júpiter tem luas.

Embora a premissa 3 tenha faltado para Galileu, ela reforça secundariamente

o argumento. A falta da premissa 2 enfraqueceria bem mais o argumento. Da

consideração da inclusão dessas e de outras premissas constitutivas de hipóteses

auxiliares comprovadas, o holista verificacional conclui que 4 não possui uma

regra de verificação independente, constitutiva de seu sentido.

Mas há problemas com esse raciocínio! Primeiro, precisamos notar que esses

enunciados não são simultaneamente verificados. O enunciado 4 foi verificado

como conseqüência direta da verificação do enunciado perceptual 1, que se

realizou pela observação diárias que Galileu fez das variações das posições dos

quatro astros alinhados ao redor de Júpiter... Contudo, isso não se deu

simultaneamente à verificação dos enunciados 2 e 3. Na verdade, a inferência da

conclusão 4 com base em 1 em boa medida pressupõe uma anterior verificação

da premissa 2, que por sua vez em alguma medida pressupõe a verificação da

premissa 3 (o que é indicado pelos parênteses). Ora, por serem anteriores e

pressupostas, torna-se claro que as verificações de 2 e 3 são independentes da

verificação de 4 por 1.

Generalizando: se chamamos o enunciado a ser verificado de P, o enunciado

observacional de O, e as hipóteses auxiliares de A, a estrutura de raciocíno

própria do procedimento verificacional não é

81

Page 82: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

O

A1 + A2... + An

Logo P

Mas sim:

O

(assumindo a prévia verificação de A1 + A2... + An)

Logo P

Essa pressuposição de uma verificação prévia das hipóteses auxiliares é o

que em meu juízo faz toda a diferença, pois permite-nos separar a regra de

verificação de P, que o associa P diretamente às observações associadas a O, das

regras de verificação das verificação das hipóteses auxiliares, que são assumidas

como já tendo sido aplicadas.

Além disso, podemos claramente distinguir o que verifica cada hipótese

auxiliar. Por exemplo: a lei da ampliação do telescópio pode ser verificada

através de simples medições empíricas; e a lei da refração foi estabelecida com

base em medições empíricas da relação entre variações do ângulo de incidência

da luz e a densidade dos meios. Assim, embora seja verdade que em um nível

formal e abstrato a verificação de um enunciado dependa da verificação de

outros, no nível dos procedimentos cognitivos concretos a verificação dos

enunciados auxiliares já vem pressuposta, o que nos permite isolar os

procedimentos verificacioinais inerentes ao próprio enunciado em questão e

identificá-los com aquilo que estamos querendo dizer com ele. Ou seja: o que

nos permite distinguir modos de verificação específicos é que os diferentes

enunciados auxiliares devem ser verificados anteriormente ao procedimento 82

Page 83: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

verificacional que conduz à conclusão, servindo de pressupostos para a

inferência. Isso nos permite distinguir e individuar o procedimento através do

qual cada enunciado é cognitivamente verificado, o modo (regra) de verificação

de cada enunciado, o que torna o holismo inofensivo como crítica ao

verificacionismo semântico. Por abstrair esse ponto, o argumento de Quine

produz a impressão equívoca de que toda verificação é holística e que o

significado do enunciado não pode ser identificado com a sua regra de

verificação.

Finalmente, cumpre notar que como cada enunciado tem um sentido que lhe

é próprio, torna-se outra vez razoável identificar o sentido do enunciado com o

seu modo de verificação, posto que ambos são individuados pelo enunciado e

não pelo sistema de enunciados. A conclusão inescapável é que o holismo

verificacional não se sustenta, pois a simples admissão do holismo formal, i.e.,

do fato dos enunciados estarem sempre em alguma medida inferencialmente

enovelados uns nos outros, não é suficiente para nos fazer concluir que as suas

regras verificacionais não possam ser distinguidas umas das outras de modo a

serem identificadas com os significados representacionais de seus respectivos

enunciados.

O que esse argumento sugere é que Quine estende indebitamente um holismo

formal perfeitamente justificado às regras de verificação, quando na verdade ele

forma, com elas, o pano de fundo sobre o qual elas se ressaltam. Isso produz a

ilusão de que os enunciados não tenham significados próprios, de que o

significado-verificação seja como uma nuvem dispersa pelo sistema de

enunciados. Contudo, um exame concreto dos procedimentos verificacionais tal

como eles concretamente ocorrem nos mostra que as regras de verificação são

distinguíveis umas das outras na mesma medida dos significados dos enunciados

correspondentes, o que mais uma vez sugere a correlação entre o significado

epistêmico do enunciado e a sua regra de verificação.83

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14. O problema da assimetria existencial-universal

Outra objeção é a de que o princípio da verificabilidade só se aplica

conclusivamente a frases existenciais, mas não a frases universais. Para

verificarmos uma frase existencial como “Algumas peças de cobre se expandem

ao serem aquecidas”, basta identificarmos uma peça de cobre que se expande ao

ser aquecida; mas para verificarmos conclusivamente uma frase universal como

“Todas as peças de cobre se expandem ao serem aquecidas”, precisaríamos

vasculhar o universo inteiro, inclusive em seu futuro e em seu passado, o que é

impossível. É verdade que a universalidade absoluta é uma ficção e que, quando

falamos em frases universais, estamos sempre tendo em vista certo universo de

discurso. Mas apesar disso o problema permanece. Pois como o próprio caso da

expansão de metais exemplifica, o universo de discurso costuma ser muito mais

amplo do que tudo o que podemos efetivamente experienciar, impossibilitando

uma verificação conclusiva. Assim sendo e também pelo fato de que as leis

científicas costumam ter a forma de enunciados universais, ocorreu a alguns se

perguntar se não seria melhor admitirmos o sentido epistêmico das frases

universais, como sendo constituído por regras de falsificação, ao invés de regras

de verificação; seria essa a resposta correta?1

Penso que não. O problema é que, como já foi notado, não me parece que

exista uma regra de falsificação do enunciado, assim como certamente não

existe uma força desassertórica, nem uma regra de desidentificação do nome e

uma regra de desaplicação do predicado. Podemos, por exemplo, falsificar o

enunciado “Todos os corvos são pretos” com a verificação da frase “Esse corvo

é albino”. A regra de verificação desse último enunciado é tal que, se aplicada,

falsifica o enunciado “Todos os corvos são pretos”. Mas se o significado do

1 Ver C.G. Hempel: “Problems and Changes in the Empiricist Criterion of Meaning”, Revenue Internationale de Philosophie 11, 1950, 41-63.

84

Page 85: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

enunciado universal fosse uma regra capaz de falsificá-lo, e a regra de

verificação do enunciado “Esse corvo é albino” é, quando aplicado, o que

falsifica o enunciado “Todos os corvos são pretos”, então parece que devemos

admitir que esse último enunciado significa o mesmo que “Esse corvo é albino”.

Mas isso é absurdo: a regra de verificação para corvos albinos não tem nada a

ver com o significado da afirmação de que todos os corvos são pretos.

Em que sentido então podemos falar de uma regra de falsificação? Para

chegarmos a uma resposta devemos nos lembrar que a regra de verificação é o

significado epistêmico da frase enunciativa, aquilo que Frege chamava de o

pensamento por ele expresso, o seu conteúdo proposicional. Ora, como a

verdade costuma ser admitida como sendo uma propriedade do pensamento ou

conteúdo proposicional, parece que a verdade também deve ser propriedade da

própria regra de verificação. Como a regra de verificação verdadeira é a que é

aplicável, e a regra de verificação falsa é a que é inaplicável, parece que a

verdade é ou tem a ver com a propriedade de uma regra de verificação de ser

aplicável, enquanto a falsidade deve ser ou ter a ver com a ausência dessa

propriedade. Se esse raciocínio estiver certo, torna-se vazia a questão de se saber

se o que está em causa é uma regra de verificação ou de falsificação: todas as

regras em questão são realmente de verificação, dado que a falsificação não é

mais do que uma ausência da propriedade da regra de verificação de se ter

demonstrado aplicável ou ter a ver com essa demonstração. Eis porque também

não existe regra de desidentificação para o termo singular, nem regra de

desaplicação para o termo geral: a desidentifacação e a desaplicação nada mais

são do que a respectiva ausência de aplicação das respectivas regras. Se formos

coerentes com as assunções feitas até agora, parece que devemos concluir que o

princípio da verificabilidade é aquele pelo qual tornamos verdadeira a própria

regra de verificação constitutiva do sentido epistêmico da frase enunciativa, e

que essa verificação consiste na demonstração de sua efetiva aplicabilidade aos 85

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fatos. Mas quando falamos de uma regra de falsificação de um enunciado, tudo

o que podemos ter em mente é uma regra de verificação de outro enunciado,

cuja aplicação falseia o primeiro, de modo que, seja o que for que fizermos,

acabaremos sempre terminando com uma regra de verificação.

Essa espécie de argumento leva-nos a admitir que o significado do

enunciado universal deve ser a sua regra de verificação. Mas nesse caso parece

inevitável o retorno do problema da inconclusividade da verificação desses

enunciados. Não é necessário, porém, que seja assim. Minha sugestão é a de que

a objeção da inconclusividade é falsa, emergindo do fato de que nos enganamos

quanto ao reconhecimento da forma lógica dos enunciados universais. Basta um

breve exame para mostrar que eles são simultaneamente probabilistas e

conclusivos. Considere outra vez a frase:

O cobre se expande ao ser aquecido.

A sua forma não é:

Afirmo que é absolutamente certo que todas as peças de cobre se expandem

ao serem aquecidas,

onde o ‘absolutamente certo’ significa ‘sem possibilidade de erro’. Essa forma

seria apropriada para verdades formais como

Afirmo que é absolutamente certo que 2 + 3 = 5,

pois aqui não pode haver erro (exceto erro procedimental, o que está fora de

consideração). Mas essa forma não é apropriada a verdades empíricas sobre as

quais não vige a certeza resultante das próprias convenções conceituais 86

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adotadas. A forma lógica da frase em questão é outra. Ela é a da certeza prática

expressa por

Afirmo que é praticamente certo que toda peça de cobre se expande ao ser aquecida,

onde ‘praticamente certo’ significa ‘com uma probabilidade suficientemente

elevada para que a possibilidade de erro possa ser negligenciada’. Se aceitarmos

essa paráfrase, uma frase como “O cobre se expande ao ser aquecido” se torna

conclusivamente verificável, pois podemos claramente encontrar evidências

indutivas protegidas por razões teóricas que tornem de modo conclusivo

praticamente certo que todas as peças de cobre se expandem ao serem

aquecidas. Em suma: a forma lógica de um enunciado universal não é “├todo S

é P” (usando o sinal fregeano de asserção), mas:

├é praticamente certo que todo S é P,

e enunciados dessa forma são conclusivamente verificáveis. Conseqüentemente,

o significado da frase universal também pode ser a sua regra de verificação.

15. A objeção da indireticidade

Outra objeção comum é a de que a regra de verificação de frases com conteúdo

empírico exige tomarmos como ponto de partida observações diretas e

intersubjetivamente possíveis dos fatos. Contudo, muitos enunciados não

dependem da observação direta para serem verdadeiros, como é o caso de “A

massa do elétron é de 9,109 vezes 10 Kgs elevado à trigésima primeira potência

negativa”. Isso nos força a admitir que muitas regras de verificação são

indiretas. Como notou W.G. Lycan1, se não fizermos isso seremos conduzidos a 1 W.G. Lycan: Philosophy of Language: A Contemporary Introduction, pp. 121-122.

87

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um instrumentalismo grotesco, no qual aquilo que é real deve ser reduzido ao

que é intersubjetivamente observado, não existindo mais coisas como eléctrons e

suas massas... Mas se fizermos isso, como decidir quais são as observações

diretas e quais as indiretas? Não se trata de uma dessas distinções

desesperadamente confusas?

Outra vez, os problemas só emergem se embarcarmos na estreita canoa

formalista do positivismo lógico e sairmos por aí atropelando a linguagem com

exigências inadequadas. Nossas frases assertóricas são proferidas em práticas

lingüísticas, em jogos de linguagem. Por conseguinte, o critério para se

distinguir a observação direta da observação indireta deve ser sempre relativo a

uma prática lingüística que estamos tomando como modelo. Podemos ser

confundidos pelo fato de que nas (i) práticas observacionais cotidianas a

verificação direta costuma ser considerada aquela resultante da observação

virtualmente interpessoal de objetos sólidos opacos e de tamanho médio,

suficientemente próximos, sob iluminação adequada, por observadores em

condições normais e com os sentidos desarmados... Por ser a forma mais usual

de observação, ela tende a ser vista como um modelo default para a observação

direta, a ser contrastado com, digamos, a observação indireta através de

sintomas perceptualmente acessíveis, através de instrumentos óticos, através de

espelhos etc. Mas é um erro tentar generalizar esse contraste para outras práticas

linguísticas.

Para esclarecer esse ponto, quero considerar primeiro (ii) a prática linguística

do bacteriologista. Nessa prática o que está em causa é a descrição de bactérias

vistas ao microscópio. Nela, ver bactérias ao microscópio é o modelo da

observação e verificação. Mas o bacteriologista pode dizer que verificou

indiretamente a presença de um vírus devido a alterações que ele constatou nas

células que ele viu ao microscópio, usando como modelo de observação direta a

observação microscópica. Ninguém dirá que as verificações do bacteriologista 88

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são todas indiretas, a não ser que tenha em mente a forma standard de

observação, o que não seria usual. Mas até isso é possível, contanto que o

modelo usado fique claro.

Se a prática for (iii) a de um trabalho paleontológico, então a descoberta de

restos fósseis será uma maneira direta de se verificar a existência desses seres

em um passado remoto, posto que a observação ao vivo é descartada. Por

comparação e contraste com esse modelo, o paleontólogo pode falar de

verificações indiretas. Assim, se ele sugere terem vivido hominídeos em certo

local apenas por ter encontrados lesões provocadas por instrumentos em ossadas

fósseis de animais, essa constatação poderá ser considerada resultante de uma

verificação indireta na prática paleontológica, em contraste com o encontro de

restos fossilizados de hominídeos. Claro que também na prática da

paleontologia, qualquer das verificações pode ser dita indireta se comparada

com as verificações que cotidianamente fazemos de objetos opacos de tamanho

médio próximos a nós (modelo da prática (i)). Mas isso só será problemático se

não for claro o modelo usado.

Se a prática lingüística for (iv) a de descrever sentimentos, a verificação de

uma frase pelo próprio falante será dita direta, ainda que subjetiva, enquanto que

a determinação da verdade por outros, com base no comportamento, será

geralmente dita indireta (ao menos por não-behavioristas). Não há aqui, aliás,

uma maneira fácil de comparar com a prática de observação de objetos físicos

de tamanho médio para considerar se a verificação é direta, pois elas pertencem

a domínios verificacionais muito diversos.

A conclusão me parece ser a de que não há dificuldade real em se distinguir

entre verificações diretas e indiretas, se tivermos clareza sobre a prática

lingüística com relação a qual essa verificação está sendo considerada. Basta que

os falantes compartilhem entre si os pressupostos da prática lingüística em

relação a qual o proferimento é avaliado e estarem cientes do modelo de 89

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comparação empregado para se tornarem capazes de alcançar acordo sobre se a

verificação é direta ou indireta.

16. Contra-exemplos empíricos

Outra espécie de objeção diz respeito a enunciados que possuem sentido, mas

que não parecem possuir regra de verificação. Em minha opinião, esse tipo de

objeção demanda consideração caso a caso.

Considere, para começar, o enunciado “João era corajoso”, em uma

circunstância na qual João morreu sem ter tido nenhuma oportunidade de se

demonstrar corajoso. Se adicionarmos ao exemplo a assunção de que o único

meio de verificar se João era corajoso seja pela observação de seu

comportamento, esse enunciado se torna logicamente inverificável. Sendo

assim, segundo o princípio da verificação esse enunciado não tem significado.

Contudo, ele parece ser perfeitamente significativo!

A resposta é que o enunciado “João era corajoso” nas circunstâncias

consideradas apenas aparenta ter significado. Ele pertence ao conjunto dos

enunciados que apenas aparentam ter significado. No caso, trata-se de uma frase

que possui um sentido gramatical, dado pela combinação do nome próprio não

vazio com um predicado. Mas não há critério para aplicarmos ou não o

predicado. Assim, o enunciado não tem função na linguagem e nada é capaz de

dizer. Ele faz parte do conjunto de enunciados tais como “O universo duplicou

de tamanho durante essa noite” e “O mundo inteiro surgiu cinco minutos atrás”.

Esses enunciados apenas aparentam ter algum sentido epistêmico, pois possuem

sentido gramatical e são capazes de sugerir imagens e produzir ilações em

nossas mentes. Mas a rigor eles nada dizem.

Wittgenstein considerou um caso paralelo em Sobre a Certeza. Considere a

constatação “Você está diante de mim agora”, dita em circunstâncias normais

por uma pessoa que se encontra diante de outra. Ele sugeriu que tal frase apenas 90

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aparenta ter sentido, dado que somos capazes de imaginar situações nas quais

ela teria algum uso, alguma função na linguagem, por exemplo, numa situação

em que estivesse tão escuro que fosse difícil ao interlocutor identificar o

falante.1 Aplicando isso ao caso de João, somos facilmente capazes de imaginar

situações contrafactuais na quais ele teria ou não teria demonstrado coragem, ou

de pensar nisso como uma possibilidade. Nas circunstâncias supostas, porém o

enunciado não possui o menor sentido.

É preciso observar que mesmo frases contextualmente independentes, como

“Leo ama Lia”, que encontro por acaso escrita em uma tira de papel em um local

que desconheço é, no sentido que estamos considerando, em si mesma e para

mim, destituída de significado. Ela tem significado gramatical: sei que ela

contém dois nomes próprios sintaticamente associados etc. Mas não sei de que

Leo e Lia ela trata. Não conheço nada das regras de indentificação para esses

nomes, não tendo como formar uma regra de verificação para o enunciado. A

frase não possui um sentido ou conteúdo representacional resgatável.

O que dizer de enunciados sobre o passado ou sobre o futuro? Aqui também

é necessário um exame caso a caso. Digamos que alguém afirme: “O Homem de

Java viveu há cerca de 1,8 milhões de anos”. Esse enunciado foi plenamente

verificado pelo crânio encontrado e por um seguro procedimento de datação. A

verificação observacional direta de acontecimentos passados é fisicamente e

praticamente impossível, mas ela não é parte da regra de verificação cuja

aplicação nos garante a verdade do enunciado em questão, nem sequer do que

queremos dizer com a frase.

Muito diferente é o caso de frases sobre o passado como “Sobre essa pedra

sentou-se um velho barbudo há exatamente dez mil anos” ou “Napoleão espirrou

mais de 30 vezes enquanto esteve na Rússia”, ditas em situações nas quais não

há nenhum meio prático de se verificar. Nesses casos a verificabilidade é, como

1 Ver Wittgenstein: Über Gewissheit, sec. 10. 91

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se diz, apenas lógica; tal verificação não é praticamente realizável e

provavelmente não é sequer fisicamente realizável. Mas é difícil admitir que

enunciados empíricos, cuja verificabilidade é apenas lógica, sejam verificáveis

no sentido forte do termo, e que, por conseqüência, possam ter algum sentido

epistêmico. Para mim a distinção entre verificabilidade lógica e empírica (física,

prática) é uma distinção entre níveis de verificabilidade, correspondente a dois

níveis de significação, o último pressupondo o primeiro. Se a verificabilidade

for apenas lógica, o enunciado empírico não possui um sentido relevante, pois

não sabemos o que fazer com ele. Ele não é capaz de cumprir com a sua função

própria, que é a de representar um atual ou possível estado de coisas.

Algo semelhante pode ser dito de enunciados sobre o futuro, com a diferença

de que a verificação direta é fisicamente possível. O proferimento “Daqui a 7

dias irá chover” é indiretamente verificável pela metereologia, mas será

diretamente verificável em uma semana. O enunciado “Daqui a cerca de onze

bilhões de anos o sol irá se expandir e engolirá Mercúrio” é uma frase que

podemos ao menos indiretamente verificar com base no que sabemos do destino

de estrelas como o sol. Já para uma frase como “O primeiro bebê a nascer em

Montes Claros em 2040 será do sexo feminino” temos uma regra de verificação

que só poderá ser aplicada no futuro e de forma direta, o que nem por isso a

invalida enquanto tal. Esses enunciados são não só logicamente, mas também

fisicamente e em certa medida praticamente verificáveis; o primeiro

indiretamente, o segundo diretamente, mas em um tempo futuro. Vemos que não

há uma fórmula geral e única para o procedimento verificacional. Parece que a

espécie de regra de verificação exigida varia com o enunciado, de acordo com a

sua inserção na prática lingüística no qual ele é realizado, sendo geralmente a

confusão entre casos pertencentes a práticas diversas aquilo que pode levar-nos

a crer que existem enunciados que possuem sentido epistêmico e que apesar

disso são inverificáveis.92

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17. Contra-exemplos formais

Pode-se também considerar a aplicação da tese verificacionista a enunciados

formais, como notamos ao considerar a relação entre verificação e

correspondência. Nesse caso a regra verificacional é o procedimento de prova,

que quando instituído verifica o enunciado, acrescentando-lhe sentido

epistêmico dentro do sistema formal no qual é considerado. Nesse caso, como já

notamos, dispor da regra de verificação já é o mesmo que aplicá-la, dado que os

critérios a serem satisfeitos são os próprios axiomas do sistema.

Um muito falado contra-exemplo ao verificacionismo aplicado a enunciados

formais é a conjectura de Goldbach. Essa conjectura pode ser enunciada como

g = Todo número inteiro par acima de dois resulta da soma de dois números primos.

A objeção é a de que essa conjectura é plena de significado epistêmico, embora

nunca se tenha conseguido prová-la, embora o procedimento verificacional

formal para g não tenha sido ainda encontrado. Logo, o seu significado não pode

ser uma regra de verificação!

A resposta a esse argumento é simples e advém da observação de que a

conjectura de Goldbach é apenas uma conjectura. Ora, o que é uma conjectura?

Não é uma afirmação, um teorema provado, mas o reconhecimento da

plausibilidade de algo. A conjectura de Goldbach tem a forma

É plausível que g.

Mas “É plausível que g”, melhor dizendo,

93

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[Afirmo que] suponho que g,

ou ainda (usando o sinal fregeano da asserção) “├é plausível que g”, é algo

diferente de

Afirmo que g

ou “├g”. Ora, a regra de verificação do reconhecimento da plausibilidade é

muito diferente da regra de verificação da afirmação. Se nosso caso fosse o de

“Afirmo que g”, a saber, uma afirmação ou tese ou teorema Goldbach, a regra

de verificação seria realmente o procedimento de prova do teorema. Mas nosso

caso é

[Afirmo que] é plausível que g,1

no qual a regra de verificação consiste tão somente em um procedimento

verificacional que apenas sugere que g possa ser provada. Ora, esse

procedimento verificacional, essa regra, de fato existe. Ela consiste

simplesmente em considerar exemplos de números pares aleatoriamente dados e

verificar se eles podem resultar na soma de dois números primos. E essa regra

verificacional não só existe como tem sido aplicada até hoje sem exceção a

todos os números inteiros pares considerados, o que fornece grande parte da

base que temos para formular a conjectura de Goldbach. Se uma exceção tivesse

sido encontrada a conjectura teria sido provada falsa, pois “├~g” é incompatível

com1 Pode-se objetar aqui que g é apesar de tudo perfeitamente compreensível. Mas podemos replicar que g é na verdade compreensível apenas em termos gramaticais. Em termos semânticos, porém, compreender completamente o significado de g é compreender o que chamei de o seu significado epistêmico, aquilo que Frege chamou de valor de conhecimento (Erkenntniswert), que no caso é ser capaz de demonstrar a verdade de g.

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[Afirmo que] é plausível que g.

Assim, a conjectura é verificável e tem sido verificada. O que não é

verificável nem foi verificado é a afirmação de g, que não faz realmente sentido,

posto que ainda não dispomos de um procedimento matemático que a verifique.

O erro consiste na confusão de uma suposição com uma afirmação, de uma

conjectura com um teorema.1

Note-se que a conjectura de Goldbach tanto pode ser demonstrada verdadeira

como também falsa. Ela será verdadeira se for encontrada uma demonstração a

partir de verdades intuitivas que para nós funcionam como axiomas do cálculo.

Ela será falseada, demonstrada como sendo não-verificável, se for encontrado

um único contra-exemplo. A conjectura será falseada pela não-aplicação da

regra que nos manda buscar a soma de dois números primos de modo a resultar

no número par em questão.

Um caso contrastante é o do último teorema de Fermat, que chamarei de f.

Segundo esse teorema

f = não existem três números positivos x, y e z que satisfazem a equação “xⁿ + yⁿ = zⁿ” se n for superior a 2.

Esse teorema já havia sido parcialmente demonstrado até que em 1995

Andrew Wiles conseguiu encontrar uma demonstração completa. Alguém

poderia aqui objetar que mesmo antes de sua demonstração f já era chamado de

“o teorema de Fermat” e que portanto fazia sentido como teorema mesmo sem

que tivéssemos uma demonstração...

1 É possível objetar que em “É plausível que g”, g comparece e g precisa afinal ter sentido apesar de inverificável. Mas podemos replicar que o g que aqui comparece tem um sentido apenas gramatical e não, para além disso, um sentido epistêmico.

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Há, porém, um erro nessa objeção. Pois com ela se esquece que ‘o teorema

de Fermat’ é uma denominação fantasiosa. Chamamos f de teorema

equivocamente, apenas devido ao fato de que antes de sua morte Fermat

escreveu que tinha uma prova para ele, mas que não podia colocá-la no papel, já

que a margem de seu caderno era muito estreita para cabê-la. (Hoje sabemos,

aliás, que essa observação de Fermat não pode ter sido verdadeira, simplesmente

porque a matemática da época não lhe provia de meios para demonstrar a sua

conjectura.) Seja como for, a verdade é que f era uma conjectura da forma

[Afirmo que] é plausível que f,

até que Wiles a demonstrou, só depois disso tornando-se realmente um teorema.

Quando dizemos “[Afirmo que] é plausível que f”, o significado completo disso

(que muito poucos realmente conhecem) deve incluir a demostração encontrada

por Wiles, que nada mais é do que a aplicação de uma complexa combinação

verificacional de regras.

Há muito mais a ser dito sobre essas questões, que não são importantes para o

objetivo desse livro. Espero, contudo, que essas poucas considerações sejam

suficientes para convencê-lo de que o princípio da verificabilidade se deixa

plausivelmente reabilitar se for aproximado através de uma metodologia que não

viole a tecitura sutil da linguagem natural.

18. O semântico como abstração do psicológico

Tudo o que até agora consideramos sob a forma de abstrações semânticas pode

ser também enfocado sob um ponto de vista psicológico. Os critérios podem ser

objetivamente dados. Mas como sujeitos representacionals podemos sempre

conceber os elementos criteriais, mesmo na ausência de sua existência concreta.

Podemos seguir regras criteriais instanciando-as cognitivamente, caso em que 96

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temos as cognições, representações, idéias de propriedades, objetos ou estados

de coisas. Podemos ainda entender a intensão com ‘s’ como expressão

semântica da intenção psicológica, enfatizando a direcionalidade do sentido.1 E

nossas cognições, representações, idéias, intenções, podem ser consideradas

como instanciações psicológicas de significados, de regras semântico-criteriais,

de conteúdos semânticos, de intensões com ‘s’.2

Vemos, pois, que o elo intermediário entre palavras e coisas se deixa dizer de

maneiras diferentes, quer sob o modo psicológico, quer sob o modo semântico,

em um entrelaçado de relações. Tentando resumir: sentidos ou significados são

regras de uso; sentidos referenciais são regras de uso cognitivas, que quando

analisadas em termos de suas condições de satisfação podem ser ditas regras

criteriais. Os sentidos referenciais das frases assertóricas são regras de

verificação que se aplicam quando configurações criteriais por elas requeridas

são satisfeitas, ou seja, quando as configurações criteriais concebidas são

satisfeitas, a saber, demonstradas estruturalmente isomórficas a configurações

criteriais efetivamente dadas no mundo, as quais são constituintes do fato (a

condição de verdade) representado pela frase assertórica ou pelo menos são

sintomas que nos permitem inferir esse fato. Quando isso acontece temos a

correspondência do conteúdo representacional com o fato, a saber, a verdade da

cognição. A cognição, a tomada de consciência da aplicabilidade de uma

1 Se nossa perspectiva for correta, então a intenção psicológica é sempre uma instanciação concreta de uma intensão com ‘s’, de um conteúdo, e não algo essencialmente diverso.2 Enquanto teorias como a de Davidson ficam aquém da marca, a teoria griceana do significado passa ao largo dela. O que H.P. Grice elucida ao sugerir que o significado do proferimento de p pelo falante S está no reconhecimento pelo ouvinte de sua intenção de dizer p, não é o significado cognitivo do proferimento, mas tão somente parte do procedimento pelo qual um mesmo significado é comunicado. Ver H.P. Grice: Studies in the Ways of Words, caps. 5, 6, 14 e 18. Na lição 14 de suas Vorlesungen zur Einführung in die Sprachanalytische Philosophie Ernst Tugendhat desmantelou a pretensão de teorias como a de Grice de explicar o significado próprio dos enunciados.

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variedade de relações inferenciais dependentes da existência do fato

representado.1

Nisso tudo é importante mantermos clara a distinção entre o semântico e o

psicológico. O semântico é convencionalmente fundado e nesse sentido

necessário; o psicológico é espaço-temporalmente dado e por isso contingente.

Mas o semântico não existe fora de suas instanciações cognitivas. Ele é

constituído de estruturas de fundo convencional que se instanciam em atos

mentais, apenas que são consideradas em abstração desses estados. Supor que o

semântico possa existir sem o psicológico é hipostasiar a sua natureza.2

1 Observe-se que há outras espécies de regras constitutivas de significado que não são referenciais: podemos ter regras que relacionam pela linguagem dados empíricos a cognições, cognições a outras cognições, e cognições a ações. Mas para a questão da referência, o que mais interessa é a primeira espécie de regra, na medida em que for responsável pelo sentido referencial.2 Há várias maneiras de se incorrer em hipóstases. Uma delas é identificar o sentido com entidades platônicas (Frege); outra (que será criticada em seu devido tempo) é a de identificar o significado lingüístico com substratos essenciais das coisas (Putnam); outra é identificá-lo com unidades mínimas da referência (Russell); e ainda outra é identificar o significado com intenções meramente psicológicas (Grice).

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3. FREGE: PARÁFRASES SEMÂNTICAS

O exemplo mais influente de uma semântica do elo intermediário é a teoria do

sentido proposta por Gottlob Frege em artigos como “Sobre sentido e

referência”1 e “O pensamento”.2 Essa teoria é importante porque, como

nenhuma outra, alia interesse filosófico à economia conceitual e amplitude

explicativa.

Frege explica a referência (Bedeutung) recorrendo a um elo semântico

intermediário abstrato, por ele chamado de sentido (Sinn). O esquema (1) mostra

como ele considera esses dois níveis tendo em vista o caso fundamental da frase

predicativa singular:

1 Gottlob Frege: “Über Sinn und Bedeutung” (1892).2 Gottlob Frege: “Der Gedanke” (1918).

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(1)

termo singular termo geral fraseSentido modo de apresentação modo de apresentação pensamentoReferência objeto conceito > objeto valor-verdade

Para Frege os sentidos dos termos são os seus modos de apresentação e o

sentido da frase é o pensamento por ela expresso. Nesse capítulo quero mostrar

como a semântica fregeana pode ser parafraseada através da semântica de regras

cognitivas esboçada no capítulo anterior, propondo que o sentido do termo

singular deva ser analisado em termos de sua regra de identificação, que o

sentido do termo geral deva ser analisado em termos de sua regra de aplicação e

que o sentido da frase (o pensamento) deva ser analisado em termos de sua regra

de verificação.1 Quero mostrar que essa abordagem permite uma decomposição

analítica epistemologicamente enriquecedora do conceito fregeano de sentido.

Como é bem sabido a semântica fregeana não é isenta de curiosas

excentricidades. A meu ver elas encobrem profundos equívocos. A análise dos

dois níveis semânticos a ser proposta nos sugerirá algumas correções capazes de

expurgá-la de suas estranhezas mais flagrantes, incrementando a sua

consistência.

1. Referência do termo singular

Comecemos com os termos singulares. A referência de um termo singular é,

para Frege, o próprio objeto por ele referido, tomado a palavra objeto no sentido

1 Discordo parcialmente aqui da oposição defendida por Ernst Tugendhat entre teorias objetualistas do significado (Husserl, Frege...) e concepções do significado em termos de regras de uso (Wittgenstein, Grice...). Trata-se em parte, ao menos, de uma simples questão de níveis de análise, úteis para propósitos diversos. Em um primeiro nível de análise (o das teorias objetualistas) o significado é concebido como um objeto abstrato; em um nível de análise ulterior esse objeto é decomposto, por exemplo, na forma de regras cognitivo-criteriais. Por conseguinte em muitos casos, ao menos, as duas concepções podem ser vistas como complementares. (Ver especialmente a crítica de E. Tugendhat a Edmund Husserl em suas Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, lições 9 e ss.)

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ampliado, que inclui objetos materiais, mas não se restringe a eles. A referência

do nome ‘Lua’, por exemplo, é a própria Lua com as suas crateras... Para

designar a referência ele usa a palavra alemã ‘Bedeutung’, cuja tradução literal

para o português é ‘significado’ e para o inglês é ‘meaning’. Os lúcidos

tradutores ingleses preferiram palavras como ‘reference’, ‘denotation’ e

‘nominatum’, que exprimem o que Frege realmente tinha em mente. Outros

termos usados foram ainda ‘semantic value’, ‘semantic role’ e ‘truth-value

potential’, que salientam a contribuição das referências dos componentes da

frase para o valor-verdade da frase como um todo. A tradução mais fiel ao texto

original é a literal, nomeadamente, ‘meaning’ em inglês e ‘significado’ em

português; mas por razões de sistematicidade e clareza, manterei aqui a palavra

‘referência’.1

Há uma discussão entre intérpretes sobre a razão pela qual Frege teria

escolhido a palavra ‘Bedeutung’. Uma delas seria a de que um dos significados

de ‘Bedeutung’ (como também de ‘significado’ e ‘meaning’) é relevância ou

importância, posto que a referência é aquilo que mais importa.2 Com efeito, essa

interpretação parece recomendar-se quando pensamos na estranha identificação

que Frege faz da referência da frase com o seu (sem dúvida importante) valor-

verdade. Contudo, quando pensamos na referência como sendo o objeto referido

por um termo singular, que é como o conceito foi inicialmente introduzido por

ele, uma sugestão alternativa se afirma como muito mais plausível. Podemos

introduzi-la a partir da consideração de que em várias línguas européias – tomo

aqui como exemplos o alemão, o inglês, o francês e o português – podemos

encontrar dois grupos diferentes de palavras, cada grupo evidenciando um

comportamento semântico algo diverso. Ei-los:

1 Sobre a espinhosa questão de como traduzir ‘Bedeutung’, ver M. Beaney (ed.): The Frege Reader, introdução, p. 36 ss.2 Ernst Tugendhat: “Die Bedeutung des Ausdrucks ‘Bedeutung’ bei Frege”, p. 231.

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A .............x................B

Sinn Bedeutung sense meaning sens signification sentido significado

Normalmente as palavras dos grupos A e B significam a mesma coisa: elas

expressam o que poderíamos chamar de seu uso semântico intralingüístico, que

é simplesmente o de apontar para aquilo que queremos dizer com as expressões

por elas reportadas, ou seja, para os seus sentidos. Assim, na frase portuguesa

“A palavra ‘cadeira’ significa banco com encosto”, a palavra ‘significado’ pode

ser substituída por ‘tem o sentido de’, pois ambas as palavras são aqui usadas

como sinônimos que apontam para o uso semântico intralingüístico.

Contudo, para além desse uso intralingüístico as palavras do grupo B podem

ter um significado adicional que as palavras do grupo A não comportam. Elas

podem ser usadas no que poderíamos chamar de um uso referencial

extralingüístico. Isso acontece quando elas se modificam na forma de verbos

como ‘deuten’ em alemão e ‘mean’ em inglês, que querem dizer mostrar. Em

alemão o termo ‘bedeutet’ (significa) aparece em certas ocasiões no lugar de

‘bezeichnet’ (indica) ou ‘deutet an’ (sugere), o que nunca acontece com a

palavra ‘Sinn’. Algo semelhante acontece no português quando usamos o verbo

‘significar’ no sentido estendido de apontar, indicar, mostrar, referir, denotar,

ou mesmo estendê-lo mais ainda no sentido daquilo mesmo que é apontado,

indicado, mostrado, referido, denotado. Com efeito, segundo o dicionário

Aurélio, ‘significar’ também pode ser usado no sentido de ‘denotar’, e segundo o

dicionário Houaiss, etimologicamente ‘significar’ vem do latim ‘significare’,

que quer dizer “dar a entender por sinais, indicar, mostrar, significar, dar a

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conhecer, fazer compreender”.1 Para tornar clara a diferença, compare os

proferimentos:

a) A palavra ‘cadeira’ significa (indica) coisas como aquilo ali. b) A palavra ‘cadeira’ tem o sentido de (indica) coisas como aquilo ali.

A frase (a) ainda é aceitável, embora pouco literal; mas a frase (b) soa

claramente inadequada. Minha sugestão interpretativa advém da observação

dessa diferença, que é mais evidente na língua alemã. Sugiro que ao introduzir o

termo ‘Bedeutung’ Frege estava substantivando o verbo ‘bedeuten’, usado para

expressar, não mais o apontar (deuten), o designar (bezeichnen), mas já aquilo

que é apontado (die Bedeutung), aquilo que é designado (das Bezeichnete), a

saber, a própria referência, o denotatum.2 Em alemão isso ficaria como:

Bedeutet... → deutet... bezeichnet... → /das, was gedeutet, bezeichnet ist/ (significa) (aponta... designa...) (aquilo que é referido) ↓ die Bedeutung (significado = referência, denotação)

Essa é a pequena torção semântica com a qual Frege transforma a palavra

‘Bedeutung’ em um termo técnico – uma torção que trai um resquício de

referencialismo semântico.3

1 Dicionário Houaiss, p. 2.569.2 Procurando na literatura descobri que esse ponto foi notado ao menos por W. Kneale e M. Kneale, segundo os quais “Sinn tem a mesma ampla variedade de aplicações que o inglês ‘sense’, e Bedeutung corresponde quase exatamente a ‘meaning’. (…) Mas o simples verbo deuten, do qual bedeuten e Bedeutung são derivados, pode ser usado para ‘point’, ao menos no sentido metafórico dessa palavra inglesa, e Frege parece ter-se fixado a essa peculiaridade como uma justificação para o seu uso técnico de bedeuten”. The Development of Logic, p. 495.3 Ver a introdução da distinção em “Funktion und Begriff”, p. 14 (paginação original). A explicação aqui exposta nos será útil mais tarde, quando considerarmos a fantasia da terra-gêmea de Hilary Putnam. Irei mostrar que Putnam se utiliza dessa mesma proximidade

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2. Sentido do termo singular

Passemos agora ao sentido do termo singular. Para introduzi-lo, compare as duas

seguintes frases:

1. A estrela da manhã tem uma densa atmosfera de CO2.2. A estrela da tarde tem uma densa atmosfera de CO2.

As frases (1) e (2) referem-se a mesma coisa, que é o planeta Vênus. Mas apesar

disso, uma pessoa pode saber a verdade de (1) sem saber a verdade de (2). A

explicação disso é que embora os termos singulares ‘estrela da manhã’ e ‘estrela

da tarde’ se refiram ao mesmo planeta Vênus, eles veiculam conteúdos

informativos diferentes, eles têm sentidos (Sinne) diferentes. O sentido é

definido por Frege como sendo o modo de se dar do objeto (die Art des

Gegebenseins des Gegenstandes), o que melhor se traduz como o seu modo de

apresentação. O sentido do termo singular ‘estrela da manhã’, por exemplo,

deve ser Vênus apresentado como “o corpo celeste mais brilhante, geralmente

visto próximo ao horizonte pouco antes do sol nascer...” – diversamente do

sentido do termo singular ‘a estrela da tarde’. E o sentido do termo singular ‘o

perdedor de Waterloo’ é apresentado como “o general que perdeu a batalha de

Waterloo...” muito diversamente do sentido do termo singular ‘o vencedor de

Jena’.

Segundo Frege, palavras expressam o sentido (drücken den Sinn aus)

enquanto o sentido determina (bestimmt) a referência. Importante é que o

sentido é para ele condição necessária para a referência. Sem ele não é possível

o ato de referir, pois é ele que mostra o caminho para a referência. Isso é assim

mesmo nos casos em que a referência não existe, razão pela qual o sentido

semântica entre o verbo ‘significar’ (‘mean’) e aquilo que é significado (referência e extensão) como álibi para poder mergulhar fundo nos grotões do externalismo semântico.

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também tem sido interpretado como sendo o modo de apresentação pretendido e

não o de algo necessariamente dado.1 Por isso uma expressão pode ter sentido

sem ter referência, mas não pode ter referência sem ter sentido.

A noção de sentido em Frege é abrangente, constituindo o que ele chama de

valor epistêmico (Erkenntniswert). O sentido fregeano possui interesse

epistemológico por envolver o conteúdo informativo da expressão lingüística;

ele é, no dizer de Michael Dummett, aquilo que entendemos quando entendemos

a expressão.2 A importância filosófica da semântica fregeana resulta dessa

importância epistemológica do seu conceito de sentido.

Frege concebe os sentidos como entidades abstratas, que ele só analisa em

termos de outros sentidos que lhe sejam constituintes. Ele os trata como

entidades primitivas, que ele elucida mas não explica. Ou seja: ele não se

preocupa em realmente analizá-los através de outros conceitos, talvez por vê-los

como lógico e não como epistemólogo. Essa análise, porém, é algo que

naturalmente se impõe. Pois parece muito plausível entendermos os sentidos

fregeanos como sendo regras criteriais semântico-cognitivas, as mesmas que já

consideramos ao analisarmos o significado como função do uso. Aqui reside a

conexão fundamental a ser feita entre as reflexões semânticas de Frege e do

último Wittgenstein.3 A plausibilidade dessa identificação fica particularmente

clara quando tomamos expressões numéricas como exemplos. Considere as

expressões “1 + 1”, “6/3”, “2 . (7 + 3 – 9)”. Tanto elas quanto um número

infinito de outras expressões que podem ser criadas têm a mesma referência, o

número 2, embora tenham sentidos fregeanos diferentes. Ao mesmo tempo elas

1 Max Textor: Frege on Sense and Reference, p. 134.2 M. Dummett: Frege: Philosophy of Language, p. 92.3 No que concerne a Frege, esse entendimento se deve principalmente a Michael Dummett. Mas orientações semelhantes podem ser encontradas em autores como P.F. Strawson e Ernst Tugendhat, entre outros.

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constituem métodos, procedimentos, regras semântico-cognitivas diversas,

através das quais identificamos o mesmo número 2.1

Outra razão para tratarmos sentidos como regras semântico-cognitivas é o

contraste com o que Frege chamou de colorações (Färbungen). Colorações são

o mesmo que sentidos expressivos, a saber, estados afetivos que regularmente

associamos a certas expressões. Assim, as palavras ‘amor’ e ‘cão do inferno’, na

frase “O amor é um cão do inferno” (Bukowski), se associam contrastivamente a

emoções específicas. Como Frege percebeu, a fixação de colorações emocionais

similares a uma mesma palavra por diferentes pessoas não é resultado de

convenções. Ela é o mero resultado de regularidades produzidas pela relativa

semelhança entre nas naturezas humanas, que produz reações emocionais

semelhantes diante de certas expressões lingüísticas. Mas como as naturezas

humanas não são idênticas e não há base convencional, não se pode esperar

concordância completa. Eis porque alguns podem reagir emocionalmente a uma

poesia e outros lhe ficarem indiferentes, esta sendo. Eis porque é tão difícil

traduzir poesia, que em muito depende das colorações adquiridas por uma

expressão em uma língua específica.

Diversamente das colorações Frege achava que os sentidos, para terem sua

objetividade (intersubjetividade) garantida, como acontece na linguagem

emocionalmente neutra da ciência, precisam ser convencionais. Torna-se assim

óbvia a conseqüência de que Frege concordaria conosco se concluíssemos que a

razão da objetividade (intersubjetividade) e conseqüente comunicabilidade dos

sentidos se – em contraste com a menor falta de objetividade e comunicabilidade

das colorações – se encontra no fato de que esses sentidos-significados são

regras cognitivas convencionadas de modo geralmente pré-reflexivo, quando

não são as combinações de regras que o constituem ou determinam.1 Ver comentários de Edmund Runggaldier sobre a interpretação de Dummett em seu livro Zeichen und Bezeichnetes: sprachphilosophische Untersuchungen zum Problem der Referenz, p. 91 ss.

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À luz dessas considerações, o sentido do termo singular deve ser considerado

o mesmo que uma regra ou método ou procedimento convencionalmente

fundado, cuja função é a de servir de caminho para a identificação do objeto.

Essa regra se deixa ao menos parcialmente exprimir por descrições. Assim, a

regra associada ao termo singular ‘a estrela da manhã’ deixa-se explicitar pela

descrição definida ‘o corpo celeste mais luminoso geralmente visto próximo do

horizonte pouco antes do sol nascer...’ E um nome próprio como ‘Aristóteles’,

na sugestão de Frege, estaria no lugar de uma variedade de modos de

apresentação exprimíveis através de descrições. Frege dá como exemplo disso as

descrições: (i) ‘discípulo de Platão e tutor de Alexandre o Grande’ e (ii) ‘pessoa

nascida em Estagira’.1 Segundo a interpretação proposta, as descrições (i) e (ii)

exprimem diferentes sentidos e, por conseguinte, diferentes regras para a

identificação de Aristóteles. Além disso, podemos suspeitar que (i) e (ii) façam

parte de alguma regra mais geral, estabelecedora de um vínculo unificador

dessas duas regras na identificação de um mesmo objeto. Mesmo sob essa

paráfrase o sentido determina a referência: para que se identifique a referência é

preciso que regras semânticas identificadoras do objeto se demonstrem

aplicáveis, a saber, que as configurações criteriais por ela geradas sejam

adequadamente satisfeitas.2

3. Referência do termo geral

1 Gottlob Frege: “Über Sinn und Bedeutung”, nota p. 28 (paginação original).2 Como observou Dummett, que creio compartilhar de meu entendimento dos sentidos fregeanos como regras cognitivo-criteriais: “Conhecer o sentido de um nome é ter um critério para reconhecer, para qualquer dado objeto, se ou não ele é o portador (referente) do nome; conhecer o sentido de um predicado é ter um critério para decidir, para qualquer objeto, se ou não o predicado se aplica aquele objeto; e conhecer o sentido de uma expressão relacional é ter um critério para decidir, dados quaisquer dois objetos tomados em uma ordem particular, se ou não a relação estatuida se mantém entre o primeiro objeto e o segundo”. M. Dummett: Frege: Philosophy of Language, p. 229.

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Frege tem algo a dizer sobre a referência do termo geral em função predicativa,

a qual ele chama de conceito (Begriff). Isso é estranho porque parece natural

pensarmos o conceito como sendo o próprio sentido da expressão conceitual, o

seu modo de apresentação da referência, a qual deveria ser em seu sentido mais

corrente e próprio aquilo que podemos chamar de propriedade.

Além disso, para Frege o conceito é uma função. O conceito matemático de

função pode ser definido como sendo uma regra que tem como input

argumentos e como output valores (por exemplo: ‘3 + x = ...’ é uma função que

recebe como valor o número 6 quando o argumento que substitui x é o número

2). Para Frege um conceito é uma função cujo argumento é o objeto que “sob

ele cai” (fällt unter) e cujo valor é um valor-verdade, que pode ser o Verdadeiro

ou o Falso. Assim, o conceito designado pela expressão conceitual ‘...é branco’

tem o valor Verdadeiro quando sob ele cai o objeto Lua e tem o valor Falso

quando sob ele cai o objeto Sol.

Frege nunca explicou satisfatoriamente o que são conceitos entendidos nesse

sentido referencial. Para ele conceitos não podem ser nem objetos nem coleções

de objetos nem extensões.1 A razão disso é que o objeto, o conjunto de objetos, a

extensão, é uma entidade independente, não precisando de nada para completá-

la. Sendo uma função, o conceito por contraste se caracteriza por ser aberto, a

saber, uma entidade incompleta (unvollständig) ou insaturada (ungesätig),

precisando ser sempre preenchida por argumentos, que no caso são os objetos

que sob ele podem cair. Esses objetos, por contraste, são completos, saturados

ou independentes (unabhängig), sendo isso o que em última instância os

caracteriza.

Por exemplo: o predicado ‘...é um cavalo’ é uma expressão insaturada,

designando um conceito também insaturado, que se deixa completar pelo objeto

que sob ele cai, o qual é referido por um termo singular, por exemplo,

1 G. Frege: “Ausführungen über Sinn und Bedeutung”, pp. 130 ss.108

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‘Bucéfalo’. Predicado incompleto e termo singular completo se combinam para

formar a frase completa “Bucéfalo é um cavalo”, que por ser completa, deve

outra vez ser nome de objeto. Que a frase completa se refere a um objeto (no

sentido especial dado por Frege à palavra) parece ser confirmado pela

possibilidade que temos de nominalizar frases transformando-as em descrições

definidas (aquelas que se iniciam com o artigo definido) como, por exemplo, ‘o

cavalo de nome Bucéfalo’, que pode comparecer na frase “O cavalo de nome

Bucéfalo pertenceu a Alexandre”.

Essas reflexões sobre a natureza insaturada do conceito levaram Frege à

estranha conclusão de que a frase:

(1) O conceito de cavalo não é um conceito,

é paradoxalmente verdadeira.1 Afinal, o termo singular ‘o conceito de cavalo’ só

pode designar uma entidade completa, saturada, independente. O mais próximo

que podemos chegar de nomear o referente de um termo geral é em uma frase

como:

(2) Bucéfalo é aquilo a que o termo geral ‘cavalo’ refere,

na qual é dito que o objeto Bucéfalo cai sob o conceito de cavalo. O problema é

que a negação de (1), nomeadamente, a frase

(3) O conceito de cavalo é um conceito,

soa como uma frase analítica necessariamente verdadeira! A meu ver a resposta

para esse paradoxo emerge quando distinguimos entre ser referência de um

1 Gottlob Frege: “Über Begriff und Gegenstand”, pp. 196-7.109

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termo geral e exercer o papel de referência de um termo geral, quando este

aparece em sua posição predicativa. No caso em que a entidade referida pelo

termo geral não tem papel de referência de uma expressão predicativa, ela deixa

de ser vista como insaturada ou incompleta. Nesse caso (3) poderá ser entendida

como uma frase ambígua. Se a interpretarmos como

(4) A referência a palavra ‘cavalo’ é a referência de um termo geral,

ela será realmente verdadeira, mas se a interpretarmos como

(5) A referência da palavra ‘cavalo’ é (enquanto tal) insaturada,

ela se torna falsa. Sob essa interpretação o que Frege está dizendo torna-se

inofensivo.1

4. O status ontológico da referência das expressões predicativas

A discussão sobre a natureza insaturada da referência das expressões

predicativas nos leva à questão da natureza ontológica do que Frege entende

como sendo a sua referência: o conceito. A natureza referencial que ele atribui

ao conceito, junto a sua sugestão metafórica de que objetos podem “cair sob” o

conceito, produzindo assim a sua extensão, nos permitem especular se ele não

teria sido influenciado por alguma concepção realista-aristotélica do que seja a

referência de termos gerais. É possível que o que Frege chama de conceito tenha

sido postado no domínio da referência para exercer um papel semelhante ao de

universal in rebus (nos objetos), pertencendo por isso ao domínio da referência.

Se for assim, então os objetos poderão realmente “cair sob” o conceito,

1 Para uma resposta que converge com a minha, ver Anthony Kenny: Frege: An Introduction to the Founder of the Modern Analytic Philosophy, pp. 123-125.

110

Page 111: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

produzindo a sua extensão. A favor disso fala o fato de que Frege chama o

conceito sob o qual cai o objeto de sua propriedade (Eigenschaft), identificando

assim o seu conceito de conceito com o conceito de uma propriedade que aqui é

obviamente entendida como uma propriedade universal. A favor disso fala

também o fato de que, tal como acontece com os universais, os componentes

(Merkmale) dos conceitos fregeanos não são suas propriedades constituintes

(Eigenschaften): não é propriedade constituinte do conceito expresso pelo

predicado ‘...veludo azul macio’, por exemplo, que ele seja azul ou que ele seja

macio (nem do universal). Um conceito (um universal in rebus) não tem cor

nem textura, diversamente dos objetos que caem sob ele.

A questão que surge dessa última interpretação do conceito fregeano é que se

o conceito (como o universal in rebus) está “nas coisas”, então, quando a

expressão predicativa não possui referência o seu conceito também não deveria

existir (um problema que, diga-se de passagem, também inflinge a própria idéia

do universal in rebus). Mas Frege tem o bom senso de admitir que conceitos

vazios existem. O termo predicativo ‘...é um unicórnio’ refere-se para ele a um

conceito, mesmo que sob ele não caia objeto algum. Contudo, parece

intuitivamente claro que ‘...é um unicórnio’ não possui referência alguma,

embora obviamente expresse um conceito. Minha conclusão é a de que a

identificação fregeana da referência da expressão predicativa com o conceito é

simplesmente incoerente, resultando de uma contaminação do domínio do

sentido – no qual falamos de conceitos como modos de apresentação – pelo

domínio da referência. Melhor seria admitir que o conceito é o sentido do termo

geral em sua função predicativa, o seu modo de apresentação, e que a sua

referência seja alguma outra coisa que, com efeito, “cai sob” esse conceito,

mesmo que ela não seja algo independente ou completo como um objeto ou

uma extensão. Mas que coisa é essa?

111

Page 112: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Quero aqui propor a única resposta que me parece viável. Quero revisar

Frege, interpretando a referência da expressão predicativa em termos do que

chamo de propriedades singularizadas ou propriedades-se ou simplesmente

propriedades, definidas como quaisquer propriedades espaço-temporalmente

singularizadas, como o branco que vemos quando olhamos para a Lua e que, de

certo modo, está lá (a reflexão do conjunto dos comprimentos de onda do

aspectro visível). As propriedades-s são hoje em dia mais usualmente chamadas

de tropos, pois a sua investigação ganhou proeminência com a moderna

ontologia dos tropos, introduzida em 1953 pelo filósofo australiano D.C.

Williams, que por meio dela sustentou que toda a realidade deve ser constituída

de tropos, os quais são as pedrinhas de construção do universo.1 Nesse sentido,

aquele som agudo que acabei de ouvir, essa superfície rugosa que toco, o branco

que vejo agora, e mesmo (talvez) essa forma quadrática do apagador de giz que

percebo diante de mim, são tropos. A importância dessa teoria é que ela permite

uma inusitada economia ontológica que nos livraria de uma vez por todas de

entidades desagradáveis como os universais puros e os substratos nus. Um

universal poderia ser definido, eu proponho, como um tropo-modelo T* (o qual

poderia variar com o sujeito cognitivo e até mesmo com o mesmo sujeito em

ocasiões diferentes) ou qualquer outro tropo T que seja igual a ele.2 E um

objeto material poderia ser minimamente analisado como um sistema de tropos

compresentes (ou seja, co-localizados e co-temporais) contendo um núcleo

constituído dos tropos que lhe são (de variados modos possíveis) 1 A teoria dos tropos foi introduzida pelo filósofo australiano D.C. Williams em seu artigo “The Elements of Being” (1953), tendo desde então suscitado crescente interesse. Uma primeira elaboração sistemática das idéias de Williams foi feita por Keith Campbell no livro Abstract Particulars, publicado em 1990. Para uma avaliação ver Anna Sofia-Maurin: If Tropes.2 Proponho essa caracterização como uma maneira de contornar a usual definição do universal como uma classe de tropos iguais entre si, uma vez que classes são objetos abstratos que podem aumentar ou diminuir de tamanho etc. Eu a utilizo inspirado no tratamento dado por filósofos empiristas como Berkeley à noção de idéia. Farei o mesmo com a noção fregeana de pensamento mais tarde.

112

Page 113: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

definitoriamente atribuídos, acrescidos de tropos contingentes ou

circunstanciais.3

Embora a ontologia dos tropos seja uma aquisição muito jovem e traga

consigo muitos problemas irresolvidos, ela não produz mais dificuldades do que

as tradicionais doutrinas universais do realismo e do nominalismo. Em

compensação, ela promete uma solução extremamente econômica para os

problemas ontológicos, libertando-nos, finalmente, de entidades questionáveis

como universais platônico-aristotélicos e substâncias incognoscíveis, as quais

ocuparam as cabeças filosóficas por mais de dois milênios sem um progresso

que as tornasse mais plausíveis. Como não é aqui o lugar para fazer a defesa de

uma ontologia dos tropos, posso propor ao leitor a admissão bem menos

polêmica de que nossos termos empíricos se referem tendo como critérios

propriedades singularizadas, nomeadamente, tropos, como o desse vermelho e o

daquele som agudo. Essa suposição de bom senso já bastará.

Finalmente, como a palavra ‘propriedade’ na linguagem corrente significa o

mesmo que tropo, diversamente de seu uso filosófico costumeiro para designar

entidades abstratas, fiel ao meu princípio de privilegiar, sempre que possível, os

nomes ordinários das coisas, usarei nesse livro a palavra ‘propriedade’ no

sentido de propriedade individualizada ou propriedade-s ou tropo.

Segundo a releitura que proponho, a expressão predicativa ‘...é branco’ na

frase “A Lua é branca” tem como referência não um conceito, mas uma

propriedade singularizada: os arranjos de de propriedades que constituem a

brancura da Lua. Também aqui a propriedade ou seus arranjos pode ser

interpretada como uma função. Mas ela é uma função cujo argumento, no caso,

é o objeto Lua, e cujo valor parece ser simplesmente o fato de a Lua ser branca.

Nesse caso, a função referida pela expressão predicativa ‘...é branca’ seria

3 Essa sugestão demanda desenvolvimento. Ver a respeito Paul Simons: “Particulars in Particular Clothings: Three Trope-Theories of Substance”.

113

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satisfeita pelo objeto referido pelo nome ‘Lua’, dando como valor o estado de

coisas (o fato) referido pela frase “A Lua é branca” (essa seria uma alternativa

para o artificioso recurso fregeano fregeano ao valor-verdade como o valor da

função conceitual).

5. Insaturação como dependência ontológica

Um problema com a idéia de incompletude ou insaturação é que ela não parece

suficiente para distinguir a função predicativa. Entre o objeto e a propriedade

designada pelo predicado vige uma bem conhecida assimetria: o objeto é

normalmente referido pelo sujeito e a propriedade é normalmente referida pelo

predicado (ex: “Sócrates é sábio”); mas enquanto a propriedade pode passar a

ser referida pelo sujeito (“Sabedoria é uma virtude”), o objeto não pode passar a

ser referido pelo predicado (“Sábio é Sócrates” não faz sentido, a não ser que

‘sábio é...’ seja entendido como predicado). Contudo, a distinção

saturado/insaturado nada parece fazer para explicar essa assimetria. Afinal,

parece igualmente possível afirmar que os termos singulares e, por conseguinte,

os seus referentes, são insaturados. Afinal, qual a diferença entre os

preenchimentos de “(Sócrates, Marx, Darwin, Lula...) ...é barbudo” e “Sócrates

é... (sábio, barbudo, baixinho, tagarela...)”? Tanto o termo geral quanto o termo

singular podem ser vistos como exprimindo funções que podem ser completadas

por uma infinidade de outros termos, o mesmo se aplicando aos seus referentes

putativos.1

Contudo, a noção de insaturação insinua algo mais do que isso. Em química

um composto de carbono é dito insaturado quando contém ligações carbono-

carbono removíveis pela adição de átomos de hidrogênio, o que torna o

composto saturado. Haveria uma maneira de resgatar essa metáfora? Será que

Frege não a explorou suficientemente?

1 Pelo que sei essa observação foi originariamente feita por Frank Ramsey. 114

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Quero mostrar que o recurso a uma leitura da referência da expressão

predicativa em termos de tropos-funções nos possibilita uma paráfrase

esclarecedora da distinção fregeana entre saturação e insaturação. Essa paráfrase

inspira-se em uma das definições aristotélicas de substância como sendo aquilo

que existe na independência de outras coisas.1 Aplicada aos objetos materiais

entendidos como sistemas de propriedades, a intuição passa a ser a de que o

sistema de propriedades (singularizadas) reconhecível enquanto tal é algo

complexo e geralmente mais estável do que as propriedades isoladas; o sistema

existe de maneira independente relativamente com relação aos tropos a ele

associados. Propriedades não existem sozinhas: uma propriedade de ser verde,

por exemplo, não pode existir na independência de alguma propriedade de

forma, que para se localizar precisa estar espaço-temporalmente relacionaa a

outras propriedades etc. Admitindo que a existência de propriedades é

dependente da existência de objetos (particulares), os quais constituem-se

(talvez só em parte) de sistemas relativamente independentes e estáveis de

propriedades, podemos fazer o seguinte raciocínio: se os referentes de termos

predicativos (empíricos) forem propriedades espaço-temporalmente localizadas,

parece que podemos parafrasear melhor a dicotomia insaturação/saturação ou

incompletude/completude através da dicotomia dependência/independência,

raramente usada por Frege. Afinal, o que distingue a referência de um termo

geral, no caso da frase predicativa ou mesmo relacional singular, é que essa

referência é uma propriedade (ou complexo de propriedades que por sua vez

também pode ser chamado de propriedade) cuja existência depende de um todo

que é o sistema de propriedades constitutivo do objeto particular referido pelo

termo singular. Assim, o predicado ‘...é rápido’ na frase “Bucéfalo é rápido” e a

relação ‘...pertence a...’ na frase “Bucéfalo pertence a Alexandre” aplicam-se

respectivamente às combinações de propriedades próprias do ser rápido e do

1 Aristóteles: Categorias, sec. 5.115

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pertencer a Alexandre, as quais só podem mesmo existir e se tornar

identificáveis na dependência da existência de sistemas de propriedades mais

complexos, estáveis, independentes, que são os sistemas constitutivos dos

objetos Bucéfalo e Alexandre. Já os sistemas de propriedades constitutivas dos

referentes dos nomes próprios ‘Bucéfalo’ e ‘Alexandre’ são objetos que existem

na independência da existência das combinações de propriedades constitutivas

do “ser rápido” ou do “pertencer a alguém”. Sugiro, pois, que as propriedades

referidas pelos predicados possuem uma inevitável relação de dependência para

com objetos particulares, e que isso se deixa melhor explicar quando nós as

entendemos quando sendo propriedades singularizadas ou tropos.

Mas que dizer do predicado “...é um cavalo”? na frase “Bucéfalo é um

cavalo”? Ora, a propriedade singularizada de ser um cavalo pode bem ser

essencial a Bucéfalo. Nesse caso a frase será analítica e ser um cavalo não será

dependente de ser Bucéfalo no sentido de lhe ser contingente. Mesmo assim a

propriedade de ser um cavalo não deixa aqui de ser dependente. Ela é

dependente no sentido de ser parte de ser Bucéfalo, pois na medida em que a

parte depende do todo, ser um cavalo depende de ser Bucéfalo.

Note-se que a relação de dependência/independência não se preservaria se

conceitos fossem extensões de expressões conceituais (classes de objetos aos

quais certas propriedades singularizadas se aplicam). A relação de

dependência/independência só se preserva quando entendemos a referência do

predicado em termos de propriedades singularizadas. Tal relação tem sua origem

ao nível ontológico da referência, mas ela se reflete ao nível da linguagem, na

distinção lógica entre sujeito e predicado, e ainda, como veremos, ao nível

epistemológico, pelo fato de que o sentido, o modo de identificação do objeto

referido pelo termo singular é independente do modo de identificação de

propriedades contingentes que dele se predicam, enquanto o sentido da

expressão predicativa, o modo de identificação desses tropos, é dependente da 116

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prévia identificação do objeto referido pelo termo singular devido em última

instância à sua relativa independência.

Devemos também notar que a relação de independência/dependência não

precisa restringir-se a particulares empiricamente dados. Até mesmo os objetos

formais prioritariamente considerados por Frege parecem submeter-se a ela.

Considere uma predicação como ‘...é um número par’ aplicada à referência do

nome próprio ‘6’. Ela depende do reconhecimento da existência do número 6. E

o próprio conceito de ser um número par não parece ter lugar na independência

da existência dos números particulares que forma a série 2, 4, 6...

Essa espécie de solução parece finalmente viável pelo fato de ela ser em

princípio capaz de explicar a assimetria entre objeto particular e propriedade.

Essa assimetria é explicada pela independência da referência do termo singular.

O nome ‘Sócrates’ não pode passar à posição de predicado porque aquilo a que

ele se refere é algo independente (e independentemente identificável), a saber, é

o sistema de propriedades que constitui essencialmente este objeto particular.

Mesmo o nome de um objeto abstrato como o número ‘6’ não pode passar à

posição de predicado, posto que se refere a algo relativamente independente de

suas propriedades (alegadamente não as que lhe são definitóriamente atribuidas),

ou ao menos identificável independentemente de muitas de suas predicações,

digamos ‘...é par’ ou ‘...é maior do que 2’.

6. Sentido da expressão predicativa

Frege não explica o que ele entende pelo sentido do termo geral em sua função

predicativa. Isso é compreensível, já que o seu candidato natural, o conceito, foi

dubiosamente situado por ele mesmo no nível da referência. Mas a lógica de

nossa reconstrução nos leva a pensar que esse sentido, que não deve ser outro

que um modo de apresentação, nada mais seja do que a regra de aplicação do

termo geral e que essa regra seja aquilo que realmente merece ser chamado de 117

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conceito. Deve ser esse sentido do predicado, e não o conceito fregeano, pois é

ele que como regra tem a capacidade de estabelecer o critério para quais objetos

caem e quais não caem sob o domínio de aplicação do predicado.1

Tal como acontece com o sentido do termo singular, o sentido do termo geral

também pode se alterar sem que a sua referência se altere. Considere as frases:

1. A Lua é branca. 2. A Lua reflete todos os comprimentos de onda.

É possível dizer que a referência – os arranjos de propriedades singularizadas

que constituem a brancura da Lua – permanece a mesma nas frases (1) e (2),

mas os sentidos dos predicados, as suas regras de aplicação, são diversos, o que

faz com que os sentidos das frases também sejam diferentes, razão pela qual

uma pessoa pode saber que a Lua é branca sem saber que a sua superfície reflete

todos os comprimentos de onda do aspectro visível.

Outro resultado desse entendimento contradiz as espectativas fregeanas de

que não seja possível um mesmo sentido para mais de uma referência. Considere

as seguintes frases:

3. A Lua é branca.4. O Mont Blanc é branco.

O predicado ‘...é branco’ nas frases (3) e (4) têm obviamente o mesmo

sentido, pois expressam a mesma regra de aplicação (diversamente instanciada).

1 Ernst Tugendhat observou que segundo Frege duas palavras-conceituais referem-se ao mesmo conceito quando as suas respectivas extensões coincidem. Isso quer dizer, como ele nota, que dois termos gerais com sentidos diferentes (ex: ‘animal com coração’ e ‘animal com rins’), mas com a mesma extensão, precisam se referir ao mesmo conceito. (E. Tugendhat: Vorlesungen, p. 322). O problema é que se pensarmos assim parece que não encontraremos mais nada além da própria extensão para identificar com o conceito. Não obstante, como já vimos, sendo a extensão um objeto Frege não pode identificá-la com o conceito. Mais uma razão para rejeitarmos o conceito como referência em Frege.

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Mas a propriedade da brancura da lua está localizada na própria Lua, enquanto a

propriedade da brancura do Mont Blanc está localizada em suas neves eternas,

tratando-se aqui de particulares distintos. Mas esse não é um exemplo isolado: a

maioria dos sentidos dos termos gerais são regras com múltiplas referências,

tantas quantas forem os objetos que constituem a sua extensão. Em Frege, ao

contrário, isso não pode acontecer, posto que como já vimos a referência da

expressão predicativa é sempre uma só: o conceito – o universal in rebus

fregeano – sob o qual caem os objetos que constituem a sua extensão.

A distinção entre independência/dependência (saturação/insaturação) também

se dá para Frege ao nível do sentido. Isso fica compreensível se pensarmos o

sentido dos termos gerais como regras. As regras de identificação dos termos

singulares se aplicam a objetos, os quais são considerados como independentes

em relação às propriedades que lhes são mais ou menos contingentemente

predicadas. Por isso a regra de identificação também é passível de ser aplicada

independentemente das regras de aplicação, podendo ser elas mesmas

isoladamente concebíveis, sendo nesse sentido independentes, completas,

saturadas. O mesmo não acontece, porém, com as regras de aplicação expressas

pelos termos gerais. Sendo as propriedades ou conjuntos de propriedades às

quais elas ultimadamente se aplicam dependentes dos sistemas de propriedades

constitutivos dos objetos aos quais as regras de identificação se aplicam, as

regras de aplicação dos predicados demandam a aplicação prévia das regras de

identificação de objetos para poderem se tornar elas próprias aplicáveis, o que

as torna dependentes das regras de identificação dos termos singulares, do

mesmo modo que as propriedades são dependentes dos objetos que as possuem.1

1 Essa dependência que a aplicação da regra predicativa tem de uma prévia aplicação da regra de identificação do termo singular foi claramente notada, por exemplo, por Ernst Tugendhat em sua análise das condições de verdade da frase predicativa singular: “‘Fa’ é exatamente então verdadeira se, na medida em que a regra de identificação de ‘a’ foi seguida, com base no resultado do seguimento dessa regra, ‘F’ for aplicável de acordo com a sua regra de aplicação”. E. Tugendhat: Logisch-Semantische Propedeutik, p. 235.

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O sentido do termo geral, que – divergindo de Frege – podemos identificar com

o conceito por ele expresso deve ser então uma regra cuja aplicação a um objeto

depende da prévia aplicação de outra regra. A regra de aplicação do termo

predicativo é dependente e por isso incompleta, insaturada, pois ela demanda a

aplicação prévia da regra identificadora do termo singular para poder se aplicar.

É preciso em suficiente medida identificar aquilo de que falamos, em geral pelo

ato de identificar ou localizar no espaço e no tempo ao menos um certo objeto

particular, para então poder caracterizar. É preciso aplicar a regra que nos

permite, por exemplo, localizar espaço-temporalmente o animal chamado de

Bucéfalo para, com base nisso, aplicar-lhe regras de caracterização de termos

gerais como ‘...é um cavalo’, ‘...é branco’, ‘...é dócil’. E essa constatação vale

também para entidades abstratas. É preciso aplicar a regra que nos permite

identificar mentalmente o número 6 para podermos caracterizá-lo como sendo

um número par, aplicando-lhe a regra que o classifica como sendo divisível por

dois.

Seria uma objeção ingênua a de que afinal de contas é possível dizer “Aquilo

é um cavalo” ou “Lá está uma coisa branca” sem precisar identificar Bucéfalo.

Afinal, os termos singulares indexicais ‘aquilo’ e ‘lá’ já identificam algum

particular na forma de alguma coisa espaço-temporalmente localizável de modo

independente, explicitável por expressões como ‘aquele animal’, ‘aquele

objeto’, ‘aquele lugar’, isso já podendo bastar. Assim, não só a referência do

predicado é dependente, mas também o seu sentido. A relação de dependência

semântica – ao nível do sentido – espelha aqui a relação de dependência

ontológica – ao nível da referência.

7. O conceito de existência como metaregra

Nesse ponto podemos adicionar uma consideração especial sobre o conceito de

existência. Aprofundando um insight kantiano, Frege sugeriu que a existência é 120

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uma propriedade (Eigenschaft) do conceito, diversamente de seus componentes

(Merkmale). Essa propriedade de existência é a do conceito não ser vazio, mas

satisfeito, preenchido.1 Considerando que um conceito de primeira ordem

preenchido é aquele sob o qual cai ao menos um objeto, podemos dizer que para

Frege a existência é a propriedade de um conceito de sob ele cair pelo menos

um objeto. A mesma idéia foi defendida por Russell na sugestão de que a

existência é a propriedade de uma função proposicional do tipo “Ex(...)” de ser

verdadeira para ao menos uma instância.2

Seguindo uma terminologia mais atual, tomemos como exemplo a frase geral

“Cavalos existem”.3 Essa frase se deixa analisar como:

Existe ao menos um x tal que x é um cavalo.

Essa frase contém dois componentes. Um deles é expresso pelo predicado

‘...é um cavalo’,

1 Ver Gottlob Frege: Die Grundlagen der Arithmetik (Felix Meiner Verlag: Hamburg 1986), sec. 53.2 Bertrand Russell: “The Philosophy of Logical Atomism”, pp. 232, 250-54. Essa posição sustentada por Russell e Frege é disputada por muitos filósofos contemporâneos, que preferem considerar a existência como uma predicação de primeira ordem. As razões aduzidas me parecem contornáveis. João Branquinho, por exemplo, sugere que só podemos analisar uma frase como (i) “Há coisas que não existem” se admitirmos que predicados de existência são de primeira ordem, enquanto quantificadores significam apenas uma atribuição de “ser” no sentido meinonguiano. Assim, a simbolização da frase (i) seria ∑x(~Ex), onde ∑ significa ‘há’ (ver “Existência”, in Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, eds. J. Branquinho, D. Murcho e N.G. Gomes, Martins Fontes: São Paulo 2006, p. 300). Mas a frase (i) também poderia ser analisada ao modo fregeano. Podemos traduzi-la como “Existem coisas na mente que não existem na realidade externa”. Nesse caso, sendo M = “...na mente” e R = “...na realidade externa”, parece que podemos simbolizar “Há coisas que não existem” como Ex((Mx) & ~Ex(Rx)). Essa discussão, porém, foge aos limites do presente texto. 3 Ver J.R. Searle: “The Unity of Proposition”, in Philosophy in a New Century (Cambridge University Press: Cambridge 2008), p. 176.

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simbolicamente Cx (onde x está no lugar de ‘...’ e C no lugar de ‘é um cavalo’).

O outro componente é o predicado de existência, constituído pela frase aberta

‘Existe ao menos um... tal que...’,

simbolicamente Ex(...). Isso significa que a predicação de existência Ex(...) é

um conceito de conceito, um conceito de ordem superior, um metaconceito sob

o qual podem cair outros conceitos. A frase Ex(Cx) expressa, pois, um conceito

de segunda ordem aplicado a um conceito de primeira ordem. O que esse

conceito de ordem superior faz é, para Frege, dizer que ao menos um objeto cai

sob o conceito de primeira ordem, ou seja, atribuir a satisfação ou

preenchimento ou a aplicação desse conceito de primeira ordem a ao menos um

objeto. Quando dizemos que cavalos existem estamos aplicando um conceito de

segunda ordem, o conceito de aplicabilidade a ao menos uma propriedade

singularizada, a um conceito de primeira ordem que o satisfaz.

Essa mesma idéia pode ser estendida a afirmações de existência de

portadores de nomes próprios através da transformação dos últimos em

predicados, como acontece quando formalizamos “Sócrates existe” como “Ex(x

= Sócrates)”, o que conserva a unicidade do particular mas é inadequado por

razões formais, ou “Ex(x socratiza)”1, o qual é mais adequado formalmente mas

não conserva a unicidade do particular (várias coisas podem socratizar). A

dificuldade e estranheza dessa última fórmula pode ser em parte desfeita se

1 Se entendermos (i) “Ex(x = Sócrates)” como exprimindo uma relação de identidade entre x e Sócrates, estaremos diante de um problema insolúvel, pois não teremos mais como negar a existência. Considere, por exemplo, (ii) “~Ex Ex(x = Sócrates)”. Segundo o princípio da generalização existencial, os nomes podem ser nesse caso substituídos por variáveis. Nesse caso (ii) pode ser substituido por (iii): “~Ey Ex(x = y)”. Mas isso é o mesmo que dizer que algo que não existe, existe. Por isso, ao invés de (i) preferimos adotar (iv) “Ex(x socratiza)”, pois (iv) pode ser negado por (v) “~Ex Ex(x socratiza)”, sobre o que não podemos aplicar o princípio da generalização existencial.

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substituirmos o verbo socratizar por descrições definidas, de modo que, para

ilustrar, tenhamos algo como:

Ex(x foi o inventor da maiêutica, x foi o mestre de Platão, x foi o marido de Xantipa etc.).

Uma vez feito isso podemos analisar as descrições definidas russellianamente,

valendo-nos apenas de predicados quantificados como na seguinte ilustração,

um pouco mais aprimorada:

Ex(x foi inventor da maiêutica e exatamente um x foi inventor da maiêutica, x foi mestre de Platão e exatamente um x foi mestre de Platão, x foi marido de Xantipa e exatamente um x foi marido de Xantipa etc.)

É verdade que essa espécie de explicação descritivista dos nomes próprios

encontra dificuldades nas objeções feitas por Kripke, Donnellan e outros à teoria

do feixe dos nomes próprios, a teoria segundo a qual nomes próprios são

abreviações de feixes de descrições definidas. Contudo, é preciso notar que,

diversamente de um preconceito corrente, essas objeções pouco afetam versões

mais sofisticadas da teoria descritivista, tendo sido em sua maior parte

respondidas por J.R. Searle.1 Além disso, a versão mais elaborada da teoria do

feixe que irei propor no capítulo 9 desse livro (que organiza o feixe através de

metadescrições e que incorpora os elementos positivos das próprias concepções

de Kripke) faz com que as mencionadas objeções à concepção fregeana da

existência fiquem completamente fora de lugar.2

1 Ver J.R. Searle: Intentionality (Cambridge University Press: Cambridge 1983), cap. 9. Ver também as avaliações de David Braun e Marga Reimer em seus respectivos artigos para a Stanford Encyclopedia of Philosophy (internet).2 A teoria defendida no capítulo 9 encontra-se sintéticamente exposta em C.F. Costa: “A Meta-Descriptivist Theory of Proper Names”, Ratio 24, 2011.

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A grande vantagem da maneira de conceber a existência propugnada por

Frege é que não encontramos problemas com a negação da existência. Pois

suponha que a existência seja uma propriedade do objeto. Nesse caso não temos

mais como negar a existência! Se ao dizermos “Vulcano não existe” a negação

da existência é aplicada ao próprio objeto, temos primeiro de identificar o

objeto, para então podermos negar que ele possui a propriedade de existir. Mas

como ao identificarmos o objeto já estamos assumindo que ele existe, caímos

em contradição. Ou seja: temos de admitir que Vulcano existe para podermos

negar que ele existe, daí resultando a impossibilidade de negar a sua existência.

A concepção de Frege e Russell evita essa catástrofe. Pois tudo o que fazemos

ao negar a existência de Vulcano é admitir que o conceito de Vulcano não cai

no conceito de existência por não ser um conceito preenchido ou satisfeito ou

efetivamente aplicável. Substituindo o nome ‘Vulcano’ pelo predicado

‘vulcaniza’, a sentença fica sendo “~Ex (x vulcaniza)”, ou, na análise proposta

“~Ex(x é o planeta que orbita entre Mercúrio e o Sol)” ou, mais detalhadamente,

“~Ex (x é um planeta que orbita entre Mercúrio e o Sol e para qualquer y, se y

for um planeta que orbita entre Mercúrio e o Sol, y = x)...”

Podemos agora interpretar o próprio conceito fregeano de existência em

termos de regra conceitual. Admitindo – em desacordo com a terminologia

artificial de Frege – que aquilo que chamamos de conceitos são os sentidos dos

termos predicativos, e não as suas referências, e aceitando a venerável idéia

kantiana de que conceitos são regras, podemos agora parafrasear a noção

fregeana de existência como sendo a do preenchimento ou satisfação da regra

conceitual, a saber, da regra de aplicação do termo predicativo. Além disso,

considerando que o preenchimento ou satisfação de um conceito ou regra

conceitual nada mais é do que a sua aplicação à propriedade correspondente

singularizada em relação a ao menos um objeto particular, podemos também

dizer que a atribuição de existência nada mais é do que a atribuição de efetiva 124

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aplicabilidade de uma regra conceitual a ao menos uma propriedade

singularizada (entendendo-se por ‘efetiva aplicabilidade’ aquela que não é

meramente hipotética, mas que possui certa duração no tempo, a duração da

existência da propriedade singularizada). Ou seja: o metaconceito de existência

é uma metaregra de aplicação aplicável a regras conceituais de caracterização e

o critério de aplicação dessa metaregra é a aplicabilidade da regra conceitual de

caracterização a qual ela se aplica. Essa aplicabilidade da regra conceitual de

ordem inferior é, por sua vez, aquilo que produz a verdade da frase aberta do

tipo Ex(...), a saber, a verdade da atribuição de existência pela satisfação do

conceito por algo que sob ele cai.

Com isso encontramos também uma maneira de explicar porque de algum

modo tudo existe. Embora a existência seja tipicamente atribuída a propriedades

e objetos do mundo real, a existência pode ser atribuída também a objetos

imaginários ou concebíveis ou até mesmo contraditórios. Até da própria

existência pode ser dito que ela existe. Ora, isso é assim porque as regras

conceituais podem ser aplicadas na imaginação ou em um mundo ficcional. A

Alice do conto “O mágico de Oz” não existe no mundo real; mas ela existe no

pequeno mundo ficcional construído nessa estória. Ela existe porque temos

regras para a sua identificação aplicáveis no mundo ficcional, no qual são de

fato aplicáveis, preenchidas, satisfeitas (ela é a menina de oito anos cuja casa foi

levada por um tufão, que encontrou amigos com os quais foi pedir ajuda ao

mágico etc.).

O caso da atribuição de existência a contradições como “o quadrado

redondo” já é mais difícil, pois não podemos construir uma regra de

identificação. Por isso faz sentido reconhecer que o quadrado redondo não

existe, no sentido de que não podemos construir uma regra para a sua

identificação, o que o torna um objeto impossível. Contudo, se tudo o que

queremos dizer é que podemos combinar sintáticamente os adjetivos quadrado e 125

Page 126: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

redondo, a regra que permite essa aplicação é aplicável, donde o quadrado

redondo – nesse sentido irrelevante – existe. Mas nesse caso o que queremos

dizer é mais propriamente expresso pela frase metalingüística: “O ‘quadrado

redondo’ existe (como expressão gramaticalmente correta)”.

Finalmente, sabemos que a existência existe no sentido de que sabemos que a

aplicabilidade de regras conceituais existe. Ela existe no sentido de que podemos

construir uma metametaregra que se aplique a metaregras de existência, cujo

critério de aplicação é a aplicabilidade de regras conceituais de primeiro nível.

Como essas metaregras se aplicam (como as coisas existem), a metametaregra

que demanda a aplicabilidade das metaregras para se tornar aplicável a elas

também se aplica, o que nos permite seguramente concluir que a existência

existe.

8. Excurso especulativo (i): existência e experiência fenomenal

É instrutivo considerar o que acontece quando comparamos o famoso insight

fenomenalista de John Stuart Mill sobre a “matéria” ou “substância” e a

concepção de existência como aplicabilidade conceitual. Mill parte da admissão

de que tudo a que temos acesso para informar-nos sobre o mundo externo são

nossas próprias sensações, posto que nenhuma de nossas experiências é capaz de

transcender o assim chamado “véu das sensações”. Mas o mundo externo é

diferente das sensações por sua objetividade, que foi analisada pelo próprio

Frege em termos de sua experienciabilidade intersubjetiva, além de uma usual

permanência na independência da vontade. Entretanto, se tudo o que nos é dado

são fenômenos sensoriais, então como justificar o mundo externo, a matéria, a

substância? A resposta de Mill consiste em sugerir que embora a matéria ou

substância não seja constituída de sensações, ela não é mais do que a certificada,

garantida, permanente possibilidade de sensações. Diversamente das sensações,

as permanentes possibilidades de sensações são para Mill objetivas, uma vez 126

Page 127: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

quem, embora diferentes sujeitos não possam ter acesso à mesma sensação, eles

podem ter acesso às mesmas possibilidades de sensação... Os seguintes extratos

de seu texto servem para esclarecer a sua tão sugestiva quanto controversa

idéia1:

A concepção que formo do mundo existente em qualquer momento compreende, juntamente com as sensações que estou sentindo, uma variedade incontável de possibilidades de sensação – notadamente, o todo daquelas que a observação passada me diz que eu poderia, sob quaisquer circunstâncias suponíveis, experienciar nesse momento (...). Minhas sensações presentes são geralmente de pouca importância e são, além do mais, fugazes; as possibilidades, ao contrário, são permanentes, sendo isso o que mais distingue a nossa idéia de substância ou matéria da nossa noção de sensação. (...) apesar das sensações cessarem, as possibilidades continuam existindo; elas são independentes da nossa vontade, da nossa presença e de tudo o que nos pertence. (...) Outras pessoas não têm nossas sensações exatamente quando e como as temos, mas têm nossas possibilidades de sensação. (...) As possibilidades permanentes são comuns tanto a nós quanto aos nossos semelhantes; as sensações reais não. (...) O mundo de sensações possíveis, que se sucedem umas às outras segundo leis, está tanto em outros seres quanto está em mim; tem portanto uma existência fora de mim; é um mundo exterior.

Em um ponto fundamental o texto é claramente equívoco. É compreensível a

posição idealista segundo a qual o mundo externo seria constituído de perceptos

cuja experiência é continuamente (permanentemente) possível, mesmo que não

atuais. Mas os objetos materiais constitutivos do mundo externo não podem ser

reduzidos à simples “possibilidade permanente de sensações”, uma vez que a

possibilidade enquanto tal, permanente ou não, é singular: ela é sempre uma

única e a mesma, enquanto as coisas que constituem o mundo são múltiplas e

diversificadas.

Ora, quando consideramos essa concepção de Mill à luz de nossa

interpretação do conceito de existência em Frege, vemos que aquilo que o 1 J.S. Mill: An Examination of Sir William Hamilton Philosophy (1865), cap. XI.

127

Page 128: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

primeiro chama de permanente possibilidade de sensações tem a ver com a

existência dos objetos e não com eles próprios. Pois se precisamos de uma regra

conceitual para a identificação do objeto, dessa regra devem se derivar uma

multiplicidade de configurações constitutivas de critérios de aplicação, a serem

no final das contas dados como configurações de sensações ou perceptos. Ora,

se dizer que um objeto material existe é dizer que o seu conceito é aplicável,

então dizer que ele existe é também dizer que as configurações sensoriais que

temos ao experiênciá-lo são permanentemente, garantidamente presentificáveis

sempre que forem dadas as condições adequadas para a sua experiência. Se a

isso adicionarmos que o critério para que uma configuração criterial de

sensações possa ser interpretada como uma configuração objetiva de

propriedades criteriais constitutivas de um objeto externo é a garantida ou

permanente experienciabilidade dessas sensações usualmente aliada à

independência da vontade, então dizer que uma regra criterial é garantidamente

e continuamente aplicável é o mesmo que admitir a existência do objeto no

mundo externo. Falar da permanente ou garantida possibilidade de sensações

vem a dar no mesnmo que falar da existência das coisas empíricas – uma

existência que se demonstra através de atos verificacionais que nos certificam ou

garantem que as mesmas configurações criteriais poderão ser sempre

reexperienciadas, dando-nos a idéia da permanência das coisas no tempo

(existir, como notou Kant, é “ser no tempo”).

Isso nos faz ver que a existência não pode ser confundida com uma

aplicabilidade em princípio, meramente potencial, da regra conceitual. A regra

de identificação do homem das neves, por exemplo, se bem construída, é em

princípio aplicável, ela é potencialmente aplicável, embora a sua aplicação

nunca tenha sido e quase certamente nunca será confirmada. Ao atribuirmos

existência não estamos falando de uma aplicabilidade em princípio, mas da

aplicabilidade que de algum modo foi confirmada e que será inevitavelmente 128

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encontrada por quem quer que, em circunstâncias adequadas, tente aplicar a

regra. Para designar esse tipo de aplicabilidade uso a expressão ‘efetiva

aplicabilidade’, querendo com isso ressaltar que ela não é casual, nem subjetiva,

nem esporádica, tendo sido verificacionalmente confirmada, direta ou

indiretamente. Essa efetiva aplicabilidade é também contínua ou permanente, no

sentido de que a qualquer momento que se pretenda aplicar a regra conceitual,

dadas as circunstâncias adequadas, ela se aplica (a efetiva aplicabilidade dura

enquando durar o objeto de sua aplicação, ou seja, dura o quanto ele puder ser

dito existente). Quando tomamos consciência de que algo existe, o que acontece

é que tomamos conhecimento de que a aplicabilidade da regra conceitual se

encontra garantida por experiências de sua aplicação, sejam elas quais forem.

