Apostila para cursos de introdução à filosofia da … · Web viewA teoria resultante – o...
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Draft 1/1/2012 - Claudio F. Costa, ppgfil/UFRN
COMO EXPRESSÕES
REFERENCIAIS REFEREM?
1
A filosofia é perene, mas é também efêmera. Está constantemente sendo confundida e destruída e transformada em algo que não é ela mesma, de modo que se desejamos filosofar estaremos continuamente fazendo face à tarefa de redescobri-la e restaurá-la.Thomas Proffen
A filosofia fantasmológica triunfa porque mundos possíveis elegantemente estruturados são tão mais agradáveis de explorar do que a realidade de carne e sangue que nos cerca aqui na terra... Uma tradição filosófica que sofre endemicamente do vício do horror mundi condena-se à futilidade.Kevin Mulligan, Peter Simons, Barry Smith
Não se deve confundir a importância com a dificuldade. Um conhecimento pode ser difícil sem ser importante. Por isso a dificuldade não decide nem pró nem contra o valor de um conhecimento. Esta depende da magnitude e pluralidade de suas conseqüências.Immanuel Kant
Não existe uma qualidade refinada de conhecimento que se possa obter do filósofo.Bertrand Russell
Tudo está bem como está.Wittgenstein
2
PREFÁCIO
Meu primeiro encontro com as teorias filosóficas dos nomes próprios aconteceu
há mais de vinte anos, quando me encontrava na Alemanha escrevendo uma tese
sobre a concepção de significado na última filosofia de Wittgenstein. Como era
de se esperar, a melhor resposta parecia-me ser a teoria do feixe de descrições,
tal como fora defendida por Wittgenstein na seção 79 de suas Investigações
Filosóficas. Por contraste, as poucas leituras que fiz na época sobre a concepção
causal-histórica da referência dos nomes próprios proposta por Kripke me
deixaram escandalizado. O recurso ao batismo e às cadeias causais soava-me
como uma explicação mágica da referência. Não que eu me sentisse à vontade
com a teoria do feixe. Minha opinião era a de que seria necessário impor uma
ordem ao apanhado arbitrário de descrições constitutivas do feixe, e que isso só
poderia ser feito pelo recurso a alguma regra-descrição de ordem superior, capaz
de estabelecer o papel e a força das regras-descrições a ele pertencentes. Mas
logo me esqueci do assunto.
Só voltei a me interessar pela questão dos nomes próprios em 2006, por
razões acidentais. Lembrei-me então de meu antigo projeto. Escrevi um breve
esboço no qual propunha a existência de uma regra cognitiva meta-descritiva
para nomes próprios, capaz de conferir papel e valor aos diversos tipos de
descrição pertencente aos feixes de descrições a eles associados a partir de uma
demanda fundamentadora de localização e/ou caracterização. Apresentei esse
esboço em várias ocasiões, sempre surpreso com a forte reação de rejeição dos
3
ouvintes. Contudo, como ninguém me apontava um erro de princípio e como um
pouco de reflexão me mostrava que as objeções seriam facilmente refutáveis,
prossegui. A teoria resultante – o metadescritivismo causal – encontra-se
exposta no capítulo 9 do presente livro, sendo ela o que posso oferecer de mais
interessante. Embora ela seja uma teoria mista, incorporando inovações
provenientes da concepção causal-histórica, ela às condiciona às categorias
descritivistas, o que faz com que ela se deixe mais propriamente classificar
como uma refinada elaboração da velha teoria do feixe de descrições. Embora
inevitavelmente mais complexo, o metadescritivismo causal possui maior poder
explicativo do que as teorias anteriores, sendo capaz de vários feitos que o
recomendam: ele é capaz de explicar melhor a maneira como o conteúdo
cognitivo (sentido) do nome próprio contribui para a identificação do seu
portador (referência), de gerar a idéia de que nomes próprios são designadores
rígidos do próprio interior do descritivismo, de explicar de dentro do próprio
descritivismo porque se dá o contraste entre a rigidez dos nomes próprios e a
flacidez das descrições definidas e, finalmente, de responder mais eficazmente
aos contra-exemplos apresentados à teoria do feixe.
Uma vez que me encontrava investigando a função dos nomes próprios, meu
interesse alargou-se para a história das teorias descritivistas e também para a
necessidade de alcançar um entendimento crítico da concepção causal-histórica
que fizesse justiça ao trabalho genial de Kripke. Disso resultaram os capítulos 7
e 8 desse livro.