Considere os exemplos. Se o sentido (conteúdo conceitual) do termo singular

‘Vênus’ é a sua regra de identificação, falar da existência do objeto referido pelo

nome ‘Vênus’ torna-se o mesmo que falar da efetiva aplicabilidade da regra de

identificação desse termo. A compreensão disso torna mais claro que a negação

da existência não é predicação de coisa alguma. Se digo: “Vulcano não existe”,

estou dizendo apenas que a regra criterial que constitui o conceito de Vulcano

não possui a propriedade de ser efetiva e continuadamente aplicável, posto que

até hoje, malgrado esforços, ninguém conseguiu aplicá-la.

Aqui poderia ser levantada a objeção de que nós antropomorfizamos a

existência ao fazê-la depender da existência de sujeitos epistêmicos. A isso

podemos responder primeiro que uma regra pode ser efetivamente e

continuamente aplicável na independência de sua aplicação ter sido

efetivamente realizada por qualquer um de nós. Ela pode ser garantidamente

aplicável mesmo antes de ter sido inventada ou aprendida, no sentido de que se

tal regra fosse apreendida ou inventada por algum sujeito cognitivo, ela se

demonstraria efetivamente e continuamente aplicável na independência de sua

vontade. O mesmo pode ser dito da existência. Em um mundo no qual não 129

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existissem seres humanos capazes de identificar a estrela da manhã, ela nem por

isso deixaria de existir, e a razão pela qual dizemos isso é que sabemos que em

tal caso a regra para a sua identificação seria continua e efetivamente aplicável,

pois caso existisse algum ser cognoscitivo capaz de institui-la e aplicá-la e ele

decidisse tentar aplicá-la, ele seguramente seria bem sucedido! Ou seja: uma

coisa existe se e somente se, no caso de existir uma regra para a sua

identificação, essa regra for efetivamente aplicável no tempo de duração dessa

coisa, o que não depende nem da existência concreta da regra em alguma mente,

nem de sua aplicação por nós. Esse argumento ratifica a idéia de que o existir de

uma coisa não consiste em suas propriedades singulares (como as do sol de ser

redondo e luminoso), mas no fato de o seu conceito ser satisfeito, que é o fato de

a regra de aplicação do termo geral ser efetiva e continuamente aplicável.

Pode-se também objetar que se a existência pertence ao conceito, se ela é

uma propriedade de uma regra, então parece que ela teria a ver tão somente com

a linguagem e estados psicológicos que a instanciam e não com as entidades que

constituem o mundo objetivo... mas que isso soa estranho, pois a existência

parece ter a ver com a realidade objetiva pertencente às próprias coisas, como o

fato de aquilo que existe “estar sendo dado no mundo”. A resposta é que assim

como dizer que um objeto existe é dizer que o seu conceito tem a propriedade de

ser satisfeito, dizer que um objeto existe é dizer que ele mesmo tem a

propriedade de cair sob o seu conceito. Em nossos termos: se dizer que um

objeto existe é dizer que a regra de aplicação de seu conceito é a ele

efetivamente aplicável, então dizer que esse mesmo objeto existe é dizer que ele

é tal que possui a propriedade de ter a regra de aplicação constitutiva de seu

conceito efetivamente aplicável a si mesmo. Com isso conferimos à existência a

espécie de objetividade que de direito lhe pertence, pois mostramos em que

consiste o “estar sendo dado no mundo” daquilo que existe, que nada mais é do

130

Page 131: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

que ter a propriedade de ser objeto de efetiva aplicação de uma regra conceitual

virtualmente existente.

O paralelo entre o conceito de existência em Frege e o de existência em nossa

reconstrução do sentido como regra é rigoroso:

Conceito de existência (Frege) =Um conceito de segunda ordem que para a sua satisfação demanda que o conceito de primeira ordem que sob ele cai seja satisfeito por ao menos um objeto.

Conceito de existência (reconstruído) =Uma regra conceitual de segunda ordem que para a sua aplicação demanda que a regra conceitual-criterial de primeira ordem seja efetivamente aplicável a pelo menos um objeto.

A vantagem dessa última forma de análise é epistemológica: somos capazes

de melhor perscrutar a natureza de nossas atribuições de existência se pudermos

investigar as regras conceituais em termos das configurações criteriais que as

satisfazem a ponto de permitir a sua efetiva aplicação.

9. Excurso especulativo (ii): existência e objetualidade fenomenal

Mas se o discurso sobre as permanentes possibilidades de sensação não é

caracterizador dos objetos materiais, mas de sua existência, pode ainda o

fenomenalista parafrasear o que entendemos por objetos materiais? Pode nossa

paráfrase da existência como aplicabilidade da regra conceitual ser de algum

auxílio para o fenomenalista?

Sobre essa questão quero fazer um segundo e ainda mais especulativo

excurso, que foge ao nosso presente questionamento e para ser satisfatoriamente

desenvolvido demandaria uma detalhada investigação em filosofia da percepção.

Primeiro parece-me haver uma razão muito forte a favor do fenomenalismo que

é a seguinte. Imagine que no futuro sejam desenvolvidas muito boas máquinas 131

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produtoras de realidade virtual. Uma pessoa entra em uma dessas máquinas e

todos os seus sentidos passam a ser alimentados por estímulos vindo de

computadores fazendo-a, por exemplo, ter a ilusão sensorial de que se encontra

em uma cidade da China nos tempos de Gengis-Kahn. Essa sugestão nada tem

de impensável ou impossível. Mas ela se torna perturbadora quando

consideramos que não parece haver nada que nos permita distinguir o nosso

mundo presente de um mundo de aparências produzidas em nossos cérebros.

Tudo o que nos é dado à experiência são, com efeito, grupamentos mutáveis de

sensações dos mais variados tipos. A própria causalidade não precisa ir além

disso; afinal, ela também pode ser mimetizada no mundo virtual, pois quando

observamos um objeto causar um efeito em outro, tudo o que nos é dado são

complexos grupamentos de sensações que se sucedem entre si.1

Minha sugestão para tratar desse problema consiste em remontar ao ponto de

vista já apresentado, segundo o qual a existência do objeto é a efetiva e contínua

possibilidade de experienciarmos configurações de dados sensíveis que atuam

como critérios para aplicação de regras cognitivo-conceituais. Mas se a

existência do objeto é a efetiva aplicabilidade da sua regra de identificação, ou

seja, a efetiva possibilidade de satisfação de modos de apresentação sensoriais

unidos por alguma regra, então (ao menos para nós) o próprio objeto existente

nada mais deve ser além de conjuntos de propriedades particularizadas (tropos)

que satisfazem configurações criteriais constitutivas da multiplicidade de modos

de apresentação do objeto (sentidos), conquanto sejam considerados sob o ponto

de vista de sua contínua possibilidade de satisfação. Essa solução, que retoma de

modo corrigido o insight de Mill, a ele adiciona, como unificador das

configurações sensoriais, uma regra cognitivo-conceitual.

Restringindo-nos a objetos particulares, chegamos a algumas caraterizações

iniciais. A primeira delas é a do objeto pensado ou concebido:

1 Cf. Alan Ryan, The Philosophy of John Stuart Mill, p. 96.132

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1. Objeto concebido = conjunto meramente concebido de configurações criteriais constitutivas de modos de apresentação (sentidos) unificáveis pela regra de identificação do objeto pelo termo singular.

A segunda caracterização é a da existência do objeto:

2. Existência do objeto = efetiva aplicabilidade da regra de identificação do objeto por um termo singular através da satisfação de configurações criteriais constitutivas de modos de apresentação (sentidos) por ela unificáveis.

A terceira caracterização, que decorre das anteriores, é a de objeto existente,

a referência do termo singular:

3. Objeto existente (“ser”) = conjunto das configurações criteriais constitutivas de modos de apresentação (sentidos) unificáveis pela regra de identificação do objeto pelo termo singular, a qual se demonstra efetivamente aplicável.

Note-se que quando falamos do objeto existente, não estamos apenas falando

dos modos de apresentação conhecidos, que sabemos que são satisfeitos, mas

também de modos de apresentação desconhecidos, a serem descobertos, mas que

ainda assim sabemos serem unificáveis pela regra.

Comprometer-nos-ia essa posição com o idealismo ou com alguma forma de

anti-realismo? Espero que não. Embora os feixes de propriedades criteriais

geralmente só nos possam ser apresentados como sensações, elas são peculiares:

(i) elas são dados sensíveis considerados como efetivamente e continuadamente

experienciáveis; sabemos que essas sensações são efetiva e continuamente

experienciáveis com base na garantia oferecida por experiências verificacionais

virtualmente intersubjetivas, ou ao menos através de inferências baseadas em

outras experiências verificacionais também virtualmente intersubjetivas... Além 133

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disso, (ii) esses dados sensíveis são experienciáveis em circunstâncias

específicas que podem ser pré-determinadas; nessas circunstâncias eles são

experienciados em sua relação com outros objetos, os quais são situados em um

espaço físico intersubjetivo e não em um espaço psicológico subjetivo. A

hipótese é a de que uma vez satisfeitas condições como essas as configurações

de dados sensíveis que satisfazem a efetiva aplicabilidade da regra conceitual

podem passar a ser interpretadas de modo fisicalista, como configurações de

propriedades singularizadas, a saber, configurações de tropos, pertencentes ao

mundo externo e capazes de constituir os próprios objetos materiais. Essa

hipótese está em conformidade com a sugestão de Frege de que a referência não

pode nos ser dada sem o sentido: não podemos ter qualquer idéia do objeto

independentemente de seus modos de apresentação cognitivos, de seus sentidos

– não podemos falar da Lua, por exemplo, sem caírmos numa exposição de

modos de apresentação.

Resumindo: segundo a maneira de ver recém-aventada, o objeto pensado

seria um conjunto de sentidos, de modos de apresentação meramente

concebidos, contendo critérios de identificação sensoriais exprimíveis por um

termo singular, os quais são constitutivos da regra de identificação que os

unifica. Já o objeto existente é um conjunto de tropos resultantes de uma

interpretação fisicalista dos dados sensíveis formadores de uma multiplicidade

de configurações criteriais concebidas como efetivamente dadas, as quais

instituem modos de apresentação expressos pelo termo singular e unidos por

uma regra de identificação que é garantidamente e continuamente aplicável. A

objetividade do objeto somente é garantida pelo fato de os dados sensíveis por

nós experienciados serem pensados como capazes de ser em princípio

efetivamente, continuamente capazes de experienciação intersubjetiva.

10. Referência da frase como o fato134

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Voltando a Frege, passemos agora à referência da frase. Ele a entende como

devendo ser aquilo que permanece o mesmo quando mudamos o sentido dos

componentes da frase sem alterar a sua referência. Isso acontece quando

substituímos “A estrela da manhã é iluminada pelo sol” por “A estrela da tarde é

iluminada pelo sol”; aqui as referências dos componentes permanecem as

mesmas. Logo, a referência da frase também deve permanecer a mesma. Mas o

que não se alterou? A resposta de Frege é: o valor-verdade. Ambas as frases

permanecem verdadeiras. Disso ele conclui que ao menos na linguagem

extensional a referência das frases é o seu valor-verdade. Em adição a isso Frege

nota que a busca da verdade é o que nos leva do sentido para a referência. E o

valor-verdade é certamente da maior importância (Bedeutung) para a lógica, por

ser aquilo que deve ser preservado em argumentos válidos.

Não obstante, independentemente de qualquer vantagem teórica que essa

sugestão possa trazer, ela é profundamente implausível. A conseqüência anti-

intuitiva óbvia de se supor que a referência da frase seja o seu valor-verdade é

que todas as frases verdadeiras passam a ter a mesma referência, que é o

Verdadeiro (das Wahre), enquanto todas as frases falsas passam a ter como

referência o Falso (das Falsche). Contudo, é completamente contra-intuitivo que

frases que nada têm em comum, como “2 + 2 = 4” e “Napoleão nasceu na

Córsega” tenham a mesma referência; tão contra-intuitivo quanto a sugestão de

que uma frase como “2 + 2 = 4 é o mesmo que Napoleão nasceu na Córsega”,

por conter duas frases referindo-se ao verdadeiro, seja verdadeira. Além disso, a

referência da frase, que deveria pertencer ao mesmo domínio ontológico da

referência dos seus componentes, passa usualmente para outro domínio:

enquanto a referência do nome ‘Napoleão’ é o próprio Napoleão de carne e osso,

a referência de “Napoleão nasceu na Córsega” é o objeto abstrato o Verdadeiro.

Por fim, mesmo sob a perspectiva da semântica fregeana essa idéia é

inadequada, pois viola o princípio da composicionalidade: a referência da frase, 135

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sendo o seu valor-verdade, não pode ser constituída da referência de suas partes,

pois o valor-verdade não tem partes.1

Esse resultado é tanto menos aceitável por existir uma alternativa muito mais

intuitiva à mão, a qual, como notou Anthony Kenny, não chegou a ser sequer

aventada por Frege.2 Podemos, como Wittgenstein, Russell e outros fizeram,

admitir que a referência de uma frase possa ser o fato verificador, que como já

vimos tanto pode ser estático (situação, estado de coisas...) como dinâmico

(evento, processo, acontecimento...). Assim, a referência das frases “A torre

Eiffel é de metal” ou “Amanhã irá chover” ou “A soma dos ângulos de um

triângulo é 180º” são fatos que verificam o que nelas é pensado. Como o próprio

Kenny reconhece, essa alternativa envolve grandes dificuldades e carece de

desenvolvimento adequado.3 A sua dificuldade, porém, não pode ser razão para

que ela seja precipitadamente rejeitada.

1 Frege reconhece isso em Frege’s Lectures on Logic: Carnap’s Jena Notes, 1910-1914, p. 87.2 Anthony Kenny: Frege: An Introduction to the Founder of Analytic Philosophy, p. 133.3 Uma conhecida mas a meu ver irrelevante dificuldade com a identificação da referência da frase com o fato foi encontrada pelo fregeano Alonzo Church. Trata-se do curioso argumento do estilingue, destinado a provar que a referência das frases mais diversas é o seu valor-verdade. Considere as seguintes frases: (1) Sir Walter Scott é o autor de Waverley; (2) Sir Walter Scott é o homem que escreveu as 29 novelas de Waverley; (3) O número que é tal que Walter Scott é o homem que escreveu esse número de novelas de Waverley é 29; (4) O número de condados em Utah é 29. Assumindo a plausibilidade de que (2) e (3) sejam frases, se não sinônimas, ao menos co-referenciais, então (1) tem a mesma referência que (4). Como (1) diz respeito a um fato completamente diferente de (4), parece que a única coisa que resta como referência é a verdade de ambas as frases... O problema com esse argumento é que (2) e (3) não parecem ser nem frases sinônimas nem co-referenciais, pois a frase (2) é sobre Sir Walter Scott (que tem a propriedade de ser o autor de Waverley), enquanto a frase (3) é sobre o número 29 (que tem a propriedade de se instanciar no número de novelas de Waverley escritas por Sir Walter Scott). Mais além, o fato referido por (2) é o de que Walter Scott escreveu as novelas de Waverley, enquanto o fato referido por (3) é o de que o número 29 tem a propriedade de se instanciar como o número de novelas de Waverley. Embora tendo algo em comum, esses fratos parecem ser diferentes. Que referências diferentes tenham algo em comum não deve servir de álibi para a adoção da idéia de que a referência deva ser a mesma.

136

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Uma dificuldade com essa idéia relacionada à semântica fregeana é que

podemos ter uma variedade de frases exprimindo pensamentos diferentes, mas

referentes a um mesmo fato. Considere primeiramente as duas seguintes frases

predicativas:

1. A Lua é branca. 2. A Lua reflete todos os comprimentos de onda

As expressões predicativas dessas duas frases, eu diria, têm a mesma

referência, que é a propriedade singularizada da brancura da lua. Mas elas

diferem no sentido. Contudo, como tanto o nome como os predicados têm as

mesmas referências, parece que elas devem se referir ao mesmo fato. Quero

chamar a esse fato que pode ser referido de várias maneiras de fato

fundamentador. O problema é: que fato é esse? Haverá uma forma lingüística

standard de nos referirmos a ele? No caso em questão eu preferiria considerar a

frase (1) como exprimindo o fato fundamentador, pois sem a definição

fenomenal do conceito de brancura não seria possível definir o que é a brancura

de um objeto em termos físicos. Assim, (2) se refere ao mesmo fato que (1)

porque a frase “Um objeto é branco é o mesmo que um objeto que todos os

comprimentos de onda do aspectro visível”. Assim, podemos fazer o raciocínio:

1. A Lua é branca.2. A Lua é um objeto3. Um objeto é branco = um objeto que reflete todos os comprimentos de

onda.4. (1,2,3) A lua reflete todos os comprimentos de onda.

Esse é, porém, um exemplo dentre muitos outros. Considere agora as seguintes

frases de identidade:

137

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Exemplo I:

1. A estrela da manhã é a estrela da manhã,2. A estrela da manhã é a estrela da tarde,3. A estrela da manhã é Vênus,4. Vênus é o segundo planeta a orbitar o sol,5. A estrela da manhã é o segundo planeta a orbitar o sol.

precisam designar um mesmo fato. Qual seria aqui a descrição privilegiada do

fato fundamentador que ultimadamente verifica os pensamentos expressos por

todas essas frases, além dos pensamentos expressos por um número

indeterminado de outras frases de identidade que podem ser produzidas acerca

de Vênus? Minha sugestão meramente conjectural é a de que essa tarefa pode

ser realizada por frases de identidade entre nomes próprios. Admitindo por

hipótese que seja correta, em sua intuição fundamental, a teoria dos nomes

próprios como abreviações de feixes de descrições supostamente sugerida por

Frege, então o nome próprio ‘Vênus’ abrevia em seu sentido modos de

apresentações exprimíveis através de descrições como ‘a estrela da manhã’, ‘a

estrela da tarde’, ‘o segundo planeta a orbitar o sol’ etc. Ora, nesse caso a frase

“Vênus é (o mesmo que) Vênus” seria capaz de descrever o fato fundamentador

das verificações das frases de 1 a 4 e outras mais. Por exemplo: se o nome

‘Vênus’ abrevia as descrições ‘a estrela da manhã’ e ‘a estrela da tarde’, de

“Vênus é Vênus” podemos derivar a frase 2 e mesmo todas as outras.

Essa possibilidade parece confirmar-se com exemplos da matemática.

Considere as identidades:

Exemplo II:

1. 3 + 1 = 3 + 1,2. 3 + 1 = 2 + 2,3. 2 + 2 = 4,4. 4 = √16,5. √16 = 3 + 1.

138

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As expressões numéricas de cada lado dessas igualdades são termos

singulares referindo-se a um único número, o número quatro. Se admitirmos a

teoria do feixe então o nome próprio privilegiado para todas essas descrições é

‘4’, pois esse nome pode ser entendido como abreviando as outras descrições.

Assim, considerando que o nome ‘4’ inclui os modos de apresentação, podemos

de “4 = 4” derivar a frase “√16 = 3 + 1”, o mesmo procedimento podendo ser

aplicado às outras frases. Certamente, é preciso pressupor um hoje questionável

descritivismo sobre nomes, mas essa dificuldade será sanada mais tarde nesse

livro, quando uma forma articulada de descritivismo causal for desenvolvida.

Finalmente, essa estratégia deveria ser complementada pela distinção entre o

fato fundamentador e as configurações criteriais que objetivamente verificam os

pensamentos expressos pelas frases dos exemplos I e dos exemplos II, as quais

podem ser consideradas subfatos. Assim, para além dos sentidos como regras de

identificação, parece que o fato de a estrela da manhã ser a estrela da tarde seria

um subfato do fato de Vênus ser Vênus. Similarmente, o fato de que 2 + 2 = 4

seria um subfato do fato de que 4 = 4. Nesse caso, cada frase de identidade

contendo descrições definidas diferentes terá uma sub-referência em um subfato

diferente, que será aquilo que satisfaz ou preenche o modo de apresentação da

referência que unifica essas diversas frases de identidade concernentes ao

mesmo objeto, que é o fato fundamentador da verificação. Obviamente, essas

considerações demandam desenvolvimento. Queria apenas demonstrar que a

questão está longe de ser destituída de esperança.

11. O sentido da frase como o pensamento

Voltando a Frege, passemos agora às frases (Sätze). Aqui ele fez uma

constatação definitiva, qual seja, a de que o sentido da frase completa é o

pensamento (Gedanke) por ela expresso. Ele chega a esse resultado pela 139

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aplicação do seu princípio da composicionalidade, demandando que o sentido de

uma expressão complexa seja formado pelos sentidos de suas expressões

componentes apresentadas em certa ordem. Se, por exemplo, na frase “A estrela

da manhã é um planeta” substituirmos a expressão ‘a estrela da manhã’ por ‘a

estrela da tarde’, que é co-referencial, mas de sentido diverso, a referência da

frase não pode mudar, mas muda o sentido, e muda, sem dúvida, o pensamento

por ela veiculado. Como o pensamento é aquilo que se modifica quando um

componente da frase é substituído por um outro componente co-referencial mas

com sentido diverso, Frege concluiu muito coerentemente que o pensamento é o

sentido da frase.

A palavra ‘pensamento’ é ambígua. Ela também pode ser usada para designar

um processo psicológico de pensar, como na frase “Estava agora mesmo

pensando em você!” Mas ela também parece designar algo que independe de

ocorrências mentais particulares, um conteúdo de pensamento como o expresso

pelo proferimento “O pensamento expresso pela frase 12 x 12 = 144 é

verdadeiro”. Frege tinha esse último sentido em mente. Nesse sentido a palavra

‘pensamento’ é o único correspondente na linguagem natural a termos técnicos

denotadores daquilo que a frase diz, como ‘proposição’, ‘conteúdo

proposicional’ ou ‘conteúdo enunciativo’, razão pela qual a adotarei aqui.1

Para Frege faz parte do pensamento tudo o que contribui para a determinação

do valor-verdade da frase. Por isso as frases “A estrela da manhã é Vênus” e “A

estrela da tarde é Vênus” podem ser contadas como exprimindo pensamentos

diferentes: os termos singulares que compõem essas duas frases de identidade

referem-se ao mesmo planeta, mas por modos de apresentação diferentes, por

diferentes caminhos determinadores do seu valor-verdade, ou ainda, por

diferentes regras de identificação constitutivas dos seus procedimentos 1 Como nota Tyler Burge em “Sinning against Frege”, “a palavra ‘pensamento’ é o melhor substituto de ‘proposição’ por sua naturalidade semântica dentro do escopo apropriado à filosofia linguística”, pp. 227-8.

140

Page 141: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

verificacionais. (Já segundo Frege as sentenças “Alfredo não chegou” e

“Alfredo ainda não chegou” expressam o mesmo pensamento, pois o advérbio

‘ainda’ exprime apenas uma expectativa sobre a chegada de Alfredo, não

contribuindo para o valor-verdade.1)

12. O pensamento como o portador da verdade

Outra sugestão fregeana bastante plausível é a de que o portador da verdade não

é a frase, mas o pensamento. Para Frege aquilo que dizemos ser verdadeiro (ou

falso) deve ser sempre verdadeiro (ou falso) e só o pensamento, sendo imutável,

possui a estabilidade requerida. Eis como pode ser argumentado: Frases

idênticas exprimindo pensamentos diferentes podem possuir diferentes valores-

verdade; esse é o caso da frase indexical “Sinto dores”, cujo pensamento se

altera com o falante. E frases diferentes exprimindo o mesmo pensamento, como

“It rains” e “Il pleut”, se proferidas no mesmo contexto, devem ter o mesmo

valor-verdade. Assim, na relação entre pensamento e valor-verdade há uma co-

variância que falta à relação entre frases e valor-verdade, o que nos leva à

conclusão de que o portador da verdade é o pensamento e não a frase.2

Frege também sugeriu que aquilo que chamamos de fato é o pensamento

verdadeiro, pois quando o cientista descobre um pensamento verdadeiro ele diz

que descobriu um fato.3 Mas essa conclusão nada tem de forçosa, pois o cientista

também poderá dizer a mesma coisa – e com mais propriedade – entendendo por

fato aquilo que corresponde ao seu pensamento verdadeiro; afinal, é intuitivo

pensar que se ele descobre o pensamento verdadeiro é porque a fortiori ele

descobriu o fato que lhe é correspondente. A razão pela qual Frege pensava que

o fato é o pensamento verdadeiro repousa, aliás, em sua adoção da concepção da

verdade como redundância. A mais natural e plausível concepção de verdade, 1 G. Frege: “Der Gedanke”, p. 64 (paginação original).2 Ver C.F. Costa: “O verdadeiro portador da verdade“.3 Gottlob Frege: “Der Gedanke”, p. 74.

141

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porém, é a correspondencial, que sugere que fatos são complexos de elementos

objetivos, de algum modo isomórficos aos pensamentos que visam representá-

los.1 No que se segue pretendo completar minha leitura dos sentidos fregeanos

como regras semântico-cognitivas sob a perspectiva de quem prefere adotar a

teoria correspondencial da verdade.

13. O pensamento como a regra de verificação

Também os pensamentos podem ser parafraseados em termos de regras

semânticas. Como vimos ao examinarmos a semântica wittgensteiniana, o

sentido epistêmico da frase é a sua regra de verificação. Ora, se o sentido da

frase é o pensamento por ela expresso, então esse pensamento deve ser a própria

regra de verificação da frase. Como o sentido da frase é uma combinação de

regras semântico-cognitivas, o mesmo se pode dizer do pensamento, que no

caso da frase predicativa singular nada mais é do que a combinação da regra de

identificação do objeto (sentido do termo singular) com a regra de aplicação do

predicado (sentido do termo geral).

A identificação que especulativamente proponho entre sentido-pensamento e

regra de verificação da frase reforça-se pela sugestão fregeana de que o critério

para identificarmos aquilo que pertence ao pensamento é ter algum papel no

estabelecimento de sua verdade. Sendo assim, então o sentido-pensamento da

frase é o mesmo que o significado epistêmico identificado pelo verificacionista

com a regra (procedimento, método) que permite o reconhecimento da verdade

da frase, o que costuma redundar, como mostrou Wittgenstein, em um

ramificado de procedimentos verificacionais possíveis. Ora, se o pensamento é o

portador da verdade e ele é a regra de verificação, então é a própria regra de

verificação que é o portador da verdade (não em casos concretos de sua

aplicação, obviamente, mas na abstração deles). E como o que torna o

1 Ver C.F. Costa: “A verdadeira teoria da verdade”.142

Page 143: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

pensamento verdadeiro (assumindo a teoria correspondencial) é a sua

correspondência com o fato, o que torna a regra de verificação verdadeira deve

ser a correspondência das configurações criteriais por ela demandadas com

aquilo que às satisfaz e, em última análise, com o fato (ou os fatos) no mundo.

Mas isso é o mesmo que dizer que a regra de verificação é verdadeira quando

ela é satisfeita ou preenchida, melhor dizendo, quando ela é efetivamente e

continuamente aplicável. Assim, o pensamento será considerado verdadeiro

quando a regra de verificação que o constitui se demonstrar aplicável; e ele será

considerado falso quando a regra de verificação que o constitui não se

demonstrar aplicável. Daí que a efetiva aplicabilidade da regra de verificação

deve ser o mesmo que a verdade do pensamento, enquanto a sua efetiva

inaplicabilidade deve ser o mesmo que a sua falsidade. E o fato, sob esse

entendimento, não deixa de ser uma combinação de elementos por nós aceita

como sendo dada como certa, de um modo ou de outro. Por sua vez, tal

combinação deveria satisfazer a regra verificacional quando ela satisfaz ou

preenche as combinações de configurações criteriais demandadas pela regra

verificacional para que ela possa se demonstrar efetivamente aplicável no

sentido de corresponder a elas. O que chamamos de juízo, por sua vez, é o

reconhecimento que o sujeito epistêmico faz da efetiva aplicabilidade da regra

verificacional, de que a verificação de algum modo foi realizada, garantindo a

aplicabilidade. Por isso dizer “É verdade que p”, “Eu ajuízo que p” ou “Eu

afirmo que p” são coisas similares.

Essas admissões são reconhecidamente conjecturais. Elas sugerem, porém,

um secreto parentesco entre os conceitos de verdade e existência. Pois o

conceito de verdade aplicado ao conteúdo de pensamento se demonstra análogo

ao conceito de existência aplicado ao conceito-sentido do termo geral e do termo

singular. Considere: a verdade é a efetiva aplicabilidade da regra verificacional

constitutiva de um conteúdo de pensamento, enquanto a existência é a efetiva 143

Page 144: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

aplicabilidade da regra de aplicação ou identificação constitutiva de um

conteúdo conceitual. Em outras palavras: assim como a existência é a

propriedade de segunda ordem do conceito de sob ele cair um objeto, a verdade

deve ser a propriedade de segunda ordem do pensamento de sob ele “cair” o fato

que lhe corresponde. Ela é, pois, o correspondente da existência ao nível da

combinação de sentidos que constitui o pensamento. Ou ainda, expressando-nos

de um modo um tanto quanto hegeliano: a verdade é a existência do

pensamento, enquanto a existência é a verdade do conceito.

A essa consideração pode ser finalmente oposto que podemos dizer de um

fato que ele existe e que isso não é o mesmo que dizer de seu pensamento que

ele é verdadeiro. Afinal, se a verdade fosse o correspondente da existência ao

nível do fato, dizer que o fato existe seria o mesmo que dizer que o fato é

verdadeiro, embora possamos dizer que o objeto existe. A resposta que posso

dar a essa objeção repousa na constatação da flexibilidade e mesmo

rusticalidade da linguagem natural: ela nos permite dizer “Esse fato é

verdadeiro” no mesmo sentido de “Esse fato existe”, querendo dizer com isso

que o seu pensamento tem a propriedade de ser verdadeiro, que a sua regra de

verificação é satisfeita.

14. Pensamento e condição de verdade

É preciso também considerar a ligação entre o pensamento como regra de

verificação e aquilo que tem sido chamado de condição de verdade. A noção de

condição de verdade, como a de critério, é ambígua: ela pode ser parte da regra

verificacional que constitui o pensamento e que, se demonstrada efetivamente

aplicável, nos permite reconhecê-lo como verdadeiro. Mas ela também pode ser

aquilo que está no mundo e que satisfaz essa regra de modo a tornar o

pensamento verdadeiro. Nesse último caso ela é aquilo mesmo que torna o

pensamento verdadeiro. Assim, a condição de verdade para o pensamento 144

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expresso pela frase “Cambridge ganhou a corrida de botes” é o fato de

Cambridge ter ganhado a corrida de botes (ver exemplo da seção 11 do capítulo

anterior). Quando essa condição é dada, o pensamento reconhecido como

verdadeiro, a regra verificacional que o constitui é reconhecida como

efetivamente aplicável; quando essa condição não é dada o pensamento é

reconhecido como falso e a regra verificacional que o constitui é reconhecida

como efetivamente inaplicável. Quando a condição de verdade é dada, a própria

condição é um fato real; quando ela não é dada, ela é apenas um fato possível.

Há aqui uma distinção a ser feita entre a condição de verdade, o fato

verificador, e os critérios secundários que nos permitem inferir a verdade da

frase. Considere, por exemplo, a condição de verdade para a minha constatação

de que hoje é feriado. Essa condição é um fato institucional: o fato de que o

governo decretou feriado no dia de hoje. Mas eu posso vir a saber desse fato

com base em diferentes configurações criteriais, por exemplo, porque notei que

as lojas estão fechadas, porque há pouco movimento na free-way, porque

consultei o calendário... Esses critérios não são a condição de verdade, mas me

permitem inferir que ela está sendo dada como um estado de coisas no mundo.

Parece, pois, que aquilo que chamamos de a condição de verdade pode ser

entendido como um fato responsável pela satisfação de uma variedade de regras

criteriais secundárias. As diversas configurações criteriais exigidas atuam, pois,

como condições mais específicas para a constatação da verdade.

15. O status ontológico do pensamento

Antes de terminarmos é importante notar que para Frege os pensamentos

(incluindo os sentidos dos quais são compostos) seriam entidades platônicas

pertencentes a um terceiro reino ontológico, que não é nem psicológico nem

físico. Para ele há, primeiro, um reino de entidades físicas, como os objetos

concretos, que são objetivas. Elas são objetivas no sentido de serem 145

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interpessoalmente acessíveis e independentes da vontade: e são reais no sentido

de estarem situadas no espaço e no tempo. Há um segundo reino, das entidades

psicológicas, dos estados mentais que ele chama de representações

(Vorstellungen). Essas últimas são subjetivas, por não serem interpessoalmente

acessíveis e geralmente vezes dependerem da vontade. Contudo, nem por isso

elas deixam de ser reais, pois se encontram no espaço e no tempo, a saber, nas

cabeças dos que as têm. Há, por fim, um terceiro reino, dos pensamentos e dos

seus sentidos constitutivos. Esse reino é objetivo, posto que os pensamentos são

interpessoalmente acessíveis; mesmo assim ele não é real, posto que os

pensamentos não estão nem no espaço nem no tempo.

Com efeito, para Frege os pensamentos são atemporais, imutáveis, para

sempre verdadeiros ou falsos, além de não serem criados, mas descobertos por

nós. A razão que ele tem para introduzir esse terceiro reino de pensamentos é

que eles precisam ser objetivos – intersubjetivamente acessíveis – para serem

comunicáveis. Representações são, ao contrário, estados psicológicos subjetivos,

contingentes, variáveis. Por isso a única maneira de explicar como é possível

que sejamos capazes de compartilhar de um mesmo pensamento é distingui-lo

rigorosamente das representações psicológicas. Afora isso, é sempre possível

objetar que se os pensamentos estiverem no nível das representações

psicológicas, eles poderão sofrer variações de pessoa para pessoa (como o

variável sentimento que uma melodia desperta em pessoas diferentes); nesse

caso eles também não parecem possuir a estabilidade requerida ao papel de

portadores da verdade.

Apesar disso, muito poucos hoje aceitariam a solução platonista de Frege.

Afinal, ela parece comprometer-nos com uma duplicação dos mundos (o mundo

visível e o mundo inteligível) e com as demais dificuldades do platonismo. O

preço que Frege estava disposto a pagar para não se incorrer no subjetivismo

psicologista parece-nos alto demais.146

Page 147: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Acredito que as dificuldades antevista por Frege na sugestão de que o status

ontológico dos pensamentos seja meramente psicológico eram exageradas e que

não é difícil garantir a objetividade, a invariabilidade e a estabilidade dos

pensamentos psicologicamente concebidos. Para demonstrá-lo quero aplicar

uma estratégia muito simples, inspirada no particularismo ontológico dos

filósofos do empirismo inglês, de Locke a Hume, segundo o qual o universal

não existia para além da similaridade com uma idéia mental.1 Ora, chamando o

pensamento no sentido fregeano de pensamento-f, e chamando o pensamento

como mera ocorrência psicológica de pensamento-p, penso que podemos

garantir a invariabilidade e a estabilidade do pensamento-f sem hipostasiá-lo

como uma entidade platônica e mesmo sem recorrer a conjuntos de

pensamentos-p. Isso é possível através da seguinte definição:

Um pensamento-f X (Df.p) = um dado pensamento-p X instanciado em alguma mente ou algum outro pensamento-p Y qualquer igual a X, instanciado na mesma mente ou em alguma outra mente qualquer.2

Exemplificando: o pensamento-f de que a torre Eiffel é feita de metal pode

ser o pensamento-p que eu tenho em mente ao escrever essa frase ou, digamos, o

pensamento-p que você tem em mente ao lê-la, posto que eles são iguais.

Caracterizado pela disjunção entre pensamentos iguais instanciados em uma

1 Mesmo sem aceitar o imagismo de Berkeley, a idéia é exemplarmente expressa na seguinte passagem: “...uma idéia, que se considerada em si mesma é particular, torna-se geral ao ser feita para representar ou estar no lugar de todas as outras idéias particulares do mesmo tipo. (...) uma linha particular torna-se geral por ser tornada um signo, de modo que o nome linha, que considerado absolutamente é particular, ao ser um signo é tornado geral”. G. Berkeley: Principles of Human Knowledge, introdução, seção 12. Ver também David Hume: A Treatise of Human Nature, livro I, parte 1, seção VII.2 Ver C.F. Costa: Estudos Filosóficos, p. 126. Scott Soames aproxima-se de minha posição ao sugerir que proposições sejam tipos de eventos cognitivos (What is Meaning? Cap. 6). Mas ao recorrer a tipos (types) ele indesejavelmente recai nos mesmos problemas ontológicos já mencionados, contornados apenas ao preço de alguma confusão. Minha sugestão, recorrendo a igualdades com um token escolhido ao acaso é de molde a contornar as dificuldades mais evidentes.

147

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mesma mente ou em outra mente qualquer, o pensamento passa a ser

considerado na abstração de sua dependência de essa ou de aquela mente

humana específica na qual ele venha a se instanciar. Mesmo assim e por isso

mesmo, ele não deixa de ser psicológico, não menos do que qualquer um dos

pensamentos-p, posto que ele não é passível de ser considerado na

independência de sua instanciação em ao menos uma mente qualquer que o

pense. Assim, quando dizemos que temos um mesmo pensamento, o que

queremos dizer é apenas que temos conteúdos psicológicos de pensamento

instanciáveis que são iguais entre si. Essa seria uma maneira de trazer os

pensamentos do domínio das entidades platônicas para o domínio do

psicológico, sem um comprometimento com a psicologia transitória dos

indivíduos particulares.

Com efeito, parece que um erro muito comum em filosofia é ver-se

identidade numérica onde existe apenas identidade qualitativa ou, como prefiro

dizer, igualdade. É verdade que podemos falar do número 3 no singular e

podemos questionar o significado da palavra ‘vulgívaga’, usando o artigo

definido, mas isso é apenas por simplicidade de expressão. O que na verdade

temos em mente são ocorrências cognitivas de conceitos iguais do número 3 e

ocorrências cognitivas de significados iguais da palavra ‘vulgívaga’ e nada mais.

Podemos falar do pensamento de que 2 + 2 = 4, mas se não estamos nos

referindo a uma ocorrência desse pensamento, estamos nos referindo a uma ou a

outra ocorrência qualquer, sem querer distinguir qual ela seja, sendo essa a razão

pela qual falamos do pensamento e não dos pensamentos. A adoção de uma

definição como a proposta para o pensamento-f (que é facilmente generalizável

para conceitos ou sentidos fregeanos) é o máximo em abstração a que podemos

chegar sem recairmos em alguma das muitas formas de reificação platonista que

infectaram a filosofia em toda a sua história.

148

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Aqui se levanta porém a seguinte dúvida: mas como é possível que a

definição psicologicamente dependente do pensamento recém-sugerida é capaz

de garantir a objetividade dos pensamentos-f? Como vimos, para Frege se

pensamentos fossem entendidos como representações psicológicas, como é o

caso dos pensamentos-p, eles seriam subjetivos, não sendo susceptíveis de serem

comparados entre si. Daí a necessidade que Frege sente de admiti-los como

pertencentes a um terceiro reino, de pensamentos-f entendidos como entidades

não-psicológicas, platônicas. Mas essa conclusão parece precipitada. Não há

dúvida que aquilo que Frege chama de representações, os conteúdos mentais

psicológicos, podem ser em boa medida expressos pela linguagem e através dela

subjetivamente identificados e reidentificados como sendo os mesmos. É

verdade que um estado mental que só uma pessoa tem, por exemplo, uma aura

epiléptica, não é comunicável, a não ser indiretamente, por metáforas. Mas a

maioria dos estados mentais, como é o caso de sentimentos, imagens, sensações,

são coisa que todos nós somos capazes de ter e que podemos aprender a

identificar em nós mesmos, através de indução por exclusão, e, em outras

pessoas, através de indução por analogia, baseada em estados físicos

intersubjetivos acompanhantes. Estou consciente de que há argumentos

filosóficos importantes contra isso, mas este é um desses fatos que só filósofos

colocam em questão. É justo que esses paradoxos sejam seriamente discutidos

por razões heurísticas; mas não é justo que o fato indubitável que eles estão

colocando em dúvida seja desacreditado sempre que fazemos filosofia!1

1 Refiro-me principalmente ao famoso argumento da linguagem privada proposto por Wittgenstein, segundo o qual não é possível construir regras para a referência de expressões cujos correlatos empíricos são estados mentais, posto que não há como corrigir tais regras publicamente e regras publicamente incorrigíveis não se distinguem de impressões de regras (Investigações Filosóficas, parte I, sec. 258). Penso ter demonstrado que esse argumento é incorreto. O problema com ele é que as regras privadamente instituidas só serão incorrigíveis se forem logicamente incorrigíveis, pois regras incorrigíveis por razões práticas são perfeitamente concebíveis (pense, por exemplo, nas regras inventadas por Robinson Cruzoé em sua ilha). Contudo, é questionável se as regras de uma linguagem privada (como parece ser a nossa própria linguagem fenomenal) são

149

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É importante também salientar que não é necessário um modelo ou padrão

único que sirva como objeto de consideração intersubjetiva. Não há certamente

nenhuma instanciação de pensamento que sirva como um modelo fixo ao qual

recorremos. O que fazemos é simplesmente recorrer alternadamente a variedade

de modelos que nos são dados geralmente pela memória: a um e depois a outro,

que reconhecemos como sendo idêntico ao primeiro e assim por diante. Mas

nenhum deles existe sem estar sendo psicologicamente instanciado. E a

linguagem é o veículo de comunicação que permite a reprodução de igual

conteúdo psicológico de pensamento nas mentes dos ouvintes. Pode a primeira

vista parecer paradoxal que a linguagem seja capaz de reproduzir em outras

mentes e mesmo na própria mente repetidamente a mesma coisa subjetiva, o

mesmo conteúdo de pensamento, a mesma instanciação reconhecível de uma

combinação convencionalmente fundada de regras semânticas. Contudo, o

paradoxo é apenas aparente. Se a informação genética, por exemplo, se reproduz

idêntica em sucessivos indivíduos biológicos1, por que com as convenções, que

devidamente combinadas se instanciariam na constituição de pensamentos-p, e

logicamente incorrigíveis, pois isso depende da vigência de um princípio da incompartilhabilidade lógica dos estados mentais (se penetrássemos nas mentes de outras pessoas teríamos nossas próprias experiências de suas experiências, e nunca as suas próprias experiências enquanto tais, logo não estaríamos realmente verificando os seus estados mentais.). Há razões, contudo, para pensar que tal princípio da incompartilhabilidade lógica do mental seja falso. Basta para tal admitir que o estado mental do qual se tem experiência seja logicamente separável do sujeito (da consciência) que o tem, pois nesse caso será possível que dois sujeitos possam compartilhar de um mesmo conteúdo experiencial. É essa idéia impossível? Parece que não. Afinal é natural, por exemplo, imaginar um computador A lendo diretamente um programa instalado no computador B, ao invés de copiá-lo para só então lê-los em si mesmo). Para uma crítica mais detalhada ao argumento da linguagem privada, complementada por uma demonstração da razoabilidade de uma versão mais elaborada do tradicional argumento da analogia para outras mentes, ver C.F. Costa “Linguagem privada e o heteropsíquico”, em Critérios de realidade e outros ensaios, cap. 4.1 As próprias mutações são acidentes cuja probabilidade de incidência precisaria ser evolucionariamente calibrada. Só espécies cujos organismos seriam capazes de sofrer mutação em quantidades adequadas seriam capazes de se preservar. Uma espécie fixa, sem mutações, é algo provavelmente possível, mas que não possuiria a flexibilidade necessária à sobrevivência de seus membros.

150

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que são aptas a serem sustentadas em sua igualdade através de mecanismos de

correção, não poderia acontecer o mesmo?

Finalmente, vale recordar aqui a distinção feita por Searle entre o que é

ontologicamente e o que é epistemicamente objetivo ou subjetivo.1 Esse filósofo

notou que um acontecimento pode ser ontologicamente objetivo – por exemplo,

a vantagem social da mudança da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília

– e mesmo assim epistemologicamente subjetivo – pois não há acordo acerca

disso. Em contrapartida, um fenômeno pode ser ontologicamente subjetivo, mas

mesmo assim epistemologicamente objetivo – por exemplo, a dor provocada por

uma queda – pois todos podem concordar acerca de sua existência e natureza.

Algo semelhante podemos sugerir com relação aos pensamentos-f. Esses

conteúdos de pensamento podem ser, em sua natureza ontológica, subjetivos

(posto que são redutíveis a eventos psicológicos). Mas nem por isso eles deixam

de ser epistemologicamente objetivos. Afinal, nós somos intersubjetivamente

capazes, tanto de admitir a sua existência quanto de avaliar o seu valor-verdade.

Assim, uma frase como “O amor é o amém do universo” (Novalis) possui

apenas coloração, sendo susceptível apenas de apreciação estética em certa

medida subjetiva. Contudo, uma frase como “A torre Eiffel é feita de metal”,

exprime um pensamento-f epistemicamente objetivo, posto que tanto ele quanto

o seu valor-verdade são plenamente avaliáveis e comunicáveis com base em

convenções linguísticas.

A rápida reconstrução da semântica fregeana feita nesse capítulo contém

muitas sugestões programáticas que demandariam uma defesa e elaboração

muito mais cuidadosa e detalhada. Isso não chega a ser necessário aos nossos

propósitos porque não será muito mais do que a idéia central de que os sentidos

fregeanos devem ser analisados em termos de regras semântico-cognitivas,

aquilo que será mantido em vista de maneira a servir como guia para nossa

1 John Searle: Mind, Language, and Society, pp. 43-45.151

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investigação dos mecanismos pelos quais termos singulares e termos gerais

referem.

PARTE II: TERMOS SINGULARES

152

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4. CLASSIFICANDO OS TERMOS SINGULARES

Quero começar mapeando brevemente o território a ser explorado ao expor a

classificação tradicional dos termos singulares.

1. Tipos de termos singulares

153

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Um termo singular é aquele que é usado para referir ou designar um indivíduo

específico, distinguindo-o de qualquer outro. Nas línguas européias os termos

singulares costumam ser claramente divisíveis em indexicais, descrições

definidas e nomes próprios.

Comecemos com os assim chamados termos indexicais1. Eles podem ser

definidos como sendo aqueles termos singulares cuja referência costuma variar

com o contexto do proferimento, como é o caso dos pronomes demonstrativos.

David Kaplan distinguiu dois tipos de indexicais: demonstrativos verdadeiros e

indexicais puros.2 Os primeiros são termos como ‘esse’, ‘essa’, ‘isso’, ‘aquilo’,

‘ele’, ‘ela’, ‘seu’, ‘sua’. Eles precisam vir acompanhados de ações ou intenções

do falante, através do que ele seleciona para ele mesmo e para o auditório,

dentre as coisas que o circundam, aquela a que está se referindo. Por isso os

demonstrativos verdadeiros costumam vir acompanhados de gestos de ostensão

(atos de apontar), quando não de algum termo descritivo desambiguador como

em ‘essa bola’, ‘essa cor’. Já os indexicais puros são aqueles cuja referência é

automática, não dependendo nem de ações nem de intenções. Eles se

exemplificam pelo pronome pessoal ‘eu’, pelo pronome possessivo ‘meu’, por

advérbios como ‘aqui’, ‘agora’, ‘hoje’, ‘amanhã’, e ainda por adjetivos como

‘atual’ e ‘presente’.

Há muitas outras expressões cujo conteúdo, em maior ou menor medida,

depende do contexto. Como notou John Searle, é razoável pensar que todos os

nossos enunciados empíricos possuem algum traço de indexicalidade3.

Considere, por exemplo, o enunciado singular “Galileu foi o primeiro a

1 A palavra ‘indexical’ vem da noção de índice de C.S. Peirce. Outros termos usados no mesmo sentido são particulares egocêntricos (Russell), termos token-reflexivos (Hans Reichembach), indicadores (Nelson Goodman, W.V.-O. Quine), demonstrativos (John Perry) e dêiticos (Ernst Tugendhat, John Lyons, S.C. Levinson).2 David Kaplan: “Demonstratives”, pp. 490-491.3 Ver J.R. Searle: Intentionality, p. 221.

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descobrir a lei da inércia” e o enunciado universal “Todos os corpos materiais

têm força gravitacional”. Parece claro que com o enunciado sobre a descoberta

da lei da inércia estamos nos referindo indexicalmente a um acontecimento no

planeta terra há algumas centenas de anos. Se em algum outro planeta habitado

de nossa galáxia alguém descobriu a lei da inércia há um milhão de anos, isso

não afetará a verdade desse enunciado. Quanto ao enunciado sobre a

universalidade da força gravitacional, ele é considerado verdadeiro em relação

ao nosso universo. Se existir um universo paralelo no qual há corpos materiais

destituídos de força gravitacional, ele não deixará de ser verdadeiro. Contudo,

mesmo que a maioria de nossos enunciados considerados não-indexicais

contenha um elemento indexical oculto em seu pano de fundo contextual, isso

não altera nossa classificação, pois ao considerarmos os termos indexicais

estamos fazendo um uso restritivo do conceito. Nós queremos nos limitar às

expressões que, embora variando a sua referência com a variação do contexto de

proferimento, fazem isso com a função de designar particulares que tipicamente

se encontram no âmbito da experiência perceptual do falante.

Passemos agora às descrições definidas. Elas são complexos nominais

geralmente iniciados com um artigo definido no singular. Exemplos são ‘o

Homem da Máscara de Ferro’, ‘a Dama das Camélias’, ‘a Cidade Luz’. O que

caracteriza as descrições definidas legítimas é que elas são capazes de

representar ou conotar, através de seu sentido, propriedades distintivas do objeto

ao qual se referem. Assim, a descrição ‘o pai de Sócrates’ é referencial por

representar uma propriedade distintiva de uma pessoa de ser o pai de Sócrates. E

o mesmo se aplica às outras descrições definidas listadas acima, que conotam

respectivamente as propriedades distintivas de usar uma máscara de ferro, de

gostar de camélias e de ser uma cidade extraordinariamente bela. Por outro lado,

uma expressão como ‘O Sacro Império Romano’ – que, como notou Voltaire,

não era nem sacro nem império nem romano – não é uma descrição definida, 155

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mas um nome próprio (tendo por isso iniciais maiúsculas), posto que não conota

propriedades do objeto referido.

As descrições definidas fazem contraste com as descrições indefinidas, que

começam com artigo indefinido, como, por exemplo, ‘uma mulher’, ‘um terno

azul’. Essas últimas nos permitem apenas falar de algum objeto qualquer

pertencente a uma classe de objetos, mas sem identificá-lo. Por serem incapazes

de identificar um objeto específico, elas não são termos singulares.

Os nomes próprios, por fim, são expressões geralmente destituídas de

complexidade sintática, que têm a função de designar um particular na

independência do contexto do proferimento.1 Diversamente das descrições

definidas, os nomes próprios não exprimem um sentido único. Segundo uma

sugestão de Stuart Mill, eles não conotam propriedades específicas do objeto

referido; eles apenas o denotam. Mesmo quando eles possuem alguma

complexidade sintática, como é o caso do nome ‘Touro Sentado’, ela de nada

serve à referência.

Nomes próprios são classificados nos livros escolares como nomes de

pessoas, objetos ou lugares. Mas essa é uma classificação simplificadora se

considerarmos a grande variedade de objetos particulares que podem ser

referidos por eles. Além de nomes de pessoas e animais, há nomes de

construções humanas, como cidades, de objetos geológicos, como montanhas e

rios, de objetos astronômicos, como planetas e nebulosas, de fenômenos naturais

como furacões e vulcões, de regiões geográficas e de instituições financeiras,

além de nomes de objetos abstratos como números e fórmulas matemáticas.

1 Os nomes próprios de pessoas, especialmente, em sua expressão fonética ou ortográfica, costumam ser multiplamente ambíguos, de modo que a univocidade de sua designação acaba por depender do contexto. Esse fato não nos leva a confundir nomes próprios com indexicais, pois o contexto desambiguador do nome próprio não é o do proferimento, mas o de um mais amplo domínio de crenças que, conectadas ao proferimento, fazem valer certa regra de identificação.

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2. Relações entre os tipos de termos singulares

Faz parte da concepção cognitivista-descritivista a ser defendida nesse livro a

sugestão de que não deve haver uma fronteira nítida a separar os indexicais de

descrições definidas e essas últimas dos nomes próprios. Uma descrição definida

como ‘o homem que está discursando naquele palanque’, por exemplo, é

conotativa, mas contém o demonstrativo ‘aquele’ com função indexical. Nesse

sentido ela não é uma descrição definida tão pura quanto, digamos, ‘o sapo

barbudo’. Considere agora um termo singular como ‘o Cristo Redentor’. Sendo

antecedido de artigo definido, ele conota descritivamente a propriedade

identificadora da estátua, que é a de ser uma homenagem ao Deus cristão. Ele

contém, pois, elementos de descrição definida. Contudo, ele também tem

aspectos de nome próprio, na medida em que ao usá-lo não costumamos ter em

mente a homenagem ao Deus cristão, mas a própria estátua do Cristo situada no

alto do Corcovado. Assim, a expressão ‘o Cristo Redentor’ parece estar a meio

caminho entre uma descrição definida e um nome próprio. Muito diferente é o

caso de um nome próprio típico como ‘Machado de Assis’, referente ao grande

escritor carioca. Mesmo que ‘machado’ conote uma ferramenta e ‘Assis’ uma

cidade, esses elementos descritivos não têm nenhuma função identificadora, pois

o escritor nem era um machado nem nasceu na cidade de Assis.

Há uma hipótese vislumbrada por filósofos como P.F. Strawson1, que ajuda a

explicar a ausência de fronteiras definidas entre indexicais, descrições definidas

e nomes próprios. Queria colocá-la como sugerindo que deve haver uma

progressão estrutural (e não necessariamente genética), que vai dos indexicais

para as descrições definidas e delas para os nomes próprios.2 Os indexicais

teriam de algum modo prioridade como fontes originadoras da referência.

1 Ver P.F. Strawson em Individuals: An Essay on Descriptive Metaphysics, parte I.2 Mesmo admitindo que o indexical costume depender do uso de conceitos para ser capaz de identificar algo, parece claro que o indexical deve ter um papel fundamental no aprendizado inicial de novos conceitos.

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Afinal, parece que a única maneira pela qual podemos aprender a identificar

objetos nos estágios iniciais do aprendizado da linguagem é por intermédio de

atos de chamar a atenção e apontar dos adultos. Parece ser com base nesse uso

indexical da linguagem que assimilamos regras de identificação, as quais podem

mais tarde ser expressas por meio de descrições definidas que, diversamente dos

indexicais, podem ser usadas para a comunicação mesmo na ausência dos

objetos por elas referidos. Essa é a vantagem da constância. Finalmente, como

as maneiras de se identificar um objeto, assim como as descrições

correspondentes, podem se diversificar cada vez mais, aprendemos a colocar um

nome próprio no lugar do conjunto de descrições definidas usadas para designar

um mesmo objeto, usando-o indistintamente para significar essa ou aquela

descrição ou conjunção de descrições. Com isso podemos nos comunicar sobre

objetos sem precisarmos nos comprometer com o compartilhamento de

conteúdos de descrições específicas. Com isso ganham os nomes próprios, além

da vantagem da constância, típica das descrições definidas, também a vantagem

da flexibilidade. Temos aqui não apenas uma hipótese de trabalho, mas um

itinerário a ser seguido.

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5. A SEMÂNTICA DOS TERMOS INDEXICAIS

Indexicais são termos singulares que nos permitem identificar particulares

diferentes em diferentes contextos de proferimento. Eles são

epistemologicamente importantes porque é através deles que a linguagem, por

assim dizer, toca na realidade. Geralmente se admite que um indexical possui

minimamente duas espécies de significado: a função lexical e o conteúdo

semântico. Quero considerar cada um deles separadamente.

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Quanto à função lexical (também chamada de significado lingüístico, literal,

caráter, papel...), trata-se de algo que não varia com o contexto do proferimento,

ainda que dependa da presença de elementos contextuais para existir. Os

principais elementos do contexto de um proferimento indexical são (a) o falante,

(b) o auditório, (c) o objeto (o particular) sobre o qual ele fala e (d) o local e o

tempo em que o proferimento ocorre. Usualmente cada termo indexical, através

da regra constitutiva de sua função lexical, indica seletivamente um tipo de

elemento do contexto de avaliação do proferimento – que em geral é o mesmo

que o contexto de sua ocorrência – o que permite ao indexical tornar-se

reflexivo dessa ocorrência. Eis algumas expressões dessas regras:

1. Os demonstrativos ‘isso’ e ‘aquilo’ têm a função de indicar algo que circunda o falante quando ele os profere, respectivamente, o mais próximo e o mais distante, geralmente com auxílio de algum gesto indicador (ostensão).

2. O pronome pessoal ‘eu’ tem a função de indicar quem o está proferindo.3. A palavra ‘nós’ costuma indicar os falantes e ouvintes presentes em seu

proferimento.4. Os pronomes ‘tu’, ‘vocês’, ‘ele’, ‘ela’, ‘eles’, ‘elas’, indicam

primariamente componentes do auditório, respectivamente, o ouvinte, os ouvintes, um terceiro, uma terceira, os terceiros, as terceiras, no contexto do proferimento.

5. Os advérbios ‘aqui’ e ‘agora’ têm a função de indicar respectivamente o lugar e o momento em que são proferidos.

O sentido ou a função lexical de um indexical é uma invariante, uma vez que

se traduz em uma regra capaz de se aplicar a uma ilimitada diversidade de

elementos contextuais do tipo por ela indicado. O pronome ‘eu’, por exemplo, é

feito para se referir sempre a quem fala, independentemente de quem fala.

Vejamos agora a segunda espécie de significado do indexical. Ela é o que

chamamos de conteúdo semântico. Diversamente do caso do sentido lexical, o

conteúdo semântico do indexical depende da identificação daquilo que é

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referido, o que o faz variar com o contexto do proferimento. É fácil demonstrar

que esse conteúdo existe. Imagine que você entra em uma casa abandonada e

que alguém na sala ao lado daquela na qual você se encontra diga “Lá está um

rato”. Ouvindo o proferimento, você entende o sentido lexical do indexical ‘lá’,

que indica um local não muito próximo do falante. Mas alguma coisa

fundamental lhe escapa. Como você não está na sala, você não tem como

reconhecer o local nem conferir visualmente a existência do objeto, não podendo

constatar se o proferimento é verdadeiro ou falso. Parece claro que o inteiro

conteúdo semântico do indexical não se limita à simples discriminação do tipo

de referente (conteúdo lexical), estendendo-se pelo menos também à localização

espaço-temporal do referente (o conteúdo semântico de ‘lá está...’) e mesmo a

outras coisas como uma pessoa (‘você’), o seu gênero (‘ele’, ‘ela’) e outras

características eventuais.

Há duas concepções gerais competitivas sobre a natureza do conteúdo

semântico, que são a da referência direta (ou milliana) e a cognitivista (ou

fregeana). Segundo a primeira concepção, o conteúdo semântico do indexical é

o próprio objeto por ele referido no mundo. Já segundo as teorias cognitivistas,

o conteúdo semântico do indexical é um modo de apresentação fregeano, em

nosso entendimento, uma regra cognitiva episódica.

1. A teoria kaplaniana dos indexicais

Uma particularmente influente teoria referencialista dos indexicais foi proposta

por David Kaplan.1 O sentido lexical do indexical é chamado por ele de caráter.

Kaplan costuma expor as regras constitutivas de caráteres como funções

matemáticas cujos argumentos são contextos. Eis algumas delas:

1 Ver Kaplan: “Demonstratives” e “Afterthoughts”. Uma posição similar foi defendida por John Perry em: “The Problem of the Essential Indexical”, pp. 3-20.

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1. O caráter do pronome ‘isso’ é uma função de contextos cujos valores são objetos apontados.

2. O caráter do pronome ‘eu’ é uma função de contextos cujos valores são os falantes que o proferem.

3. O caráter do pronome ‘tu’ é uma função cujo valor, para cada contexto, é a pessoa endereçada pelo falante no contexto.

4. O caráter do advérbio ‘aqui’ é uma função de contextos cujos valores são os inúmeros locais que podem ser referidos pela palavra.

5. O caráter do advérbio ‘agora’ é uma função cujo valor, para cada contexto, é o tempo desse contexto.

Além disso, o caráter da sentença “Eu estou com fome”, falada por João, é a

função de um contexto cujo valor é o próprio estado de coisas de João estar com

fome. Essa é, porém, apenas uma elegante maneira alternativa de exprimir as

regras que expomos ao introduzirmos a noção de sentido lexical do indexical.

A teoria de Kaplan também deve dar conta do conteúdo semântico do

indexical em sua variabilidade contextual. Para tal ele advoga uma teoria da

referência direta, segundo a qual o conteúdo de um indexical não é algo que se

encontra em nossas mentes, mas a sua própria referência. Assim, o conteúdo do

demonstrativo ‘isso’ é o objeto por ele referido em um contexto C; o conteúdo

do demonstrativo ‘aqui’ é a localização de C; o conteúdo do advérbio ‘agora’ é o

tempo de C; o conteúdo do pronome ‘eu’ em C é o próprio agente; o conteúdo

de um predicado com respeito a C é a propriedade ou relação; e o conteúdo de

uma sentença indexical proferida em um contexto C é a proposição estruturada,

que poderíamos entender como um fato no mundo (um estado de coisas ou um

evento) constituído pelo conteúdo da sentença, podendo esta proposição conter

não só particulares, mas também propriedades e relações como constituintes.

Assim, se João diz “Eu estou com fome”, o conteúdo do pronome pessoal é para

Kaplan o próprio João e o conteúdo do predicado ‘...estou com fome’ é a própria

condição de ele estar faminto.

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Além disso, o conteúdo de uma sentença com relação ao contexto tem um

valor-verdade de acordo com o mundo (a totalidade consistente dos estados de

coisas) no qual se encontra inserido o contexto. Assim, “Lá está um rato” é uma

sentença falsa no mundo de C, no qual o falante está apontando para um filhote

de gambá; mas ela será verdadeira no mundo possível de C*, no qual o animal

apontado é mesmo um rato. Há, pois, sempre um mundo de um contexto no qual

a proposição é verdadeira.

Kaplan também admite que os indexicais são designadores rígidos. O termo

‘designador rígido’ foi inventado por Saul Kripke, tendo em mente

especialmente o caso dos nomes próprios. Kripke definiu o designador rígido

como sendo um termo que designa o mesmo objeto em todos os mundos

possíveis ou pelo menos em todos os mundos possíveis nos quais ele existe.1

Assim, o nome próprio ‘Benjamin Franklin’ é um designador rígido porque ele

se aplica em todos os mundos possíveis nos quais Benjamin Franklin existe.

Mas há expressões referenciais, como as descrições definidas, que não

costumam ser designadores rígidos, mas acidentais, a saber, aqueles que

designam objetos diferentes em diferentes mundos possíveis. Considere a

descrição definida ‘o inventor das bifocais’. Essa descrição é um designador

acidental, pois embora em nosso mundo se refira a Benjamin Franklin, em um

mundo possível no qual João da Silva foi quem inventou as bifocais ela se

referirá a João da Silva, que é outro objeto.

É realmente plausível considerar que os indexicais como sendo designadores

rígidos, tal como os nomes próprios. Considere, por exemplo, o pronome ‘eu’.

Ele designa a mim mesmo no contexto C do mundo atual. Mas eu o uso como

designador rígido, pois em qualquer mundo possível no qual eu existisse e

proferisse a palavra ‘eu’, ainda que as circunstâncias fossem muito diferentes e 1 Segundo Kaplan, Kripke informou-lhe por carta que preferiria manter-se neutro quando a questão de se o termo designa alguma coisa em um mundo possível no qual o objeto a ser referido por ele não existe. Ver comentário de G.K. Fitche em Saul Kripke, pp. 36-37.

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que eu mesmo fosse muito diferente – conquanto não deixasse de ser quem sou

– essa palavra continuaria designando a mim mesmo. Do mesmo modo, se

aponto para uma maçã vermelha e digo “Isso é vermelho”, o demonstrativo

‘isso’ se aplicará em qualquer mundo possível no qual ele for usado de modo a

apontar para o que estiver na mesma localização espaço-temporal, mesmo no

caso em que o proferimento seja falso por existir uma pera verde no lugar

apontado ou, digamos, não existir objeto algum nesse lugar.

Mas Kaplan quer mais. Ele quer que o indexical seja um designador cujas

regras semânticas façam com que em qualquer mundo possível o seu referente

seja o mesmo que no mundo atual.1 O efeito disso é que mesmo nos mundos

possíveis nos quais a referência não existe, o indexical se torna capaz de cumprir

com a sua função referencial, posto que ele é indexado pelo mundo atual!

Mas será que essa sugestão é coerente? Os seguintes exemplos sugerem que

não. Imagine que você esteja em uma sala iluminada e diga “Há luz aqui” e que

esse enunciado seja verdadeiro. Mas se em um mundo possível muito próximo

ao nosso nesse mesmo instante falta luz e a sala está às escuras, esse seu

enunciado se torna falso. Contudo, se o advérbio ‘aqui’ fosse indexado pelo

mundo atual, como Kaplan pretende, parece que o enunciado deveria continuar

sendo verdadeiro. Ou não? Considere agora o proferimento “Eu estou com

fome”. Ele é falso se pensado agora por mim. Mas imagine que em um mundo

possível, nas mesmas circunstâncias presentes, eu pense estar com fome e esteja

realmente com fome. É isso possível, mesmo que o pronome pessoal se refira a

mim mesmo no mundo atual, onde eu não estou com fome? Tais incoerências

me parecem fatais. E a razão é simples: um local, um objeto, só se inserem em

um mundo possível através de suas relações espaço-temporais e causais com

elementos contextuais pertencentes a esse mundo. Assim, não é coerente que se

fale de um local ou objeto em outro mundo possível, inserindo-o assim

1 Kaplan: “Demonstratives”, p. 492.164

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relacionalmente no contexto desse outro mundo, e, ao mesmo tempo, inserindo-

o relacionalmente no contexto de nosso próprio mundo, a menos que se misture

os critérios pelos quais inserimos o local ou objeto em cada mundo possível.

(Uma maneira de tornarmos a proposta de Kaplan coerente seria reduzir a

aplicação do indexical em outros mundos às relações espaço-temporais e causais

que ele tem em nosso mundo atual. Mas isso tornaria a sua proposta

inesperadamente fraca, equivalendo apenas a dizer que o indexical não possui

referência em nenhum outro mundo possível à exceção de nosso próprio mundo

atual.)

Devido a essa incoerência com a noção de indexação pelo mundo atual nos

ateremos nesse livro à idéia intuitivamente mais segura de que indexicais são

designadores rígidos no sentido de identificarem o mesmo objeto em qualquer

mundo possível no qual esse objeto existe.

2. Problemas com a referência direta

Para começar há algumas objeções gerais à concepção do conteúdo semântico

como sendo a própria referência. A primeira delas depende do que poderíamos

chamar de o desafio representacionalista. Uma descoberta e um problema

fundamental de toda a epistemologia moderna de Descartes a Kant, repercutindo

também em Russell e, implicitamente, em Frege1, é que o nosso conhecimento

do mundo externo se intermedia inevitavelmente pela representação. É sempre

através de nossos perceptos – através daquilo que tem sido chamado de “o véu

das sensações” – que nos referimos às coisas. Assim, se apertarmos o lado de

1 H.K. Wettstein sugeriu que Frege sustenta que a referência ao objeto exige a intermediação do sentido (Sinn) porque ele possuía um entendimento representacional da percepção, tal como o próprio Russell. Com efeito, a admissão do representacionalismo psicológico tende a conduzir ao representacionalismo semântico, particularmente quando pensamos, como sugeri no capítulo anterior, que estamos tratando apenas de duas faces de uma mesma moeda. Wettstein: “Frege-Russell Semantics?”, in H.K. Wettstein: Has Semantiks Rested on a Mistake? p. 90. Ver também Wettstein: The Magic Prism: An Essay in the Philosophy of Language, p. 37.

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um globo ocular com o dedo, os objetos a nossa frente parecem se mover...

Como esses objetos na verdade não se movem, fica claro que o que aquilo que

realmente nos é dado pelo sentido da visão são representações desse objeto. Se

adicionarmos a isso nosso conhecimento de que o cérebro vê através da

estimulação luminosa das células retinianas, e que exemplos e considerações

similares podem ser feitas para qualquer outro sentido, fica claro que toda a

nossa experiência do mundo externo é sempre e inevitavelmente intermediada

por estados sensórios psicológicos que podem ser chamados de representações.1

Ora, se considerarmos os proferimentos indexicais com demonstrativos

verdadeiros como ‘isso’, ‘aquilo’, ‘ele’... deixa de ser plausível que o conteúdo

de uma crença indexical seja o próprio estado de coisas que o falante pretende

designar (a proposição estruturada), o qual se encontra lá fora no mundo.

Certamente, esse conteúdo é o estado de coisas que está sendo concebido pelo

falante como aquele que se encontra lá fora, causando essa sua representação.

Mas ao dizermos que ele é concebido já estaremos admitindo que ele é de

natureza mental.

É por ser assim que se torna sempre possível usarmos um demonstrativo

verdadeiro erroneamente em uma falsa localização espaço-temporal de um

objeto, o que não poderia acontecer se o conteúdo fosse o próprio objeto.

Suponhamos que uma pessoa aponte para um objeto estereoscopicamente

produzido dizendo “Isso se move”, acreditando que ele seja real e esteja

próximo dela, quando na verdade ele é apenas uma imagem projetada em uma 1 Poder-se-á objetar que essa admissão nos compromete com o representacionalismo ou realismo indireto (quando não com o fenomenalismo) em teoria da percepção, em desfavor do realismo direto, da idéia de que geralmente percebemos diretamente as coisas tal como elas são, e que isso não condiz com a nossa bem fundada decisão de levar a sério nossas intuições de senso comum. Mas é bem possível que o senso comum seja aqui mal-interpretado pelos filósofos. Quando dizemos que percebemos diretamente as coisas ao nosso redor tal como elas são, a palavra ‘diretamente’ é usada em abstração do mediador representacional, posto que ele é para todos os efeitos irrelevante. (Da mesma forma dizemos que um objeto foi entregue pelo correio diretamente ao seu destinatário, abstraindo o fato de que ele passou por vários entrepostos antes de chegar a ele.)

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tela distante. Ao dizer “Isso se move” há um conteúdo que além de não existir

realmente é falsamente localizado. Se o conteúdo fosse o próprio objeto

localizado espaço-temporalmente, ele precisaria existir como objeto, na medida

em que fenomenalmente ele não se diferencia de objetos reais visualmente

experienciados.

Contudo, o que dizer de indexicais puros como ‘meu’, ‘aqui’, ‘eu’...?

Certamente, posso pensar e afirmar que é minha uma coisa pertence a outrem.

Mas fica mais difícil errar quando aplico indexicais como ‘aqui’ e ‘agora’.

Mesmo assim, parece que uma pessoa poderia, ao viver uma experiência de

realidade artificial, pensar que está aqui quando na verdade se encontra em outro

lugar. Mas que dizer do pronome pessoal ‘eu’? Russell sugeriu que somos

capazes de nos referir diretamente a nós mesmos pelo que ele chamou de

conhecimento por acquaintance. O eu é, pois, um candidato forte à referência

direta. Antes de tentar mostrar que isso é um erro, quero considerar que a

hipótese do caráter indireto do acesso aos objetos da experiência pode ser

estendida ao caso em que esses objetos são os próprios estados mentais. Basta

para tal se admitir que a experiência verdadeiramente consciente não seja direta,

o que está de acordo com as bastante plausíveis teorias reflexivas da consciência

consideradas no primeiro capítulo desse livro. Essas teorias exigem a meta-

cognição de um estado mental para que ele se torne consciente; além disso,

pensa-se que nas assim chamadas patologias da consciência essa meta-cognição

se encontra em desacordo com o conteúdo mental que objetiva refletir,

produzindo a falsa consciência. Guardando isso em mente, quero considerar dois

casos. Digamos primeiro, que eu por alguns instantes me convença que sou o

meu avô Elvino, que era apicultor, tendo a experiência alucinatória de que estou

escrevendo um livro sobre apicultura. Nesse caso, se digo “Eu existo”, quero

dizer que o meu avô existe. Como meu avô já é falecido, “Eu existo” torna-se

um proferimento falso. Contra isso se poderá objetar que mesmo pensando 167

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falsamente que eu sou meu avô, eu continuo sendo eu mesmo, o que torna o meu

proferimento “Eu existo” outra vez um pensamento verdadeiro, ao menos com

relação a minha própria pessoa, que certamente não é a do meu avô. Mas esse

raciocínio se aproveita de uma ambigüidade quanto ao proferimento “Eu

existo”, que é a seguinte. Quando eu penso “Eu existo” e me refiro a mim

mesmo como sendo o meu avô Elvino, digo algo que certamente é falso. Mas

quando você (ou alguma outra pessoa) me ouve dizer “Eu existo”, você

interpreta o meu proferimento como uma verdade. Se essa verdade for

necessária e a posteriori, parece que temos um conteúdo que se refere

diretamente ao seu objeto, que no caso é o eu. Contudo, também isso pode ser

questionado. Se for considerada a posteriori parece que a verdade em questão

deverá ser contingente, pois é resultado da sua experiência de me ouvir dizer

“Eu existo”, que também pode ser ilusória. Por outro lado, ela será uma verdade

necessária se for considerada a priori, ou seja, se você assumir que eu realmente

disse “Eu existo”, pois é a priori verdadeiro que se eu realmente disse “Eu

existo” é porque existo. Mas nesse caso ela será também uma verdade

irrelevante.

O segundo caso que desejo expor é uma forma radicalizada do primeiro.

Imagine que eu esteja convencido de que sou o meu irmão, que se chama Nei,

embora na verdade eu esteja em um laboratório no qual existam meios de se

fazer com que eu tenha acesso somente aos estados mentais (pensamentos,

memórias, emoções...) do meu irmão e não aos meus próprios. Nesse caso,

quando digo “Eu existo”, estou me referindo ao meu irmão Nei como se ele

fosse a pessoa que está espaço-temporalmente situada onde eu estou agora. (Ou

seja: “Eu existo” tem um sentido congruente com “Claudio existe”, mas não

com “Nei existe”.) Ora, mas como a pessoa espaço-temporalmente situada onde

eu estou agora, a pessoa que é realmente o sujeito da experiência sou eu e não o

meu irmão, esse proferimento só pode ser falso. Parece-me que o exame de 168

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ambos os casos considerados traz problemas para o cogito cartesiano, que

precisaria no último caso ser reduzido a alguma coisa comum tanto a “Claudio

existe” quanto a “Nei existe”, digamos, “alguém ou alguma coisa existe em

algum lugar”, nomeadamente, quase nada. Mas o importante para nós no

momento é que esses casos sugerem que podemos aplicar erroneamente até

mesmo o pronome pessoal ‘eu’.

Outro problema geral consiste no que fazer com as crenças indexicais falsas.

Digamos que uma pessoa vítima de psicose alcoólica tenha a alucinação perfeita

de um cavalo branco. Ela diz “Lá está um cavalo branco”, apontando para o

espaço vazio. Em uma teoria da referência direta, a crença falsa que a pessoa

está tendo precisaria ter uma natureza intrinsecamente diversa da natureza da

crença que ela tem quando aponta para um cavalo branco de carne e osso no

mundo atual. Afinal, só no último caso o conteúdo semântico está realmente

sendo dado. Contudo, não parece haver qualquer diferença intrínseca entre um e

outro conteúdo fenomenal de crença e as alucinações na psicose alcoólica

podem ser absolutamente realistas. O que permite diferenciar um caso do outro

são na verdade elementos extrínsecos ao conteúdo próprio da crença, como o

estado mental do falante, o contexto e a ausência de compartilhamento

intersubjetivo do que é dado à experiência. Isso fica claro quando consideramos

ilusões perceptuais, que em um momento são consideradas percepções

verdadeiras e no outro são reconhecidas como falsas.1

Por fim é interessante perguntarmos como as coisas ficam se admitirmos a

reconstrução do fenomenalismo de Stuart Mill especulativamente sugerida na

introdução desse livro. Segundo ela, objetos, propriedades e fatos externos,

1 A referência direta através de indexicais constituiria casos típicos do que foi chamado de crenças irredutivelmente de re, crenças que são ao menos parcialmente individuadas pelos próprios objetos constitutivos do mundo. Mas não há argumentos decisivos para provar que tais crenças existem, e nosso argumento contra o externalismo semântico de Putnam desenvolvido no capítlo 12 desse livro irá reforçar esse ceticismo. Para uma crítica a existência de crenças irredutivelmente de re, ver J.R. Searle: Intentionality p. 208 ss.

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podem ser reduzidos a uma interpretação fisicalista das impressões sensíveis que

possuem efetiva e contínua possibilidade de serem atualizadas. No caso do

objeto, propriedade ou fato, estar sendo presentemente observado, as sensações

psicológicas, os perceptos a ele correspondentes, na medida em que só

consideradas efetivamente, continuamente e intersubjetivamente retornáveis à

experiência sempre que forem dadas as condições adequadas, são susceptíveis

de interpretação fisicalista, como compostos, sistemas e combinados de tropos.

Ora, se o sentido fregeano é o modo de apresentação do objeto (e no caso ao que

parece também da propriedade e do fato), podemos então nos perguntar se nesse

caso dizer que observamos o objeto (a propriedade, o fato) através do véu das

sensações não equivale a dizer que observamos “diretamente” o objeto – ainda

que pela intermediação dos perceptos, nomeadamente, segundo o modo pelo

qual ele se nos apresenta – uma vez que esse objeto nos é apresentado através de

dados sensíveis efetivamente e continuamente experienciáveis, o que nada mais

é do que dizer que ele nos é dado aspectualmente enquanto tal.

Esse entendimento me parece correto e é capaz de render uma forma de

externalismo internalista capaz de dar conta do falibilismo de toda a experiência.

Digo, porém, que se trata de um externalismo internalista porque um modo de

acesso originariamente interno é preservado: somos nós que supomos que o

objeto é-nos dado enquanto tal; somos nós que admitimos que podemos traduzir

os dados sensíveis em termos de algo que seja efetivamente, continuamente,

intersubjetivamente experienciável e, portanto, em termos de sistemas e

combinações de tropos. E isso equivale outra vez a dizer que o objeto nunca é

mais do que somente concebido por nós na objetividade de sua existência, e que

somente por meio desse conceber é que podemos nos relacionar com ele.

3. Os argumentos de Kaplan

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Kaplan apresenta uma variedade de originais e elaborados exemplos destinados

a mostrar que a referência direta existe. Por interessantes que sejam eles não me

parecem nem um pouco bem sucedidos.

Adaptando um de seus exemplos, eis um argumento engenhoso que faz apelo

a substituições questionáveis. Eu aponto para uma pessoa na rua que me parece

ser João e digo1:

(1) Ele mudou-se para Brasília,

Isso é verdadeiro para João. Contudo, quem está passando na rua não é João,

mas José, devidamente disfarçado de modo a parecer João, e José não se mudou

para Brasília. Logo a proposição é falsa. Para Kaplan, se a proposição fosse

mero conteúdo cognitivo, ela deveria ser verdadeira, pois a crença que tenho é a

de que a pessoa por mim apontada é João, sendo verdadeira a minha crença de

que João foi para Brasília. Mas não é o que acontece. Portanto, é o estado de

coisas real e não o conteúdo da crença que constitui o conteúdo semântico

envolvido.

Não é difícil, porém, encontrar a falha no argumento. Para dizer (1) eu

preciso primeiro identificar a pessoa: eu só estou autorizado a afirmar “Ele

mudou-se para Brasília” porque reconheço a pessoa na rua como sendo João e

porque sei que João mudou-se para Brasília. O proferimento (1) é, pois, pensado

por mim como pressupondo meu reconhecimento correto de João, devendo ser

apresentado como a conclusão explícita do seguinte argumento que subjaz

disposicionalmente ao proferimento:

(2) Aquele sujeito lá é João. F João mudou-se para Brasília. V1 Kaplan: “Demonstratives”, IX. Simplifico o exemplo de Kaplan de modo a desencobrir o que me parece falacioso.

171

Page 172: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Logo: ele (aquele sujeito lá) mudou-se para Brasília. F

Mas se o conteúdo de pensamento expresso por (1) é a conclusão de (2),

então não há razão alguma para que seja considerado verdadeiro, posto que

sendo a primeira premissa do raciocínio falsa, a conclusão não precisa ser

verdadeira, além de ser no exemplo em questão efetivamente falsa. Assim,

diversamente do que possa parecer, a crença que (1) expressa é quase

certamente falsa, tornando nossa intuição perfeitamente ajustável à interpretação

cognitivista.1

Outro argumento de Kaplan, dessa vez inspirado no externalismo semântico

de Putnam, diz respeito a dois gêmeos idênticos, Castor e Pollux, cujos cérebros

1 Kaplan sugere que se a pessoa referida por (1) fosse realmente João, a proposição que seria verdadeira não poderia ser a mesma, posto que o indexical é um designador rígido e, uma vez se referindo a José em nosso mundo, se referirá a José em qualquer situação contrafactual. Não penso que seja assim. A proposição (1) teria no caso a mesma forma:

(4) Aquele sujeito lá é José. V João mudou-se para Brasília. V Logo: Ele (aquele sujeito lá) mudou-se para Brasília. V

A única diferença é que a conclusão aqui é verdadeira, posto que as premissas são verdadeiras. A melhor maneira de conciliar as coisas é a meu ver rejeitar a pretensão de que os indexicais ou outros termos quaisquer possam ser designadores rígidos no sentido proposto por Kaplan de serem indexicados pelo mundo atual. A sugestão que apresentarei mais adiante será a de que indexicais como ‘aquele’ são mais o que poderíamos chamar de localizadores rígidos, ou seja, eles apontam para um mesmo local em qualquer mundo possível no qual esse local exista, podendo variar aquilo que preenche esse local. Ademais, Kaplan rejeita que para o fregeano indexicais possam ser designadores rígidos, posto que os modos de apresentação variam. Mas isso é incorreto. Para o fregeano o modo de apresentação do indexical precisa ser rígido. A razão é a seguinte. O conteúdo semântico do indexical não pode variar de mundo para mundo, pois ele não é um nome próprio, que está no lugar de um feixe de descrições. Como o conteúdo semântico do indexical é para o fregeano o seu modo de apresentação, esse modo também precisa ser rígido: o indexical é um designador rígido no sentido de que ele deve apresentar o seu objeto do mesmo modo em todos os mundos possíveis nos quais esse objeto existe. Assim, se digo “Aquele é João”, o demonstrativo ‘aquele’ é um localizador rígido porque tem sempre uma mesma relação de designação, apontando para um mesmo local, sob a mesma perspectiva etc.

172

Page 173: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

são monitorados de modo a terem sempre os mesmos estados cognitivo-

psicológicos.1 Em um dado momento ambos dizem:

(1) Meu irmão nasceu antes de mim.

Como Pollux nasceu antes, Castor diz algo verdadeiro e Pollux diz algo falso.

Para Kaplan, como os estados cognitivos são idênticos, a diferença no conteúdo

de crença só pode estar no mundo lá fora, na proposição estruturada.

Contudo, há algo de errado com esse exemplo. Ele só funciona se

assumirmos, como Kaplan, que o externalismo de Putnam é correto. Se for,

então podemos querer dizer coisas diferentes mantendo o mesmo estado mental.

O argumento de Putnam, porém, será demonstrado implausível quando

discutirmos as referências dos termos gerais. Se abstrairmos o externoalismo de

Putnam, porém, a assunção de que Castor e Pollux estejam tendo idênticos

estados cognitivo-psicológicos e querendo dizer coisas diferentes torna se

gratuita. Afinal, com a expressão ‘meu irmão’, Castor deve ter em mente Pollux

e Pollux Castor, e com o pronome ‘mim’ Castor tem em mente Castor e Pollux

Pollux. Mesmo sendo idênticos, os gêmeos possuem nomes diferentes e se

diferenciam pelas posições diferentes que ocupam no espaço. (Castor pode não

saber onde está Pollux, mas sabe que Pollux não pode estar onde ele, Castor,

está, mas sempre em algum outro lugar e vice-versa.)

Assim, é natural pensarmos que das duas uma: ou eles querem dizer coisas

diferentes ao custo de estados cognitivo-psicológicos diversos, ou então eles

pronunciam frases idênticas sem serem capazes de querer dizer com elas algo

que vá além do mero sentido gramatical. Nesse último caso, a única maneira de

se conceber que Castor diz algo verdadeiro e Pollux diz algo falso é considerar o

que eles dizem sob o ponto de vista do ouvinte, que entende o conteúdo do

1 David Kaplan, “Demonstratives”, XVII.173

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proferimento de Castor como verdadeiro e o de Pollux como falso. Mas nesse

caso um proferimento é verdadeiro e outro falso porque os estados cognitivo-

psicológicos do ouvinte a considerar a frase “Meu irmão nasceu antes de mim”

dita por cada um dos gêmeos é diferente. Assim, uma origem da impressão de

que seja possível que Castor e Pollux tenham idênticos estados cognitivo-

psicológicos e diferentes conteúdos de crença pode ser encontrada na falha em

perceber o papel dos intérpretes do proferimento.

Para enfatizar as dificuldades, quero adaptar aqui um exemplo conhecido.1

Imagine que em uma loja de roupas Maria veja uma mulher a sua frente e, em

um dos espelhos ao lado, veja refletida de outro espelho a mesma mulher de

costas. Confundida, Maria pensa que são duas pessoas distintas. Ela está em

condições de dizer:

(i) Essa pessoa não é aquela pessoa.

Contudo, se o conteúdo do pensamento de Maria fosse a proposição estruturada

e o objeto fizesse parte dessa proposição, parece que ela deveria saber que se

trata de um mesmo objeto, de uma mesma mulher. Mas não é isso o que

acontece. Maria acredita falsamente na verdade do seu conteúdo de pensamento

expresso em (i).

A resposta do defensor da teoria da referência direta poderia ser a de que um

mesmo objeto pode ser acessado sob modos diferentes, os quais são

condicionados pelos caráteres dos indexicais envolvidos. Assim, os indexicais

‘essa’ e ‘aquela’ em (i) tem caráteres diversos, que para Kaplan estão no lugar

dos sentidos fregeanos, permitindo o erro na identificação “dessa” ou “daquela”

pessoa. Essa resposta esbarra em dificuldades. Afinal, Maria poderia ter usado o

mesmo indexical duas vezes para designar objetos diferentes, como na frase:

1 David Braun: ”Demonstratives and their Linguistic Meanings“, p. 147.174

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(ii) Essa pessoa não é essa pessoa,

e ao fazer isso apontar primeiro para a pessoa a sua frente e depois para a

pessoa refletida no espelho ao seu lado.1 Seria possível, é verdade, responder

que nesse caso a primeira ocorrência do demonstrativo ‘essa’ não pode ser

substituída por ‘aquela’, enquanto a segunda ocorrência pode, o que mostra que

o diferente caráter dos indexicais está implícito. Mas podemos imaginar

situações nas quais esse não é o caso, como no caso em que os dois objetos que

aparecem a Maria estão muito próximos, ou no caso de uma língua na qual os

demonstrativos ‘essa’ e ‘aquela’ são cobertos por um único indexical.

O que esses contra-exemplos sugerem é que existe mais entre o indexical e o

objeto do que o simples caráter. Ao influir na atribuição de verdade, o modo de

apresentação do objeto pelo indexical permite um detalhamento cognitivo da

experiência que vai além daquilo que a função lexical do indexical é capaz de

explicitar. Nós experienciamos os objetos sempre sob perspectivas, sob modos

de apresentação, sob sentidos fregeanos com base nos quais os inferimos.

Entender o conteúdo semântico em termos da referência enquanto tal, na

independência desses modos de apresetação, é deixar sem explicação o caráter

perspectivista ou aspectual da experiência.

Talvez hajam estratégias concebíveis contra as objeções recém apresentadas.

Podemos interpretar o objeto, a propriedade e mesmo o fato de uma maneira

aspectual e mesmo assim externa. Nesse caso (i) diz respeito a dois subfatos: (i-

a) o subfato de algo que aparece à frente do falante com a aparência de uma

mulher vista de frente e (i-b) o subfato de algo que aparece ao lado direito do

falante com a aparência de uma mulher vista de costas. Cada um desses subfatos

é objetivo (pois poderia ser similarmente acessado por outra pessoa que

1 Ver, por exemplo, Howard Wettstein: “Has Semantics Rested on a Mistake?“ pp, 115-116.175

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estivesse no lugar de Maria) e mesmo diversamente localizável no mundo

externo, o que torna compreensível a objetividade do erro. Não obstante, se

considerarmos o que foi dito sob o véu das sensações e sobre o caso dos

proferimentos indexicais falsos, continua sendo indiscutível que também esses

subfatos são primeiramente dados à experiência como modos de apresentação

cognitivos e então concebidos como pertencentes ao mundo externo.

4. Alternativas fregeanas

As idéias de Frege sobre os proferimentos indexicais foram muito brevemente

esboçadas em algumas poucas frases de seu ensaio “O pensamento”. Ele

percebeu que o pensamento, no caso de proferimentos indexicais, vai além do

que as palavras dizem. Em um exemplo seu, se alguém diz:

(1) Essa árvore está florida,

esse pensamento não se torna falso daqui a oito meses, quando o inverno tiver

feito a árvore secar. E a razão disso é que nesse caso “o momento da enunciação

é parte da expressão do pensamento”.1 Frege dá a entender que os elementos

contextuais que cercam o proferimento indexical são partes não-simbólicas da

expressão do pensamento. Para ele, o tempo (e certamente o lugar) do

proferimento, o gesto de apontar, os olhares, são capazes de atuar como meios

complementares de expressão do pensamento. Como consequência, o

proferimento “Essa árvore está florida” feito na primavera exprimirá um

pensamento diferente de quando é feito no inverno. Esse pensamento também

irá variar com a posição do falante e com o lugar espacial para o qual ele aponta.

Note-se, contudo, que pelo próprio fato desses elementos contextuais para

Frege serem parte da expressão do pensamento, eles próprios não são o

1 G. Frege: “Der Gedanke”, Beiträge zur philosophie des deutschen Idealismus, p. 66.176

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pensamento. Admitindo-se nossa reconstrução cognitivista da concepção

platonista que Frege mantinha sobre a natureza do pensamento, devemos

concluir que, como estado cognitivo-psicológico objetivamente concebido, o

pensamento indexical – nomeadamente, o que é apresentado no proferimento

indexical – precisa incluir em si mesmo a representação mental desses

elementos conceituais. Como notou Michael Luntley, “o pensamento é conteúdo

contextualmente expresso e não o próprio estado de coisas contextualmente

situado; ele não é sequer um amálgama de conteúdo mais contexto”.1

Outro ponto é que se o sentido é um modo de apresentação geralmente

exprimível em descrições, parece que os elementos contextuais que ajudam a

exprimir o pensamento indexical deveriam poder ser traduzidos em termos

descritivos de modo a formar frases eternas, capazes de expressar o pensamento

na independência do contexto. Assim, parece que um proferimento como (1)

poderia ser substituído por

(2) O lugar L que o falante F situado na região R no tempo T aponta contém uma árvore que está florida.

Note-se que o sentido do demonstrativo ‘essa’ no proferimento (1) é ‘o lugar

E que o falante F situado na região R no tempo T aponta’, que é um modo de

apresentação contextualizador. Certamente, se uma dessas variáveis mudar, o

pensamento expresso também será alterado.

Essa maneira de ver contrasta com o ponto de vista de Kaplan. Para ele o

caráter do indexical é o seu sentido fregeano, enquanto o conteúdo semântico é o

seu objeto referido. Essa correlação <sentido-caráter> seria mais plausível se

expressões outras que não as indexicais não tivessem algo equivalente ao caráter

ou função lexical. Mas não é assim. O nome próprio tem algo equivalente ao

1 M. Luntley: Contemporary Philosophy of Thought: Truth, World, Content, p. 334. 177

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caráter, que consiste na sua função de nomear o seu portador. Mesmo assim, o

sentido fregeano do nome próprio não é a sua referência, mas o seu modo de

apresentação, que em nosso entendimento inclui a função de nomear, embora de

modo algum se limite a ela. O mesmo podemos dizer do termo geral: o seu

caráter é a sua função predicativa, que é parte do modo de apresentação

fregeano. A própria frase tem um caráter, que consiste no que tem sido chamado

de o seu sentido literal, que também seria parte do sentido-pensamento

fregeano. Esse sentido literal da frase pode ser caracterizado como aquilo que

podemos entender se não tivermos qualquer informação que auxilie na

identificação da referência.1 Uma frase como “Antônio visitou Calpúrnia”, por

exemplo, tem um sentido literal, um caráter, que é de certo modo anterior ao

sentido fregeano ou cognitivo, pois nós sabemos que ela é sintaticamente

correta, mesmo sem conhecer nada sobre os romanos e sobre os modos de

apresentação, os sentidos fregeanos dos nomes ‘Antônio’ e ‘Calpurnia’. Já para

entendermos o sentido-pensamento expresso, nós precisamos mais do que isso.

Nós precisamos conhecer, ao menos em suficiente medida, os modos de

apresentação associados a esses nomes, o contexto no qual seus portadores

existiram, elementos que doam valor epistêmico (Erkenntniswert) ao que é dito.

Ora, se mesmo em frases não-indexicais a tricotomia <caráter – sentido

epistêmico – referência> se mantém, por que rejeitá-la para as frases indexicais?

Se ela existe para nomes próprios, por que rejeitá-la para os termos indexicais?

Podemos com isso retornar ao esquema fregeano dos níveis semânticos

tendo em vista a frase indexical predicativa singular. Para tal é preciso

distinguir dois subníveis semânticos do sentido epistêmico (Sinn): o subnível do

sentido lingüístico (lexical, literal), contextualmente independente, e o subnível

mais propriamente epistêmico (Erkenntniswert) do conteúdo semântico, que 1 Jeronime Katz caracterizou o sentido literal como aquele que é apreendido em um contexto informacionalmente pobre. Ver J. Katz: Propositional Structure and Illocutionary Force, pp. 14 ss.

178

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Frege mais propriamente tinha em mente e que no caso é também

contextualmente determinado. Eis o esquema:

Indexical predicado frase

Sentido sentido + função = sentidosentido linguístico lexical predicativa lingüísticocognitivo Sentido conteúdo + conteúdo = conteúdo de Epistêmico semântico conceitual pensamento

Referência objeto + propriedade = fato (sistema de (tropo ou (combinado tropos) composto de tropos) de tropos)

Vemos, pois, que o sentido lexical do indexical também pode ser entendido

como fazendo parte (secundária) do sentido epistêmico ou fregeano, pois ele

consiste na determinação geral de um tipo de entidade a ser apresentada. Mas

ele precisa ser complementado por aquilo que é epistemicamente relevante, pelo

conteúdo semântico-cognitivo, que no caso é o modo de apresentação de

alguma coisa contextualmente dada. O mesmo acontece com a frase indexical.

Considere a frase “Aquilo é uma raposa”. A articulação gramatical da frase é

parte do sentido que ela exprime. Mas ele só se torna relevante e se completa

como pensamento se contiver também o restante da regra verificacional, que

deve incluir os critérios específicos de identificação de um objeto físico com as

propriedades que fazem do animal uma raposa.

Um outro ponto é que embora o sentido determine a referência, no caso do

proferimento indexical verdadeiro a referência também de certo modo determina

o sentido. A árvore florida real determina causalmente a sua identificação pelo

demonstrativo ‘aquela’, o qual, por seu conteúdo epistêmico, passa a determinar

para o intérprete onde a árvore se encontra. Mas não parece que esse fato 179

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requeira uma modificação significativa no princípio fregeano de que o sentido

determina a referência. Afinal, é óbvio que em geral as regras semânticas são

estabelecidas convencionalmente tendo como base causal a própria referência.

Isso acontece com nomes próprios e termos gerais, cujas regras semânticas são

determinadas com base na experiência que temos do objeto ou tipo de objeto. A

diferença é que no caso dos nomes próprios e dos termos gerais essa experiência

é remota e gerou convenções semânticas tácitas, mais ou menos compartilhadas

entre os falantes, os sentidos fregeanos, que por sua vez são usados para

determinar a referência. A diferença com relação ao indexical não está, pois, no

fato de o sentido epistêmico ser determinado pela referência, mas no fato de ele

ser presentemente determinado pela sua referência e pelo fato de a regra que o

constitui, que é o próprio conteúdo semântico do indexical, não ter chegado a se

instituir na forma de uma convenção entre os falantes (embora, como veremos,

tal conteúdo possa se tornar eventualmente uma convenção, no caso em que

alguma parte importante do conteúdo acabe por se tornar explicitável através de

uma descrição definida conhecida dos falantes).

Finalmente, a teoria fregeana responde às dificuldades epistemológicas

básicas que a teoria da referência direta não parece ter recursos para resolver

satisfatoriamente. A conformidade dessa teoria com o representacionalismo a

torna capaz de nos permitir uma resposta ao problema do conteúdo das frases

indexicais falsas, pois para ela o conteúdo fenomenalmente dado da crença

indexical verdadeira não precisa ser de natureza essencialmente diversa do que é

quando a crença é falsa. Há uma diferença, é certo, mas ela não precisa ser

fenomenal ou intrínseca. Essa diferença se resolve extrinsecamente, com base

em outras crenças de algum modo relacionadas ao contexto. Embora o conteúdo

de uma alucinação não se diferencie intrinsecamente do conteúdo de crença

indexical verdadeira, há diferenças extrínsecas na intersubjetividade potencial,

no seguimento de leis causais próprias do mundo físico externo… em nossas 180

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informações sobre o estado e situação do observador, sobre aquilo que a orienta

e modela causalmente.1

5. Objeções e respostas

Quero agora apresentar algumas objeções mais importantes feitas à concepção

cognitivista do conteúdo semântico dos indexicais, seguidas de suas respostas.

A primeira é a de que devem existir conteúdos de pensamento

irredutivelmente indexicais. John Perry2 introduziu essa objeção com um famoso

exemplo. Encontrando-se uma vez em um supermercado ele percebeu um rastro

de açúcar no chão e pôs-se a procura do responsável. Após dar uma volta ao

redor da estante ele percebeu que o rastro vinha do seu próprio carrinho! No

começo a sua constatação era

(1) Alguém está fazendo uma bagunça.

No final a sua constatação se tornou

(2) Eu estou fazendo uma bagunça.

A constatação (2) não é a mesma que (1), pois acompanhou-se de uma súbita

mudança de comportamento. Ela também não pode ser substituída por (3) “Perry

está fazendo uma bagunça”, pois suponha que Perry estivesse sofrendo de

demência, tendo esquecido o seu próprio nome... A constatação poderia, é certo,

1 Gareth Evans ressaltou o elemento causal: se estou diante de um objeto real ao qual me refiro pelo demonstrativo “isso”, o meu conteúdo de crença é causado pelo objeto, de modo que se o objeto se alterasse ou deixasse de existir, meu conteúdo de crença indexical (pensamento) também se alteraria ou deixaria de existir. Mas isso não altera a natureza cognitiva do pensamento demonstrativo. Ver G. Evans: The Varieties of Reference, 5.1, 9.4, 9.5.2 J. Perry: “The Problem of the Essential Indexical”, pp. 3-20.

181

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ser substituída por (4): “Perry está fazendo uma bagunça e Perry sou eu”. Mas

nesse caso apenas se reconhece a indispensabilidade do indexical.

O ponto em questão é o seguinte. Se Frege estivesse certo, então o modo de

apresentação do objeto expresso pelo indexical deveria poder ser sempre

parafraseado por uma descrição definida. Mas o exemplo de Perry demonstra

que o ‘Eu’ em “Eu estou fazendo uma bagunça” não pode ser substituído por

descrição alguma sem que o seu conteúdo se altere. Ora, isso parece suportar a

idéia de que o conteúdo semântico do indexical é o próprio objeto referido e que

a teoria da referência direta dos indexicais é que é correta.

Uma resposta a essa objeção já foi dada por J.R. Searle. Ele admite que a

frase descritiva (3) não exprime o mesmo pensamento que a frase indexical (1),

não preservando exatamente os mesmos critérios de verdade. Contudo, ele pensa

que essas constatações não bastam para derrubar a idéia de que os indexicais

possuem sentidos fregeanos como conteúdos semânticos, pois mesmo que não

possamos substituir o indexical por uma descrição equivalente, isso não implica

que o conteúdo semântico não seja um sentido fregeano.1 É perfeitamente

possível que o indexical se refira através de um modo de apresentação sem que o

último seja resgatável por descrições, ou pelo menos sem que ele seja

inteiramente resgatável por elas.

Há outras objeções mais diretas. Em outro contra-exemplo que adapto de

Perry2, Maria profere o enunciado

(1) Hoje é 7 de setembro.

no dia 6 de setembro. Logo a crença é falsa. Perry supõe que para Frege é

preciso haver alguma descrição que capture o sentido do indexical ‘hoje’. 1 J.R. Searle: Intentionality, pp. 218-192 J. Perry, “Frege on Demonstratives”, pp. 487-8.

182

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Suponha que Maria esteja pensando na descrição ‘o dia da proclamação da

república’. Nesse caso, ao dizer (2) Maria está querendo dizer

(2) O dia da proclamação da república é 7 de setembro.

Nesse caso, a teoria fregeana implica que a palavra ‘hoje’ dita no dia 6 se refere

ao dia 7 de setembro, e que o proferimento (1) dito em 6 de setembro expressa

uma crença verdadeira, o que é absurdo. Portanto, a teoria de Frege não deve ser

correta.

O problema com essa objeção de Perry é que ela é claramente ad hoc ao

escolher uma conhecida característica do dia 7 de setembro. Contudo, tal

substituição não se impõe a nós mais do que, digamos, sob o suposto de que o

único dia do ano no qual Maria comeu arroz com brócolis foi no dia 6 de

setembro, a substituição que produz o proferimento (3) “O único dia de

setembro no qual Maria comeu arroz com brócolis foi o dia 7 de setembro”, que

é corretamente falsa, poderia ser adequada. Inúmeras outras descrições poderiam

prestar esse mesmo serviço de alterar ou não o valor-verdade ao substituir o

indexical hoje em (1).

Considere, porém, a descrição (4): “No dia 6 de setembro de 2011 Maria diz

‘Hoje é dia 7 de setembro’”. É verdade que a frase (4) não é sinônima de (1): ela

lhe acrescenta informação. Mas ela contém uma melhor substituição ao

transformar o indexical ‘hoje’ em algo que é metalinguisticamente mencionado,

ou seja, em algo que tem como referência (supomos) apenas a sua função

lexical, que não é contextualmente relativa, sem deixar de preservar o mesmo

valor-verdade (falso) da frase (1).

Kaplan adiciona a essas objeções um problema modal. Suponha que eu diga:

(1) Se eu existo então eu estou falando. 183

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e suponha que o sentido do termo ‘eu’ seja ‘a pessoa que está falando’. Nesse

caso a sentença passa a significar o mesmo que

(2) Se a pessoa que está falando existe então a pessoa que está falando está falando.

Contudo, pensa Kaplan, (2) exprime uma verdade necessária, uma proposição

verdadeira em todos os mundos possíveis, diversamente de (1), que é

contingente. Logo, (2) não pode querer dizer o mesmo que (1).

Nossa resposta provém da constatação de que o pensamento (1) é ambíguo.

Ele pode querer dizer (1a): “Se acontece de eu existir, então acontece de eu estar

falando”, que é contingente. Mas ele também pode querer dizer (1b) “Se eu

existo ao falar o que estou falando, então estou falando”, que é necessário.

Afinal, em qual mundo possível seria verdadeiro o proferimento “Se eu existo

ao falar o que estou falando, então eu não estou falando”? Contudo, é o

pensamento (1b) – e não (1a) – que implica em (2). Assim (2) não pertence,

afinal, a uma categoria diferente de (1), ao contrário do que Kaplan tentou

sugerir, pois só se deixa implicar por (1) se este também for interpretado no

sentido de um enunciado necessário.

Em mais um exemplo de Perry1, elaborado de forma mais enfática por

Searle2, imagina-se que David Hume diga

(1) Eu sou Hume,

1 J. Perry: “Frege on Indexicals”, Philosophical Review, p. 485 ss.2 J.R. Searle: Intentionality, p. 219.

184

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e que nesse mesmo momento em um planeta distante chamado terra-gêmea –

onde quase tudo acontece exatamente do mesmo modo que aqui na terra – o

Doppelgänger de David Hume, que se chama Heimson, diga

(2) Eu sou Hume.

Parece que o pensamento é o mesmo: ambos pensam ser o filósofo David Hume.

Contudo, a sentença (1) é verdadeira, enquanto a sentença (2) é falsa. Parece,

portanto, que Frege está errado e que o conteúdo semântico do indexical não se

reduz ao pensamento. Ele deve ser a própria referência, que só no primeiro caso

é o próprio Hume, sendo no segundo caso Heimson!

Para responder a tal objeção é preciso em primeiro lugar considerar que para

uma concepção como a de Frege não só o tempo, mas também o lugar do

proferimento, de algum modo pertencem ao pensamento indexicalmente

expresso. Ora, como o verdadeiro ‘Hume’ se encontra na terra e não na terra-

gêmea, (1) é um proferimento verdadeiro por se referir ao Hume da terra,

enquanto (2) é falso por se referir a quem não é o Hume da terra.

Essa resposta demanda elaboração. Hume pode dizer “Eu sou Hume” de

olhos fechados ou sem saber onde se encontra e o pensamento será verdadeiro.

Mesmo assim, é certo que ele está em um lugar e tempo particulares que se

forem reconhecidos o serão como sendo aonde se deu o pensamento indexical.

Que o lugar e tempo do pensamento sejam determinados é, pois, um pressuposto

daquilo que é pensado, ainda que não pertença ao pensamento. Assim, quando

Hume diz “Eu sou Hume”, ele está em sua casa em Edimburg (o que ele pode

ter presentemente em mente), além de estar na Escócia e no planeta Terra (o que

ele ao menos sabe), além do sistema solar se encontrar no braço Órion da Via

Láctea, a 33.000 anos luz de seu centro (o que ele certamente não sabe). Mas

toda essa informação é um pressuposto inevitável do pensamento indexical, quer 185

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seja ela sabida por alguma pessoa ou não. E a prova disso é que ela será

reconhecida pelo próprio Hume como um pressuposto para o pensamento

indexical que ele tem nesse momento e lugar, se lhe forem dadas as informações

em questão. Nosso espaço, como Kant já havia notado, forma uma totalidade

única. Ora, se supomos existir uma terra-gêmea, então também precisamos

supor que é possível distingui-la da nossa terra, por ser um corpo celeste situado

em outra região do espaço. Mas se é assim, então é porque, ao menos em termos

de localização espacial, devemos diferenciar o proferimento “Eu sou Hume”

feito por Hume e o mesmo proferimento feito por Heimson: o primeiro ocorre

em certo lugar de nossa própria terra, enquanto o segundo ocorre em um lugar

que, embora enquanto tal seja qualitativamente similar (Heimson está na

Edinburg-gêmea), está situado lá na terra-gêmea. Por isso os dois pensamentos

não podem ser idênticos (afinal, devemos estar cientes de tudo isso na suposição

do exemplo). O que nos confunde é a identidade qualitativa dos falantes e dos

arredores, que enganosamente nos fazem a supor que sejam capazes de nos

prover de uma identidade no conteúdo do pensamento.

A essa resposta se poderia ainda objetar que “Eu sou Hume” é verdadeiro

para o Hume da terra e falso para Heimson, mesmo que eles não saibam de nada

acerca da terra e da terra-gêmea; afinal, não precisamos, para usarmos indexicais

corretamente, conhecer muito mais além das circunstâncias imediatas de sua

aplicação. Contudo, essa objeção advém de não termos percebido, não só que ao

pensamento indexical pertence mais do que a frase que o exprime, mas que ele

pressupõe muito mais do que a frase indexical. De fato, não percebemos que o

pensamento não envolve apenas aquilo que é conscientemente estruturado pela

linguagem, mas também, secundariamente, aquilo que é pressuposto pelo que é

pensado e que pertence disposicionalmente a ele. Assim, quando Heimson diz

186

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“Eu sou Hume”, na medida em que ele tem a intenção de identificar-se com

David Hume1, ele só pode estar querendo dizer

(2’) Eu sou o Hume histórico do planeta terra.

Mas com isso Heimson faz incluir no pensamento as assunções contextualmente

falsas de que ele é Hume e de que ele está na terra e não na terra-gêmea. Quem

quer que saiba que o Hume histórico do planeta terra não pode ser Heimson,

saberá que o proferimento (2’) é falso.2

6. Sentido como modo de localização espaço-temporal

Há um usual engano sobre a natureza do conteúdo semântico do indexical; um

engano que se mantém tanto nas teorias da referência direta quanto no

fregeanismo. Trata-se da idéia de que o termo indexical objetiva designar

alguma coisa definida, que é um objeto no caso de demonstrativos como ‘isso’

ou ‘aquilo’, a pessoa do falante no caso do pronome pessoal ‘eu’, a pessoa do

ouvinte no caso do pronome ‘tu’ etc. Certamente, isso é bem verdade no caso do

pronome ‘ela’, que geralmente designa uma pessoa do sexo feminino. Não estou

1 Note-se que no exemplo em questão a diferença de conteúdo não se deve às diferenças simbólicas superficiais entre as palavras ‘Hume’ e ‘Heimson’, caso no qual “Eu sou Hume” quereria dizer o mesmo que “Eu me chamo Hume” ou, ainda mais explicitamente, “Eu sou o portador do nome ‘Hume’”. Mas não é isso o que está em questão, pois nesse caso os próprios pensamentos expressos pelos proferimentos (1) e (2) precisariam ser também diferentes, um verdadeiro e outro falso.2 No exemplo original de Perry, Heimson é um imitador de Hume que, acreditando ser o próprio Hume, diz “Eu escrevi o Treatise”, o que é obviamente falso, pois só o próprio Hume poderia dizer isso. Nenhuma descrição, insiste Perry, pode substituir aqui o pronome pessoal ‘eu’ dito pelo próprio Hume. Com efeito, o pronome pessoal ‘eu’ não parece ser substituível por coisa alguma de forma absolutamente congruente. Mas, como veremos, uma congruência parcial pode estar perfeitamente em ordem. Na maioria dos contextos “Hume escreveu o Treatise” faz o mesmo serviço que o proferimento acima.

187

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querendo negar que essa função exista. Posso dizer “Ela é hipocondríaca”

querendo dizer com ‘ela’ ‘a Maria Lúcia’. Mas essas funções são adicionais. A

função originária e primordial dos indexicais é a de localização espaço-

temporal. Ela consiste na identificação de certo lugar espaço-temporal por sua

relação com o lugar espaço-temporal daquele que fala. Por isso é a rigor

inadequado dizer que o demonstrativo ‘isso’ se refere a um objeto próximo, pois

isso sugere tratar-se propriamente de um objeto material. Afinal, se aponto para

um buraco na parede dizendo “Isso precisa ser reparado”, não estou apontando

para nenhum objeto material, sequer para uma propriedade. Também é falso

pensar que ‘eu’ designa uma pessoa; um autômato falante pode usar a palavra

‘eu’ para designar aquilo que está falando sem nos comprometer com a idéia de

que ele é um ser humano. E da mesma forma é possível a alguém dar uma

ordem a um autômato ou a um animal tratando-o com o pronome pessoal ‘tu’

sem precisar ser uma pessoa. Percebido isso vemos que precisamos revisar as

regras constitutivas do sentido lexical dos indexicais apresentadas no início

desse capítulo como sendo originariamente regras para a identificação de locais

espaciais no tempo do proferimento, tendo como centro – o ponto-zero

egocêntrico do campo espaço-temporal do proferimento – o próprio falante.

Podemos refazer essas regras afirmando que tipicamente e primariamente:

(1) ‘isso’ e ‘aquilo’ têm a função de indicar um local respectivamente mais próximo e mais distante do falante no tempo do proferimento,

(2) ‘eu’ tem a função de indicar o local de emissão do proferimento no tempo do proferimento.

(3) ‘tu’ e ‘vocês’ tem a função de indicar respectivamente o local onde se encontra o ouvinte e o local onde se encontram os ouvintes no tempo do proferimento.

(4) ‘aqui’ e ‘agora’ tem a função de indicar respectivamente os locais espacial e temporal em que se dá o proferimento no tempo do proferimento.

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Note-se que não estou afirmando que em contextos normais esses

demonstrativos e pronomes pessoais não possuem funções adicionais,

designando também objetos, pessoas etc. Quero dizer apenas que essas funções

lhes são secundárias e inessenciais, dependendo do contexto para existirem.

Se o sentido lexical primordial dos indexicais é o de uma regra para indicar

locais, a pergunta agora concerne o conteúdo semântico do indexical. Ora, o que

a regra constitutiva do sentido lexical do indexical faz é, dado um contexto,

indicar um local espaço-temporal particular com relação ao falante. É essa

indicação de um local que varia a cada uso de um mesmo indexical produzindo

diferentes conteúdos semânticos, diferentes modos de apresentação fregeanos de

local. É verdade que não existe um local espaço-temporal particular sem algum

preenchimento por um “algo” definido, mesmo que esse algo não seja coisa

alguma. É aqui que surgem coisas identificáveis como objetos, sujeitos, homens,

mulheres etc. que preenchem esses locais. Em suma: o conteúdo semântico

fregeano primário do indexical nada mais é do que o modo de apresentação de

um local espácio-temporal específico sob a perspectiva do falante.

Seria interessante ver agora em que medida podemos capturar

descritivamente os elementos contextuais em frases eternas tendo em mente

nosso atual entendimento do conteúdo semântico dos indexicais. Minha sugestão

é fazer isso resgatando na frase eterna não somente o contexto, mas também a

própria frase proferida, que precisa ser mencionada por pertencer ao contexto.

Eis alguns exemplos de como fazer isso:

1 Aquilo é um urso.1’ O local mais distante apontado pelo falante F no contexto da região espacial E no momento T de seu proferimento da frase ‘Aquilo é um urso’ contém um objeto que tem a propriedade de ser um urso.

2 Essa árvore está florida.

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2’ O local mais próximo apontado pelo falante F no contexto da região espacial E no momento T de seu proferimento da frase ‘Essa árvore está florida’ contém um objeto que tem as propriedades de ser uma árvore e de estar florido.

3 Eu sou jovem.3’ O local no qual se encontra o falante F no contexto da região espacial E no momento T de seu proferimento da frase ‘Eu sou jovem’ contém um objeto que é uma pessoa e que tem a propriedade de ser jovem.

O fato de a frase indexical se repetir mencionada na exposição do conteúdo

de pensamento acontece pela propriedade de reflexividade-token das frases que

aparecem nos proferimentos indexicais: elas usam-se a si mesmas como meio de

estabelecer as relações contextuais expressivas do pensamento, as quais

precisam ser capturadas pela paráfrase descritiva. É verdade que indexicais

como ‘aquilo’, ‘essa’ e ‘eu’ comparecem nas paráfrases descritivistas (1’), (2’),

(3’); mas eles não comparecem mais com o seu conteúdo semântico; eles

aparecem mencionados metalinguisticamente em sua função lexical, em seu

caráter, que independe de variações contextuais.

7. A nova dicotomia e o problema do indexical essencial

Essa nova maneira de pensar a distinção entre sentido lexical e conteúdo

semântico tem a meu ver uma vantagem teórica importante ao permitir-nos uma

tradução suficientemente adequada das frases indexicais em frases eternas, uma

tradução que a meu ver desfaz o problema do indexical essencial.

Usando exemplos do próprio Perry, imagine que em diferentes ocasiões ele

diga:

A1 Eu estou fazendo uma bagunça.2 Agora preciso ir à reunião.3 Hoje está chovendo.

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4 Hoje é 4 de julho de 1972 (dita em 3 de julho).

Considere agora os correspondentes proferimentos substitutivos:

B1 O local no qual se encontra o falante Perry no contexto da região espacial

da seção de adoçantes do supermercado Fleuty às 8 da noite do dia 23/06/1968, quando ele profere a frase ‘Eu estou fazendo uma bagunça’, tem um objeto que é uma pessoa que está fazendo uma bagunça.

2 O local no qual se encontra o falante Perry no contexto da região espacial do Departamento de filosofia da UCLA-Berkeley ao meio dia de 2/08/1972, quando ele profere a frase ‘Agora preciso ir à reunião’, tem um objeto que é uma pessoa que precisa ir à reunião.

3 O local no qual se encontra o falante Perry no contexto da região espacial do Willard Park em Berkeley às duas horas da tarde do dia 12/05/1972 quando ele profere a frase ‘Hoje está chovendo’, é o de um dia que está chovendo.

4 O tempo no qual se encontra o falante Perry no contexto da região espacial de Berkeley, onde ele profere a frase “Hoje é 4 de julho de 1972” é o de um dia que é 3 de julho de 1972.

É fundamental que se entenda que não estou tentando defender que os sentidos

pensados pelos falantes das respectivas sentenças do primeiro e do segundo

grupo são os mesmos. No que concerne à relação entre B1 e A1, por exemplo, é

possível que Perry tenha esquecido o próprio nome, que ele não saiba em que

supermercado se encontra, que ele não saiba que nesse dia está em Berkeley,

nem que está no Willard Park. Mas minha opinião é que isso não tem a menor

importância para o ponto que pretendo demonstrar, pois nós percebemos que

um número indeterminado de detalhes pode ser adicionado na complementação

das frases eternas. Posso, por exemplo, dizer que o supermercado Fleuty está ao

norte da cidade de Connecticut, nos EUA, que o Willard Park é uma praça em

Berkeley, que a tarde de 12/05/1971 é a estabelecida por certo tipo de calendário

referente ao tempo histórico no planeta terra etc. Essa possibilidade de

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complementação da determinação espaço-temporal tem a ver, aliás, com o

elemento indexical pervasivo em todo o discurso empírico. O que quero dizer,

porém, é que Perry pode saber mais ou menos de 1, 2 e 3, mas que aquilo que

Perry sabe é no mínimo implicado por 1, 2 e 3 respectivamente, a saber, está

contido nesses pensamentos. Em outras palavras, o que faço ao traduzir uma

sentença indexical em sentenças eternas da espécie indicada é adicionar

elementos que o falante possivelmente desconhece, ainda assim capturando tudo

o que o falante realmente tem a dizer. É essa relação de pertencimento de

conteúdo e não uma relaçãoi de identidade de conteúdo o que aqui importa. Pois

afinal, o que uma tradução precisa capturar é o conteúdo independente daquilo

que traduz, não importando que lhe adicione elementos factuais novos, sendo

isso o que as paráfrases da coluna B fazem.

Mas se é assim, então por que o indexical parece essencial e insubstituível? A

resposta é em meu juízo bem mais banal do que se possa imaginar. Ela reside no

simples fato de que os elementos fenomenalmente dados à percepção não podem

ser linguisticamente reproduzidos por descrições. Não posso reproduzir através

de descrições lingüísticas o perfume da água de colônia, nem o calor do sol, nem

o caráter plástico de uma pintura, a não ser por paráfrases indiretas, que só serão

úteis a quem já possui experiências fenomenais equivalentes. Eu reconheço que

quanto a isso os conteúdos semânticos dos indexicais permanecem intraduzíveis

em termos descritivos. Se ao chegar pela primeira vez a Paris alguém exclama

“Lá está a torre Eiffel”, o conteúdo fenomenal de sua experiência não pode ser

satisfatoriamente reproduzido por descrições. Frege certamente sabia disso,

chamando o elemento fenomenal, na medida em que capturado pela linguagem,

de coloração (Färbung), que em contraste com o sentido resulta de regularidades

não-convencionais. Contudo, não é esse elemento o que importa. E a razão pela

qual esse elemento não tem importância é que ele não é comunicável através da

linguagem convencional. Por exemplo: só quem participa da situação indexical 192

Page 193: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

como falante ou ouvinte pode ter acesso ao conteúdo fenomenal do proferimento

“Lá está a torre Eiffel!”.

Com efeito, o que importa é que em termos lingüístico-convencionais os

pensamentos B sempre podem substituir os pensamentos A, mesmo que os Bs

percam o elemento fenomental e que aos As ainda faltem elementos

convencionais. Mais ainda, essas substituições são freqüentes e realmente úteis.

Isso nos mostra que aquilo que há de essencial e único no indexical é apenas que

aspectos fenomenais de seus sentidos – que poderíamos chamar fregeanamente

de colorações do proferimento indexical – são episódicos e irrepetíveis.

Contudo, por isso mesmo esses aspectos se tornam incomunicáveis, deixando de

importar à linguagem. Ou seja, embora o episódio identificador e verificacional

no qual se dá o pensamento indexical seja, no que concerne à coloração, seja

único e insubstituível, a tal ponto que o próprio falante não seria capaz de

efetivamente reproduzi-lo, o mesmo não acontece com o pensamento indexical.

Esse pensamento, entendido como um modo de apresentação fregeano, ou, tal

como gostaríamos de interpretá-lo, como uma combinação episódica de regras

relacionando o falante ao contexto, não possa ser descritivamente registrado e

reproduzido. A regra constitutiva do conteúdo semântico do indexical é

episódica, tal como a coloração fenomenal, mas diversamente da última, é

descritivamente reproduzível pela linguagem. Algo se perderá, certamente, mas

o trabalho da linguagem é o de selecionar o que pode ser comunicado, pois é

isso o que mais interessa à comunidade linguística. A prova do que estou

dizendo é que o próprio Perry poderia geralmente reconhecer essas substituições

como sendo válidas. Ele poderia ser informado, por exemplo, que ao dizer que

estava fazendo uma bagunça era o dia 23/06/1968 e que ele estava no

supermercado Fleuty, ao norte de Connecticut etc. Em outras palavras: os

sentidos dos substitutos não-indexicais dos proferimentos indexicais podem ser

considerados traduções adequadas, uma vez que aquilo que eles perdem são 193

Page 194: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

elementos fenomenais subjetivos e episódicos, enquanto o que lhes é adicionado

são elementos compatíveis com o conteúdo semântico dos indexicais por eles

capturados.

Isso pode ser melhor esclarecido quando percebemos que a tensão entre o

sentido episódico do proferimento indexical e o sentido da sua paráfrase não-

indexical só costuma ocorrer enquanto o conteúdo do proferimento é acessível

ao falante e ao ouvinte, mas não à comunidade lingüística em geral. Se o

avaliador do conteúdo dos proferimentos da coluna A não for o próprio Perry,

mas uma terceira pessoa que os reporta, passamos a admitir mais facilmente que

os seus conteúdos sejam descritivamente explicitáveis. Por exemplo: Mary

ouviu Perry dizer que está chovendo. Mas Perry tomou um alucinógeno e, como

resultado disso, além de acreditar que é outra pessoa, está alucinando chuva.

Mais tarde, ao contar o episódio a alguém, Marry diz algo como “Quando

estávamos no Willard Park em Berkeley, no diz 12, Perry disse que estava

chovendo quando na verdade não estava”. Aqui, para o propósito de

comunicação, A3 já foi completamente substituída por ao menos parte de B3.

Ora, como o proferimento com indexicais só ganha interesse em termos

informativos para a comunidade lingüística na medida em que ele for

substituível por proferimentos em terceira pessoa cujo conteúdo é

interpessoalmente acessível através de descrições independentes do contexto, o

elemento fenomenal fica limitado ao episódio em que o indexical tiver sido

usado deixa de ser relevante.

Em suma: a possibilidade de uma substituição do indexical por uma

descrição capaz de preservar o que mais interessa e adicionar elementos que

possam não ter sido pensados pelo falante, mas que seriam por ele reconhecidos

como assunções complementadoras. Por serem comunicáveis na independência

do contexto, essas apresentações descritivamente resgatáveis são as que mais

importam. Elas são possíveis e desejáveis, podendo bem servir como um filtro 194

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através do qual são abstraídos os aspectos fenomenais não-convencionalmente

fundados de menor interesse.

8. A elasticidade semântica do pensamento

Considere agora os seguintes pares de proferimentos e pergunte-se se eles têm

ou não têm o mesmo sentido:

1a Eu estou com fome (dito por João) e 1b Você está com fome (dito por Maria para João).

2 Hoje é um belo dia (dito hoje) e 2b Ontem foi um belo dia (dito amanhã no mesmo local).

A resposta de Frege para casos como esses parece claramente inconsistente.

Explicitamente, ao analisar o caso (2), ele sugere que se trata do mesmo

pensamento1, o que está de acordo com nossa intuição lingüística ordinária (algo

que, aliás, a identificação kaplaniana do sentido com o caráter não permitiria

explicar). Mas essa sugestão contraria o próprio critério para a identidade do

pensamento sugerido por Frege, segundo o qual, dados dois pensamentos P1 e

P2, eles serão idênticos quando for impossível atribuir um valor-verdade a P1

sem atribuir o mesmo valor a P2, o que não acontece com os pares de

pensamentos recém-considerados.

A resposta que quero propor é a de que em um nível mais profundo Frege

não estava sendo inconsistente, pois ambas as respostas são alternativamente

corretas. Minha sugestão é a de que é preciso admitir que nosso conceito de

pensamento possui uma espécie de relatividade ou flexibilidade que gostaria de

chamar de elasticidade semântica. Trata-se aqui da propriedade de certos

conceitos de terem suas condições de aplicação tornadas mais ou menos estritas

na dependência do que estamos querendo fazer com eles. Ou seja: devemos 1 G. Frege: “O Pensamento“, p. 64 (paginação original).

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admitir que usamos a expressão ‘o mesmo pensamento’ de maneira mais ou

menos exigente, de acordo com o contexto, sem que haja um critério geral que

estabeleça para todos os casos o grau de precisão que deve ser admitido. Sob tal

perspectiva as frases dos tipos (a) e (b) sob um ponto de vista dizem o mesmo,

mas sob outro ponto de vista não; elas exprimem o mesmo pensamento se não

formos exigentes; caso contrário, exprimem pensamentos diferentes.1

Com efeito, é assim que trabalha a linguagem. Quando digo que você e eu

tivemos “o mesmo” pensamento, estamos falando de similaridade entre dois

conteúdos de pensamento, e o grau de congruência exigido dependerá dos

interesses envolvidos no contexto do proferimento. Considere os exemplos. Os

pensamentos (1a) e (1b) são similares, pois compartilham de alguns critérios de

verificação, mas não de outros. Maria sabe que João está com fome porque sabe

que ele ficou sem comer por muito tempo; João sabe que ele próprio está com

fome porque sente a barriga roncando. Os dois critérios são inferencialmente

interligados, o primeiro usualmente implicando no segundo, que é a própria

fome de João – a condição de verdade, o fato verificador. Por isso, embora

grosso modo os proferimentos (1a) e (1b) expressem um mesmo núcleo de

pensamento, que atribui a João a sensação de fome, um exame mais acurado

mostra que esses pensamentos diferem em detalhes, pois eles constituem

procedimentos verificacionais um tanto diversos, modos de apresentação algo

diversos de um mesmo estado de coisas, procedimentos verificacionais algo

diversos, o primeiro direto, o segundo indireto. O mesmo se aplica a (2a) versus

(2b). “Hoje é um belo dia” se verifica diretamente pela percepção, enquanto

“Ontem foi um belo dia” se verifica indiretamente, pela memória da percepção,

1 Outro conceito elástico poderia ser o de identidade pessoal. Há usos nos quais uma pessoa de 80 anos é considerada a mesma pessoa que foi ao nascer, quando talvez sequer fosse uma pessoa. Há outros usos nos quais essa pessoa não pode ser identificada com a criança que foi aos sete anos de idade. E ainda há outros usos (que Chisholm chamava pejorativamente de frouxos) nos quais ela não é a mesma pessoa que era antes de ter se casado ou mesmo antes de ter bebido...

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pela qual o mesmo estado de coisas é apresentado por um caminho

verificacional mais longo, que pressupõe o primeiro. Contudo, o critério mais

próprio está outra vez na condição de verdade, no fato verificador. Assim, de um

ponto de vista maximamente genérico, que envolve somente a condição de

verdade, os pensamentos são os mesmos. Mas se tomarmos como base a

diferença no modo de apresentação do estado de coisas, refletida na diversidade

do indexical empregado, os critérios deixam de ser os mesmos.

Diante disso pode ser argumentado que do ponto de vista da teoria fregeana

do sentido, a alternativa mais coerente poderia ser a de elevar as exigências ao

máximo, demandando que qualquer diferença criterial que possa produzir

alguma variação no valor-verdade da frase nos permitirá identificar um diferente

pensamento – afinal, é esse o critério que satisfaz a condição fregeana de

identidade do pensamento. Quero apresentar dois exemplos para mostrar que

essa solução não só não corresponde à nossa práxis lingüística, mas também não

costuma ter utilidade prática. O primeiro diz respeito a uma visita que fiz ao

museu egípcio em Berlim a procura do busto de Nefertitis. Ao entrar em um

salão cheio de gente, eu divisei o busto ao longe, me aproximei e, estando perto,

o rodeei lentamente, admirando a qualidade da escultura. Há uma série de

crenças indexicais que posso ter tido nessa ocasião. Algumas delas seriam

formuláveis como:

A1 Lá está Nefertitis (quando a distingo de longe),2 Ali está Nefertitis (quando me aproximo dela),3 Aqui está Nefertitis (quando a examino de perto),4 Aqui está Nefertitis (quando a vejo de lado),5 Aqui está Nefertitis (quando a vejo de trás)...

Outro exemplo diz respeito ao relato sobre o terremoto do Haiti. Posso dizer:

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B 1 Acaba de haver um terremoto no Haiti (dito minutos após). 2 Acaba de haver um terremoto no Haiti (dito horas após).

3 Hoje houve um terremoto no Haiti.4 Ontem houve um terremoto no Haiti.5 Há seis meses houve um terremoto no Haiti.

A questão é: até que ponto os pensamentos de cada grupo são os mesmos? Se

mantivermos a tese da plasticidade semântica do pensamento, a resposta pode

variar.

Primeiro, se decidirmos ignorar as diferenças entre os componentes

lingüísticos e contextuais da expressão do pensamento, considerando apenas a

condição de verdade, o fato verificador, o estado de coisas, podemos dizer que

há um único pensamento expresso pelos cinco proferimentos de cada grupo,

qual seja, o de que CFC no dia tal e tal viu o busto de Nefertitis no primeiro e o

de que houve um terremoto no Haiti, no segundo. Escolho aqui o núcleo de

pensamento contido em todos os outros (a representação do estado de coisas)

cuja condição de verdade é também implicada pelas dos outros.

Se decidirmos ser um pouco mais exigentes, fazendo apelo a critérios

lingüísticos, então há três pensamentos diferentes, distinguidos pelos sentidos

lexicais dos indexicais ‘lá’, ‘ali’ e ‘aqui’; eles são (A1), (A2) e (A3, A4 e A5)

para o grupo A e (B1, B2), (B3), (B4) e (B5) para o grupo B.

Finalmente, se quisermos satisfazer rigorosamente a condição fregeana de

identidade do pensamento como dependente de qualquer coisa que influa em seu

valor-verdade, então devemos considerar o contexto espacial que envolve a

perspectiva e distância da experiência sensorial que tenho do objeto (explicitado

entre parênteses) como constituintes da expressão do pensamento. Nesse caso há

aqui cinco pensamentos em cada grupo, pois as perspectivas e distâncias

diferentes no espaço e no tempo contam, posto que deão ao falante diferentes

modos de apresentação, diferentes caminhos referenciais ou sentidos. (Se o

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busto de Nefertitis estivesse no interior de uma câmara incrustada na parede, de

modo que não se pudesse vê-lo de trás, haveriam perspectivas que me

impediriam de atribuir verdade ao pensamento; e quanto ao terremoto do Haiti,

se eu me encontrasse em um lugar onde não me fosse possível receber

informações atuais sobre o mundo, certas distâncias temporais seriam

excluídas).

Contudo, se considerarmos assim a questão que se apresenta é o que devemos

considerar como uma diferença relevante de perspectiva. Será que eu teria um

pensamento diverso a cada 90 graus? Ou a cada 10 graus? Ou a cada mudança

perceptível de perspectiva? E o que contaria para uma alteração significativa da

distância? Para não nos perdermos em arbitrariedades, podemos estabelecer que

qualquer alteração perceptível na distância ou na perspectiva é suficiente para

produzir alguma alteração no conteúdo do pensamento – essa pode ser uma

minimização compreensível, mas é certamente ociosa. O mesmo acontece

quando consideramos (B1) e (B2) como pensamentos diferentes pelo fato de

ocorrerem em instantes perceptivelmente diferentes após o acontecimento

relatado.

Para concluir, podemos estabelecer para esses exemplos no mínimo três

critérios intuitivamente respaldados para a identidade de pensamentos em

proferimentos indexicais, do menos para o mais determinado:

1 o critério do fato referido (a condição geral de verdade empiricamente dada),

2 o critério lingüístico,3 o critério da proximidade e perspectiva espacial e/ou proximidade

temporal.

Podemos agora ver que a oscilação sobre o critério de identidade do

pensamento em Frege resulta de uma alternância implícita entre a aceitação do

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critério (2) (diferenças nos indexicais) e a aceitação do critério (3) (qualquer

coisa que contribua para diferenciar a avaliação da verdade do pensamento). Ela

é, em meu juízo, apenas o reflexo da elasticidade semântica do pensamento

constituída pela variabilidade dos seus critérios de identificação.

9. Indexicais, descrições, regras de identificação

Vimos que muitas vezes as descrições definidas são capazes de substituir

indexicais. Quero agora mostrar que é parte da função comunicacional das

descrições definidas realizarem tais substituições.

Posso esclarecer o que quero dizer através de um exemplo. Digamos que na

preparação de um jantar a anfitriã entre em uma sala e diga ao seu ajudante:

“Leve essa cadeira para junto à mesa quando chegar a hora”. Com isso ela cria

uma regra de identificação. Isso fica claro quando, passado algum tempo o

auxiliar vai ao quarto, pega a cadeira e a leva para junto à mesa. Ele reidentifica

o objeto corretamente. A regra de identificação é aqui criada tendo como

critérios primeiro a indicação de um local no espaço egocêntrico (digamos, o

canto direito do quarto ao lado da cozinha do velho casarão) – que constitui o

conteúdo semântico, o sentido fregeano do demonstrativo ‘isso’ junto ao gesto

de ostensão; depois é adicionada a especificação do tipo de coisa que preenche o

local indicado – dada pelo sortal ‘cadeira’, ao que se adicionam as propriedades

percebidas da cadeira em questão. Qual é a estrutura dessa regra? A linguagem

nos guia: as palavras ‘essa cadeira’ formam a expressão de uma regra de

identificação. Essa regra compartilhada entre falante e ouvinte permite que o

objeto em questão seja reidentificado. Ao menos parcialmente, os critérios de

identificação dessa regra podem ser resgatados por uma descrição definida mais

elaborada como, digamos, ‘o objeto com forma de cadeira, feito de madeira,

com estofado de pano vermelho que se encontra no canto direito do quarto que

fica ao lado da cozinha da casa...’, ou ainda, sob a forma de uma descrição 200

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russelliana como “Existe no mínimo um x e no máximo um x, tal que x se

encontra no canto direito do quarto ao lado da cozinha e x tem a forma de

cadeira com estofado vermelho”.1 A descrição definida, por sua vez, pode ser

também considerada como aquilo que Wittgenstein chamou de uma expressão

de regra (Regelausdruck)2, a saber, o símbolo lingüístico de uma regra. Trata-se

da expressão de uma regra cognitivo-criterial de identificação do objeto a ser

levado para junto da mesa. O que a regra nos diz é que a presença de certas

combinações de propriedades em certas circunstâncias espacio-temporais nos

autoriza a reidentificar certo objeto. Com efeito, se o ajudante tiver se esquecido

da regra, a anfitriã poderá lembrá-lo de que se trata da cadeira de estofado

vermelho que está no quarto ao lado da cozinha, recorrendo assim à descrição. A

vantagem da descrição reside no fato de possibilitar a referência mesmo na

ausência do objeto.

Os indexicais são os termos capazes de codificar informacionalmente nosso

acesso perceptual ao mundo através de alguma perspectiva contextualmente

dada, cada qual traduzindo um sentido, um modo de apresentação, um sentido.

O que mais importa ao modo de apresentação do indexical não são as suas

colorações fenomenais episódicas, mas aquilo que dele pode ser comunicado na

independência do contexto e que é resgatável através de descrições definidas. A

vantagem que a descrição definida tem sobre o indexical está na fixação de um

sentido comunicável independente da presença de um contexto próprio, ou seja,

no que já havíamos chamado de permanência.

1 A teoria das descrições de Russell só será considerada no próximo capítulo. Contudo, se nossa análise é correta, ela se aplica também ao conteúdo intersubjetivamente resgatável dos proferimentos indexicais.2 L. Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus, 5.476; Philosophische Untersuchungen, I, seção 201.

201

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6. A SEMÂNTICA DAS DESCRIÇÕES

DEFINIDAS

Quero nesse capítulo passar às descrições definidas, considerando-as primeiro

sob a perspectiva da celebrada teoria das descrições de Russell1 e comparando-a,

1 B. Russell: “On Denoting” (1905), pp. 479-493. Ver também B. Russell: Introduction to Mathematical Philosophy (1919), cap. 16.

202

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a seguir, com a teoria alternativa que pode ser encontrada em Frege. Geralmente

se pensa que uma dessas teorias deve ser correta (ou estar próxima disso)

enquanto a outra deve ser falsa, mesmo que ambas pareçam conter alguma

verdade. Minha suspeita é a de que se ambas parecem conter alguma verdade

então é porque ambas contém alguma verdade. Por isso sugiro a conciliação

como o melhor remédio, tentando mostrar que ambas são compatíveis no que

têm de verdadeiro, só não sendo compatíveis no que têm de falso. Melhor

dizendo, quero demonstrar que se ambas as teorias forem suficientemente

revistas – ou seja, depuradas de seus comprometimentos metafísicos

desnecessários – elas deixarão de se demonstrar competitivas, revelando-se tão

somente diferentes de se dizer o mesmo. Antes disso, porém, quero recapitular

brevemente as teorias de Russell e Frege.

1. A teoria das descrições

Considere uma sentença como “O autor de Waverley é Scott”, que começa com

uma descrição definida. Aparentemente, a sua forma lógica é a mesma que a

gramatical: trata-se de uma sentença do tipo sujeito-predicado, com a descrição

definida ‘o autor de Waverley’ no lugar do sujeito. Mas para Russell a forma

gramatical é enganadora. Ela oculta uma forma lógica mais complexa que

contém quantificadores. Para ele a sentença “O autor de Waverley é Scott” é na

verdade constituída por uma conjunção de três sentenças:

1. Há no mínimo uma pessoa que foi o autor de Waverley2. Há no máximo uma pessoa que foi o autor de Waverley.3. Se alguém foi o autor de Waverley esse alguém foi Scott.

203

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Representando o quantificador existencial por E, o predicado ‘autor de

Waverley’ por W e ‘Scott’ por S, essa conjunção de sentenças se deixa

simbolizar como:

(Ex) (Wx & (y) (Wy → y = x) & Sx)

Com isso o valor-verdade de “O autor de Waverley é Scott” passa a depender

da conjunção das três sentenças sob o escopo do quantificador existencial, só

sendo verdadeiro se todas as três forem verdadeiras.

Na análise russelliana, ao serem parafraseadas por predicados quantificados

(símbolos incompletos), as descrições definidas desaparecem da posição de

sujeitos. Para Russell, isso evidencia duas teses:

(a) Descrições definidas não são expressões referenciais. (b) Descrições definindas não têm significado por conta própria.

As descrições definidas não são expressões referenciais porque em sua forma

analisada não contém nomes, reduzindo-se a conjunções de predicados

quantificados. Russell defende que, como as descrições definidas enquanto tais

não nomeiam nada, elas não podem ter qualquer sentido por conta própria, mas

apenas como parte da sentença. Como Russell escreveu:

A expressão (descrição definida) per se não tem nenhum significado, porque qualquer proposição na qual ela ocorre, a proposição, inteiramente expressa, não contém a expressão, que foi desmembrada. 1

Russell pensa assim porque defende uma concepção referencialista do

significado do termo singular, segundo a qual ele deveria ser dado por sua

própria referência. Como já vimos no capítulo 2, para ele isso só aconteceria 1 B. Russell: “On Denoting”, p. 51.

204

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realmente no caso de nomes próprios lógicos como “isso”, ditos na presença de

sua referência seja ela um sense datum ou um universal... Como descrições

definidas não são nomes próprios lógicos, elas nem referem nem podem ter

significado por si mesmas. Todavia, já vimos que a concepção referencialista do

significado mantida por Russell é praticamente insustentável. Isso acaba por

tornar, como veremos mais tarde, tanto (a) quanto (b) teses igualmente

insustentáveis.

Russell estende a sua análise das descrições definidas aos nomes próprios

usuais, que para ele são descrições truncadas ou abreviadas. Assim, um nome

próprio como ‘Bismark’ poderia abreviar ao menos uma descrição como ‘o

primeiro chanceler do império Germânico’. E um nome próprio sem referente,

como ‘Pégaso’, poderia abreviar uma descrição como ‘o cavalo alado de

Belerofonte’. Uma sentença como “Pégaso é rápido” significa então o mesmo

que “O cavalo alado de Belerofonte é rápido”, a ser analisada como “Há no

mínimo um e no máximo um cavalo alado de Belerofonte e ele é rápido”.

Chamando o predicado ‘cavalo alado de Belerofonte’ de B e o predicado ‘é

rápido’ de R, essa última sentença pode ser simbolizada como:

(1) (Ex) (Bx & (y) (By → y = x) & Rx).

Essa sentença é falsa, pois “(Ex) (Bx)” é uma sentença falsa.

Russell se defronta aqui com o seguinte problema. Considere a negação de

(1):

(2) O cavalo alado de Belerofonte não é rápido.

Pela teoria das descrições, a análise dessa sentença parece ser: “Há no

mínimo um e no máximo um cavalo alado de Belerofonte, e ele não é rápido”. 205

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Mas essa é uma sentença falsa, dado que a primeira sentença da conjunção

permanece a mesma e que ela é falsa. Assim, tanto a sentença analisada (1)

quanto a sua negação (2) são falsas. Mas essa conclusão infringe o princípio da

bivalência, segundo o qual a negação de uma sentença verdadeira é sempre falsa

e vice-versa.

A solução encontrada por Russell para o problema consiste em entender

sentenças similares a (2) como sendo ambíguas, admitindo duas leituras. Na

primeira, a descrição definida não é constituinte de uma expressão mais

complexa, tendo escopo amplo (ocorrência primária). Nesse caso temos

(3) (Ex) (Bx & (y) (By → y = x) & ~Rx)

que é uma sentença também falsa, posto que “(Ex) (Bx)” é falso. Mas (3) não é a

negação de (1) e sim o seu contrário. A negação de (1) é aquela na qual a

descrição definida se torna constituinte de uma expressão mais complexa,

passando a ter escopo estreito em relação a ela (ocorrência secundária). Nesse

caso ela será:

(4) ~(Ex) (Bx & (y) (B y → y = x) & Rx).

Ora, segundo essa interpretação a negação da sentença “Pégaso é rápido” é a

sua contraditória, ou seja, “Não é o caso que: Pégaso é rápido”, que se deixa

analisar como uma sentença verdadeira, demonstrando que a infração do

princípio da bivalência era apenas aparente.

2. Objeções de Strawson

Quero agora considerar algumas objeções mais importantes feitas à teoria das

descrições, para mostrar que nenhuma delas chega a ser decisiva.206

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Entre as objeções mais influentes destacam-se as de P.F. Strawson.1 Uma

primeira e mais geral objeção é a de que Russell analisa sentenças (sentences),

enquanto o que precisa ser analisado são sentenças enquanto estão sendo usadas

por seres humanos na conversação, a saber: enunciados (statements) – pois é aí

que se dá o ato de referir.

Essa objeção só se aplica realmente a sentenças que contém indexicais, como

é o caso da sentença escolhida por Strawson, que é (i) “O presente rei da França

é sábio”, cujo sentido epistêmico é completado pelo contexto. Outras sentenças,

como “O autor de Waverley é Scott” ficam imunes a essa objeção. Além disso,

como já vimos, mesmo no caso da sentença conter um elemento indexical, ele

pode ser essencialmente explicitado em parlavras no interior de sentenças, como

acontece na sentença (i’) “O Rei da França em 2012 é sábio”.

A segunda e mais famosa objeção é a de que enunciados sobre objetos

inexistentes não são falsos, como a teoria das descrições exige, mas destituídos

de valor-verdade. Considere, por exemplo, o seguinte enunciado:

(i) O atual rei da França é sábio.

Se perguntarmos a alguém se o atual rei da França é calvo, a pessoa não

responderá que isso é falso. Ela dirá: “Mas como assim? A França não tem rei!”

Em outras palavras, o enunciado em questão, embora possuidor de sentido, é

falho, não chegando a possuir valor-verdade. Strawson tem razões para pensar

assim. Para ele o enunciado “O atual rei da França é calvo” não implica no

enunciado “Existe um atual rei da França”, como pensa Russell, mas o

pressupõe. Um enunciado B pressupõe um enunciado A quando B só pode ser

verdadeiro ou falso no caso de A ser verdadeiro. Ora, como o enunciado “O

1 P.F. Strawson: “On Referring”.207

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atual rei da França existe” é falso, o enunciado “O atual rei da França é calvo”,

que o pressupõe, não pode ser nem verdadeiro nem falso.1

O recurso à pressuposição cria ao menos um problema imediato: o que dizer

de negações de enunciados de existência sem referência? Considere o enunciado

“O atual rei da França não existe”. Ele é certamente verdadeiro. Mas como o

enunciado por ele pressuposto – “O atual rei da França existe” – é falso, ele não

pode ser nem verdadeiro nem falso. Como vimos, Russell resolve esse caso sem

criar problemas.

Outro ponto, notado pelo próprio Russell em sua resposta a Strawson é que a

linguagem natural não é suficientemente perspícua para forçar-nos a concordar

com Strawson: se ela não nos fornece a intuição de que “O atual rei da França é

calvo” é uma sentença falsa, ela também não nos informa que a sentença não

possui valor-verdade.2

A resposta que me parece a mais acertada é a de Russell. Ela foi elaborada

por defensores da teoria das descrições na forma da seguinte explicação. 3

Embora não nos pareça intuitivamene claro qual possa ser o valor-verdade do

enunciado “O atual rei da França é sábio” ou mesmo que ele tenha um valor-

verdade, ele é de fato falso. E a razão disso fica clara quando o comparamos

com enunciados usuais como, digamos, “A rainha da Inglaterra tem cabelos

brancos” (dito em 2011). É que na imensa maioria dos casos, quando

predicamos falsamente alguma coisa, nós já estamos assumindo a existência do

objeto referido pela sentença para então constatarmos que o predicado não se

aplica a este objeto. Como no enunciado selecionado por Strawson isso não

acontece, nós o achamos estranho e confusivo, posto que ele é inútil no contexto

1 P.F. Strawson: Introduction to Logical Theory, p. 184 ss.2 Cf. Bertrand Russell: “Mr. Strawson on Referring”, pp. 245-6.3 Mark Sainsbury: Russell, pp. 120-121; Peter Hilton: “The Theory of Descriptions”, p. 230; Simon Blackburn: Spreading the Word: Groundings in the Philosophy of Language, pp. 309-310.

208

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de nossas práticas conversacionais. Por isso hesitamos em chamá-lo de falso. No

entanto, também nesse enunciado ocorre do predicado não se aplicar, se não pela

razão usual, que seria a de não ser satisfeito por propriedades do objeto referido

pelo termo singular, ao menos pela razão anômala de que não há nenhum objeto

sendo referido por um termo singular. Seja como for, o que é semanticamente

decisivo é se o predicado se aplica ou não. E como ele não se aplica é mais

correto dizer que ele é falso.

Essa explicação fica mais convincente quando percebemos que o enunciado

escolhido por Strawson é um caso isolado, e que muitos outros enunciados

destituídos de referência realmente são vistos como sendo falsos. Considere os

seguintes:

(i) O atual rei da França está querendo proibir os turistas de visitar o palácio de Versalhes.

(ii) O atual rei da França está namorando a minha mãe.(iii) Encontrei o atual rei da França fazendo exercícios na praia esta

manhã.

Apesar de não possuírem referência, os enunciados de (i) a (iii) nos parecem

claramente falsos.1 Mas por que eles contrastam com o exemplo de Strawson? A

razão parece-me ser a seguinte: por ser o termo geral ‘sábio’ desprovido de

articulação sintática, “O atual rei da França é sábio” é uma frase que enfatiza a

descrição definida, voltando-nos a atenção para o fato de que essa descrição não

se refere a coisa alguma. Mas nesse caso, por que predicar? Que sentido faz

dizer algo assim? Já nos exemplos (i)-(iii), predicados com articulação sintática

como ‘está querendo proibir os turistas de visitar o palácio de Versalhes’ nos

chamam mais a atenção do que a descrição definida, fazendo-nos atentar para o

fato de eles se aplicarem ou não, o que já basta para nos enclinarmos a lhes

atribuir valores-verdade. Esses predicados desviam-nos do fato perturbador que 1 Exemplos similares encontram-se em Stephen Neale: Descriptions, p. 27.

209

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é o da inutilidade conversacional de enunciados predicativos referencialmente

vazios. Mas como a estrutura dos enunciados (i)-(iii) é a mesma do exemplo

escolhido por Strawson, é natural e correto estender a atribuição de falsidade

também a esse exemplo ao invés de recorrer ao artifício da pressuposição.

Uma terceira objeção diz respeito à idéia de unicidade. A sentença (1) “A

mesa redonda está coberta de livros” começa com uma descrição definida. A

paráfrase russelliana dessa sentença seria: (2) “Existe no mínimo uma mesa

redonda, no máximo uma mesa redonda, e ela está coberta de livros”. Mas isso é

absurdo, pois implica que só existe uma mesa redonda no universo.

Há duas estratégias mais comuns para se responder a essa objeção. A

primeira consiste em sugerir que um enunciado como (1) é elíptico, vindo no

lugar de uma descrição mais complexa como (3): “A mesa redonda localizada

no meio da sala de estar do apartamento 403 do edifício Villagio… está coberta

de livros”. A análise russelliana disso não nos comprometeria mais com a

afirmação de que só existe uma mesa redonda no mundo.

Uma dificuldade com essa espécie de solução é que não existe uma regra que

nos permita identificar qual é a descrição completa. Considere a descrição (4)

“A mesa redonda que foi comprada por Ana Lúcia no ano passado está cheia de

livros”. Sendo verdadeira e se referindo a mesma mesa que (1), a descrição que

ela contém tem o mesmo direito de figurar como a descrição completa quanto

(3), pois (2) pode ser considerada uma forma elíptica de ambas. Como em geral

não somos capazes de dizer que descrição completa tínhamos em mente ao usar

a suposta descrição elíptica, a solução parece ser arbitrária.1

A outra estratégia consiste em limitarmos contextualmente o domínio dos

quantificadores. Assim, na sentença resultante da análise de (1) o domínio dos

quantificadores deve ficar contextualmente restringido, digamos, ao conjunto

dos objetos que se encontram no apartamento 403 do edifício Villagio de

1 Howard Wettstein: “Demonstrative Reference and Definite Descriptions”, pp. 241-257.210

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Milano. Chamando esse domínio de D, temos (5) “Existe somente um x

pertencente ao domínio D, tal que x é uma mesa redonda, e para todo y

pertencente ao domínio D, se y é uma mesa redonda, y = x, e x está coberta de

livros”. Além de evitar ambigüidades, essa estratégia é condizente com o fato de

que em nossa linguagem quantificadores nunca são usados em um domínio

verdadeiramente universal. Se digo “Todos os homens são mortais”, por

exemplo, me refiro ao domínio dos homens que viveram até hoje,

desconsiderando, por exemplo, homens que venham a nascer no futuro como

efeito de alguma manipulação genética capaz de deter o envelhecimento.

Uma objeção feita a essa solução seria que ela mostra que a descrição

analisada tem uma extensão maior do que a descrição original, não podendo

ambas ser equivalentes.1 Mas essa pode bem ser uma impressão ilusória.

Considere que em sua formulação analisada a sentença (1) quer dizer apenas (6)

“Existe somente uma mesa redonda (nesse apartamento), que está coberta de

livros”. Mas com (1) queremos dizer intuitivamente o mesmo que (7) “A mesa

redonda (desse apartamento) está coberta de livros”. Mas há realmente alguma

diferença entre (6) e (7)? Parece que não. É razoável pensarmos em (7) como

sendo uma sentença implicitamente quantificada, cujo domínio é estabelecido

pelo contexto conversacional como sendo o espaço do apartamento em questão,

dizendo por isso a mesma coisa que (6). Tipicamente, a unicidade da predicação

parece ser garantida por uma restrição do domínio da quantificação que varia

com a prática lingüística na qual o proferimento é feito.

3. Donnellan: usos atributivo e referencial

1 Jason Stanley e Timothy Williamson: “Quantifiers and Context Dependence”, pp. 291-295.211

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Outra objeção influente foi feita por Keith Donnellan.1 Esse filósofo partiu de

uma distinção entre dois usos da descrição definida, que ele chama de atributivo

e referencial.

Vejamos primeiro o uso atributivo, tradicionalmente considerado pela teoria

das descrições de Russell. Nele a descrição vale pelas propriedades que ela

atribui a algo. Assim, se é mostrado a alguém o cadáver de Mário, que foi

brutalmente assassinado, a pessoa pode ser levada a proferir a frase “O assassino

de Mário é insano”. Mesmo que desconheça o assassino de Mário, a pessoa

atribui a propriedade de ser o assassino de Mário e de ser insano a uma única

pessoa.

Vejamos agora o uso referencial identificado por Donnellan. Digamos que

alguém esteja em um tribunal e que o réu acusado de ter assassinado Mário se

comporte de forma insana. Querendo comentar o seu comportamento, a pessoa

pode ser levada a proferir a frase “O assassino de Mário é insano”. Mas aqui não

importa se o réu é realmente o assassino de Mário. Pode até ser que Mário não

tenha sido realmente assassinado. Mesmo assim, todos compreendem a quem a

pessoa está se referindo. No uso referencial as propriedades conotadas pela

descrição não têm importância; o que importa é a intenção de referência do

falante.

A opinião de Donnellan é de que a teoria de Russell não se aplica nem ao uso

referencial nem ao uso atributivo. Não se aplica ao uso referencial porque ao

afirmar que o assassino de Mário é insano dentro do contexto em questão, não se

está querendo dizer que existe exatamente um assassino de Mário, como a

análise de Russell sugere. O enunciado pode inclusive ser verdadeiro, mesmo

que o réu não seja o assassino, diversamente do que a análise russelliana prevê.

Está-se aqui apenas usando a descrição como uma ferramenta para a referência.

1 Keith Donnellan: “Reference and Definite Descriptions”.212

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Além disso, como Donellan aceita a teoria pressuposicional de Strawson, para

ele a teoria de Russell também não dá conta do uso atributivo.

Contra a opinião de Donnellan pode ser observado que no que concerne ao

uso atributivo, não há razões suficientes para crermos que a análise russelliana

não se aplica, dado que a crítica de Strawson não tem nada de decisivo. Mas que

dizer do uso referencial? Antes de respondermos, vale expor a importante

análise do uso referencial sugerida por Saul Kripke.1

Segundo Kripke, há no uso referencial duas espécies de referência: a

referência semântica (semantic reference) e a referência do falante (speaker

reference). A referência semântica diz respeito ao sentido literal das palavras na

descrição, que pode ser analisado pela aplicação da teoria das descrições. Para

explicá-la, considere outra vez o proferimento “O assassino de Mário é insano”

em seu uso referencial. Considerado pelo seu sentido literal, ele será um

proferimento falso no caso do réu em questão não ser o assassino de Mário. Mas

esse sentido literal não é o que está sendo tematizado no uso referencial. O que

importa no uso referencial é a referência do falante, que é o sentido não-literal

da referência mediado pelo contexto. Ao tematizar a referência do falante, a

descrição definida passa a funcionar indexicalmente, como uma espécie de

demonstrativo. A descrição “O assassino de Mário” tem o sentido de, digamos,

‘aquele réu que nós vimos hoje no tribunal’; eis porque o proferimento é

verdadeiro mesmo que o réu seja inocente. (Há é claro, casos nos quais a

descrição não identifica algo que se encontra no campo perceptual do falante,

mas isso não invalida a tese de que ela funciona como um indexical, posto que

demonstrativos nem sempre demandam que o referente sempre pertença ao

campo perceptual do falante.)

No uso referencial, a referência semântica é apenas um veículo para a

referência do falante. Esse ponto essencial é facilmente obscurecido pelo fato de

1 Ver Saul Kripke: “Speaker’s Reference and Semantic Reference”, pp. 6-27.213

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que entre o uso atributivo e o uso referencial há uma variedade de graus

intermediários, em que a referência semântica ainda mantém uma maior ou

menor importância. Se descontarmos isso, veremos que a tematização da

referência do falante torna a análise russelliana irrelevante para o caso do uso

tipicamente referencial.

Seja como for, o que a distinção kripkiana sugere é que o uso atributivo é que

é característico das descrições definidas, enquanto o uso referencial é

parasitário. Essa suspeita é reforçada quando percebemos que o fenômeno da

indexicalização do termo singular não se restringe às descrições definidas. Ele

também pode acontecer com nomes próprios. Digamos que em uma festa

alguém diga: “A Joana está soltando a franga”, referindo-se ao comportamento

estravagante de uma mulher que na verdade tem outro nome. Nesse caso ‘a

Joana’ está no lugar de um demonstrativo como ‘aquela moça loira...’ Isso

apenas reforça a idéia de que o uso referencial é secundário, não-literal,

adventício. Aqui o termo singular é usado como um indexical que conota apenas

um tipo genérico de coisa, por exemplo, ‘ele’ (‘o assassino de Mário’) ou ‘ela’

(‘a Joana’). A análise russelliana não se aplica a esses casos porque ela não foi

concebida para ser aplicada a indexicais camuflados na forma de descrições

definidas.

Por fim, é possível argumentar no sentido de mostrar que a análise russelliana

se aplica até mesmo à referência do falante no uso referencial. Afinal, se o

indexical também pode envolver um conteúdo semântico suficientemente

resgatável em termos descritivos, como já foi sugerido no capítulo anterior,

então a análise russelliana também deve se aplicar ao indexical e, por

conseguinte, ao uso atributivo. Ao invés de “O assassino de Mário é insano”

podemos dizer “Aquele sujeito no tribunal é insano”, e ainda “Existe somente

um x que é réu no julgamento do assassinato de Mário, e x é insano”. Ao invés

de “A Joana está soltando a franga” podemos dizer “Aquela moça loira 214

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dançando sozinha no salão está soltando a franga”, ou ainda “Existe no mínimo

um x e no máximo um x que é uma moça loira que dançou sozinha no final baile

de formatura, e x estava soltando a franga”.

4. Soluções russellianas dos enigmas da referência

A teoria das descrições foi criada para resolver os chamados enigmas da

referência, concernentes a descrições definidas e a nomes próprios. Quero expor

esses enigmas seguidos das soluções de Russell.

(i) Referência a inexistentes. Considere outra vez uma sentença cujo sujeito

gramatical não se refere a nada, como “O atual rei da França é calvo”. Como é

possível predicar calvície de algo que não existe? A resposta de Russell é que

esse problema só existiria se a descrição ‘o atual rei da França’ fosse uma

expressão referencial, funcionando como termo singular, um nome próprio. Mas

esse não é o caso. Chamando os predicados ‘atual rei da França’ de F e ‘é calvo’

de C, a teoria das descrições nos permite simbolizar “O atual rei da França é

calvo” como: “(Ex) (Fx & (y) (Fy → y = x) & Cx)”. Ou então, para usar uma

formulação mais intuitiva na qual parafraseamos ‘no mínimo um e no máximo

um’ por ‘exatamente um’ temos a seguinte sentença:

Existe exatamente um x, tal que x é o atual rei da França e x é calvo.

Em qualquer das formulações, uma coisa fica clara: não estamos predicando

calvície do atual rei da França! Por isso não precisamos assumir a existência

desse rei.

(ii) Existenciais negativos. O segundo enigma, uma variante do primeiro, diz

respeito à aparente impossibilidade de se negar a existência de um objeto

quando o enunciado em que se nega a existência é sobre esse mesmo objeto.

Para esclarecê-lo, considere as seguintes frases:215

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(1) O atual rei da França não existe,(2) (1) é sobre o atual rei da França.

Ambas parecem ser verdadeiras. Mas elas são inconsistentes entre si. Se a

frase (2) é verdadeira e (1) é sobre o atual rei da França, então a frase (1) precisa

ser falsa e vice-versa.

Russell resolve o enigma sugerindo que (2) é uma sentença falsa. Para tal ele

interpreta a descrição definida em (1) como possuindo um escopo estreito em

relação à descrição definida. A forma analisada da sentença (1) fica sendo ~(Ex)

((Fx & (y) (Fy → y = x)), ou ainda, em uma formulação mais intuitiva:

Não é o caso que existe somente um x, tal que x é o atual rei da França.

Essa é uma sentença verdadeira, pois é a negação de uma conjunção falsa.

Mas com ela não nos comprometemos com a existência do atual rei da França

para podermos negar que ele existe. Nós nos comprometemos apenas com a

negação da existência de algo que tenha a propriedade de ser o atual rei da

França.1

(iii) Sentenças de identidade. O terceiro enigma é o paradoxo fregeano da

identidade. Considere o enunciado: (1) “O autor de Waverley é Scott”. Ele

contém duas expressões referenciais, ambas denotando a mesma pessoa. Mas se

é assim, então a sentença (1) deveria ser tautológica, dizendo o mesmo que (2)

“Scott é Scott”. Contudo, sabemos que (1) é uma sentença informativa e

contingente. Por quê?

1 Ignoro imperfeições na análise de Russell como o fato de que a negação é verdadeira não só no caso de não existir nenhum atual rei da França, mas também no caso de existir mais de um.

216

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A solução de Russell consiste outra vez em fazer desaparecer a descrição

definida. Chamando Scott de s, podemos parafrasear a identidade como “(Ex)

(Wx & (y) (Wy → y = x) & (x = s))”. Ou, mais intuitivamente:

Existe somente um autor de Waverley e ele é Scott.

Através dessas formulações fica claro que (1) é uma sentença informativa, pois

o que dizemos deixa de apresentar uma identidade tautológica para se tornar

uma afirmação substantiva.

(iv) Opacidade. Um quarto enigma que a teoria das descrições é chamada a

resolver é o da intersubstitutividade em sentenças que exprimem atitudes

proposicionais, que são estados relacionais conectando uma atitude mental a

uma proposição ou pensamento. Considere, por exemplo, a sentença “George IV

acredita que Scott é Scott”. Para acreditar nisso de forma indubitável, ela precisa

apenas saber aplicar o princípio da identidade. Pois Scott é Scott é uma verdade

necessária. Mas como o nome ‘Scott’ e a descrição ‘o autor de Waverley’ se

referem reconhecidamente a uma mesma pessoa, parece que podemos substituir

a primeira ocorrência da palavra Scott na primeira sentença por essa descrição,

disso resultando “George IV acredita que o autor de Waverley é Scott” sem que

a sentença se torne falsa. Mas não é isso o que acontece: pode muito bem ser

que essa última sentença seja falsa, apesar da primeira ser verdadeira. Por que é

assim?

Para responder a essa objeção, podemos usar a teoria das descrições para

parafrasear a descrição que vem após ‘George IV acredita’ como:

George IV acredita que existe somente um autor de Waverley e que ele é Scott.

217

Page 218: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Certamente, essa é uma crença informativa, claramente distinta da crença

tautológica de que Scott é Scott. Por isso ela pode ser falsa.

5. Soluções fregeanas para os enigmas da referência

Frege tem uma solução explícita para os dois últimos enigmas da referência.

Quanto aos dois primeiros, a solução pode ser reconstrutivamente buscada.

(i) Referência a inexistentes. Frege sugeriu que na linguagem ideal o termo

singular sem referência deva se referir ao conjunto vazio. Podemos aplicar essa

sugestão à linguagem ordinária, sugerindo que uma frase como “O atual rei da

França é calvo” é falsa, posto que o conjunto vazio não é calvo. Mas além de ser

artificiosa essa sugestão conduz a conclusões absurdas, como a de que a frase

“Pégaso é o atual rei da França” é verdadeira, posto que tanto ‘Pégaso’ quanto

‘o atual rei da França’ se referem a mesma coisa, a saber, ao conjunto vazio.

Uma alternativa mais aceitável, que irei admitir para fins de discussão,

consiste em sugerir que os termos singulares sem referência adquirem em frases

referência indireta, passando o predicado a eles ligado a aplicar-se ao seu

sentido e não mais ao seu objeto. Assim, o predicado ‘...é calvo’ na frase ‘O

atual rei da frança é calvo’ passa a se referir ao sentido da descrição ‘o atual rei

da França’. No linguajar fregeano, o que cai sob o conceito referido pelo

predicado deixa de ser um objeto para se tornar o próprio sentido do termo

singular. Mesmo que essa aplicação do predicado não lhe permita alcançar o

objeto, ela é capaz de nos permitir ao menos completar o pensamento e dar

sentido à frase, ao menos na medida em que o termo singular possui realmente

sentido.1 Além disso, frases com termos singulares vazios não teriam valor-

verdade, pois aplicado o predicado apenas ao seu sentido (podemos supor) não

1 Penso em casos de termos singulares vazios como ‘Vulcano’, que foram propostos com um modo de apresentação voltado para o mundo real, o que não é o caso de nomes meramente ficcionais.

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teríamos como saber se o predicado se aplica à referência do termo singular ou

não.

(ii) O enigma dos existenciais negativos pode ser mais razoavelmente resolvido

usando a concepção fregeana de existência. Considere, por exemplo, a frase (1):

“O atual rei da França não existe”. A existência é para Frege uma propriedade

do conceito de sob ele cair ao menos um objeto. Assim, a frase (1) não é sobre o

atual rei da França, mas sob o seu conceito. A sua formalização não é ~Ef (onde

‘~E’ estaria predicando a inexistência e ‘f’ estaria no lugar da descrição

definida). Mas, estando o predicado F no lugar de ‘...é atual rei da França’, uma

formalização aproximada seria “~Ex(Fx & (y) (Fy → y = x))”, ou seja, “Não

existe um x que é atual rei da França, e para todo y que é atual rei da França, ele

é x”, mais brevemente, “Não existe um algo que seja o atual rei da França”.

Além disso, se nomes próprios, como Frege teria sugerido, são abreviações de

feixes de descrições definidas, então uma estratégia semelhante seria aplicável a

existenciais negativos com nomes vazios, como “Pégaso não existe”. O que essa

frase quer dizer é que o conceito de algum modo expresso pelo feixe de

descrições definidas abreviado pelo nome ‘Pégaso’ não é satisfeito por nenhum

objeto.

(iii) O enigma da identidade entre descrições pode ser exemplificado pela frase

mais discutida da filosofia analítica: “A estrela da manhã é a estrela da tarde”.

Para Frege tal frase de identidade é informativa porque as descrições ‘a estrela

da manhã’ e ‘a estrela da tarde’ têm sentidos ou modos de apresentação do

objeto que são diferentes, apesar de ambas terem a mesma referência, o planeta

Vênus. Ora, é informativo dizer que esses dois valores epistêmicos diversos

dizem respeito a um mesmo objeto.

(iv) Quanto ao enigma dos contextos opacos, Frege sugere que em

proferimentos de atitudes proposicionais a frase subordinada não tem a

referência habitual, mas uma referência indireta, que é o seu próprio sentido. 219

Page 220: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Assim, no proferimento “George IV acredita que o autor de Waverley é Scott”, a

referência da frase subordinada “o autor de Waverley é Scott” não é nem o seu

valor-verdade nem o fato no mundo, mas o pensamento por ela expresso. Como

“o autor de Waverley é Scott” exprime um pensamento diferente de “Scott é

Scott”, a substituição salva-veritate entre eles não é possível.1

Não quero discutir aqui as objeções de detalhe que poderiam ser feitas a cada

uma dessas soluções. Quero responder apenas à objeção geral feita às soluções

fregeanas dos enigmas da referência, segundo a qual elas nos comprometem

com um realismo platonista de sentidos e pensamentos, diversamente da solução

ontologicamente mais econômica de Russell.

Não creio que o compromisso com entidades abstratas seja forçoso. Como já

vimos no capítulo sobre Frege, os sentidos fregeanos podem ser identificados

com regras ou combinações de regras semântico-cognitivas, as quais

determinam usos referenciais das expressões.2 Sob esse entendimento o sentido

da descrição definida deve ser uma regra capaz de identificar o objeto a ela

associado. Como já vimos, o mesmo pode ser suposto com respeito a outras

expressões lingüísticas, disso resultando uma paráfrase do discurso sobre

sentidos através de um discurso sobre regras cognitivas, o qual pode ser visto

como ontologicamente inócuo.

1 Há o problema decorrente do fato de que se a frase subordinada se refere ao seu sentido ela precisa exprimir um sentido idêntico de nível superior através do qual faça essa referência, o qual parece permanecer opaco à apreensão intuitiva, além de produzir eventuais regressos. Melhor seria não tomarmos o esquema fregeano demasiado a sério. Não existem sentidos de nível superior aqui. Acontece apenas que quando a referência usual não entra mais em questão, a única referência que resta é o próprio sentido. A frase subordinada expressa um sentido ao mesmo tempo que se refere a ele em função de sua dependência da frase principal.2 Como já foi observado no capítulo 2, essa idéia é plausível, dado que a linguagem é um sistema de convenções, o que é perfeitamente compatível com a identificação do significado com o uso por um filósofo como Wittgenstein, posto que o significado não pode ser o uso-ocorrência, mas sim o modo de uso, e o modo de uso nada mais pode ser do que a regra ou combinação de regras que produz o uso-ocorrência. Até mesmo a idéia de Russell de que o sentido de um nome próprio lógico como “Isso-vermelho” é o próprio sense-datum do vermelho torna-se mais aceitável se ele for, ao invés, identificado com uma regra que associe a palavra ‘isso’ à cognições de sense-data de vermelho.

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Aqui também poderá ser feita a objeção de que estamos apenas substituindo a

palavra ‘sentido’ pela palavra ‘regra’, e que essa é uma solução meramente

verbal, pois se os sentidos são entidades abstratas, as regras também parecem sê-

las. No entanto, também é possível responder, como já fizemos, alegando que as

regras em questão não existem fora de suas instanciações como eventos

cognitivo-psicológicos capazes de se evidenciar publicamente pelas

manifestações comportamentais de suas aplicações, nada mais existindo fora

disso. Tais cognições podem ser identificadas como iguais umas às outras, não

por serem instanciações de algum objeto abstrato, “a Regra”, mas por

similaridade suficiente com outros atos anteriores de sua aplicação, que nos

serviriam de modelos. Tal assunção impede que o sentido – o modo de

apresentação informacional parafraseado como regra semântica – seja

injustamente decepado pela navalha de Ockham.

6. Compatibilizando “Russell” com “Frege” (considerações preliminares)

Quem está certo? Russell ou Frege? Muita tinta já foi derramada na disputa

sobre a teoria correta. Como já observei no início, minha sugestão é que não se

trata de uma questão de escolha entre uma e outra teoria, uma vez que ambas

podem ser tornadas compatíveis entre si. Melhor dizendo: se elas forem

revisadas de maneira suficientemente radical, elas podem ser demonstradas

formas diversas de se dizer o mesmo. Pois é lícito supor que a incompatibilidade

entre as duas teorias resulta dos pressupostos e princípios metafísicos

implausíveis que seus autores lhes adicionaram como complementos que eles

tinham por necessários. Assim, minha proposta é reapresentar essas teorias

retirando-lhes a gordura metafísica, ou seja, depurando-as de seus respectivos

pressupostos e compromissos implausíveis e preenchendo as lacunas com novos

pressupostos, o principal deles sendo a interpretação dos sentidos fregeanos

como regras semânticas semântico-cognitivas. É isso o que faremos a seguir.221

Page 222: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Comecemos com Frege. Já vimos que é preciso eliminar o anacrônico

realismo ontológico dos sentidos, que devem ser vistos como simples

instanciações psicológicas de conteúdos ou regras semânticas. Repetindo o que

já foi sugerido em nossa leitura de Ernst Tugendhat no capítulo 3, para o caso

fundamental das frases predicativas singulares o termo singular possui uma

regra de identificação, o termo geral possui uma regra de aplicação e a frase

singular predicativa possui uma regra de verificação, constituída pelo que

poderíamos chamar de um uso combinado de sua regra de identificação com a

sua regra de aplicação1, sendo perfeitamente plausível identificarmos os sentidos

fregeanos desses elementos da linguagem com as suas respectivas regras

semânticas. Assim:

1) Sentido da termo singular (modo de apresentação do objeto) = regra de identificação do termo singular, cujos critérios de aplicação são propriedades identificadoras do objeto.

2) Sentido do termo geral (conteúdo conceitual) = regra de aplicação da expressão predicativa, cujos critérios de aplicação seriam propriedades particularizadas associadas ao objeto.

3) Sentido completo da frase (pensamento) = regra de verificação da frase predicativa singular, cujos critérios de aplicação seriam os fazedores da verdade, como vimos, os fatos.

Uma outra coisa que fizemos foi parafrasear a noção de existência. Vimos no

capítulo 3 que para Frege e também para Russell a existência é a propriedade

que um conceito tem de ser satisfeito por ao menos um objeto2, ou, como

preferimos entender, a propriedade de aplicar-se de modo efetivo (e não

meramente suposto) a pelo menos um objeto durante um certo período de tempo

(no qual ele é dito existente). Se dizemos saber que um objeto existe, o que

queremos dizer é que sabemos que o seu conceito é efetivamente e 1 Ernst Tugendhat: Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, p. 262. Ver também Ernst Tugendhat e Ursula Wolf: Propedêutica Lógico-Semântica, p. 185.2 Gottlob Frege: Die Grundlagen der Arithmetik, par. 53.

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Page 223: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

continuamente aplicável enquanto o objeto puder ser dito existente.

Considerando que conteúdos conceituais são sentidos e que sentidos são regras,

então o que chamamos de existência desse objeto passa a ser a propriedade de

uma regra conceitual de se aplicar efetiva e continuamente a pelo menos um

objeto. Mais ainda, vimos que isso não retira da existência certa objetividade.

Pois se ela é a efetiva aplicabilidade de uma regra conceitual, então o seu objeto

pode ser dito existente na medida em que ele possui a propriedade de satisfazer a

regra, ou seja, de ter essa regra efetiva e continuamente aplicável a ele mesmo.

Isso pode ser admitido para cada uma das regras consideradas: (i) a existência de

um objeto é a efetiva aplicabilidade da regra de identificação do seu termo

singular, (ii) a existência de uma propriedade singularizada é a efetiva

aplicabilidade da regra de aplicação de seu predicado, e (iii) a existência de um

fato é a efetiva aplicabilidade da regra de verificação da sentença (o que para

nós só é constatado através de comprovações experienciais de sua aplicação).1

Ora, se as existências do objeto e da propriedade que lhe predicamos são,

respectivamente, a efetiva aplicabilidade da regra de identificação de seu nome e

a efetiva aplicabilidade da regra de aplicação do seu predicado, então a

existência do fato deve ser a propriedade da regra de verificação da frase de ser

efetivamente aplicável ao que a frase descreve, e como a regra de verificação é o

1 Cada um desses três casos pode ser expresso pela lógica predicativa, na medida em que transformarmos as expressões referenciais em expressões predicativas, delas predicando existência: Considere a frase “Mamíferos voadores existem”; simbolizando ‘mamíferos’ por M e ‘voadores’ por V, temos “(Ex) (Mx & Vx)”. Considere uma descrição definida como em “A estrela da manhã existe”; simbolizando o predicado ‘estrela da manhã’ como M temos “Ex (Mx & (y) (My → y = x))”. Para o nome próprio na frase ‘Sócrates existe’, abreviando o conteúdo descritivo que o nome possa conter através do predicado ‘socratiza’ e simbolizando o último por S, temos (Ex) (Sx & (y) (Sy → y = x)). Considere, ainda, a frase predicativa singular “Sócrates é calvo”, que pode ser traduzida como “Existe somente um algo que é Sócrates e ele é calvo”. Entendendo-se ‘Sócrates’ como a abreviação de descrições analisáveis através de predicados, abreviando esses predicados por meio do predicado ‘socratiza’, que simbolizamos como S, e simbolizando o predicado ‘calvo’ como C, temos “Ex (Sx & (y) (Sy → y = x) & Cx)”.

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mesmo que o pensamento, a existência do fato deve ser também o mesmo que a

efetiva aplicabilidade do pensamento expresso pela frase.

Com isso passamos à relação entre existência e verdade. Se a existência da

referência do pensamento, que é o fato, é a propriedade de seu pensamento de

ser efetivamente aplicável, e se, como também havíamos sugerido, a verdade do

pensamento, da regra de verificação da frase, é também a sua efetiva

aplicabilidade, então a atribuição de existência ao fato deve ser algo análogo à

atribuição de verdade ao seu pensamento. Ou ainda: a atribuição de existência

do fato é o mesmo que a atribuição de verdade do seu pensamento. Ou seja:

dizer que o pensamento expresso pela frase “Sócrates é calvo” é verdadeiro é o

mesmo que dizer que o pensamento, a regra verificacional expressa por essa

frase, é aplicável ao fato, que as configurações criteriais por ela exigidas

correspondem às configurações criteriais constitutivas do fato, ou ainda, que é

um fato que Sócrates é calvo, ou ainda, que esse fato existe. Conversamente,

atribuir existência a um fato é a mesma coisa que atribuir efetiva aplicabilidade

à regra verificacional constitutiva de seu pensamento, o que é o mesmo que

atribuir verdade ao pensamento expresso pela frase correspondente. A existência

do fato, já dissemos, é a verdade de seu pensamento.