A investigação do funcionamento dos nomes próprios inevitavelmente me
levou a considerar outras expressões referenciais, como descrições definidas,
termos indexicais e mesmo termos gerais, onde a mesma disputa entre
cognitivismo e referencialismo se repete. Minha pergunta foi irreprimível. Se
havia obtido tão bons resultados defendendo uma espécie de cognitivismo
metadescritivista para o caso dos nomes próprios, por que semelhante maneira 4
de ver não poderia produzir resultados igualmente interessantes quando aplicada
às outras expressões referenciais? A tarefa me parecia imensa, mas a intuição
era boa, de modo que decidi considerar também essas questões. O objetivo era
duplo. De um lado, queria demonstrar as limitações das teorias referencialistas
aplicadas às outras expressões referenciais; de outro, considerando as objeções,
queria desenvolver melhores explicações cognitivistas (neo-descritivistas ou
neo-fregeanas) para os modos como descrições definidas, indexicais e termos
gerais referem. Foi isso o que tentei fazer nos capítulos 5, 6, 10, 11 e 12 desse
livro. Alguns resultados me parecem memoráveis. Entre eles está a
compatibilização do descritivismo de “Russell” com o de “Frege”, a defesa da
irrelevância das incongruências parciais no resgate descritivista do conteúdo dos
indexicais, a tese da elasticidade do pensamento, a crítica ao externalismo
semântico de Putnam e a proposta de regras meta-descritivas parcialmente
análogas às dos termos singulares na constituição de regras de aplicação dos
termos gerais. Muito do que escrevi, porém, não passa de esboços rudimentares,
que lanço na expectativa de que venham a ser mais adequadamente
desenvolvidos por outros. Assim deve poder ser, dado que a filosofia é work in
progress por definição.
Finalmente, senti a necessidade de esclarecer as assunções filosóficas que me
conduziram a abordar as expressões referenciais da maneira como fiz. Meus
heróis são Frege e Wittgenstein. A meu ver não há nada na filosofia da
linguagem contemporânea comparável à obra desses dois filósofos. Ombreados
por Russell, eles foram “até o osso” das questões filosóficas no que concerne à
amplitude e profundidade de seus insights, longe de permanecerem na
exterioridade dos problemas, ou na discussão de hipóteses sobre hipóteses, tão
comum à filosofia contemporânea (uma razão para tal seria que a filosofia é um
produto cultural e porque as filosofias de Frege e Wittgenstein foram produzidas
5
em um tempo no qual a cultura ainda era a principal fonte de valor, ao invés da
ciência, como veio a se tornar o caso).
Escrevi os capítulos 1, 2 e 3 desse livro com o objetivo de aclarar
pressupostos geralmente motivados pelas concepções semânticas desses dois
grandes filósofos. Foi à luz de meu entendimento de Frege que procurei definir,
nos três primeiros capítulos desse livro, o meu desiderato como sendo o de fazer
uma defesa sustentada de uma concepção que é pelo menos tão antiga quanto a
doutrina aristotélica dos conceitos e a doutrina estóica das lekta: o ponto de vista
de senso comum, segundo o qual uma expressão referencial só é capaz de referir
devido a um elo intermediário, que não pertence nem a ela mesma nem ao que
ela se refere. Procurei esclarecer essa tese geral interpretando o elo intermediário
em termos de sentidos (modos de apresentação), que só diferem dos sentidos
fregeanos por serem incapazes de existir fora de suas instanciações cognitivas.
Esses sentidos, por sua vez, são analisáveis em termos de regras e/ou
combinações de regras semântico-cognitivas, determinadoras dos usos
referenciais das expressões correspondentes – uma idéia de inspiração
wittgensteiniana.
Ao fazer isso percebi, em retrospecto, que aquilo que eu estava tentando
fazer poderia ser entendido como a retomada de um programa deixado
inconcluso por Ernst Tugendhat em seu livro de 1976. Esse programa poderia a
meu ver ser fregeanamente concebido como sendo, para o caso fundamental da
frase predicativa singular, o de analisar o sentido epistêmico (Erkenntniswert)
do termo singular como a sua regra de identificação, do termo geral como a sua
regra de aplicação e da frase predicativa completa como a sua regra de
verificação. Essa última regra seria a resultante da aplicação combinada das
duas primeiras, o que foi visto por Tugendhat como uma forma analiticamente
aprofundada de se falar da condição de verdade identificada ao significado. Por
conseguinte, meu desiderato nesse livro deixa-se também explicar como sendo o 6
de justificar e analisar em maiores detalhes cada uma dessas regras em sua
natureza, subdivisões e relações, além de esclarecer atributos a elas
relacionados, como os de existência e verdade.