Finalmente, quero tratar as frases sem referentes como sendo no final das

contas falsas, e não como sendo destituídas de valor-verdade, como Frege

sugeriu em alguns exemplos. Afinal, a razão pela qual Frege pensava que frases

com componentes sem referência são destituídas de valor-verdade está em sua

insistência na idéia artificial de que a referência da frase deva ser o seu valor-

verdade. Mas como, contrariamente a Frege, estamos dispostos a admitir que a

referência da frase seja um fato, a ausência desse fato – devida à falta de

referência do termo singular – conduz apenas à falsidade da frase. Ora, isso já

aproxima bastante o nosso Frege revisto da posição de Russell, que via frases

com descrições definidas vazias como sendo falsas.224

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Passemos agora à revisão dos pressupostos da teoria das descrições de

Russell. Um primeiro passo consiste em descartarmos a tese (a) de Russell: a sua

afirmação de que descrições definidas e nomes próprios usuais (que para ele são

descrições) não referem, não são expressões referenciais no sentido de não

serem termos singulares. O resultado disso, como Ernst Tugendhat notou, é que

todos os nossos enunciados passam a ser gerais e deixam de existir enunciados

singulares, de modo que não podemos mais nos referir a objetos particularse;

mas nesse caso, como construir enunciados gerais, se as suas condições de

verdade remetem a enunciados singulares?1

Afora isso, é óbvio que do ponto de vista definitório as descrições definidas e

nomes próprios comuns são termos singulares. Eles são os modelos para tal

definição! Descrições e nomes próprios usuais só não são termos singulares sob

a moldura artificial do peculiar e implausível referencialismo semântico

sustentado por Russell, segundo o qual somente os nomes próprios lógicos

seriam expressões referenciais verdadeiras. Certamente, essas expressões não

são capazes de funcionar como os putativos nomes próprios lógicos, pois a

técnica da teoria das descrições mostrou que elas são parafraseáveis como

funções predicativas quantificadas. Mas nada disso as faz perder a função

identificadora dos termos singulares no sentido próprio da expressão! Pois se o

termo singular é definitoriamente entendido como uma expressão referencial

cuja função é a de identificar um único objeto particular, e se a descrição

definida e o nome próprio usual são termos singulares (que mesmo quando

russellianamente analisado continuam a nos informar da existência de

exatamente um único objeto com propriedades que, devidamente

contextualizadas, se tornam identificadoras de objetos particulares, então elas

preservam a função referencial, elas são, precisam ser, termos singulares. Que

isso seja feito através de funções predicativas quantificadas é indiferente. Se

1 E. Tugendhat: Lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem, p. 437.225

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abstrairmos a distorciva metafísica russelliana que hipostasia a função

referencial dos supostos nomes próprios lógicos, as descrições definidas, assim

como os nomes próprios comuns, voltam a se afigurar como autênticas

expressões referenciais.1

Em segundo lugar, devemos rejeitar também a tese (b) de Russell: a sua

confusa sugestão de que as descrições definidas não possuem qualquer sentido

em si mesmas.2 Essa idéia parece-me proveniente de um amálgama

escassamente inteligível do princípio fregeano do contexto e da noção de

incompletude da predicação: se o significado é o objeto e a descrição definida

deixa de nomeá-lo para designar propriedades, ela não pode ter significado fora

do contexto de algo mais que é oferecido pela sentença. Contudo, se rejeitarmos

a doutrina de que os sentidos dos supostos nomes próprios lógicos (ex:

“Vermelho-isso”) são os seus referentes e admitirmos que o sentido é sempre

dado por regras semânticas, fica claro que a exigência da aplicação do predicado

a um único objeto feita pela análise russelliana já constitui uma regra de

identificação constitutiva de um sentido completo. Uma descrição definida deve

1 De nada adianta, como faz Gareth Evans (Varieties of Reference, p. 56) notar que as descrições definidas podem se referir a indivíduos diferentes em diferentes mundos possíveis, pois podemos rigidificá-las. Além disso, podemos entendê-las como semanticamente subordinadas ao nome próprio correspondente, de modo a admitirmos que ela identifica o objeto apenas na medida em que esse nome próprio também o identifica. Assim, no mundo possível no qual João da Silva e não Benjamin Franklin foi o inventor das bifocais, podemos dizer que a descrição ‘o inventor das bifocais’ deixou de referir-se ao seu objeto usual, o que não lhe faz perder a característica de ser uma marca identificadora de Benjamin Franklin em nosso mundo., ao entendê-las como nomes próprios, rigidificá-las. Uma descrição definida não deixa de funcionar como um termo singular, conquanto ela se refira a um único indivíduo em qualquer mundo possível, na medida em que indivíduo tiver a propriedade que ela descreve, pois mesmo que esse indivíduo seja outro no sentido de que ele possui outras propriedades mais importantes que lhe são constitutivas, eledele são muito diferentes, , como veremos, elas só são termos singulares enquanto rigidificadas e só não são rígidas na medida em que são usadas em contraste com nomes próprios correspondentes (ver capítulo 6 do presente livro).2 “De acordo e advogo, uma expressão denotativa é essencialmente parte de uma sentença, e não tem, como a maioria das palavras isoladas, qualquer significação por si mesma”. B. Russell: “On Denoting”, p. 489.

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funcionar como um termo referencial com significado completo, o qual nada

mais deve ser do que a regra identificadora por ela expressa.1

7. Compatibilizando “Russell” com “Frege” (os enigmas da referência)

Uma vez de posse das análises de Frege e Russell destituidas de seus

implausíveis invólucros teorético-especulativos, o essencial de minha estratégia

passa a ser usar as identificações de sentidos com regras semânticas e da

existência com as efetivas aplicabilidades dessas regras para construir uma ponte

capaz de nos permitir trafegar dos sentidos “fregeanos” para as definições

contextuais “russellianas” e vice-versa. Por essa via espero mostrar que as

respostas fregeanas e russellianas revisadas dos enigmas da referência são

intertraduzíveis. Eis como isso pode ser feito com respeito às soluções dos

enigmas fregeanos da referência:

Referência a inexistentes. Já vimos que nesse caso a solução fregeana de apelar

para o conjunto vazio é artificial e não traduz uma aplicação de sua teoria do

sentido. Nem me parece suficientemente correto dizer que quando em uma frase

o objeto referido pelo termo singular não existe, ele passa a ser entendido como

possuindo referência indireta, referindo-se ao seu sentido. Pois como então

explicaríamos a aparente falsidade de sentenças como “O atual rei da França

veio jantar comigo na semana passada”?

Um melhor entendimento emerge quando traduzimos os sentidos fregeanos

em termos de regras semântico-cognitivas. Nesse caso diremos, fazendo nossa

uma sugestão de Ernst Tugendhat, que em frases predicativas singulares

1 Podemos especular se não seriam os predicados da descrição analisada expressões que nos permitiriam designar conjuntos de sense data que, estabelecidos como univocamente existentes pelos quantificadores existencial e universal, se transformariam em conjuntos de propriedades constitutivos de propriedades e relações do objeto referido. Russell não dispunha da noção de propriedade como tropo (propriedade particularizada no espaço e no tempo), nem via os predicados como designando menos do que os próprios universais. Mas nós somos ao menos em princípio autorizados a analisar os predicados da descrição como designadores de propriedades através de sense-data.

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Page 228: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

verdadeiras a regra de aplicação do predicado se aplica a sua referência usual

por intermédio da aplicação da regra de identificação do termo singular.

Considere, por exemplo, a frase de Iuri Gagarin ao ver a terra pela primeira vez

à distância:

A terra é azul.

Primeiro ele precisou identificar alguma coisa no espaço, um objeto, o planeta

terra. Só por meio dessa identificação ele pôde aplicar o predicado ‘...é azul’ ao

objeto que ele havia individuado. Vemos que a regra de aplicação do predicado

‘...é azul’ precisa ser primeiro, digamos assim, orientada pela aplicação da regra

de identificação do objeto a ser referido (que seleciona entre outros aquele

chamado ‘terra’), de maneira a encontrar o objeto, só então podendo aplicar-se a

ele de maneira a identificar sua propriedade singularizada de ser azul. A regra de

aplicação do predicado precisa, pois, aplicar-se em combinação com a regra de

identificação do objeto, pois só assim ela pode encontrá-lo de modo que ele

possa satisfazê-lo ou não. Note-se que se a frase fosse “A terra é vermelha”, ela

seria falsa, pois o objeto individuado pela regra de identificação do nome não

satisfaria a regra de aplicação do predicado ‘vermelho’.

Vejamos agora o caso de termos singulars vazios, da pretensa referência a

inexistentes, como a encontrada na sentença “Vulcano é vermelho”. Vulcano,

como é sabido, é um planeta que os astrônomos acreditavam que deveria existir

entre o Sol e Mercúrio de maneira a explicar as variações no periélio do último,

tendo sido inclusive calculado que ele se encontraria a cerca de 21 milhões de

quilômetros do Sol, sendo esse o seu sentido fregeano, o modo de apresentação

do objeto. Mas para a decepção dos astrônomos, Vulcano nunca foi encontrado,

sendo hoje indubitável a conclusão de que ele não existe, de que a sua regra de

identificação é inaplicável, de que a sua referência é vazia. Como resultado 228

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disso, a aplicação da regra de aplicação do predicado ‘...é vermelho’ também

fica também impossibilitada. Como a regra de identificação do termo singular

não chega a aplicar-se ao seu objeto, a regra de aplicação do predicado também

não o alcança, não chegando a ser satisfeita por nenhuma propriedade realmente

dada, o que faz com que o predicado não se aplique e com que a frase seja falsa

(pace Frege).

Contudo, aqui já temos uma explicação mais apropriada para o que acontece.

Isso só é possível a meu ver devido à imaginação. Nós somos capazes de

conceber como seria a aplicação de ambas as regras em combinação, embora

não possamos aplicá-las combinadamente ao mundo real. É só na medida em

que somos capazes de conceber como seria a aplicação de ambas as regras de

modo combinado em uma situação real, na constituição do que Tugendhat

chamou de uma regra de verificação, que compreendemos o significado da frase,

que a frase exprime um pensamento, um sentido fregeano.

É por isso que uma frase como “O atual rei da França é sábio” já é capaz de

exprimir um sentido completo, um pensamento. Isso quer dizer que já somos

capazes de conceber as duas regras usadas em combinação de modo a formarem

a regra de verificação, o sentido da frase, o pensamento, que por falta de objeto

e, portanto, de um fato correlato, fica sem aplicação, tornando a frase falsa.

À questão de saber como é possível predicar calvície de algo que não existe,

a resposta fica agora sendo: nós só predicamos na medida suficiente para formar

o pensamento, ou seja, só na medida em que o sentido do termo singular passa a

ser concebido pela imaginação como estando em combinação com o sentido do

predicado de modo a construir um pensamento completo concebivelmente

aplicável, mas que permanece inaplicado. Nós só predicamos, pois, de maneira a

dar sentido à frase, ou seja, de maneira a produzir uma combinação da regra de

aplicação com a regra de identificação, de modo a formar a regra de verificação

que é o pensamento, aplicável a um fato meramente concebível. Mas nós não 229

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predicamos da maneira completa que se dá quando a regra de aplicação do

predicado se aplica à propriedade do objeto identificado pelo termo singular,

posto que esse objeto não existe. Trata-se de uma predicação incompleta,

parcial, inacabada, sem força assertórica, pois sem relação com o mundo.

Ora, à luz dessa reconstrução fica mais fácil fazer a teoria do sentido

concordar com a teoria das descrições. Podemos parafrasear a descrição ‘o atual

rei da França’ russellianamente como ‘somente um x, tal que x é atualmente rei

da França’. E podemos dizer que o que ganhamos com isso é uma formulação

analisada do mesmo sentido fregeano, da mesma regra de identificação para o

atual rei da França, que passa a ser vista como possuindo dois componentes:

(i) a condição de univocidade,(ii) a regra de aplicação do predicado ‘é atualmente rei da França’.

Trata-se de uma regra de identificação porque ela permite distinguir um e não

mais do que um objeto através de sua propriedade criterial, que é a de reinar a

França na atualidade. A inexistência do atual rei da França corresponde à

inaplicabilidade desse predicado e portanto da regra de identificação formada

por (i) e (ii), e portanto, à falta de referência do sentido por ela formado. Quanto

ao predicado ‘x é sábio’, ele também não se aplica, posto que não existe algo

com a propriedade de ser o atual rei da França a que ele possa se aplicar. Mas

esse predicado também expressa uma regra de aplicação e portanto um sentido

fregeano. Juntando os fios, pela sentença “Existe somente um x tal que x é

atualmente rei da França e x é calvo”, nada mais fazemos do que tentarmos

aplicar a mesma regra de verificação que a expressa pela frase “O atual rei da

França é calvo”, ou seja, nada mais fazemos que tentar asserir o mesmo sentido,

o mesmo pensamento, percebendo então que a regra não possui aplicação

efetiva, que esse pensamento não corresponde ao fato, que o pensamento é

230

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falso. É falso porque, pela inaplicabilidade da regra de identificação, a regra de

aplicação do predicado não tem como encontrar seu objeto, ou, em termos

fregeanos, não há objeto a cair sob o conceito. Analisando o caso da referência

a inexistentes vemos já que é possível transitar de uma explicação “fregeana”

para uma explicação “russelliana” e vice-versa, usando como ponte a

identificação do sentido fregeano com a regra semântico-cognitiva.

(ii) Existenciais negativos. Em um entendimento fregeano, a negação da

predicação de existência seria a negação da propriedade do conceito de ter ao

menos um objeto que o satisfaça. No caso da frase “O atual rei da França não

existe”, queremos dizer que o sentido de ‘o atual rei da França’ não encontra a

sua referência.

Como expressaríamos isso falando de regras semântico-cognitivas no lugar

de sentidos? Ora, diríamos que o sentido de uma descrição definida como ‘o

atual rei da França’, é dado por sua regra de identificação. Como a existência

nada mais é do que a efetiva aplicabilidade de uma regra conceitual, dizer que o

objeto referido por essa regra de identificação não existe, é o mesmo que dizer

que essa regra não tem a efetiva e contínua aplicabilidade demandada.

Passemos agora à análise “russelliana”. Nela uma descrição como ‘o atual rei

da França’ é transformada em ‘ao menos um x e não mais que um x tal que x é o

atual rei da França’. Com isso o que temos é uma regra de identificação, posto

que ela deve distinguir um objeto particular. Essa regra é a meu ver composta

por duas sub-regras:

(i) a condição de unicidade e(ii) a regra de aplicação do predicado ‘...atual rei da França’.

Dizer que o atual rei da França não existe é ao menos dizer “Não é o caso que

existe ao menos um x e não mais que um x, tal que x é atualmente rei da

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Page 232: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

França”, e isso é o mesmo que dizer que essa regra de identificação composta

pelas condições (i) e (ii) não é efetivamente aplicável. Qual a diferença entre

essa regra, a regra anterior e o sentido da descrição? A resposta é que se trata de

exposições diversas da mesma coisa. A regra de identificação é apenas

decomposta pela análise “russelliana” em duas: a regra de unicidade e a regra de

aplicação do predicado. Dizer que o atual rei da França existe é dizer que a regra

de aplicação do predicado ‘atual rei da França’ se aplica e que ela se aplica a um

único objeto. E dizer que o atual rei da França não existe é dizer que a regra de

aplicação do predicado ‘atual rei da França’ não se aplica e que ela não se aplica

a um único objeto.1 Como o que temos são formas diversamente analisadas do

modo como a referência é determinada, as análises “russelliana” e “fregeana”

dos existenciais negativos convergem no sentido de se tornarem duas maneiras

diversas de se dizer o mesmo.

(iii) Identidade. Considere agora sentenças de identidade como “A estrela da

manhã é a estrela da tarde”. Como pode ser essa sentença informativa, se as

descrições se referem a um mesmo objeto? A resposta de Frege é que essas

descrições têm sentidos diferentes e que mostrar que a mesma referência pode

ser acessada de modos diferentes é informar. Parafraseando o conceito de

sentido em termos de regra, o que Frege sugere é que a frase acima é

informativa porque nos diz que podemos identificar o mesmo objeto através de

duas regras de identificação diferentes, que apelam a configurações criteriais

diversas.

Em termos da teoria das descrições, chamando o predicado ‘estrela da

manhã’ de M e o predicado ‘estrela da tarde’ de T, a frase de identidade fica

simbolizada como “Ex (Mx & Tx & (y) (My → y = x)) & (z) (Tz → z = x))”. Ou

seja: “Existe somente um x que é estrela da manhã e esse mesmo x é estrela da

1 É verdade que a possibilidade de existirem vários reis da França fica aberta, mas esse é um problema secundário que também atinge a formulação russelliana.

232

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tarde”. Mas como a conjunção da regra de aplicação de um predicado com a

cláusula de que ela não pode se aplicar a mais de um objeto constitui, como

vimos, uma regra de identificação desse objeto, o que essa frase quer dizer é que

tanto a regra de aplicação do predicado ‘estrela da manhã’ quanto a regra de

aplicação do predicado ‘estrela da tarde’ efetivamente se aplicam a não mais que

um único objeto que acontece de ser o mesmo. Assim, a análise russelliana nos

garante que a regra de identificação constituída por “Ex (Mx & (y) (My → y =

x))” se aplica ao mesmo objeto que a regra de identificação constituída por “Ex

(Tx & (z) (Mz → z = x))”, dado que por transitividade y = z. Mas isso é o

mesmo, no final das contas, do que dizer que temos duas regras de identificação

diferentes, dois modos de apresentação, dois sentidos fregeanos diferentes para o

mesmo objeto. Outra vez, as duas análises demonstram-se intertraduzíveis.

(iv) Contextos opacos. Finalmente, considere os proferimentos de atitude

proposicional como:

(1) George IV acredita que Scott é Scott

e

(2) George IV acredita que o autor de Waverley é Scott.

Por que a verdade de (1) não garante a verdade de (2), se ambas as frases

subordinadas são frases de identidade sobre a mesma pessoa?

Para Frege a resposta é que em tais casos a frase subordinada não tem a sua

referência usual, que para ele é o valor-verdade – ela se refere ao seu sentido ou

pensamento. Como conseqüência, o valor-verdade da frase que exprime atitude

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proposicional deixa de ser função do valor-verdade da frase subordinada,

tornando a intersubstituição salva veritate impossível.1

Como rejeitamos a implausível idéia fregeana de que a referência usual da

frase deva ser o seu valor-verdade, precisamos primeiro refazer a sua solução.

Podemos preservar a sua idéia de que a referência da frase subordinada seja o

seu sentido em proferimentos de atitudes proposicionais do tipo “aAp”, quando

‘a’ está no lugar de certa pessoa, ‘p’ no lugar de um pensamento, e ‘A’ no lugar

de uma atitude, que pode ser de crença, de conhecimento, de desejo etc. Mas

isso significa então que nessa posição p não se refere mais ao fato que lhe possa

eventualmente corresponder, deixando de entrar em questão a sua

correspondência com o fato, a sua verdade. Na frase de atitude proposicional o

que importa é certa relação entre o conteúdo da frase principal (geralmente

expressando uma disposição ou ato mental de que atribuímos a certa pessoa) e o

pensamento expresso pela frase subordinada, de modo que a verdade da frase de

atitude proposicional depende apenas do fato de essa relação se dar realmente ou

não, na independência do pensamento da frase subordinada corresponder ou não

ao fato que lhe deveria ser correlato, na independência de esse pensamento ser

verdadeiro ou não. Com efeito, a referência da frase subordinada é um conteúdo

de pensamento em relação ao qual afirmamos que a pessoa tem uma atitude.

Assim, um enunciado do tipo “aAp” é verdadeiro see a sua referência aAp for

um fato constituído pela existência da pessoa a e de sua atitude A em relação ao

seu pensamento p. É por isso, afinal, que o pensamento expresso pela frase

subordinada não pode ser substituído salva veritate: ele é a sua referência.

Parafraseando agora pensamentos como regras de verificação de frases,

podemos dizer que as regras de verificação das frases subordinadas de (1) e (2)

são diferentes, sem para isso nos comprometermos com a efetiva aplicabilidade 1 É preciso lembrar que falta de intersubstitutividade das frases subordinadas em enunciados de atitude proposicional é apenas um dos variados casos considerados por Frege em “Über Sinn und Bedeutung” (ver pp. 36-49).

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dessas regras, com a existência real daquilo que as satisfaz. Assim, considerando

o sentido do termo singular com uma regra de identificação, podemos

parafrasear (1) como

(1’) George IV acredita que a regra de identificação (sentido) que ele conhece para Scott se aplica ao mesmo objeto que a regra de identificação (sentido) que ele conhece para Scott,1

e (2) como

(2’) George IV acredita que a regra de identificação (sentido) que ele conhece para Scott se aplica ao mesmo objeto que a regra de identificação (sentido) que ela conhece para o autor de Waverley.

Como em (1’) e (2’) os conteúdos de pensamento com relação aos quais George

IV tem a relação de crença são diferentes, e os enunciados de atitude

proposicional dependem apenas da correspondência entre a relação de crença

enunciada e a relação de crença factualmente dada (estado de coisas) para serem

verdadeiros, as frases subordinadas não podem ser substituídas salva-veritate,

pois se referem a pensamentos ou regras semânticas ou verificacionais

diferentes.

Passemos agora a uma paráfrase em termos russellianos. A frase subordinada

de (1) é analisada como:

(1’’) George IV acredita que existe somente um x que é Scott e que esse x é Scott.

E a frase subordinada de (2) é analisada de modo a obtermos:

1 Esse entendimento não precisa ser o único, pois pode ser que George IV não saiba quem é Scott. Nesse caso a expressão “que ele conhece” deve ser excluída, bastando que ele saiba que Scott é um nome próprio.

235

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(2’’): George IV acredita que existe somente um x que é autor de Waverley e que esse x é Scott.

Ora, como ‘somente um x que é Scott’ e ‘somente um x que é autor de

Waverley’ são expressões de diferentes regras caracterizadoras do objeto, “Scott

é Scott” não pode querer dizer o mesmo que “Scott é o autor de Waverley”.

O ponto a ser notado é que aquilo que em nosso entendimento a análise

russelliana faz é apenas explicitar melhor um aspecto de nossa versão da análise

fregeana. Afinal, a análise em (2’), por exemplo, também pode ser apresentada

como

(2’’’): George IV acredita que existe somente um x tal que a regra de aplicação que ele conhece para Scott, tanto quanto a regra de aplicação que ele conhece para o autor de Waverley, a ele se aplicam.

Mas (2’’’) e (2’’) não diferem essencialmente. Afinal, dizer ao modo de Russell

que George IV acredita que a regra de aplicação que ele conhece para o

predicado ‘Scott’ se aplica a somente um objeto e que a regra de aplicação que

ele conhece para o predicado ‘o autor de Waverley’ se aplicam a um único e

mesmo objeto que aquele ao qual se aplica a primeira regra, vem a dar no

mesmo que dizer ao modo de Frege que George IV acredita que a regra de

identificação (sentido) que ele conhece para o termo singular ‘Scott’ tem o

mesmo referente que a regra de identificação (sentido) que ele conhece para ‘o

autor de Waverley’. Conclusão: também no caso das atitudes proposicionais as

análises são intertraduzíveis.

Sumarizando, podemos analisar a função referencial das descrições definidas

de no mínimo três maneiras: (i) em termos de entidades abstratas, como Frege

fez ao falar de sentidos como valores cognitivos, (ii) em termos de regras

236

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semântico-criteriais, inspirados em uma abordagem wittgensteiniana, e ainda

(iii) usando os recursos da lógica predicativa, como Russell fez em sua teoria

das descrições. Trata-se, porém, apenas de maneiras complementares de se dizer

o mesmo. A impressão de que se trata de abordagens conflitivas fica por conta

do arcabouço teorético que impregna aquilo que cada filósofo diz. Muito

diversamente do que Russell pensava, as paráfrases produzidas pela teoria das

descrições nada mais são do que um artifício pelo qual se torna possível

exprimir formalmente a função referencial-identificadora das descrições

definidas em seu uso atributivo, a saber, a existência de expressões predicativas

que, quando usadas em um domínio adequado e devidamente rigidificadas, se

tornam caracterizadoras de um único objeto por exprimirem regras de

identificação, modos de apresentação, sentidos fregeanos. Como essas regras se

aplicam sempre em instanciações cognitivas, fica claro o compromisso da teoria

das descrições assim revista com o cognitivismo.

7. NOMES PRÓPRIOS (I): TEORIAS

DESCRITIVISTAS237

Page 238: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Nesse capítulo começaremos a discussão de como os nomes próprios referem.

Existem duas espécies gerais de teorias dos nomes próprios: as descritivistas,

que enfatizam o elo intermediário cognitivo-descritivo entre o nome e o objeto,

e as referencialistas, que enfatizam o objeto referido e sua relação com o

proferimento, rejeitando a relevância de um elo intermediário. Meu objetivo

nesse e no próximo capítulo será o de fornecer suporte para o capítulo 9, no qual

apresentarei a minha própria teoria da função referencial dos nomes próprios.

Assim, nesse capítulo discutirei as versões clássicas do descritivismo e no

próximo as principais idéias do referencialismo. Antes disso, porém, quero

introduzir criticamente a teoria referencialista dos nomes próprios sugerida por

John Stuart Mill ainda no século XIX e que está na origem da discussão

contemporânea.

1. Stuart Mill: nomes sem conotação

Mill começou por distinguir entre a denotação e a conotação de um termo: a

denotação é a referência do termo, enquanto a conotação é o seu elemento

descritivo, que implica um atributo. Entre as expressões referenciais a descrição

definida (chamada por ele de ‘nome individual’) possui tanto denotação quanto

conotação. Ela denota através de sua conotação, nomeadamente, por expressar

atributos que, possuídos unicamente pelo seu objeto, nos permitem identificá-lo

referencialmente. Uma descrição como ‘o pai de Sócrates’ conota um atributo

que somente um indivíduo possui, nomeadamente, o de ser o pai de Sócrates. O

mesmo não acontece com o nome próprio. Ele não tem conotação. Ele tem uma

estrutura mais simples: ele refere diretamente, como se fosse um rótulo colado

ao seu portador. Em suas palavras:

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Nomes próprios não são conotativos: eles denotam os indivíduos que são chamados por eles, mas não indicam ou implicam quaisquer atributos como pertencentes àqueles indivíduos. Quando chamamos uma criança pelo nome Paulo ou um cão pelo nome César, esses nomes são simples marcas usadas para permitir aos indivíduos se tornarem objeto do discurso. (...) Nomes próprios são ligados aos objetos em si mesmos, não dependendo da continuidade de nenhum atributo do objeto.1

Como para Mill o significado não reside naquilo que um nome denota, mas

naquilo que ele conota, segue-se que nomes próprios não possuem significado.2

A teoria da referência direta proposta por Mill é facilmente refutável. Na

forma acima apresentada ela não é capaz de resolver satisfatoriamente os

enigmas da referência já considerados em nossa discussão da teoria russelliana

das descrições. Quanto ao enigma da referência a inexistentes, como dar sentido

a uma frase como “Papai Noel vive no Pólo Norte”, se o nome ‘Papai Noel’ não

possui nem conotação nem denotação? A isso Mill poderia responder que Papai

Noel se refere a um objeto imaginário. Mas considere o caso de um existencial

negativo verdadeiro como “Papai Noel não existe”. Se tudo o que pertence ao

nome é a sua referência, tal frase parece contraditória, pois aplicar o nome já

seria admitir a sua existência. Quanto aos enunciados de identidade contendo

nomes co-referenciais, considere a diferença entre a frase (a) “Hesperus é

1 J.S. Mill: System of Logic: Ratiocinative and Inductive, livro 1, cap. 2, seção 5, p. 20. 2 Contudo, Mill também fez afirmações que estão em dissonância com a interpretação standard acima apresentada. Como ele escreveu: “Um nome próprio não é mais do que uma marca sem significado que conectamos em nossas mentes com a idéia do objeto, de modo que sempre que essa marca encontra nossos olhos ou ocorre em nosso pensamento, podemos pensar naquele objeto individual”. (p. 22, grifo nosso). Parece, pois, que por significado Mill entendia o significado lingüísticamente expresso, que se distingue da idéia do objeto. De fato, o nome próprio não tem um significado lingüisticamente expresso, como o da descrição definida. Contudo, o que Mill chama de idéia do objeto parece ser o conteúdo informativo, ou seja, o sentido fregeano. Se esse for o caso, então a teoria de Mill admite que nomes próprios têm sentidos fregeanos, daí resultando que deixa de haver uma contradição real entre a sua posição e o descritivismo sobre nomes próprios defendido por Frege e outros. Por razões de exposição, contudo, ignoro essas considerações.

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Hesperus” e a frase (b) “Hesperus é Phosphorus”. A primeira é tautológica, nada

dizendo, enquanto a segunda pode ser informativa. Como para Mill os nomes

co-referenciais, por não conotarem, não podem possuir diferentes valores

cognitivos, a sentença (b) deveria ser tão trivial quanto (a). Finalmente, quanto

ao problema da ausência de intersubstitutividade em contextos opacos, considere

uma sentença como “João acredita que Cicero, mas não Tulio, é um orador

romano”. Se os nomes próprios ‘Cicero’ e ‘Tulio’ são apenas rótulos para uma

mesma pessoa, parece que João precisa ser capaz de acreditar em coisas

totalmente inconsistentes, como a de que Cicero não é Cicero. Não é sem razão,

pois, que, sob a influência contrária de Russell, a teoria milliana da referência

direta dos nomes próprios cedo tenha sido abandonada.

2. Descritivismo (i): Frege e Russell

A teoria descritivista dos nomes próprios dominou o século XX até a década de

1970, quando foi eclipsada pela nova versão da teoria referencialista proposta

por Kripke, seguido de Donnellan e outros. A idéia geral do descritivismo sobre

nomes próprios é a de que o nome próprio refere indiretamente, por uma alusão

a propriedades geralmente exprimíveis através de conjuntos de descrições. Ou

seja: contrariamente ao millianismo, nomes próprios conotam. Eles conotam por

estarem no lugar de conjuntos de descrições, sendo por isso logicamente mais

complexos e não mais simples do que elas.

Segundo uma interpretação corrente, há duas formas de descritivismo: uma

mais primitiva, defendida por Frege e Russell, segundo a qual o sentido de um

nome próprio é dado por uma única descrição definida associada a ele, e uma

sofisticada, defendida por filósofos como Wittgenstein, Strawson e Searle,

segundo a qual o sentido do nome próprio é dado por um feixe ou agregado de

240

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descrições1. Quero demonstrar aqui que essa interpretação é incorreta. Uma

complexa teoria descritivista dos nomes próprios já era aludida nos escritos de

Frege e Russell, embora neles se encontrasse apenas fragmentariamente

tematizada. O que houve desde então foi uma progressiva explicitação e adição

de detalhes, em torno de um insight comum.

Para demonstrar essa interpretação, comecemos considerando a formulação

fregeana. Quando escreve sobre a referência dos nomes próprios, Frege

interpreta os seus sentidos como exprimíveis por diferentes descrições ou

conjunções de descrições que a ele associamos. Como ele escreve em uma

conhecida nota de seu artigo “Sobre sentido e referência”, onde a teoria

descritivista propriamente se origina:

No caso de nomes genuinamente próprios, como ‘Aristóteles’, opiniões sobre o seu sentido podem divergir. O seguinte sentido pode ser sugerido: discípulo de Platão e tutor de Alexandre o Grande. Quem quer que aceite esse sentido irá interpretar o sentido do enunciado “Aristóteles nasceu em Estagira” diferentemente de quem interpreta o sentido de Aristóteles como o professor estagirita de Alexandre o Grande. Na medida em que o nominatum permanece o mesmo, essas flutuações no sentido são toleráveis.2

Aqui, o que essa nota sugere é que pessoas diferentes podem associar

descrições ou conjunções de descrições diferentes a um mesmo nome;

conjunções como ‘o discípulo de Platão e o tutor de Alexandre’. Os diversos

sentidos associados ao nome são expressos pelas diversas descrições, sob a

condição de que elas preservem a referência.

Contudo, Frege também observa que as flutuações no sentido não podem ser

tão grandes a ponto de impedir a comunicação: se diferentes usuários da

1 Ver Michael Devitt e Kim Sterelny: Language and Reality: An Introduction to the Philosophy of Language, p. 45. W. G. Lycan: “Names”, pp. 256-7. S. P. Schwartz (ed.): Naming, Necessity, and Natural Kinds, pp. 18-19. Essa interpretação foi assumida por Saul Kripke que, por sua vez, a deve ter tomado de John Searle. 2 Gottlob Frege: “Über Sinn und Bedeutung”, p. 28 (paginação original).

241

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linguagem associam descrições ou conjunções de descrições totalmente

diferentes a um nome próprio, perde-se a unidade do sentido e torna-se

impossível para eles saberem se estão falando da mesma pessoa. Suponha,

escreve Frege, que Leo Peter tenha ido à residência do doutor Gustav Lauben e

o tenha ouvido dizer “Eu fui ferido”, isso sendo tudo o que ele sabe sobre

Gustav Lauben. Leo Peter tenta comentar o ocorrido com Herbert Garner, que

por sua vez sabe de um Dr. Gustav Lauben que nasceu em 13 de setembro de

1875 em N.N., não sabendo, por sua vez, onde o Dr. Lauben reside agora nem

qualquer outra coisa sobre ele. Disso resulta que Leo Peter e Herbert Garner não

conseguem saber se estão falando da mesma pessoa. Pois segundo Frege eles

não falam a mesma língua, ainda que com esse nome eles de fato designem o mesmo homem; pois eles não sabem que fazem isso. Herbert Garner não associa, pois, à frase "Dr. Gustav Lauben foi ferido", o mesmo pensamento que Leo Peter quer com ela exprimir.1

Dessa discussão deixa-se facilmente concluir que Frege concordaria com a

tese descritivista de que o sentido completo de um nome próprio é constituído

por um conjunto de valores cognitivos (sentidos) geralmente exprimíveis através

de descrições; cada falante tem geralmente acesso a um subconjunto desse

conjunto de valores cognitivos; mas esse acesso precisa ter em comum ao menos

o suficiente para que os falantes possam saber que estão falando da mesma

coisa; é preciso que os dois conjuntos de descrições se interseccionem.

Michael Dummett, o mais original e influente intérprete de Frege, protestou

contra a idéia de que este último teria proposto uma teoria descritivista dos

nomes próprios2. Dummett alega que Frege usou descrições porque eram

1 Gottlob Frege: “Der Gedanke”, pp. 64, 76.2 Autores norte-americanos, influenciados por Saul Kripke, associam Frege ao descritivismo, enquanto autores ingleses, influenciados por Michael Dummett, costumam rejeitar essa associação. Ver M. Dummett: Philosophy of Language, pp. 97-98, pp.110-111. Ver também The Interpretation of Frege’s Philosophy, p. 186 ss. Corroborando a interpretação de

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maneiras fáceis de esclarecer o sentido de alguns exemplos; mas isso não tem

nada a ver com a idéia de Russell de que o nome próprio é a abreviação de uma

descrição complexa nem com a concepção referencialista do significado inerente

à teoria das descrições... Além disso, escreve Dummett, não há nenhum indício

de que Frege concordaria com a idéia de que o sentido do nome próprio possa

ser sempre expresso através de descrições. Segundo ele, o importante para Frege

é que o nome próprio seja associado a um critério para reconhecer um dado

objeto como o seu referente. Dummett ilustra o seu ponto considerando as

inúmeras maneiras possíveis de se identificar o rio Tâmisa1. Muitas vezes,

escreve ele, isso é feito indiretamente, a partir de informações colaterais, como é

o caso de uma pessoa que percebe que se trata do mesmo rio que passa sob a

ponte de Radcot ou através da cidadela de Henley. E uma pessoa pode saber que

ele passa por Oxford sem saber que ele é o mesmo rio que atravessa Londres,

ainda assim identificando o rio corretamente. Não há, conclui ele, nenhuma

condição suficiente que todos precisem saber para a identificação do Rio

Tâmisa.

A meu ver, nenhuma das razões aduzidas por Dummett justifica o seu

protesto. Primeiro, é obviamente possível adotar o descritivismo sem se

comprometer com uma concepção referencialista do significado. Depois, o

descritivista não defende que tudo pode ser expresso por meio de descrições.

Representações táteis, visuais e auditivas, nunca são totalmente resgatáveis em

palavras. Descrições são apenas as formas lingüísticas mais típicas, pelas quais

valores cognitivos assomam à linguagem. O que realmente conta são as regras

semântico-criteriais que geralmente se deixam exprimir através de descrições, as

quais de algum modo servem para vincular o nome próprio ao seu portador. Esse

entendimento, porém, é complementar à própria idéia de Dummett de que o

Dummett estão Leonard Lynski: Names and Descriptions, pp. 42-43 e, mais recentemente, Michael Luntley, Contemporary Philosophy of Thought: Truth, World, Content, p. 261.1 Michael Dummett: Frege: Philosophy of Language, pp. 97-98, 101-111.

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importante para o sentido do nome próprio é que ele seja associado a um critério

de identidade para o objeto, permitindo que ele seja reconhecido outra vez como

sendo o mesmo1. Penso que Dummett tinha uma visão demasiado restritiva do

que pode ser uma teoria descritivista dos nomes próprios, orientada pela teoria

das descrições de Russell. Isso ficará mais claro quando compararmos o seu

exemplo do rio Tâmisa com o exemplo de Russell sobre Bismark.

Passemos agora à concepção de Russell. Como já foi notado, ele via os

nomes próprios da linguagem ordinária como descrições definidas abreviadas,

truncadas ou disfarçadas, sugerindo que eles pudessem ser analisados pelo

mesmo método pelo qual ele analisara as descrições definidas. Como ele não

estava primariamente interessado na prática lingüística ordinária, ele pouco se

deteve na questão. Mas o nome próprio não abrevia uma única descrição, como

muitos interpretam e como ele próprio, por mera conveniência de exposição,

costuma colocar em seus textos mais técnicos. Não obstante, em um texto como

o de Os Problemas da Filosofia, ele demonstra possuir um entendimento muito

mais complexo da questão. Eis uma passagem:

Palavras comuns, mesmo nomes próprios, são geralmente descrições. Isto é, o pensamento na mente de uma pessoa usando um nome próprio corretamente em geral só pode ser expresso explicitamente se o substituirmos por uma descrição. Mais além, a descrição requerida para exprimir o pensamento irá variar para pessoas diferentes, ou para uma mesma pessoa em diferentes tempos. (grifos meus)2

O que essa passagem sugere é que há na linguagem um vasto repositório de

informações sobre o objeto de um nome, as quais são exprimíveis na forma de

descrições definidas. Quando proferimos o nome próprio, costumamos ter em

1 Michael Dummett: Frege Philosophy of Language, p. 73.2 Bertrand Russell: The Problems of Philosophy, p. 29. Essa passagem, com a próxima passagem a ser citada, encontra-se idêntica em “Knowledge by Acquaintance and Knowledge by Descriptions”, artigo sobre o qual foi baseado o capítulo do livro.

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mente uma ou mais dessas descrições, e tudo o que é necessário para que o

ouvinte entenda que se trata da mesma pessoa, escreve Russell, é que ele saiba

que as descrições se aplicam a mesma entidade evocada em sua mente1.

Russell apresenta como exemplo o nome ‘Bismark’. Uma primeira e peculiar

forma de acesso a Bismark é a que o próprio Bismark tem de si mesmo, em um

juízo como “Eu sou Bismark”. Nesse caso, para Russell o próprio Bismark é um

componente de seu juízo, sem passar por uma descrição. Uma outra maneira de

se ter em mente Bismark é a das pessoas que lhe foram pessoalmente

apresentadas. Nesse caso, o que a pessoa tem em mente é o corpo e a mente de

Bismark, conhecidos por intermédio de conjuntos de sense-data a eles relativos,

geralmente aptos a serem expressos por descrições. Ainda outra maneira de se

conhecer Bismark, escreve Russell, é através da história. Nesse caso associamos

a sua pessoa descrições como ‘o primeiro chanceler do império germânico e um

astuto diplomata’ (que é uma descrição composta, formada pela conjunção de

uma descrição definida com uma descrição indefinida). No final das contas, o

que temos em mente é um vasto conjunto de informações históricas exprimíveis

sob a forma de descrições capazes de identificar a pessoa univocamente. Como

ele escreve:

Quando nós, que não conhecemos Bismark, fazemos um juízo sobre ele, a descrição em nossas mentes será provavelmente alguma mais ou menos vaga massa de conhecimento histórico – muito mais, geralmente, do que é requerido para identificá-lo. Mas aqui, por razão de ilustração, vamos assumir que pensamos nele como ‘o primeiro chanceler do império alemão’. (grifos meus)2

O texto é do próprio Russell e não me deixa mentir. O que ele sugere é que

quando usamos um nome próprio em terceira pessoa, o que temos em mente é 1 Russell: The Problems of Philosophy, p. 30.2 B. Russell: The Problems of Philosophy, p. 30.

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uma descrição composta por uma variedade de outras descrições. Essa descrição

possui contornos vagos (que costumam variar de usuário para usuário, e mesmo

para um mesmo usuário), pertencendo a um ainda maior repositório de

descrições que expressam informações identificadoras do mesmo objeto.

Semelhante descrição composta pode ser analisada como uma conjunção de

descrições sobre o mesmo x, a saber, como uma conjunção de atribuições

existenciais unívocas de propriedades. Se essas propriedades forem

simbolizadas como as do conjunto {F1, F2... Fn}, a descrição definida composta,

quando formada por outras descrições definidas, pode ser simbolizada como

(Ex) ((F1x & F2 x... & Fnx) & (y) ((F1x1 → x1 = x) & (F2x2 → x2 = x)... & (Fnxn

→ xn = x))). A sugestão de que Russell pensava que ao usarmos nomes próprios

temos em mente uma única descrição não passa, pois, de uma lenda.

O que essas leituras textuais também demonstram é que Russell está disposto

a analisar o nome ‘Bismark’ de uma maneira que não difere substancialmente

daquela pela qual Dummett analisa o sentido do nome ‘Tâmisa’. Uma descrição

central, como ‘o primeiro chanceler do Império Germânico’, é para Russell

apenas uma dentre a massa de descrições que alguém pode associar a Bismark,

da mesma forma que para Dummett a descrição central ‘o rio que atravessa

Londres’ é apenas uma dentre as muitas descrições que alguém pode associar ao

Tâmisa.

Se insistirmos em achar que Frege não foi um descritivista, então parece que

deveremos concluir o mesmo de Russell. Mas como Russell foi o descritivista-

mór, a conclusão só pode ser a de que Frege também foi um descritivista. E há

uma razão para que se pense assim: se há uma unidade no objeto teórico das

teorias descritivistas, então as suas várias versões não podem ser alternativas

inconsistentes entre si, mas aproximações mais ou menos congruentes de um

mesmo fenômeno complexo, cada qual pondo em relevo diferentes aspectos

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desse fenômeno, mesmo que divergindo em métodos e em pressupostos

filosóficos.

3. Descritivismo (ii): Wittgenstein e Searle

Após Frege e Russell, vários outros filósofos, principalmente Wittgenstein, P.F.

Strawson e J.R. Searle, apresentaram sugestões de interesse no sentido de

aprimorar a teoria dos nomes próprios como feixes ou agregados de descrições.

Quero considerar brevemente as sugestões de Wittgenstein e Searle.

Na seção 79 das Investigações Filosóficas Wittgenstein adiciona alguns

comentários à concepção de Russell. Segundo ele, ‘Moisés’ poderia abreviar

descrições como ‘o homem que guiou os israelitas através do deserto’, ‘o

homem que viveu naquele tempo e naquele lugar, e que naquela época foi

chamado de ‘Moisés’’, ‘o homem que em criança foi retirado do Nilo pela filha

do faraó’ etc. A isso ele adiciona que o nome ‘Moisés’ ganha sentidos diferentes

de acordo com a descrição que a ele associamos, reconhecendo assim que nomes

têm sentidos cognitivos expressos pelas descrições a ele associadas. A questão

que emerge é: em que medida as descrições do feixe de descrições vinculadas ao

nome precisam ser satisfeitas pelo objeto? Wittgenstein evade-se de uma

resposta direta. Ele escreve apenas que nós utilizamos nomes próprios sem uma

significação rígida, e que mesmo que algumas descrições falhem em se aplicar,

ainda assim poderemos nos servir das outras como suporte. A linguagem natural

é inevitavelmente vaga. E com o tempo o corpo de descrições identificadoras do

objeto referido por um nome próprio pode variar: características que antes se

afiguravam irrelevantes podem, em um conceito elaborado pela ciência, se

tornar relevantes e convencionalmente aceitas, enquanto outras podem se

enfraquecer ou serem rejeitadas...1

1 Leonard Linsky interpretou Wittgenstein como tendo aqui sugerido a ausência de limites convencionais para fixar as descrições. Mas não há suficiente evidência textual para essa idéia. Seja como for, se Wittgenstein tivesse pensado assim ele estaria errado. Não parece

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A formulação mais elaborada da teoria descritivista dos nomes próprios foi

exposta por J.R. Searle em um artigo de 1958. Para esse autor, um nome próprio

tem suas condições de aplicação definidas pela aplicação a um mesmo objeto de

um suficiente, mas indefinido número de descrições. Searle exemplifica isso

com o nome ‘Aristóteles’, que se encontra associado a uma classe de descrições

definidas como ‘o tutor de Alexandre o Grande’, ‘o autor da Ética a Nicômano,

da Metafísica e De Interpretatione’, ‘o fundador da escola do Liceu em Atenas’

e mesmo as descrições indefinidas como ‘um grego’ e ‘um filósofo’. O nome

próprio ‘Aristóteles’ preserva a sua aplicação se um número suficiente e variável

de tais descrições se aplica. Um número que minimamente se reduziria a uma

disjunção de descrições.

Essa questão das condições de aplicação de um nome é também a do seu

sentido. Na paráfrase sintética de Susan Haack: os sentidos que damos a um

nome próprio são expressos por subconjuntos não previamente determinados de

um conjunto aberto de descrições co-referenciais.1 O fato dos nomes próprios

não conotarem sentidos específicos não quer dizer que eles não conotam sentido

algum. Os nomes próprios conotam descrições de forma solta (in a loose way).

Longe de ser um defeito, é isso o que dá ao nome próprio a sua imensa

flexibilidade de aplicação. Como escreveu Searle:

...o caráter único e a imensa conveniência pragmática dos nomes próprios em nossa linguagem repousa precisamente no fato de que eles nos permitem referir publicamente a objetos sem sermos forçados a levantar questões e chegar a um acordo sobre que características descritivas exatamente constituem a identidade do objeto. Eles funcionam, não como descrições, mas como cabides para pendurar descrições.2

concebível que os nomes próprios pudessem ter algum sentido e serem comunicacionalmente úteis se os limites de sua aplicação resultassem de decisão arbitrária. Ver L. Linsky, Names and Descriptions, p. 99.1 Susan Haack: Philosophy of Logics, p. 58. 2 J.R. Searle: “Proper Names”, Mind 1958, p. 171.

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Essa versão do descritivismo permite explicar uma variedade de casos. É

possível, por exemplo, que um objeto satisfaça apenas umas poucas, ou mesmo

uma única das descrições associadas ao nome próprio. O que não pode acontecer

é que o nome próprio se aplique sem que nenhuma das descrições relevantes

seja satisfeita. Como Searle notou:

Se um especialista em Aristóteles vier nos informar que descobriu que Aristóteles na verdade não escreveu nenhuma das obras a ele atribuídas, mas foi na verdade um mercador de peixes veneziano do renascimento tardio, nós entenderemos isso como uma piada de mau gosto e nos recusaremos a ver qualquer propósito no que ele está dizendo.1

De posse dessa teoria dos nomes próprios Searle tem condições de explicar

melhor afirmações de existência com nomes próprios, bem como identidades

analíticas e não-analíticas entre eles: dizemos “O Everest existe” quando um

número mínimo, mas indeterminado, de descrições, se aplica ao objeto;

afirmamos uma identidade analítica, como “O Everest é o Everest” quando os

mesmos conjuntos de descrições de cada ocorrência do nome se aplicam ao

mesmo objeto; e afirmamos identidades não-analíticas, como “O Everest é o

Chomolungma”, quando diferentes conjuntos de descrições se aplicam ao

mesmo objeto.2 Essas explicações estão em perfeito acordo com as de Frege.3 Às

duas últimas ele poderia adicionar que os conjuntos de descrições não podem ser

disjuntos; se eles não forem idênticos, eles precisam ao menos se interseccionar

para que saibamos que estamos falando de um mesmo objeto.

Embora Searle tenha desenvolvido a melhor versão de descritivismo em

oferta, há objeções, boas e más, contra ela. Uma boa objeção, proposta por 1 J.R. Searle: “Proper Names and Descriptions”, p. 490.2 J.R. Searle: Speech Acts: An Essay in the Philosophy of Language, p. 171.3 Searle pensa que não porque ele interpreta erroneamente o exemplo de Frege de Herbert Garner e Leo Peter como exigindo que nosso aporte descritivo para o nome seja o mesmo. Mas não há nada na passagem de Frege a suportar essa afirmação. Ver J. Searle: Speech Acts, p. 169.

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William Lycan, é a seguinte1: mesmo que o número de descrições satisfeitas

pelo objeto não seja definido, ele precisa ser superior a metade do feixe de

descrições, pois menos do que isso permitiria que dois objetos totalmente

diversos, cada um satisfazendo uma metade das descrições, fossem identificados

pelo mesmo nome próprio. Contudo, parece perfeitamente possível que se

descubra um objeto que satisfaça menos da metade das descrições, talvez apenas

uma ou duas, e mesmo assim seja referido pelo nome.

A resposta à objeção de Lycan é fácil de ser encontrada. Como todo critério

de aplicação, o critério de satisfação parcial de um feixe de descrições tem seus

limites de aplicação. Assim, se um objeto satisfaz metade das descrições e outro

objeto satisfaz a outra metade, simplesmente não há mais como saber a que

objeto devemos aplicar o nome próprio e ele perde a sua função referencial. Isso

não impede, porém, a existência de casos nos quais apenas umas poucas

descrições do feixe sejam satisfeitas e que isso seja suficiente para que o nome

próprio se aplique: basta que não se tenha encontrado nenhum objeto

concorrente que satisfaça um número tão grande de descrições identificadoras

tão importantes quanto as já satisfeitas pelo suposto portador do nome próprio.

A objeção mostra, pois, que a teoria de Searle demanda algum acréscimo para

continuar sustentável. É preciso acrescentar ao menos a exigência da

inexistência de concorrentes à altura do objeto em consideração.

O que esse breve excurso histórico demonstra é que, diversamente do que se

tende a pensar, há uma forte unidade naquilo que os defensores do descritivismo

tradicional sustentaram. Não se trata de várias teorias, mas de uma única, que foi

desenvolvida sob ênfase e perspectiva diferente por cada autor, o que parece

falar algo a favor do seu potencial heurístico.

1 William Lycan: “Some Flaws in Searle’s Theory of Proper Names”.

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8. NOMES PRÓPRIOS (II): TEORIAS CAUSAIS-

HISTÓRICAS

Em 1970 Saul Kripke proferiu em Princeton as palestras que deram origem ao

texto de Meaning and Necessity. Esse texto, um dos mais originais da filosofia

contemporânea, não contém apenas um influente assalto às teorias descritivistas

dos nomes próprios. Ele também contém (entre outras coisas) o esboço de uma

inovadora teoria referencialista dos nomes próprios, muito próxima da teoria da

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referência direta de J.S. Mill, agora também estendida aos termos de espécies

naturais. Pode ser que – como eu mesmo creio – em sua forma própria a

concepção de Kripke não seja no final das contas sustentável. Mesmo assim,

cumpre reconhecer que o panorama da discussão sobre nomes próprios foi

definitivamente transformado por suas idéias, tornando-se bem mais difícil,

intrincado e desorientador.

1. Objeções kripkianas ao descritivismo

Quero começar expondo as objeções de base feitas por Kripke às teorias

descritivistas dos nomes próprios. Elas têm sido classificadas como sendo de

três tipos1: a objeção de rigidez (o problema modal), a objeção da necessidade

indesejada (o problema epistêmico) e a objeção da ignorância ou erro (o

problema semântico). Quero me limitar aqui a uma exposição crítica dessas

objeções, deixando uma discussão detalhada para o próximo capítulo.

Vejamos primeiro a objeção da rigidez (modal). Ela parte da constatação

feita por Kripke de que os nomes próprios são designadores rígidos, a saber,

termos capazes de designar um mesmo objeto em todos os mundos possíveis, ou

pelo menos naqueles nos quais esse objeto existe. Como as descrições definidas

não costumam ser designadores rígidos e os nomes próprios são sempre

designadores rígidos, os últimos não podem equivaler às primeiras, posto que o

seu perfil modal é diferente: o mecanismo pelo qual nomes próprios referem

deve ser intrinsecamente diverso do mecanismo pelo qual descrições definidas

referem.

Com efeito, parece que para qualquer descrição que venhamos a escolher

como constitutiva de um nome próprio é possível imaginar casos em que o

objeto existe e que ela não se aplique. Podemos, escreve Kripke, imaginar um

1 Ver N.U. Salmon: Reference and Essence, p. 23-31.

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mundo possível no qual Aristóteles nunca tenha realizado os grandes feitos que

lhe atribuímos. Esse é o caso de um mundo no qual Aristóteles realmente

existiu, mas morreu muito cedo. Nesse mundo ele não foi o preceptor de

Alexandre, nem fundou o Liceu, nem escreveu nenhum dos grandes textos

filosóficos pelos quais o seu nome é lembrado. Sequer descrições contendo o

lugar e data de nascimento são garantidas. Podemos perfeitamente imaginar um

mundo possível no qual Aristóteles viveu quinhentos anos mais tarde, tendo sido

ainda assim o mesmo Aristóteles.1

Todavia, a objeção de rigidez só se aplica a teorias descritivistas que

identificam o sentido de um nome próprio com uma descrição definida ou com a

conjunção ou mesmo com um subconjunto das descrições definidas que

constituem o feixe. Contudo, para quem leu o capítulo anterior deve ter ficado

claro que ninguém, nem Frege, nem mesmo Russell, defendeu semelhantes

idéias. Uma teoria como a de Searle é tornada explicitamente imune à objeção

por enfatizar que nenhuma descrição específica pertencente ao feixe precisa ser

satisfeita, conquanto um número suficiente embora indefinido delas seja

satisfeito. Mesmo que seja possível imaginar, como fez Kripke, que Aristóteles

não satisfaça a grande maioria das descrições, não é possível imaginar que ele

não satisfaça nenhuma delas. Não é possível imaginar, por exemplo, que ele não

tenha sido um filósofo, mas um grande armador grego que viveu no século XX,

seduziu Callas e se casou com Jackeline, pois esse com certeza nada teria a ver

com o nosso Aristóteles.

Outro tipo de objeção é a da necessidade indesejada (epistêmica). Se o nome

próprio for equivalente a uma descrição, então ela necessariamente se aplica.

Uma frase como “Aristóteles foi o autor da Metafísica” deveria ser a priori, pois

se a descrição ‘o autor da Metafísica’ faz parte da definição de Aristóteles, então

dizer que Aristóteles foi o autor da Metafísica seria fazer um enunciado

1 Kripke: Naming and Necessity, p. 62.253

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tautológico, incapaz de suportar contradição. Mas não é isso o que acontece.

Aristóteles poderia muito bem ter existido sem jamais ter escrito uma linha da

Metafísica.

A objeção da necessidade indesejada também não se aplica a teorias do feixe

de descrições como a de Searle, que não demanda a aplicabilidade de nenhuma

descrição individual pertencente ao feixe. Se minha leitura de Frege e Russell no

capítulo anterior é correta, essa objeção também não se aplica a nenhuma teoria

descritivista, mas somente a uma tosca caricatura dessas teorias. A única

necessidade que precisa ser sustentada pela teoria do feixe é a de que ao menos

uma descrição definida pertencente ao feixe se aplique ao objeto nomeado, no

caso desse objeto existir, não havendo nenhuma descrição específica ou mesmo

conjunção de descrições que seja necessária. Mas essa necessidade, como

vimos, nunca foi contestada.

Finalmente, há a objeção da ignorância e do erro (semântica). Kripke

observou que podemos associar a um nome próprio apenas uma descrição

indefinida, sem por isso deixarmos de referir. Este é o caso do nome próprio

‘Feynman’. Muitas pessoas associam a este nome apenas a descrição indefinida

‘um físico norte-americano’. Apenas uns poucos seriam capazes de dissertar

sobre as suas contribuições para a microfísica. Mesmo assim, as pessoas são

capazes de se referir a Feynman através de seu nome. Uma descrição indefinida,

no entanto, é incapaz de garantir a unicidade da referência. Quanto ao problema

do erro, Kripke observou que existem pessoas que associam ao nome ‘Einstein’

a descrição ‘o inventor da bomba atômica’. Apesar da descrição não se aplicar,

essas pessoas conseguem se referir a Einstein. Ora, se é assim, então parece que

descrições nada têm a ver com aquilo através do que o nome refere.

A essa espécie de objeção Searle responderia que aquilo que mais importa é o

conteúdo que as pessoas da comunidade lingüística à qual pertence o falante

254

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tomam como relevante para a designação do objeto.1 Assim, para esse filósofo,

se uma pessoa tem em mente uma descrição como ‘o indivíduo que minha

comunidade chama de Einstein’, isso pode bastar para neutralizar o conteúdo

divergente.

Há objeções bem mais detalhadas de Kripke que irei responder no próximo

capítulo, quando poderei aplicar minha versão da teoria descritivista para

conseguir respostas mais completas. Mas como essas poucas considerações

atuais sugerem, as objeções de Kripke ao descritivismo nada tem de decisivo2,

ao contrário do que seus defensores insistem em manter.3

É difícil encontrar qualquer objeção decisiva contra uma formulação como a

que Searle fez para a teoria descritivista dos nomes próprios, e a razão disso está

no fato de ela ter sido apresentada de forma não-simplificadora e

suficientemente vaga. Mas, como se tornará claro no próximo capítulo, essa

vantagem é também uma fraqueza, pois devido a sua própria vaguidade essa

teoria carece de recursos para proporcionar respostas mais eficazes e completas

a uma variedade de contra-exemplos e objeções.

2. Batismo e cadeia causal-histórica

A crítica de Kripke ao descritivismo só se torna atraente por ter sido

complementada com uma versão mais sofisticada e consequente da concepção

inicialmente sugerida por Stuart Mill. Para introduzi-la, considere o fenômeno

da rigidez dos nomes próprios. Um nome próprio como Benjamin Franklin é

rígido porque ele se aplica a um mesmo objeto – Benjamin Franklin – em

qualquer mundo possível no qual esse objeto exista. Mas o mesmo não acontece

com a maioria das descrições definidas. A descrição definida ‘o inventor das 1 Ver John Searle: Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, p. 253.2 Essa também é a conclusão chegada por David Braun e Marga Reimer em seus respectivos artigos para a Stanford Encyclopedia of Philosophy. 3 Ver, por exemplo, Scott Soames: Beyond Rigidity: The Unfinished Semantic Agenda of Naming and Necessity, cap. 2.

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bifocais’ se aplica a Benjamin Franklin no mundo atual; mas ela poderia se

aplicar a João da Silva em um mundo no qual João da Silva e não Benjamin

Franklin tivesse descoberto as bifocais. Qual a explicação para isso?

Para quem é simpático à solução de Stuart Mill, a explicação está à mão. Ela

advém da idéia de que descrições referem indiretamente, por conotarem

atributos de objetos, enquanto nomes próprios referem diretamente aos seus

próprios objetos, como se fossem rótulos que lhes tivessem sido colados. Ora,

isso deve tornar a referência dos nomes próprios independente de propriedades

acidentais descritivamente representáveis. A referência deve dizer respeito ao

objeto em si mesmo. Só isso explica porque, diversamente das descrições

definidas, os objetos de referência continuam os mesmos em qualquer mundo

possível.

Kripke também parece pensar assim. Para ele os nomes próprios se referem

aos seus objetos sem intermediários. Eles não podem se referir nem a substratos

nus (bare particulars), subjacentes aos objetos, nem a feixes de qualidades

abstratas (bundles of qualities) constitutivas do objeto. Como ele escreve:

O que eu nego é que um particular não seja nada além de um ‘feixe de qualidades’, seja o que for que se queira dizer com isso. Se uma qualidade é um objeto abstrato, um feixe de propriedades é um objeto com um grau até mais alto de abstração, não um particular. Filósofos chegaram à posição oposta através de um falso dilema: eles perguntaram: estão os objetos atrás do feixe de qualidades, ou o objeto não é nada além do feixe? Nada disso é o caso. Essa mesa é de madeira, é marrom, está no quarto etc. Ela tem todas essas propriedades e não é uma coisa sem propriedades, atrás delas. Mas não deveria por isso ser identificada com um conjunto ou ‘feixe’ de suas propriedades, nem com o subconjunto de suas propriedades essenciais.1

Com efeito, o dilema não parece aceitável: objetos não são nem feixes de

qualidades abstratas sem critério de individuação, nem substratos nus

1 Kripke: Naming and Necessity, p. 52.256

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incognoscíveis enquanto tais. Mas apesar de Kripke rejeitar o dilema, ele não

oferece nenhuma solução verdadeira. Ele apenas nos pede para aceitarmos que

identificamos particulares pelo que eles são, fazendo de conta que essa exigência

não requer maior explicação, como se essa identificação acontecesse por

mágica. Contudo, a única maneira de evitarmos a magia e encontrarmos o

caminho da explicação é admitindo que isso acontece pelo reconhecimento de

propriedades identificadoras do objeto, sejam elas o que forem.

Penso que a saída mais interessante para o dilema consistiria hoje em recorrer

à emergente teoria dos tropos.1 Segundo essa teoria, objetos físicos nada mais

são do que sistemas de propriedades espaço-temporalmente localizadas, mais

propriamente chamadas de tropos. Esses objetos não precisam ser identificados

por meio de um único conjunto de tropos ou mesmo por meio de tropos

essenciais, mas talvez por combinações adequadas de tropos estabelecidas

através de alguma regra, o que em princípio permitiria uma resposta à objeção

de Kripke de que não há um subconjunto de propriedades essenciais a serem

identificadas com o objeto. Essa alternativa, contudo, não só era quase

desconhecida na década de 1960, quando Kripke desenvolveu suas idéias, mas

lhe teria sido de muito pouca valia, pois parece conformar-se muito melhor com

o descritivismo. Afinal, se o objeto referido por um nome é um sistema de

tropos, parece que a maneira pela qual o nome a ele se refere deve ser pela

identificação das variadas propriedades ou combinações de propriedades pelas

quais esse sistema nos pode ser apresentado. Essas variadas propriedades ou

combinações de propriedades, por sua vez, seriam eventualmente aquilo que

satisfaz descrições a serem avaliadas por alguma regra – a regra de identificação

do nome próprio.

1 Ver minha tentativa de parafrasear a natureza insaturada dos conceitos empíricos em termos da contingência dos tropos isolados na introdução desse livro.

257

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Admitindo, para efeito de discussão, que a resposta de Kripke seja correta,

uma outra pergunta que emerge é sobre a constituição dos nomes próprios: como

se formam esses designadores rígidos capazes de se referir sem a intermediação

de propriedades conotadas? A resposta que ele oferece encontra-se em sua

concepção causal-histórica da relação referencial, segundo a qual os nomes se

referem por meio de uma apropriada relação causal com os seus objetos.1 Eis

como ele a apresenta:

Um ‘batismo’ inicial se dá. Aqui o objeto pode ser nomeado por ostensão, ou a referência do nome pode ser fixada por uma descrição. Quando o nome é passado ‘de elo a elo’ o receptor do nome deve, eu penso, ter a intenção de usá-lo com a mesma referência do homem do qual ele o ouviu.2

Em outras palavras: primeiro há um ato de fixação da referência (reference

fixing) através do batismo de um objeto com um nome ou através de descrição.

Depois o mesmo objeto passa a ser referido pelo mesmo nome por outros

falantes, que o ouvem e o comunicam de um para outro, em um processo de

empréstimo da referência (reference borrowing). Mesmo que a descrição que

eles possam vincular ao nome se demonstre insuficiente ou errônea, a referência

ocorrerá, conquanto a cadeia causal seja mantida e os diversos falantes

preservem a intenção de se referir ao mesmo objeto específico referido por

quem emprestou o nome. Note-se que essa intenção de se referir ao mesmo

objeto não deve ser confundida com a intenção de se referir a um objeto

específico, pois tal intenção, caso exista, pode não corresponder àquilo que a

pessoa está realmente se referindo, como no caso da pessoa que acredita estar se

referindo ao inventor da bomba atômica através do nome ‘Einstein’.

1 Há uma variedade de versões da teoria causal-histórica, entre elas as de Donnellan e de Devitt. Por simplicidade de exposição apresento apenas a de Kripke, que acabou por se estabelecer como uma espécie de versão standard. 2 Kripke: Naming and Necessity, p. 96 (ver também p. 91).

258

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Chamando de nomeadores originários às pessoas que fixaram práticas

sociais de referência de um nome (como acontece com os responsáveis pelo

batismo e om os especialistas, mas também com especialistas), e chamando de

nomeadores secundários os demais usuários do nome, eis o esquema de uma

cadeia causal-histórica que termina com o proferimento do nome por um falante:

Nomeador(es) originário(s) relação causal objeto ... (relações causais) Nomeadores secundários ... (relações causais) Proferimento do nome por um falante...

Há alguns nomes próprios que não são introduzidos através de descrições e

não de batismo, mas através de descrições, como o próprio Kripke reconheceu.

Considere o caso do nome próprio de um objeto inferido, como o planeta

Netuno. O astrônomo Leverrier calculou que deveria existir um novo planeta

situado em certa região do espaço, responsável pelos desvios de órbita de Urano.

Leverrier chamou esse planeta de ‘Netuno’ antes mesmo de encontrá-lo, tendo

em mente as descrições correspondentes ao lugar e massa aproximada. Apesar

disso, é possível argumentar que uma vez que o objeto seja encontrado, a

referência passa a ser sustentada pela cadeia causal que com ele se inicia,

podendo a descrição até mesmo revelar-se falsa sem que o nome perca a sua

referência.1

Há um elemento intuitivo bastante compelente na teoria causal-histórica que

mesmo um descritivista deve reconhecer. É que nós vivemos em um universo

causal. Por isso, se agora escrevo a palavra ‘Aristóteles’, parece que só posso

designar o filósofo porque existe um inconcebivelmente complexo tear causal

que começou com (o batismo de) Aristóteles e terminou em meu proferimento

1 G.W. Fitch: Saul Kripke, p. 41.259

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atual. Considere, para contrastar, um caso no qual o nome próprio não é capaz

de referir e nem mesmo de fazer sentido, uma vez que a cadeia causal não

existe. Digamos que eu invente arbitrariamente uma a frase:

1. Saratoga é uma cidade espanhola,

sem saber se isso faz sentido e se Saratoga é nome de alguma coisa. Mas

suponha também que por puro golpe de sorte isso seja verdade. Suponha que

exista uma cidade espanhola com esse nome. Certamente, ninguém admitirá que

consegui me referir a essa cidade com a frase acima. A razão é que falta uma

cadeia causal que ligue o portador do nome, caso ele exista, ao meu

proferimento dele.

Essa constatação é válida também para outros termos singulares, como os

indexicais. Digamos que alguém de olhos vendados tente adivinhar o que foi

colocado em cima da mesa dizendo:

2. Lá está um vaso de flores.

Digamos que realmente tenha sido colocado um vaso de flores sobre a mesa.

Mesmo assim, não há como se admitir que a pessoa se referiu ao vaso de flores.

Pode ser lembrado que a frase é verdadeira, e que sendo verdadeira a pessoa

deve ter se referido ao vaso de flores. Mas ela própria não sabe que a frase é

verdadeira. Ois embora a frase seja verdadeira, ela é verdadeira para seus

intérpretes, as outras pessoas que realmente comparam o pensamento que a frase

exprime com a realidade. (Uma explicação neofregeana disso nos diria que

embora a pessoa que profere a frase tenha o pensamento expresso por (1) e seja

capaz de dar um sentido (um modo de apresentação) à expressão ‘(aquele) vaso

de flores’, ela não determina através desse sentido a referência, nem esse sentido 260

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é co-determinado pela experiência visual do vaso de flores, o que impede a frase

de possuir referência.

3. Dificuldades internas

Quero agora considerar duas dificuldades internas à teoria causal-histórica da

referência dos nomes próprios proposta por Kripke.

Uma primeira é a seguinte. Nas passagens onde Kripke introduz a sua idéia

da cadeia causal-histórica, ele Kripke recorre explicitamente a ao menos uma

intenção, que é a de “usar o nome com a mesma referência do homem de quem

a ouviu”.1 Essa intenção serve para selecionar o objeto referido na cadeia

comunicacional como sendo o mesmo, tanto para o falante quanto para o

ouvinte. Contudo, se essa intenção de preservar a mesma referência for

entendida como a preservação de conteúdos cognitivos vinculados ao nome,

parece que estamos recaindo no descritivismo, pois esses conteúdos se deixam

geralmente exprimir por intermédio de descrições. Mas se o descritivismo acaba

por emergir do interior do próprio externalismo kripkiano, a suposta vantagem

da teoria causal-histórica – a de superar as falhas do descritivismo – parece se

perder. Pois a próxima pergunta a ser feita será sobre a natureza dessa intenção

de preservar a mesma referência, sobre os critérios que a qualificam como capaz

disso.

Pode-se tentar contornar essa falha sugerindo que a intenção seja a de

preservar a mesma referência independentemente de sermos capazes de

conceber qualquer coisa de seu objeto. Mas se o ouvinte não precisa ter qualquer

1 Kripke: Naming and Necessity, pp. 91, 96. Searle nota que as explicações dadas por Kripke da introdução do nome próprio são inteiramente descritivistas: implicitamente, escreveu ele, também recorre a uma intenção quando fala da percepção do objeto pelo falante e ouvinte no ato do batismo, posto que a percepção possui um conteúdo intencional, o que acaba por pressupor o descritivismo. Mas podemos relevar esse ponto, imaginando que o ato de batismo (mesmo que intencional) inclua um compartilhamento mecânico, não-intencional, da referência, e que isso seja tudo o que importa como fator causal (Ver J.R. Searle: Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, pp. 234-235).

261

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idéia de qual possa ser a intenção do falante, então a intenção de com o mesmo

nome se referir ao mesmo objeto se reduz a uma aposta arbitrária. É como se

alguém dissesse: “Quero comprar o mesmo perfume que você comprou, mas não

precisa me dizer qual é” – o que traduz uma intenção vazia que de nada serve. A

intenção de referir-se a mesma coisa sem que se saiba nada sobre o que a coisa é

vale tanto quanto um zero à esquerda.

A segunda dificuldade diz respeito às mudanças na denotação. Gareth Evans

formulou contra-exemplos decisivos a respeito. Um deles diz respeito ao nome

próprio ‘Madagascar’.1 Sabe-se que originariamente o nome ‘Madagascar’ se

referia à região mais oriental do continente africano. Mas quando Marco Polo

esteve por lá, uma tradução incorreta levou-o a pensar que ‘Madagascar’ fosse o

nome da grande ilha situada próxima à costa oriental da África. Mais tarde,

devido aos relatos de Marco Polo, as pessoas passaram a chamar a ilha pelo

nome de Madagascar, esquecendo-se da referência original. Certamente, se a

referência do nome fosse fixada apenas por um batismo inicial, essa alteração

não poderia ter ocorrido. Afinal, Marco Polo tinha a intenção de se referir a

mesma coisa que a pessoa da qual ele ouviu o nome próprio pela primeira vez e

não de introduzir uma nova referência para o mesmo nome.

Uma resposta plausível para esse tipo de objeção foi sugerida por Michael

Devitt.2 Segundo esse autor, o sentido de um nome próprio não tem a ver

propriamente com a referência, mas é uma habilidade de designar um objeto.

Essa habilidade não costuma ser aprendida por um único batismo, mas por

muitos, em um processo que ele chama de fundamentação múltipla (multiple

grounding). Assim, o nome Madagascar havia sido fixado através de múltiplos

batismos como uma região oriental do continente africano, até que foi

inadvertidamente rebatizado por Marco Polo. Se nos usos subseqüentes as

1 Gareth Evans: “The Causal Theory of Names”.2 Michael Devitt: Designation, 2.1-2.3

262

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pessoas passaram a seguir Marco Polo, referindo-se à ilha, é porque a

fundamentação múltipla entrou novamente em ação formando um novo hábito

de referir, um sentido diverso para o nome. O que parece problemático nesse

apelo à fundamentação múltipla produtora de um hábito é que ela recorre a um

mecanismo psicológico-empírico que em si mesmos não parece capaz de refletir

o caráter convencional do uso do nome próprio.

Uma resposta que evita esse último problema é a proveniente do próprio

Kripke.1 Para ele, uma intenção, no caso, a intenção de Marco Polo de se referir

a uma ilha, sobrepuja a intenção dos antigos usuários do nome, estabelecendo

uma nova prática social. A partir disso o nome próprio ganha um novo sentido e

uma nova referência. Embora essa resposta seja mais apropriada, ela sofre de

descritivismo camuflado ao refletir o convencinal na forma de intenções. Afinal,

a intenção de Marco Polo de se referir à ilha só pode ser a de fazer valer

descrições como: ‘a grande ilha próxima da costa oriental do continente

africano’.

Uma dificuldade adicional, que quero rapidamente considerar, diz respeito ao

significado de nomes próprios diversos de um mesmo portador. Há casos em

que esses nomes próprios têm o mesmo conteúdo informativo (ex: José e Zé).

Mas há casos em que este último difere. Por exemplo: padre Marcial Maciel foi

fundador da ordem dos Legionários de Cristo e também um criminoso. Entre os

seus muitos atos criminosos estava o de manter falsas identidades. Uma delas foi

a de Raul Rivas, um empregado da Shell e agente da CIA que, que em 1976

conheceu a senhora Blanca Lara Gutierrez, que se apaixonou por ele e com a

qual teve dois filhos sem que a família descobrisse sua verdadeira identidade. Os

conteúdos informativos dos nomes ‘Marcial Maciel’ e ‘Raul Rivas’ são (ou

foram) cerrtamente, muito diversos. A teoria do feixe não encontraria problemas

em explicar essa diferença: o conjunto de descrições abreviadas pelo falso nome

1 Saul Kripke: Meaning and Necessity, p. 163.263

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era um, o conjunto de descrições abreviadas pelo nome verdadeiro era outro,

mais tarde descobriu-se que o primeiro é conjunto é um subconjunto do

segundo, daí a mesma referência. Nossa questão aqui é como explicar esses

sentidos diversos através da teoria causal-histórica. Suponhamos primeiro, que

na teoria causal-histórica o significado do nome próprio seja dado por sua fonte

causal última e que essa seja o objeto do ato de batismo. Mas sendo essa fonte a

mesma para ambos os nomes próprios, eles deveriam ter o mesmo conteúdo

informativo, o mesmo significado. Mas isso é contra-intuitivo. Suponhamos,

alternativamente, que a fonte seja o próprio ato do batismo. Nesse caso teremos

atos diferentes, um para cada nome próprio. Mas com isso o objeto, a pessoa,

parece perder-se de vista, assim como a razão para se dizer que os dois nomes se

referem ao mesmo objeto. A melhor solução encontra-se na sugestão de que a

própria cadeia causal-histórica é aquilo que dá ao nome o seu significado. Como

essa cadeia difere para os nomes próprios ‘Marcial Maciel’ e ‘Raul Rivas’, dado

que as suas origens causais foram advindas de tempos e situações diferentes, o

conteúdo informacional desses nomes irá variar, mesmo que eles sejam de um

mesmo objeto.

4. Problema (i): uso referencial sem causação objetual

Há outras dificuldades apontadas na teoria causal-histórica, cuja consideração

pode ser instrutiva. Uma delas é a que concerne a nomes que não tem ou não

parecem ter relação causal com as suas referências. Quero começar

considerando dois exemplos em que, segundo J.R. Searle, a causação do nome

pelo seu portador não existe.1 Primeiro, sabendo que existe a 5ª avenida em

Nova York, podemos inferir que existe uma 4ª avenida, referindo-nos assim a

algo de que nunca ouvimos falar e que não pode ser origem causal de nosso

1 A maioria desses exemplos foi considerada por J.R. Searle em seu livro Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, pp. 238-9

264

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proferimento. Além disso, se tudo o que sabemos acerca do faraó Ramsés VIII é

que ele veio depois de Ramsés VII e antes de Ramsés IX, podemos inferir que

Ramsés VIII existiu, sem que nenhuma cadeia causal tenha chegado até nós

partindo de seu batismo. Outros exemplos são os de coisas que só existirão no

futuro, como o furacão chamado ‘Katrina’, que recebeu esse nome antes de ele

se formar, ou a cidade planejada chamada ‘Brasília’, que recebeu esse nome em

1955 antes de ela ser construida. Ainda outro caso é o da referência a coisas

meramente possíveis, como Lauranda, que seria o ser humano que teria nascido

da célula espermática que originou Laura com o óvulo que originou a sua irmã

Amanda.1 E há também os casos de nomes de objetos abstratos da matemática,

como o número , que de modo algum seriam capazes de eficácia causal. Kripke

não nega que esses nomes todos tenham referência, mas a sua teoria parece

insuficiente para explicá-la.

Há, porém, respostas possíveis em defesa da concepção causal-histórica.

Uma delas consistiria em exigir apenas uma cadeia causal potencialmente

existente, mesmo que ela não seja atualmente dada. Em todos os casos acima,

com exceção talvez do último, essa potencialidade existe. Mas essa solução é

demasiado fraca, pois não justifica a potencialidade em questão. Uma variante

consistiria em exigir a existência de circunstâncias quaisquer (causalmente)

determinadoras do uso referencial do nome próprio, o que trivialmente acontece

nos casos acima. Essas duas condições podem se completar na formulação da

seguinte condição causal:

Cc: O uso referencial efetivo de um nome próprio só é possível se:(i) ele for adequadamente causado pelo seu objeto de referência,

ou se(ii) existirem circunstâncias que permitam com suficiente

probabilidade inferir a existência do objeto de referência do nome,

1 C. Hughes: Kripke: Names, Necessity, and Identity, p. 45 (baseado em Salmon).265

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o qual, por sua vez, será capaz de se tornar a adequada origem causal do uso referencial do nome.

Se aplicarmos essa condição aos dois primeiros exemplos de Searle, é possível

responder considerando que aquilo que chamamos de causa eficiente é apenas

um elemento mais relevante de um conjunto de fatores causais que constitui uma

situação, um estado de coisas, um processo, muitos desses fatores podendo ser

apenas inferidos como existindo.1 Assim, sabendo que a 5ª avenida é o fator

causal efetivo que está na origem da cadeia causal que nos permite nomeá-la, e

sabendo que ele deve ser parte de um estado de coisas constituido por uma

sequência de avenidas numeradas, nós inferimos que uma 4ª avenida também

deve existir; com isso concluimos também que a 4ª avenida é uma causa

potencial de nosso uso referencial desse nome. Do mesmo modo, Ramsés VII e

Ramsés IX fazem parte de um processo de sucessão de faraós que naturalmente

inclui Ramsés VIII como um elemento do processo causal iniciador da cadeia

causal que chega até nós, mas que sabemos ser um fator causal potencial. Não

importa que tais fatores causais não façam parte do que foi para nós o fator

causal eficiente no estado de coisas ou processo; importa que eles foram parte

dos de estado de coisas e processo respectivos, que através de fatores causais

ditos eficientes deram inicio à cadeia causal-histórica que a nós chegou.

No caso do furacão Katrina, existiam elementos causais que permitiriam

prever o seu aparecimento, mas esses elementos não podem fazer parte do

furacão, embora possam causá-lo. No caso de Brasília tampouco: a cidade

existia apenas na mente dos arquitetos e urbanistas, e o que originou

inicialmente a invenção do nome foi a simples intenção do presidente Jucelino e 1 Segundo J.L. Mackie, o que chamamos de ‘causa’ é resultado da escolha pragmática de um fator causal que é parte necessária, mas não suficiente, de um conjunto de fatores causais que é suficiente, embora não necessário, para que o efeito se dê. O que quero notar aqui é que a relevância dos fatores causais se desfaz gradualmente na amplitude do contexto espaço-temporal que circunda os fatores causais mais relevantes e centrais. Ver J.L. Mackie: The Cement of Universe: A Study of Causation, caps. 2 e 3.

266

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seu governo de construir uma nova capital federal.1 Essas condições, porém, já

teriam sido suficientes para a assunção de objetos potencialmente causadores da

referência, a serem futuramente atualizados. No caso de Lauranda, devemos

admitir que um objeto meramente possível não é um objeto existente e que por

conseqüência esse nome próprio não possui referência. Finalmente, o número

talvez possa ser considerado resultante de quaisquer circunstâncias de fixação

da referência através das quais dividimos o diâmetro de um círculo pelo seu

raio.2 Parece, pois, que em qualquer um dos casos até agora considerados, ao

menos a condição Cc(ii).

Outra forma de objeção seria a elaboração de situações imaginárias nas quais

a cadeia causal-histórica não existe. Searle imaginou uma pequena comunidade

lingüística na qual cada nome próprio é estabelecido indexicalmente na presença

de todos os outros falantes, de modo que nenhuma cadeia causal precisa se

formar. Como esse argumento não demonstra que os objetos não sejam a causa

dos proferimentos indexicais, ele só prova que a relação causal não precisa

chegar a produzir uma cadeia causal-histórica, o que de fato nunca foi

requerido.3

1 A teoria descritivista não encontra problemas em explicar nada disso. Sempre podemos encontrar descrições definidas, como a descrição localizadora de Brasília como sendo a cidade situada no centro geográfico do país, ou a descrição caracterizadora de Brasília como a sua capital.Tendo em vista tais casos, seria possível apelar para a causalidade regressa, sugerindo que no caso de nomes próprios referentes a objetos existentes no futuro o efeito (o proferimento do nome) viria antes da causa (o objeto a ser batizado). O problema é que parece definicional à relação causa-efeito que a causa seja algo que vem normalmente antes do efeito e em alguns casos junto com ele, de modo que se admitirmos que efeitos podem vir antes das causas, a própria distinção se perde.2 Se admitimos que objetos formais como o número não pertencem a um reino platônico, mas têm alguma existência no mundo real através de suas instanciações, então eles talvez possam ter um efeito causal indireto, como propriedades secundárias de propriedades causais primárias. Duas ostras estragadas, por exemplo, devem fazer mais mal do que apenas uma...3 Searle adiciona, porém, que essa nomeação só é possível porque as pessoas formam representações intencionais dos objetos ao batizá-los. Ver J.R. Searle: Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, pp. 240-241.

267

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Parece também possível imaginar situações em que o uso referencial bem

sucedido do nome próprio não passe por Cc. Digamos que exista um vidente

que, olhando para a sua bola de cristal, seja capaz de adivinhar nomes próprios e

de nos informar toda espécie de coisas sobre a sua referência. Ele olha para a sua

bola de cristal e diz: ‘Kamchatka!’, dissertando sobre os belos vulcões dessa

isolada península. Ele olha outra vez para a bola e diz ‘Tom Castro!’, passando a

dissertar sobre a vida desse notório vilão. Se, depois de fazer todos os testes

concebíveis, não descobríssemos nenhum truque, começaríamos a desconfiar do

inevitável: sem precisar recorrer nem a cadeias causais-históricas nem a

circunstâncias que permitam inferir a existência dos portadores de nossos nomes

próprios, o vidente se refere efetivamente a eles.

Podemos mesmo conceber uma situação extrema, um mundo no qual as

pessoas não precisem aprender os sentidos ou referências dos nomes próprios,

nem comunicá-los umas às outras, aprendendo o seu uso intuitivamente. A cada

pessoa ocorreriam nomes próprios, havendo uma concordância mágica entre os

sentidos e referências que cada pessoa desse a cada nome. Um nome próprio

seria pronunciado apenas para comunicar algo sobre o seu portador que as outras

pessoas ainda desconheçam.

Em minha opinião, nenhuma dessas objeções parece suficientemente forte

para destruir a intuição inerente à concepção causal-histórica. No exemplo de

Searle, a circunstância causal está no próprio ato de batismo, mesmo que não

chegue a formar uma cadeia causal-histórica. No exemplo do vidente, ele nos

afirma que o nome tem referência sempre que sabemos que ele a tem. Mesmo

que a relação causal do que o vidente vê com a cadeia causal-histórica nunca

seja esclarecida, isso não quer dizer que ela não exista. E uma semelhante

correlação causalmente imediata (mesmo que misteriosa) poderia ser suposta no

caso do mundo possível onde nomes e referências fossem intuitivamente

aprendidos.268

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5. Problema (ii): Nomes Próprios Vazios

O problema mais resiliente para a teoria causal-histórica é o que diz respeito a

nomes próprios sem referência. Eis alguns exemplos:

1. Vulcano,2. Eldorado,3. Atlântida,4. Rumpelstiltskin,5. Sherlock Holmes,6. Gandalf.

Tais nomes não podem satisfazer Cc, pois não possuem sequer um objeto

potencialmente causal. Como eles possuem sentido, eles não constituem

problema para teorias fregeanas ou descritivistas da referência, segundo as quais

tudo o que um nome próprio precisa é ter sentido. Mas nomes sem referência

são um grave problema para as teorias causais como a de Kripke, que fazem

depender a função referencial dos nomes do objeto de sua referência.

Uma estratégia para o defensor da teoria causal-histórica poderia ser sugerir

que nomes próprios sem referência não são verdadeiros nomes próprios, mas

descrições definidas disfarçadas, as quais referem por um mecanismo conotativo

muito diferente daquele pelo qual o nome próprio refere. O problema é que um

exame cuidadoso mostra que nomes próprios vazios não diferem essencialmente

dos nomes próprios mais comuns.

Considere primeiro os exemplos (1)-(3). Se os examinarmos mais de perto

veremos que esses nomes não substituem uma única descrição, mas todo um

feixe de descrições, o que parece nos reconduzir à teoria do feixe. No caso de

Vulcano, trata-se do nome de um planeta postulado por Leverrier no século XIX 269

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como encontrando-se a cerca de 21 milhões de km do Sol, de modo a explicar as

mudanças no periélio de Mercúrio (as quais foram mais tarde explicadas pela

teoria da relatividade). É possível sugerir implausivelmente que a frase acima

exprime apenas uma descrição complexa. Mas (3) e (4) são nomes próprios com

conteúdo informacional ainda mais complexo, não diferindo do que feixes de

descrições exprimem. O nome próprio ‘Eldorado’ procede de relatos e rituais

indígenas, os quais levaram os conquistadores espanhóis a crer que em alguma

região no oeste da Amazônia existiria uma cidade cujo rei se vestia de ouro e

que possuía inacreditáveis riquezas. Com base nessas e noutras descrições,

aventureiros e exploradores procuraram em vão encontrá-la, frequentemente

acabando na condição de repasto de canibais. O nome lendário de ‘Atlântida’ foi

associado por Platão a uma variedade de descrições que contam da existência de

uma ilha situada entre o mar mediterrâneo e o oceano atlântico; essa ilha, que

entre outras coisas teria sido habitada por um povo muito rico, teria

desaparecido no mar devido a um maremoto há cerca de 9.000 anos a.C. Se

Eldorado e Atlântida fossem encontrados seria porque pelo menos algumas

descrições dos respectivos feixes se aplicam.

É verdade que os feixes de descrições dos exemplos acima são pobres se

comparados com os de nomes próprios como Marte, Paris e Aristóteles. Mas

isso se deve ao fato natural de que, pelo próprio fato de existirem, esses objetos

nos permitem, com o tempo, acumular informações identificadoras acerca deles,

enriquecendo mais e mais o feixe de descrições, e não devido a um mecanismo

de identificação essencialmente diverso.

Compare agora o funcionamento do nome ‘Atlântida’ com o do nome

‘Tróia’. Também nesse último caso, tudo o que se tinha em mãos era um

limitado feixe de descrições retirado da Ilíada de Homero. Contudo,

diferentemente dos casos anteriores, Tróia foi encontrada. Pois como é sabido,

tendo levado a sério essas descrições Schliemann encontrou o sítio no qual se 270

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situam os restos da verdadeira cidade de Tróia. Qual a diferença entre os nomes

‘Eldorado’ e ‘Atlântida’, de um lado, e o nome ‘Tróia’, de outro? A meu ver só

uma: os primeiros são vazios, o último não. Fora isso, eles se comportam todos

da mesma maneira. Logo eles são todos nomes verdadeiros. Logo, a teoria

causal-histórica não é capaz de explicá-los.

Consideremos agora os exemplos (4)-(6), os quais, diversamente de (1)-(3),

são de nomes ficcionais. Aqui também temos feixes de descrições

identificadoras do objeto, ainda que elas não sejam aplicadas à realidade atual,

mas apenas ao domínio de objetos de mundos ficcionais. Rumpelstiltskin

abrevia descrições identificadoras de um anão em um conto de fadas, Sherlock

Holmes abrevia as de um detetive de uma série de contos de Conan Doyle,

Gandolf abrevia as de um mágico detalhadamente caracterizado no mundo

ficcional criado por Tolkien. Os mecanismos de identificação permanecem os

mesmos, alterando-se apenas o domínio de aplicação, que é o de realidades

meramente ficcionais.