Reconheço que a minha tentativa de produzir uma elaboração geral dessas
assunções nos três primeiros capítulos permaneceu inevitavelmente esquemática
e em alguns momentos selvagemente especulativa. Mas o próprio sucesso do
tratamento posterior das expressões referenciais – que depende apenas do que há
de mais bem fundado nessas assunções – em certa medida também as vindica.
Essas são as estações do presente texto, que foi escrito na intenção de ser
entendido por leitores sem conhecimento especializado de filosofia da
linguagem, pois como a entendo ela deve servir antes de tudo aos que se
interessam pela filosofia em geral.
7
AGRADECIMENTOS
Devo agradecer ao CNPq por uma bolsa de pós-doutorado na Universidade de
Konstanz junto ao professor Wolfgang Spohn, onde permaneci no período de
2009/2 a 2010/1 e onde pude desenvolver uma primeira versão completa do
presente texto. Tenho muito a agradecer a muitas pessoas, mas em especial
gostaria de agradecer ao professor Wolfgang Spohn por ler e discutir comigo
versões em inglês e em alemão de minhas idéias sobre nomes próprios e termos
gerais. Também gostaria de agradecer ao professor João Branquinho pelas
discussões sobre nomes próprios e verificacionismo em seus colóquios na
Universidade de Lisboa. Outras pessoas a quem sou grato são ao professor
Manuel Garcia-Carpintero, que em 2006 me incentivou a dar início a essa
pesquisa, assim como aos professores Nelson Gomes, André Leclerc e Daniel
Durante, por objeções e estímulos. Devo também agradecimentos ao professor
John Searle, que me recebeu como pesquisador em Berkeley em 1999 e que em
termos de metodologia e idéias é, junto com Ernst Tugendhat, o filósofo vivo
que mais me influenciou no desenvolvimento das idéias aqui expostas.
Finalmente, gostaria de agradecer aos professores Raul Landin e Guido Antônio
de Almeida por me terem, há muitos anos, tornado consciente da importância de
uma aproximação sistemática das questões filosóficas através do exemplo
incomparável dos grandes clássicos.
8
SUMÁRIO
PREFÁCIO
PARTE I: SEMÂNTICA FILOSÓFICA
1. INTRODUÇÃO2. SEMÂNTICA WITTGENSTEINIANA3. FREGE: PARÁFRASES SEMÂNTICAS
PARTE II: TERMOS SINGULARES
4. CLASSIFICANDO OS TERMOS SINGULARES5. A SEMÂNTICA DOS TERMOS INDEXICAIS6. A SEMÂNTICA DAS DESCRIÇÕES DEFINIDAS7. NOMES PRÓPRIOS (I): TEORIAS DESCRITIVISTAS8. NOMES PRÓPRIOS (II): TEORIAS CAUSAIS- HISTÓRICAS9. NOMES PRÓPRIOS (III): META-DESCRITIVISMO CAUSAL
PARTE III: TERMOS GERAIS
10. INTRODUÇÃO: DESCRITIVISMO VERSUS CAUSALISMO11. PUTNAM, A TERRA GÊMEA E A FALÁCIA EXTERNALISTA12. AS IRREGULARIDADES DO TERRENO CONCEITUAL
9
PARTE I: SEMÂNTICA FILOSÓFICA
10
1. INTRODUÇÃO
Explicar os mecanismos pelos quais as expressões referenciais referem tem sido
o problema seminal de toda a filosofia da linguagem iniciada com Frege. Mas o
que são expressões referenciais? Ora, elas são todas as expressões (palavras,
combinações de palavras) capazes de referir (designar, denotar). Tais expressões
são chamadas de categoremáticas, distinguindo-se das expressões
sincategoremáticas, de palavras como ‘e’, ‘não’, ‘se... então’, ‘alguns’, cuja
função na linguagem é meramente estrutural.