Mesmo admitindo que os nomes próprios vazios como (1)-(6) não abreviam

descrições definidas isoladas, mas feixes de descrições, satisfazendo a teoria

descritivista, há estratégias possíveis para a teoria causal-histórica aplicáveis

mesmo a esses casos. Podemos admitir que (1)-(6) são verdadeiros nomes

próprios que, embora não se refiram a objetos reais, possuem ao menos

circunstâncias fixadoras da referência.1 Embora tais circunstâncias existam, o

objeto da referência não existe. Mas elas nos mostram como encontrá-lo se ele

existisse. Ele é um objeto potencial, não menos que Lauranda. Mas as

circunstâncias fixadoras da referência já têm um papel causal na determinação

do uso referencial e supostativamente do significado do nome próprio. Podemos

1 Essa solução não difere muito a meu ver da solução tentada por Keith Donnellan em “Speaking of Nothing”, segundo a qual o nome próprio vazio é aquele cuja cadeia causal termina em um “block”, posto que esse “block” nada mais seria do que as próprias circunstâncias fixadoras da referência.

271

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definir essa situação sugerindo que um nome próprio pode ter significado e ser

vazio na medida em que entre as causas de seu proferimento estejam

circunstâncias fixadoras de referência capazes de tornar a existência de seu

objeto de referência ao menos possível.

Embora essa solução, como outras concebíveis, possa ser tentada, ela padece

de uma deficiência no que concerne ao conceito de circunstâncias fixadoras da

referência. Não sendo objetos kripkianos, tais circunstâncias, afinal, só podem

ser descritas em termos de propriedades ou conjunto de propriedades criteriais.

Tais propriedades, por sua vez, podem ser descritas. E as suas descrições, por

sua vez, acabam por se evidenciar como os mesmos constituintes dos feixes de

descrições que os nomes próprios vazios abreviam. E com isso voltamos a

admitir assunções próprias da teoria descritivista dos nomes próprios.

6. Nomes próprios vazios e rigidez

A admissão de que nomes próprios podem ter sentido, mesmo não se referindo a

coisa alguma, nos permite dissolver uma ambiguidade existente na concepção

kripkiana de designador rígido. Kripke definiu inicialmente o designador rígido

como o que hoje chamamos de um designador persistente: aquele que designa

um mesmo objeto em qualquer mundo possível no qual esse objeto existe.1 Mais

tarde e em outras passagens ele definiu o designador rígido como o que hoje

chamamos de um designador obstinado: aquele que designa o mesmo objeto em

todos os mundos possíveis, mesmo naqueles nos quais esse objeto não existe.2 O

próprio Kripke parece, pelo que sabemos, preferiu não se decicir entre essas

duas definições.3

1 Saul Kripke: “Identity and Necessity”, p…2 Saul Kripke: Meaning and Necessity, pp. 21, 48.3 Em uma carta a Kaplan, Kripke notou que preferiria se manter neutro a esse respeito. Ver G.W. Fitch: Kripke, p. 36.

272

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A ambiguidade de Kripke é compreensível, pois parece haver vantagens e

desvantagens em ambas as definições. Que nomes próprios sejam designadores

persistentes está de acordo com a assunção de que eles só tem sentido porque o

seu uso resulta de um processo causal que tem origem no próprio objeto

existente: em um mundo no qual esse objeto não existe não deve existir o nome

próprio caracterizado por sua função identificadora. Mas há uma vantagem em

se admitir que nomes próprios são designadores obstinados, que é a de sermos

capazes de explicar porque podemos falar deles como designando possibilidades

inatualizadas no mundo em questão. Considere, por exemplo, um mundo no

qual Aristóteles nunca existiu. Mesmo assim parece que podemos supor a

possibilidade de ele existir nesse mundo. Mas essa suposição só parece viável se

o nome próprio ‘Aristóteles’ tiver alguma referência, mesmo que ela não exista

nesse mundo.1 A solução de quem aceita que nomes próprios são designadores

obstinados é dizer que em mundos nos quais a referência não existe eles se

referem ao objeto em nosso próprio mundo atual. Mas, como vimos ao discutir o

atualismo de Kaplan, essa resposta não é coerente, pois não podemos usar um

nome para um objeto em um mundo possível sem inserir o nome nesse mundo; e

inserir o nome em um mundo possível significa relacioná-lo ao contexto desse

mundo. Usar um nome em um mundo possível de modo a que ele se refira ao

nosso mundo atual seria o mesmo que tentar inseri-lo simultaneamente nos dois

mundos, o que levaria a uma contraditória mistura na satisfação dos critérios de

inserção contextual: Aristóteles teria escrito e não escrito a Metafísica, ele seria

barbudo e imberbe etc.

A esse problema poderíamos adicionar a consideração facilmente esquecida

de que não existe referência sem objeto de referência. Com efeito, é parte da

gramática de nosso conceito de referência que só podemos atribuir função

referencial a um termo se admitimos que o seu objeto de referência existe, de

1 G.W. Fitch: Naming and Believing, pp. 45, 46.273

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modo que quando descobrimos que esse objeto não existe, nós negamos o

sucesso referencial.1 Por conseguinte, em mundo possível algum pode um nome

próprio se referir a algo que nele não existe.

Minha sugestão é a de que a nossa intuição de que um nome próprio pode se

referir a um objeto não atualizado (o Vulcano possível) em um mundo possível

que não seja o nosso, se baseia na admissão de que ele mesmo assim possui um

sentido descritivo. Por isso o nome próprio pode ser usado para designar um

objeto em outro mundo possível, no qual esse objeto existe. Ora, quando

falamos em possibilidades não-atualizadas, estamos considerando precisamente

isso: a referência de nomes próprios em mundos possíveis nos quais seus objetos

de referência existem, mesmo que considerada em mundos possíveis nos quais

essas referências não existem. É nesse sentido que nomes próprios podem se

referir a seus objetos em mundos possíveis nos quais eles não existem. Para que

esse raciocínio fique mais convincente, basta pensar que esse mundo possível no

qual o objeto não existe seja o nosso próprio mundo atual.

A inexistência de referência sem objeto de referência não significa que não

possamos falar de possibilidades não-atualizadas. Podemos, encontrando-nos em

nosso mundo atual, nos referir a objetos que são possibilidades não atualizadas,

como Vulcano, Eldorado, Gandalf, simplesmente no sentido de que podemos

imaginar mundos possíveis nos quais esses nomes tem referência. É fácil

explicar como isso é possível se admitirmos que o significado de um nome

próprio pode ser dado por modos de apresentação descritivos, pois mesmo que

esses modos de aprsentação não sejam satisfeitos no mundo atual, eles podem

ser satisfeitos em algum mundo possível, explicando como podemos imaginar a

sua referência efetiva em outros mundos possíveis, explicando a sua

1 É verdade que podemos nos referir a objetos ficcionais como Sherlock Holmes e Gandolf. Mas nesse caso estamos assumindo a existência desses objetos em domínios ficcionais. O que não podemos é nos referir a coisas supostamente pertencentes ao mundo real mas que não existem, como Vulcano e o Eldorado.

274

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possibilidade de referência. Se admitirmos – contra Kripke – que nomes

próprios não demandam a existência do objeto para servirem como nomes

próprios, o entendimento de um nome próprio como sendo um designador

persistente se torna o mais natural. Por isso o adotarei daqui em diante.

7. O problema do autômato kripkiano completo

Podemos também demonstrar a necessidade do elemento cognitivo-

representacional concebendo o que eu gostaria de chamar de um autômato

kripkiano completo, capaz de criar e usar nomes próprios. Chamo esse autômato

de completo no sentido de ele não corre o risco de incorrer em descritivismo,

uma vez que não porecisa satisfazer sequer a exigência kripkiana de ser capaz de

ter a intenção de usar as palavras com a mesma referência que os outros

autômatos da mesma espécie. Imagino, pois, esse autômato como um ser

bastante primitivo, desprovido de qualquer forma de mente ou consciência, mas

ainda assim capaz de “identificar” pessoas através de seus sensores fotoelétricos

e de batizá-las com “nomes próprios”. Esses autômatos seriam certamente

capazes de reter imagens e características comportamentais da pessoa que

batizam com o nome próprio e ainda de transmiti-las para outros seres da mesma

espécie, “comunicando-as” assim a esses nomeadores secundários, os quais a

partir de então se tornam capazes de repetir o nome da pessoa quando a “vêem”

ou, por exemplo, quando “perguntadas” sobre como se chama uma pessoa com

tais e tais características. Como pode ser notado, o mecanismo de referência se

reduz aqui a uma pura cadeia causal-histórica externa, destituída de qualquer

elemento psicológico.

O interesse dessa experiência em pensamento é que ela não chega a ser

convincente como reprodução do que fazemos ao referir. Não entendemos

realmente como é possível que, nos nossos sentidos das palavras, um autômato

kripkiano tenha batizado uma pessoa e que apenas isso seja suficiente para que 275

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ele possa reidentificá-la ou para que possa levar outros a reidentificá-la ou a usar

o nome próprio como resposta à representação de certas características. Afinal,

parece claro que esses autômatos não estão ainda usando os nomes próprios para

denotar no sentido próprio da palavra. As palavras ‘nome’, ‘referência’,

‘comunicação’, ‘visão’, ‘avistar’, ‘representação’, ‘intenção’ estão todas sendo

usadas aqui em um sentido extremamente simplificado e analógico. O que esses

autômatos fazem é apenas produzir imitações mecânicas de processos

referenciais que se dão em mentes conscientes, mas sem realizá-los

efetivamente, o que se demonstra em sua quase completa ausência de

flexibilidade, complexidade e sofisticação comportamental.

Imagine, porém, que não se trate mais de autômatos kripkianos completos,

mas de andróides extremamente sofisticados, tais como os que aparecem nos

filmes de Steven Spielberg; seres capazes de compartilhar com perfeição nossa

forma de vida, de aprender todos os detalhes de nossa linguagem natural, usando

os nomes próprios tão perfeitamente quanto nós mesmos.1 Ora, nesse caso não

ficaremos mais satisfeitos em considerar os seus atos de nomear elos terminais

de uma cadeia causal puramente externa. Por analogia com nós mesmos será

inevitável lhes atribuirmos mentalidade. Isso significa que seremos compelidos a

identificar certos pontos nodais de seus caminhos causais como também sendo

internamente descritíveis em termos psicológicos como cognições,

representações ou intenções. Afinal, não temos como nos impedir de

identificarmos a consciência alheia por analogia com a nossa.

Mas e se esses andróides na realidade fossem zumbis completamente

destituídos de consciência, mas apesar disso capazes de falar e de se comportar

de modo indistinguível dos seres humanos? E se eles viessem conversar

1 Digo isso supondo que a sua construção seja logicamente possível. Parece-me defensável a idéia de que somente seres biológicos com vidas semelhantes às nossas sejam capazes disso, justificando-se isso no insight wittgensteiniano de que uma expressão tem sentido somente no fluxo da vida.

276

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conosco, tentando nos convencer que são completamente destituídos de

consciência, não possuindo realmente pensamentos, nem intenções, nem

vontade? Ora, a resposta é que não acreditaríamos em suas afirmações, pois elas

nos soariam ridiculamente incoerentes e inverossímeis. (Assim também o

proferimento “Eu te batizo com o nome ‘Aristóteles’” deve ter uma certa

configuração cognitiva para quem batiza, que é reproduzida na mente de quem o

compreende através de um processo causal; como essa reprodução poderia não

ser em algum sentido consciente?)

A conclusão sugerida por esses casos imaginários é a de que se quisermos

que os nomes próprios tenham referência no sentido próprio da palavra,

precisaremos elaborar a causação mecânica, externa, a tal ponto que ela

inevitavelmente passe a refletir-se na forma de processos causais psicológicos,

internanente avaliáveis, nos quais o elemento cognitivo-representacional-

intencional e, por consequência, o elemento descritivo, ganhem um papel

preponderante.

8. Cadeias causais, elos cognitivos e histórias causais

Mesmo concedendo que possa haver uma explicação causal-histórica para a

referência de nomes próprios, a questão é saber o quanto essa explicação

explica. Uma teoria causal-histórica realmente coerente precisaria ser construída

sem a admissão de quaisquer elos psicológicos como intenções, cognições,

representações, que geralmente se deixam expressar como descrições. Mas não

parece que o simples recurso a uma cadeia causal externa, a saber, uma cadeia

causal constituída de elementos físicos intersubjetivamente acessíveis, como

ondas de som, descargas neuronais, movimentos corporais... seja suficiente para

explicar a referência. Mesmo que Kripke admita que precisamos ter a intenção

de nos referir ao mesmo objeto, já vimos que para ser inteiramente conseqüente

277

Page 278: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

ela precisa se reduzir a uma intenção de reprodução de um conteúdo

desconhecido, o que é o mesmo que nada.

É interessante considerar as dificuldades que aparecem quando tentamos

explicar a referência do nome próprio através de uma cadeia causal puramente

externa. Uma primeira dificuldade é que existem incontáveis cadeias causais que

nos estão sendo continuamente dadas e cujo elo final não é o uso de um nome

próprio para referir. Ora, como então identificar a cadeia causal que tem como

elo final o uso referencial de um nome próprio? Como saber, por exemplo, que a

palavra ‘Cacilda’ está sendo usada como nome próprio, e não em um sentido

meramente exclamativo? Como saber que uma pessoa está usando o nome

próprio ‘Aristóteles’ corretamente, segundo as causas apropriadas? Digamos que

ao ouvir pela primeira vez o nome ‘Aristóteles’, um nomeador secundário

conclua que o falante quer se referir a um colégio de sua cidade. Como saber

que essa não é, afinal, a cadeia causal-histórica correta sem recorrer a

representações-descrições relacionadas a pessoa de Aristóteles? Somos muito

pouco conscientes do fato de que vivemos em um imenso oceano causal. Como

escolher, entre inúmeras cadeias causais que simultaneamente ocorrem e se

entrecruzam, aquela que é responsável pela referência? Tão certo quanto a sua

existência é o fato de que a cadeia causal-histórica é em si mesma praticamente

inexcrutinizável e inseparável das outras conexões que formam o imenso tear

causal que termina no proferimento de um nome. Como então estarmos tão

certos de sua existência?

Parece que há uma única maneira claramente concebível de em princípio

identificar a cadeia causal externa relevante, que é pela suposição de que seus

elos físicos neurofisiológicos possam ser também de algum modo descritos em

termos psicológicos, nomeadamente, como cognições, representações ou

intenções de designar um certo objeto. Mas isso significa que é praticamente

inevitável considerarmos primeiro cognições ou representações internas para 278

Page 279: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

então nos tornarmos capazes de perceber uma correlação entre essas cognições

ou representações internas e a sua contraparte física na forma de elos

neurofisiológicos constitutivos da cadeia causal externa. Contudo, como

cognições e representações internas são em princípio exprimíveis através de

descrições, se admitirmos que é esse o caminho para a identificação das cadeias

causais, parece que acabamos por nos comprometer com alguma forma de

descritivismo.

Não estou querendo afirmar que é logicamente impossível explicar a

referência dos nomes próprios recorrendo apenas às cadeias causais externas.

Imagine que seres extraterrenos quase oniscientes, de visita ao nosso planeta,

decidissem estudar nossos usos lingüísticos. Suponha que eles fossem capazes

de registrar todos os nossos atos comunicacionais e de identificar as cadeias

causais-históricas que nos levam a proferir nossos nomes próprios nos diversos

contextos. Parece razoável pensar que eles se tornariam no final capazes de

identificar essas cadeias sem recurso a nossas descrições de elos cognitivo-

representacionais. Isso sugere que uma explicação puramente causal em terceira

pessoa é logicamente possível. Mas, em primeiro lugar, é um fato que não temos

essa perspectiva quase onisciente em relação a nós mesmos. Pelo contrário,

sabemos muito mais sobre nossos estados mentais ao usarmos os nomes

próprios e explicações da referência que apelam a esses usos como as

explicações naturais e efetivas. Outro ponto é que os extra-terrestres acabariam

concluindo que, por tudo o que fazemos com as palavras, não podemos ser

autômatos kripkianos, mas seres conscientes, capazes de acesso cognitivo-

representacional às referências dos nomes próprios que usamos. Finalmente,

para identificar nossa linguagem enquanto linguagem e nossos usos referenciais,

os extraterrestres precisam saber o que é uma linguagem e possuírem estados

cognitivos-representacionais correspondentes. Ou seja: em algum momento e

lugar será sempre necessário que seja dado um padrão constituído por estados 279

Page 280: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

cognitivos-representativos-descritivos conscientes, que sirvam de elos causais

interpretáveis em termos fisicalistas. O elemento psicológico é no final das

contas irredutível.

Minha conclusão é que, como explicação isolada para a referência, o

externalismo causal acaba incorrendo em petição de princípio: para se evitar o

recurso a um elemento cognitivo-descritivo comprometedor, apela-se a uma

cadeia causal puramente externa. Mas, considerando-se a pletora de cadeias

causais ligadas ao proferimento de um nome, como distinguir aquela que conduz

ao seu proferimento correto? Ora, a única maneira de responder a isso parece ser

apelando para cognições ou representações internas, que constituem a

apresentação psicológica de elos neurofisiológicos da cadeia causal externa.

Contudo, tais cognições ou representações internas costumam ser, por sua vez,

susceptíveis de exposição descritiva, o que nos compromete outra vez com

alguma forma de descritivismo. Kripke evita o descritivismo através do recurso

a alguma coisa que acaba por pressupô-lo.

Devemos concluir desses argumentos que o recurso à cadeia causal externa é

incapaz de desempenhar qualquer papel no sentido de explicar a referência?

Creio que não. Embora o rastreamento do tear causal externo (os sons proferidos

em atos de batismo, os seus efeitos específicos nos cérebros dos participantes

etc.) seja praticamente impossível, é muitas vezes possível uma identificação do

que pode ser chamado de história causal, que seria a história derivada do

percurso espaço-temporal delineado pela efetiva cadeia causal. Considere, por

exemplo, o nome ‘Sócrates’. Sabemos que Sócrates existiu devido aos

testemunhos deixados por contemporâneos que o conheceram pessoalmente,

como Platão, Xenófanes e Aristófanes, testemunhos esses mais tarde lembrados

por Aristóteles e pelos socráticos menores. Podemos discernir nisso histórias

causais que, através das mais variadas ramificações, chegaram até nós. Embora

nunca venhamos a reconhecer as cadeias causais específicas que se deram entre 280

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o Sócrates histórico e o que ele possa ter produzido nos que possam tê-lo

batizado com esse nome e mais tarde nos cérebros de Platão, de Aristóteles e

dos socráticos menores, somos ainda assim capazes de identificar uma história

causal que contém em suas estações eventos causais nos cérebros de Platão,

Aristóteles e outros. Informações sobre a história causal podem ser relevantes

para a explicação da referência. Podemos tomar ciência dela. E a constatação de

uma completa ausência de histórias causais pode até mesmo levar-nos a rejeitar

uma suposta referência como ilegítima.

É importante enfatizarmos, porém, que as histórias causais só ganham força

explicativa com relação à determinação da referência porque nós tomamos

consciência de seus elos, ou seja, porque somos capazes de representá-los

cognitivamente, o que normalmente significa torná-los susceptíveis de

representação descritiva. Uma teoria descritivista dos nomes próprios poderia

incorporar informações relativas à história causal ao feixe de descrições

constitutivas do sentido de um nome próprio, exigindo então que a comunidade

lingüística (ao menos através de alguns de seus membros) fosse capaz de, em

algum momento, produzir representações descritivas justificadoras do seu uso

referencial.

Quero finalmente esclarecer melhor o modo de ver recém-sugerido apelando

para o exemplo de um nome próprio muito simples, tal como Devitt fez com a

sua gata Nana, em defesa de sua versão da teoria causal-histórica.1 Minha

história é a de uma cadela chamada Dodó (corruptela de ‘Dona’), que minha

mulher e eu também tivemos. Antes de ela ter um nome nós já sabíamos

identificá-la como ‘o nosso cão’. Nós a identificávamos perceptualmente pelo

seu pequeno tamanho, pela cor dos pelos, pela forma do focinho e pelo fato de

que ela era o único habitante canino da casa. Quando ela passou a ser chamada

1 M. Devitt: Designation, p. 28 ss.

281

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de Dodó, nós usávamos o nome tendo em mente o animal com as características

recém-descritas. O que fizemos foi associar o nome a representações capazes de

serem em certa medida expressas na forma descritiva de um retrato falado ou

coisa parecida. Quem realmente conheceu a Dodó, conheceu uma descrição da

forma: ‘a cadela com tais e tais características, que morou em tal e tal lugar e

que pertenceu a tais e tais pessoas’. Claro, eu pude passar o nome a outras

pessoas que nunca a viram sem o auxílio dessa descrição, dizendo que tenho um

cão. Elas conheceram, portanto, a representação expressa pela descrição parcial:

‘o cão do Claudio’. Note-se que há aqui uma cadeia causal-histórica e que ela é

indispensável. Contudo, é importante notar que os elos da cadeia causal que

acabei de expor podem ser descritos como conteúdos cognitivo-

representacionais internos, similares ou complementares, que se repetem

atualizando-se (talvez de forma não-reflexiva) nas mentes das pessoas e sendo,

em grande medida, exprimíveis através de regras-descrições. É verdade que

todos cumprimos com a exigência de Kripke de ter a intenção de designar o

mesmo objeto. Mas essa intenção não é um querer destituído de conteúdo, mas a

intenção de designar o mesmo objeto por compartilhar da mesma intenção de

outros usuários do nome. Essa intenção só existe porque os elos do tear causal

são eventos neurofisiológicos, sejam eles quais forem, que se nos apresentam

como conteúdos cognitivo-representacionais em geral passíveis de apresentação

descritiva, além do fato de que esses elos, quando pensados pelos diversos

falantes, apresentam o necessário grau de similaridade e complementaridade

entre si. O exemplo sugere que, contrariamente ao que se supõe, cadeia causal-

histórica e cognição-representação-descrição são coisas que se complementam

ao invés de se opor.

9. O Descritivismo dos elos Causais

282

Page 283: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

As considerações feitas até aqui sugerem um quadro mais complexo,

teoricamente capaz de integrar a visão causal-histórica a um descritivismo dos

elos causais. A existência de alguma conexão causal externa, atual ou ao menos

possível, é uma condição necessária para que o nome próprio possua referência.

Mas essa condição não parece ser suficiente. É preciso que ela possa ser

reconhecida como adequada para que o nome tenha a função de referir. Mas ela

só será reconhecida como adequada se for aquela cujos elos causais são capazes

de preservar a relação de referência que o nome tem com o seu objeto. E o

candidato natural a elo causal capaz de preservar essa relação é aquele

constituído por conteúdos cognitivos (representacionais, intencionais) que se

reiteram e se complementam no estabelecimento da relação referencial. Esses

elos cognitivos poderiam então instanciar regras descritivamente exprimíveis,

capazes de identificar o referente através de suas propriedades singularizadoras,

quaisquer que sejam elas. Se assumirmos a condição da existência da cadeia

causal externa como sendo satisfatoriamente resgatável pelas descrições que

expressam cognições que constituem momentos de histórias causais corretas,

essas histórias e as resultantes descrições dos elos causais cognitivos

instanciadores de regras de conexão com o objeto serão aquilo que no final das

contas é capaz de explicar a referência, pois é só a esses elementos cognitivos

que temos ou podemos ter efetivo acesso como usuários conscientes da

linguagem. Conseqüentemente, uma versão mais adequada da teoria causal-

histórica deveria supor como elos causais externos estados neurofisiológicos

capazes de serem descritos internamente como elos causais cognitivos

geralmente exprimíveis através de descrições que expressam procedimentos de

identificação que se afiguram como padrões complementares e reiteráveis no

delineamento do tear causal.1

1 É importante notar a proximidade dessas idéias com a versão da teoria causal-histórica defendida por Michael Devitt, segundo a qual o fixador cognitivo do referente não é uma descrição, “mas com um sistema de cadeias-d geradas por vínculos de papel conceitual que

283

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O esquema que se segue visa ilustrar a estrutura do tear causal cujos elos

importantes podem ser internamente interpretados como conteúdos cognitivo-

representacionais geralmente passíveis de formulação descritiva:

Nomeador originário: (primeiro elo causal: relação causal objeto nome + cognições)

... (relações causais cognitivas) Nomeadores secundários: (elos causais cognitivos...)

... Proferimento do nome pelo falante...

Cumpre lembrar que os elos causais relevantes devem ser estads cognitivos

que podem ser apenas em medidas cada vez menores reproduzidos pelos

nomeadores secundários. Esses elos são geralmente descritíveis internamente e

em primeira pessoa como cognições (representações, intenções, idéias...),

devendo poder também ser em princípio descritíveis externamente, em terceira

pessoa, na forma de comportamento neuronal. Nós não teríamos como nos guiar

em qualquer forma de identificação externa (seja a de histórias causais, seja a de

supostas cadeias causais-históricas), a não ser por meio de alguma espécie de

correspondência (alegadamente, uma identificação) entre elos causais e

cognições internas.

vão de pensamentos para estímulos periféricos e de estímulos para o mundo externo” (“Against Direct Reference”, p. 227). Esse sistema em geral não é externo, pois “uma grande parte do sistema de cadeias-d para um nome consiste em processo e funcionamento mental” (p. 217), embora quase nada disso precise ser consciente (p. 227). Em minha opinião, o que Devitt está identificando com o sentido é uma mistura de representações psicológicas explicitáveis em termos de regras-descrições, mesmo que não-conscientes, com a leitura dessas mesmas representações em termos neurofisiológicos. Mas parece claro que tudo o que se apresenta em termos psicológicos também deve ser passível de descrição em termos de comportamento neuronal. Assim, o que Devitt está defendendo é no fundo uma forma de cognitismo que ele equivocamente interpreta em termos externalistas.

284

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Outro ponto a ser notado é que as cognições que podem ser entendidas como

constituindo elos da cadeia causal não precisam ser conscientes: elas podem ser

cognições semânticas não-reflexivas. Afinal, se admitirmos as teorias meta-

cognitivas da consciência, segundo as quais uma cognição só é efetivamente

consciente se ela for objeto de uma metacognição1, então somos capazes de

realizar um imenso número de atos cognitivos de cuja estrutura nunca teremos

consciência, mas que permanecem em princípio resgatáveis para a consciência.

Em resumo: sob o modo de entender a cadeia causal aqui sugerido, os elos

causais relevantes são os internamente descritíveis, em primeira pessoa, em

termos de cognições e suas descrições, as quais podem em princípio ser

externamente descritas, em terceira pessoa, em termos neurofisiológicos. Essas

descrições exprimem conteúdos fundados em convenções estabelecidas pelos

membros da comunidade lingüística, sendo socialmente originadas e

psicologicamente instanciadas. Certamente, as cognições-descrições em causa

não precisam ser compartilhadas entre todos os falantes. O quase nada que eu sei

do conteúdo informacional do nome ‘Jayavarman VII’, por exemplo, se vincula

a tudo aquilo que os especialistas em conjunto (e nenhum deles em particular)

sabem sobre a esse príncipe, de um modo semelhante ao modo como um

terminal de computador se vincula ao processador central.2 Podemos saber

muito pouco sobre o sentido de um nome, mas, na medida em que formos

capazes de nos conectar com a fonte, que é a própria comunidade lingüística,

realizada nas pessoas de seus nomeadores originários ou privilegiados, seremos

capazes de introduzir o nome em um discurso público no qual a sua referência

possa ser reconhecida. Com efeito, o significado mais completo das palavras é

1 David Rosenthal: Consciousness and Mind, parte I. 2 Retiro essa analogia do livro de Michael Huntley, Contemporary Philosophy of Thought: Truth, World, Content, p. 280. Meus dois esquemas causais-históricos são aprimoramentos dos esquemas apresentados em seu livro (pp. 271-282).

285

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atributo da comunidade lingüística e a referência não é nenhum ato privado no

sentido de fundamentar-se naquilo que acontece na mente de uma única pessoa.

10. Considerações finais

O ponto fundamental de minha crítica a uma teoria causal-histórica que se

reporte tão somente a uma cadeia causal externa é que essa teoria incorre em

uma petição de princípio, pois a identificação da cadeia causal acaba por

pressupor inevitavelmente uma contrapartida cognitivo-representacional, em

princípio descritivamente resgatável. Ou seja: se quisermos explicar a referência

valendo-nos apenas de cadeias causais externas, isso parece ser de algum modo

e em princípio, ao menos, possível. Mas para identificarmos as cadeias causais

externas verdadeiras precisaremos sempre, em algum momento, identificar os

atos cognitivos a que elas correspondem e através dos quais usamos o nome

próprio na identificação consciente de seu objeto.

Do ponto de vista dos usuários do nome, pelo menos, algum elemento

cognitivo interno termina sendo em algum momento imprescindível. Quero

ilustrar esse ponto com um exemplo de explicação psicológica. Suponha que eu

decida comprar um presente para alguém em agradecimento a um favor. Se me

perguntarem “Por que você decidiu comprar o presente?”, eu responderei: “Por

me sentir grato por um favor que a pessoa me fez”. Nesse caso há uma decisão

psicológica explicada por um sentimento também psicológico, sustentando uma

identidade de nível entre o explicandum e o explicans. Mas suponha que seja

possível explicar minha decisão de comprar o presente apelando aos processos

neurofisiológicos em meu cérebro correspondentes ao meu sentimento de

gratidão com relação ao favor que foi feito. Seria essa explicação isolada

suficiente e adequada para a minha decisão de comprar o presente? Parece-me

que não. Pois ela só poderá ser considerada adequada se já de antemão for

sabido que o processo neurofisiológico em questão corresponde respectivamente 286

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à decisão de comprar o presente e ao sentimento de gratidão para com o

comportamento de meu amigo. Ou seja: mesmo que possível, a explicação

causal externa, fisicalista, de atos conscientes, só faz sentido na medida em

formos capazes de traduzi-la como correspondendo à explicação causal interna,

psicológica. Algo similar acontece quando consideramos uma possível

explicação da referência pelo recurso a cadeias causais externas: tais explicações

só farão sentido na medida em que forem vistas como contendo traduções

externas de processos internos, nos quais o semântico é de algum modo em

algum momento psicologicamente instanciado.

287

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9. NOMES PRÓPRIOS (III): META-

DESCRITIVISMO CAUSAL

Como escreveu Ermano Bencivenga, nossas convicções filosóficas comportam-

se por vezes como pêndulos, que primeiro oscilam para um lado e depois para o

outro.1 Um resultado disso é que quando consideradas por um período

demasiado breve, elas nos oferecem a ilusória impressão de que continuarão

sempre seguindo a mesma direção. Com efeito, a teoria da referência direta dos

nomes próprios, alegadamente proposta por Stuart Mill, caiu por terra com o

desenvolvimento das teorias descritivistas de Frege, Russell, Wittgenstein e

Searle. Contudo, o que ninguém poderia prever é que ela iria renascer

metamorfoseada na forma da teoria causal-histórica dos nomes próprios

defendida por Kripke e por outros, em um movimento que até hoje persiste.

Como vimos no capítulo anterior, não é nem um pouco certo que esse

movimento seja definitivo. Com efeito, meu objetivo neste capítulo é tentar

inverter a direção do pêndulo na direção das teorias descritivistas, mesmo que

preservando alguns resultados positivos da concepção causal-histórica.

Minha hipótese de trabalho sobre as teorias descritivistas dos nomes próprios

é a de que elas falham por falta de estrutura. Um nome próprio não pode estar

no lugar de um simples amontoado de descrições, como pretenderam

descritivistas como John Searle. As descrições que compõem o feixe devem ser

submetidas a um princípio estruturador. Por não dar conta dessa organização,

uma teoria como a de Searle perde em poder explicativo, dando a impressão de

1 Ermano Bencivenga: Die Referenzproblematik: eine Einführung in die analytische Sprachphilosophie, pp. 129-130.

288

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que as teorias causais-históricas constituem uma opção eventualmente mais

plausível.

Por força dessa hipótese de trabalho, meu objetivo será mostrar que as

descrições constitutivas do significado dos nomes próprios devem satisfazer

uma regra mais geral, capaz de lhes hierarquizar valorativamente. Como as

descrições constitutivas do feixe são expressões de regras cognitivas que as

conectam com o seu objeto de referência, essa suposta regra estruturadora do

feixe de descrições deve ser uma regra de regras, a saber, uma regra de ordem

superior, exprimível por meio de uma descrição de segunda ordem ou meta-

descrição. Por isso chamo a versão do descritivismo que irei propor de uma

teoria meta-descritivista dos nomes próprios, na verdade um meta-descritivismo

causal, dado que um reconhecido elemento causal deverá ser a ela integrado.1

Há também diferenças de abordagem. Quero começar investigando

sistematicamente os tipos de descrições pertencentes ao feixe. Os filósofos que

investigaram nomes próprios tomavam como exemplos as descrições

substitutivas que lhes passarem pela mente de modo mais ou menos aleatório.

Quero mostrar que precisamente por serem arbitrariamente escolhidas, tais

descrições eram muitas vezes de importância meramente aparente. Frege, por

exemplo, sugere que o nome ‘Aristóteles’ possa estar no lugar das descrições ‘o

discípulo de Platão’ e ‘o professor estagirita de Alexandre o Grande’. E

Wittgenstein sugere que o nome ‘Moisés’ possa estar no lugar da descrição ‘o

homem que quando bebê foi retirado do Nilo pela filha do faraó’. Mas, como

veremos, nenhuma dessas descrições é fundamental.

1. Regras-descrições fundamentais

1 A expressão ‘descritivismo causal’ foi cunhada por David Lewis para designar teorias mistas dos nomes próprios en seu artigo “Putnam’s Paradox”. Ver também D.K. Lewis, “Naming the Colors” e Frederick Kroon: “Causal Descriptivism”.

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Há sem dúvida descrições mais e menos importantes associadas ao nome

próprio. Considere, por exemplo, ‘Moisés’. A descrição ‘o homem que guiou os

israelitas até a terra prometida’ parece mais importante do que ‘o homem que

quando bebê foi retirado do Nilo pela filha do faraó’. Afinal, a falsidade da

última descrição traria muito menos conseqüências que a falsidade da primeira.

Com o fito de hierarquizar as regras-descrições, quero distinguir três grupos de

descrições definidas atributivas capazes de exprimir partes do conteúdo

informativo dos nomes próprios: os grupos A e B – que são os do que chamo de

descrições fundamentais – e o grupo C – que é o daquilo que chamo de

descrições auxiliares. Quero evidenciar que os grupos A e B são os das

descrições realmente relevantes para a identificação do objeto, enquanto o grupo

C é o das descrições que, embora de alguma valia para a conexão com o objeto,

não chegam a desempenhar um papel fundamental. Quero começar procedendo

de modo meramente classificatório.

Vejamos primeiro o que chamei de descrições fundamentais. Para encontrá-

las gostaria de proceder atentando para a sua relevância na linguagem. Mas

como fazê-lo? J.L. Austin, o filósofo da linguagem ordinária, aconselhava que

ao fazermos filosofia tivéssemos à mão o Oxford English Dictionary. Contudo,

não podemos buscar os tipos de descrição mais importantes associados aos

nomes próprios, posto que nomes próprios não se encontram em geral

dicionarizados. Mas isso não nos deve desanimar. Pois se os nomes próprios não

se encontram dicionarizados, pelo menos muitos deles se encontram

“enciclopedizados”. Daí o meu conselho: se queres encontrar as descrições que

importam ao nome próprio, consultes os cabeçalhos dos seus verbetes nas

enciclopédias! Vejamos o que podemos encontrar, por exemplo, no verbete

‘Aristóteles’ do pequeno dicionário filosófico da Penguin. Lá está escrito:

290

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Aristóteles = (384 a.C – 322 a.C.) nascido em Estagira, no norte da Grécia, Aristóteles produziu o maior sistema filosófico da antiguidade. (Segue-se uma exposição sumária das grandes obras de Aristóteles.)

Quando examinamos esse e outros verbetes do gênero para o nome

‘Aristóteles’, o que depreendemos é que eles abreviam especialmente duas

regras-descrições, uma estabelecendo o lugar e o tempo de seu nascimento e

morte (ao que podem ser adicionadas etapas de sua carreira espaço-temporal), a

outra estabelecendo as propriedades mais importantes de Aristóteles, aquelas

que constituem a razão pela qual aplicamos o nome. Essas propriedades são,

acima de tudo, as idéias e argumentos presentes no opus aristotélico.

Podemos agora abstrair desse caso concreto dois tipos de regras-descrições

fundamentais próprias dos grupos A e B respectivamente:

A) Regra localizadora = expressa pela descrição que estabelece o que consideramos localização e percurso espaço-temporais do objeto1.B) Regra caracterizadora = expressa pela descrição que estabelece o que consideramos as propriedades mais relevantes do objeto, aquelas que constituem a razão pela qual o nomeamos.

Consideremos agora as regras-descrições localizadora e caracterizadora de

Aristóteles de modo mais explícito. Elas são:

(a) Descrição localizadora do nome ‘Aristóteles’ = a pessoa que nasceu em Estagira em 384 a.C., que viveu a maior parte de sua vida em Atenas, teve de fugir para Assos, retornou a Atenas, mas acabou tendo de fugir para Chalcis, onde morreu em 322 a.C.(b) Descrição caracterizadora do nome ‘Aristóteles’ = o autor das doutrinas filosóficas expostas na Metafísica, na Física, na Ética a Nicômano, no Organon, nos Tópicos e nas demais obras que compõem o opus aristotélico.

1 O fato de que as regras espaço-temporalmente localizadoras tem um papel privilegiado não passou completamente despercebido. Segundo Paul Ziff, descrições localizadoras ou que implicam em localização formam uma parte central do mecanismo de referência do nome próprio (ver “The Meaning of Proper Names”).

291

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Tais regras fundamentais podem ser mais e mais descritivamente detalhadas.

No caso de Aristóteles elas ultimadamente se justificam pelos testemunhos

históricos.

Para evidenciar a importância das regras-descrições fundamentais, eis alguns

exemplos de descrições definidas do grupo A, que retiro diretamente do

cabeçalhos de verbetes da Wikipedia.1 Eles apresentam como condições de

identificação propriedades localizadoras de objetos referidos por nomes

próprios:

1. Pelé (Edson Arantes do Nascimento) = a pessoa que nasceu na cidade de Três Corações em 1940 e que hoje vive em Santos e nos EUA.

2. Taj Mahal = um mausaléu construído de 1630 a 1652 perto da cidade de Agra, na Índia, existindo até hoje.

3. Paris = cidade de mais de dez milhões de habitantes situada no norte da França, às margens do rio Sena. Seu surgimento como cidade remonta ao século IX.

4. Amazonas = o rio que nasce nas montanhas do Peru e deságua no atlântico, seguindo a linha do equador. Junto aos seus afluentes ele forma a maior bacia hidrográfica do mundo. Existe desde tempos imemoriais...

É preciso notar que a descrição localizadora possui ao menos um elemento

caracterizador, que consiste na discriminação do tipo de objeto a ser referido.

Assim, Pelé é discriminado como sendo uma pessoa, o Taj Mahal como um

mausaléu, o Amazonas como um rio, Vênus como um planeta. Esse mínimo de

caracterização é indispensável para que a descrição localizadora chegue a fazer

sentido.

Que as regras-descrições do grupo B também são fundamentais você também

pode comprovar consultando os cabeçalhos dos mesmos verbetes. Na mesma

ordem, eis o que eles dizem:

1 Escolho a Wikipedia pelo acesso fácil; qualquer outra enciclopédia realçará dados similares.292

Page 293: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

1. Pelé (Edson Arantes do Nascimento) = o mais famoso jogador de futebol de todos os tempos.

2. Taj Mahal = o belíssimo mausaléu de mármore feito pelo imperador Shah Johan para a sua esposa favorita, Aryumand Bam Began...

3. Paris = a capital da França, centro econômico e turístico do país e uma das mais belas cidades do mundo.

4. Amazonas = o mais caudaloso e provavelmente também o mais longo rio do mundo, responsável por 1/5 da água doce que desagua nos oceanos.

É principalmente em razão da importância das propriedades denotadas por

tais descrições definidas que esses nomes são usados por nós. Isso não significa,

é claro, que estejamos concebendo as propriedades por elas denotadas como

“essências reais”; elas são no máximo “essências nominais”, resultantes da

concordância entre usuários privilegiados dos nomes.

2. Regras-descrições auxiliares

Quero agora considerar as descrições definidas que ficaram de fora, a saber, as

descrições auxiliares, pertencentes ao grupo C. Elas constituem um grande

número de descrições cotidianas. Por isso mesmo, como já sugeri, elas

confundiram os filósofos, dificultando a detecção daquilo que é mais importante.

No que se segue apresento uma classificação que cumpre com uma finalidade

que é só prática.

(1) Um primeiro caso do grupo C é o de descrições que podem ser chamadas

de metafóricas, freqüentemente usadas no lugar do nome próprio. Exemplos são

descrições como ‘o marechal de ferro’, ‘a águia de Haia’, ‘a cidade luz’. As

propriedades que elas aludem não são, em geral, as mais importantes para a

identificação do objeto. Mas elas nos chamam atenção como sugestivos e

pitorescos artifícios mnemônicos. Assim, ‘o marechal de ferro’ chama atenção

por apontar para uma característica marcante do marechal Floriano Peixoto, que

foi o seu caráter autoritário e intransigente. Mas isso é de pouco auxílio no 293

Page 294: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

sentido de nos permitir identificar univocamente Floriano Peixoto, pois há

outros marechais com traços de caráter semelhantes. O que mais propriamente

nos permite identificar Floriano Peixoto é, certamente, saber que ele satisfaz a

descrição localizadora (a) de ter sido ‘a pessoa nascida em Joazeiro em 1936,

que esteve na guerra do Paraguai e no Acre e que veio a falecer em Barra Mansa

em 1895’, além da descrição caracterizadora (b) de ter sido ‘o segundo

presidente e o primeiro vice-presidente do Brasil, responsável pela consolidação

da república’, ambas encontradas em enciclopédias.

(2) Há também regras-descrições auxiliares não-metafóricas, que podemos

classificar como acidentais, apesar de bem conhecidas. Exemplos de descrições

acidentais bem conhecidas são ‘o homem que em criança foi retirado do Nilo

pela filha do faraó’ e ‘o tutor de Alexandre o Grande’. Essas descrições são

conhecidas pela maioria das pessoas que sabem os significados dos nomes

‘Moisés’ e ‘Aristóteles’. Mesmo assim elas são acidentais, pois nem Moisés

nem Aristóteles deixariam de ser quem se acredita que foram se elas fossem

descobertas falsas.

A esse tipo pertence também uma descrição muito específica, que é aquela da

forma ‘o portador do nome ‘N’’, por exemplo, ‘o portador do nome

‘Aristóteles’’. Embora conhecidas, essas descrições são acidentais, pois

ninguém deixaria de ser quem é, nem de ser identificável como quem é, se

tivesse recebido um nome diferente. Com efeito, é um mero acidente que

Aristóteles tenha sido chamado pelo nome ‘Aristóteles’, enquanto não parece ter

sido igualmente acidental para nós o fato de ele ter escrito o opus aristotélico. Se

em um mundo possível Nicômaco, o médico da corte de Felipe, ao invés de ter

batizado o filho nascido em Estagira em 384 a.C. de ‘Aristóteles’, o tivesse

batizado com o nome de ‘Pitacus’, e se Pitacus tivesse estudado com Platão,

escrito todo o opus aristotélico e tido exatamente o mesmo curso de vida de

Aristóteles, não hesitaríamos em dizer que nesse mundo possível Pitacus foi 294

Page 295: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Aristóteles.1 Que a regra-descrição da forma ‘o portador do nome N’ não é

fundamental para a identificação de um objeto particular se deixa comprovar

pelo fato de que podemos utilizar um nome próprio e, após descobrirmos que ele

é incorreto, substituí-lo pelo nome correto da mesma pessoa. Além disso,

podemos saber quem é uma pessoa, aquilo que é importante acerca dela, sem

nos recordarmos mais de como ela se chama. O nome próprio é como o rótulo

de um fichário que contém as descrições mais e menos relevantes; podemos

trocar o rótulo, mas o que importa é o conteúdo do fichário (embora precisemos

de um nome para selecionar o fichário, o nome é contingente).

Essas considerações nos levam a uma conclusão curiosa. Se admitirmos que

em nossas reflexões sobre a linguagem uma explicação filosoficamente

relevante é aquela que tem um importe epistemológico ou metafísico2, então

uma teoria filosófica da semântica dos nomes próprios não é uma teoria daquilo

que chamamos de nome próprio na linguagem corrente, que é a sua expressão

fonética ou ortográfica, o que podemos chamar de expressão simbólica do nome.

Essa expressão é aquilo que faz com que, por exemplo, ‘Köln’ seja um nome

diferente de ‘Colônia’.3 Uma teoria filosoficamente relevante dos nomes

próprios precisa ser uma teoria de seu conteúdo semântico capaz de explicitar os

mecanismos de referência contidos nas regras-descrições relevantes a eles

associadas; ela é uma teoria do fichário e não do seu rótulo. Podemos fazer aqui

uma distinção paralela a que já vimos entre o sentido lexical e o conteúdo

semântico dos indexicais. O sentido lexical do nome próprio é o de um termo

usado para nomear um objeto particular; esse sentido pode ser expresso por uma

1 Kripke tem razão em pensar que mesmo a sentença “Aristóteles é o indivíduo chamado ‘Aristóteles’” não é a priori. Ver Meaning and Necessity p. 68 ss.2 Uma razão pela qual a filosofia da linguagem se distingue da lingüística é não só pela amplitude de escopo, que vai além das línguas particulars, mas pela presença de implicações epistemológicas e mesmo metafísicas em seu desiderato.3 Kripke chega a uma conclusão parecida ao recomendar que consideremos homônimos como sendo nomes diferentes, posto que diferença de referentes deve ser suficiente para a diferença de nomes. Ver seu Naming and Necessity, p. 8.

295

Page 296: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

descrição do tipo ‘o portador do nome ‘N’’. Uma teoria do sentido lexical do

nome próprio é possível, mas lhe faltará importe epistêmico. Uma teoria do

conteúdo semântico do nome próprio, por sua vez, será uma teoria dos seus

sentidos fregeanos, dos seus valores cognitivos (Erkenntniswerte), dos seus

critérios de identificação. Só ela terá força explicativa para esclarecer a relação

epistêmica entre o nome próprio e o seu objeto. Mas por isso mesmo para ela a

expressão simbólica do nome próprio é no final das contas acidental, pois se

admite que um conjunto de expressões simbólicas equivalentes possa exprimir

um idêntico ou similar conteúdo semântico e com isso produzir um idêntico ou

similar ato de nomear.1

(3) Há também regras-descrições acidentais e geralmente desconhecidas.

Exemplos são ‘o marido de Pitias’, ‘o amante de Herfilis’, ‘o neto de Achaeon’.

Poucos sabem que essas descrições se associam todas ao nome ‘Aristóteles’.

Tais descrições definidas podem, naturalmente, ser multiplicadas à vontade,

sendo encontradas aos montes em biografias. Por serem conhecidas de alguns

poucos, elas não têm função relevante em sua associação com o nome próprio.

Pois imagine que tudo o que um falante sabe de Aristóteles é que ele foi o neto

de Achaeon. Ele não será capaz de fazer uso desse nome de modo a comunicar-

se com outras pessoas em geral. Pois a falta de compartilhamento da descrição

1 Compare as descrições: 1. ‘o portador do nome ‘Tom Jobim’, 2. ‘o portador do nome ‘Antônio Carlos Jobim’ e 3. ‘o portador do nome ‘Ismael Silva’. Em uma teoria do sentido lexical do nome próprio – chamada de teoria metalinguística – devemos distinguir aqui três sentidos lexicais diversos, posto que cada descrição tem uma expressão de nome próprio diversa. Intuitivamente, porém, é bastante claro que o sentido do nome próprio em 3 é muito distinto dos sentidos assemelhados dos nomes próprios em 1 e 2. A diferença só se torna explicável porque ela diz respeito ao conteúdo semântico desses nomes, às regras através das quais os seus objetos são identificados. Se entendermos o sentido do nome próprio em abstração de sua expressão verbal, então 1 e 2 contém nomes bastante similares, por sua vez muito distintos do nome contido em 3.

296

Page 297: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

não auxilia as pessoas a reconhecerem no nome ‘Aristóteles’ por ele usado o

filósofo grego e não digamos o milionário grego Aristóteles Onassis.1

(4) Finalmente, há descrições auxiliares adventícias, como a expressa pela

descrição ‘o filósofo mencionado pelo professor’, ‘a senhora que nos foi

apresentada na reunião’. As regras aqui expressas associam o nome ao contexto

no qual foi propriamente usado. Elas são provisórias. Elas costumam ser

constituidas, usadas por algum tempo e depois abandonadas e esquecidas, não

sendo por isso constituintes semânticos característicos do nome. Contudo, por se

reportarem a um contexto compartilhado por outros, tais regras podem servir

para que o falante seja capaz de usar o nome próprio em conversação, de modo

que ele seja univocamente reconhecido pelos seus interlocutores, com a

subseqüente troca de informações e possível troca de informações sobre o

portador.

Nesse ponto poderia ser feita a seguinte objeção. Afora o fato de constarem

nos cabeçalhos dos verbetes das enciclopédias, não parece haver maiores razões

para se privilegiar as descrições ditas fundamentais. Afinal, assim como as

descrições auxiliares são contingentes, o mesmo parece acontecer com as

próprias descrições fundamentais: é perfeitamente possível que Aristóteles não

tivesse nascido em Estagira em 384 a.C., que Pelé não tivesse se tornado

jogador de futebol, que o Taj Mahal não tivesse sido construído perto de Agra!

Podemos, afinal, imaginar mundos possíveis nos quais nada disso seja o caso,

mas onde mesmo assim existem Aristóteles, Pelé e o Taj Mahal. As descrições

fundamentais não designam, pois, uma essência necessária ao portador do nome

próprio. Em contrapartida, podemos identificar um único objeto por meio de

uma descrição auxiliar: pode me ser suficiente para saber que alguém está

1 Suponho aqui que ele saiba muito pouco acerca de quem foi Achaeon e sobre quando e onde ele viveu, pois isso já implica que ele associa ao nome descrições como ‘um filósofo macedôneo do século III a.C’.

297

Page 298: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

falando de Aristóteles saber que ele fala do fundador do Liceu ou mesmo do

amante de herphylis.

A única coisa que posso fazer diante dessa objeção é pedir ao leitor

paciência. Só após a introdução de regras de ordem superior capazes de

selecionar as combinações de regras-descrições de primeira ordem capazes de

justificar a aplicação de um nome próprio é que a importância das descrições

dos grupos A e B se tornará saliente.

3. A regra disjuntiva

Cumpre assim demonstrar que há meios de distinguir quais as combinações

entre as descrições do feixe que licitam a aplicação referencial do nome próprio.

Trata-se, para tal, de estabelecer uma regra-descrição de segunda ordem capaz

de se aplicar às regras-descrições de primeira ordem associadas a um nome

próprio qualquer, de maneira a selecionar as combinações que tornam a

aplicação do nome possível. Essa regra de regras deve ser, portanto, uma regra

meta-descritiva aplicável a nomes próprios em geral.

Para começar podemos descartar como insuficientemente relevantes as

descrições do grupo C. Elas são identificadoras apenas no sentido de auxiliar na

conexão do falante com o objeto, na medida em que possibilitam a sua inserção

em um meio comunicacional que já tem como pressuposto que as verdadeiras

regras de identificação do objeto capazes de concluir essa conexão já são

conhecidas ao menos pelos usuários privilegiados do nome ou ao menos do

conjunto deles. A evidência que podemos oferecer para isso é que elas podem

estar todas ausentes: podemos imaginar que Aristóteles não tivesse sido o tutor

de Alexandre, nem o filho de Nicômano, nem o marido de Pítias, nem o

fundador do Liceu, e que mesmo assim fosse o grande filósofo grego por nós

conhecido. Contudo, o mesmo não pode ser dito das descrições fundamentais.

Não podemos conceber que nem a descrição localizadora nem a descrição 298

Page 299: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

caracterizadora se apliquem; não podemos conceber “~A & ~B”. Para

evidenciar isso, basta lembrarmo-nos do exemplo de Searle do especialista em

Aristóteles que veio nos informar ter descoberto que Aristóteles na verdade não

escreveu nenhuma das obras a ele atribuídas, mas foi na verdade um mercador

de peixes veneziano do renascimento tardio...1 Ou então, imagine que alguém

venha nos dizer que Aristóteles não foi um filósofo, mas um grande armador

grego que viveu no século XX, seduziu Calas e se casou com Jackeline... nós

responderemos que está se falando de outras pessoas de nome Aristóteles, que

nada têm a ver com a pessoa que tinhamos em mente. E a razão disso é que

nenhuma das regras-descrições fundamentais que usamos associar ao nome

‘Aristóteles’ está sendo minimamente satisfeita.

Se a regra meta-identificadora exclui “~A & ~B”, excluiria ela “A & B”?

Deveria ela exigir a conjunção da descrição localizadora com a descrição

caracterizadora, ou apenas a sua disjunção? Ainda que usualmente os objetos

satisfaçam uma conjunção de condições dos grupos A e B, é muito fácil

conceber situações e casos incomuns, em que o nome se refere sem que a

condição pertencente a um desses dois grupos seja satisfeita.

Considere, uma vez mais, o nome ‘Aristóteles’. Não é difícil imaginar

mundos possíveis próximos ao nosso, nos quais ele existiu sem satisfazer à

conjunção das regras de localização e de caracterização para Aristóteles. A regra

de localização para Aristóteles não precisa necessariamente se aplicar: podemos

perfeitamente conceber um mundo possível próximo ao nosso no qual

Aristóteles escreveu o opus aristotélico, mas nasceu e morreu em Roma dois

séculos mais tarde, não tendo existido nenhum discípulo de Platão chamado

Aristóteles e nascido em Estagira no século IV a.C. Mesmo assim, não

hesitaremos em reconhecer nele o nosso Aristóteles, posto que a regra de

aplicação, ao menos, continua sendo satisfeita.

1 J.R. Searle: “Proper Names and Descriptions”, p. 490.299

Page 300: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Podemos também conceber um mundo possível nos qual somente a regra de

localização para Aristóteles é satisfeita, mas não a regra de caracterização, pois

nele a filosofia de Aristóteles nunca existiu. Suponha que nesse mundo

Aristóteles tenha nascido em Estagira em 384 a.C., filho de Nicômano, médico

da corte de Felipe, e que aos 17 anos ele tenha viajado para Atenas para estudar

com Platão. Infelizmente, pouco após a sua chegada ele foi vítima de uma febre

cerebral que o incapacitou para atividades intelectuais pelo resto de sua vida, até

a sua morte em Chalcis, em 322 a.C. Apesar disso, parece que temos elementos

suficientes para reconhecer nessa pessoa o nosso Aristóteles “em potência”. Mas

aqui só a regra de localização está sendo satisfeita.

Outra evidência de que a satisfação da conjunção das regras identificadoras

não é necessária é que há nomes próprios que por convenção se referem a um

objeto somente através de sua localização ou somente através de sua

caracterização.

Como exemplo do primeiro tipo, suponhamos que alguém decida chamar de

Z o centro de um círculo. Esse ponto satisfaz a condição do tipo A de ter

localização espaço-temporal definida, mas não é preciso que possua nenhuma

característica distintiva relevante.

Outro exemplo é o nome ‘Vênus’. A regra de localização é ‘o segundo

planeta do sistema solar enquanto foi identificado como tal e provavelmente há

milhões de anos’, enquanto a regra de aplicação é ‘um planeta com um terço da

massa da terra e densa atmosfera’. Contudo, o que importa aqui é que a regra de

localização seja satisfeita, a regra de caracterização importando muito pouco, se

é que importa alguma coisa. Se Vênus perdesse parte de sua massa ou se

perdesse a sua atmosfera, conquanto continuasse a ser um planeta (uma

demanda já incluída na regra de localização), ele continuaria a ser Vênus.

Podemos imaginar que ele deixe de orbitar o sol. Mas nesse caso ele não deixará

de satisfazer a regra de localização, pois no tempo em que foi batizado ele 300

Page 301: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

orbitava o sol. E se for descoberto que ele não pertenceu ao sistema solar

primitivo, mas veio do espaço há um milhão de anos atrás, ainda assim ele

satisfará a regra de localização.

Uma maneira de se explicar o que acontece em tais casos é dizer que neles a

regra de aplicação é a própria regra de localização. Lembremo-nos que a regra

de aplicação foi definida como a razão pela qual nomeamos. Mas em casos

como o do centro Z do círculo e do planeta Vênus, essa razão é a própria

localização.

Também existem exemplos que exigem apenas a satisfação da regra de

aplicação. Um deles é oferecido pelo nome ‘Almostasin’, que aparece no conto

de Borges intitulado A aproximação de Almostasin. Almostasin é algo, talvez

uma pessoa, que pelo contato com as outras emana perfeição. Alguns acreditam

que podemos nos aproximar dele pelo contato com outros seres humanos que

sejam repositórios limitados de sua grandeza. Apenas nessas indicações vagas se

constitui a regra caracterizadora desse nome. Mas não há uma regra

identificadora de sua localização espaço-temporal, pois ninguém jamais

encontrou Almostasin e alguns até mesmo negam que ele exista. Há inclusive

um exemplo de nome próprio que por definição não pode ter regra de

localização: trata-se da palavra ‘Universo’ (ou ‘multiverso’, se preferirem). O

objeto referido por esse nome tem regra de caracterização: ele é tudo o que

empiricamente existe. Mas ele não pode ter regra de localização espaço-

temporal, pois por conter todo o espaço e todo o tempo, o Universo não pode

estar nem no espaço nem no tempo.

Ora, se excluirmos “~A & ~B” e também “A & B”, é forçoso que a condição

meta-descritiva usual para a aplicação do nome próprio seja “A v B”, ou seja

uma disjunção inclusiva das descrições localizadora e caracterizadora. Dessas

considerações segue-se uma primeira e mais rudimentar versão da regra

referencial meta-identificadora para os nomes próprios, a ser aplicada a regras-301

Page 302: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

descrições fundamentais de primeiro nível pertencentes aos grupos A e B.

Chamo-a de regra disjuntiva:

RD:Um nome próprio N refere-se propriamente a um objeto x pertencente a uma classe G de objetossee,(i-a) x satisfaz sua regra de localização e/ou(i-b) x satisfaz sua regra de caracterização.

Para exemplificar: podemos aplicar o nome próprio ‘Aristóteles’ a um objeto

da classe dos seres humanos se e somente se existe um indivíduo que (i-a)

satisfaz a regra de localização para ‘Aristóteles’, que é a de ter nascido em

Estagira em 384 a.C. tendo vivido boa parte de sua vida em Atenas... e falecido

em Chalcis em 322 a.C. e/ou (i-b) satisfaz a regra de aplicação de ‘Aristóteles’,

que é a de ter produzido o conteúdo do opus aristotélico.

Algumas explicações são exigidas. Primeiro digo “N refere-se propriamente

ao objeto x” entendendo por isso que a referência feita por um usuário

idealizado do nome, que realmente conheça a regra, o que costuma ser o caso

dos usuários privilegiados, embora não necessariamente. Assim, a referência é

própria no sentido de que ela não é feita com insuficiente base cognitiva, como

acontece quando uma pessoa emprega nomes como ‘Feynman’ e ‘Einstein’ sem

saber realmente sobre quem está falando. Segundo, a classe C é algo equivalente

ao genus proximum, delimitando o gênero de coisas mais relevante ao qual x

pertence. O recurso à classe C serve para limitar previamente o escopo da

definição. O nome ‘Aristóteles’, por exemplo, deve ao menos referir-se a algo

que pertença à classe dos seres humanos. Se em um mundo possível um

computador denominado ‘Aristóteles’ produzisse o opus aristotélico, teríamos

muita dificuldade em acreditar que ele fosse o nosso Aristóteles, mesmo que ele

302

Page 303: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

fosse construído por alienígenas no ano 384 a.C. em Estagira, utilizado por mais

de vinte anos em Atenas e finalmente desmantelado em 322 a.C. em Chalcis.

Preferiríamos considerar essa uma coincidência de nomes.

Outra pergunta é: qual o papel das descrições auxiliares? Poderiam elas

sozinhas dar conta do recado? Suponha que certo objeto satisfaça muitas ou

todas as descrições auxiliares associadas ao seu nome, mas sem satisfazer

nenhuma das descrições fundamentais. Suponha que um certo Aristóteles tenha

vivido no século XVI em Veneza e que ele tenha sido um mercador de peixes

intelectualmente obtuso. Mas suponha que mesmo assim ele satisfaça a maioria

as descrições auxiliares para esse nome. Suponha que ele tenha sido filho de um

médico chamado Nicômaco, neto de Achaeon, que ele tenha sido marido de

Pítias e amante de Herphylis e que tenha fundado um Liceu e ensinado

Alexandre. Ora, por mais notáveis que fossem essas coincidências, elas não

seriam relevantes, pois lhes faltariam os contextos apropriados de localização e

caracterização. Afinal, esse médico chamado Nicômaco não poderia ser o

Nicômano que sabemos ter trabalhado na corte do Felipe da Macedônia, nem o

avô Achaeon pode ser aquele mesmo que viveu no século IV a.C. Nem Pítias

nem Herphylis poderiam ser mulheres da Grécia antiga, apesar dos nomes. O

Alexandre que esse falso Aristóteles ensinou não poderia ter sido o maior

conquistador de todos os tempos. E o Liceu que esse inepto fundou não poderia

ter nada a ver com o Liceu que produziu o aristotelismo antigo. A barafunda

conceitual criada na tentativa de se conceber uma situação na qual só as

descrições auxiliares permanecessem as mesmas não é capaz de produzir mais

do que uma série de curiosas e estranhas coincidências, que se nos apresentam

como uma persiflagem dos acontecimentos – uma farsa incapaz de nos

convencer da autenticidade do Aristóteles proposto.

4. O papel da conexão causal303

Page 304: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Antes de continuarmos é interessante nos perguntarmos se resta aqui algum

papel para a conexão causal normalmente existente entre o objeto e o uso do

nome para referir quando este último tem referência. Podemos avaliar esse ponto

examinando um conhecido contra-exemplo ao descritivismo sugerido por Keith

Donnellan1. O contra-exemplo diz respeito ao filósofo Tales, sobre o qual não

sabemos muito mais do que a descrição definida “o filósofo milesiano antigo

que afirmou que tudo é água”. Imagine agora que as nossas fontes, Aristóteles e

Herótodo, estivessem mal-informadas, e que Tales tenha sido apenas um sábio

cavador poços que, cansado de sua profissão, exclamou: “Quem me dera se tudo

fosse água para eu não ter de cavar esses malditos poços!”, e que um viajante

tenha por engano entendido essa frase como dizendo respeito à natureza da

realidade, tendo sido esse engano repetido por Herótodo e por Aristóteles, que o

legou à tradição filosófica. Além disso, imagine que tenha existido um eremita

que nunca divulgou suas idéias, mas que realmente sustentou que tudo é água.

Nesse caso, escreve Donnellan, nossa tendência continuaria sendo a de pensar

que com o nome ‘Tales’ não estamos nos referindo ao eremita, mas ao cavador

de poços, apesar de ele não satisfazer a nossa descrição. Nós fazemos essa

referência, pensa ele, devido ao tear causal-histórico que se inicia com Tales,

mesmo que associado a uma descrição errônea. A favor dessa conclusão está o

fato de que não há relação causal alguma entre o nosso uso do nome ‘Tales’ e o

eremita. Não é o pensamento desse eremita (talvez nunca transmitido a

ninguém) de que tudo é água que foi lembrado por sucessivas gerações de

filósofos.

Vejamos agora como seria a resposta descritivista. Searle, examinando esse

exemplo, começa por relativizar a conclusão de Donnellan ao conceber uma

versão do exemplo que parece contradizer a concepção causal-histórica. Se

Herótodo tivesse um poço no qual um sapo coaxasse de modo a emitir sons

1 Keith Donnellan: “Proper Names and Identifying Descriptions”, pp. 373-375.304

Page 305: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

parecidos com a frase “Tudo é água” e o sapo pertencesse à espécie chamada

‘tales’, ele poderia ter dito “o Tales disse que tudo é água”, originando ele

próprio o equívoco. Mas se a teoria causal-histórica é certa, uma vez

esclarecidos sobre esse fato nós deveríamos concluir que com o nome ‘Tales’

estamos nos referindo ao sapo do poço de Herótodo, o que certamente não é o

caso.1 O que concluiríamos, certamente, é que Tales nunca existiu. Parece, pois,

que a origem causal só não basta.

Mas o que mais nos interessa notar é que o descritivista pode responder

introduzindo descrições relativas ao que já chamamos de história causal. Como

Searle observa:

Quando dizemos “Tales foi o filósofo grego que sustentou que tudo é água”, não queremos apenas dizer qualquer um que sustentou que tudo é água, nós queremos dizer a pessoa que era conhecida de outros filósofos gregos como argumentando que tudo é água, que era referida em seu tempo ou subseqüentemente por algum predecessor grego pelo nome ‘Tales’, cujos trabalhos e idéias chegaram até nós postumamente através dos escritos de outros autores e assim por diante.2

Com efeito, mais do que outros filósofos, a importância de Tales está em seu

lugar na origem histórica da filosofia ocidental. Como resultado da longa

história causal daí resultante, o que justifica a aplicação do nome passou a ser

em grande parte a crença na aplicabilidade de uma variedade de descrições

históricas, de modo que ao recebermos a notícia de que Tales era um cavador de

poços, passamos a oscilar entre a admissão de que ele realmente foi um cavador

de poços e, como Searle também percebeu, a conclusão de que o filósofo ‘Tales’

na verdade nunca existiu.

1 J.R. Searle: Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, pp. 252-253.2 Searle: Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, p. 253. Por passagens como essa Searle pode ser interpretado como um descritivista causal.

305

Page 306: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Como já foi visto no capítulo anterior, embora não possamos resgatar

cognitivamente a própria cadeia causal-histórica, nós podemos resgatar

cognitivamente elementos da história causal, a saber, acontecimentos espaço-

temporais representativos de elos de cadeias causais, principalmente através de

seus supostos nódulos representacionais ocorrentes nas mentes das pessoas e

linguisticamente manifestados. No caso de Tales, nós diríamos que é parte

constitutiva de sua caracterização, não somente que ele foi alguém que disse que

tudo é água, mas que ele foi “a pessoa nomeada por Herótodo e Aristóteles na

doxografia como sendo o filósofo pré-socrático que afirmou que tudo é água...”,

o que nos permite resgatar pontos nodais cognitivos do caminho causal

concernentes a representações que devem ter ocorrido nas mentes de Heródoto e

Aristóteles. É verdade que essa caracterização é apenas muito parcialmente

satisfeita pelo cavador de poços. Contudo, a referência continua sendo

alicerçada pela satisfação suficiente da regra de localização espaço-temporal

como sendo a da pessoa que viveu provavelmente de 624 a 548-5 a.C., que

nasceu e morreu em Mileto e que viajou ao Egito... É pela satisfação da

descrição localizadora, além da satisfação parcial da descrição caracterizadora,

junto com a satisfação de descrições do caminho causal (as quais no caso são

incluidas na regra caracterizadora) que sabemos que mesmo um cavador de

poços sem qualquer relação com a filosofia poderia, eventualmente, satisfazer a

regra disjuntiva, continuando a ser o nosso Tales. Finalmente, Tales não poderia

ser um sapo que viveu por volta de 580 a.C., em Mileto, pela simples razão de

que a regra disjuntiva demanda que ele pertença à classe dos seres humanos.

Não obstante, a assunção da cadeia causal em casos como o recém exposto

não deixa de ser de fundamental importância. Basta imaginarmos que o eremita

considerado por Donnellan, além de ter sustentado que tudo é água, tenha

satisfeito a condição localizadora para Tales de ter vivido entre 624 e 548-5 a.C.,

tendo nascido e morrido em Mileto e viajado ao Egito. Nesse caso, ele satisfaz 306

Page 307: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

mais as regras fundamentadoras do que o Tales cavador de poços, que podemos

imaginar como não tendo vivido precisamente entre esses anos e nunca tendo

visitado o Egito. Mesmo assim, sentimos que o eremita não pode ter sido Tales.

E isso é assim por que ele não satisfaz o pressuposto de estar vinculado aos

nossos proferimentos do nome ‘Tales’ por adequadas cadeias causais. Parece,

pois, que no caso de Tales a condição disjuntiva deve ser completada pela

condição de que esteja sendo satisfeito o pressuposto da existência de uma

adequada cadeia causal vinculando o seu proferimento ao (batismo do) objeto,

uma cadeia que nos é revelada por seus caminhos causais.

A admissão desse pressuposto é complicada pelo fato de que em certos casos

o nome próprio tem referência sem que nos seja dada uma vinculação causal

com o objeto. A solução que havíamos sugerido no capítulo anterior foi a de

exigir que em casos nos quais o objeto não está na orígem causal do

proferimento do nome próprio, as circunstâncias (causalmente) determinadoras

do uso referencial do nome próprio (as quais sempre existem) nos permitam

inferir a existência (em algum tempo) de um objeto potencialmente capaz de se

tornar a adequada origem causal do uso referencial do nome próprio. Eis como

essa condição foi apresentada:

Cc: Um nome próprio possui referência somente se(i) ele for adequadamente causado pelo seu objeto de referência,

ou se(ii) existirem circunstâncias causais objetivas que permitam (com

suficiente probabilidade) inferir a existência do seu objeto de referência – um objeto que por sua vez será potencialmente capaz de se tornar a origem de uma adequada cadeia causal originadora de nosso uso referencial do nome.

Como também vimos, Cc(ii) serve para validar a referência nos casos em que

esta última existe em uma adequada cadeia causal-histórica. Por exemplo,

307

Page 308: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

mesmo que não tenha existido uma cadeia causal vinculando o nome ‘Netuno’

ao planeta Netuno, quando este foi assim chamado por Leverrier antes de sua

descoberta telescópica, ele pôde ser por ele referido, devido à circunstância das

perturbações na órbita de Urano conhecidas na época, as quais permitiram a

Leverrier inferir a existência de Netuno como sendo a sua causa e,

ultimadamente, a descoberta telescópica desse planeta, o que acabou criando a

cadeia causal-histórica que determina a sua nomeação atual. Podemos resumir

Cc na condição de que uma condição necessária para sabermos que nomes

próprios possuem referência, ou seja, que nossas cognições de que certas

descrições fundamentais são em medida suficiente satisfeitas, somente no caso

em que essa consciência seja, ou resultado de uma adequada vinculação causal-

histórica entre nós e o objeto referido, ou então, caso isso não for possivel, ao

menos essa vinculação causal seja (com suficiente probabilidade) inferida como

sendo potencialmente efetivável com base na consideração das circunstâncias

dadas que demandam a existência (presente, passada ou futura) do objeto.1

Resumindo essa condição na afirmação de que o objeto deve estar na origem

(causal ou inferencial) de nossa consciência da aplicabilidade das descrições

constitutivas do nome próprio, podemos reformular RD com a adição desse

pressuposto como:

RD’Um nome próprio N refere-se propriamente a um objeto x pertencente a uma classe G de objetossee,pode ser assumido que x está na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de quex pode (causalmente) nos fazer conscientes de que(i-a) x satisfaz a regra de localização para N e/ou

1 Isso deve cobrir os casos nos quais o objeto ainda não existe, como o da anã branca em que o sol deverá se transformar em alguns milhões de anos.

308

Page 309: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

(i-b) x satisfaz a regra de aplicação para N.

Só quando pressupomos que nossa cognição de que a regra-descrição

localizadora e/ou a regra-descrição caracterizadora se aplica a um objeto, ou

seja, que o objeto está em sua origem, ou no sentido de que ele atualmente a

causa (como elo inicial de uma cadeia causal-histórica) ou no sentido de que a

sua suposição é base inferencial para a conclusão de que ele ao menos

potencialmente poderia causá-la (que ele existiu, existe ou existirá) é que

podemos saber que o nome próprio tem referência.

5. Regra meta-identificadora: primeira versão

Embora a regra disjuntiva seja importante por evidenciar o papel das descrições

que realmente importam, ela não é de modo algum suficiente, pois ela é de um

lado estreita demais e de outro larga demais. Ela é estreita demais ao exigir uma

satisfação completa de ao menos um disjunto de regras-descrições fundamentais

de primeiro nível. Afinal, podemos imaginar não apenas casos de aplicação do

nome próprio nos quais ambas as regras fundamentais são apenas parcialmente

satisfeitas, mas também casos de aplicação nos quais apenas uma dessas regras é

parcialmente satisfeita, enquanto a outra não é satisfeita de modo algum.

Consideremos primeiro o caso em que a regra localizadora é

incompletamente satisfeita e que a regra caracterizadora não é nem um pouco

satisfeita. Imagine um mundo possível próximo ao nosso, no qual não existiu a

filosofia aristotélica, mas no qual existiu um Aristóteles, que morreu ainda

jovem, ao chegar a Atenas, vitimado pela febre cerebral. Mesmo assim, se

soubermos que ele nasceu em Estagira em 384 a.C., filho do médico Nicômano

da corte de Felipe, e que ele foi enviado pelo avô Achaeon para Atenas aos 17

anos para estudar com Platão, não teremos dúvida de que se trata de nosso

309

Page 310: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Aristóteles “em potência”, mesmo que RD seja por ele apenas parcialmente

satisfeita.

Consideremos agora um caso no qual só a regra caracterizadora é satisfeita e

mesmo assim de modo incompleto. Imagine um mundo possível próximo ao

nosso no qual não existiu nenhum Aristóteles nem obra aristotélica no mundo

antigo, embora tenha existido Platão e seus antecedentes. Imagine que nesse

mundo, no século XII, em Córdoba, um filósofo árabe que leu tuda a filosofia

grega disponível e tenha escrito em grego antigo partes da obra de Aristóteles,

incluindo o Organon e conteúdos da Metafísica e da Ética a Nicômano sob o

pseudônimo de ‘Aristóteles’ (ou se quisermos que tenha escrito em árabe o

conteúdo ideativo relevante de todo o opus aristotélico). Em tal situação, na qual

não há nenhum concorrente para o nome, também tenderíamos (com alguma

relutância) a reconhecer essa pessoa como o nosso Aristóteles.

Claro que há limitações para isso. Se, em um mundo possível similar ao

nosso, no qual a filosofia aristotélica nunca existiu, em 384 a.C., em Estagira, o

médico da corte não fosse Nicômano, filho de Achaeon, mas apesar disso uma

pessoa que teve um filho que foi chamado de Aristóteles, o qual morreu pouco

após o seu nascimento, teremos dificuldade em crer que ele tenha sido o nosso

Aristóteles. E se o filósofo árabe de pseudônimo Aristóteles tivesse escrito

apenas a primeira seção do livro Alfa da Metafísica, nós não o reconheceríamos

como o nosso Aristóteles. Tais casos tenderiam a ser por nós reconhecidos como

estranhas e inexplicáveis coincidências. Isso nos faz concluir que a regra meta-

identificadora disjuntiva deve ser completada por uma condição exigindo que as

regras-descrições fundamentais sejam suficientemente satisfeitas de acordo com

as circunstâncias dadas, não precisando ser completamente satisfeitas.

Consideremos agora o caso em que as descrições caracterizadoras são

conjuntivamente satisfeitas, mas apenas de modo parcial. Nesse caso parece que

o limite mínimo de satisfação exigido para cada descrição se tornaria menor do 310

Page 311: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

que o limite mínimo para a satisfação da descrição no caso em que somente uma

das regras fundamentais fosse incompletamente, mas suficientemente satisfeita.

Assim, se em um mundo possível tivesse nascido um único Aristóteles em 384

a.C. em Atenas, o qual tivesse estudado com Platão e escrito apenas as

Categorias, parece que isso seria suficiente para admitirmos que se trata do

nosso Aristóteles. Nesse caso, parece que da satisfação insuficiente de cada

disjunto resulta uma satisfação suficiente da regra disjuntiva. Ou seja: a

exigência de uma satisfação suficiente da disjunção inclusiva deve incluir a

soma da satisfação dos disjuntos.

Uma dúvida importante que resta é sobre a medida exata do que devemos

entender como sendo suficiente. Não creio que exista uma resposta para isso.

Afinal, a linguagem empírica é inevitavelmente vaga e nossos critérios de

aplicação das palavras não delimitam as fronteiras de sua aplicação de forma

absoluta. Há sempre casos incertos, acerca dos quais não sabemos se devemos

ou não aplicar nossos critérios. Importante é que apesar dessa vaguidade de

nossa linguagem natural, somos na maioria dos casos perfeitamente capazes de

nos comunicar sobre os objetos de referência. Por isso a vaguidade da

linguagem natural, que certamente reflete a vaguidade das próprias divisões da

realidade que pretendemos categorizar, não é uma imperfeição dessa linguagem,

mas um fato a ser admitido, sendo frequente ser uma linguagem vaga aquela de

que mais precisamos.

Outro ponto é que o Aristóteles recém-mencionado deixaria de ser o nosso

Aristóteles se existisse um ou mais concorrentes que também satisfizessem a

regra disjuntiva. Assim, imagine um mundo possível no qual Nicômano tivesse

dois gêmeos idênticos batizados ‘Aristóteles’ e que eles fossem estudar com

Platão e tivessem escrito o opus aristotélico a quatro mãos. Embora seja possível

dizer que esse mundo tem dois Aristóteles, a rigor esse mundo não tem nenhum

Aristóteles, pois um nome próprio é um termo singular que por definição se 311

Page 312: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

aplica a apenas um único objeto. Essa consideração nos leva a mais uma

condição a ser adicionada, que é a de univocidade. Precisamos admitir como

condição de aplicação da própria regra meta-referencial identificadora uma

condição de univocidade, qual seja a de que um único objeto satisfaça a regra

disjuntiva (as dificuldades disso serão consideradas mais adiante).

O principal caso no qual a condição de univocidade deixa de ser satisfeita é

aquele em que a regra de localização é satisfeita por um objeto enquanto a regra

de aplicação é satisfeita por outro. Este seria o caso em um mundo possível M1

no qual existiu (a) um Aristóteles grego, filho de Nicômano, que nasceu em

Estagira em 384 a.C., mas que contraiu febre cerebral ao chegar a Atenas e não

fez coisa alguma em filosofia até a sua morte em Chalcis em 322 a.C., e (b) um

filósofo de nome ‘Aristóteles’, que escreveu o opus aristotélico em Roma cerca

de duzentos anos mais tarde. Nessas circunstâncias, não temos mais como

decidir quem foi o verdadeiro Aristóteles, se o grego ou o romano, pois as

nossas duas regras identificadoras fundamentais entram em conflito uma com a

outra. A alternativa mais natural e imediata é abandonarmos a suposição de que

nosso Aristóteles existe em tal mundo, posto que a condição de univocidade do

objeto não é satisfeita.

Esse caso é similar ao do paradoxo do navio de Teseu relatado nos manuais

de filosofia. Digamos que esse navio tenha o nome de ‘Calibdus’. No curso dos

anos Teseu repôs pouco a pouco as partes do seu navio até que, no final, todas

elas foram substituídas. Alguém decidiu então recondicionar as partes antigas e

construir outro navio igual ao primeiro. Digamos que então alguém pergunte:

“Qual dos dois navios é Calibdus?” O paradoxal aqui é que não sabemos o que

responder. A primeira vista pode parecer que ambos são o navio de Teseu. Mas

isso seria contraditório, pois um termo singular não pode se referir a mais de um

objeto. A nossa proposta é a de que a questão de saber qual dos navios é

Calibdus é indecidível devido a um conflito criterial que se dá entre as duas 312

Page 313: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

regras-descrições fundamentais para esse nome. O primeiro navio satisfaz uma

regra localizadora, que nos diz que o navio de Teseu é aquele que foi construído

em um lugar e tempo específicos, tendo então seguido uma certa carreira

espaço-temporal. A segunda regra, satisfeita pelo segundo navio, é uma regra

caracterizadora, que nos diz que o navio de Teseu é aquele que foi construído

com certo material. Não temos, por isso, como decidir.

Nesse ponto alguém poderá, com razão, objetar que a regra caracterizadora é

mais complexa do que isso, incluindo características funcionais e estruturais do

navio, as quais são preservadas em ambos os navios, o que torna mais

admissível que o primeiro navio fique sendo o Calibdus. Contudo, podemos

equilibrar essa diferença aumentando a rapidez da substituição das partes velhas

pelas novas, de modo a encurtar a carreira espaço-temporal do objeto até que a

substituição das peças se complete. Assim, se toda a seqüência de substituições

de partes tivesse lugar em apenas três meses, teríamos dúvidas. E se ela tivesse

lugar em uma semana? Nesse caso com certeza consideraríamos o segundo

navio como sendo o de Teseu e não mais o primeiro, dizendo que ele foi

primeiro desmontado e depois remontado em outro lugar.

Por fim, resta a estratégia de renomear os objetos. Assim, se nos for útil

podemos introduzir nomes próprios substitutivos, admitindo a existência de dois

Aristóteles no mundo possível M1: o Aristóteles-1, que é o da Grécia antiga e

que satisfaz somente a regra de localização, e o Aristóteles-2, que é apenas o

autor do opus aristotélico, e que satisfaz somente a regra de caracterização. Do

mesmo modo, Calibdus-1 satisfaz a regra de localização enquanto Calibdus-2

satisfaz a regra de aplicação, que entre outras coisas exige a preservação do

mesmo material do navio por tempo suficiente. Nesse caso substituímos o nome

próprio ambíguo por dois nomes próprios com significados diversos. Mas trata-

se digamos de uma nova partida. Trata-se de um novo movimento em que são

313

Page 314: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

introduzidas novas convenções para novos termos referenciais, a serem usados

no lugar de um termo malogrado.

Adicionando as condições de suficiência e univocidade à regra disjuntiva,

chegamos a uma mais apropriada formulação da regra meta-identificadora

reguladora do comportamento semântico das regras-descrições fundamentais

concernentes a cada nome próprio. Eis como ela pode ser formulada:

RMI1:Um nome próprio N refere-se a um objeto x pertencente a uma classe G de objetosseepode ser assumido que x está na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de que(i-a) x satisfaz uma regra de localização L para N e/ou(i-b) x satisfaz uma regra de aplicação C para N e(ii) a satisfação de L e/ou C por x é em seu todo suficiente e(iii) unívoca.

Chamo a regra resultante da aplicação da regra meta-identificadora às regras-

descrições fundamentais de um dado nome próprio de regra meta-identificadora

específica para este nome próprio, ou simplesmente – para evitar uma

terminologia especiosa – de sua regra de identificação ou regra definicional.

Assim, a regra de identificação para o nome próprio ‘Aristóteles’ pode ser

abreviadamente expressa como:

Regra de identificação para o nome próprio ‘Aristóteles’:Usamos o nome próprio ‘Aristóteles’ para nos referirmos apropriadamente a um objeto x pertencente à classe dos seres humanosseepode ser assumido que x está na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de que

314

Page 315: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

(i-a) x satisfaz a sua regra de localização de ter nascido em Estagira em 384 a.C., vivido grande parte de sua vida em Atenas e falecido em Chalcis em 322 a.C. e/ou(i-b) x satisfaz a sua regra de aplicação de ter sido o autor das grandes idéias do opus aristotélico e(ii) a satisfação da regra de localização e/ou da regra de aplicação por x é em seu todo suficiente e (iii) unívoca.

6. Regra meta-identificadora: segunda versão

Embora RMI1 já seja uma regra bastante satisfatória, explicando a grande

maioria dos casos de aplicação de nomes próprios, ela resulta de uma análise

incompleta. Afinal, não é difícil demonstrar que a condição de unicidade é

derivada e que RMI1 não dá conta de contra-exemplos que dependem de um

estágio anterior a essa derivação. Para tal quero examinar dois deles.

Um primeiro contra-exemplo vale-se da fantasia da terra-gêmea. Uma terra-

gêmea é aquela na qual tudo existe e acontece de forma idêntica (ou quase

idêntica) ao que existe e acontece em nossa terra. Assim, o que se aplica a um

objeto na terra deve se aplicar ao seu Doppelgänger na distante terra gêmea.

Não obstante, mesmo que soubéssemos da existência de uma terra-gêmea, nós

continuaríamos tendo uma forte intuição de que com o nome ‘Aristóteles’ nós

estamos a nos referir ao nosso Aristóteles e não ao Aristóteles da terra-gêmea.

Contudo, se considerarmos a primeira formulação da regra de identificação para

Aristóteles, ela não parece mais aplicável, pois tanto o Aristóteles da nossa terra

quanto o da terra gêmea parecem satisfazer suficientemente a regra disjuntiva.

De um lado, ambos parecem satisfazer a regra de localização espaço-temporal,

pois ambos nasceram em 384 a.C. em Estagira... E mesmo que esse não seja o

caso, é indubitavel que ambos os Aristóteles satisfazem a regra de

caracterização: ambos escreveram o opus aristotélico até a sua última vírgula.

315

Page 316: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Ora, como basta a satisfação de um disjunto, os dois Aristóteles satisfazem

suficientemente a regra disjuntiva. Mas se é assim, a condição de univocidade

deixa de ser satisfeita, disso resultando a conclusão contra-intuitiva de que

Aristóteles não existe. Mas certamente ele existe, e ele é o nosso Aristóteles e

não o da terra-gêmea!

Exemplos com mundos possíveis também podem ser facilmente imaginados.

Digamos que em um mundo possível M1 em Estagira em 384 a.C. Nicômano, o

médico da corte, tenha sido pai de dois gêmeos, ambos tendo sido batizados com

o nome ‘Aristóteles’. O primeiro tornou-se médico como o pai, tendo se alistado

no exército de Alexandre e morrido de sede na travessia do deserto ao retornar

do oriente. O segundo acabou indo para Atenas, onde escreveu todo o opus

aristotélico. Como ambos satisfazem suficientemente a regra de localização,

ambos satisfazem suficientemente a regra disjuntiva, tendo como efeito que a

condição de unicidade deixa de ser satisfeita, deixando RMI1 insatisfeita e

levando à conclusão de que Aristóteles não existe. Mas não há dúvida que para

nós ele existe e que ele é o segundo Aristóteles e não o primeiro. Mesmo que,

em um mundo possível M2, que diferisse de M1 apenas pelo fato do segundo

Aristóteles não ter chegado a nascer, nós seríamos induzidos a considerar o

primeiro deles o nosso Aristóteles “em potência”, ainda que mal-orientado.1

A pergunta a ser feita aqui é: o que nos leva a no primeiro contra-exemplo

escolhermos o Aristóteles da terra e no segundo o Aristóteles que escreveu o

opus aristotélico? A resposta é fácil: a satisfação das regras-descrições

identificadoras de certo nome por mais de um objeto elimina da competição pelo

1 Note-se que a teoria kripkiana do batismo também encontraria dificuldades em explicar a nossa preferência pelo segundo Aristóteles em M1. Ela não teria como distinguir o verdadeiro Aristóteles, pois não teria à disposição o recurso de se valer de descrições para privilegiá-lo. Além disso, ela não teria como explicar porque o verdadeiro Aristóteles passa a ser o primeiro em M2. Contudo, como as descrições são causalmente determinadas, é sempre possível desenvolver uma solução causal-histórica para tais casos como, também, para qualquer outro caso. Tal solução seria, porém, sempre em última instância dependente da identificação consciente das descrições relevantes, implicadas na intenção de preservar a mesma referência.

316

Page 317: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

direito ao nome o objeto que as satisfaz menos. A solução, portanto, é

estabelecer o que eu gostaria de chamar de condição de predominância: a

condição de que no caso de mais de um objeto satisfazer a regra disjuntiva de

um nome próprio, o portador do nome deve ser o objeto que mais

completamente a satisfaz.

Quero agora sugerir a forma mais aprimorada de regra meta-identificadora

que incorpora em si essa última condição. Ei-la:

RMI2: Um nome próprio N refere-se propriamente a um objeto x pertencente a uma classe G see pode ser assumido que x está na origem de nossa consciência de que (i-a) x satisfaz uma regra de localização L para N e/ou (i-b) x satisfaz uma regra de aplicação C para N, (ii) x satisfaz L e/ou C em medida no todo suficiente e

(iii) x satisfaz L e/ou C mais do que qualquer outro objeto pertencente à classe G.

Substituímos aqui a condição de unicidade pela condição de predominância,

que serve para garanti-la. Note-se que a condição (ii), de suficiência, é aplicável

tanto a um dos disjuntos, caso ele seja isoladamente satisfeito, quanto ao todo da

conjunção de (i-a) e (i-b), mesmo que ambos sejam apenas parcialmente

satisfeitos. Isso nos permite resgatar a intuição de que quando ambos os

disjuntos estão sendo parcialmente satisfeitos, isso pesa mais do que a satisfação

parcial de apenas um disjunto, possibilitando no todo uma medida suficiente,

mesmo que as parcelas satisfeitas sejam demasiado limitadas para isoladamente

justificar a aplicação do nome próprio. Quanto à condição (iii), de

predominância, ela é aplicada de modo a selecionar o objeto que satisfaz

suficientemente a disjunção inclusiva dos disjuntos mais do que qualquer outro

317

Page 318: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

objeto da mesma classe que também a satisfaça, obtendo assim uma

identificação unívoca desse objeto.

Do mesmo modo que no caso anterior, quando a regra de regras RMI2 é

aplicada às regras-descrições fundamentais de um nome próprio qualquer, ela

produz uma regra de identificação ou regra definicional para o nome próprio.

Eis como essa regra se afigura para o nome ‘Aristóteles’:

Regra de identificação para o nome próprio ‘Aristóteles’:

Usamos o nome próprio ‘Aristóteles’ para nos referirmos propriamente a um objeto x pertencente à classe dos seres humanosseepode ser assumido que x está na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de que(i-a) x satisfaz a sua regra de localização de ter nascido em Estagira em 384 a.C., vivido grande parte de sua vida em Atenas e falecido em Chalcis em 322 a.C. e/ou(i-b) x satisfaz a sua regra de aplicação de ter sido a pessoa que produziu o conteúdo relevante do opus aristotélico e(ii) x satisfaz a disjunção (i-a) ou (i-b) em medida no todo suficiente e(iii) x satisfaz a disjunção (i-a) ou (i-b) mais do que qualquer outro ser humano.

A regra de identificação resultante da aplicação de RMI2 às duas descrições

fundamentais de Aristóteles nos dá uma resposta intuitiva ao problema do

Aristóteles da terra-gêmea. Pois segundo ela, embora tanto o Aristóteles da

nossa terra quanto o da terra-gêmea satisfaçam a regra de aplicação, o

Aristóteles da nossa terra é o único que verdadeiramente satisfaz a regra de

localização espaço-temporal; afinal, só ele existe em nossa região espaço-

temporal, sendo a essa região que a regra foi feita para se aplicar – a essa região

específica do espaço único que inclui ambas as terras – e não à região espacial

análoga situada na distante terra-gêmea. Assim, o Aristóteles da nossa terra

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Page 319: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

satisfaz mais completamente a regra disjuntiva do que o Aristóteles da terra

gêmea. Ao fazer isso ele preenche a condição de predominância da regra

identificadora para Aristóteles resultante da aplicação de RMI2 às regras-

descrições fundamentais associadas a esse nome, o que se encontra em plena

conformidade com a nossa intuição de que é ao Aristóteles da nossa terra que

estamos a nos referir. A aplicação de RMI2 também resolve o problema dos dois

Aristóteles gêmeos que em M1 satisfazem a regra disjuntiva. O primeiro (que foi

para a Índia com Alexandre) satisfaz apenas o suficiente da regra localizadora,

nada satisfazendo da regra caracterizadora. Mas o segundo (que foi para Atenas

e escreveu o opus aristotélico) satisfaz não só suficientemente a regra

localizadora, mas também, mais do que suficientemente, a regra caracterizadora.

O último Aristóteles, pela predominância na satisfação da regra disjuntiva, passa

a ser escolhido por nós como sendo o verdadeiro, o que também se conforma

com nossas intuições.

Voltando a RMI2, resta uma questão a ser respondida. Imagine que outros

nomes para o mesmo objeto, com regras de identificação próprias, viessem a

competir com a regra de identificação do nome que estamos considerando.

Assim, se feixes de descrições diversos associados aos nomes próprios diversos

N1... Nn satisfazem RMI2 para um mesmo objeto, ou seja, se regras de

identificação diferentes são satisfeitas, parece que deveria haver uma condição

para se saber qual dos nomes próprios verdadeiramente se refere a esse objeto.

Não seria necessária uma condição de predominância de regra exigindo que um

objeto, para poder ser referido, deva satisfazer a regra disjuntiva de

identificação para o nome em questão mais do que qualquer outra regra de

identificação de outro nome que também se refira a ele?

Felizmente, não parece que no caso dos nomes próprios essa condição

adicional precise ser introduzida, pois a identidade de objeto faz com que essas

regras se somem ao invés de se excluir, ao menos no que concerne às descrições 319

Page 320: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

caracterizadoras. Para evidenciá-lo, consideremos um exemplo. Suponha que

venha a ser descoberto, como já se pretendeu, que Lord Bacon tenha sido o

verdadeiro autor das obras de Shakespeare, e que não existiu nenhum

Shakespeare com a carreira espaço-temporal que a ele atribuímos. Nesse caso

parece que as regras de identificação de Bacon e Shakespeare deveriam

competir. Contudo, isso não precisa acontecer. Não nos encontramos realmente

forçados a escolher entre Bacon ser Bacon e Bacon ser Shakespeare. Nesse caso

nós estenderemos os atributos de uma mesma pessoa de modo a abranger os

nomes de Bacon e Shakespeare, dizendo que Bacon, além de ser o cientista,

filósofo e diplomata que foi, também escreveu anonimamente as obras de

Shakespeare. O que há de importante a ser notado é que aquilo que garante a

aplicabilidade da regra de identificação de um nome próprio é a unicidade de

seu objeto, já garantida por RMI2. Mais tarde veremos que os termos gerais, não

se aplicando a um único e mesmo objeto, mas geralmente a muitos, se

comportam nesse aspecto de forma muito diferente, exigindo comparação entre

as regras descrições caracterizadoras.

7. Interpretação descritivista da divisão de trabalho da linguagem

Contra RMI e as regras de identificação ainda poderia ser oposta a seguinte

objeção: não precisamos conhecer as descrições fundamentais associadas a um

nome próprio para podermos usá-lo corretamente e com ele denotar o seu

portador. Talvez a única coisa que a maioria das pessoas hoje sabe sobre

Aristóteles é que ele satisfaz a descrição indefinida ‘um grande filósofo da

Grécia antiga’. Uma pessoa que só conheça isso só saberá generalidades

implicadas pelas descrições (a) e (b) respectivamente. Mesmo assim, nós

costumamos dizer que tal pessoa é capaz de se referir a Aristóteles. Mais ainda,

uma pessoa pode ser admitida como se referindo a Aristóteles, mesmo

associando a este nome uma única descrição auxiliar como ‘o maior discípulo de 320

Page 321: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Platão’ após ter visto uma foto do afresco de Rafael, ou associar a esse nome

apenas a descrição ‘o tutor de Alexandre’ após ter visto um filme sobre as

conquistas de Alexandre, ou até mesmo uma descrição auxiliar adventícia, como

‘o filósofo mencionado pelo professor na aula de ontem’. Além disso, para

Kripke uma pessoa poderia se referir a Aristóteles mesmo associando a ele uma

descrição errônea, digamos, ‘um filósofo medieval’ ou ‘um general grego’.

Como isso é possível?

A resposta que podemos dar a essa questão vale-se do que poderíamos

chamar de um entendimento descritivista da hipótese da divisão de trabalho da

linguagem. Essa divisão foi proposta por Hilary Putnam em termos não-

descritivistas. Para Putnam, uma mesma palavra é usada por diferentes pessoas

de diferentes maneiras, podendo cada uma delas ter um maior ou menor

conhecimento do que se pode querer dizer com ela. Segundo Putnam, há

palavras que não funcionam tanto como ferramentas, como propôs Wittgenstein,

mas como barcos a vapor; diferentes pessoas usam o barco com funções e

finalidades diversas: assim, umas o usam como passageiros, outras como

membros da tripulação, que por sua vez podem trabalhar no comando, na casa

de máquinas, no serviço de bordo. Putnam, compromissado com o seu

externalismo semântico, considera essa divisão de trabalho da linguagem sem

recorrer a aspectos cognitivo-descritivos. Mas outros filósofos consideraram que

seria até mais natural entender a divisão de trabalho da linguagem como uma

divisão fregeana entre diversos estados cognitivos descritivamente exprimíveis

que cada falante associa à Palavra.1 Afinal, alusões à divisão de trabalho da

linguagem podem ser encontradas na obra de filósofos internalistas bem

anteriores a Putnam, começando com o próprio Locke, que foi o defensor

1 Michael Dummett: Frege: Philosophy of Language, pp. 138-139; D.H. Mellor: “Natural Kinds”, p. 115.

321

Page 322: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

clássico de uma semântica descritivista em que os significados são “idéias”

psicológicas.1

Baseando-me nisso quero interpretar aqui essa divisão em termos das

variadas cognições de conteúdos semânticos descritivamente exprimíveis que

diversos falantes associam à palavra, em nosso caso específico, ao nome

próprio. Com isso podemos sugerir que ao atribuirmos referência, estamos

falando de sucesso referencial, que por sua vez tem ao menos dois sentidos:

(a) o de uma referência completa.(b) o de uma referência incompleta.

Consideremos primeiro o caso da referência completa. Ela é aquela capaz de

por si mesma nos oferecer uma garantida identificação do objeto como algo

existente no mundo. Nesse sentido o critério do sucesso referencial é a

aplicação, por parte do falante, da própria regra de identificação no nome

próprio, o seja, a aplicação de suas regras-descrições localizadora e/ou

caracterizadora das quais ele tem suficiente domínio. Há muitos nomes próprios,

por exemplo, de nossos familiares, cuja regra de identificação é-nos bem

conhecida. Mas há muitos nomes cujo sentido, cujo conteúdo informativo

relevante só é conhecido por um usuário privilegiado do nome, como, digamos,

o especialista, o historiador, a testemunha do batismo, alguém seja capaz de se

referir plenamente ao seu portador, sendo geralmente o responsável por sua

instituição e manutenção: o nomeador privilegiado.

É com efeito freqüente atribuirmos referência tendo em mente apenas uma

referência incompleta ou esquemática ou errônea feita por alguém. Isso é

freqüente com o nome ‘Aristóteles’. Afinal, é usual dizermos de pessoas que

1 Ver John Locke: An Essay Concerning Human Understanding, 2.31.4-5, 2.32.12, 2.29.7, 3.10.22, 3.11.24.

322

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conhecem apenas generalidades ou descrições auxiliares associadas a um nome

próprio como ‘Aristóteles’, que elas se referem ao seu portador. Esse é o caso

das pessoas que só sabem de Aristóteles que ele é uma figura de um afresco de

Rafael ou que ele apareceu no filme sobre Alexandre como o seu tutor. Embora

essas pessoas sejam capazes de se referir ao filósofo no sentido de que,

conhecendo a gramática dos nomes próprios e possuindo certo pano de fundo

informacional, que lhes permite ter consciência daquilo que podem – e

principalemnte daquilo que não podem – fazer com a palavra, elas são capazes

de inserir o nome ‘Aristóteles’ em situações conversacionais pouco exigentes,

de tal modo que um intérprete que realmente conheça a regra de identificação

desse nome será capaz de reconhecer esse uso como sendo correto. Isso

acontece, aliás, sob o pressuposto de que a comunidade lingüística possui (ou

em algum momento possuiu) nomeadores privilegiados, a saber, pessoas que

estão em situação que lhes permite completar a referência do nome pelo domínio

de sua regra de identificação.

Com isso podemos propor um segundo sentido de sucesso referencial, cujo

critério é o de que um nomeador privilegiado seja capaz de reconhecer o uso

que o falante em questão faz do nome próprio como sendo correto. Assim, uma

pessoa é capaz de usar o nome referencialmente, mesmo com conhecimento

deficiente das descrições que lhe são constitutivas, mesmo via descrições

complementares e até parcialmente errôneas, tão somente pelo fato de que ao

inserir o nome na linguagem ela tem consciência e/ou nós temos consciência de

que nomeadores privilegiados seriam capazes de reconhecer que a inserção do

nome próprio no discurso é suficientemente correta para não obstar o caminho

de uma referência mais completa. Nesse sentido de sucesso referencial, não é o

falante sozinho que usa o nome para se referir ao objeto. Ele o faz apoiado em

uma comunidade lingüística, que conta como sendo capaz de completar a

referência para ele. Ou seja: ele se refere ao objeto por intermédio da 323

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comunidade lingüística, que é constituída de outros falantes diversamente

qualificados, que serão capazes de completar cognitivamente os sentidos das

expressões por ele usadas. Embora esse processo seja social, ele não deixa de ser

interno. O significado do nome próprio, mesmo estando apenas de modo muito

parcial na cabeça do falante, mesmo encontrando-se diversamente distribuído

nas cabeças de outros falantes, dos potenciais intérpretes de sua referência, é

interno em todos os seus momentos. Retornando à metáfora de Putnam: uma

pessoa é bem sucedida em referir segundo o critério (b) de êxito referencial da

mesma maneira que um passageiro diz que tomou um barco para ir até um certo

lugar, mesmo sabendo que foi a tripulação que realmente conduziu o barco até

esse lugar. Uma pessoa é bem sucedida em referir segundo o critério (a) quando,

como piloto da embarcação, realmente a usa com a função de conduzir o barco

até onde é estabelecido que ele vá. Finalmente, se quisermos ser rigorosos,

devemos admitier que as pessoas que usam um nome próprio sem conhecerem

as suas regras-descrições fundamentais não sabem realmente o que estão

dizendo com o nome: elas só são capazes de inserir o nome na linguagem porque

confiam na existência de nomeadores privilegiados que sejam realmente capazes

de identificar o seu portador.

Podemos também imaginar uma situação na qual, por alguma razão, todos os

nomeadores privilegiados desaparecessem. Imagine que uma catástrofe como a

guerra atômica ocorresse e que apenas umas poucas pessoas iletradas

sobrevivessem, e que essas pessoas encontrassem alguns papéis mencionando

Aristóteles, aprendendo então que ele foi um filósofo antigo. Nesse caso, as

pessoas na realidade deixariam de ser capazes de se referir a Aristóteles, mesmo

no sentido (b) da palavra, simplesmente pela falta do suporte de uma

comunidade lingüística que incluísse falantes capazes de garantir a referência e

dar-lhe um sentido que fosse. Sem usuários privilegiados capazes de conhecer a

324

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regra de identificação, mesmo que por partes, a possibilidade do uso referencial

de nomes entraria em colapso.

8. O significado do nome próprio

Vejamos agora a questão do significado do nome próprio. Para chegarmos a

uma resposta, basta nos recordarmos do argumento apresentado no capítulo

introdutório, mostrando que o significado – entendido como o sentido fregeano

(Sinn), o conteúdo cognitivo ou informativo (Erkenntniswert) do termo singular

– se deixa plausivelmente esclarecer em termos de regras ou de combinações de

regras que possibilitam a efetiva aplicação das expressões.1 Onde há regra há

significado de algum tipo, mesmo que não do tipo que possa interessar (quando

falamos do significado de uma expressão lingüística, geralmente estamos

considerando somente as regras que contam na explicação daquilo que

entendemos com a expressão). A conclusão inevitável disso é que uma teoria

descritivista dos nomes próprios, sendo uma teoria das regras semânticas

expressas pelas descrições, também vale como uma teoria do significado dos

nomes próprios.

Esse ponto de vista contrasta fortemente com a opinião daqueles que

defendem que nomes próprios são destituídos de sentido.2 As razões por eles

apresentadas são conhecidas: se nos perguntam pelo significado de um nome

próprio, ficamos sem saber como responder. Além disso, como já notamos, os

nomes próprios geralmente não se encontram dicionarizados; e como a

1 O sentido epistêmico (Sinn) ou informativo (Erkenntniswert) é, como vimos, mais do que o sentido literal; ele é uma espécie de intenção (com ç) que com base em convenções somos capazes de associar à expressão. Essa posição, além do mais, opõe-se ao externismo semântico de Putnam e outros, cuja implausibilidade será evidenciada no capítulo XI.2 Paul Ziff: Semantic Analysis, pp. 93-94. Desde então essa idéia tem sido freqüentemente repetida.

325

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finalidade dos dicionários é esclarecer os significados das palavras, tem-se mais

uma razão para se rejeitar que os nomes próprios tenham significação.1

Contudo, essa tese não resiste à reflexão. Certamente, o nome próprio tem

significado no sentido de ter uma função lingüística de identificar o seu

portador. Mas ele também tem significado no sentido de ter um conteúdo

semântico. Que nomes próprios devem ter significado nesse último sentido fica

logo claro quando consideramos sentenças como “Dr. Jeckill é Mr. Hide”, que

seriam tautológicas e não informativas se os nomes próprios ‘Jeckill’ e ‘Hide’

não quisessem dizer coisas bastante diferentes. Além disso, se pensarmos no

significado tal como fez Frege, em termos de sentido epistêmico ou informativo,

nomeadamente, em termos de conteúdo informacional, parece claro que muitos

nomes próprios são repletos de significado. Afinal, parece que muitos deles são

repositórios de uma massa difusa de conteúdo informacional variadamente

acessado. Considere, por exemplo, a imensa carga de conteúdo informacional

que associamos ao nome do conquistador Napoleão ou do filósofo Bertrand

Russell. Sob tal perspectiva, a questão não é tanto que o nome próprio contenha

significado de menos, mas demais. E tanto é assim que o lugar reservado para a

exposição do significado de certos nomes próprios não é o dicionário, mas a

enciclopédia. E em alguns casos, mais do que a enciclopédia, o lugar onde

encontramos o significado mais detalhado e completo do nome próprio é a

biografia. Biografias como as de Napoleão, autobiografias como a de Russell,

são os lugares nos quais podemos encontrar uma pormenorizada exposição do

conteúdo informacional associado a esses nomes próprios. E as regras de

localização e caracterização não são em tal caso apresentadas em uma forma

abreviada, como temos feito, mas em forma muito mais detalhada e completa.

1 Ao bem da verdade deve ser notado que existem dicionários específicos para nomes próprios, como os que explicam os sentidos etimológicos dos nomes próprios de pessoas e fornecem informações genéricas sobre os seus portadores mais conhecidos.

326

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Mas por que então alguns sustentaram que nomes próprios são vazios de

significado? Uma resposta emerge do fato de que quando usamos um nome

próprio tudo o que costumamos saber dele são aspectos geralmente vagos e

variáveis de seu significado, partes restritas de seu conteúdo informacional, cujo

domínio em geral varia de falante para falante. O que (disposicionalmente)

intencionamos ao usar um nome próprio é geralmente alguma parcela do seu

significado, não todo ele; e uma parcela que varia de pessoa para pessoa, de

ocasião para ocasião, dado que o conteúdo completo de muitos nomes próprios é

conhecido por poucos e em alguns casos por ninguém. Devido a isso, quando

contrastamos esse estado de coisas com o significado permanente, distinto e

universalmente compartilhado dos predicados mais simples (como, digamos ‘...é

azul’), temos a impressão de que nomes próprios podem não ser capazes de

significar nada de específico e por isso mesmo não são capazes de significar

coisa alguma.

Identificando o sentido com regras consideremos então a questão do sentido

dos nomes próprios tendo em vista as expressões descritivas de regras já

consideradas. Quais seriam as de maior valor semântico? Uma primeira regra a

ser excluída é a própria regra meta-identificadora: o núcleo semântico distintivo

de um nome próprio não pode ser por ela constituído, pois ela é uma forma

compartilhada pelas regras de identificação de quaisquer nomes próprios,

enquanto o que mais importa no significado de um termo é aquilo que o

distingue de outros termos do mesmo gênero. O significado também não deve

ser relevantemente constituído pelas regras auxiliares expressas pelas descrições

do grupo C, dado que elas são muito mais contingentes em relação à aplicação

do nome. Restam, pois, as regras fundamentais de localização e/ou

caracterização, expressas respectivamente pelas descrições dos grupos A e B.

São elas que constituem relevantemente o significado de um nome próprio. Com

efeito, se nos perguntarmos, por exemplo, quais as descrições que expressam o 327

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âmago do que se pode querer dizer com o nome próprio ‘Aristóteles’, a resposta

mais natural parece vir através das descrições fundamentais do homem que

nasceu em Estagira em 384 a.C., que desenvolveu as idéias que influenciaram

profundamente o curso da filosofia ocidental, expostas em obras como a

Metafísica, a Ética a Nicômano e o Organon... E quando tudo o que uma pessoa

sabe de Aristóteles é que ele foi ‘um grande filósofo grego’, ela está dizendo

algo que é ao menos implicado pelas descrições fundamentais. Trata-se do

conteúdo informativo indispensável, do sentido mais próprio do nome próprio.

Afora esse núcleo semântico primário, há um halo de significação secundário

em geral expresso pelas regras-descrições auxiliares. Assim, a descrição auxiliar

metafórica ‘o mestre dos que sabem’, feita para conotar Aristóteles, também

contribui para a massa de conteúdo informativo que constitui o significado total

desse nome próprio, da mesma forma que descrições acidentais mais

conhecidas, como ‘o maior discípulo de Platão’, ‘o tutor de Alexandre’, ‘o

fundador do Liceu’... posto que quem as conhece já é capaz de dar algum

sentido epistêmico ao nome. Nem todas as regras auxiliares, contudo,

contribuem para enriquecer o conteúdo informativo do nome próprio. As regras-

descrições acidentais ignoradas, como ‘o neto de Achaeon’, certamente não

contribuem de modo relevante. E as regras-descrições adventícias, como ‘o

filósofo mencionado pelo professor na aula’, por sua natureza circunstancial em

nada contribuem para o conteúdo informativo do nome próprio, não sendo por

encontradas por isso nem em enciclopédias nem em biografias. Apesar disso

pode-se dizer que essas últimas regras ainda expressam um sentido ocasional,

que está sendo intencionado pelo usuário do nome quando este o emprega.

Para evitar confusão devemos também distinguir entre o significado completo

e o significado intencionado do nome próprio. Comecemos pelo significado

intencionado. Ele é aquele sentido variável que cada qual tem em mente ao

aplicar o nome próprio. Podemos dizer que ele consiste naquilo que é, se não 328

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atualmente, ao menos disposicionalmente intencionado pelo falante quando ele

pensa ou profere o nome (ele é aquilo que Russell chamou de “descrição em

nossas mentes”1). Digo que este significado é ao menos disposicionalmente

intencionado porque a regra-descrição intencionada – que tanto pode ser

fundamental como auxiliar (e que pode ser uma conjunção de regras-descrições)

– não precisa ser reflexivamente considerada no momento da aplicação do

nome, embora ela determine o uso do nome pelo falante e possa em princípio ser

tornada consciente. Em geral conhecemos pouco dos significados dos nomes

próprios que usamos, o significado intencionado só poucas vezes coincidindo

com o significado completo.

Quanto ao significado completo, ele é constituído primariamente pelo que

podemos chamar de significado próprio: o conjunto formado pelas regras-

descrições localizadora e caracterizadora (o núcleo semântico primário); já

secundariamente ele é formado também pelo que poderíamos chamar de

significado auxiliar: as regras-descrições auxiliares (o halo semântico).

O esquema seguinte sumariza as distinções feitas aqui:

Significado próprio Significado completo (núcleo semântico) (eventualmente conhe- Significado cido pelos usuários Significado auxiliar (sentido, valor privilegiados do nome) (halo semântico) cognitivo, con- teúdo informa- Significado intencionado do nome próprio cional) do nome (é convencionalmente fundado, identifican- próprio do-se com o sentido fregeano que o usuário dá ao nome)

Finalmente, é possível nesse contexto esclarecer o papel semântico das regras

auxiliares expressas pelas descrições do grupo C. Muitas vezes começamos a

1 B. Russell: The Problems of Philosophy, p. 30.329

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conhecer um nome próprio através de uma regra-descrição auxiliar de conexão

com o objeto. Claro que uma pessoa que só conhece uma regra-descrição

auxiliar ainda não possui conhecimento relevante do significado do nome

próprio. Mas regras-descrições como ‘o marechal de ferro’, ‘o maior discípulo

de Platão’, ou mesmo ‘o filósofo citado pelo professor’, já podem bastar para

permitir ao falante inserir o nome próprio no discurso de maneira

comunicacionalmente eficaz, obtendo sucesso referencial em um sentido

enfraquecido da palavra. Como já vimos, para entendermos essa inserção

precisamos reconhecer que mesmo tendo conhecimento insuficiente do

significado da palavra, a pessoa é capaz de usar o nome próprio

significativamente-referencialmente no sentido de que pode contar com uma

comunidade lingüística possuidora de uma adequada divisão do trabalho

lingüístico, contendo intérpretes capazes de completar o significado e a

referência do nome próprio que ela foi capaz de inserir corretamente no

discurso.

9. Porque nomes próprios são designadores rígidos

As regras de identificação resultantes da aplicação das RMI mostram o caminho

para resolver um problema que tem assombrado o descritivismo, que é o da

razão pela qual os nomes próprios são designadores rígidos. Para responder a

questão precisamos atentar para algumas propriedades semânticas das regras de

identificação para nomes próprios. Uma delas é que essas regras podem ser

sempre traduzidas na forma de sentenças descritivas a serem lidas como

verdades analítico-conceituais. Podemos tornar isso claro reescrevendo a regra

de identificação do nome próprio ‘Aristóteles’ de forma descritivada, como se

segue:

330

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O nome próprio ‘Aristóteles’ se refere à pessoa que estiver na origem de nossa consciência de que ela satisfaz de modo em seu todo suficientemente a condição de ter nascido em Estagira em 384 a.C., vivido em Atenas e morrido em Chalcis em 322 a.C. e/ou a condição de ter sido o autor das idéias fundamentais do opus aristotélico, satisfazendo essa disjunção mais do que qualquer outra pessoa.

Mesmo que essa sentença contenha uma disjunção e assim elementos

descritivos que individualmente podem se aplicar ou não ao portador do nome,

caso ele exista, como tal ela exprime uma verdade analítica necessária e a priori,

posto que estabelecida por convenção tácita. Afinal, não há mundo possível no

qual ela seja falsa. Não podemos conceber um mundo possível no qual

Aristóteles exista e a sentença acima não seja verdadeira, ou, o que dá no

mesmo, em que a sua regra de identificação não se aplique.

Isso não nos surpreende, aliás, se admitirmos a identificação fregeana da

existência com a satisfação ou ec-aplicabilidade do conceito. Pois se o conceito

associado a um nome próprio é a sua regra de identificação, então a existência, a

satisfação do conceito, nada mais é do que a efetiva e contínua aplicabilidade da

regra de identificação associada ao nome próprio. Assim, aplicar a regra de

identificação para Aristóteles em um mundo possível é o mesmo que admitir que

Aristóteles existe nesse mundo, não podendo haver nenhuma lacuna entre uma

coisa e outra. Por isso a ec-aplicabilidade da regra de identificação é, de um

certo modo, “constituidora” do objeto, que só ganha “ser” como aquilo a que a

regra é efetiva e continuamente aplicável. Ou seja: atribuir efetiva

aplicabilidade ao nome e existência ao seu objeto são a mesma coisa, disso

resultando que o nome se torna um designador rígido, ou seja, que a regra de

identificação a ele associada se aplica em todos os mundos possíveis nos quais o

seu objeto venha a existir. Essa é a verdadeira explicação para a rigidez do nome

próprio: ela decorre do caráter necessário da aplicabilidade da regra de

identificação do nome próprio (a regra resultante da aplicação de RMI às 331

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descrições fundamentais de cada nome próprio) em qualquer mundo no qual o

objeto possa ser dado como existente.

Podemos nos perguntar agora: mas não haveriam casos incertos, mundos

possíveis nos quais não há como saber se podemos ou não aplicar a regra,

mundos nos quais só existe, digamos, “meio” Aristóteles? A resposta é

afirmativa. Mas isso não tem, obviamente, a menor importância. A vaguidade é

uma característica inexpugnável da linguagem e a semântica dos mundos

possíveis também precisa ser adequada a isso. Certamente, há mundos possíveis

nos quais não existe o suficiente de Aristóteles para sabermos se podemos ou

não aplicar a sua regra de identificação. Neles não se pode dizer de Aristóteles

nem que ele existe nem que ele não existe; e neles (assumindo que a vaguidade

advenha da própria realidade) Aristóteles realmente nem existe nem não existe.

Isso não significa que o nome ‘Aristóteles’ não seja um designador rígido, pois

fora dessa fronteira de indeterminação esse nome pode ser certamente aplicado.

Há, contudo, uma maneira natural de acomodar o conceito de designador

rígido a tais casos. Basta redefinir mais adequadamente o conceito como

designando a propriedade de uma expressão referencial de se aplicar a todos os

mundos possíveis nos quais o objeto referido definidamente existe. A rigidez é,

em outras palavras, a propriedade da regra semântica de uma expressão

referencial de “constituir” a existência do seu objeto em todos os mundos

possíveis nos quais ela se revela (via atos verificadores) efetivamente e

continuamente aplicável de uma forma definida, ou seja, inquestionavelmente

determinada.

Seria ainda possível objetar lembrando o paradoxo sorites. Se há fronteiras

de indeterminação, onde elas acabam? Se não há um limite definido para o seu

término, o que nos justifica dizer que já chegamos a uma zona de clareza na

aplicação do conceito, em que o portador do nome definidamente existe?

Contudo, o sorites pode ser gerado para virtualmente qualquer conceito vago de 332

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nossa linguagem sem que esse termo deixe de ser na prática aplicado. Com

efeito, mesmo conscientes do sorites, não deixamos de aplicar a palavra ‘calvo’

diante de um homem realmente calvo, nem a palavra ‘monte’ diante de um

monte de verdade. Por conseguinte, assim como não precisamos solucionar o

sorites para aplicarmos a maioria de nossos predicados, não precisamos fazer

desaparecer os casos indecidíveis para admitirmos que o nome próprio

Aristóteles é um designador rígido.

10. Porque descrições definidas não costumam ser designadores rígidos

Já vimos que uma vantagem da teoria causal-histórica está no fato de que ela

fornece uma explicação intuitiva para o fato de as descrições definidas serem

designadores acidentais enquanto os nomes próprios são designadores rígidos:

os nomes próprios, por se conectarem diretamente com o objeto, identificam-no

em qualquer mundo possível onde ele exista; já as descrições, por fazerem isso

indiretamente, por intermédio do conteúdo semântico conotado, tornam-se

capazes de identificar objetos diferentes em diferentes mundos possíveis.

Essa explicação é insatisfatória, pois deixa em aberto o que possa ser essa

misteriosa “conexão direta com o objeto” que os nomes próprios possuem. Em

compensação, a teoria metadescritivista dos nomes próprios possibilita uma

explicação muito mais convincente da diferença de comportamento entre

descrições e nomes próprios.

Para chegarmos a essa explicação podemos começar perguntando: em que

casos as descrições definidas se tornam designadores rígidos? Um primeiro caso

é aquele no qual elas são artificiosamente usadas de modo rigidificado. Para tal

basta estipular, por exemplo, que a descrição ‘o último grande filósofo da

antiguidade’ se refere necessariamente a Aristóteles, o que excluirá, por

exemplo, que em outro mundo possível esse filósofo tenha sido Platão. Mas não

é isso o que quero considerar aqui. Podemos fazer o que quisermos com a 333

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linguagem pela simples estipulação de novas convenções, sem que isso nos leve

a lugar algum. O que quero considerar é o caso de descrições atributivas

perfeitamente normais, que mesmo assim se deixam naturalmente interpretar

como designadores rígidos. Eis alguns exemplos:

(A)(i) a raiz quadrada de nove,(ii) o ponto mais oriental da América Latina,(iii) o terceiro regimento de cavalaria de Sintra.(iv) o último período glacial,(v) o assassinato do arquiduque austríaco Ferdinando em Sarajevo

em 1914.

A descrição (i) seria admitida pelo próprio Kripke como um designador

fortemente rígido, posto que o seu caráter formal a torna aplicável em qualquer

mundo possível. Mas não é ela que nos interessa aqui e sim as descrições (ii)-

(v), cujo conteúdo é empírico. Considerá-las designadores rígidos ou não

costuma depender da maneira como as interpretamos. Se entendermos a

descrição (ii) como indicando um local geográfico no nordeste brasileiro onde se

encontra a cidade de João Pessoa, que é onde em nosso mundo se situa o ponto

mais oriental da America Latina, então essa descrição será acidental, pois em um

mundo possível no qual a Patagônia fosse embicada em direção à África de

modo a ficar mais ao leste do que João Pessoa (ii) se referiria a um local

geográfico muito diferente. Contudo, se definirmos (ii) como indicando

simplesmente qualquer local que venha a se situar no ponto mais ao leste da

América Latina, abstraindo de sua latitude e de qualquer indicação geográfica,

então mesmo em um mundo possível no qual esse ponto esteja muito

diversamente localizado, ele continuará sendo o mesmo ponto, a saber, o ponto

mais oriental da América Latina. Nesse caso (ii) será um designador rígido,

aplicando-se a qualquer mundo possível no qual exista uma América Latina e,

334

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portanto, um ponto geográfico que lhe seja mais oriental. Assim, se em um

mundo possível a Patagônia fosse embicada em direção à África de modo a ficar

mais ao leste do que João Pessoa, a descrição (ii) se aplicaria a algum local da

Patagônia, sem deixar de designar um mesmo ponto. O interessante, nesse caso,

é que a leitura de (ii) como sendo um designador rígido não é nenhuma

imposição estipulativa, mas uma interpretação natural do conteúdo da descrição.

O ponto fica mais claro quando consideramos outras descrições. Considere

(iii): se tivermos em mente somente o terceiro regimento de cavalaria da cidade

de Sintra (posto que há outros), na abstração dos soldados e cavalos particulares

que o constituem (o que é usual), sua descrição se torna um designador rígido,

aplicando-se ao mesmo regimento em qualquer mundo no qual ele exista. As

regras descrições localizadora (em Sintra...) e caracterizadora (o terceiro

regimento de cavalaria) já se encontram aqui expressas.

O mesmo também pode ser feito com as descrições (iv) e (v). A descrição

(iv) pode ser entendida como designando um estado de coisas caracterizado pelo

último período de esfriamento da terra (que no nosso mundo durou de 110.000

até 12.000 anos atrás, mas que em outro mundo possível poderia ter ocorrido em

um período muito diverso sem deixar de ser o último período glacial). A

descrição (v) é de um evento, contendo explicitamente a localização espaço-

temporal e a sua caracterização como o assassinato de uma pessoa específica

(que em nosso mundo deveu-se ao tiro desferido por Gavrilo Princip, mas em

outro mundo possível poderia ter sido causado por estrangulamento, por

envenenamento etc. sem deixar de ser um assassinato).

Vemos, pois, que existem descrições definidas de pontos, objetos, estados de

coisas e eventos que são naturalmente interpretáveis como designadores rígidos.

Uma característica comum a todos esses exemplos é, aliás, que eles constituem

descrições expondo regras fundamentadoras de localização e/ou caracterização e

não regras auxiliares, como no caso de descrições metafóricas ou acidentais. 335

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Outra característica é que não existem nomes próprios correspondentes a essas

descrições. Logo veremos que essas marcas são decisivas.

Para contrastar, consideremos agora exemplos de descrições definidas usuais,

que se comportam como designadores distintamente acidentais ou flácidos:

designadores de objetos diferentes em diferentes mundos possíveis. Eis alguns

exemplos:

(B)(i) a águia de Haia,(ii) o marechal de ferro,(iii) a cidade luz.(iv) o fundador do Liceu,(v) o primeiro imperador romano.

Essas descrições são designadores tipicamente acidentais. Ao contrário das

descrições anteriores, rigidificá-las é possível apenas por estipulação. Considere

(i): é natural pensarmos na descrição ‘A águia de Haia’ como uma metáfora

laudatória do poder oratório de Rui Barbosa em sua passagem por Haia em

1907. Mas podemos conceber um mundo possível no qual o navio que levava

Rui Barbosa ao congresso de Haia tenha afundado no meio do atlântico e que ele

tenha sido substituido por um orador igualmente impressionante, o qual tenha

sido cognominado pelos seus compatriotas de a ‘Águia de Haia’. O mesmo vale

para qualquer outra descrição do grupo (B).

A questão que se coloca é: o que torna as descrições do grupo (B) acidentais,

em contraste com as descrições rígidas do grupo (A)? A resposta não é a de que

as descrições do grupo (B) são auxiliares, pois poderíamos adicionar a essa

última lista descrições como ‘o mais famoso jogador de futebol de todos os

tempos’, ‘a cidade de mais de dez milhões de habitantes situada a margem do

Sena”, que são fundamentais e mesmo assim flácidas. A resposta é outra; ela é a

seguinte: as descrições do grupo (B), diversamente das pertencentes ao grupo 336

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(A), encontram-se semanticamente associadas a nomes próprios

correspondentes, os quais são, respectivamente, (i) Rui Barbosa, (ii) Floriano

Peixoto, (iii) Paris, (iv) Aristóteles e (v) Júlio Cesar. Contudo, essas descrições

não precisam ser verdadeiras para o mesmo objeto referido pelo nome próprio

correspondente, em todos os mundos possíveis em que ele existe, pois há

mundos possíveis nos quais Aristóteles não fundou o Liceu, Rui Barbosa

desistiu da carreira diplomática, Júlio César defendeu tenazmente a república,

Floriano Peixoto foi um cândido adepto da monarquia e Paris foi destruída no

século XIV, antes de se tornar a cidade luz.

A consideração desse ponto pesa contra explicações millianas da flacidez das

descrições, segundo as quais elas são acidentais porque denotam indiretamente,

com base em propriedades conotadas, e não diretamente, como é o caso do

nome próprio. O que acabamos de evidenciar é que a descrição definida não é

acidental por si mesma. Ela se torna acidental por sua associação com um nome

próprio. Ela se torna acidental porque vem frouxamente, contingentemente, e

não necessariamente, associada a certo nome próprio, o que vale não só para as

descrições auxiliares como até mesmo para as descrições fundamentais quando

consideradas isoladamente. Podemos parafrasear essa mesma idéia dizendo que

qualquer descrição asssociada a um nome próprio possui subordinação

semântica parcial com relação ao restante do conteúdo informativo desse nome

próprio, por ser considerada por nós como fazendo parte das descrições que

constituem o seu conteúdo semântico sem que da aplicação do nome próprio se

siga necessariamente a aplicação da descrição e sem que da aplicação da

descrição se siga necessariamente a aplicação do nome próprio. Por isso,

descrição e o nome próprio ao qual ela pertence tendem a se referir ao mesmo

objeto, mas não o fazem necessariamente. Isso faz com que a referida

subordinação semântica seja parcial, no sentido de que ela não é um traço

necessário à aplicação do nome próprio. Trata-se de uma relação que supomos 337

Page 338: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

ser o caso apenas em nosso mundo e não algo que precise ser o caso em todo e

qualquer mundo possível em que o nome se aplica ao seu portador. Assim, em

nosso mundo ‘o autor do opus aristotélico’ é a descrição caracterizadora de

Aristóteles. Mas em outro mundo possível, no qual Aristóteles morreu logo

depois de chegar a Atenas, nunca tendo escrito o opus aristotélico, essa

descrição – para os falantes desse mundo possível – perderá a subordinação

parcial que ela tinha com o nome próprio ‘Aristóteles’, mesmo que ela seja parte

fundamental (mas não necessária) da nossa regra de identificação para esse

nome. Por causa dessa possível desconexão entre referência do nome próprio e a

referência de qualquer descrição a ele frouxamente associada, a descrição é

considerada como capaz de identificar diferentes objetos ou mesmo nenhum

objeto em outros mundos possíveis nos quais o nome próprio correspondente se

aplica, e identificar objetos em mundos possíveis nos quais o nome próprio que

a ela asssociamos não possui referente, o qua a torna um designador acidental ou

flácido do portador desse nome próprio.

Um exemplo para esclarecer. Uma descrição como ‘o primeiro imperador

romano’ exprime parte da descrição caracterizadora de Júlio Cesar (Cesar foi

imperador, embora de forma inoficial). Como a regra disjuntiva para a

identificação de Júlio César é mais completa, permitindo identificar o objeto

muito mais especificamente, nós consideramos a descrição ‘o primeiro

imperador romano’ como exprimindo uma propriedade contingente, ainda que

muito importante, de Júlio César. É contingente porque segundo a sua regra de

identificação ele pode ser identificado como tal, mesmo que essa descrição não

venha a lhe pertencer. Só por isso é que essa descrição se torna acidental,

havendo mundos possíveis nos quais a propriedade referida por essa descrição

pode pertencer a outro objeto, ligando-se a outras descrições fundamentais,

como no mundo possível no qual Brutus foi o primeiro imperador romano, ou

338

Page 339: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

mesmo a nenhuma, como no mundo possível no qual Júlio Cesar foi um teimoso

defensor da república e no qual essa instituição persistiu até o fim do império.

Claro que podemos por estipulação abstrair da relação da descrição ‘o

primeiro imperador romano’ com certo imperador específico designado pelo

nome ‘Júlio César’; nesse caso a descrição se torna um designador rígido, pois

ela designará o primeiro imperador romano em qualquer mundo possível no qual

ele venha a existir, o que pode ser feito com qualquer outra descrição de

aplicação unívoca. Contudo, no caso das descrições do grupo (A) a rigidez se

demonstra uma característica natural da descrição: ‘o terceiro regimento de

cavalaria de Cintra’ naturalmente, ou seja, por força das convenções tácitas

nascidas de nossa prática lingüística, sempre se aplicará ao mesmo objeto em

qualquer mundo possível no qual ele exista. A explicação dada acima explica

porque isso ocorre. Como as descrições do grupo (A) não se encontram

frouxamente subordinadas a nome próprio algum, elas se referem ao mesmo

objeto em qualquer mundo possível no qual esse objeto venha a existir, sendo

isso o que as torna nomeadores rígidos. Vemos, pois, que diferentemente do que

Kripke sugeriu, a relação descrição-designador acidental e nome próprio

designador rígido não tem nada a ver com o mecanismo de referência dessas

diferentes espécies de termos singulares, mas tão somente com as relações que

eles podem possuir um com o outro.

Um ponto a se adicionar é que nos casos em que a descrição definida é

auxiliar, a regra de conexão com o objeto por ela expressa não é suficiente para

identificá-lo. Uma descrição como ‘a águia de Haia’, por exemplo, não é capaz,

pelo seu conteúdo explícito, de identificar na independência da regra de

identificação geralmente associada ao nome ‘Rui Barbosa’, pois ela não possui

conteúdo descritivo suficiente. Isso reforça a sua subordinação semântica parcial

a um nome próprio que seja detentor da regra de identificação do objeto, pois o

halo semântico é dependente do núcleo semântico, podendo esse nome ser Rui 339

Page 340: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Barbosa ou João da Silva. Essa dependência se aplica pelo menos também às

descrições (ii), (iii) e (iv) de (B).

Essas considerações nos permitem prever que a dependência que a descrição

definida tem do nome próprio correspondente deve ser maior quando mais

irrelevante ela for para a identificação do objeto. Assim, será mais fácil

considerar acidental uma descrição definida auxiliar como ‘o tutor de

Alexandre’ ou ‘o neto de Achaeon’ ou ‘o amante de Herphylis’, posto que ela

desempenha um papel secundário na determinação da referência do nome

‘Aristóteles’. Mas será menos fácil no caso das descrições fundamentais. E se a

descrição definida contiver tudo aquilo que é essencial ao nome próprio ao qual

se encontra subordinada, ela se torna rígida. Esse é o caso da formulação

descritivada da regra de identificação para o nome ‘Aristóteles’ que, como

vimos, é rígida.

Se a flacidez é proveniente do contraste da descrição com o nome próprio,

podemos nos perguntar se ela não ocorre também pelo contraste entre um nome

próprio e outro. Com efeito, isso pode ocorrer. Considere o caso do jovem de

nome Jacinto, que por custar muito a entender as coisas foi apelidado pelos seus

colegas de Cabeça-de-Bigorna ou simplesmente “o Bigorna”. Há mundos

possíveis nos quais Jacinto não era cabeçudo, ou não teve colegas maldosos, ou

em que o seu colega João da Silva é quem recebeu esse apelido. Nesses mundos

o apelido ‘Bigorna’ ou não se aplica, ou identifica outra pessoa que não Jacinto.

Esse apelido é – se considerado por contraste com o nome próprio mais

autorizado – um designador acidental, um nome próprio flácido.

As explicações aqui apresentadas para a diferença no comportamento

semântico entre nomes próprios e descrições definidas não são apenas mais

detalhadas, mas têm mais poder explicativo do que a obscura sugestão

referencialista de Kripke, segundo a qual o nome próprio refere-se por possuir

uma relação de secreta e indevassável intimidade com o seu objeto. Pois a 340

Page 341: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

rigidez do nome próprio deixa de ser interpretada como a sua misteriosa

propriedade de designar o objeto em si mesmo, sem intermediação de

propriedades, para se tornar a propriedade de designar quaisquer combinações

de propriedades que satisfaçam a sua regra de identificação.

11. Respostas aos contra-exemplos de Kripke

Gostaria agora de examinar as objeções usualmente feitas às teorias

descritivistas dos nomes próprios por defensores de teorias causais-históricas.

Quero demonstrar que a teoria meta-descritivista dos nomes próprios é capaz de

oferecer respostas mais detalhadas e convincentes a essas objeções, as quais

geralmente falham em distinguir o papel das regras fundamentadoras, quando

não falham em considerar o papel do contexto.

1. Objeção de rigidez

Consideremos primeiro a objeção de rigidez (modal), segundo a qual se o

descritivismo fosse correto então os nomes próprios não poderiam ser

designadores rígidos, posto que descrições não são designadores rígidos.

A resposta geral a essa objeção é que embora nenhuma regra-descrição de

primeira ordem precise se aplicar em todos os mundos possíveis em que o objeto

definidamente existe, a regra-descrição de identificação do nome próprio

(resultante da aplicação da regra meta-identificadora às suas específicas regras-

descrições localizadora e/ou caracterizadora) se aplica necessariamente em todos

os mundos possíveis em que o objeto definidamente existe. (Como vimos,

podemos ter mundos possíveis nos quais não se pode saber se a regra de

identificação de um nome próprio se aplica ou não; mas tais mundos coincidem

com aqueles nos quais o objeto também não possui uma existência definida,

uma vez que a própria existência do objeto se define pela efetiva aplicabilidade

dessa regra.)341

Page 342: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Kripke considera casos nos quais nossas descrições definidas usuais não se

aplicam. Assim, ele considera a possibilidade de que Aristóteles tivesse morrido

muito jovem, nunca tendo escrito os textos filosóficos pelos quais o seu nome é

lembrado, ou ainda, um mundo possível (dificilmente imaginável) no qual

Aristóteles viveu quinhentos anos mais tarde; ainda nesses casos, pensa ele,

podemos reconhecer Aristóteles, o que o leva à conclusão de que até mesmo a

disjunção das descrições do feixe é desnecessária à aplicação do nome.1 Mas

essa conclusão é simplesmente falsa, pois tudo o que Kripke nos oferece como

exemplo é no máximo o caso de não-aplicação da regra caracterizadora, mas de

aplicação tácita da regra localizadora, ou o caso inverso. Contudo, já vimos que

esses casos são previstos como plenamente compatíveis com a aplicação de RMI

às descrições fundamentadoras de um nome próprioe assim com a aplicação da

sua regra de identificação. O que Kripke jamais chega a considerar é um caso no

qual a regra identificadora de um nome próprio não seja aplicável e ainda assim

o seu portador exista. O que ele não chega jamais a considerar é um exemplo

concreto em que a disjunção das descrições do feixe seja realmente

desnecessária, a saber, no qual nenhuma das descrições se aplique em nenhuma

medida. E isso acontece pela simples razão de que tal exemplo é inconcebível!

Retornando ao caso imaginado por Searle, se alguém nos viesse dizer que

descobriu que Aristóteles não foi um filósofo grego, mas um mercador de peixes

que viveu em Veneza na renascença tardia, nossa reação seria considerar essa

afirmação intuitivamente absurda, posto que o pescador em questão não satisfaz

nenhuma das descrições do feixe associado a Aristóteles.

Outro contra-exemplo de Kripke ao descritivismo diz respeito ao nome

próprio ‘Hesperus’.2 Se Hesperus abreviasse a descrição ‘o corpo celeste visível

por lá ao entardecer’, diz ele, então isso seria uma verdade necessária. Mas

1 Kripke: Naming and Necessity, pp. 62-63.2 Kripke: Naming and Necessity, pp. 57-58.

342

Page 343: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

imagine que depois de ter sido cunhado esse nome um planeta errante do mesmo

tamanho tivesse colidido com Hesperus, de modo que ele deixasse de ser visível

ao entardecer, ou então (para piorar as coisas) tenha em seu lugar se tornado

visível ao entardecer o próprio planeta errante. Nesse caso não parece que com o

nome ‘Hesperus’ estamos nos referindo ao corpo celeste que satisfaz a descrição

acima, mesmo que enganosamente acreditemos nisso.

Consideremos a questão tendo em mente a concepção meta-descritivista. O

caso do nome próprio Hesperus é parecido com o caso já visto do planeta

Vênus.1 Como já vimos, podemos assimilar a regra caracterizadora do planeta

Vênus à sua regra localizadora, posto que a propriedade que nos importa é a de

ser o segundo planeta do sistema solar. Assim, a descrição localizadora-

caracterizadora essencial à identificação de Hesperus é:

O planeta que orbita o sol entre marte e a terra desde que foi identificado como tal e provavelmente já há milhões de anos.

Nesse caso, a regra de identificação será de um tipo que exige a necessária

satisfação dessa regra-descrição localizadora, tal como no exemplo da regra de

identificação do planeta Vênus. Isso demonatra que a satisfação da descrição

proposta por Kripke ‘o corpo celeste visível por lá ao entardecer’ não é

relevante, a não ser como um dos possíveis meios de identificação do planeta.

Afinal, se Hesperus perdesse a sua atmosfera e por isso deixasse de brilhar à

noite, ele não deixaria de ser Hesperus. Contudo, no caso de um planeta errante

tomar o lugar de Hesperus, mesmo satisfazendo essa descrição auxiliar, ele não

satisfará a regra de localização para Hesperus, pois não era ele que orbitava o sol

na época da denominação de Hesperus, nem nos milhões de anos que a

1 O exemplo foi aliás inicialmente sugerido por Ruth Barcan Marcus usando o nome ‘Venus’ em uma conferência assistida por Kripke. R.B. Marcus: Modalities: Philosophical Essays, p. 11.

343

Page 344: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

antecederam. Por isso, se o que nós virmos “por lá” ao entardecer deixar de

satisfazer a regra de identificação – por não ser o planeta que orbitou o sol no

tempo de sua denominação, mas, digamos, outro planeta – ele não será mais

Hesperus, mas outra coisa, por não se conformar com nossa descrição.

Esse contra-exemplo deve parte de sua eficácia ao fato de que o nome

próprio ‘Hesperus’ pode realmente ser entendido como sendo referido a algo

como a estrela mais brilhante (regra caracterizadora) que aparece ao anoitecer

(regra localizadora). Certamente era isso o que havia sido entendido com a

palavra antes de a astronomia ter sido desenvolvida, quando não fazia diferença

se Hesperus fosse o planeta Vênus ou um anjo reluzente. Nesse caso não pode

ser que Hesperus não satisfaça a descrição, pois o nome se refere a uma mera

aparência perceptual. Mas ninguém mais hoje se atém a esse sentido morto da

palavra.1

2. Objeção da necessidade indesejável

Vejamos agora a objeção de necessidade indesejável (epistêmica). Essa objeção

parte da constatação de que, sendo os nomes próprios designadores rígidos, eles

se aplicam necessariamente aos seus objetos. Como nenhuma descrição se aplica

necessariamente ao seu objeto, nomes próprios não podem ser reduzidos a

descrições.

Se essa objeção, como já vimos no capítulo 8, se aplica somente a uma

caricatura do descritivismo, não faz o menor sentido querer aplicá-la ao meta-

descritivismo. O que necessariamente se aplica, caso o objeto definidamente

exista, é apenas a regra de identificação (i.é ao menos uma descrição

fundamental deve ser suficientemente e predominantemente aplicável a algo).

1 Não há, por isso, qualquer razão para se tentar contornar o argumento modal tornando o nome próprio equivalente a uma descrição rigidificada, ou seja, indexada ao mundo atual, com todos os problemas que isso envolve (ver, por exemplo, J. Stanley: “Names and Rigid Designation”).

344

Page 345: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Assim, como também já vimos, a regra de identificação para o nome próprio

‘Aristóteles’ pode ser transformada em uma descrição necessariamente

aplicável, abreviadamente expressa como:

a pessoa que satisfaz suficientemente e predominantemente as descrições de ter nascido em Estagira em 384 a.C. vivido em Atenas e falecido em Chalcis em 322 a.C. e/ou a pessoa que foi o autor das idéias do opus aristotélico.

Ao fazermos tal consideração não devemos nos esquecer que as descrições

constitutivas do significado de um nome próprio são capazes de serem alteradas

e ampliadas, podendo inclusive sofrer variações locais e temporais dentro da

comunidade lingüística. Essas alterações, contudo, não devem ser tais que

ponham a perder a unidade do significado. O exemplo do impostor de nome

‘Tom Castro’ pode esclarecer. Nascido na Jamaica, ele foi certamente

identificado através de regras de localização e caracterização por seus familiares

quando criança. Mas adulto ele foi viver na Inglaterra, onde por alguns anos

conseguiu se fazer passar pelo filho de uma nobre inglesa, que muitos anos

antes havia desaparecido nas costas do Caribe. A regra caracterizadora pela qual

o conhecemos é a de um grande impostor. Mas sabemos que é a mesma pessoa

que foi conhecida pelos seus pais devido ao compartilhamento de uma mesma

regra de localização hoje conhecida de todos.

Passemos agora a um dos mais bem conhecidos exemplos de Kripke,

concernente à descrição que a maioria das pessoas associa ao lógico Kurt Gödel.

Essa descrição é: ‘o homem que descobriu a incompletude da aritmética’.

Podemos imaginar que Gödel não tenha descoberto o teorema da incompletude.

Suponhamos, diz Kripke, que Gödel tenha tido um amigo, um obscuro lógico

chamado Schmidt, que desenvolveu sozinho o teorema de incompletude em um

artigo, tendo logo depois morrido em circunstâncias obscuras. Gödel apossou-se

então do artigo e o publicou em seu próprio nome. Imagine também que, como 345

Page 346: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

muitas outras pessoas, tudo o que João associa ao nome ‘Gödel’ é a descrição ‘o

inventor do teorema da incompletude da aritmética’. Nesse caso, pensa Kripke,

segundo o descritivismo, quando João fica sabendo que foi Schmidt quem

descobriu o teorema da incompletude, ele deve ser levado à conclusão de que o

nome ‘Gödel’ significa o mesmo que ‘Schmidt’, ou seja, de que Gödel é

Schmidt. Mas não é isso o que acontece. Pois continua bastante claro que Gödel

é Gödel e que ele não é Schmidt.1

Discordando da análise de Kripke, John Searle notou que uma pessoa dirá

que Gödel não é Smith porque ela entende por Gödel

o homem que minha comunidade lingüística, ou pelo menos aqueles através dos quais eu cheguei a esse nome, chamam de Gödel, assumindo que algo mais é requerido.2

Com efeito, se tudo o que João sabe sobre Gödel é que foi ele quem descobriu a

incompletude da aritmética e assume que isso é suficiente para a identificação,

então ele não entende a gramática dos nomes próprios, não sabe o que é um

nome próprio, não é capaz de dar sentido.

Com base em nossa análise de como os nomes próprios referem podemos

especificar aquele algo mais que segundo Searle a pessoa assume que é

requerido. Nossa resposta é que a conclusão de Kripke é incorreta porque não

leva em conta a regra de identificação que a comunidade lingüística tem para o

nome ‘Gödel’ e a assunção feita por João, como falante competente da

linguagem, de que ele não a conhece o suficiente para saber que a referência se

alterou.

Vejamos primeiro, o que seria a regra de identificação do nome ‘Gödel’ para

os nomeadores privilegiados da comunidade lingüística. Do ponto de vista

1 Kripke: Naming and Necessity, pp. 83-84.2 John Searle: Intentionality p. 251.

346

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desses nomeadores há duas razões para Gödel não ser identificado com Schmidt.

Em primeiro lugar, a descrição ‘o descobridor do teorema da incompletude’ não

é mais do que uma parte da regra-descrição caracterizadora para Gödel. O

teorema da incompletude foi apenas a mais importante dentre as muitas

contribuições de Gödel. Além disso, mesmo sem ser Schmidt, Gödel foi um

lógico suficientemente competente para ser aceito em Princeton. Assim, a regra

de aplicação para Gödel continua a ser parcialmente satisfeita pelo nome

‘Gödel’ (digamos, 2/3 dela), mesmo que ele não tenha descoberto o teorema em

questão. A segunda razão pela qual a comunidade lingüística continua a chamar

Gödel de ‘Gödel’ é que a regra-descrição localizadora continua sendo

plenamente satisfeita por Gödel! Afinal, continua sendo Gödel, e não Schmidt,

o homem que nasceu em Brünn em 1906, tendo estudado na Universidade de Viena e em 1940 emigrado pela ferrovia transiberiana para os EUA, onde trabalhou na universidade de Princeton até a sua morte em 1978.

Não devemos sobrepor a nossa conclusão de que Gödel não pode ser Smith à

conclusão de João, pois esse último só é capaz de suspender o juízo. Contudo,

seu domínio da gramática dos nomes próprios lhe permite concluir que ele não

tem elementos suficientes para concluir que Gödel é Schmidt. João está ciente

de que ao associar o nome ‘Gödel’ à descrição ‘o inventor da prova da

incompletude da aritmética’, ele provavelmente domina apenas uma parte da

regra-descrição caracterizadora de Gödel, que é mais completamente dominada

por alguns outros membros da comunidade lingüística. Mas o ponto central é

que, como falante competente da linguagem, ele sabe que sendo Gödel o nome

de uma pessoa, deve haver também alguma regra de localização espaço-

temporal para Gödel, a qual ele desconhece, uma regra que precisa ser diferente

da regra de localização espaço-temporal para Smith, posto que as informações

que ele tem são de que Smith é outra pessoa (Gödel não poderia matar-se a si 347

Page 348: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

mesmo para então roubar-se o manuscrito). Sabendo disso e sabendo que

desconhece as regras de localização ele sabe que não está em condições de

concluir coisa alguma.

Há uma curiosidade a respeito. Como ao menos parte de uma das duas

descrições fundamentais identificadoras de Gödel é satisfeita por Schmidt, é

possível dizer que este último passa a herdar alguma coisa do significado do

nome ‘Gödel’, mesmo que não ganhe a sua referência. E isso realmente

acontece. Digamos que um lógico, revoltado pela notícia acerca do roubo do

teorema e com pena de Schmidt, lance a exclamação “Schmidt é quem foi o

verdadeiro Gödel!” Essa é uma frase verdadeira se for entendida como uma

hipérbole. E a razão pela qual ela é verdadeira é dada por nossa versão da teoria

descritivista, a qual prevê que o nome Schmidt herda alguma coisa relevante do

significado do nome ‘Gödel’.

Há, por fim, uma maneira de fazer com que Gödel seja realmente Schmidt,

mas ela dá a Kripke o bolo sem o direito de comê-lo. Imagine que bem no início

da estória Schmidt, por alguma razão, tivesse assassinado o jovem Gödel e

assumido a sua identidade. Schmidt, que era muito melhor matemático que

Gödel, descobriu a incompletude da aritmética, casou-se com Adele, tornou-se

professor em Princeton e faleceu em 1978, de modo que aquele sujeito de calças

curtas junto a Einstein na famosa foto de ambos era ele mesmo, o falsário

Schmidt. Nesse caso não há dúvida de que Gödel é Schmidt. E o

metadescritivismo explica: ele é Schmidt porque as regras-descrições

caracterizadora e localizadora, com exceção das descrições relativas à infância,

são as de Schmidt e não as de Gödel, o qual há muito deixara de existir.

3. Objeção da ignorância e erro: nomes próprios ficcionais

348

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Vejamos agora casos que envolvem ignorância e erro. Eles são importantes por

iluminarem o caráter social dos conteúdos representacionais envolvidos na

referência.

Um caso especial de ignorância e erro (além de necessidade indesejável)

exposto por Kripke foi o de nomes próprios parcialmente ficcionais, como

Jonas, o pregador. Ele distingue tais casos daqueles de nomes próprios

propriamente ficcionais, como Santa Claus. Mesmo que tenha existido um

religioso com o nome de Santa Claus no passado, sabemos que o nosso Santa

Claus nada tem a ver com ele e que esses nomes são meros homônimos, assim

como Napoleão, como o nome da figura histórica e como nome do cão que

assim foi batizado.1 Mas o mesmo, pensa Kripke, não se dá no caso de Jonas.

Segundo a Bíblia, Jonas foi um pregador enviado por Deus à cidade de Nineveth

para converter os pagãos e que acabou sendo engolido por um grande peixe.

Mas ninguém acredita que essas descrições sejam verdadeiras. Mesmo assim,

estudiosos da Bíblia acreditam que realmente existiu uma pessoa que originou a

estória.2 Mas se é assim, o descritivismo é errado, pois não possuímos descrições

capazes de identificar univocamente Jonas3. E a teoria causal deve ser certa, pois

o uso semi-ficcional do nome foi realmente causado por seu portador.

Um exemplo similar e mais adequado é o do justiceiro Robin Hood.

Historiadores crêem que a lenda de Robin Hood é baseada em alguma pessoa

real, que viveu no século XIII. Para tal há uma lista de candidatos. Entre eles,

porém, encontram-se pessoas que não eram pobres, que não eram fora-da-lei,

que não viveram na floresta de Sherwood e que nem sequer se chamavam Robin

Hood! Contudo, o referente dessas figuras parcialmente ficcionais é suposto

como sendo um e o mesmo, apesar do fato de não satisfazer propriamente

1 Kripke: Naming and Necessity, pp. 93 e 97.2 Admito essa afirmação de Kripke para o bem do exemplo, pois a maioria dos estudiosos realmente acredita que esse personagem bíblico seja inteiramente ficcional.3 Kripke: Naming and Necessity, p. 67-68.

349

Page 350: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

descrição alguma. Para Kripke, a razão pela qual estamos no final das contas

tratando de pessoas que realmente existiram é que a cadeia causal começa com o

reconhecimento do personagem real. Desse modo a teoria causal-histórica teria

uma explicação para algo que a teoria descritivista não é capaz de explicar.

Antes de respondermos, precisamos lembrar que há coisas que podem ser

aceitas como portadoras do nome e outras não. Suponha, por exemplo, que um

antigo escrivão da Bíblia tenha pisado em um ouriço-do-mar, e que no doloroso

período de convalescência que se seguiu, as lembranças do ocorrido o tenham

induzido a inventar a história de Jonas; ou então, suponha que algum escritor de

ficção da idade média tenha sido agredido pelas costas à noite por um assaltante

desconhecido, o que o deixou desacordado, e que por causa disso, ao voltar a si

ele tenha imaginado a estória de Robin Hood. Obviamente, ninguém dirá que o

ouriço-do-mar é Jonas e que o ladrão desconhecido é Robin Hood, só porque

eles podem ser considerados as causas da invenção desses personagens. Alguém

poderá aqui objetar que para Kripke a cadeia causal-histórica precisa ser

associada a um ato de batismo, o que não é aqui o caso. Mas podemos ainda

imaginar, por exemplo, que o antigo escrivão da Bíblia tenha guardado o ouriço-

do-mar em sua casa e que logo depois de inventar a história de Jonas e contá-la

aos seus amigos, ele tenha pegado o ouriço na mão e dito: “Por isso eu chamo

esse meu ouriço de Jonas”. Não parece que ele teria sido capaz de assim originar

uma cadeia causal capaz de fazer-nos reportar o nome ‘Jonas’ ao ouriço-do-mar.

Ora, por que em certos casos reconhecemos a causa como sendo o portador

do nome e em outros não? A única resposta plausível é que a causa que

reconhecemos como adequada é aquela capaz de satisfazer algum elemento

cognitivo que associamos ao nome. Nos casos de Jonas e Robim Hood, mesmo

havendo uma cadeia causal (o que é inevitável), o que confere adequação a essa

cadeia causal são representações descritivamente exprimíveis, mesmo que

bastante vagas, de quem seriam Jonas e Robim Hood, as quais seriam refletidas 350

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nas cadeias causais. Com efeito, da história bíblica nós inferimos alguma coisa

da descrição localizadora, qual seja, a de que o Jonas real teria sido uma pessoa

que viveu nos tempos bíblicos (entre 600 a 1.000 anos a.C.), e alguma coisa da

descrição caracterizadora, qual seja, a de que ele foi algum pregador da bíblia. E

quanto à pessoa que gerou a lenda de Robin Hood, sabemos que ela deve

satisfazer alguma coisa da descrição localizadora, de ter vivido na Inglaterra do

século XIII, além de boa parte da descrição caracterizadora, ao ser alguém que

tirava dos ricos para dar aos pobres. Além disso, em ambos os casos vagas

histórias causais podem ser supostas. É essa provável satisfação genérica de

cada regra-descrição fundamental segundo a regra meta-identificadora para

nomes próprios o que torna esses nomes semi-ficcionais indicadores de coisas

alegadamente reais. É verdade que essas descrições são insuficientes para a

identificação unívoca de Jonas e de Robin Hood, mas não é isso o que

pretendemos com elas, pois afinal não somos realmente capazes de identificar

essas pessoas. O que elas nos permitem fazer é propor hipóteses plausíveis –

supor que esses personagens existiram realmente.

Podemos, pois, distinguir nas descrições associadas aos nomes de

personagens semi-ficcionais dois elementos. O primeiro é o elemento ficcional,

constituído de descrições geralmente coloridas e fantasiosas, que não foram

feitas para se aplicar à realidade. O segundo é o elemento não-ficcional; são

descrições localizadoras e caracterizadoras muito vagas, que seriam implicadas

pelas regras localizadora e caracterizadora que supomos que poderiam ser

construídas se tivéssemos as informações suficientes a respeito do portador do

nome. Aquilo que define o que chamamos de caráter semi-ficcional é a adição

do elemento imaginativo, decalcado sobre os critérios identificadores originais.

4. Objeção da ignorância e erro: descrições elípticas e incorretas

351

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A mais interessante forma de objeção da ignorância e do erro é aquela na qual

Kripke demonstra que geralmente as pessoas conseguem fazer com que um

nome próprio tenha referência, mesmo quando a ele associam apenas uma

descrição indefinida ou uma descrição incorreta. Exemplos do primeiro caso são

os nomes ‘Cicero’ e ‘Feynman’, aos quais muitos associam apenas alguma

descrição indefinida como ‘um famoso orador romano’ para o primeiro e ‘um

grande físico norte-americano’ para o segundo.1 Apenas uns poucos seriam

capazes de explicar a situação política de Cicero ou de dissertar sobre as

contribuições de Feynman para a microfísica. Mesmo assim, as pessoas são

capazes de se referir a Feynman através do seu nome. Mais do que isso, as

pessoas são capazes de usar um nome próprio referencialmente, mesmo quando

associam a ele descrições blatantemente errôneas. Kripke diz que em sua época

muitos associavam ao nome ‘Einstein’, a descrição ‘o inventor da bomba

atômica’.2 Com isso as pessoas conseguiam se referir a Einstein, acredita ele,

embora a bomba atômica tenha sido elaboração dos cientistas do projeto

Manhattan, do qual Einstein nunca participou. Finalmente, imagine que você

ouve alguém dizer o nome ‘Elias’ em uma conversação. Você não tem nenhuma

idéia de quem é a pessoa ou sobre o que estão conversando. Mas você não é

capaz de se referir ao mesmo Elias ao repetir o nome? Se assim é, então parece

que descrições não têm nada a ver com aquilo através do que o nome refere.

Podemos desenvolver aqui mais adequadamente a resposta esboçada por

Searle de que a descrição sustentada pelo falante deve estar em convergência

com o conteúdo caucionado pela comunidade lingüística. Essa convergência já

permite um uso vago, que por isso mesmo não deixa de ser correto, do nome

próprio na linguagem. Ela permite o que chamamos de uma referência

incompleta, um gesto em direção à verdadeira referência. Associando os nomes

1 Kripke: Meaning and Necessity, pp. 81-82.2 Kripke: Meaning and Necessity, p. 85.

352

Page 353: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

‘Cicero’ e ‘Feynman’ a descrições indefinidas, e mesmo associando o nome

‘Einstein’ a uma descrição errônea, as pessoas já se tornam capazes de colocar o

nome na órbita da referência, ou seja, usar o nome próprio em práticas

lingüísticas nas quais ele seja capaz de ser interpretado por nomeadores

privilegiados de maneira a realmente denotar o seu portador. Afinal, mesmo no

caso de uma descrição incorreta, como ‘o inventor da bomba atômica’, a pessoa

já sabe que o nome ‘Einstein’ se refere a um cientista e a um ser humano, e não,

por exemplo, a uma espécie de pedra preciosa. Assim, se a pessoa disser que

Einstein inventou a bomba atômica, outros poderão corrigi-la, admitindo que ela

queria se referir a mesma pessoa a qual elas se referem com esse nome.

Contudo, se, como já notamos, uma pessoa usasse o nome ‘Einstein’ para

designar um diamante, ou usasse o nome ‘Feynman’ para designar uma marca

de perfume, ela não estaria tentando se referir a mesma coisa a que nós nos

referimos com esses nomes, não sendo capaz de inseri-los adequadamente em

situações dialógicas. Finalmente, você só consegue se referir ao mesmo Elias

sobre o qual as pessoas estão conversando porque você vincula ao nome a

descrição adventícia correta ‘a pessoa sobre a qual eles estavam conversando’.

Seria possível opor à resposta descritivista o fato de que uma razão pela qual

nos lembramos do físico Robert Oppenheimer é que ele foi o principal

responsável pela criação da bomba atômica. Logo, quem diz que Einstein foi o

inventor da bomba atômica está usando a regra caracterizadora para

Oppenheimer, devendo fazer referência a Oppenheimer ao falar de Einstein, o

que não é o caso... A resposta a essa objeção é que tudo depende do que está

sendo enfatizado. Se a frase fosse “O inventor da bomba atômica foi Einstein”, a

pessoa seria de fato corrigida com a resposta de que o responsável pela criação

da bomba foi Oppenheimer e não Einstein. Contudo, quando o nome próprio

‘Einstein’ está na posição de sujeito, nós enfatizamos a regra associada à

descrição auxiliar ‘o portador do nome “Einstein’”. A posição de sujeito só 353

Page 354: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

deixa de importar nesse aspecto quando a informação é mais detalhada. Se uma

pessoa dissesse: “Einstein foi o físico que dirigiu o projeto Manhattan, que

produziu a primeira bomba atômica, tendo nascido em Nova York em 1904 e

falecido de câncer em 1967”, nós não a corrigiríamos dizendo que Einstein não

foi o responsável pela invenção da bomba atômica; nós diríamos que a

pessoaestá realmente falando de Oppenheimer.

Um último argumento de Kripke é o que apela à circularidade: o nome

Einstein não pode ser explicado pela descrição ‘o criador da teoria da

relatividade’, pois o nome ‘teoria da relatividade’ é explicado pela descrição ‘a

teoria criada por Einstein’.1 Uma circularidade semelhante ele aponta na

explicação do nome próprio ‘Giuseppe Peano’. Muitos de nós associamos a esse

nome a descrição ‘o descobridor dos axiomas da aritmética’. Trata-se, porém, de

um engano. Peano apenas expôs os axiomas, adicionando ao seu texto uma nota

na qual atribuía corretamente o seu descobrimento a Dedekind. O erro, porém,

perpetuou-se. Uma solução, escreve Kripke, seria dizer que Peano é ‘a pessoa

que a maioria dos experts referem como Peano’. Mas essa solução seria circular.

Como identificar os experts em Peano? Suponhamos que eles sejam os

matemáticos. Mas pode ser que a maioria dos matemáticos erroneamente associe

ao nome Peano à descrição ‘o descobridor dos axiomas da aritmética’.

Poderíamos então sugerir o recurso à descrição ‘a pessoa a qual a maioria dos

Peano-experts refere pelo nome Peano’. Mas essa solução seria também circular,

pois para identificar os Peano-experts já precisamos ter identificado Peano, já

precisamos saber quem é Peano.2

Essas objeções de circularidade parecem-me claramente equívocas e me

pergunto se alguma vez alguém já as levou realmente a sério. Por certo é

1 Kripke: Naming and Necessity, p. 82.2 Kripke: Naming and Necessity, pp. 84-5, 88-9. O exemplo é elaborado por Scott Soames em seu livro Philosophical Analysis in the Twentieth Century, vol. 2, p. 361.

354

Page 355: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

possível que alguém aprenda a teoria da relatividade na independência de

qualquer referência ao nome de Einstein. E quanto a Peano, se tudo o que penso

saber dele é que foi o descobridor dos axiomas da aritmética, essa é uma

descrição falsa, mas convergente. Posso digitar “O descobridor dos axiomas da

aritmética” no Google e descobrir que errei. Mas por ser convergente a

descrição já implica coisas verdadeiras, como o fato de que Peano foi um

famoso matemático italiano. Assim, percebido o erro eu recomeço orientando-

me por elas. Para aprender mais posso buscar uma enciclopédia ou um livro de

história da matemática. Lá eu encontrarei informações mais detalhadas,

oferecidas pelos matemáticos. De posse dessas informações e da bibliografia

dada eu chegarei a textos específicos sobre Peano, escritos por especialistas em

Peano, e mesmo aos próprios textos de Peano. O processo não é circular, mas de

ascenção em báscula: de informações preliminares sobre x à aquisição de

informações adicionais sobre x, e com base nessas informações adicionais sobre

x, outra vez rumo a uma adição ainda maior de informações sobre x. Claro que a

adição de informações já contém as informações anteriores, o que pode dar uma

impressão de circularidade. Mas isso não é suficiente para tornar o processo

circular, uma vez que é o conhecimento adicionado e não somente o

conhecimento preservado, aquilo que nos leva a adiquirir novo conhecimento.

Isso se aplica, é claro, também ao procedimento que Kripke tenta

exemplificar. É verdade que se para saber quem é o especialista em Peano

precisássemos já saber tudo o que o especialista em Peano sabe sobre Peano,

precisaríamos saber quem é Peano para saber quem é o especialista em Peano e

cairíamos em circularidade. Mas como para saber quem é o especialista em

Peano precisamos no máximo saber algumas generalidades sobre Peano (um

grande matemático do século XIX etc.), e para saber quem é Peano o

especialista em Peano precisa saber muito mais coisas sobre Peano do que nós

sabemos, nós caímos, não em uma circularidade, mas no que já chamamos de 355

Page 356: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

movimento bascular ascendente, cada vez mais detalhador de informações sobre

o objeto referido. Você mesmo poderá comprovar o processo na próxima vez

que fizer uma pesquisa no Google.

Respostas aos contra-exemplos de Donnellan

Além das objeções feitas por Kripke precisam ser lembrados alguns contra-

exemplos de Keith Donnellan apresentados em um importante artigo de 1970,

onde ele defendeu uma teoria causal-histórica semelhante a de Kripke. O

primeiro contra-exemplo é sobre um estudante que conversou em uma festa com

uma pessoa que ele acreditava ser um grande filósofo, J.L. Aston-Martin, o autor

de “Outros Corpos”.1 Embora a pessoa coincida em se chamar Aston-Martin, ela

apenas se faz passar pelo filósofo. Donellan nota que a frase (a) “Na noite

passada eu falei com Aston-Martin”, é falsa, pois associa o nome ‘Aston-

Martin’ à descrição

D1: o filósofo autor de “Outros Corpos”,

enquanto as frases (b) “No final da festa Robinson tropeçou nos pés de Aston-

Martin e deu com a cara no chão” e (c) “Fui quase o último a sair, só Aston-

Martin e Robinson ficaram”, são verdadeiras, pois vêm associadas à descrição

D2: o homem chamado Aston-Martin que encontrei na festa.

A objeção é que a teoria do feixe de descrições não explica essa alteração: tanto

em (a) quanto em (b) e (c) o nome Aston-Martin deveria vir associado ao

mesmo feixe de descrições que inclui ‘o autor de “Outros Corpos”’.

1 Keith Donellan: “Proper Names and Identifying Descriptons”, p. 364.

356

Page 357: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Penso que essa objeção possa ser eficazmente respondida pela aplicação a

nomes próprios de uma distinção similar à introduzida pelo próprio Donnellan

entre usos atributivo e referencial de descrições definidas. No caso das

descrições definidas, o uso atributivo era aquele vinculado ao conteúdo da

descrição, enquanto o uso referencial era vinculado a função indexical da

descrição. No caso do nome próprio, o equivalente ao uso atributivo é aquele

que se baseia nas descrições da sua regra de identificação. Esse é o caso do

nome ‘Aston-Martin’ na frase (a), pois a descrição ‘o autor de Outros Corpos’

exprime parte da regra de identificação do objeto. No caso equivalente ao uso

referencial para o nome próprio o elemento indexical e o contexto têm papel

decisivo, de modo que a regra de identificação usual deixa de importar. Esse é o

caso do uso do nome ‘Aston-Martin’ nos casos (b) e (c). Aqui o que importa é a

descrição adventícia D2 no lugar da qual comparece o nome próprio. Como tal

ela é provisória e dependente da situação conversacional na qual foi adquirida.

O que o falante nesses casos pretende é apenas identificar um certo participante

da festa utilizando o nome pelo qual ele foi chamado, não tendo qualquer

importância se esse é o nome verdadeiro da pessoa que lá se encontrava ou não.

Outro contra-exemplo de Donnellan é o de uma pessoa A que, usando óculos

especiais, identifica em uma tela dois quadrados idênticos, colocados um em

cima do outro. Ao quadrado que está em cima ela chama de Alfa, ao quadrado

embaixo ela chama de Beta. A única descrição que ela tem para a identificação

de Alfa é

(a) o quadrado que está em cima.

Acontece que, sem que a pessoa saiba, ela está usando óculos que invertem a

posição dos quadrados, de modo que o quadrado Alfa é o que está embaixo.

Donnellan pensa ter assim demonstrado que o quadrado ao qual a pessoa se 357

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refere é o quadrado Alfa (o de baixo), mesmo associando à palavra a descrição

errônea (a).

Como resposta, sugiro que a pessoa só se refere ao quadrado Alfa porque,

embora associando a Alfa uma descrição errônea, trata-se de uma descrição

convergente, corrigível para

(b) ˹O quadrado˺ (que A vê como o) ˹que está em cima˺.

Essa correção, por sua vez, é parte da verdadeira descrição identificadora do

quadrado Alfa, que é:

(c): ˹o quadrado˺ (que A vê como o) ˹que está em cima˺ (quando na verdade é o que está embaixo, uma vez que A está usando óculos que invertem a posição das imagens),

que o observador A desconhece. Essa última descrição é conhecida de outros

usuários da linguagem, de nomeadores bem informados, que podemos chamar

de B. Esses usuários dirão que A se refere ao quadrado Alfa que está embaixo

por disporem da informação dada pela descrição (c) que expressa o mais

completo modo de apresentação do objeto. Em contrapartida, de posse das

informações oferecidas pelos nomeadores B, que incluem a descrição (c), A

concordará em revisar a descrição (a) como parte de (b), referente apenas ao

modo como A vê, que por sua vez é parte da descrição (c). Embora literalmente

falsa, a descrição (a) é útil à referência porque reinterpretável como parte de

uma descrição identificadora correta mais completa.

Um último contra-exemplo de Donnellan é o de uma criança que já foi para a

cama e que é acordada brevemente pelos pais.1 Tom, um velho amigo da família,

chegou de visita e gostaria de ver o filho mais jovem, que ainda não conhece. A

1 Keith Donnellan: “Proper Names and Identifying Descriptions”, p. 364. 358

Page 359: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

mãe diz “Esse é Tom”. Tom diz “Oi jovem”. No dia seguinte a criança acorda e

tudo o que ela sabe dizer de Tom é que ele é ‘uma pessoa simpática’. Ela sequer

se recorda de ter sido acordada na noite anterior. Mas ela se refere a Tom sem o

auxílio de descrições definidas. Para W.G. Lycan essa é uma prova contundente

da teoria causal dos nomes: a criança é capaz de se referir a Tom apenas através

de uma transferência causal demonstrativa.1

Examinando esse exemplo Brian Loar considerou que bem pode ser que a

linguagem aqui nos engane, como no caso em que uma pessoa percebe de que

faltam convidados para o jantar, mas não se recorda quem; somos intitulados a

dizer que ela se refere a quem não compareceu, mas a palavra ‘refere’ não

parece estar sendo usada aqui no sentido apropriado.2 Com efeito, se a criança

de nada se recorda ao dizer que Tom é simpático, não podemos sequer distinguir

o seu proferimento da mera expressão da vontade de agradar os pais.

Contudo, podemos ainda admitir – para o bem do exemplo – que a criança

possui cognições semânticas não-reflexivas relacionadas ao seu encontro com

Tom, que lhe permitem responder que ele é simpático. Nesse caso há um

elemento cognitivo convergente, que nos permite dizer que a criança logra

introduzir a palavra na situação dialógica referindo-se a Tom. Mas ainda aqui

trata-se de uma referência incompleta, de um limitado e insuficiente gesto em

direção à referência. Como todos sabem a quem a criança está se referindo, o

exemplo pode produzir a falsa impressão de que a criança é capaz de fazer uma

referência identificadora completa a Tom. Mas isso é ilusório. Ela não saberia

reconhecer Tom se o encontrasse. Se ela dissesse ‘Tom é uma pessoa simpática’

a estranhos que desconhecessem as circunstâncias, a lembrança do testemunho

seria perdida e ninguém seria capaz de dizer de quem se trata. Por conseguinte, o

proferimento se refere efetivamente a Tom, não para o falante, mas para os

1 W.G. Lycan: Philosophy of Language: A Contemporary Introduction, pp. 46-7.2 B. Loar:: “The Semantics of Singular Terms”, p. 367.

359

Page 360: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

intérpretes capazes de completar a referência, que no caso são os pais da criança.

Afinal, não só eles recordam que a criança foi introduzida a Tom e pressupõem

que é por causa disso que ela agora diz que Tom é simpático, mas são eles que

realmente sabem quem é Tom e que são capazes de reidentificar a pessoa a

quem as palavras se referem. E isso acontece porque eles conhecem a regra de

identificação para o nome ‘Tom’, a qual pode ser descritiva de sua aparência,

dos seus traços psicológicos, do que ele faz, de onde ele vive e de onde ele veio.

Eles também conhecem descrições auxiliares relevantes, concernentes às

relações de Tom com a família. Como o proferimento da criança acontece em

um espaço público em que esses intérpretes privilegiados estão presentes, a

intenção da criança de se referir a alguma pessoa simpática com a qual esteve

em contato é complementada pela identificação referencial dessa pessoa feita

pelos outros participantes da situação conversacional, o que pode produzir a

ilusão de que a criança produziu uma referência completa.

Resposta à objeção de magia epistêmica

Há, finalmente, uma objeção genérica levantada por filósofos externalistas como

Michael Devitt, segundo a qual existe alguma coisa mágica no descritivismo.

Segundo essa objeção, o descritivismo atribui à mente uma propriedade

extraordinária, que é a de permitir aos seus conteúdos se relacionarem como que

por encanto às coisas fora dela. Como escreve Devitt em sua crítica a Searle:

Como poderia algo dentro da cabeça determinar a referência, que é uma relação com coisas particulares fora da cabeça? ...supor que o pensamento de alguém pode alcançar objetos particulares fora da mente é sustentar teorias mágicas da referência e intencionalidade. 1

1 Michael Devitt: “Meanings Aren’t Just in the Head”, p. 83360

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Como pode uma coisa dentro da cabeça se referir a uma coisa fora da cabeça? Searle não vê problema: simplesmente acontece. Essa é a verdadeira mágica.2

Frente a isso um cognitivista poderia redarguir que a sua tese de que as

palavras se ligam aos objetos devido a idéias ou representações que eles

veiculam é um lugar comum perfeitamente natural e intuitivo. É verdade que,

enquanto filósofos, somos também conduzidos ao tradicional e até hoje

irresolvido problema da percepção, a saber, o problema de como podemos ir

além do véu da percepção, posto que tudo o que pode ser dado à experiência são

impressões sensíveis. Essa é uma questão em aberto, que o fenomenalismo

discutido na introdução desse livro, segundo o qual podemos “constituir” a

realidade externa com base em sensações possíveis efetivamente

experienciáveis, oferece uma esperança de resposta. Aqui há um mistério que

parece demandar mágica para ser resolvido. Mas a mágica pela qual, através de

representações mentais, podemos ter acesso a um mundo físico exterior é,

podemos apostar, meramente aparente. Esse é, afinal, um problema filosófico

central. Muito mais extrema, porém, parece-me a feitiçaria do referencialismo

direto, segundo o qual as próprias palavras, sem intermediação cognitiva, têm o

poder de alcançar os seus objetos de maneira a se referirem a eles. É verdade

que Devitt defende uma forma matizada de referencialismo, segundo a qual

redes causais parcialmente cognitivas são responsáveis pela referência. Mas

ainda assim, se ele não quiser recair no cognitivismo, ele precisa ignorar

qualquer força explicativa originada do conteúdo dessas cognições. Mas então a

pergunta retorna: como podem essas cadeias causais, na independência de seu

conteúdo, ser capazes de explicar a referência às coisas particulares que as

originaram? Isso nos faz suspeitar que as considerações de Devitt sejam

2 Michael Devitt: “Meanings Aren’t Just in the Head”, p. 91361

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psicologicamente explicáveis como uma projeção inconsciente da negação do

próprio problema do referencialismo no campo inimigo do cognitivismo.

Reformulações russellianas

Vale aqui notar que as regras meta-identificadoras permitem uma aplicação

sistemática do procedimento da teoria das descrições à teoria metadescritivista

dos nomes próprios, o que pode ser útil no objetivo de exibir a estrutura lógica

da regra de identificação. Considere, por exemplo, a sentença (i) “Aristóteles

teve de abandonar Atenas”. Tendo em mente a aplicação de RMI1 na formulação

da regra de identificação para ‘Aristóteles’, podemos parafrasear essa regra

através do método proposto por Russell em sua teoria das descrições como:

1. Há ao menos um x que satisfaz suficientemente a condição de ter nascido em Estagira em 384 a.C., vivido em Atenas e morrido em Chalcis em 322 a.C. e/ou a condição de ter sido o autor das grandes doutrinas do opus aristotélico.

2. Não existe mais de um x para o qual vale o que foi enunciado em 1.3. Este x se chama Aristóteles e teve de abandonar Atenas.

A condição 1 inclui a idéia de suficiência, a condição 2 expõe a idéia de

univocidade, e a condição 3 associa o que foi univocamente delimitado ao nome

‘Aristóteles’, adicionando a predicação de (i). Para formular a sentença (i)

simbolicamente, estabelecemos que N = ‘...é a pessoa de nome ‘Aristóteles’’, A

= ‘...satisfaz suficientemente a condição de ter nascido em Estagira em 384 a.C.,

tendo vivido em Atenas e morrido em Chalcis em 322 a.C.’ (regra localizadora),

B = ‘...satisfaz suficientemente a condição de ter sido o autor das grandes

doutrinas do corpus aristotélico’ (regra caracterizadora), e T = ‘...teve de

abandonar Atenas’. Segue-se a formulação:

Ex ((Ax v Bx) & (y) ((Ay v By) → y = x) & Nx & Tx)362

Page 363: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Com isso é requerida a existência, a unicidade e a suficiência, que aqui

entram como parte dos predicados que expressam as propriedades

identificadoras.

O mesmo, podemos supor, pode ser feito com regras de identificação

resultantes da aplicação de RMI2. Seja como for, o que essas breves

considerações sugerem é que o verdadeiro serviço da teoria das descrições seja o

de exibir a estrutura lógica das regras de identificação.

Respondendo aos enigmas fregeanos da referência

Tendo como pressuposto a compatibilização de “Frege” com “Russell” sugerida

no capítulo 6 e a recém exposta acomodação da teoria das descrições de Russell

à versão metadescritivista da teoria do feixe, quero agora abordar os quatro

enigmas da referência. Esses enigmas – que são uma velha pedra no sapato das

teorias referencialistas – permitem uma explicação metadescritivista bastante

razoável.

1. Referência a inexistentes

Considere a sentença “Vulcano é quente”.1 O nome ‘Vulcano’ foi dado por

Leverrier no século XIX para o pequeno planeta que deveria orbitar entre

Mercúrio e o Sol à cerca de 21 milhões de quilômetros deste último, como uma

maneira de explicar as variações do periélio de Mercúrio. Há, pois, uma regra de

identificação para Mercúrio, em essência uma regra de localização (para

simplificar, desconsidero a massa provável do planeta). Esse é também o sentido

do nome ‘Vulcano’, o seu modo de apresentação. Contudo, é hoje considerado

1 Quero evitar frases com nomes ficcionais como “Rumpelstiltskin era ambicioso”, pois elas não foram feitas para ser eventualmente aplicadas ao mundo real: dizer que Rumpelstiltskin não existe (no mundo real) faz pouco sentido. O que importa é que ela exista no conto de fadas.