Em frases há duas espécies mais gerais de expressão referencial: os termos
singulares e os termos gerais. Os assim chamados termos singulares são
expressões cuja função é a de especificar um objeto (um particular) específico,
ao indicar qual ele é dentre todos. Eles referem no sentido mais estrito da
palavra, sendo a forma mais distintiva a dos nomes próprios. Os termos gerais,
por sua vez, são expressões que designam propriedades de objetos ou relações
entre eles, podendo por isso serem predicados de mais de um objeto. Nas frases
predicativas singulares os termos singulares comparecem como sujeitos e os
termos gerais como predicados. Tais frases são tipicamente capazes de ser
verdadeiras ou falsas. É característico dos termos gerais que eles possam se
aplicar a uma variedade indefinida de objetos, identificados pelos termos
singulares aos quais se associam. Assim, o termo geral ‘planeta’ se aplica ao
objeto Vênus, mas também se aplica a Marte e a Saturno, enquanto o termo
11
singular ‘Vênus’ só pode ser aplicado ao planeta Vênus. O tema desse livro
serão os termos singulares e gerais em suas várias formas e os variados
mecanismos através dos quais eles são capazes de alcançar as suas referências.
A metafísica da referência
Uma grande parte do conteúdo desse livro será, todavia, crítico. Em minha
opinião, a filosofia da linguagem contemporânea se encontra assolada pelo que
eu gostaria de chamar de metafísica da referência. São idéias prima facie
contra-intuitivas, como é o caso da sugestão de Saul Kripke, Keith Donnellan,
Michael Devitt e outros, de que o mero recurso a cadeias causais externas
ligando o objeto ao seu nome possa bastar para explicar a sua função referencial,
independente do que possamos ter em mente com esses nomes, ou da tese de
Hilary Putnam, Tyler Burge, John McDowell e outros, segundo a qual os
significados das palavras, os seus entendimentos, os pensamentos, e mesmos as
próprias mentes, possam existir no mundo externo (físico ou social) fora de
nossas cabeças, ou ainda, da posição de David Kaplan, John Perry, Nathan
Salmon e outros, segundo a qual muitas de nossas sentenças contém elementos
do próprio mundo como constituintes daquilo que estão a dizer. Não obstante o
fato de semelhantes idéias ofenderem as mais elementares intuições semânticas
de qualquer pessoa que não tenha sido filosoficamente iniciada, elas são hoje
vistas por muitos especialistas como resultados “sólidos” da reflexão filosófica.
Quero nesse livro tornar plausível o insucesso das doutrinas mais
propriamente metafísicas desses filósofos. Isso não é o mesmo que rejeitar o
interesse filosófico de muitos dos argumentos por eles desenvolvidos. Se tal
interesse não existisse, não haveria porque perder tempo com a sua discussão.
Pois insights filosóficos equívocos, na medida em que forem sugestivos, são
indicadores de alguma coisa importante, possuindo um potencial esclarecedor
em filosofia, onde o progresso costuma ser dialético. Sem o criativo e ousado 12
revisionismo desses filósofos, sem os desafios e problemas por eles criados,
idéias concorrentes dificilmente seriam providas do combustível intelectual
necessário para levantarem vôo.
O primado do saber comum
Para combater a metafísica da referência são necessárias algumas armas. A
primeira delas diz respeito à decisão metodológica de levar a sério o um tanto
esquecido princípio fundamental da filosofia da linguagem ordinária admitido
por filósofos como J.L. Austin e G.E. Moore, segundo o qual ao menos o ponto
de partida de nossas investigações deve residir em nossas intuições pré-
filosóficas de senso comum, refletidas nos usos das expressões em nossa
linguagem corrente. A idéia subjacente a isso é conhecida: os usos correntes das
palavras sedimentam a experiência milenar das comunidades humanas, e uma
atenção excrupulosa a esses usos pode ser capaz de revelar distinções categoriais
importantes e prevenir confusões. Exemplos de princípios do senso comum que
foram selecionados por filósofos como Moore são “Sabemos com certeza que
existe um mundo externo”, “Sabemos que existem outras pessoas”, “Sabemos
que o mundo tem um passado”, “Sabemos que o preto não é branco” e ainda
“Sabemos que uma coisa é ela mesma”.1
O problema é que parece claro que ao menos alguns dos princípios do senso
comum foram falseados, quer pela ciência, quer por alterações em nossa própria
concepção de mundo (Weltanschauung). Para exemplificarmos o primeiro caso,
basta nos lembrarmos que crenças de senso comum de que o sol gira em torno
da terra e de que os corpos mais leves caem mais lentamente foram refutadas por
Galileu. E para exemplificarmos o segundo caso basta nos lembrarmos das
crenças de que um Deus pessoal existe e de que temos uma alma que pode
1 Ver G.E. Moore: “A Defense of Common Sense”. 13
existir fora do corpo. Houve tempo em que essas crenças poderiam ser
consideradas verdades de “senso comum”.
Uma resposta a essa dificuldade consiste na alternativa de muitos dos
filósofos que defenderam o senso comum, que consistiu na adoção do assim
chamado sensismo comum crítico (critical commonsensism)1, segundo o qual os
princípios de senso comum são altamente confiáveis, mas não são indubitáveis.
Contudo, essa opção enfraquece a própria posição de quem defende o senso
comum como ponto de partida, pois se os princípios do senso comum podem ser
falsos, então parece que precisamos de um critério para distinguir os princípios
verdadeiros dos falsos. Esse critério, porém, não pode se basear no senso
comum, sob pena de circularidade.
Não pretendo, nos argumentos que se seguem, garantir os princípios do senso
comum contra toda e qualquer objeção. Mas quero demonstrar que a força das
objeções contra a confiabilidade dos princípios de senso comum advindas do
progresso da ciência e das mudanças de concepção do mundo como as recém-
consideradas é aparente e deriva da confusão entre formas de “senso comum”
inautênticas com a forma mais autêntica, que gostaria de chamar de forma
modesta.
Comecemos com as objeções vindas da ciência. Quanto à ciência empírica,
considere os enunciados
(a) O sol circunda a terra diariamente,(b) Os corpos mais pesados caem mais rapidamente, mesmo descontando a
resistência do ar,(c) O tempo flui igualmente, mesmo quando um corpo se desloca a
velocidades próximas às da luz.
1 C.S. Peirce: “Critical-Commonsensism”; ver também Roderick Chisholm: Theory of Knowledge, p. 64.
14
Esses pretensos enunciados do senso comum foram todos corrigidos pela
ciência. Galileu demonstrou que (a) e (b) são enunciados falsos, o primeiro
porque é a terra que circunda o sol e o segundo porque no vácuo todos os corpos
caem com a mesma aceleração. E Einstein demonstrou que (c) é falso, pois a
passagem do tempo torna-se exponencialmente mais lenta conforme o corpo se
aproxima da velocidade da luz. O filósofo Bertrand Russell, por exemplo,
procurou tornar claro que a teoria da relatividade veio a demonstrar que não só
essa, mas várias outras crenças de senso comum não resistem a uma
consideração mais acurada.1
Meu ponto, porém, é que nenhum dos enunciados acima é legitimamente
pertencente ao senso comum no sentido próprio da expressão, que chamei de
modesto. Esses enunciados são na verdade extrapolações radicadas nos
enunciados do senso comum mais modesto, feitos no interesse da ciência por
cientistas e mesmo por filósofos. Os verdadeiros enunciados do senso comum,
dos quais (a), (b) e (c) são extrapolações, podem ser versados respectivamente
como se segue:
(d) O sol cruza os céus diariamente,(e) A pedra cai mais rápido do que a pluma,(f) O tempo flui igualmente para todos nós, estejamos em movimento ou
parados.
Vemos que o senso comum cientificamente ou especulativamente motivado
historicamente interpretou esses enunciados de senso comum como implicando
respectivamente (a), (b) e (c). Não obstante, os enunciados que foram
efetivamente originados de nossas práticas lingüísticas ordinárias são como (d)
(e) e (f), os quais continuam perfeitamente confiáveis, mesmo após Galileu e
Einstein. Afinal, é óbvio que (d) é um enunciado verdadeiro, pois ele é anterior à
1 Ver Bertrand Russell: ABC of Relativity, cap. 115
distinção entre o movimento real e aparente do sol e tudo o que ele afirma é que
aquele círculo luminoso cruza o céu a cada dia, o que ninguém discutiria.1
Mesmo tendo sido provado que os corpos caem em velocidades diferentes no
vácuo (e) também é um enunciado indiscutível, pois tudo o que ele diz é que a
pluma cai mais lentamente do que a pedra em circunstâncias normais.
Finalmente, mesmo tendo sido demonstrado que a passagem do tempo se torna
mais lenta com o aumento da velocidade, o enunciado (f) é correto, pois ele não
foi pensado sob a consideração de medidas impossivelmente acuradas da
passagem do tempo, uma vez que para as diferenças de velocidade dos corpos ao
nosso redor a dilatação do tempo é tão insignificante que seria absurdo não
desprezá-la.2 O que esses exemplos demonstram é que não foram as verdades do
senso comum modesto, radicadas em nossa forma de vida cotidiana que foram
refutadas pela ciência, mas extrapolações do senso comum fora de seu lugar
próprio, produzidas por cientistas e filósofos. Fora isso não há nenhum conflito
entre as descobertas da ciência e as afirmações do homem comum.