363

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certo que a regra de localização para o nome próprio ‘Vulcano’ não se aplica ao

mundo real, primeiro foram inúmeras as vezes em que se tentou localizar esse

planeta, segundo porque a variação do periélio de Mercúrio é hoje explicada

pela teoria geral da relatividade. Devido a isso, a regra de aplicação do

predicado ‘...é quente’ também não se aplica: pois a aplicação de uma regra de

aplicação depende da prévia aplicação da regra de identificação para o termo

singular (da localização e/ou caracterização do objeto de predicação). A frase

“Vulcano é quente” é falsa, se quisermos, pois o predicado não se aplica pelo

fato do nome não se aplicar. A regra de verificação para essa frase também não

se aplica, pelas mesmas razões, também por isso tornando-a falsa. Como o

sentido do nome próprio ‘Vulcano’ é dado por seu modo de apresentação, que é

a regra de identificação, o sentido continua existindo, o mesmo se dando com o

sentido do predicado, constituído de sua regra de aplicação. Por isso também a

sentença não deixa de ter sentido, pois esse último se constitui na regra de

verificação constituída pela combinação da regra de identificação do nome com

a regra de aplicação do predicado, independentemente dessa combinação ser

aplicável ou não. Não há aqui enigma algum, pois nenhum desses

procedimentos nos compromete com a existência de Vulcano.

A formulação russelliana nos conduz à mesma conclusão. A sentença

“Vulcano é quente” fica sendo:

Existe exatamente um x que satisfaz suficientemente a condição de ser um planeta descrito por Leverrier como orbitando o sol entre Mercúrio e esse último e esse x é quente.

Chamando de V o predicado ‘...é um planeta do sistema solar denominado

‘Vulcano’ por Leverrier no século XIX, devendo ser encontrado entre Mercúrio

e o Sol, a cerca de 2,1 milhões de Km do último”, e chamando de Q o predicado

364

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‘...é quente’, temos a seguinte apresentação simbólica da regra de identificação e

de sua articulação com a regra de aplicação do predicado:

(Ex) (Vx & (y) (Vy → y = x) & Qx)

Exige-se aqui a efetiva aplicabilidade da regra de aplicação do predicado

exprimindo uma propriedade fundamental que devem identificar um único

objeto. Essa exigência não é satisfeita, o que faz com que a regra de aplicação

do predicado ‘...é quente’ também não se aplique. Da não aplicação da primeira

regra segue-se já que a sentença “Vulcano é quente” é falsa, posto que ele não

existe e que sendo o primeiro conjunto falso a conjunção se torna como um todo

falsa. A formulação russeliana, bem entendida, é apenas uma versão formalizada

da formulação neo-fregeana acima proposta.

2. Existenciais negativos

Considere agora a sentença “Vulcano não existe”. Interpretada como “Não é o

caso que Vulcano existe”, podemos simbolizá-la a partir de MRI1 como:

~(Ex) (Vx & (y) (Vy → y = x))

Essa sentença tem um sentido, que reside na regra de identificação para

Vulcano representada pela conjunção “Vx & (y) (Vy → y = x)”, cuja

aplicabilidade é negada. Dizer que Vulcano existe é simplesmente dizer que essa

regra de identificação é aplicável. Essa é uma sentença falsa, posto que tal regra

de identificação é inaplicável. A sentença acima é, por sua vez, verdadeira, pois

é a negação de uma conjunção falsa. Mas com ela também não nos

comprometemos com a existência de Vulcano, pois tudo o que fazemos é negar

a aplicabilidade das regras-descrições fundamentais dos predicados A e/ou B.365

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3. Sentenças de identidade.

Outro enigma é o da necessidade indesejável em frases de identidade como

“Cicero é Tulio”. Como explicar que essa frase possa ser informativa? Se o

nome à esquerda de ‘...é (o mesmo que)...’ exprime a mesma regra de

identificação que o da direita, e se essas regras são designadores rígidos, como

concedemos, então esses nomes deveriam significar a mesma coisa e a frase de

identidade deveria ser uma tautologia analítica como “Cicero é Cicero”.

Quero abordar esse problema chamando atenção para a distribuição de

descrições associadas a cada nome próprio, a saber, o fato de que quando temos

dois nomes próprios homônimos, certas descrições são mais freqüentemente

associadas a um homônimo do que a outro, tendendo, pois, a distribuir-se

diversamente nas mentes dos usuários de um e de outro nome próprio.

Vejamos antes o caso mais simples, que diz respeito à descrição contida na

própria expressão do nome. Considere o caso de Cicero, cujo nome completo era

‘Marco Tulio Cicero’. Um falante pode proferir o nome ‘Tulio’ conhecendo as

regras-descrições fundamentais e auxiliares, mas sem conhecer a regra-descrição

‘o portador do nome ‘Cicero’’ ou a regra-descrição ‘o portador do nome

‘Marco’’. Mas ele não poderá desconhecer que Tulio é ‘o portador do nome

‘Tulio’’, que pare ele torna-se uma descrição necessária. Por sua vez, essa

descrição poderá ser perfeitamente desconhecida por alguém que profere o nome

‘Cicero’. Por isso, por muitas vezes faltar o conhecimento de que descrições

auxiliares de símbolos de nomes próprios estão ligadas ao que queremos dizer

com o nome diversamente simbolizado, o proferimento “Cicero é Tulio” pode

ser informativo. Ao ouvirmos “Cicero é Túlio” ficamos sabendo que ao portador

do nome ‘Tulio” o nome ‘Cicero’ também se aplica.

Geralmente o caso não é tão simples. Há nomes que contém diferenças nas

regras de conexão com o objeto que vão além da diferença na mera regra 366

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auxiliar de expressão simbólica do nome. A diferença também pode incluir

partes da regra de identificação ou definicional. Esse é o caso do enunciado de

identidade “George Eliot é Mary Evans”. A escritora inglesa Mary Evans

decidiu adotar um nome masculino, em parte para proteger a sua vida pessoal,

que não correspondia à moral vitoriana da época. Assim, há um grupo (i) de

pessoas, o grande público, que conhecia o essencial de (b), a regra-descrição

caracterizadora ‘o autor de Middlemarch e outras finas obras literárias’. Esse

grupo costumava não conhecer a regra-descrição ‘a pessoa cujo verdadeiro

nome é Mary Evans’, geralmente não associada ao nome ‘George Eliot’. Há

também pessoas de um grupo (ii), que conheceram fortuitamente Mary Evans

como Mary Evans. Elas geral elas sabem um pouco da regra-descrição

caracterizadora no que diz respeito a traços psicológicos e físicos da Mary

Evans, além de pequenos segmentos de sua carreira espaço-temporal. Mas elas

não costumam conhecer a descrição ‘a escritora cujo pseudônimo literário é

‘George Eliot’’. Há, por fim, pessoas de um grupo (iii), que inclui parentes

próximos, amigos, amantes e maridos de Mary Evans. Essas pessoas a

conheciam bem e sabiam que Mary Evans era George Eliot. Essas pessoas

conheciam tanto as regras de conexão conhecidas pelas pessoas do grupo (i)

como as do grupo (ii), de modo que para elas a frase ‘George Eliot é Mary

Evans’ exprime uma tautologia. Mas o mesmo não acontece com as pessoas dos

grupos (i) e (ii), entre as quais a distribuição do conhecimento de regras-

descrições sobre Mary Evans e sobre George Eliot diverge bastante.

As diferenças de sentido de expressões simbólicas diversas de um mesmo

termo singular são, sob esse prisma, uma questão relativa a diferentes

distribuições das descrições do feixe no que concerne ao que é

disposicionalmente intencionado pelos usuários do nome. Contudo, se as

diversas expressões simbólicas dos nomes se referirem realmente ao mesmo

objeto, então os seus significados referenciais completos devem ser os mesmos, 367

Page 368: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

variando apenas a distribuição na intensão usual dos falantes, e com isso o

sentido intencionado que eles contextualmente lhe dão.

Considero agora a mais famosa frase da filosofia analítica: “A estrela da

manhã é a estrela da tarde”. Em geral sabemos que essas duas descrições se

referem a uma mesma coisa, o planeta Vênus. Mas enquanto um falante que usa

‘a estrela da manhã’ para Vênus necessariamente sabe que Vênus é ‘a estrela da

manhã’, ele não precisa necessariamente saber que ele é ‘a estrela da tarde’ e

vice-versa. A regra de conexão com o objeto que a pessoa deve ter em mente ao

usar uma descrição é diferente da regra de conexão que ela deve ter em mente ao

usar a outra, do que resultam as diferenças no sentido das descrições apontadas

por Frege.

Esses pontos também podem ser refletidos em apresentações russellianas das

sentenças. Restringindo-me apenas ao primeiro exemplo, supondo que tanto o

nome ‘Tulio’ quanto o nome ‘Cicero’ abreviem a mesma regra disjuntiva

expressa pelos predicados A v B, estando T no lugar de Tulio e C no lugar de

Cicero, a sentença “Tulio é Cicero” fica sendo:

(Ex) ((Ax v Bx) & (y) ((Ax v Bx) → y = x)) & Tx & Cx

Como Tx e Cz são predicações diferentes que podem ser diversamente

sabidas, “Tulio é Cicero” pode ser uma sentença informativa para uns embora

tautológica para outros.

(iii) Substitutividade. O quarto enigma é o da intersubstitutividade salva

veritate em contextos opacos. Compare os enunciados “Maria acredita que Tulio

é Tulio” com “Maria acredita que Tulio é Cicero”. O fato de o primeiro

enunciado ser verdadeiro não implica na verdade do segundo. Mas por que, se

Tulio é a mesma pessoa que Cicero? A resposta está no fato de que Maria pode 368

Page 369: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

conhecer a regra de identificação para um desses nomes próprios sem saber que

ela também é a regra de identificação do outro nome próprio, pois ela pode não

saber que a regra de conexão auxiliar do símbolo de um dos nomes pertence ao

feixe de descrições fundamentado pela regra de identificação do outro nome. É

isso o que torna a crença na identidade de Tulio com Cicero a crença em um

conteúdo proposicional diferente do conteúdo da crença na identidade de Túlio

com Tulio.

Supondo que Maria tenha conhecimento da regra de identificação para

Tulio., se simbolizarmos ‘A v B’ = ‘Nascido em 105 a.C em Arpino e executado

em 43 a.C. em Formia... e/ou um grande orador, político, filósofo e escritor

romano, autor das Catilinárias...’, ‘T’ = ‘é chamado de Tulio’, ‘C’ = ‘é chamado

de Cicero’, podemos usar a teoria das descrições de modo a analisar a sentença

(i) “Maria Crê que Tulio é Tulio” como:

Maria crê que (Ex) ((Ax v Bx) & (y) ((Ay v By) → y = x) & Tx & Tx)

Essa sentença é evidentemente tautológica. Considere agora a sentença (b)

“Maria crê que Tulio é Cicero”. Ela fica sendo:

Maria crê que (Ex) ((Ax v Bx) & (y) ((Ay v By) → y = x) & Tx & Cx)

Esta, contudo, é uma sentença cujo conteúdo costuma ser informativo. Pois se

Maria não souber que z = x, isto é, que C e T se aplicam ao mesmo objeto, ela

não saberá que esses nomes próprios são intersubstituíveis salva veritate.

Conclusão

Como sempre acontece em filosofia, mesmo que solucionemos os problemas de

agora, novos problemas esperam-nos sempre na próxima curva do caminho.

369

Page 370: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Contudo, um pouco de reflexão sobre a maneira de ver aqui proposta mostra que

ela possui coerência interna suficiente para se tornar não só viável como

desejável. Para demonstrar que houve algum progresso, suponha que RMI2 seja

implementada em um programa de computador, e que sejam introduzidos no

programa nomes próprios junto com as informações necessárias sobre as suas

descrições fundamentais, histórias causais nível de satisfação das descrições etc.

Nesse caso parece prima facie concebível que o computador seria capaz nos nos

dizer com boa margem de segurança se o nome próprio é ou não aplicável. Mas

o mesmo não me parece sequer pensável para as teorias descritivistas

tradicionais e menos ainda para as vagas sugestões causais-históricas.

PARTE III: TERMOS GERAIS

370

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10. INTRODUÇÃO: DESCRITIVISMO VERSUS

CAUSALISMO

Consideremos agora os termos gerais. Se os limitarmos a palavras-conceitos,

eles incluem os assim chamados nomes contáveis como ‘tigre’ e ‘cadeira’,

nomes de massa, como ‘água’ e ‘ouro’, nomes de espécies naturais como

‘átomo’, ‘tigre’, ‘água’ e ‘ouro’, nomes de espécies sociais como ‘ditador’ e

‘filósofo’, nomes de artefatos, como ‘cadeira’ e ‘computador’, e ainda outros.

Também aqui há uma disputa entre a concepção descritivista e a causal-

histórica. Do mesmo modo que no caso dos termos singulares quero, nesse e no

371

Page 372: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

próximo capítulo, argumentar a favor de uma concepção dos termos gerais que

apesar de admitir um elemento causal é predominantemente descritivista.

Descritivismo

A teoria descritivista dos termos gerais é análoga à teoria descritivista dos

nomes próprios. Por isso ela está em consonância com a semântica fregeana e

foi tradicionalmente defendida por filósofos como John Locke, J.S, Mill, C.I.

Lewis, Rudolph Carnap e Carl Hempel, sendo ainda hoje por vezes revisitada

em novas versões1. Eis uma versão mais ou menos standard do descritivismo

tradicional. Um termo geral está no lugar de uma descrição ou de um feixe de

descrições que exprimem o seu sentido, intensão, conotação, conceito ou regra

de aplicação. Esse feixe de descrições acaba por definir aquilo que se pode

querer dizer em termos representativos ao se aplicar o termo geral. Basta que um

número suficiente de descrições constitutivas do sentido do termo geral seja

satisfeito por ao menos um objeto para que o termo encontre aplicação. Assim,

um termo geral como ‘tigre’ poderia ser definido por meio de uma complexa

descrição como ‘grande felino asiático carnívoro e quadrúpede, com pelo

amarelo, listas escuras transversais e focinho branco’. Se for encontrado algo

que satisfaz suficientemente as propriedades expressas pela descrição, nós o

identificaremos como sendo um tigre.

Um problema é que nem todo termo geral pode ser definido através de

descrições. Pois as descrições que definem um termo geral também contém

outros termos gerais, que por sua vez demandarão novas definições. Essas novas

definições não poderão recorrer totalmente ao que já foi definido, sob pena de

circularidade. Por isso, se todos os termos gerais fossem definidos através de

descrições, nós cairíamos em um regresso ao infinito, daí resultando que nada

1 Ver, por exemplo, D.K. Lewis “How to Define Theoretical Terms” e A.D. Smith: “Natural Kind Terms: a New-Lockean Theory”.

372

Page 373: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

poderia ser completamente definido. A solução geralmente aceita pelos

descritivistas é a de que pelo menos alguns termos gerais devem ser primitivos,

não sendo analisáveis em termos de descrições.1 Palavras como ‘vermelho’ e

‘redondo’ são candidatos a esse papel.

Teorias descritivistas dos termos gerais têm a vantagem de explicar como é

possível que dois termos gerais com a mesma extensão possuam sentidos

diferentes. Considere as frases:

a. Todo animal que tem coração tem coração.b. Todo animal que tem coração tem rins.

Suponhamos que o sentido do termo geral fosse determinado por sua

extensão. Como a extensão do termo geral predicativo ‘animais que têm

coração’ é a mesma do termo ‘animais que têm rins’, as sentenças (a) e (b)

deveriam ter o mesmo sentido. Mas esse não é o caso: enquanto (a) é uma frase

tautológica, (b) é uma frase informativa, capaz de nos dizer alguma coisa sobre

o mundo. Além disso (a) e (b) têm sentidos claramente diferentes, exprimem

pensamentos-f diferentes. A teoria descritivista dos termos gerais explica de

modo contundente a razão dessas diferenças de modo análogo aquele pelo qual a

teoria descritivista fregeana dos termos singulares explicava o enigma da

identidade: é que o termo ‘coração’ abrevia a descrição ‘órgão que bombeia o

sangue’, enquanto o termo ‘rim’ abrevia a descrição ‘órgão que depura o

sangue’. Essas descrições exprimem diferentes sentidos, modos de apresentação,

regras de aplicação constitutivas de conteúdos conceituais, as quais têm

diferentes critérios de aplicação, mesmo que a mesma classe extensional de

objetos a satisfaça. Esses critérios são em um caso o órgão que bombeia o

sangue e no outro caso o órgão que depura o sangue, ambos se encontrando

presentes em cada um dos seres vivos constitutivos da extensão dos respectivos 1 Ver C. Hempel: Philosophy of Natural Science, cap. 7.

373

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conceitos, daí resultando que as duas regras de aplicação são satisfeitas por

órgãos diferentes, ainda que ambos presentes em cada ser vivo pertencente a

uma mesma classe.

Problemas com o descritivismo

Tal como aconteceu com a teoria descritivista dos nomes próprios, a teoria

descritivista dos termos gerais foi atacada por Kripke e também por Putnam,

embora com menor sucesso. As objeções costumam ser análogas às que foram

feitas às teorias descritivistas dos nomes próprios. Quero discutir apenas duas

delas: a objeção epistêmica da necessidade indesejada e a objeção semântica da

ignorância e do erro, mostrando que há respostas searleanas a elas.

Comecemos com a objeção de necessidade indesejada. Considerando o

exemplo mais citado, parece que as pessoas entendem geralmente por ‘tigre’

algo que satisfaz à seguinte descrição:

Dt = grande e feroz felino asiático carnívoro e quadrúpede com pelo amarelo, listas escuras transversais e focinho branco.

Segundo a objeção da necessidade indesejada, se a teoria descritivista é

correta, então a proposição “Tigre = Dt” deve ser analítica; ou seja, tigres devem

satisfazer Dt necessariamente. Mas não é isso o que acontece. Afinal, em um

mundo possível poderíamos encontrar animais que satisfazem todas as

propriedades descritas em Dt, mas que não se cruzem com os tigres já

conhecidos possuindo um layout genético que os torne mais próximos dos

répteis do que dos felinos. Além disso, nenhuma propriedade descrita por Dt é

necessária: devido a falhas genéticas há tigres que nascem com cinco patas, há

tigres albinos etc. Pode até mesmo ser que nenhuma das propriedades descritas

por Dt se aplique. Podemos imaginar um mundo possível no qual a evolução

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acabe por produzir o vexame da espécie: tigres albinos e sem listas, herbívoros,

que andam sobre as patas traseiras e são mansos como gatos. Mesmo assim eles

poderiam ser tigres, digamos, por descenderem dos tigres e por ainda serem

capazes de se entrecruzar com os nossos tigres. Em princípio, ao menos, é

possível encontramos animais que não satisfazem a descrição, mas que são

tigres, e animais que a satisfazem, mas que não são tigres. Assim, diversamente

do que o descritivismo prevê, o termo geral ‘tigre’ não é sinônimo de Dt, e

“Tigre = Dt” não é uma proposição analítica nem necessária.

Podemos responder genericamente à objeção de necessidade indesejável

ampliando o domínio das descrições e admitindo que um número indefinido,

mas suficiente, de elementos descritivos, é o que basta para a aplicação do termo

geral. Restringindo-nos ao exemplo em questão, precisamos ampliar as

descrições para além das descrições de superfície expressas em Dt, estendendo-

as a fatos científicos, históricos e mesmo a eventuais estruturas subjacentes.

Afinal, nem por isso elas deixam de ser descrições. Assim, quando tigres não

têm as características descritas por Dt, basta adicionarmos a regra-descrição

mais usual para a definição de uma espécie, que nada mais é do que a exigência

de que os seus membros sejam entrecruzáveis sem com isso produzirem

descendentes estéreis. Assim, tomando-se como referência exemplares que

satisfazem a descrição de superfície Dt, a condição proposta para qualquer

exemplar pertencer à espécie tigre passa então a ser a de que ele satisfaça à

descrição zoológica Dte, de ser um animal entrecruzável com exemplares que

pertencem ou ao menos descendem das populações de animais que

historicamente foram chamados de tigres por satisfazerem a descrição de

superfície Dt, sem disso resultarem descendentes estéreis.1 Com isso podemos já 1 Não há uma definição única de espécie, reinando confusão entre zoólogos e principalmente botânicos (ver Dupré, J.: The Disorder of Things: Metaphysical Foudations of the Disunity of Science). Contudo, como já notamos, a vaguidade é uma propriedade pervasiva de nossos conceitos empíricos com a qual precisamos conviver. Eis porque, para os nossos propósitos, a caracterizações aproximativa apresentada no texto pode ser aceita como suficientemente

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explicar a possibilidade da existência de um exemplar que apresente todas as

propriedades descritas por Dt, mas que não é um tigre, pois ele não se cruza com

os demais. E também podemos explicar a existência de exemplares da espécie

tigre que não satisfazem nenhuma das propriedades de Dt. Basta que esses

exemplares sejam entrecruzáveis com animais que ao menos descendam dos que

historicamente possuíam as propriedades descritas por Dt.

Passemos agora a objeção da ignorância e do erro. Muitas vezes nada

sabemos acerca das descrições relevantes, ou então associamos ao termo

descrições errôneas. A maioria de nós, por exemplo, sabe que Olmos são

‘alguma espécie de árvore’, sem ter qualquer idéia de como essas árvores são.

Mesmo assim, ela pode ser capaz de fazer uso correto do termo. Exemplo usual

de associação com uma descrição errônea pode se dar com o termo geral

‘baleia’, ao qual alguns associam a descrição ‘grande peixe do mar’, o que é

estritamente falando incorreto. No entanto, mesmo tendo em mente uma

descrição como ‘grande peixe do mar’, essas pessoas conseguem usar a palavra

de modo a se referir a baleias.

Essas objeções de ignorância ou erro também podem ser respondidas, tal

como no caso dos nomes próprios, pela sugestão de que as descrições associadas

precisam ser ao menos convergentes. A maioria das pessoas só podem usar

corretamente a palavra ‘olmo’ em contextos comunicacionais pouco exigentes,

posto que tudo que elas sabem a respeito é que se trata de uma espécie de

árvore. Mas se a pessoa pensa que olmo é o nome de um duende que só aparece

após a meia-noite, a sua tentativa de inserir a palavra no discurso poderá ficar

seriamente comprometida. Da mesma forma, por saber que a baleia é um animal

grande que vive no mar, uma pessoa já pode usar o termo em contextos

adequados, mesmo supondo erroneamente que ele seja um peixe. Podemos

mesmo admitir que essa pessoa é capaz de usar referencialmente a palavra

correta.376

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‘baleia’, entendendo por isso que ela é capaz de inserir essa palavra

corretamente no discurso e ser corretamente entendida por outros que

disponham de conhecimento idêntico ou mais aperfeiçoado do conteúdo

descritivo da palavra. Contudo, isso não seria o caso se ela pensasse que a baleia

é o nome de uma montanha que lhe foi apontada quando viajou à Serra das

Cajazeiras. Parece óbvio que ao confundir um termo geral com um nome

próprio a pessoa não consegue mais fazer um uso referencial do termo.

Como nos casos dos nomes próprios, porém, as razões putativas contra o

descritivismo também aqui são reforçadas por uma versão da teoria causal capaz

de explicar a referência de termos gerais.

A teoria causal dos termos gerais

A teoria causal dos termos gerais sugerida por Kripke, Putnam e outros, é uma

extensão da teoria causal-histórica dos nomes próprios.1 Muitos termos gerais,

especialmente os de espécie natural, são para esses autores designadores rígidos,

referindo-se a uma mesma espécie de coisas em quaisquer mundos possíveis nos

quais ela exista.2 Por isso as descrições associadas aos termos gerais podem

variar e uma descrição como Dt não precisa se aplicar a qualquer caso.

Mas então como os termos gerais se aplicam? A resposta é que ao menos no

caso dos termos de espécies naturais, eles se aplicam por se referirem a uma

propriedade microestrutural subjacente – a uma essência que a ciência empírica

acaba por descobrir. Assim, o termo ‘tigre’ poderia se referir a uma certa

estrutura genética, o termo ‘ouro’ ao elemento de número atômico 79, o termo

1 Há na verdade uma variedade de versões da teoria. Versões standard são as de Kripke em Meaning and Necessity, cap. III e também a de Putnam em “The Meaning of ‘Meaning’”. Uma versão posterior, que apela para a fundamentação múltipla e reconhece a necessidade do apelo a descrições tipificadoras, foi proposta por Kim Sterelny em “Natural Kind Terms”.2 Ver Keith Donnellan: “Kripke and Putnam on Natural Kind Terms”. A espécie de coisa, por sua vez, não precisa ser entendida como uma entidade abstrata, mas como um ou outro indivíduo concreto que exemplifique as propriedades que lhe são constitutivas.

377

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água ao composto químico H2O. Com isso as propriedades usualmente

designadas pelas descrições de superfície associadas aos termos gerais passam à

categoria secundária daquilo que Putnam chamou de estereótipos.

E como chegamos a usar corretamente os termos gerais? Aqui também a

resposta costuma apelar para atos de batismo. Por causa do contato com tigres

reais as pessoas inventaram a palavra ‘tigre’. Essa palavra passa de falante para

falante em uma cadeia causal, acabando por chegar até nós. Isso sugere que em

princípio, ao menos, não precisaríamos conhecer as descrições dos estereótipos

associados ao termo, nem tomar consciência da constituição essencial de seu

referente.

Problemas com a teoria causal

Hoje é geralmente reconhecido que a teoria causal dos termos gerais encontra

dificuldades no mínimo tão sérias quanto as do descritivismo.1 Uma primeira é

que há um grande número de exceções. Considere o caso dos artefatos. Não os

explicamos por apelo a uma essência microestrutural subjacente, mas por

descrições de superfície.2 Assim, uma cadeira pode ser descrita como um banco

(um objeto feito para sentar) provido de encosto. E um lápis costuma ser

descrito como “um instrumento manuseável usado para escrever através de uma

ponta de material sólido, não devendo se diferenciar em demasia de certos

exemplares prototípicos bem conhecidos (tubos alongados de madeira contendo

uma vareta de grafite em sua extensão).

Mesmo no caso mais típico, que é o das espécies naturais, há exceções.

Embora seja aceitável que a água seja essencialmente constituída por moléculas

1 Stephen Schwartz: “General Terms and Mass Terms” (2006). Compare essa sua exposição com a esperançosa introdução de Naming, Necessity and Natural Kinds, livro editado por Schwartz trinta anos antes. 2 Ver Stephen P. Schwartz: “Putnam on Artifacts”.

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de H2O1, o conceito de espécie animal não parece incluir essencialmente o

layout genético, como supõe Kripke. Como já vimos, uma espécie pode ser

razoavelmente definida pela capacidade de entrecruzamento de seus exemplares

segundo fórmulas exprimíveis por descrições de superfície. O compartilhamento

de certo layout genético é um achado empírico posterior à definição. Ainda que

fosse muito estranho, se o layout genético se demonstrasse o mesmo, se não

houvesse entrecruzamento as espécies seriam consideradas distintas. Assim,

embora provido de valor explicativo, o layout genético é aqui um elemento

explicativo derivado e não há qualquer garantia de que ele seja possivelmente

capaz de deixar de sê-lo.

Outra complicação é que o batismo precisa vir acompanhado de algum

elemento descritivo que nos diga de que tipo de coisa se trata (o chamado qua-

problema), uma vez que cada coisa pertence simultaneamente a muitos tipos.2

Assim, se nomearmos um objeto como um exemplar de ‘tigre’ estamos

apontando também para um felino, um mamífero, um animal, um ser vivo, um

objeto físico. Mesmo admitindo que a aplicação do termo geral precise ter uma

ascendência causal, não parece possível que possamos explicar a referência dos

termos gerais prescindindo por completo de descrições de superfície.

1 Essa identificação já foi questionada. Mellor observa que porções de água podem conter isótopos (D.H. Mellor: “Natural Kinds”, p. 72) e Joe LaPorte nota que o deutério ou D2O difere molecularmente muito pouco da água, embora não sirva para beber e possa servir de material para a bomba nuclear (J. LaPorte: “Chemical Kind Terms Reference and the Discovery of the Essence”, pp. 116-121). Quanto a primeira objeção, é preciso notar que isótopos como D2O (água pesada) aparecem em quantidades mínimas na água, de modo que dizer que água não é H2O por conter isótopos é como dizer que o conceito de água também precisa incluir a consideração das impurezas normalmente presentes na água, o que seria absurdo. Melhor é definir a água pela molécula mais comum a uma porção líquida, se ela for de H2O, e definir deutério pela molécula mais comum a uma porção líquida, se ela for de D2O. A objeção de Laporte, por sua vez, apenas demonstra a importância das propriedades de superfície na definição do termo. As propriedades de superfície do deutério são muito diferentes das da água, sendo a expressão ‘água pesada’ apenas um apelido jocoso.2 Devitt M. & K. Sterelny: Language and Reality: An Introduction to the Philosophy of Language, p. 92.

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Teorias causais-históricas que introduzem um elemento descritivo inevitável

são chamadas de teorias mistas. Se as aceitarmos, porém, parece que estamos

expondo a nova maneira de ver aos mesmos problemas a que ela foi chamada a

resolver.

11. PUTNAM, A TERRA-GÊMEA E A FALÁCIA

EXTERNALISTA

A teoria causal dos termos de espécie natural está intimamante associada ao

externalismo semântico defendido por Hilary Putnam e outros. No que se segue

quero expor e criticar os argumentos externalistas desse autor ao mesmo tempo

que, por oposição, desenvolver uma explicação descritivista neo-fregeana e

internalista do significado do conceito de água, capaz de melhor responder aos

problemas por ele levantados. Para reforçar meu ponto de vista terminarei

fazendo uma rápida crítica ao externalismo de Tyler Burge e à idéia a meu ver

incorreta de que o enunciado “Água é H2O” é necessário e à posteriori.

380

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O externalismo semântico de Putnam

Putnam usa como instrumento para demonstra o seu externalismo semântico a

sua famosa fantasia da terra-gêmea.1 Considero essa fantasia

extraordinariamente original, engenhosa, estimulante e indubitavelmente falsa.

Acho mesmo difícil compreender como ela possa ter se afigurado convincente a

várias gerações de filósofos. A meu ver o argumento de Putnam não deve ser

tomado em sua face de valor. Eu o vejo como um exemplo de metafísica

revisionária, como os que encontramos de Berkeley a Bradley e MacTaggart.

Ele pode ser negativamente avaliado, como uma falácia resultante de um 1 Hilary Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’” (1975). O artigo é uma elaboração de “Meaning and Reference”, publicado dois anos antes. Outro famoso argumento de Putnam que favorece o externalismo é o do cérebro na cuba (ver seu livro Reason, Truth and History, cap. 1). Esse último argumento objetiva demonstrar que é falsa a hipótese cética de que talvez sejamos cérebros imersos em cubas, com os agregados neuronais aferentes e eferentes ligados a um supercomputador que produz em nós uma permanente alucinação de interação com o mundo externo. Segundo Kripke cérebros em cubas não podem pensar que são cérebros em cubas, e como podemos pensar que somos cérebros em cubas, não podemos ser cérebros em cubas. Ele sustenta esse argumento na idéia de que cérebros em cubas não podem ter pensamentos sobre coisas reais como água, cuba, cérebro... porque não podem ter qualquer contato causal com essas coisas reais ou com os seus componentes. Devo notar, porém, que o argumento de Putnam é controverso. A idéia a ele subjacente é a de que cérebros na cuba não podem ter pensamentos sobre coisas reais como árvore, água, cuba, cérebro... porque eles não têm nenhum contato causal com essas coisas reais ou com os seus componentes. Para reforçar essa idéia, Putnam imagina um cérebro na cuba que tenha sido gerado por mera coincidência cósmica, sem a existência sequer de programadores que pudessem ter tido contato causal com água, cuba, cérebro... e que pudessem passar essas informações para o programa. Nesse caso, pensa ele, as referências do cérebro na cuba seriam tão ilusórias quanto a palavra Churchill casualmente escrita por uma formiga ao andar na areia... Como nós temos pensamentos sobre árvores, água, cérebros, cubas, então não podemos ser cérebros em cubas. A objeção básica a ser feita ao argumento é que nele Putnam ignora a plasticidade da linguagem. Afinal, por que em um cérebro na cuba, mesmo naquele gerado por acaso cósmico, as representações de árvores, água, cérebros não podem ser de fato causadas por estímulos que sejam, digamos, meras imagens eletrônicas de árvores, água, cérebros, acessadas pelo cérebro na cuba em meio a uma práxis lingüística intersubjetiva também ela meramente ficcional? Por que não pode haver uma geração causal de representações a partir dessas imagens, que seja similar à geração causal de representações a partir das próprias coisas realmente pertencentes ao mundo real? Sob essa perspectiva não há nada de compelente no argumento.

381

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entendimento sistematicamente inadequado e no final das contas perverso dos

significados que os termos ganham em seus usos ordinários, reclamando uma

terapia à lá Wittgenstein. Mas ele também pode ser positivamente avaliado,

como um desafio dialeticamente importante, posto que (como Wittgenstein

também diria) é pela dissolução das tensões causadas por ilusões profundas que

costuma advir um avanço em nossa compreensão das questões filosóficas.

Vale lembrar que esse suposto entendimento perverso de nuances nos

sentidos ordinários das palavras seria aqui originado pelo que podemos chamar

(seguindo Searle e Strawson) de cientismo, que no caso aparece como uma

tentativa de imitar em filosofia da linguagem o que acontece em ciências como a

física ou a matemática, nas quais têm sido feitas descobertas desconcertantes,

que parecem contradizer frontalmente nossas intuições de senso comum1. O

problema é que essas ciências produzem descobertas contra-intuitivas em

domínios muito distantes de nossa experiência cotidiana, enquanto a filosofia da

linguagem pretende analisar conceitos que todos nós continuamente usamos,

como os de referência, significado, verdade... sendo nesse terreno muito difícil

ser espetacular sem ser falacioso.

No que se segue pretendo começar fazendo uma crítica sistemática ao

argumento de Putnam. Essa crítica mostrará que uma abordagem cognitivista-

descritivista neo-fregeana é capaz de resolver com vantagens os problemas por

ele colocados. Depois disso pretendo fazer uma análise neo-descritivista

aprofundada do conceito de ‘água’ envolvido na fantasia de Putnam, explicando

em algum detalhe como as coisas realmente acontecem. Essa explicação

mostrará que mesmo contendo insights importantes, se tomado em sua face de

valor, o externalismo semântico por ele proposto é indefensável.

1 Como observa Putnam no início de “The Meaning of ‘Meaning’”: “De fato a conclusão de nossa discussão será que os significados não existem exatamente como pensamos que existem. Mas elétrons também não existem da maneira que Bohr pensou que existiam”. (p. 3)

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Desconstruindo o argumento da terra-gêmea

Vejamos agora o argumento da terra-gêmea.

Exposição: Putnam começa considerando duas teses: (I) o significado (intenção,

sentido) determina a extensão, (II) os estados psicológicos (de entendimento)

fixam o significado. As duas teses devem ser aceitas pelo descritivismo

tradicional. Mesmo que se acredite (como Frege e Carnap) que o significado

seja uma entidade abstrata, é preciso admitir que nós apreendemos

psicologicamente o significado, devendo uma diferença no significado

corresponder a uma diferença no estado psicológico de quem o apreende. A

consequência da aceitação de (I) e (II) é que devemos assumir que estados

psicológicos fixam significados, os quais por sua vez determinam as suas

referências.

O que a fantasia da terra-gêmea demonstra, porém, é que um mesmo termo

pode ter extensões diferentes, mesmo quando os estados psicológicos são

exatamente os mesmos. Assim, uma das duas teses deve estar errada. A solução

de Putnam é rejeitar a tese (II): estados psicológicos não fixam o significado. E

isso acontece porque o significado não está, no essencial, em nossas cabeças,

mas no próprio mundo externo, no domínio da própria referência. Quanto à tese

(I), ela pode ser mantida: o significado determina a extensão, mesmo que de

modo não-fregeano, como veremos, pela seleção demonstrativa de exemplares

que paradigmaticamente satisfazem as propriedades de superfície constitutivas

do estereótipo.

Para chegar a essa conclusão Putnam imagina um planeta que ele chama de

terra-gêmea, no qual tudo existe e acontece tal como na terra, exceto pelo fato de

que os seus rios, lagos e mares, estão cheios de um líquido que em condições

normais de temperatura e pressão é indistinguível da água, saciando a sede

quando bebido, caindo sob a forma de chuva etc., diferindo da água apenas pelo

fato de que a sua composição química não é H2O, mas algo muito diverso, que 383

Page 384: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

pode ser abreviado como XYZ.1 Imagine então que uma nave espacial da terra

visite a terra-gêmea. A princípio os astronautas pensarão que ‘água’ tem o

mesmo significado (meaning) na terra e na terra-gêmea. Mas, observa Putnam

Se uma espaçonave da terra visita a terra gêmea, então a suposição inicial será de que ‘água’ tem o mesmo sentido (meaning). Essa suposição será corrigida quando for descoberto que ‘água’ na terra-gêmea é XYZ, e que a espaçonave da terra irá reportar algo como “Na terra-gêmea a palavra ‘água’ quer dizer (means) XYZ”. (...) Simetricamente (...) a espaçonave da terra-gêmea ira reportar: “Na terra a palavra ‘água’ quer dizer (means) H2O”.2

O que Putnam está querendo introduzir é a sugestão de que em tal caso a

palavra ‘água’ quer dizer ou significa duas coisas. Na terra ela significa (means)

água-t, uma vez que diz respeito à extensão do composto H2O, enquanto na

terra-gêmea ela significa (means) água-g, posto que diz respeito à extensão do

composto XYZ. Putnam interpreta a sua fantasia como tendo demonstrado que a

palavra ‘água’ tem e de fato sempre teve esses dois significados,

independentemente do que possa passar ou ter passado pela cabeça dos

habitantes da terra ou da terra-gêmea, devendo-se essa diferença de significado à

constituição essencial do líquido apontado com o nome de ‘água’ em cada

planeta. O que a palavra quer dizer (means) independe do que passa pelas

cabeças das pessoas que usam o termo, sendo externamente determinado por sua

referência.

1 Vários filósofos notaram que não parece nomologicamente possível que um líquido com as mesmas propriedades da água tenha uma fórmula química muito diversa. Mas não é necessário à fantasia de Putnam que todas as propriedades superficiais de H2O e XYZ sejam idênticas. Afora isso, podemos substituir a palavra ‘água’ pelo nome de pedras preciosas como topázio e citrino, que são aparentemente iguais, mas que possuem fórmula química muito diversa (ver Gabriel Segal: A Slim Book About Narrow Content, pp. 25-26).2 Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’”, p. 223.

384

Page 385: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Comentário: Já agora, ante essas considerações iniciais de Putnam, quero

introduzir minha objeção central, baseada em uma análise de nossos usos

ordinários das palavras. Penso que na base do que Putnam procura fazer há uma

sutil confusão entre o nível do sentido/significado-intensão e o nível da

referência-extensão.1 A palavra ‘mean’, usada por Putnam em inglês, assim

como seus correspondentes “Bedeutung’, ‘significado’ e ‘querer dizer’, possuem

uma espécie enganadora de ambigüidade, já referida em nossa discussão da

origem da distinção fregeana entre Sinn e Bedeutung na introdução desse livro.

Como havíamos notado, normalmente e em seu sentido próprio e relevante, a

palavra ‘significado’ tem um uso semântico intralingüístico, que é o de indicar o

“conteúdo semântico de um signo lingüístico, acepção, sentido, significação,

conceito, noção” (Houaiss), a saber, o sentido convencionalmente fundado da

expressão a que se reporta. Esse sentido intralingüístico, que inclui o sentido

(Sinn) fregeano, é o único sentido importante da palavra ‘significado’ na

linguagem, o sentido próprio da palavra. Ele é exemplificado em proferimentos

como

(a-i) A palavra ‘cadeira’ significa banco com encosto. (a-ii) A frase “O gato pegou o rato” significa o mesmo que a frase “O rato foi pego pelo gato”.

Mas a palavra ‘significa’ (assim como ‘means’ e ‘Bedeutet’) também pode

ser usada como uma maneira lingüística de apontar para a referência (a entidade

referida), no que já chamei de seu uso referencial intralingüístico. Como já

vimos, etimologicamente a palavra ‘significado’ vem do latim ‘significare’, que

quer dizer “dar a entender por sinais, indicar, mostrar, dar a conhecer, fazer

compreender” (no inglês ‘mean’ também significa ‘to convey, show or indicate’

1 Putnam chega a divisar a dificuldade quando, em um longo parênteses, tenta explicar porque a palavra ‘mean’ não pode ser substituida por ‘the meaning of’ nas frases citadas.

385

Page 386: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

e no alemão ‘bedeutet’ também significa ‘heisst, bezeichnet’). Nesse uso

estendido da palavra, ‘significar’ ou ‘querer dizer’ são sinônimos de ‘indicar’,

‘designar’ e ‘referir’, podendo ser facilmente, ainda que inapropriadamente,

extrapolados de modo a designar aquilo mesmo que é indicado, o designatum, a

referência. É nesse uso referencial que a palavra ‘significa’ e a expressão ‘quer

dizer’ aparecem em proferimentos demonstrativos como

(b-i) A palavra ’cadeira’ significa (means) coisas como aquilo ali.(b-ii) A frase “o gato foi pro mato” quer dizer (means) que o gato foi pro mato.

A frase (b-i) é aceitável quando usada por um adulto para explicar a uma

criança o significado de palavras como ‘cadeira’, enquanto a frase (b-ii) expõe a

relação entre uma frase e o fato correspondente.

Como já vimos nos capítulos iniciais, a proximidade semântica do verbo

‘significar’ em seu uso referencial com a palavra ‘referência’ está ligada à

concepção referencialista do significado. O erro dessa concepção consiste em

transformar proximidade semântica em promiscuidade semântica, confundindo

significado com referência ou extensão. Como também sugerimos no capítulo 3,

há ecos dessa teoria no próprio Frege, quando ele decidiu usar a palavra

‘Bedeutung’ no sentido técnico de ‘referência’, ao substantivar o verbo

‘bedeuten’, usado no sentido de ‘referir’, como ‘Bedeutung’, entendido como a

referência.

Também notamos que a palavra ‘sentido’ (assim como o equivalente inglês

‘sense’ e o equivalente alemão ‘Sinn’) resiste a essa ambigüidade: ela possui

apenas um uso semântico intralingüístico, indicando os sentidos

convencionalmente fundados das expressões a que se reporta. Assim, no

dicionário Houaiss ‘sentido’ significa simplesmente ‘cada um dos significados

de uma palavra ou locução’. Por isso, ao usarmos as palavras ‘significado’ e 386

Page 387: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

‘querer dizer’ de modo intralingüístico podemos facilmente substituí-las pela

palavra ‘sentido’, enquanto o mesmo não é possível quando essas palavras

ganham usos referenciais. Posso dizer, por exemplo:

(a-i’) O sentido da palavra ‘cadeira’ é o de ‘banco com encosto’. (a-ii’) O sentido da frase ‘O gato pegou o rato’ é o mesmo que o da frase ‘O rato foi pego pelo gato’.

Pois a palavra ‘significado’ em (a-i) e (a-ii) tem um uso semântico

intralingüístico. Mas soa muito estranho dizer

(b-i’) A palavra ‘cadeira’ tem o sentido de coisas como aquilo ali. (b-ii’) O sentido da frase “O gato foi pro mato” é que o gato foi pro mato.

uma vez que a palavra ‘significado’ em (b-i) e (b-ii) tem uso referencial

extralingüístico. Essa estranheza na substituição se repete com os equivalentes

da palavra ‘sentido’ em outras línguas, como o ‘sense’ no inglês, o ‘Sinn’ no

alemão e o ‘sens’ no francês. Podemos resumir as considerações feitas até aqui

no seguinte quadro:

Sentido uso semântico xxx (Sinn, sense) intralingüístico

Significado uso semântico uso referencial (Bedeutung, meaning) extralingüístico extralingüístico

Pois bem. Minha sugestão é a de que Putnam joga com essa ambigüidade da

palavra ‘significa’ (means), entendendo o uso referencial estralinguístico

secundário da palavra, no qual ela é mero sinônimo de ‘se refere a’ ou ‘denota’,

387

Page 388: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

como se fosse uma continuação apropriada do seu próprio uso intralingüístico.

Quando o astronauta diz

(c) Na terra-gêmea a palavra ‘água’ significa (means) e sempre significou (meant) XYZ,

ele está usando a palavra ‘significa’ no sentido inócuo de ‘se refere a’, e o que

ele quer dizer é simplesmente que na terra-gêmea a palavra ‘água’ denota e

sempre denotou XYZ. Mas isso não é nenhuma descoberta espetacular! A

palavra ‘água’ obviamente se refere a XYZ na terra-gêmea, posto que nesse

planeta o objeto da referência é e sempre foi esse mesmo stoff extralingüístico. E

não há nada de especial nisso, posto que por definição a referência ou denotação

é alguma coisa extra-lingüística, em nada dependendo de estados psicológicos

ou cerebrais. Assim, ao desconsiderar a ambigüidade da palavra ‘significa’

(mean) absorvendo a referência no significado, Putnam produz um equívoco

sutil. Ele quer nos fazer crer que existe algum sentido referencial ou extensional

da palavra ‘significado’ (meaning) a ser resgatado; mas esse sentido é uma

persistente quimera filosófica, a mesma que motivou o referencialismo

semântico. Essa impossibilidade demonstra-se quando substituímos em (c) a

palavra ‘significa’ pela expressão ‘tem o sentido de’. Nesse caso temos:

(c’) Na Terra-gêmea a palavra ‘água’ tem e sempre teve o sentido (sense) de XYZ,

o que soa claramente insatisfatório, posto que antes da descoberta da fórmula

química a palavra não tinha esse sentido (sense). Com efeito, a substituição de

(c) por (c’) é um caso similar ao da substituição das expressões do grupo (b)

pelas do grupo (b’), substituições que sugerem a inexistência de um uso

388

Page 389: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

referencial da palavra ‘significado’ capaz de preservar qualquer coisa do sentido

próprio da palavra, o sentido no qual ela é sinônima da palavra ‘sentido’.

Exposição: Em continuação, Putnam repete o argumento de um modo mais

elaborado e eficaz ao situar a aplicação do termo ‘água’ em 1750, quando a sua

estrutura atômica ainda era desconhecida. Imagine que por essa época o Oscar-1

da Terra diga algo como “Isso é água”, referindo-se ao líquido inodoro, insípido

e transparente que vê num copo, o qual realmente contém H2O. Quando isso

acontece, o seu Doppelgänger na terra-gêmea, Oscar-2, também diz “Isso é

água” apontando para um copo contendo XYZ. Os estados psicológicos (e

cerebrais) de Oscar-1 e de Oscar-2 são absolutamente idênticos. Ambos têm as

mesmas cognições. Mesmo assim, pensa Putnam, Oscar-1 está se referindo a

H2O, enquanto Oscar-2 está se referindo a XYZ. (Afinal, o que causa a

experiência perceptual de Oscar-1 na terra é H2O, enquanto o que causa a

experiência perceptual de Oscar-2 na terra-gêmea é XYZ.) Até aqui tudo é

perfeitamente plausível. Mas a conclusão que Putnam tira dessas constatações é

um surpreendente murro em nossas intuições semânticas:

Oscar-1 e Oscar-2 entenderam o termo ‘água’ diferentemente em 1750, embora eles estivessem no mesmo estado psicológico, e embora, dado o estado de desenvolvimento da ciência da época, a comunidade científica devesse levar ainda cerca de 50 anos para descobrir que eles entenderam o termo ‘água’ diferentemente. Assim, a extensão do termo ‘água’ (e, de fato, o seu ‘significado’ no uso pré-analítico intuitivo do termo) não é função do estado psicológico do falante. (grifos meus)1

Em outras palavras: primeiro Putnam constata que a referência e a extensão

da palavra ‘água’ usada por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750 eram diferentes, pois

um se referia ao líquido H2O encontrado na terra, enquanto o outro se referia ao 1 Hilary Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’”, in H. Putnam: Mind, Language and Reality, p. 224.

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Page 390: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

líquido XYZ da terra-gêmea. Ora, se as referências e extensões eram diferentes,

pensa ele, então os significados, determinadores dessas referências e extensões –

também eram diferentes. Ora, como os estados psicológicos de Oscar-1 e Oscar-

2 eram idênticos, então os significados, sendo diferentes, não poderiam se

encontrar em suas cabeças!

Posteriormente, sob as influêcias de Tyler Burge e de John McDowell,

Putnam ampliou as conclusões de sua surpreendente descoberta: não só

significados e entendimentos, mas também estados mentais (pensamento,

crenças, intenções) e mesmo as próprias mentes, em um sentido amplo,

encontram-se fora de nossas cabeças.1 Considero essas ampliações um reductio

ad absurdum da tese original.

Comentário: Podemos responder mostrando que há uma interpretação

descritivista ou neo-fregeana mais completa para o que Putnam nos conta. Para

tornar isso claro, considere a pergunta: qual a referência e a extensão da palavra

‘água’, quando usada por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750? Duas respostas

conflitantes parecem intuitivamente aceitáveis, produzindo um dilema

amplamente discutido na literatura a respeito:

(a) A primeira resposta intuitivamente aceitável (que costuma ser a escolhida

por críticos fregeanos) é a de que a referência e a extensão eram as mesmas.

Como os Oscares tinham em mente o mesmo líquido transparente e inodoro... a

palavra ‘água’ no caso cobriria tanto a água da terra quanto a da terra-gêmea.

Afinal, se os dois Óscares pudessem na época se encontrar sem ter ganho

nenhum conhecimento da estrutura molecular dos compostos apontados, eles

certamente concordariam que estavam se referindo a mesma coisa, e que a

extensão do conceito de água abrange tanto a água da terra quanto a da terra-1 Ver introdução de Putnam em A. Pessin e G. Goldberg: The Twin Earth Chronicles, p. xviii. Ver também Tyler Burge: “Individualism and the Mental” e McDowell: “Putnam on Mind and Meaning”.

390

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gêmea. Mesmo após se ter descoberto a diferença na estrutura química da água

da terra e da água da terra-gêmea, é possível dizer que a referência e a extensão

são as mesmas, pois se trata de uma mesma coisa perceptível que, dependendo

do lugar no qual é encontrada, é diferentemente constituida. Essa mesma coisa

perceptível possui inclusive as mesmas virtualidades causais ao produzir os

mesmos estados mentais nos Oscares.

(b) A segunda resposta intuitivamente aceitável (a defendida por Putnam) é a

de que os Oscares estavam se referindo a coisas diferentes com extensões

diferentes. Oscar-1 estava se referindo a um composto cuja estrutura é H2O e

cuja extensão não inclui a água da terra-gêmea. Já Oscar-2 estava apontando

para um composto cuja estrutura é XYZ e cuja extensão se limita ao líquido

transparente e inodoro da terra-gêmea. Idênticos estados mentais são causados

por líquidos de estrutura química muito diferente. Com efeito, se os dois Oscares

pudessem ser trazidos pela máquina do tempo até nossa época e aprendessem

um pouco de química, eles concordariam com a nossa afirmação de que eles

estavam se referindo a substâncias diferentes com extensões diferentes...

A interpretação de Putnam dá conta da intuição que conduz à segunda

resposta, rejeitando a primeira. Já a interpretação descritivista tradicional (que

reduz o sentido da palavra água à descrição ‘líquido transparente inodoro etc.’)

dá conta da primeira intuição, mas não da segunda. Contudo, quero a seguir

mostrar como uma interpretação descritivista algo mais sofisticada é capaz de

dar conta das duas intuições conflitantes, ao fazê-las resultar de dois parâmetros

diferentes de avaliação do elemento referencial. Isso será possível porque, sendo

a referência e a extensão pertencentes à realidade extra-lingüística, elas podem

ser determinadas sob diferentes perspectivas, na dependência do sujeito

epistêmico que as considera e do sentido epistêmico através do qual esse sujeito

tem acesso a ela.

391

Page 392: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Vejamos como a interpretação descritivista minimamente sofisticada explica

a primeira resposta. Ela segue a intuição de que as referências e extensões

consideradas pelos Oscares em 1750 eram as mesmas. Essa primeira intuição se

explica quando tomamos como parâmetro de avaliação do elemento referencial a

sua determinação pelos sentidos dados pelos Oscares à palavra ‘água’ em 1750.

Com efeito, se considerarmos que eles tinham em suas cabeças os mesmos

estados psicológicos, e que por conseguinte os sentidos que eles davam à

palavra ‘água’ eram os mesmos, a saber, algo como ‘líquido transparente,

inodoro e insípido... de substrato químico desconhecido’, como o sentido

determina a referência, as referências só poderiam ser de um mesmo tipo, sendo

a extensão da palavra ‘água’ a mesma, cobrindo tanto o líquido transparente e

inodoro da terra quanto o da terra-gêmea. Obviamente, tudo isso é compatível

com a idéia de que os significados estão em nossas cabeças: os estados

psicológico-neuronais de Oscar-1 e Oscar-2 são iguais e por isso os sentidos que

eles dão à palavra ‘água’ são iguais e por isso o tipo de referência é o mesmo,

assim como a extensão.

Mesmo para nós hoje, se preferirmos considerar o significado da palavra

‘água’ em termos de uma mera descrição de propriedades superficiais. Tal

sugestão não é contra-intuitiva1; nós diremos então que os Oscares estavam se

referindo a mesma coisa com a mesma extensão, e nós também, e o que eles

tinham e nós temos na cabeça era a mesma coisa, o mesmo líquido inodoro etc.

Tudo aqui é bem fregeano: o sentido pensado determina a extensão.

Vejamos agora como seria a interpretação descritivista da segunda intuição,

segundo a qual em 1750 os Oscares, mesmo tendo os mesmos estados

psicológicos e cerebrais, estavam se referindo a coisas diferentes, com extensões

diferentes. A interpretação descritivista que quero propor é bastante intuitiva e

evidente, embora pareça ter passado desapercebida dos críticos de Putnam. Para

1 Ver, por exemplo, Avrum Stroll: Twentieth Century Analytic Philosophy, p. 241392

Page 393: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

chegar a ela devemos primeiro notar que não há nada que nos impeça de

entender fórmulas como H2O e XYZ em termos de descrições, sentidos, modos

de apresentação fregeanos. Melhor dizendo, podemos sugerir que o termo

‘água’ entendido como ‘água-t’ inclui em seu sentido a descrição ‘volume

líquido de estrutura molecular H2O’, enquanto o mesmo termo entendido como

‘água-g’ inclui em seu sentido a descrição ‘volume líquido de estrutura

molecular XYZ’. Afinal, não há razão alguma para, enquanto descritivistas,

restringirmos os sentidos dos termos gerais a descrições de superfície, a

estereótipos. Uma vez estabelecido isso, devemos chamar atenção para o fato de

que, como os elementos de referência e extensão se encontram no mundo

externo, não tendo nada a ver com o que possa ter passado pelas mentes dos

Oscares, nós implicitamente e naturalmente tomamos como parâmentros de

avaliação desses elementos referenciais, não o que possa ter sido intencionado

pelos Oscares em 1750, mas o que nós mesmos hoje temos em mente com a

palavra ‘água’. Ou seja: nós consideramos a questão da referência e extensão

sob nossos próprios parâmetros ou critérios de sentido, isto é, sob a perspectiva

de sujeitos epistêmicos que (na estória imaginada) sabem que a água da terra é

descrita como possuindo a estrutura química H2O, enquanto que a água da terra-

gêmea é descrita como possuindo a estrutura química XYZ. Claro que nesse

caso nós diremos que o tipo de referência e a extensão da palavra ‘água’ usada

por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750 eram diferentes; afinal, Oscar-1 estava

apontando para H2O, cuja extensão não inclui a XYZ da terra-gêmea, o que vale

mutatis mutandis para Oscar-2. Para chegarmos a isso, contudo, precisamos

projetar os nossos próprios modos de apresentação descritivos da natureza da

água nas circunstâncias indexicais dos proferimentos dos Oscares em 1750.

Melhor dizendo, o que fazemos é usar os proferimentos dos Oscares como

instrumntos indexicais para uma determinação da referência que é feita através

de nossos próprios sentidos descritivos instanciados em nossos própios estados 393

Page 394: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

psicológico-cerebrais, os quais são, como seria de se esperar, diferentes para

cada caso, disso resultando a determinação de referências e extensões diferentes.

Como, quando consideramos “Isso é água” ditos por Oscar-1 e por Oscar-2

associamos a palavra ‘água’ a sentidos diferentes na determinação de referências

e extensões diferentes, e como esses sentidos ou significados diferentes estão em

nossas próprias cabeças e não nas cabeças dos Óscares, eles são perfeitamente

compatíveis com os diferentes estados psicológicos que realmente temos, posto

que eles nada tem a ver com os estados psicológicos idênticos dos Oscares de

1750. Nada nos força, pois, à idéia de que os significados estão fora das cabeças.

Mesmo no caso em que os Oscares viessem até nós pela máquina do tempo e,

tendo aprendido um pouco de química, pudessem concluir que em 1750 eles

estavam usando a palavra ‘água’ para se referir a coisas diferentes com

extensões diferentes, eles estariam usando nossos próprios sentidos estendidos

diversos da palavra ‘água’ como ‘água-t’ e ‘água-g’, envolvendo estados

psicológico-cerebrais diversos, na determinação projetiva das referências e

extensões diversas apontadas por eles mesmos como seus próprios instrumentos

indexicais em 1750. Note-se que isso só é possível porque referência e extensão

são entidades extralingüísticas e extramentais, sendo apenas em sua apreensão

determinadas pelo sentido (psicologicamente instanciado) expresso pela palavra,

o qual pode variar com a informação acessível ao sujeito epistêmico.

A dupla resposta neo-fregeana é baseada na idéia de que estados mentais

fixam o sentido ou significado, o qual determina a referência. Essa maneira mais

refinada de entender e explicar o descritivismo resolve o dilema, pois explica a

duplicidade de nossas próprias intuições sobre a referência e a extensão da

palavra ‘água’ dita pelos Óscares, o que a explicação de Putnam é incapaz de

fazer.

E quanto ao significado (meaning)? Como é possível que em 1750 Oscar-1 e

Oscar-2 possam ter querido dizer, entendido coisas diferentes com a palavra 394

Page 395: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

‘água’, como sugere Putnam? A resposta é que aqui outra vez adentramos o

terreno da pura confusão lingüística. Em um uso semântico intralinguistico da

palavra ‘significado’ devemos concordar que Oscar-1 e Oscar-2 atribuíam

exatamente os mesmos significados – os mesmos sentidos – à palavra ‘água’ em

1750, e que por isso mesmo eles tinham exatamente os mesmos estados

psicológicos e neurofisiológicos correspondentes. Mas quando fazemos um uso

referencial extralinguistico da palavra ‘significado’, ela não indica outra coisa

senão o ato de referir, de apontar, ou mesmo aquilo que é referido, apontado,

nomeadamente, a própria referência. É com base nisso que Putnam tem sucesso

em sugerir que Oscar-1 significou (meant) algo diferente de Oscar-2 com a

palavra ‘água’. Mas tudo o que ele pode querer dizer com isso é que a referência

e a extensão do que eles estavam apontando será diferente se considerada sob a

perspectiva de outros sujeitos epistêmicos – nós mesmos – os quais conhecem a

diferença de estrutura química entre a água da terra e da terra-gêmea, dando por

isso sentidos-significados diferentes à palavra num e noutro caso de sua

aplicação. Tudo aqui é fregeano: temos em mente sentidos diversos para o que

Oscar-1 e Oscar-2 apontam e através disso determinamos referências e

extensões diferentes para aquilo que eles disseram.

Exposição: No último passo de seu argumento Putnam começa considerando a

objeção de que o termo ‘água’ teria tido em 1750 uma extensão diversa da

extensão que ele passou a ter em 1950 (em ambas as terras). Essa objeção ele

considera errônea: se apontamos para um copo D’água e dizemos “Isso é água”,

escreve ele, estamos apontando para uma identidade-l (sameness-l) do líquido

em questão com a maior parte do stuff que nós e nossa comunidade lingüística

em outras ocasiões chamamos de água, devendo ser a natureza desse stuff

determinada por testes de senso comum ou pela ciência. Assim, se apontamos

para um copo de gim pensando que é água, alguns poucos testes mostrarão que 395

Page 396: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

ele não tem a identidade-l com o restante do stuff que chamamos de água. Além

disso, nota ele, a identidade-l é uma relação teorética que pode ser sempre

derrotada (defeated) por uma nova concepção do que ela seja, que resulte da

investigação científica.

Putnam prossegue notando que a palavra ‘água’ não mudou o seu significado

de 1750 para cá, posto que a relação de identidade-l sempre foi a mesma. Ou

seja: o significado da palavra deve ser atrelado à relação de identidade-l com a

essência do que é apontado,, mesmo que esta ainda não tenha sido descoberta.

Por isso, não só a extensão e a referência, mas também aquilo que chamamos de

significado, o que se quer dizer, e mesmo o entendimento da palavra ‘água’ nos

proferimentos de Oscar-1 e de Oscar-2, se tornam para Putnam diferentes,

mesmo que eles tenham ocorrido em 1750, quando não era possível ter acesso

experiencial às propriedades microestruturais da água. Ora, como os estados

psicológicos (e cerebrais) de Oscar-1 e de Oscar-2 eram exatamente os mesmos,

o conteúdo semântico precisa ir além desses estados, sendo mais uma vez

forçoso reconhecer que os significados, os entendimentos etc. de Oscar-1 e de

Oscar-2, naquilo que é relevante para a determinação da referência e extensão,

não se encontram em suas cabeças, mas no mundo, a saber, nos fatores causais

diferentes que produziram a mesma experiência cognitivo-perceptual. É a

própria presença causal externa de substratos diferentes – H2O na terra e XYZ

na terra-gêmea – que produz a diferença nos conteúdos semânticos. Ou ainda, na

conclusão triunfante de Putnam: “divida-se o bolo como quiser, os significados

simplesmente não estão na cabeça”.1

1 John Searle rejeitou essa conclusão sugerindo que mesmo sendo os estados psicológicos de Oscar-1 e Oscar-2 idênticos, eles determinam diferentes condições de satisfação e diferentes conteúdos intencionais, os quais são internos e intrínsecos aos estados psicológicos. Mas como é implausível a idéia de que um mesmo estado psicológico possa ter conteúdos diferentes, essa resposta acaba trazendo mais lenha para a fogueira do externalismo. Ver J. Searle, Intentionality, pp. 206-7. Ver a resposta de Putnam na introdução de A. Pessin, e S. Goldberg (eds.): The Twin Earth Chronicles: Twenty Years of Reflexion on Hilary Putnam’s ‘The Meaning of ‘Meaning’”.

396

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Comentário: Contra essa resposta podemos objetar que a noção de identidade-l,

tal como é usada por Putnam, nada tem a ver com o significado no sentido

próprio, do uso semântico intra-lingüístico – o sentido de sentido (Sinn) – o

único relevante, e que introduzir essa identidade para esclarecer o significado é

cair na mesma confusão de pensar que o uso referencial de palavras como

‘significar’ e ‘querer dizer’ tem a ver com o significado em qualquer sentido

relevante do termo.

É verdade que, como Putnam observou, embora em 1750 os Oscares não

pudessem conhecer a essência microestrutural subjacente ao que estavam

chamando de ‘água’, eles já dispunham (caso não fossem totalmente incultos) da

idéia de uma essência subjacente e de uma identidade-l microestrutural ainda

desconhecida. Mas o que dizer dos Oscares das cavernas, há 20.000 anos atrás?

Será que ao dizerem “Vamos procurar água” eles estariam querendo se referir a

alguma essência microestrutural subjacente desconhecida? Creio (muito

firmemente) que não. É claro que podemos dizer que mesmo nos casos dos

Oscares das cavernas, as referências ou extensões sempre foram diversas, uma

vez que se trata de coisas extralingüísticas: uma era a referência e extensão de

H2O, outra a de XYZ. Mas determinamos isso através de diferentes estados

psicológicos nossos, os quais instanciam sentidos descritivos diferentes, os quais

determinam, ao modo fregeano, referências e extensões diferentes. Repetindo o

que disse, claro que aquilo que fazemos é projetar nos proferimentos dos

Oscares nossas próprias instanciações cognitivas de sentidos diversos, usando

esses proferimentos como instrumentos indexicais para a determinação das

referências diversas através dos nossos próprios sentidos diversos. Para fazer

valer o que pensa, Putnam teria de sustentar que os Oscares das cavernas teriam

de dar diferentes sentidos à palavra água e até mesmo entendê-la de modo

diverso, o que não é assim tão implausível para quem acredita que os 397

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pensamentos e as próprias mentes dos Oscares não estavam em suas cabeças

quando eles realizaram esses proferimentos.

Exposição: No final de seu artigo Putnam resume e qualifica mais claramente a

sua posição. Ele admite que descrições de superfície desempenhem algum papel

na constituição do significado de termos como os de espécies naturais. O

significado passa a ser constituído por quatro componentes: marcadores (i)

sintáticos e (ii) semânticos, que no caso da palavra ‘água’ são respectivamente

um nome de massa concreto e o nome de uma espécie natural (líquido). Depois

há (iii) o que ele chama de estereótipos, que já vimos serem as descrições de

superfície, no caso da água, o líquido transparente, insípido, inodoro etc. Ele

admite que tanto marcadores quanto estereótipos fazem parte da competência do

falante e têm instanciação psicológica. Contudo, o componente mais importante

do significado, aquele que determina a referência e a extensão, não é

psicológico, mas externo. Ele é o sentido extensional, a própria extensão, que no

caso da água é determinada pelos volumes líquidos que compartilham da mesma

constituição essencial de H2O. Embora possamos descrever esse componente

através da linguagem, ele deve ser entendido como “a extensão em si mesma

(conjunto), e não como uma descrição da extensão”.1 O significado como

extensão torna-se assim o que determina a referência.

Comentário: Contra nossa análise, um defensor de Putnam poderia argumentar

que o uso referencial extralingüístico da palavra ‘significado’ tem uma razão de

ser, que é exatamente a de apontar para a grande descoberta de Putnam, que foi

a do “significado referencial”, do significado extensional que está fora da

cabeça.

1 Hilary Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’”, p. 270.398

Page 399: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Contudo, as lacunas explicativas na teoria de Putnam tornam mais plausível a

admissão de que ele procede realmente uma enganosamente sutil inversão dos

valores semânticos. Ele quer nos convencer que o uso referencial da palavra

‘significado’ é que é fundamental, enquanto o uso semântico é parasitário,

dizendo respeito somente aos estereótipos etc. Não obstante, pelas razões já

aduzidas, parece claro que o sentido relevante da palavra ‘significado’ é dado

por sua função semântica de reportar um conteúdo convencionalmente fundado,

enquanto o uso referencial extralingüístico da palavra é apenas uma extensão

indébita, posto que na verdade não tem mais nada a ver com o significado, mas

só com a referência. Em tal sentido dizer que o significado está fora da cabeça

torna-se inofensivo, pois redunda na trivialidade de dizer que a referência está

fora da cabeça.

Análise neo-descritivista do significado da palavra ‘água’

Quero passar agora à segunda parte de meu argumento, que consiste em

desenvolver uma explicação descritivista suficientemente sofisticada para a

fantasia da terra-gêmea. Quero mostrar que essa explicação deve ser preferida

por acomodar melhor nossas intuições semânticas e por possuir maior poder

explicativo do que a de Putnam.

Quero começar expondo a maneira como um filósofo descritivista refinado,

disposto a ignorar todo o maquinário de argumentos externalistas, analisaria a

estrutura e o funcionamento do conceito de água. Depois disso irei opor esses

resultados ao argumento de Putnam, o que espero servir como golpe de

misericórdia.

O que o nosso descritivista refinado diria? Primeiro, ele não consideraria

marcadores sintáticos e semânticos como fazendo parte significativa do

significado. Que ‘água’, por exemplo, seja um nome de massa, e que esse nome

designe uma espécie natural, isso já lhe outorga uma função classificatória. Essa 399

Page 400: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

regra classificatória, contudo, não é capaz de individuar o uso da palavra. Afinal,

‘ouro’ e ‘oxigênio’ também são termos de massa que designam espécies

naturais. E uma determinação semântica incapaz de diferenciar água de ouro ou

de oxigênio deve ser bem pouco útil como componente constitutivo do

significado da palavra ‘água’. A regra semântica que realmente interessa é

sempre aquela capaz de individuar o uso da palavra, distinguindo-o dos usos de

outras palavras da mesma espécie.

Mas o que nosso filósofo diria das descrições que formam o estereótipo?

Penso que ele poderia razoavelmente admitir que o significado do termo geral

‘água’ é pelo menos em parte dado por um feixe cumulativo de regras-

descrições. Mas também aqui esse feixe não é desorganizado. Ele se constitui de

aglomerados descritivos de valores diversos. Além disso, ele é dinâmico. Como

acontece em muitos casos, o conceito sofreu uma evolução histórica expressa

por um gradual acúmulo de descrições que o exprimem. Há primeiro um

significado originário, expresso pela seguinte descrição de características de

superfície:

Ds: Líquido transparente, insípido, inodoro, que serve para matar a sede, apagar o fogo, lavar, que enche os rios, lagos e mares, que cai sob forma de chuva, que entra em ebulição quando fervido e se congela quando faz frio...

Ds é o núcleo descritivo do senso comum, conhecido desde o tempo do

homem das cavernas, o qual não poderia sequer suspeitar da existência de uma

microestrutura subjacente essencial. Nessa época a palavra ‘água’ não

significava mais do que Ds, que serviria de base para se determinar a referência

e a extensão. Mesmo o que poderia ser identificado, dentro de uma concepção

primitiva do mundo, como a causa própria de nossa percepção da presença de

água: o líquido que em estado puro é transparente, insípido, inodoro.

400

Page 401: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Com o passar dos milênios novas descrições foram sendo adicionadas.

Aprendeu-se mais sobre a água. Aprendeu-se que ela é um bom solvente, que

ela não se mistura com óleos, que ela é um mau condutor de eletricidade quando

em estado puro... Podemos chamar essas e outras descrições adicionais de

descrições disposicionais, funcionais ou dinâmicas, formadoras de um sub-

núcleo adicional de descrições. Eis algumas delas, já conhecidas há cerca de três

séculos

Dsd: um líquido que é bom solvente, não se mistura com óleos, em estado puro é mau condutor de eletricidade, produz ferrugem (oxidação) quando em contato com ferro...

Adicionando-se agora Dsd ao núcleo original, temos um núcleo mais amplo

de descrições de superfície. Podemos simbolizar as descrições que exprimem

esse primeiro núcleo semântico – o núcleo do senso comum informado – como:

<Ds + Dsd>

Esse já seria, digamos, o sentido da palavra ‘água’ reconhecido por pessoas

bem informadas por volta de 1750. Podemos chamá-lo de sentido popular da

palavra.

Contudo, algo extraordinário aconteceu na evolução do sentido da palavra

‘água’. Em 1768 Lavoisieur colocou hidrogênio e oxigênio em um balão de

vidro e aqueceu a mistura. O resultado foi uma explosão que liberou gás e água.

Através dessa e de outras experiências ele acabou por concluir que a água é

composta de duas porções de hidrogênio e uma de oxigênio. Em 1781

Cavendish realizou na Inglaterra experiências semelhantes usando faíscas

elétricas. Em 1783 Lavoisier realizou o procedimento reverso, decompondo

água em oxigênio e hidrogênio. Em 1800 Nicholson and Carlisle conseguiram 401

Page 402: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

os mesmos resultados usando a eletricidade de uma “pilha voltaica” em um

processo chamado de eletrólise. Em 1811, baseado em sua lei dos gazes e na

eletrólise, Avogadro estabeleceu a composição atômica da água como sendo

HO1/2 , um resultado que foi corrigido em 1821 por Berzelius, que finalmente

estabeleceu a fórmula H2O...1 Chegou-se assim ao estabelecimento de uma nova

descrição, a descrição de profundidade da água como sendo constituída de

moléculas de hidróxido de hidrogênio ou H2O.

É importante perceber, porém, que as descrições de superfície das próprias

experiências referidas por Lavoisieur, Cavendish, Avogadro, Berzelius e ainda

outros formam um grupo a parte de descrições, que por vários caminhos

permitem inferir a estrutura essencial subjacente das massas D’água. Mais além,

o conhecimento da estrutura molecular da água, em adição ao tear teórico-

conceitual da química, leva-nos a fazer inferências teóricas no nível

microestrutural, como a de que 2H2O + O2 = 2H2O2. Finalmente, tal

conhecimento da estrutura subjacente nos permite fazer inferências de novas

descrições de superfície, como as que exprimem propriedades como a da alta

tensão superficial, da ação capilar e da boa solvência de açúcares e sais, que se

deixam explicar pela coesão entre os dipolos positivo e negativo das moléculas

de H2O.

O que tudo isso acabou por produzir foi um novo núcleo de significado para

a palavra ‘água’. Esse novo núcleo semântico é expresso primariamente pela

descrição da microestrutura profunda das massas D’água, a qual podem ser

adicionadas ainda propriedades e relações químicas:

Dp: Volume constituído por moléculas formadas por dois átomos de hidrogênio e por um átomo de oxigênio (e também um composto dipolar que tende a formar cadeias isoméricas etc.)

1 Ver Philip Ball: A Biography of Water (Berkeley, California: University of California Press 2001), capítulo 5.

402

Page 403: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Mas isso não parece ser tudo. Como vimos acima, Dp se encontra ladeada

por dois grupos de descrições de superfície a ela inferencialmente ligadas e que

também são expressivas do novo núcleo semântico. De um lado elas constituem

o que chamo de Dsp, o conjunto das descrições de superfície, de tudo aquilo de

observável, que permitem ao químico inferir a estrutura química da água, entre

elas as descrições das experiências de Lavoisieur, Cavendish e Avogadro. De

outro lado, as descrições constituem o que chamo de Dps, a saber, o conjunto

das descrições das propriedades superficiais que se deixam inferir de nosso

conhecimento da estrutura subjacente das massas d’água, como, por exemplo, a

propriedade de, diversamente de outras moléculas semelhantes, se manter em

estado líquido a temperaturas ambientes (o que também se deixa explicar a partir

da forte coesão das moléculas dipolares de H2O).

Temos, pois, um núcleo semântico constituído por três subnúcleos

semânticos inferencialmente interligados, um formado por descrições da

microestrutura subjacente e dois formados por descrições de superfície. Eis

como podemos simbolizar esse novo conjunto de descrições:

<Dsp + /Dp/ + Dps>

Quero sugerir que esse último núcleo de significação constitui o sentido

científico da palavra ‘água’, um sentido que só é muito esquematicamente

conhecido pela maioria de nós. Esse sentido descritivo foi negligenciado pelas

teorias descritivistas tradicionais dos termos gerais, como a de Locke. Mas ele

parece ser perfeitamente legítimo no interior de um descritivismo mais

sofisticado, que não tem por que se restringir a descrições de superfície.

Há aqui a seguinte objeção a ser considerada: o número de inferências

relacionadas à estrutura química H2O é indeterminado, o que torna os limites do 403

Page 404: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

significado indefiníveis. Uma primeira reação seria delimitar-se à descrição

“Líquido com estrutura química H2O”, como a única capaz de delimitar

precisamente o núcleo semântico científico. Embora reconhecendo a

importância desse núcleo semântico, não creio que essa seja a resposta mais

adequada.

Minha resposta é a de que as fronteiras de significado entre um termo e outro

são de fato graduais e que as inferências mais e menos relacionadas à estrutura

química da água proporcionam um bom exemplo de como isso funciona.

Considere, por exemplo: “2H2O → 2H2 + O2” é uma inferência interna, no

sentido de que os conceitos que a compõem são constitutivos da própria fórmula

química. Compreendê-la faz a meu ver parte da compreensão do conteúdo

semântico de ‘H2O’. Mas considere as seguintes fórmulas:

1) 2Na + 2H2O → 2NaOH + H2 2) 2H2O + 2O2 → 2H2O2

3) 2Fe + O2 + 2H2O → 2Fe(OH)2

A equação (1) diz respeito à formação de soda cáustica (2NaOH), sendo a sua

contribuição semântica tanto para o conteúdo informativo do que o químico sabe

sobre a água quanto (mais ainda) sobre o conteúdo informativo do que ele sabe

sobre a soda cáustica, estando quase que a meia distância de uma contribuição

para o esclarecimento semântico de ambos os conceitos. A equação (2) respeito

à formação de água oxigenada (H2O2) e a equação (3) à formação de ferrugem

(Fe(OH)2). Por isso, essas últimas fórmulas contribuem para o esclarecimento,

não mais do significado de ‘água’ (hidróxido de hidrogênio), mas são0

respectivamente constitutivas dos significados de água oxigenada e ferrugem, da

mesma forma que “2H2O → 2H2 + O2” é constitutiva do significado de ‘água’.

A contribuição dessas inferências para o conteúdo informativo do que o químico

entende com o conceito de água como hidróxido de oxigênio fica, pois, dividida, 404

Page 405: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

o que impede a suposta ampliação indefinida das contribuições inferenciais para

o significado da palavra ‘água’ no domínio das equações químicas. Isso nos

permite responder à questão inicial: embora o número de inferências seja

indeterminado, os limites de sua contribuição para o significado da palavra-

conceito em questão é determinado pelas outras palavras-conceito para cujo

significado essas relações inferenciais passam a contribuir.

Uma alternativa curiosa, mas a meu ver falsa, estaria na adoção de uma

posição estritamente fenomenalista: considerar Dp como uma construção, se não

supérflua, meramente convencional, ou seja, defender que podemos passar

apenas com Dsp e Dps. Não creio. Pois é preciso notar que a estrutura química

H2O, essencialmente presente em Dp, é essencial por duas razões: primeiro, ela

pode ser acessada e referida através de uma diversidade de descrições

constituitivas de Dsp, que se constitui em um conjunto aberto de descrições; por

sua vez, ela permite a inferência de uma diversidade também indeterminada de

descrições constitutivas de Dps, as quais também formam um conjunto aberto. A

estrutura química é, pois, como um ponto de cruzamento inevitável entre uma

multiplicidade de caminhos inferenciais, não decorrendo necessariamente de

nenhum deles, embora todos decorram necessariamente dela. É essa centralidade

que faz da descrição da estrutura química uma espécie de “essência nominal”.

Os dois núcleos semânticos, o núcleo expresso pelas descrições que nos dão

o componente ordinário ou popular do sentido da palavra ‘água’ e o núcleo

expresso pelas descrições associadas a sua essência subjacente, as quais nos dão

o componente científico do sentido da palavra, podem ser simbolizados em

conjunto como:

____Np___ ______Nc______

<Ds + Dsd> + <Dsp + /Dp/ + Dps>

405

Page 406: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

De algum modo temos aqui, sinopticamente apresentado, o completo

conjunto de descrições que exprimem as regras semânticas constitutivas do

sentido da palavra ‘água’: esse feixe de descrições inter-relacionadas é capaz de

exprimir o sentido ou significado mais completo da palavra ‘água’, tal como ela

é capaz de ser entendida hoje.1 Embora esse sentido não seja em seus detalhes

conhecido da maioria dos falantes, partes dele são geralmente conhecidas e esse

conhecimento parcial já é suficientemente compartilhado para permitir a

comunicação do conceito.

Finalmente, o elemento causal precisa ser considerado. Nosso conhecimento

da existência de exemplares de massas D’água depende dessas massas d’água o

terem causado ou pelo menos delas potencialmente o causarem. Contudo, o

significado da palavra tem a ver muito indiretamente com uma cadeia causal

originada de um batismo e muito mais com uma regra conceitual capaz de

pressupô-la, daí porque o significado da palavra ‘água’ é independente da

existência efetiva de massas d’água, a saber, da efetiva aplicabilidade da regra

conceitual.

A regra de aplicação para a palavra ‘água’

Estamos agora preparados para construir uma regra de aplicação que estabeleça

um limite mínimo de satisfação das regras-descrições superficiais e profundas

até aqui consideradas para que a palavra ‘água’ se torne aplicável. Eis como a

regra de aplicação para o termo geral ‘água’ ou RC-‘água’ poderia ser exposta:

RC-‘água’:

1 Em sua crítica a Putnam e Kripke, Avrum Stroll nota que esses autores produzem uma falsa dicotomia entre propriedades fenomenais e a microestrutura, como se fossem alternativas competidoras: “Uma explicação correta do que é a água não irá mencionar apenas as suas propriedades fenomenais, mas tambérm aquelas que não são imediatamente acessíveis.” Contudo, por razões sistemáticas, Stroll receia considerar a última um aspecto do significado. A. Stroll: Sketches of Landscapes, pp. 56-57.

406

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Usamos o termo geral ‘água’ para nos referirmos à propriedade singularizada em uma instanciação de uma substância química em um objeto xseea substância está na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de que:(i) x satisfaz as regras de caracterização expressas pelo núcleo semântico popular <Ds + Dsp> e/ou pelo núcleo semântico científico <Dps + /Dp/ + Dsp> associado à palavra(ii) em medida no todo suficiente e(iii) sem competição com regras conceituais para outras substâncias químicas.

Essa regra de aplicação constitui o que podemos realmente chamar de o

conceito de água. Ela requer alguma clarificação. Primeiro há a assunção de que

água é uma substância química, limitando o domínio da definição

(estabelecendo o equivalente a um genus proximum). Um segundo ponto

concerne o elemento causal mencionado depois do condicional. Um termo geral

funciona de modo muito diferente de um nome próprio. No caso do nome

próprio há somente um portador do nome, o que explica a importância da função

causal do portador em atos de batismo. Contudo, o termo geral não é vinculado a

nenhum portador originário, mas sim a qualquer portador que compartilhe da

propriedade que ele é capaz de designar. Essa é a razão pela qual muitos hoje

duvidam da importância da relação entre objetos e termos gerais.1 Um outro

ponto é que , como vimos, no caso da frase singular, o portador precisa ser antes

identificado pela regra de identificação do termo singular, para só depois disso

ser classificado pela regra de aplicação do termo geral, o que faz com que a

regra do termo geral basicamente se aplique combinada com a regra de

identificação do termo singular. Essa é a razão pela qual é razoável se fazer

1 Essa é também a razão pela qual a idéia de que termos gerais são designadores rígidos é hoge em dia geralmente considerara um problema irresolvido pela maioria dos defensores do externalismo causal.

407

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menção a um objeto x, que no caso é um volume de água ocupando um local

espaço-temporal.

A condição (i) é o que poderíamos chamar de condição de significado, pois

ela envolve o conteúdo informativo mais próprio da palavra ‘água’, aquele que

encontramos em dicionários; saber o significado da palavra água é conhecer essa

regra parcial, na qual conectamos os dois componentes de significado – popular

e científico – com uma disjunção inclusiva (que nada tem a ver com a regra de

identificação de nomes próprios). De acordo com essa condição, podemos

chamar um líquido de ‘água’ quando ele tem as propriedades fenomenais da

água mesmo se ele não tem a correspondente estrutura subjacente e vice-versa.

Essa pode parecer uma maneira excessivamente liberal de se entender o

significado da palavra ‘água’. Mas a uma consideração mais detida percebemos

que apenas parece ser assim, uma vez que a palavra ‘água’ é geralmente usada

em contextos que restringem o seu significado. Uma vez percebido isso veremos

que a condição (i) é a mais adequada, pois permite justificar a aplicabilidade do

conceito nos mais variados contextos; ela exprime o único significado que faz

juz a toda flexibilidade dos modos como somos capazes de usar a palavra.

Finalmente, se o conceito de água é a regra RC-‘água’ fica claro que o

significado da palavra, sendo restrito à condição (i), se torna mais precisamente

delimitado como parte do conceito e não como o seu todo.

A condição (ii) é o que chamamos de condição de suficiência, de acordo com

a qual descrições de (i) não precisam ser completamente satisfeitas, mas – se

tomadas como um todo (ou seja, em seu somatório) – somente suficientemente

satisfeitas. Quantas condições são necessárias para preencher o requerimento de

‘suficiência’ fica aqui também, aliás, inespecificado, como parte da vaguidade

do conceito (parece que um líquido que não é nem transparente nem sem gosto

ou mesmo sequer feito de H2O ainda pode, em circunstâncias muito pouco

exigentes, ser chamado de ‘água’).408

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Finalmente, (iii) é o que chamamos de condição de predominância, dizendo-

nos que um exemplar de um líquido deve satisfazer a condição (i) mais do que

qualquer outro conceito do mesmo tipo. Isso indica que a regra-significado para

o líquido água deve ser mais completamente satisfeita do que qualquer outra

regra de aplicação conceitual para outras substâncias líquidas (suponha que

precisemos distinguir entre água e peróxido de hidrogênio: o que predomina em

quantidade é o que decide). Mais além, vale notar que as condições (ii) e (iii)

nâo podem ser partes relevantes do significado da palavra ‘água’ porque, como

elas se aplicam certamente a muitos outros conceitos, elas não são capazes de

diferenciar o significado naquilo que o distingue de qualquer outro.

A mais interessante diferença com relação à regra de identificação de nomes

próprios aparece quando consideramos a condição (iii). Como estamos

lembrados, no caso dos nomes próprios, a terceira condição seria individuadora.

Daí ser possível que um mesmo objeto seja capaz de satisfazer diferentes regras

de identificação, amalgamando várias coisas em uma só (ex: Bacon poderia ser

também Shakespeare), conquanto as regras se apliquem mais a ele do que a

qualquer outro objeto, o que o individualiza. Mas no caso da regra de aplicação

de um termo geral, não faz sentido termos uma regra individuadora, pois fica

sempre indeterminado o número de objetos capazes de satisfazê-la. Por

conseguinte, a exigência (iii) não precisa mais ter a função de singularizar um

objeto, mas apenas a de classificar objetos que caiam sob o termo geral. E isso é

alcançado pela exigência de que os elementos da classe em questão não

satisfaçam outras regras de identificação de termos gerais do mesmo gênero

mais do que aquela que está sendo aplicada.

Exemplos de aplicação da regra de aplicação

Eis alguns exemplos elucidativos do funcionamento da regra de aplicação do

termo geral ‘água’. Se colhermos uma amostra da água de um pântano, ela pode 409

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não ser transparente, nem insípida, nem inodora, não servindo para beber nem

para lavar... A amostra será de água com impurezas. Mesmo assim ela será água,

uma vez que é um líquido com estrutura química H2O, satisfazendo com isso as

condições (i) e (ii). Além disso, a regra parcial (iii) também está sendo satisfeita,

pois não podemos dizer que outras regras de identificação de termos gerais

caracterizadores de outros compostos químicos se aplicam na mesma medida (a

água pode conter óxido de ferro, mas a regra de aplicação do óxido de ferro não

se aplica na mesma medida às amostras). Assim, podemos estar certos de que se

trata de água. Em contraste, suponha que temos diante de nós um líquido

transparente, mas viscoso e de gosto amargo. Esse líquido é capaz de reagir com

cobre entrando em combustão, daí resultando água e oxigênio. E a sua

constituição química não é H2O, mas H2O2. Embora esse composto tenha

similaridades com a água, ele não pode ser água porque a regra de identificação

de outro termo geral do mesmo gênero – que classifica compostos químicos – de

preferência se aplica. Trata-se, pois, devido à subcondição (iii), de peróxido de

oxigênio e não de água.1

Eis um outro exemplo: suponha que você faz uma sobremesa de gelatina.

Embora a gelatina não satisfaça as descrições de superfície para a identificação

da água (não é líquida, não é transparente, não mata a sede, não apaga o fogo),

ela ainda assim satisfaz descrições de estrutura subjacente, pois sabemos que ela

é em sua maior parte constituída de H2O. Com isso ela satisfaz a disjunção

exigida por (i). Todavia, mesmo assim ela não será confundida com água. Por

quê? Ora, porque ela não satisfaz a condição (iii) de regra de aplicação da água,

posto que uma regra competitiva, a regra de aplicação para o que chamamos de

gelatina – uma substância sólida gelatinosa constituída por uma mistura de água

1 É interessante notar que a água oxigenada que compramos na farmácia é realmente água, pois 97% dela é constituída de H2O e apenas 3% dela é constituído de H2O2 ou peróxido de oxigênio. Ela é água porque a regra de identificação do termos geral ‘água’ se lhe aplica mais do que a de qualquer outro conceito do mesmo gênero – água contendo de H2O2.

410

Page 411: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

com celulose – é preferivelmente aplicável. O máximo que podemos dizer é que

ela contém (bastante) água em sua composição. Para saber se uma regra de

aplicação é aplicável é preciso saber se outras regras do mesmo tipo não se

aplicam preferencialmente, é preciso saber o lugar da regra na gramática, por

assim dizer.

Um último contra-exemplo introduzido por Avrum Stroll: se Putnam está

certo e ‘Água = H2O’, então certamente ‘H2O = gelo”, e “H2O = vapor d’água”.