Esse mesmo raciocínio se aplica ao conhecimento a priori do senso comum,
como o de que um enunciado não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo,
de que o branco não é preto ou de que não existem frases sem verbos. Considere
o caso de enunciados como (g) “O bem é admirável”, que é gramaticalmente
idêntico a enunciados como (h) “Sócrates é sábio”. Ambos têm a mesma forma
gramatical sujeito-predicado. Como no primeiro caso o sujeito não designa
nenhum objeto visível, Platão teria concluído que esse sujeito precisa designar O
Bem em si mesmo, a idéia do bem, existente apenas no reino inteligível das
idéias eternas e imutáveis.
1 Esse é um enunciado como o de Heráclito, que notou que o sol tem o tamanho de um pé humano. Como notou um intérprete, basta que nos deitemos no chão e levantemos o pé contra o sol para nos certificamos da verdade desse enunciado.2 Mesmo para as missões espaciais a física usada é a newtoniana. Como então supor que tais preocupações pudessem pertencer ao campo semântico do senso comum modesto.
16
Para chegar a sua conclusão, Platão se baseou em intuições da linguagem
ordinária concernentes à distinção gramatical entre sujeito e predicado. Todavia,
a introdução da lógica quantificacional por Frege no final do século XIX
demonstrou que frases como (d) se deixam analisar como dizendo que tudo o
que é bom é admirável ou “Para todo x, se x é bom, então x é admirável”, onde a
palavra ‘bem’ passa à função do predicado ‘bom’, deixando de se referir a um
objeto, o que diminui a pressão para a aceitação da idéia platônica do bem.
Contudo, a sugestão de que o sujeito ‘O Bem’ se refere a um objeto abstrato, a
idéia, não pertence ao senso comum e nem se encontra inscrita na linguagem
ordinária. Embora ela seja uma extrapolação especulativa feita por filósofos por
apelo implícito à gramática da linguagem ordinária, seria injusto responsabilizar
esta última por isso. Afinal, o advento da lógica quantificacional não refutou a
gramática da linguagem ordinária, mas adicionou a essa linguagem uma nova e
fundamentalmente diversa dimensão de análise.
O que todos esses exemplos demonstram é a falsidade da freqüente afirmação
de que o desenvolvimento da ciência veio a contradizer o senso comum. O que o
desenvolvimento da ciência veio a contradizer foram extrapolações
especulativas que cientistas e filósofos fizeram com base no senso comum e na
linguagem ordinária, como a sugestão de que o sol gira em torno da terra e a de
que existe um outro mundo formado por objetos abstratos. Pois nada disso tem a
ver com a aplicação do senso comum modesto e da linguagem ordinária no
contexto em que essas intuições emergiram.1
Consideremos agora alterações do senso comum que foram colocadas em
questão por alterações em nossa concepção do mundo, como a crença de que
Deus existe ou de que temos mentes independentes de nossos corpos.
Praticamente em todas as culturas humanas a crença em Deus e na alma foi
admitida inquestionável, mesmo na cultura européia, até dois ou três séculos
1 Ver C.F. Costa: Filosofia da Mente, pp. 22-23. 17
atrás. Mas hoje não se pode dizer que essas crenças sejam mais universalmente
obtidas. Assim, parece que o senso comum pode se alterar com a alteração de
nossa concepção do mundo.
Minha reação a essa objeção não difere muito da que tenho para a objeção
proveniente do progresso da ciência. Essas crenças não pertenceram
propriamente ao cerne que chamo de senso comum modesto. Elas resultaram do
senso comum modesto adicionado ao wishful thinking. Era certamente mais fácil
acreditar na existência de um Deus pessoal ou de uma alma independente do
corpo há dois mil anos atrás, na falta de informações divergentes produzidas
pelo progresso científico; contudo, mesmo assim sempre foi aqui adicionado um
elemento de fé, de crença para além dos fatos, ao que foram aduzidas razões.
Isso se demonstra linguisticamente: uma pessoa comum geralmente não diz que
“sabe” que é uma alma independente do corpo ou que “sabe” que Deus existe:
ela prefere dizer que “acredita” nessas coisas, enquanto ela mesma em momento
algum recusa a admitir que “sabe” que existe um mundo externo, que o mundo
existia antes de ela ter nascido etc., mas não que apenas “acredita” nisso.
Espero ter com isso tornado plausível a idéia de que o mais alto tribunal da
razão é realmente o senso comum modesto. Afinal, como a própria ciência só
pode ser construída sob a assunção de conhecimentos de senso comum modesto,
não parece ser sequer em princípio possível destruir o senso comum sem que
com isso se destrua os próprios fundamentos da racionalidade. Não pretendo,
contudo, considerar sequer o senso comum modesto necessariamente constituído
de princípios indubitáveis, mas apenas mostrar que nem a ciência nem as
alterações em nossa concepção do mundo foram suficientes para desfazer a
força dos princípios do senso comum adequadamente considerado.
Uma conclusão resultante da comparação entre senso comum e ciência é que
quando consideramos a razão natural dentro de seus despretenciosos limites
próprios, a ciência não se revela como oposição, mas como extensão do senso 18
comum. Essa conclusão reforça nossa confiança em que no começo de tudo se
encontram as verdades do senso comum, adequadamente escolhidas e
interpretadas. (Com isso não estou defendendo que elas sejam suficientes contra
os argumentos filosóficos que as contestam, como pretendia um filósofo como
Reid. O que quero dizer é que elas servem como pontos de apoio confiáveis.
Assim, tomando um exemplo de P.M.S. Hacker concernente ao ponto de vista
de Wittgenstein, embora a resposta de senso comum ao paradoxo de Zeno seja a
de que Aquiles pode vencer a tartaruga colocando um pé diante do outro não nos
satisfaz, pois não põe à descoberto a fonte de confusão – apesar de ser uma
indubitável verdade de senso comum que Aquiles pode vencer a tartaruga1.
Também um princípio de senso comum modesto, como o de que o mundo
externo existe, pode a meu ver ser justificado contra argumentos filosóficos2
Contudo, nada disso pode ser feito sem base em outros princípios de senso
comum.)
Diversamente do que possa parecer, não acho que devamos nos restringir ao
senso comum ingênuo e ao seu reflexo nas intuições da linguagem comum.
Quero estender a base daquilo que serve de fundamento para nossas atitudes
diante das idéias filosóficas ao senso comum informado pela ciência – o que
gostaria de chamar de saber comum. Melhor dizendo: tanto a ciência formal
quanto a empírica (o que inclui a física, a biologia, a psicologia, a lingüística...)
são capazes de adicionar ao conhecimento de senso comum modesto novas
verdades, como a de que ‘o bem’ na frase “O bem é admirável” não deve ser
interpretado como um sujeito lógico, ou de que a frase “O sol atravessa o céu
diariamente” não implica em que ele circunda a terra. O que chamo de saber
comum é, pois, a extensão daquilo que inclui o senso comum ingênuo e o
conhecimento científico lhe foi adicionado. Esse saber comum não precisa,
1 G.H. Baker & P.M.S. Hacker: Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. 1, p. 303.2 Ver minha prova do mundo externo no artigo “Critérios de realidade”.
19
certamente, ser compartilhado por todas as pessoas. Mas ele é comum no sentido
de que é passível desse compartilhamento: ele é aquele conhecimento com o
qual qualquer pessoa razoável irá por-se de acordo, caso esteja habilitada a
compreendê-lo e avaliá-lo. Assim, minha proposta é a de que aquilo que é capaz
de possibilitar um juízo adequado sobre a razoabilidade de nossas teses
filosóficas é o senso comum cientificamente informado, nomeadamente, nosso
saber comum. Podemos construir a respeito o seguinte esquema:
Teoria filosófica
Princípios do senso Conhecimento científico comum modesto (saber comum)
Os vetores sugerem que não é a filosofia que corrige o senso comum modesto
nem o conhecimento científico, mas, pelo contrário, ela deve harmonizar-se a
eles. Não se trata, pois, de equilíbrio reflexivo, mas de harmonização com a base
do saber comum. O ponto a ser acentuado é o da necessidade de coerência das
teorias filosóficas com o saber comum. As nossas teorias filosóficas tornam-se
razoáveis quando alcançam essa espécie de coerência. Quanto às teorias que não
alcançam essa coerência, elas podem ser admitidas como propostas interessantes
e mesmo instigantes do ponto de vista especulativo, mas nem por isso merecem
ser seriamente consideradas em sua face de valor. Esse é, em meu juízo, o caso
das metafísicas da referência.