Mas se é assim, pela transitividade da identidade, então “água = gelo”, e “vapor

d’água = gelo”. Mas essa é uma conclusão insólita, que se fosse verdadeira me

permitiria pedir dois cubos de água no lugar do gelo, dizer que a água (o gelo)

flutua na água e que o vapor d’água é sólido. Gelo não é o mesmo que água e

menos ainda que vapor d’água, o que leva Stroll a concluir que o ‘é’ de “Água é

H2O” é um é de composição e não o é da identidade.1 Com efeito, podemos

dizer que o gelo é feito de água. Contudo, o próprio Stroll introduz uma contra-

objeção que parece de algum modo limitar o que ele está dizendo: é possível

dizer que o gelo é a mesma coisa que “água sob forma sólida” e que vapor

d’agua é a mesma coisa que “água sob a forma de vapor”. Assim, gelo e vapor

d’água são variantes de uma mesma coisa, qual seja, água.

Penso que a comparação das regras de caracterização desses termos gerais

explica essas coisas. Os núcleos populares fenomenais dos sentidos das palavras

‘água’, ‘gelo’ e ‘vapor d’água’ são bastante diversos: a água é líquida e

transparente, o gelo é sólido e opaco, o vapor d’água se dissipa no ar... As coisas

denotadas por esses termos só são semanticamente similares no que concerne ao

núcleo científico de sentido, especialmente Dp (ignorando diferenças na

organização das moléculas que compõem as amostras). Temos, pois, regras de

aplicação algo diversas, que são RC-‘água’, RC-‘gelo’ e RC-‘vapor d’água’, que

diferem apenas no que concerne a aspectos do sentido popular. Assim, a razão

1 Ver Avrum Stroll: Twentieth Century Analytic Philosophy, pp. 233-234.411

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pela qual chamamos um objeto x de “gelo” e não “água” é que x satisfaz mais as

descrições de RC-‘gelo’ do que RC-‘água’, satisfazendo por isso a condição (iii)

de RC-‘gelo’, o mesmo sendo o caso quando chamamos um y de vapor d’água.

Com efeito, como RC-‘gelo’ é um pouco diferente de RC-‘água’, os sentidos das

palavras ‘gelo’ e ‘água’ são algo diferentes. Mesmo assim, esses sentidos são

semelhantes, pois a Dp do núcleo de significação científico é essencialmente a

mesma. Eis porque podemos dizer que o gelo e o vapor d’água são constituidos

de água, que o gelo é água solidificada e que o vapor d’água é água evaporada:

pelo fato de que a condição essencial de RI-‘água’, que é a disjunção (i), estar

sendo em cada caso suficientemente satisfeita, permitindo a aplicação da regra.

Sabemos também agora porque dizemos que a água é dita constituida de H2O:

porque RC-‘água’ contém a regra de aplicação para o hidróxido de hidrogênio

ou RC-‘H2O’ (se a segunda regra é aplicada, a primeira também é). E também

sabemos porque ao falarmos de água não estamos querendo propriamente nem

gelo nem vapor d’água: porque RC-‘água’, RC-‘gelo’ e RC-‘vapor d’água’

competem entre si pela satisfação da condição (iii).

Stroll também acha que uma coisa é falar do significado da palavra ‘água’ e

que outra coisa é falar daquilo que a água é. Contudo, essas parecem ser duas

faces da mesma moeda. Pois aquilo que consideramos em termos de sentido

pode ser materialmente parafraseado em termos daquilo que as coisas são. Isso

se demonstra no fato de que ao invés de falarmos das regras de aplicação em sua

ec-aplicabilidade, descrevendo assim o sentido, podemos falar dessas mesmas

regras de caracterização em sua efetiva aplicabilidade, descrevendo assim as

próprias coisas ou aspectos delas. Assim, dizer que a água é composta de H2O é

o mesmo que dizer que as propriedades descritas por RC-‘água’ enquanto

efetivamente aplicável compõem-se das propriedades microestruturais descritas

por RC-‘H2O’ enquanto efetivamente aplicável.

412

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O sentido em que o termo geral ‘água’ é um designador rígido

Faz sentido notar que também aqui podemos utilizar instrumentos lógicos

derivados da teoria das descrições para formalizar a regra de aplicação do termo

geral. Uma maneira de fazermos isso é introduzindo os seguintes predicados: F

= ‘...satisfaz suficientemente as regras de caracterização expressas pelas <Ds +

Dsd> constitutivas do sentido do conceito de água’, G = ‘...satisfaz

suficientemente as regras de caracterização expressas pelas <Dps + /Dp/ + Dsp>

constitutivas do conceito de água’, P = ‘...satisfaz as regras de caracterização F

e/ou G mais do que qualquer outra regra classificadora de outra substância

química’, e A = ‘...é água’. Para dizermos então que se algo é água então esse

algo necessariamente satisfaz a regra de aplicação RC-‘água’, isso pode ser

formalizado como:

Ex(Ax) → □Ex ((Fx v Gx) & Px)

Parece que isso nos permite explicar em termos descritivistas de que maneira

os termos gerais podem ser entendidos como designadores rígidos. Entendendo

que o designatum próprio do termo geral é uma propriedade instanciada – um

tropo ou sistema de tropos – podemos dizer que um termo geral é um designador

rígido no sentido de que ele se aplica a mesma propriedade instanciada em

qualquer mundo possível no qual ela vier definidamente instanciada. Assim, o

termo geral ‘água’ é um designador rígido porque ele se aplica a amostras de

água em todos os mundos possíveis nos quais elas se encontram. Com efeito, em

qualquer mundo possível, se algo definidamente satisfaz as condições ((Fx v

Gx) & Px), esse algo será água. Isso se verifica também na observação de que

RC-‘água’ nos permite formar uma sentença analítico-conceitual necessária,

verdadeira em todos os mundos possíveis, qual seja:

413

Page 414: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

O termo geral ‘água’ se refere ao líquido que puder (causalmente) nos fazer conscientes de que satisfaz de modo em seu todo suficientemente as condições <Ds + Dsp> e/ou <Dps + /Dp/ + Dsp> para água, sem competição com regras conceituais para outras substâncias químicas.

Regras semelhantes a essa poderiam da mesma forma ser válidas também

para ao menos alguns outros termos de espécie natural como, por exemplo, o

ouro, que tem as propriedades superficiais de ser um metal amarelado, solúvel

em água áurea etc. e que tem a propriedade microestrutural de ser o elemento de

número atômico 76.

Finalmente, o modo de ver que acabamos de expor faz jus a algumas idéias

familiares aos semanticistas. Primeiro, o sentido de um termo geral como água é

vago. Depois, ele tem se alterado. Como acontece com a maioria dos conceitos,

ele cresceu e se ramificou com o tempo. A maioria de nós fica conhecendo

apenas uma parte dele, fundamental ou não, mas suficiente para a comunicação.

Muitas vezes só os especialistas, os usuários privilegiados da palavra, conhecem

o significado completo de um termo geral. Há casos em que o especialista só

conhece o núcleo científico especializado do significado, ignorando outras

coisas por vezes até mais importantes. Há casos em que cada especialista

conhece completamente apenas parte do significado do termo. E deve haver

casos em que somente a memória de computadores ou documentos contém todas

as informações relevantes. Contudo, essas informações em si mesmas nada

significam. Elas demandam intérpretes capazes de inseri-las em uma forma de

vida. Elas só ganham realidade enquanto e na medida em que são interpretadas,

ao menos esquematicamente, por seres humanos capazes de participar da forma

de vida. Há, pois, na explicação de como os termos gerais referem, um elemento

cognitivista irredutível.

Comparando as duas análises

414

Page 415: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

No que se segue quero demonstrar que a recém-sugerida análise meta-

descritivista-causal do conceito de água explica de forma mais convincente do

que a artificiosa teoria de Putnam as nossas intuições relativas à fantasia da

terra-gêmea.

Como já vimos é muito difícil duvidar que o significado de nossas expressões

lingüísticas seja convencionalmente fundado: ele deve constituir-se de regras ou

combinações de regras semanticamente relevantes por nós mesmos

estabelecidas. Quando elas constituem os significados dos termos gerais, elas

costumam poder ser expressas por descrições. Até mesmo a essência subjacente

da água pode ser apresentada por regras de caracterização expressas por

descrições, as quais são simbolicamente resumidas por Dp. Além disso, não há

como se livrar das descrições de superfície, uma vez que Dp só faz sentido por

ter sido inferido de Dsp e por conduzir inferencialmente a Dps. Ou seja: mesmo

que estejamos dispostos a conceder que a descrição fundamental seja a da

essência subjacente, ela acaba por depender de descrições de propriedades de

superfície, nem mais nem menos fenomenais do que as descrições dadas à água

pelo homem das cavernas, embora mais complexas e exigentes em seu recurso a

elementos funcionais.

A questão agora fica sendo: como a recém-exposta explicação do sentido ou

significado intralingüístico da palavra ‘água’ explica nossas intuições relativas a

Oscar-1 e Oscar-2 quando eles disseram “Isso é água” em 1750? A resposta é

pouco mais do que uma cansativa repetição do que já dissemos em nossa

resposta neo-descritivista a Putnam.

Consideremos primeiro o significado, o sentido. Em 1750 ele era para ambos

os Oscares o de um líquido transparente etc., ou seja: <Ds + Dsd>. A isso eles

podem ter acrescentado no máximo a hipótese da existência de alguma

microestrutura fundamental desconhecida x. Mas como não haviam sentidos

expressos pelas descrições ‘líquido de estrutura molecular H2O’ ou ‘líquido de 415

Page 416: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

estrutura molecular XYZ’, não era esse x que eles podiam ter em mente. Assim,

se os estados psicológicos e cerebrais de Oscar-1 e Oscar-2 eram os mesmos,

isso não importa, pois os sentidos também eram os mesmos. Instanciados nas

cognições ou disposições cognitivas, em estados psicológicos e cerebrais, os

sentidos estavam nas cabeças dos Oscares.

Consideremos agora a referência e a extensão. Aqui, como já vimos, a

resposta pode variar! Ela depende de quem estamos considerando como o sujeito

que através do sentido identifica a referência e calcula a extensão. Esses sujeitos

podem ser os próprios Oscares em 1750. Mas eles também podem ser sujeitos

esclarecidos de uma época posterior, se reportando aos proferimentos dos

Oscares, mas na consciência da estrutura química dos líquidos apontados por

eles em 1750.

Vejamos o primeiro caso. Para Oscar-1 e Oscar-2 em 1750 fica muito claro

que a referência da palavra ‘água’ é apenas o líquido <Ds + Dsd> e no máximo

algum x desconhecido. E também fica claro que essas referências são do mesmo

tipo. Afinal, a referência é determinada pelo sentido, que é o mesmo (não há

razão para pensar que o x possa ser diferente na terra e na terra-gêmea ou para se

especular sobre isso). E a extensão também é a mesma; ela é em 1750 a mesma

do líquido transparente, insípido etc. que inclui tanto a água da terra quanto a da

Terra gêmea. Assim, se em 1750 Oscar-1 e Oscar-2 pudessem trocar

informações sobre o preenchimento de seus critérios de aplicação do termo geral

‘água’ em ambos os planetas, sem dúvida eles concluiriam que, sendo ambos

igualmente satisfeitos, a extensão da palavra ‘água’ é a mesma, pois ela era

estabelecida pelas propriedades de superfície. Eles concordariam inclusive que a

própria causa de suas percepções do líquido que ambos chamam ‘água’ é a

mesma, pois ela é o mesmo líquido transparente, inodoro e insípido. Afinal, isso

é tudo o que eles em 1750 podiam identificar como sendo a causa eficiente dos

seus proferimentos. No máximo eles poderiam identificar a causa com uma 416

Page 417: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

estrutura subjacente x, mas pelo princípio de que ao mesmo efeito subjaz a

mesma causa, eles teriam tudo para supor que também a estrutura subjacente da

água é a mesma na terra e na terra-gêmea. 1

Consideremos agora como sujeitos cognitivos aqueles que sabem que a água

da terra tem a estrutura química H2O, enquanto que a água da terra-gêmea tem a

estrutura química XYZ. Digamos que nós em 2100 (após viagens espaciais até a

terra-gêmea etc.) saibamos disso. Nesse caso, ao considerarmos as afirmações

de Oscar-1 e Oscar-2 em 1750, nós poderemos dizer que em seus proferimentos

eles estavam se referindo a coisas diferentes: Oscar-1 se referia a H2O e Oscar-2

a XYZ. Mas ao dizermos isso o que estamos fazendo é identificar as referências

apontadas por Oscar-1 e Oscar-2 por meio de nossas próprias cognições, a

saber, por meio dos sentidos diversos que agora damos a palavra ‘água’, como

intérpretes do proferimento “Isso é água” aplicado ao líquido da nossa terra e ao

da terra-gêmea. Afinal, nosso sentido completo para a água da terra será alguma

coisa como (<Ds + Dsd> + <Dsp-H2O + /Dp-H2O/ + Dps-H2O>) enquanto o

nosso sentido completo para a água da terra-gêmea será, digamos (<Ds + Dsd>

+ <Dsp-XYZ + /Dp-XYZ/ + Dps-XYZ>). Nesse caso as referências serão

diversas porque os significados do termo geral – entendidos como sentidos

fregeanos determinadores da referência – são diversos, constituindo

pensamentos diversos verificados através de diferentes condições de verdade.

Esses pensamentos, por sua vez, são instanciados em estados psicológicosw e

correspondentemente também cerebrais de estrutura inevitavelmente diversa.

Quando as referências são diversas é, como já vimos, porque elas resultam de

uma espécie de projeção de nossos sentidos diversos na situação indexical em

que os Oscares fizeram as suas referências; os proferimentos dos Oscares são 1 Essa igualdade causal é particularmente clara quando pensamos nos Oscares neandertais, vivendo há 30.000 anos atrás: eles diriam que a causa de nossa percepção da água que molha é o próprio líquido transparente que cai das núvens, pois os seu sistema de explicação causal baseado no senso comum é mais simples e recorre a eventos de superfície como fatores causais.

417

Page 418: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

interpretados como instrumentos indexicais para a referência de nossos próprios

pensamentos. Uma conseqüência disso é que o cálculo da extensão também se

torna diferente. Para nós a extensão da água apontada por Oscar-1 em 1750 é

apenas a do líquido de estrutura H2O, restringindo-se à terra, enquanto a

extensão da palavra água apontada por Oscar-2 se restringe ao líquido da terra-

gêmea.

O que torna possível a variação do que é apontado como a referência e a

extensão? Como também já notamos, é o fato de que ambas são extramentais e

extralingüísticas. Pois como tal elas dependem, para serem identificadas, dos

sujeitos cognitivos e dos sentidos fregeanos que esses sujeitos dão à palavra,

variando com a pessoa que o instancia. A mesma palavra que é identificada por

Oscar-1 e Oscar-2 como tendo uma mesma referência, pode ser identificada por

nós como tendo uma referência diferente, posto que a ela integramos núcleos

semânticos diversos. Assim, se astronautas visitam a terra-gêmea e descobrem

que o líquido que lá é denominado ‘água’ tem a estrutura XYZ, podemos

concluir que os habitantes da terra-gêmea sempre se referiram a XYZ e que a

extensão da palavra ‘água’ é diversa. Mas não podemos esquecer que somos nós

mesmos que estamos fazendo isso, com base em nosso conhecimento da

essência subjacente diversa, ou seja, com base em sentidos diversos – um

relativo a água-H2O e outro relativo a água-XYZ – instanciados em nossos

próprios estados psicológicos e cerebrais correspondentes.

Podemos imaginar que Oscar-1 e Oscar-2 sejam trazidos pela máquina do

tempo até nós e que façam um curso intensivo de química, aprendendo que a

estrutura molecular da água é H2O na Terra e XYZ na terra-gêmea. Por conta

desses diferentes núcleos científicos de significação da palavra, eles concordarão

que em 1750 eles estavam “querendo dizer” (meaning) coisas diferentes. Nesse

caso, porém, eles estarão apenas admitindo que aquilo que eles significavam

(meant) em 1750, a saber, as referências extralingüísticas, eram diferentes, e não 418

Page 419: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

os significados (sentidos) que eles davam às palavras. E nesse caso eles se fiarão

em seus estados psicológicos e cerebrais atuais, que não serão menos diversos

do que os sentidos. A conclusão é, em qualquer dos casos, anti-putnamiana:

significados são sentidos; sentidos sempre determinam referências; sentidos

nunca estão fora das cabeças.

É possível conceber muitos casos semelhantes aos dos Oscares, que são

facilmente explicáveis usando a concepção neo-descritivista do significado da

palavra ‘água’ recém-exposta, tal como foi feito acima, mas cujas intuições

permanecem insuficientemente explicadas quando lhes aplicamos a teoria de

Putnam.

Suponhamos, por exemplo, que Lúcia tem dois gatos. Um deles é um felino

normal, enquanto o outro é um ser extra-terrestre que descobriu uma maneira de

viver bem adotando a forma de um gato doméstico. Mas Lúcia não sabe disso.

Contudo, se isso é um fato e no futuro ela vier a descobrir que isso é verdade,

então ela não concluirá que no passado, ao apontar para um dos gatos, ela estava

entendendo ou querendo dizer (mean) com isso a referência a um ser extra-

terrestre, nem que ela sempre colocou em consideração uma futura relação de

identidade-l com as propriedades de um ser extraterrestre, como a teoria de

Putnam pretende. Lúcia dirá que aquilo a que se referia como o seu gato

doméstico pode ser agora concebido por ela como tendo sido sempre uma

referência a um ser extraterrestre, ou até mesmo que ela sempre teria em

princípio tido por aceitável colocar em consideração alguma futura relação de

identidade-l, que ela não sabia qual poderia ser, mas que se revelou ser uma

identidade com as propriedades essenciais de um ser extra-terrestre. Ou seja:

como no caso com os gatos domésticos, os dois Oscares em 1750 se referiam à

estrutura molecular do composto químico que tinham diante de si tão pouco

quanto, digamos, Chapeuzinho Vermelho se referia ao lobo travestido de avó

quando ele lhe fez as conhecidas perguntas.419

Page 420: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

O mesmo ponto pode ser também demonstrado com o auxílio de um exemplo

realista, o do ouro branco, que é uma mistura de 75% ouro de 24 quilates com

25% de níquel e paládio, o que lhe dá a cor branca. Se uma pessoa que não sabe

identificar ouro branco apontar para um anel de ouro branco e dizer de

brincadeira “Isso é de ouro”. Para Putnam, essa pessoa deveria estar realmente

querendo dizer (meaning) que é de ouro, mesmo que não tenha a menor

consciência disso. Afinal, a relação de identidade-l é a das propriedades

superficiais experienciadas com a propriedade de conter 75% do elemento

químico de número 79. Na verdade, tudo o que podemos dizer é que uma pessoa

que desconhec o ouro branco ao apontar para ele estava se referindo a algo cuja

estrutura subjacente é sistematicamente referida por nós como contendo o

elemento de número atômico 79 em maior proporção; nós podemos mesmo

dizer que a pessoa potencialmente se referia ao elemento 79 e usar o

proferimento da pessoa como um instrumento indexical para o que temos em

mente. Nós podemos até mesmo inventar um conceito de referência potencial,

sugerindo então que a pessoa fez uma referência potencial ao elemento 79, a

qual será resgatada por qualquer um que saiba identificar o ouro branco através

dessa extensão do sentido. Mas nada disso vem a dar no mesmo que dizer que a

pessoa enquanto falante de fato se referia à estrutura ou essência subjacente,

muito menos que ele a significava, queria dizer, entendia, pensava ou

intencionava.

Como se deixa entrever, a teoria de Putnam demanda que já sejamos capazes

de entender, no sentido amplo, o significado de certas palavras nos sentidos que

elas têm para outros, ou até mesmo nos sentidos que elas terão um dia, muito

depois de termos desaparecido. Contudo, se uma pessoa espera de antemão que

o mágico irá tirar algo do chapéu, mas não sabe o que é, e o mágico tira do

chapéu um coelho, é absurdo concluir que a pessoa estava o tempo todo

pensando (meant) ou mesmo se referindo a um coelho. Em contrapartida, em um 420

Page 421: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

sentido estrito, a teoria de Putnam torna o nosso conhecimento do significado

meramente especulativo. Ela nos faz supor que só daqui a muitos anos, ou talvez

mesmo nunca, chegaremos a conhecer os significados que damos a termos que

usamos diariamente! Pois nunca poderemos saber que realmente chegamos a

conhecer o significado. Afinal, como podemos saber que a essência subjacente

foi realmente descoberta? Afinal, nenhum conhecimento científico é tão certo

quanto um saber derivado de convenções.1

Repetindo o que já antes dissemos: o principal equívoco inerente ao

argumento de Putnam é que ele passa sub-repticiamente do extensional para o

intensional, da conclusão de que a referência e a extensão eram diferentes

daquilo que os Oscares pensavam (o que é um lugar comum, posto que a

natureza da referência é extra-lingüística e extra-mental) para a conclusão de

que o significado e o entendimento sempre foram diferentes. Mas isso não pode

ser verdadeiro, pois a natureza do significado, assim como a natureza do que

entendemos com a palavra ‘água’, depende de convenções intralingüísticas de

instanciação intramental, que em 1750 eram iguais para ambos os Oscares. Os

nossos sentidos dependem de convenções lingüísticas. Já nossas referências e

extensões dizem respeito ao modo como o mundo é ou será ou foi, podendo ser

diversamente acessadas por linguagens ou sistemas de convenções diferentes.

Tudo o que Putnam realmente poderia concluir de sua experiência em

pensamento é que referência e extensão se encontram fora de nossas cabeças.

Mas com essa trivialidade todos concordam.

Revendo o conceito de identidade-l

Não obstante, o que dizer da explicação do significado extensional do termo por

meio da relação teorética a ser descoberta pela ciência de uma identidade-l entre

1 Para considerações semelhantes, ver Eddy Zemach: “Putnam’s Theory on the Reference of Substance Terms”, p. 66.

421

Page 422: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

a estrutura essencial do exemplar apontado e a da maioria dos outros exemplares

encontrados? O problema é que uma identidade-l que seja resultado final da

pesquisa científica parece ser em última análise incoerente, posto que não

podemos ter certeza de que qualquer identidade que venhamos a alcançar seja

realmente o resultado final da pesquisa científica. A alternativa que sugiro é que

a noção de identidade-l seja entendida em um sentido puramente extensional,

extralingüístico e extramental: trata-se simplesmente da identidade de essência

que os exemplares da extensão de um termo devem em geral manter entre si

para constituirem a sua extensão. A identidade-l dos exemplares de quantidades

de água hoje, por exemplo, é estabelecida pelo compartilhamento da estrutura

química H2O. Com base nisso, quando consideramos os exemplares de água

apontados por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750, diremos que a identidade-l apontada

por Oscar-1 era a existente entre volumes de H2O, enquanto a identidade-l

apontada por Oscar-2 era a existente entre volumes de XYZ, disso resultando

extensões diversas. Mas é preciso lembrar que usamos nossas próprias cabeças

para estabelecer essas extensões e não as cabeças de Oscar-1 e Oscar-2, que no

caso não contam. Pois o que estamos fazendo é, outra vez, usar os Oscares como

instrumentos indexicais, de modo a projetar o nosso sentido da expressão ‘a

extensão da aplicação da palavra ‘água’’ na determinação da substância

subjacente que cada um dos Oscares aponta e, usando-os como modelos,

estabelecer extensões. Se eles pudessem se comunicar, mantendo o insuficiente

conhecimento de química de sua época, eles poderiam concluir que a estrutura

subjacente alegadamente é a mesma, que os substratos X de porções de água da

terra e da terra-gêmea, com base no conhecimento tido na época, devem manter

identidade-l entre si, devendo a extensão ser a mesma. E quanto à identidade-l a

ser suposta pelos Oscares da idade da pedra lascada há 30.000 anos a.C.? A

resposta é que para os homens do período paleolítico não havia identidade-l a

vista. A palavra ‘água’ não poderia naquela época apontar mais para uma 422

Page 423: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

essência microestrutural comum do que as palavras ‘ar’, ‘pó’, ‘óleo’ e ‘urina’,

que podem denotar estruturas subjacentes mistas e muito variadas.

Podemos agora comparar a concepção da relação de identidade-l de Putnam

com a nossa. Eis como seria o esquema proposto por Putnam da evolução do

significado da palavra ‘água’, limitando-o a estereótipos e à relação de

identidade-l:

Significado: 1. 30.000 a.C.: água = (<Ds>...) + identidade-l com referências de Dp.2. 1750: água = (<Ds+ Dsd...>) + identidade-l com referências de Dp.3. 1850: água = (<Ds+ Dsd...>) + identidade-l com referências de Dp.

Enquanto o nosso esquema é:

Significado:1. 30.000 a.C.: água = <Ds>.2. 1750: água = <Ds + Dsd> + X>.3. 1850: água = <Ds + Dsd> + <Dsp + Dps + /Dp/>.

Temos aqui o contraste entre um primeiro esquema implausível e um

segundo esquema naturalmente convincente e razoavelmente aceitável. Só o

segundo esquema permite explicar satisfatoriamente a duplicidade de nossas

intuições semânticas sobre a referência e a extensão daquilo que é apontado

pelos Oscares em 1750. É só ele que explica nossa intuição de que sempre

tivemos conhecimento do significado da palavra ‘água’ e que esse significado se

desenvolveu com o tempo, que ele foi e é real, que ele não é uma mera hipótese

que acreditamos que a ciência já tenha resgatado, mas que talvez não, e que

talvez permaneça para todo o sempre desconhecido...

O resultado para o qual nossas considerações apontam é, por conseguinte, o

de que o esclarecimento do significado dos termos de espécie natural de nosso

423

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descritivista refinado se ajusta muito melhor aos fatos lingüísticos do que aquele

que Putnam tem a oferecer, devendo por isso ser preferido.

Descritivismo e o dilema de aplicação do conceito de água

A explicação basicamente neo-descritivista do significado de termos de espécie

natural recém-sugerida também nos permite resolver um conhecido dilema

concernente à aplicação do conceito de água – um conflito conceitual que nem a

teoria descritivista tradicional nem a teoria causal de Putnam/Kripke têm

condições de resolver.

A questão que gera o dilema nasce de uma separação entre propriedades

superficiais e estrutura subjacente, envolvendo duas suposições:

(a) Imagine que em algum lugar do mundo se descubra um líquido inodoro, transparente etc. que possui todas as propriedades superficiais da água (serve para beber, apaga o fogo etc.), mas cuja estrutura subjacente é completamente diferente, digamos XYZ. Podemos ou não dizer que esse líquido é água?(b) Imagine agora que em algum outro lugar do mundo sejam encontradas rochas sólidas, escuras como carvão, que não possuem nenhuma propriedade superficial da água (não servem para beber, não apagam o fogo...), mas que, acreditem ou não, são constituídos de H2O. Podemos dizer que essas rochas são feitas de água?

Descritivistas e causalistas responderão opostamente a essas questões.

Vejamos primeiro a resposta de filósofos defensores da concepção causal da

referência de termos de espécie natural, como Kripke e Putnam.1 Para esses

filósofos a microestrutura essencial da água, descrita por Dp, tem predominância

sobre todo o resto. Por isso eles responderam negativamente à questão (a): se

encontrarmos um líquido com todas as propriedades superficiais da água, mas

que não tem a estrutura molecular H2O, esse líquido não pode ser água. E

1 Kripke: Meaning and Necessity, pp. 128-9.424

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quanto à questão (b), a resposta precisa ser afirmativa: mesmo que a substância

não apresente nenhuma das propriedades superficiais da água, como essa

substância é feita de H2O, ela precisa ser feita de água.

Filósofos descritivistas, como A.J. Ayer e outros críticos de Putnam,

privilegiaram as estruturas de superfície e se apegaram às intuições opostas: o

que vale são as propriedades fenomenais e não a estrutura química subjacente.1

Por isso eles responderam afirmativamente à questão (a): se em algum lugar da

Terra encontrarmos um líquido com a estrutura superficial da água, mas com

estrutura química XYZ, nós não deixaremos de classificá-lo como sendo água;

nós diremos apenas que é água de um outro tipo. Quanto à questão (b), eles a

responderam negativamente, dizendo que mesmo que as rochas tenham a

estrutura molecular H2O, elas não podem ser água, pois em nada se aparentam

com o líquido transparente, insípido e inodoro com o qual estamos acostumados.

Quem estará certo? O causalista ou o descritivista? Há aqui um choque de

intuições. Se pensarmos como o descritivista, as respostas parecem umas; se não

as respostas parecem outras. Ora, a versão mais complexa de descritivismo que

propomos permite predizer e explicar o choque de intuições. Esse choque resulta

tão somente do fato de a palavra ‘água’ ter dois núcleos diferentes de

significado, parcialmente distinguíveis entre si, que são <Ds + Dsd>, o núcleo

popular, e <Dsp + /Dp/ + Dps>, o núcleo científico. As situações imaginadas são

aquelas nas quais são encontradas entidades que satisfazem apenas um dos

núcleos semânticos, sendo o outro satisfeito por núcleos semânticos de outros

termos (por exemplo ‘carvão’ ou ‘XYZ’). Assumindo que cada núcleo

semântico tem um mesmo peso, ficamos divididos e sem critérios para saber que

termo devemos aplicar.

1 A.J. Ayer: Philosophy in the Twentieth Century, p. 270. Ver John Dupré: “Natural Kinds”, p. 318. Ver também Eddy Zemach, “Putnam’s Theory on the Reference of Substance Terms”, ibid, pp. 61-62, e D.H. Mellor: “Natural Kinds”, p. 72.

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Essa é uma possibilidade. Mas na prática não precisa ser assim. Parece-me

claro que o peso de cada núcleo semântico é capaz de sofrer variações de acordo

com o que poderíamos chamar de contexto de interesses associado ao

proferimento. Chamo de contexto de interesse de um termo o contexto que eleva

o valor de aspectos do significado que as pessoas estão pragmaticamente

valorizando ao usá-lo. Imagine que se trate de um contexto de interesses

científico, envolvendo falantes versados em química, que se encontram em um

laboratório e objetivam fazer um experimento separando os gases que compõem

amostras de água. Nesse caso, o núcleo semântico científico é privilegiado. A

palavra ‘água’ está sendo usada no lugar de expressões como ‘hidróxido de

hidrogênio’ ou ‘monóxido de di-hidrogênio’, termos científicos que têm como

função semântica exclusiva exprimir o núcleo semântico <Dsp-H2O + /Dp-H2O/

+ Dps-H2O> na referência a amostras de líquidos com estrutura química H2O.

Nesse caso se preferirá dizer que o líquido transparente etc. de estrutura química

XYZ decididamente não é água e, no esforço de tirar água (H2O) das pedras, os

químicos dirão que as rochas com aparência de carvão são rochas d’água.

Considere agora, para contrastar, um contexto de interesses da vida ordinária.

Digamos que o falante pertença a uma comunidade de pescadores que tem como

objetivo cavar um poço para obter água para beber, lavar, tomar banho. Para ele

tanto faz se a estrutura química efetiva do composto é H2O ou XYZ, conquanto

ela sirva aos devidos fins. Nesse caso, o velho núcleo semântico da linguagem

popular pode ser considerado o mais importante, pois mesmo que informados de

que a estrutura química do que eles estão usando não é H2O, eles não deixarão

de aplicar o termo no sentido considerado.1 Já se as propriedades fenomenais se

alterassem, deixando a substância de cumprir com as suas funções usuais, como 1 Algo semelhante realmente ocorreu na China com a palavra ‘jade’. O jade antigo (nefrite) acabou sendo em sua maior parte substituído por uma pedra aparentemente idêntica, mas com estrutura química muito diferente (jadeíte). Ainda assim o mesmo nome permaneceu sendo aplicado também a segunda pedra. Ver Joseph Laporte: Natural Names and Conceptual Change, p. 96.

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no caso das pedras com estrutura química H2O, a tendência será concluir que

elas não tem nada a ver com água por não ter nada a ver com o que eles esperam

do conceito.

O mesmo se daria com uma ‘água’ como a encontrada na Terra-gêmea. Se o

contexto de interesses for o de uma discussão entre cientistas, pode ser vantajoso

que se privilegie <Dsp-H2O + /Dp-H2O/ + Dps-H2O>, entendendo-se por ‘água’

o mesmo que ‘hidróxido de hidrogênio’ e concluindo-se que XYZ não é água,

tal como Putnam sugeriu. Já no contexto de nossos interesses ordinários pode

valer mais a pena privilegiar <Ds + Dsd>, concluindo daí que se trata apenas de

uma outra espécie de água, tal como sugeriram os críticos de Putnam. A melhor

resposta para o dilema, pois, é que a semântica da palavra ‘água’ é

suficientemente flexível para nos permitir escolher o corno do dilema que

preferirmos segurar. E o corno preferido é sempre a descrição, o sentido

fregeano que o contexto de situação nos leva a pragmaticamente valorizar.

Podemos terminar observando que o equívoco semântico produzido pela

fantasia da terra-gêmea envolve uma falácia genética. É claro que se o mundo

não possuísse elementos que nos permitissem chegar ao conceito de água, não

teríamos acesso ao sentido do termo. Nesse sentido trivial, o significado está na

dependência da constituição externa das coisas, sendo causalmente determinado

por elas. Mas nesse caso o mundo é apenas um elemento causal externo, que

mais ou menos indiretamente determina a formação de nossas convenções

semânticas e suas instanciações mentais. Mas o mundo não é determinador do

significado, nem de nosso pensamento e entendimento das coisas como

constituintes dele mesmo. O externalismo semântico se alimenta dessa falácia

genética, que consiste em confundir as causas últimas de nossas intuições

semânticas (que costumam ser externas) com os seus efeitos (que são estados

mentais representacionais internos, instanciadores de um conteúdo semântico

psicológico diversamente distribuído entre os falantes). Se o efeito é uma 427

Page 428: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

representação, essa representação não depende necessariamente, para a sua

existência, da existência daquilo que ela representa. Pois a representação pode

resultar de uma combinação de elementos causais os mais diversos, como

demonstram os produtos de nossa imaginação. Devido à imensa flexibilidade

dos mecanismos representacionais refletidos pela linguagem, nossas

representações freqüentemente apresentam uma relação muito remota com as

suas causas.

O elemento social do externalismo de Putnam

Antes de terminarmos, precisamos ainda considerar rapidamente os dois outros

exemplos de Putnam.

No primeiro ele supõe que alumínio e molibdênio só sejam distinguíveis

entre si por metalúrgicos e que a terra-gêmea esteja cheia de molibdênio, metal

raro na terra. Além disso, ele imagina que os habitantes da terra-gêmea chamem

o molibdênio de alumínio e vice-versa. Nesse caso, certamente, a palavra

‘alumínio’ dita por Oscar-1 terá uma extensão diferente da palavra ‘alumínio’

dita por Oscar-2, de modo que eles querem dizer (mean) coisas diferentes com a

palavra. Mas como eles não são metalúrgicos, eles têm os mesmos estados

psicológicos. Logo, o significado é externo ao que acontece em suas cabeças.

No segundo exemplo, Putnam considera a diferença entre olmos e faias. A

maioria de nós não sabe distinguir olmos de faias em uma floresta. Contudo,

mesmo assim somos capazes de usar essas palavras sem que as suas extensões

deixem de ser diferentes: olmos são olmos e faias são faias. Assim, o que

queremos dizer com essas palavras, os significados que a elas atribuímos, são

diferentes, mesmo que essa diferença não esteja em nossas mentes.

Putnam tira uma conclusão surpreendente desses casos imaginários: assim

como no caso da água da terra-gêmea, o significado está no mundo físico

externo, nos casos recém-expostos ele está na sociedade. Para isso ele introduz a 428

Page 429: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

importante idéia da divisão de trabalho da linguagem. As palavras requerem a

atividade cooperativa de um número de pessoas para poderem ser efetivamente

usadas. Não sabemos distinguir alumínio de molibdênio, nem olmos de faias.

Mas isso não importa, pois o meio social é capaz de distingui-los por nós. Há em

nossa comunidade lingüística especialistas e outros falantes com a habilidade de

reconhecer por nós as espécies naturais pelas suas características essenciais.

Pelo simples fato de pertencermos a essa comunidade, mesmo não sabendo

quais são as propriedades distintivas da maioria das espécies naturais, somos

capazes de usar palavras como ‘alumínio’ e ‘molibdênio’, ‘olmo’ e ‘faia’ no

sentido que elas têm e referir-nos às suas extensões, mesmo que não saibamos

reconhecer as suas essências causais. Como Putnam corretamente conclui:

O estado psicológico do indivíduo não fixa a extensão; somente o estado sociolingüístico do corpo lingüístico coletivo ao qual o falante pertence é que fixa a extensão.1

Essa sugestão de Putnam é importante. Errônea é apenas a interpretação

externista que ele lhe sugere. Como já consideramos ao discutirmos a divisão de

trabalho da linguagem com respeito ao nosso conhecimento do conteúdo de

nomes próprios, Putnam não foi o primeiro a apontar para a existência de uma

divisão de trabalho da linguagem; isso já foi feito por C.S. Peirce e antes dele

pelo próprio Locke, dentro do contexto de sua teoria descritivista e internalista

do significado como idéia mental. E a razão disso é, como já notamos, que a

hipótese da divisão do trabalho linguístico é perfeitamente compatível com uma

perspectiva cognitivista-descritivista ou neofregeana.2 É verdade que podemos

usar palavras como ‘molibdênio, ‘olmo’ e ‘faia’, sem saber o que elas

significam, sem a habilidade de reconhecer as suas referências. Também é 1 H. Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’”, p. 14.2 Ver Michael Dummett: Frege: Philosophy of Language, pp. 138-9. D.H. Mellor: “Natural Kinds”, p. 73.

429

Page 430: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

verdade que nos fiamos nos especialistas (metalúrgicos, botânicos...), a saber,

nos usuários privilegiados dessas palavras na comunidade lingüística para uma

identificação suficiente, definitoriamente garantida. Mas o fato é que sempre

sabemos alguma coisa mais ou menos genérica sobre os significados dessas

palavras, por exemplo, quando apenas conhecemos os seus marcadores

sintáticos ou semânticos. Por isso precisamos distinguir entre o conhecimento

suficiente e o conhecimento insuficiente do significado; o primeiro é o que faz

possível a referência identificadora no seu sentido próprio, dizendo respeito ao

conteúdo representacional ou cognitivo que Frege tinha predominantemente em

mente quando usou a palavra Sinn, enquanto o segundo possibilita apenas uma

inserção adequada da palavra em um dado contexto discursivo. Com exceção de

palavras muito usuais, nosso conhecimento do significado costuma ser

insuficiente. Há muitas palavras com relação as quais todos nós temos

conhecimento suficiente do que elas querem dizer; todos sabemos, por exemplo,

que ‘cadeira’ significa o mesmo que ‘banco com encosto’. Mas esse não

costuma ser o caso de termos científicos e técnicos. Eu tenho conhecimento

insuficiente do significado das palavras ‘molibdênio’ e ‘olmo’ – às quais sou

capaz apenas de associar respectivamente as descrições ‘um metal’ e ‘um tipo de

árvore’. Putnam nota corretamente que a representação mental que nos fazemos

ao pensar em olmos e em faias não difere, pois tudo o que pensamos do olmo é

que ele é uma árvore diferente da faia e da faia que ela é uma árvore diferente do

olmo, mas que, sendo simétricas, essas representações não se distinguem entre

si.1 Em certa medida é verdade. Por isso não ficaría sequer muito surpreendido

se fosse informado que olmos são a mesma coisa que faias. Contudo, meu

conhecimento insuficiente da referência já me permite, por exemplo, saber

1 H. Putnam: Representation and Reality, p. 29. Na verdade elas se distinguem quanto à palavra a que se associam: a representação de uma árvore associada à palavra ‘olmo’ e a palavra ‘faia’, de modo que a descrição “uma árvore de nome ‘faia’” só se aplica seguramente a faias e não a olmos, sob a suposição bem plausível de que não são sinônimos.

430

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outras coisas, como que olmos e faias não são feitas de molibdênio e que uma

panela de metal não pertence à classe dos olmos. Com isso já posso entender

proferimentos com essas palavras e mesmo empregá-las corretamente na

linguagem em contextos bem pouco exigentes. E posso fazer isso porque tenho

consciência da insuficiência de meu conhecimento e porque muitas vezes o que

os ouvintes precisam e esperam é apenas a informação vaga e incompleta e

porque nos fiamos no conhecimento suficiente do sentido dessas palavras, que

geralmente se encontra nas mentes dos seus usuários privilegiados, como é o

caso do metalúrgico e do botânico.

O que Putnam falha em considerar aqui (movido pelo seu compromisso

externista) é apenas o fato de que uma sociedade lingüística não seria capaz de

fazer referência a espécies de coisas se em algum momento não emergisse um

elemento cognitivo capaz de aplicar os critérios de identificação necessários.

Assim, embora o que determina a referência não precise ser um adequado estado

psicológico do falante, para que a referência seja determinada ela precisará

depender de estados psicológicos de membros autorizados do corpo lingüístico

coletivo; e tais estados psicológicos instanciam sentidos descritivos, que por sua

vez determinam as extensões.1 Pode mesmo ser que o conteúdo informativo

esteja dividido entre os membros da sociedade, mas nesse caso eles se

complementarão permitindo a caracterização. Podemos até imaginar que certos

termos tenham o seu conteúdo armazenado em computadores, ou que autômatos

sejam capazes de aplicá-los para nós e que as regras de identificação sejam

automaticamente geradas por eles, de modo que nenhum ser humano precise

conhecê-las. Mas nesse caso já admitimos que essas regras potencialmente

existem, pois ao virem inscritas em computadores e autômatos identificadores,

torna-se possível para nós resgatá-las cognitivamente. Podemos dizer que uma 1 De resto, como notou Searle, “a tese de que o sentido determina a referência dificilmente pode ser refutada pela consideração de casos de falantes que sequer conhecem o significado ou que o conhecem só imperfeitamente”. Intentionality, p. 201.

431

Page 432: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

palavra cuja regra de aplicação tenha sido gerada em seu conteúdo expressivo

por um computador, ou que seja aplicável por um robot caracterizador-

identificador seria em sua significatividade e referencialidade sempre

dependente, em última análise, de intérpretes humanos, ao únicos capazes delhes

doar significado, sendo por isso apenas potencialmente significativa. Ou seja:

mesmo nesses limites extremos significação e referência são fenômenos

antropomórficos que em algum momento demandam ou pressupõem cognição.

Imagine, por exemplo, que uma guerra atômica fizesse desaparecer todos os

cientistas e os meios de acesso à ciência, restando apenas algumas poucas

pessoas sem qualquer conhecimento de ciência, que conseguem sobreviver em

uma comunidade. Nesse caso, termos de física como ‘neutrino’, ‘força forte’ e

‘supercorda’ não seriam mais capazes de denotar mais coisa alguma, mesmo que

elas ainda pudessem ser lembradas ou lidas em algum lugar. Pois dizer que

leigos – sem a possível orientação de especialistas – se referem a algo com essas

palavras é pouco mais do que um simples modo de falar. De fato, dizer que

pessoas sem conhecimento profundo de física sabem o que essas palavras

significam (no sentido fregeano de conteúdo informativo) também não passa de

um grande exagero. Nosso conhecimento de seus sentidos é profundamente

genérico e insuficiente.

O problema é que Putnam hipostasia o uso correto que fazemos das palavras,

mesmo com conhecimento insuficiente do significado e da referência, como se

nele já significássemos e pessoalmente referíssemos plenamente, como se por

um efeito mágico das cadeias causais externas que se combinam na divisão do

trabalho da linguagem. Mas o falante que conhece insuficientemente o

significado de uma palavra que usa não designa sozinho; as suas palavras têm

apenas o que poderíamos chamar de uma referência potencial, na medida em

que ele (sob a condição e ser consciente da extensão de sua ignorância) é capaz

de inseri-las corretamente no discurso. Pois ao fazer isso ele comunica as 432

Page 433: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

esperadas vaguidades semânticas que permeiam nossa compreensão cotidiana

das palavras sob o suposto de que existem falantes mais competentes capazes de

lhes atribuir os sentidos adequados e torná-las referencialmente eficazes. Tais

palavras são como notas promissórias de seus sentidos e referências. Nós

confiamos que usuários com conhecimento suficiente dos seus sentidos sejam

capazes de resgatá-los.

O significado só existe enquanto está na mente das pessoas, pois mesmo que

a sua regra esteja, digamos, inscrita nos caracteres de um livro, ou guardada na

memória de computadores, ou mesmo que seja aplicada por um autômato, ela

não é enquanto tal significativa nem é uma regra no sentido que nos interessa da

palavra. Ela só se torna verdadeiramente uma regra semântica enquanto for

interpretada por um agente humano. Uma expressão de regra, como

Wittgenstein notou, pode ser sujeita a um número indeterminado de

interpretações; para que lhe seja dada uma interpretação apta a consenso e

portanto apta a ser socialmente usada e a pertencer à linguagem, ela precisa da

natureza humana que possa constituir a base homogênea sobre qual se pode

construir a forma de vida.

A conclusão de toda essa discussão é que em momento algum o significado

existe fora das cabeças, mesmo que ele venha diversamente distribuído nas

cabeças dos membros da comunidade lingüística. Divida-se o bolo como se

quiser, o significado não está nem na natureza externa nem no corpo lingüístico

coletivo externamente observável; ele há de estar sempre em cabeças

particulares, sejam elas a do falante ou a do intérprete, a do leigo ou a do

especialista, mesmo que desigualmente dividido entre os componentes

formadores da comunidade lingüística e mesmo que parcialmente guardado na

memória artificial de computadores. Devidamente qualificado, o descritivismo é

ubíquo.

433

Page 434: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Tyler Burge e o externalismo do pensamento

Há uma experiência em pensamento complementar à de Putnam, que foi

imaginada por Tyler Burge com respeito ao conceito de artrite. O que Burge

pretendeu foi, para além de Putnam, mostrar que não só o significado deve ser

entendido de maneira extensional, mas que os próprios conteúdos de

pensamento têm determinação externa. Quero resumir o argumento de Burge e

em seguida mostrar que há uma explicação internalista muito mais plausível

para o que acontece.

Embora Burge exponha o seu argumento imaginando uma situação contra-

factual, podemos torná-lo mais claro imaginando que uma pessoa de nome

Oscar sinta dor na coxa e procure um médico dizendo

Acho que tenho artrite na coxa.

Como artrite é entendida como uma inflamação dolorosa e deformante das

juntas, o médico lhe explica que a sua crença é falsa, que ele não pode ter artrite

na coxa. Imagine agora que Oscar viaje para uma região do país na qual seja

costume usar a palavra ‘artrite’ de um modo muito mais amplo, para se referir a

toda e qualquer inflamação. Chamemos a comunidade lingüística dessa última

região de B, e chamemos a comunidade lingüística da primeira região de A.

Suponha que, uma vez tendo chegado à região da comunidade lingüística B,

Oscar procure um médico com a mesma queixa “Acho que tenho artrite na

coxa”. Nesse lugar, como seria de se esperar, o médico irá confirmar a suspeita,

concordando com a verdade de sua crença.

Com base nesse exemplo, o raciocínio de Burge é o seguinte. Sem dúvida os

estados psicológicos de Oscar ao dizer que acredita ter artrite na coxa na

primeira e na segunda vez são exatamente os mesmos, assim como o seu

comportamento. Mas os conteúdos de crença, os pensamentos expressos nos 434

Page 435: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

proferimentos, são diferentes, posto que o pensamento expresso pelo primeiro

proferimento é falso, enquanto o pensamento expresso pelo segundo é

verdadeiro. Podemos até marcar o significado diverso da palavra ‘artrite’ no

segundo proferimento com uma nova palavra, ‘cotrite’ (thartritis). A conclusão

do argumento é que o conteúdo de pensamento não pode ser algo meramente

psicológico. Esse conteúdo deve pertencer também ao mundo externo, às

relações sociais da comunidade que envolve o falante.

Contra essa conclusão é possível encontrar uma explicação internalista e

descritivista para o que acontece. Para o internalismo a palavra ‘artrite’ deve

exprimir um conjunto de regras-descrições constitutivas de seu significado. Uma

delas, ‘uma inflamação que ocorre na coxa’, faz parte do sentido da palavra para

a comunidade lingüística da região B, mas não para a comunidade lingüística da

região A. Assim, embora o conteúdo de pensamento expresso na frase “Acho

que tenho artrite na coxa”, dito por Oscar nas regiões A e B possa ser

considerado exatamente o mesmo, há uma diferença que foi justamente

lembrada por John Searle em uma crítica que vai ao cerne da questão:

É uma pressuposição de pano-de-fundo por trás do nosso uso social das palavras que nós compartilhamos significados comuns com outras pessoas em nossa comunidade.1

Ou seja: quando Oscar diz ao primeiro médico “Creio que tenho artrite na

coxa”, ele está pressupondo que a regra de aplicação do predicado ‘artrite na

coxa’ pertence à linguagem que ele está usando, ou seja, que os outros falantes

competentes da linguagem a consideram convencionalmente aplicável. O que

ele tem em mente ao proferir a sua frase diante do primeiro médico poderia ser

reapresentado como

1 J.R. Searle: Mind: A Brief Introduction, p. 184.435

Page 436: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

(1) Tenho artrite na coxa e a regra de aplicação do predicado ‘artrite na coxa’ é aceita como correta pelos falantes da comunidade lingüística A, a qual pertence o meu interlocutor.

Essa é uma frase falsa porque a segunda sentença da conjunção é falsa.

Vejamos agora como fica a explicitação daquilo que Oscar tem em mente

quando diz ao segundo médico que acha que está com artrite na coxa:

(2) Tenho artrite na coxa e a assunção de que a regra de aplicação do predicado ‘artrite na coxa’ é aceita como correta pelos falantes da comunidade lingüística B, à qual pertence o meu interlocutor.

A frase (2) é verdadeira porque exprime uma conjunção verdadeira. E a

diferenca de sentido entre (1) e (2) é evidente, pois enquanto uma está

indexicalmente associada à comunidade linguística A, a outra está

indexicalmente associada à comunidade linguística B. Pode ser verdade que se

nos restringirmos ao conteúdo expresso, os pensamentos de Oscar ao proferir a

mesma frase nas regiões A e B sejam idênticos. Mas o que eles têm em mente

(atualmente e disposicionalmente) com os proferimentos – o conteúdo completo

de seus pensamentos – é mais do que isso, pois há uma assunção disposicional

que envolve a situação indexical do falante, cujo valor-verdade varia com a

comunidade linguística envolvida, sendo diferente para cada proferimento.

Trata-se do pressuposto discursivo indispensável de que as regras de verificação

constitutivas do pensamento devam estar em conformidade com as convenções

da comunidade linguística na qual ele é expresso. Esse pressuposto é

transgredido por Oscar quando ele fala com o médico da comunidade A, mas

não é transgredido quando ele fala com o médico da comunidade B. É isso o que

explica porque o pensamento de Oscar em A é falso, enquanto o pensamento de

Oscar em B é verdadeiro. O pressuposto de que o pensamento expresso deve

estar em conformidade com as regras da linguagem não é, porém, externo ao 436

Page 437: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

falante. Ele é um elemento psicológico de ordem disposicional, que completa o

conteúdo de pensamento e que pode ser explicitado por Oscar sempre que isso

for requerido.

Burge chamou-nos atenção para alguma coisa importante: que a verdade ou a

falsidade do pensamento completo, incluindo o que ele pressupõe, depende da

comunidade lingüística que envolve o falante. Mas diversamente do que ele

pensam, essa dependência não é externa no sentido de o pensamento não ser

psicológico, encontrando-se como que disperso no meio social. A dependência

social reside exclusivamente em a comunidade lingüística satisfazer ou não uma

condição de verdade interna ao pensamento no sentido amplo, nomeadamente, a

condição de que a regra de aplicação do termo ‘artrite’ usada pelo falante seja

uma regra fundamentada nas convenções lingüísticas da comunidade lingüística

com a qual ele se comunica.

Finalmente, a explicação dada nos permite parafrasear em termos

internalistas a distinção entre conteúdo estreito (narrow content) e conteúdo

amplo (wide content), ao menos para o caso em questão. Para o externalista, o

conteúdo estreito é aquele que está na mente do falante, enquanto o conteúdo

amplo é aquele que está lá fora, no mundo ou na sociedade. A análise

internalista do exemplo de Burge nos permite sugerir que o conteúdo estreito de

pensamento é a própria ocorrência cognitivo-linguística do pensamento

(expresso pela frase “Acho que tenho artrite na coxa”), enquanto o conteúdo

amplo do pensamento nada mais é do que aquilo que está sendo efetivamente

assumido no que é pensado, existindo na mente do falante como uma disposição

cuja existência é certa, dado que uma vez considerada será indiscutivelmente

aceita.

Identidade de espécies naturais

437

Page 438: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Uma questão que pode agora ser colocada é como se comportam identidades de

espécies naturais como “Água é H2O”. Para causalistas-essencialistas como

Kripke e Putnam termos como ‘água’ e ‘H2O” são designadores rígidos. Eles se

referem ao mesmo tipo de coisa em qualquer mundo possível, daí resultando que

“Água = H2O”, embora sendo um enunciado a posteriori (posto que a sua

verdade é derivada da experiência), é necessário (pois designa a mesma essência

H2O em qualquer mundo possível). Já para descritivistas tradicionais, essa seria

uma proposição a posteriori, posto que sua verdade é derivada da experiência, e

também contingente, posto que a água (descrita como ‘líquido transparente,

inodoro etc.’) poderia não ter a composição química H2O, mas alguma outra.

Avrum Stroll sugere que “Água é H2O” não é realmente uma sentença de

identidade, pois o ‘é’ não é o da identidade, mas o de constituição. Assim,

“Água é H2O” não quer dizer “Água = H2O”, mas “Água é constituída de H2O”,

pois se realmente “Água = H2O”, então também “Gelo = H2O” e “Vapor d’água

= H2O”, do que resulta, por transitividade, que “Água = gelo” e “gelo = vapor

d’água”! Esse resultado é suportado pelas nossas análises da regra de aplicação

da palavra ‘água’ e ‘H2O’. Mas mesmo que Stroll esteja certo, as diferenças

persistem, pois os causalistas-essencialistas poderão dizer que “A água é

constituída de H2O” é uma proposição a posteriori, mas necessária, pois H2O é

a essência constitutiva da água em qualquer mundo possível, o que será por sua

vez rejeitado por descritivistas adeptos da contingência da relação de

constituição. Mas quem, no final das contas, estaria certo?

Ao menos no caso desse exemplo (e receio que também em outros) a resposta

neo-descritivista me parece mais adequada. A relação que existe é de

pertinência, a frase é contingente e a posteriori. Para evidenciá-lo, basta

comparar as regras de classificação dos conceitos de água e H2O. A regra de

aplicação para ‘água’, RC-‘água’, pode ser explicitada pela seguinte frase

analítica:438

Page 439: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Usamos o termo geral ‘água’ para nos referirmos a exemplares de uma substância química contida em x see ela pode nos fazer conscientes de que (i) ela satisfaz as regras de caracterização expressas pelo núcleo semântico popular <Ds + Dsp> e/ou pelo núcleo semântico científico <Dps + /Dp/ + Dsp> associado à palavra (ii) em medida no todo suficiente e (iii) sem competição com regras conceituais de outros termos de substâncias químicas.

Enquanto a regra de aplicação para o termo geral ‘H2O’, RC-‘H2O’, é mais

restrita:

Usamos o termo geral ‘H2O’ para nos referirmos a exemplares de uma substância química contida em x see pode nos fazer conscientes de que (i) x satisfaz as regras de caracterização expressas pelo núcleo semântico científico <Dps + /Dp/ + Dsp> associado à palavra (ii) em medida no todo suficiente e (iii) sem competição com regras conceituais de outros termos de substâncias químicas.

A frase “Água é H2O” quer dizer que se acredita que a tudo o que aplicamos

a segunda regra aplicamos também a primeira. A experiência nos mostra que de

fato é assim. Mas essa é uma verdade contingente, baseada na experiência e em

princípio falseável através dela.

Outras alternativas são aquelas em que o entendimento do termo ‘água’ sofre

modificações devidas ao contexto de interesse. Esse pode bem ser o caso do

entendimento de Kripke e Putnam, que é científico. Dentro do contexto

científico o termo ‘água’ passa a significar a mesma coisa que o termo ‘H2O’.

Nesse caso a regra RC-água será a mesma que RC-H2O, donde resulta que “H2O

é água” se torna uma frase analítica e necessária. Mas essa frase necessária é

obviamente a priori, posto que a sua verdade pode ser sabida independentemente

da experiência. Igualmente, se substituirmos a palavra ‘água’ por hidróxido de

hidrogênio, que é o que ela significa aqui, a frase “hidróxido de hidrogênio =

H2O” é necessária e a priori, pois a regra de aplicação é a mesma. É com pesar, 439

Page 440: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

contudo, que devo informar que nenhum traço de necessário a posteriori foi

visto por essas paragens.

Resumindo o meu argumento. Que o enunciado “Água é H2O” possa parecer

metafisicamente necessário, pois necessário a posteriori, resulta de uma

ambiguidade no que podemos entender com a palavra ‘água’. Em seu

significado mais genérico, estabelecido por RC-‘água’, dizer que água é H2O é

contingente e a posteriori, pois nem toda a água precisa ser constituída de H2O.

Em seu sentido mais popular, nomeadamente, no contexto das necessidades

cotidianas, a palavra ‘água’ remete a um líquido transparente, insípido e

inodoro, que aplaca a sede e apaga o fogo. Nesse sentido a frase “Água é H2O” é

contingente e a posteriori, ou seja, sintética, pois o predicado, usando o linguajar

kantiano, adiciona algo ao sujeito. Todavia, em seu entendimento científico, que

se estabeleceu na primeira metade do século XIX, em contexto de interesses

científicos, a água é uma substância com estrutura molecular H2O,

cientificamente chamada de hidróxido de hidrogênio, óxido de hidrogênio ou

monóxido de dihidrogênio. Se tivermos em mente esse sentido, a frase “Água é

H2O” é a priori, mas é necessária, ou seja, analítica, pois o predicado não

adiciona nada ao sujeito, uma vez que ela quer dizer o mesmo que “Hidróxido

de hidrogênio é H2O”. Um crítico de Kripke dirá que ele confunde esses dois

sentidos da palavra ‘água’ ao analisar a frase “Água é H2O”, usando o

entendimento popular da palavra ‘água’ para dizer que essa é uma verdade a

posteriori e usando o entendimento científico da mesma palavra para dizer que

essa é uma verdade necessária. Mas “Àgua é H2O” é uma frase ambígua. Ela

pode ser interpretada como a posteriori e sintética ou como analítica a priori. O

que ela não pode é ser interpretada como sendo metafisicamente necessária, pois

falta base suficiente para tal.

440

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12. AS IRREGULARIDADES DO TERRENO

CONCEITUAL

Como vimos no capítulo anterior, as teorias descritivistas tradicionais dos

termos gerais eram demasiadamente rudimentares. Foi em parte devido a esse

caráter simplista das teorias descritivistas que se abriu um espaço para a teoria

causal da referência dos termos gerais e o externalismo semântico, sugerindo

que as palavras precisam significar mais do que são convencionadas a significar,

posto que em sua dimensão relevante, que é a da determinação da referência, os

441

Page 442: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

significados são externos às nossas mentes. Já vimos, porém, que em seu sentido

próprio o externalismo semântico é insustentável. Embora não queiramos negar

a influência de um elemento causal externo na fixação da referência, ela é aqui

ainda mais elusiva do que no caso dos nomes próprios.

Nosso objetivo deveria ser agora o de desenvolver uma mais adequada teoria

descritivista dos termos gerais, seguindo um modelo paralelo ao proposto para

os termos singulares. Contudo, o terreno que se encontra a nossa frente parece

bem mais acidentado. Não há uma única classificação coerente para os termos

gerais e parece claro que não há um princípio único determinando as suas regras

de aplicação. Por isso e porque a questão demanda investigações mais

particularizadas, não pretendo fazer mais do que esboçar algumas breves

sugestões, admitindo a necessidade de um exame muito mais detalhado.

Uma classificação para os termos gerais

Na tentativa de estabelecer uma classificação geral dos termos gerais, quero

começar propondo uma tricotomia que retém certa analogia com aquela que

divide os termos singulares em indexicais, descrições e nomes próprios. Por isso

divido os termos gerais respectivamente de indexicadores, descritivadores e

nominadores.

Os termos gerais indexicadores são os que só se definem em contextos

indexicais. Exemplo de termos gerais indexicadores seriam palavras como

‘vermelho’, ‘redondo’, ‘quente’. Característico desses termos é que eles não se

deixam analisar na forma de descrições, ao menos quando entendidos como

designações de aparências fenomenais ou seus correlatos. Em contextos

perceptuais eles podem ser usados junto a indexicais de modo a determinar a

referência sem a intermediação de descrições. Não há como analisarmos

fenomenalmente os termos gerais em proferimentos como “Vermelho ali”,

“Redondo lá” ou “Eu sinto calor”. Não há como aprendermos o significado 442

Page 443: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

fenomenal das palavras ‘vermelho’ ou ‘redondo’ ou ‘quente’ sem sermos

apresentados a coisas vermelhas ou redondas ou quentes, ou seja, sem

recorrermos ao uso dessas palavras em proferimentos indexicais. Nesse sentido

eles são análogos aos indexicais.

Não é difícil encontrarmos também termos gerais descritivadores, análogos

às descrições definidas, mas com função classificadora ao invés de

individuadora. Esses predicados são complexos e podem sem muita dificuldade

ser traduzidos na forma de descrições indefinidas, como é o caso de ‘...um

filósofo apreciador do belo sexo’, que pode ser aplicada tanto a Abelardo quanto

a Rousseau ou a Russell. Um imenso número de predicados se caracteriza de

forma descritiva.

Há, finalmente, termos gerais nominadores, nomes gerais cuja forma

simbólica é não-descritiva, mas que são analisáveis de modo em certa medida

análogo ao dos nomes próprios, dado que abreviam descrições ou conjuntos de

descrições. Esses são termos de espécies naturais como ‘tigre’, termos de massa

como ‘água’, termos de artefatos como ‘cadeira’, termos sociais como

‘professor’ e ainda termos sócio-culturais como ‘religião’. Eles podem ter maior

flexibilidade do que os termos descritivadores e podem ser em certos casos,

como veremos, entendidos como abreviações de feixes de descrições cujas

combinações efetivamente aplicáveis são selecionadas por meio de regras meta-

caracterizadoras, analogamente ao caso dos nomes próprios.

Diante disso é possível propor para os termos gerais uma hipótese genético-

estrutural também em alguma medida análoga a que já foi proposta para os

termos singulares. Os termos gerais indexicadores são estruturalmente os mais

originários, podendo a cognição das propriedades por eles designadas ser

tomada como elemento na construção de conceitos mais complexos. Os termos

gerais descritivadores podem originar-se de combinações de termos

indexicadores na produção de termos mais complexos. Por fim, por razões de 443

Page 444: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

economia e flexibilidade, são instituídas palavras únicas que abreviam

predicados descritivadores segundo regras, como acontece com os termos de

espécies naturais e os termos de massa. Assim, ao invés de dizer ‘líquido

transparente, insípido e inodoro’, ou então ‘hidróxido de hidrogênio’ pode ser

mais vantajoso, pela abrangência dos critérios a disposição, resumir tudo na

palavrinha ‘água’. Finalmente, tanto esses termos gerais nominadores quanto os

termos gerais indexicadores comparecem como constituintes de termos gerais

predicativos descritivadores como é o caso do termo nominador ‘animal’ e do

termo indexicador ‘branco’ na formação do predicado ‘...um animal de focinho

branco’, o que permite a formação de predicados mistos sem limitações de

complexidade.

Essa analogia classificatória entre termos singulares e gerais nos leva a

perguntar se não existiriam situações originárias nas quais essas distinções não

se tivessem diferenciado. Podemos imaginar a existência de um termo

referencial originário, que chamarei de “da”, o qual funcionaria

simultaneamente como um termo singular indexical e como um termo geral

indexicador. O “da” poderia servir, pois, simultaneamente, tanto na delimitação

de uma região espaço-temporal quanto na designação de uma propriedade

singularizada ou de uma espécie natural. Com o “da” acompanhado de um gesto

de apontar se poderia querer dizer compactamente “Isso água”, “Eu zangado”,

“Lá animal feroz”, “Aquilo tigre”. Essa hipótese genético-estrutural pode ser

resumida no seguinte esquema:

Termos singulares Descrições nomes indexicais definidas próprios Termos Referenciais Originários (“da”...) Termos gerais Termos gerais Termos gerais indexicadores descritivadores nominadores

444

Page 445: Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo

Nesse esquema as linhas cheias mostram o natural evolver genético-estrutural

das expressões, enquanto as linhas tracejadas mostram o caminho inverso,

através do qual novas e mais complexas descrições definidas e termos gerais

descritivadores podem ser geradas tendo nomes próprios e termos gerais

nominadores como constituintes.

Neo-descritivismo aplicado a termos gerais

Não faria sentido defender uma teoria descritivista dos termos gerais para os

termos gerais indexicadores, posto que eles são simples. Também não faria

muito sentido tentar desenvolver semelhante teoria para o caso dos termos gerais

descritivadores, posto que eles mesmos, quando funcionam propriamente, são já

descrições a exprimirem regras de classificação de predicados. Mas podemos

desenvolver explicações descritivistas para a aplicação de termos gerais

nominadores.

Os termos de artefatos exemplificam de forma transparente o último caso.

Considere alguns exemplos de definições descritivistas de tais termos:

Cadeira = objeto que serve para sentar e que é provido de encosto.Lápis = objeto manuseável, geralmente de madeira, com ponta de material sólido e que serve para escrever.Carro = objeto que se movimenta, geralmente sobre rodas, sendo feito para transportar seres vivos ou objetos.Catedral = igreja que tem um trono de bispo e congrega as outras igrejas da diocese.

Essas definições são funcionais e, diversamente do caso de espécies naturais,

não fazem menção a essências subjacentes, posto que artefatos não as possuem.

Diversamente dos termos de espécies naturais, cujo significado é expresso por

todo um entrelaçado inferencial de descrições de propriedades aparentes e

445

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subjacentes, termos de artefatos costumam ter o seu sentido completamente

determinado por regras-descrições dos tipos que formam o conjunto <Ds +

Dsd>.

Não há nada de errado em definições descritivas como as recém

apresentadas. É verdade que elas podem admitir e até requerer detalhamentos e

que elas não têm fronteiras precisas. Mas isso não as desabona. A vaguidade,

como temos sempre recordado, é uma característica inexpugnável da grande

maioria dos nossos conceitos. Pode-se tentar objetar contra as definições acima

apresentadas apontando para casos limítrofes ou exceções aparentes. Um tronco

de árvore com a forma de uma cadeira, que é trazido para casa e usado como

cadeira, é um caso limítrofe. E um lápis eletrônico, desses usados para desenhar

em telas de computador, pode ser parecido com um lápis, mas não é; trata-se de

um uso extendido da palavra por analogia funcional.

Psicólogos experimentais falam de tipicalidade, da aproximação de um

estereótipo; assim, o estereótipo de lápis não é o lápis de cera, mas o velho lápis

de madeira com ponta de grafite. O estereótipo de cadeira é a da sala de jantar,

não a cadeira de balanço ou de praia. Nós reconhecemos os estereótipos mais

prontamente, já que eles apresentam um maior número de propriedades típicas.1

Daí eles concluem que as maneiras tradicinais pelas quais os filósofos tratam

conceitos, buscando condições essenciais de aplicação, é incorreta. Parece,

contudo, que há aqui uma confusão categorial separando filósofos de psicólogos

experimentais: uma coisa são as maneiras empíricas pelas quais reconhecemos

um artefato é através de múltiplas e variadas constelações criteriais que nos

permitem caracterizá-lo, em uma maior ou menor variedade de casos; contudo,

nada impede que as constelações criteriais diversas formem variações

semânticas contextualmente condicionadas, que de um modo ou de outro se

subordinam a um único conceito explicitado por uma descrição definicional

1 Eleanor Rosh: “On the Internal Structure of Perceptual and Semantic Categories”.446

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mais genérica. Uma cadeira de balanço, por exemplo, não possui o típico critério

caracterizador de ter quatro pés; mesmo assim, ela continua sendo um objeto

com encosto, feito para sentar. E o mesmo vale para a cadeira de rodas. Não é

necessário, pois, que haja um contradição entre uma definição filosófica mais

tradicional (em alguns casos mesmo apresentável em termos de condições

necessárias e/ou suficientes) realizada em um nível mais abstrato e a

investigação de critérios identificadores mais particulares em sua relação com

processos de reconhecimento perceptual, como os que são feitos pelos

psicólogos experimentais.

No capítulo anterior vimos que no caso de termos de espécies naturais como

água e ouro precisamos distinguir ao menos dois núcleos descritivos na

constituição do sentido do termo: um núcleo popular, relacionado à nossa vida

cotidiana, e um núcleo científico, relacionado à estrutura essencial subjacente.

Mas não podemos generalizar. Considere o termo contável de espécie natural

‘tigre’. Podemos considerar a descrição de superfície (o estereótipo) como sendo

Ds(t) = grande e feroz felino carnívoro e quadrúpede com pelo amarelo, listas

escuras transversais e focinho branco. Com isso o importante para a

identificação de um tigre é que ele pertença à espécie dos tigres, ou seja, que

satisfaça a descrição de superfície disposicional para tigres, que sugiro ser a

seguinte:

Dsd(t): ser capaz de se entrecruzar de modo a produzir descendentes férteis, ocorrendo esse entrecruzamento com outros animais que satisfazem suficientemente Ds(t) e que pertencem à população que causalmente originou o estabelecimento convencional da aplicação da palavra ‘tigre’ aos seus membros, ou que então são descendentes dessa mesma população que ainda são capazes de se entrecruzar com membros dessa população.

Essa caracterização é útil por associar a característica do entrecruzamento com

as características da descrição de superfície historicamente associadas à 447

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população a que foi originariamente aplicada a palavra ‘tigre’, que é um animal

originário da Ásia e que já era conhecido na Europa desde a antiguidade. Além

disso, a exigência de que os descendentes da população que originou o nome

sejam entrecruzáveis com os membros dessa população é importante, posto que

a evolução poderia produzir descendentes não mais entrecruzáveis, o que daria

lugar a uma outra espécie. Ainda uma vantagem dessa caracterização é que ela

satisfaz condições contrafactuais: se um animal vindo de um outro planeta fosse

capaz de se entrecruzar com os descendentes dos nossos tigres asiáticos ele

seria, segundo essa definição, um tigre, o que é intuitivamente aceitável).

Admitindo-se Dsd(t) chegamos à seguinte regra de aplicação para tigres:

RC-‘tigre’:Usamos o termo geral tigre para nos referirmos (propriamente) a uma propriedade de um animal xseea propriedade de x está na origem (causal, inferencial) de nossa consciência de que(i) A propriedade de x satisfaz a regra de aplicação expressa por Dsd(t),(ii) em medida suficiente,(iii) sem competição com regras caracterizadoras de outra espécie animal.

Aqui cabe a pergunta: tigres são também animais que possuem um certo

layout genético característico, exprimível através de uma certa descrição, que

podemos abreviar como Dp(t); qual o papel desse layout genético na

caracterização de um animal como sendo um tigre? A resposta, se

considerarmos a regra acima é que esse papel deve ser aqui secundário. Ao

menos para a zoologia atual o termo de espécie natural ‘tigre’ funciona de modo

diferente do termo ‘água’. Enquanto a descrição da microestrutura é importante

para a caracterização de massas d’água, o layout genético não é importante para

a identificação de tigres, diversamente da constatação de sua pertinência a uma

dada espécie. Pode ser que o conceito de tigre seja alterado, de modo que o 448

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layout genético passe a ter um papel mais relevante, mas essa é uma questão

subseqüente.

Ainda outro caso é o de termos gerais que parecem ser de espécie natural,

mas que não possuem nenhuma estrutura subjacente. Considere conceitos

geográficos, como os de rio e lagoa. Um rio é um fluxo d’água que corre sobre

um leito naturalmente escavado na terra em certa direção, partindo de uma

nascente etc. (diversamente de canais, rios de lava etc.) Esse conceito se

distingue tão somente pela propriedade superficial de ser uma extensão fechada

e suficientemente grande de água doce (diversamente de lagos, lagunas, poças

d’água etc.).1

Diversamente do caso dos nomes próprios, não faz muito sentido exigir dos

termos gerais que eles satisfaçam descrições do grupo A, de localização espaço-

temporal, posto que eles não se aplicam a um único objeto. Já vimos como isso

se dá com um termo de espécie natural como ‘água’. Mas no caso de espécies

zoológicas como a dos tigres, a relação com o grupo historicamente e

regionalmente localizado que deu origem ao nome é importante.

Há ainda casos em que os critérios caracterizadores do tipo de entidade além

de serem múltiplos, estão fracamente conectados entre si. Nesses casos podemos

ser levados a recorrer a uma regra meta-caracterizadora para o termo geral capaz

de estabelecer o que e o quanto da multiplicidade de condições precisa ser

satisfeito. Assim, podemos eventualmente precisar de

(i) um conjunto de regras-descrições de primeira ordem que constituem um paradigma (o assim chamado feixe de descrições), e(ii) uma regra-descrição de ordem superior, RC – a regra de aplicação do conceito – estabelecendo o quanto do paradigma precisa ser satisfeito para que o termo geral possa ser aplicado.

1 Uma alternativa seria definir a espécie natural pelo compartilhamento de uma essência subjacente, o que com boas razões excluiria esses termos.

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Quero me restringir aqui a um único exemplo desse tipo, o conceito de

religião. Baseando-me em P.W. Alston, eis o paradigma de regras-descrições

criteriais relevantes para a aplicação referencial da palavra ‘religião’:

1. Crenças em seres sobrenaturais (deuses).2. Sentimentos caracteristicamente religiosos (reverência, adoração, senso

de mistério, sentimento de culpa, etc. associados ao divino).3. Um código moral que se acredita sancionado pelos deuses.4. Rezas e outras formas de comunicação com os deuses.5. Uma distinção entre objetos sagrados e profanos; atos rituais concentrados

em torno de objetos sagrados.6. Uma ampla organização da vida individual e social baseada em

características anteriormente descritas. 1

7. Uma cosmovisão, a saber, uma explicação do significado do mundo e do lugar do homem nele.

Como o próprio Alston notou, há religiões como o catolicismo, o judaísmo e

o islamismo, que satisfazem todas as regras-descrições que constituem o próprio

paradigma. Elas constituem casos prototípicos, derivando-se a aplicação da

palavra para casos que satisfazem apenas partes do paradigma. Cumpre notar

que talvez nenhuma das condições incluídas no paradigma seja necessária, não

existindo nesse caso uma essência geral da religião. No protestantismo, nota

Alston, os rituais relativos a objetos sagrados são bastante atenuados; e no caso

dos Quakers eles são até mesmo repudiados, tornando-se fundamental apenas a

experiência mística. Mesmo a crença em seres sobrenaturais pode estar ausente;

há religiões como o budismo hinayana, nas quais os seres sobrenaturais são

ignorados, incidindo a ênfase no cultivo de uma disciplina moral e meditativa

que busque um estado espiritual em que todos os desejos parem de existir. E há

religiões laicas em que a crença em um Deus pessoal sobrenatural é

simplesmente excluída, como é o caso da religião da humanidade fundada por

Auguste Comte, que diviniza a sociedade humana. A religião sequer precisa ser 1 Ver P.W. Alston: Philosophy of Language, cap. 6.

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uma prática social, como acontece com religiões pessoais, como a do filósofo

Spinoza, que se baseava na calma e jubilosa aceitação de tudo o que acontecia

como decorrente das leis impessoais do universo, ou a do físico Albert Einstein,

que via nessas leis uma fonte de reverência e de encantamento.

Podemos com isso estabelecer uma regra de regras aplicável às regras-

descrições constitutivas do paradigma formador do sentido do termo geral

‘religião’. Podemos chamá-la simplesmente de regra de aplicação constitutiva

do conceito de religião ou:

RC-‘religião’:Usamos a palavra ‘religião’ para nos referir (propriamente) a uma prática sócio-cultural que é característica do objeto x

seea característica do objeto x está na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de que (i) x satisfaz suficientemente ao menos uma ou duas das regras-descrições constitutitivas do paradigma para o termo geral ‘religião’.(ii) x satisfaz mais a condição (i) do que a de qualquer outra regra caracterizadora de outras práticas sócio-culturais.

Essa regra nos permite chamar de religião não só o catolicismo e o judaismo,

que exemplificam o paradigma, mas também o budismo hinayana e a religião da

humanidade. Uma característica dessa regra de aplicação é que ela é

propositadamente vaga. Ela é vaga de maneira a fazer corresponder à vaguidade

de nosso próprio conceito de religião, que por sua vez deve corresponder à

vaguidade intrínseca ao fenômeno considerado. Há casos de religiões pessoais

(como as de Spinoza e Einstein), que são fronteiriços no sentido de que não mais

sabemos se o conceito realmente se aplica. E há ainda casos que eventualmente

satisfazem a condição (i) da regra de aplicação, mas que não satisfazem a

condição (ii). Considere, por exemplo, organizações secretas como a dos

Rosacruzes, grupos políticos radicais como o dos comunistas ortodoxos, ou

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ainda, o misticismo matemático dos filósofos pitagóricos. Como as regras de

classificação dos conceitos de organização secreta, grupos políticos radicais e

filosofia se aplicam a essas coisas mais propriamente, o conceito de religião

passa a aplicar-se a elas apenas em um sentido estendido.

Termos gerais e designação rígida

Diante dessa variedade de regras de aplicação podemos nos perguntar se os

termos gerais são designadores rígidos. Tanto Kripke quanto Putnam

responderiam afirmativamente a essa pergunta, ao menos no que concerne aos

termos de espécie natural, pois eles se referem a uma mesma essência

microestrutural em qualquer mundo no qual essa mesma essência existe.1

Mas a rigidez dos termos gerais é diferente do caso relativamente não-

problemático da rigidez dos nomes próprios. Enquanto o nome próprio designa

apenas um único objeto em qualquer mundo possível no qual esse objeto existe,

precisando-se apenas identificá-lo, o termo geral designa a mesma propriedade,

que se instancia em um número de objetos que varia para cada mundo possível

(há mundos possíveis nos quais os tigres podem ser animais muito raros e outros

populados por bilhões de tigres). Por isso mesmo, para quem defende a rigidez

dos termos de espécie natural, a sua referência não deve poder ser a extensão.

Também é inadequado pensarmos que o termo geral é rigido por ter como

referência uma espécie.2 Pois se fizermos isso parece que, ou recaimos no

mesmo problema recém-descrito, ou então nós o circundamos pensando na

espécie como uma propriedade abstrata, mas ao preço de termos de aceitar

alguma forma de platonismo de propriedades, que além de ser escassamente

inteligível é incapaz de ser assimilada a uma semântica de mundos possíveis.

1 Kripke: Meaning and Necessity, p. 134 ss. e Hilary Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’”, sec. 6.2 Jean LaPorte: “Rigidity and Kind”. Ver também Stephen P. Schwartz: “Kinds, General Terms, and Rigidity: a Reply to LaPorte”.

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A solução mais viável parece-me ser propor que termos gerais designam

primariamente propriedades singularizadas, tropos. Sob esse ponto de vista um

termo geral é rígido na medida em que ele designa uma mesma propriedade

singularizada, um mesmo tropo ou conjunto ou sistema de tropos em qualquer

mundo possível no qual ele existe. Uma conseqüência importante disso é que o

tropo precisa ser identificado por sua relação com o termo singular na frase

singular. Considere, por exemplo, o termo indexicador ‘branco’. Quando

usamos a frase predicativa singular “A Lua é branca”, estamos nos referindo ao

tropo (ou tropos) de brancura da Lua, de modo que o termo geral indexicador

‘branco’ pode ser considerado rígido por aplicar-se ao mesmo tropo de brancura

em qualquer mundo possível no qual esse tropo exista, a saber, em qualquer

mundo possível no qual não só exista a nossa Lua mas que ela também seja

branca. Note-se, porém, que isso só é possível quando o termo geral se aplica ao

objeto referido por algum termo singular, o qual é ele próprio rígido, tornando a

rigidez do termo geral uma rigidez secundária, diversa da rigidez de um termo

singular como ‘Lua’, que é rígido na independência de seu comparecimento em

frases singulares.1

Um outro caso é o de termos gerais nominadores como ‘água’. Se exigirmos,

para a caracterização do que chamamos de água, a satisfação da descrição “<Ds

+ Dsp> e <Dps + /Dp/ + Dsp>”, então na frase “Isso é água” usada por mim

agora para me referir a um copo de água que tenho a mão, parece aceitável que

eu use o predicado como designador rígido, aplicando-se ele ao mesmo conjunto

de propriedades em qualquer mundo possível no qual esse conjunto de

propriedades seja identificado pelo indexical ‘isso’ usado por mim nas mesmas

circunstâncias.

1 Com isso espero estar levando adiante a proposta de Devitt e Sterelny de que termos gerais são “aplicadores rígidos” que se aplicam a um objeto no mundo atual e que, se esse objeto existe em um mundo possível, então ele se aplica a esse objeto nesse mundo possível. Devitt & Sterelny: Language and Reality, p. 85.

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Finalmente, para o caso dos termos gerais descritivadores, considere a frase

“Russell tinha senso de humor”. O termo geral ‘senso de humor’ é aqui um

designador rígido secundário porque a propriedade em questão de ter senso de

humor é individualizada por Russell em qualquer mundo possível no qual ele

compareça com o seu senso de humor.

Essa sugestão também explica porque termos gerais nominadores podem ser

rígidos enquanto as descrições constitutivas desses termos não são rígidas.

Assim, ‘água’ é um termo rígido por contraste com a descrição ‘serve para

beber’, pois se aponto para esse copo D’água e digo ‘Essa água serve para

beber” no mundo atual, isso é verdadeiro, mas pode ser que em algum outro

mundo possível eu aponte para esse mesmo copo d’água e para essa mesma

água e esteja dizendo algo falso, pois embora sendo a mesma água, contêm

algumas miligramas de arsênico e não serve para beber. A explicação é aqui a

mesma: o termo geral descritivador é no caso semanticamente dependente da

aplicação do termo geral nominador, o que explica a sua flacidez relativa.

Essas respostas podem ser vistas como algo trivializadoras da noção de

designador rígido. Mas a meu ver essa trivialização já estava presente em nossa

análise da rigidez no caso paradigmático dos nomes próprios, sendo a

trivialidade do caso presente uma simples consequência.

A questão da essência

Chegamos com isso à velha questão da essência: aplicamos termos gerais com

base em essências comuns aos seus exemplares? Pelo que vimos a questão não

pode ser respondida com um simples sim ou não. Se entendermos por

propriedade essencial aquela que é necessária e suficiente para a aplicação do

termo geral que a caracteriza, podemos comparativamente classificar uma

variedade de tipos de termos gerais de acordo com o grau de necessidade com

que propriedades precisam satisfazer suas condições caracterizadoras para que 454

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eles sejam aplicados. No que diz respeito a esse grau de necessidade, os termos

gerais podem incluir os seguintes casos:

(a) o termo geral que designa uma propriedade essencial, definida como

sendo necessária e suficiente. Esse seria o caso de termos indexicadores como

vermelho e redondo. Esse também seria o caso de termos propriamente

descritivadores, como ‘terno branco’ e ‘uma bola de fogo’, os quais demandam a

satisfação de um conteúdo descritivo específico. Nesse caso parece que

podemos postular essências reais (de re).

(b) Termos nominadores de espécie natural que possuem propriedade

microestrutural essencial, como ‘ouro’ (se não é o elemento de número atômico

76, não é propriamente ouro). Como isso foi convencionalmente estabelecido

trata-se de uma essência nominal.

(c) Termos nominadores de espécie natural como ‘tigre’, cuja propriedade

essencial está no nível superficial de pertinência a uma dada espécie (também

uma essência nominal).

(d) Termos nominadores de espécie natural como ‘água’ que, como vimos,

possuem propriedades fundamentadoras nucleares que podem ser suficientes,

mas que não são necessárias, não podendo por isso serem consideradas

essenciais. Contudo, elas são essenciais quando distintivas de subconceitos,

como o expresso pelo termo ‘hidróxido de hidrogênio’.

(e) Termos gerais nominadores como ‘religião’, ‘jogo’, ‘número’, ‘arte’,

‘conhecimento’, ‘consciência’... Esses termos correspondem ao que

Wittgenstein a meu ver equivocadamente analisou como possuindo o que ele

chamava de “semelhanças de família” entre as suas aplicações.1 Nesses casos

1 Ver Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, sec. 68. O problema com o conceito de semelhanças de família é que ele só exige que entre duas diferentes aplicações de um predicado seja preservada alguma semelhança, sem estabelecer seus limites. O resultado é que, como qualquer coisa tem semelhança com qualquer outra coisa sob algum ponto de vista, não há como estabelecer os limites de aplicação de um termo com semelhanças de família, o que me parece uma dificuldade insuperável. O recurso a um paradigma e a uma regra meta-

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certamente não há nenhuma essência comum, mas aglomerados diversos de

propriedades. Contudo, eles podem ser freqüentemente analisados em

subconceitos que por sua vez possuem alguma essência comum. Assim, pode ser

bem possível que exista uma essência comum ao catolicismo, ao jogo de xadrez,

ao número natural, à arte própria, ao conhecimento proposicional ou à

consciência representacional, apesar do descrédito de alguns.

A admissão das possibilidades que vão de (a) e (e) nos provê de uma chave

para abordar o dilema vigente entre essencialismo e anti-essencialismo, pois

sugere que ambos os casos possam ser encontrados. Admite-se a essência, que

ou é nominal (e nesse sentido de dicto) ou é postulada como real (e nesse

sentido de re). Mas essa resposta já seria suficiente para fazer a balança pender

para o lado do essencialismo, posto que basta admitirmos alguma essência para

nos tornarmos de algum modo essencialistas.

Conclusão

Quero terminar retornando às considerações metafilosóficas do início desse

livro. “Tudo é um”, pensavam os pré-socráticos. A abrangência de escopo tem

sido um traço constitutivo da filosofia em toda a sua história. Mas essa

abrangência tem sido desafiada pela filosofia contemporânea, voltada como ela

se encontra para investigações cada vez mais específicas, em geral como

resposta ao progresso da ciência. Um resultado disso é que, no imenso tear da

filosofia da linguagem contemporânea, a visão abrangente parece quase perder-

se de vista, dando-nos a impressão de que ela esteja fora do alcance, se não for

de todo impossível.1 Quis aqui seguir o caminho inverso. Meu intento foi o de

proceder de modo sistematizador e não-redutivo, ou seja, não me atendo

caracterizadora que vige sobre os elementos do paradigma permite superar essa dificuldade.1 Scott Soames, por exemplo, chama atenção para o fato de que a filosofia contemporânea tem produzido teorias cada vez mais especializadas, que se desdobram expansivamente em novas subteorias, sem nenhuma expectativa de síntese. Ver “The Era of Especialization”, epílogo de sua obra de The Philosophical Analysis in the Twentieth Century, vol. 2.

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excessivamente ao modelo logicista que se estabeleceu de forma unilateral como

modelar em filosofia da linguagem1, mas também a elementos lingüísticos,

psicológicos, sociais e biológicos, partindo sempre de nosso entendimento

lingüístico comum (que por sedimentar a milenar herança conceitual do senso

comum é essencialmente não-redutivo, apesar de pré-científico), no intento de

mostrar que é possível uma explicação cognitivista e internalista para os

mecanismos de referência de cada espécie de expressão referencial.

Para quem me seguiu até aqui espero ter ficado claro que, pela coerência com

que as peças do quebra-cabeça parecem se encaixar, um resultado flagrante da

discussão é um remapeamento mais consistente e plausível de nossas idéias

acerca dos mecanismos de referência. Da reconfiguração de valores resultante

da forma de cognitivismo semântico defendida no presente texto emerge um

quadro mais complexo, no qual pontos de vista que pareciam ultrapassados

voltaram a ocupar o centro do palco, enquanto que concepções geralmente

admitidas como centrais tiveram de ter seu papel reescrito como o de figuras

secundárias cuja principal função foi a de serem curiosos e dialeticamente

instigantes desafios cuja resposta nos permitiu dar um passo adiante. O que mais

importa fazer agora, porém, não é dar prosseguimento a esse trabalho crítico,

mas encetar um desenvolvimento mais detalhado e sistemático das teorias

positivas que foram aqui apenas esboçadas.

1 John Searle sugere que pelo fato acidental dos iniciadores da filosofia analítica – Frege, Russell, o primeiro Wittgenstein – serem lógicos, a filosofia analítica ficou excessivamente carregada de logicismo, contra o qual ele opõe a sua perspectiva biológico-naturalista (ver “What is Language: Some Preliminary Remarks”, pp. 15-17). Eu atribuiria isso mais ao cientismo logicista (à mimetização da ciência pela filosofia) reforçado pela acidental emigração dos positivistas lógicos para os Estados Unidos, que teve um efeito o efeito de fazer renascer a tradição da filosofia da linguagem ideal através de filósofos como Quine, Davidson, Kripke, Kaplan e outros, enquanto os métodos da filosofia da linguagem ordinária ficaram desnecessariamente restringidos à pragmática.

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