Essas considerações também oferecem uma solução para o problema que
surge quando a razão (filosófica) e o senso comum colidem. Minha suspeita é
que a razão (quando adequadamente seguida e suficientemente explicitada) e o
senso comum (em seu lugar próprio e devidamente reconciliado com o
20
conhecimento científico) nunca colidem, a não ser na aparência, uma vez que a
própria racionalidade da teoria filosófica decorre de seu equilíbrio reflexivo com
o saber comum. Assim, quando uma pretensa contradição emerge, cabe ao
filósofo tratá-la como um paradoxo do pensamento, buscando argumentos que
conciliem a teorização filosófica com o senso comum e a informação científica.
O filosofar por exemplos
Quero complementar esse princípio do primado do saber comum com o que já
foi chamado de método de filosofar por exemplos preconizado por Avrum
Stroll.1 Trata-se do método wittgensteiniano de proceder através do exame
minucioso e comparativo de uma variedade de exemplos de usos de uma
expressão lingüística, possivelmente imaginando novas situações de uso, na
intenção de elucidar os seus sentidos, o quanto isso nos for necessário. Assim,
com base na aplicação do princípio da priorização do saber comum
(nomeadamente, do senso comum informado pela ciência) e com o método do
filosofar por exemplos, pretendo exercitar aqui uma crítica da linguagem, cujo
desiderato é o de demonstrar que as teses positivas mais audaciosas da
metafísica da referência, mesmo que inovadoras e capazes de apontar para
fenômenos de fundamental importância, se tomadas apenas em sua face de valor
não passam de sofisticadas ilusões conceituais.
A noção de uma crítica da linguagem teve proeminência na filosofia
terapêutica do último Wittgenstein. O que ele pretendia era, no seu dizer, trazer
a linguagem de suas férias especulativas para o seu labor cotidiano. E isso era
para ser feito mostrando, através de exemplos, os modos como realmente
usamos as expressões, com o resultado de que os absurdos encobertos da
metafísica acabariam por se demonstrar absurdos evidentes.2 Parece-me que é 1 Este é o método preconizado por Avrum Stroll em seu livro Sketches of Landscapes: Philosophy by Examples, pp. x-xi. 2 Ludwig Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, sec. 109, 111, 122, 125, 129.
21
disso que muito da presente metafísica da referência – e de resto muito da
própria filosofia contemporânea – necessita.1
Essa tarefa é especialmente importante em um tempo como o nosso, em que
o veio da filosofia do senso comum e da linguagem ordinária, que vem de
Thomas Reid a G.E. Moore e do último Wittgenstein a J.L. Austin, parece ter se
extinguido, dando lugar ao cientismo e a filosofias compartimentadas, que
servem à curiosidade especulativa de especialistas nesse ou naquele domínio
científico mesmo que ao preço de colocar entre parênteses o saber comum.
Como conseqüência disso estamos a meu ver assistindo, na filosofia da
linguagem, a um entulhamento com efeitos potencialmente obscurantistas do
que Wittgenstein chamou de “castelos de areia conceituais” resultantes de “nós
do pensamento”, bem urgidos equívocos semânticos resultantes do desejo de
inovação acompanhado de uma desconsideração das sutis diferenças de
significação ganhas pelas expressões em seus diversos contextos de uso, o que
conduz a uma sucessão de debates entre teorias cada uma mais implausível do
que a outra, em uma forma de escolasticismo filosófico.
Contra a filosofia terapêutica de Wittgenstein observou que não é plausível a
idéia de que a filosofia não possa nem deva ser também teorética e sistemática,
no sentido de conter generalizações abrangentes e substantivas. Eu concordo
com isso. Mas discordo que essa tenha sido verdadeiramente a posição de
Wittgenstein. Pois ele mesmo era consciente de que por trás das confusões
conceituais, como explicação de seu caráter de profundidade, há insight
teorético legítimo para cuja expressão falta uma conceitologia adequada. Com
efeito, qualquer que seja a crítica da linguagem que venhamos a fazer, a sua
1 Não há mais hoje quem concorde com a tese sugerida por certas passagens dos textos de Wittgenstein, segundo a qual toda a filosofia se reduz a confusões lingüísticas. Apesar disso, é um fato que a prática filosófica é quase inevitavelmente produtora de confusões lingüísticas, mesmo que contenha algum insight substancial por trás do que pretende sugerir. Daí que uma atenção crítica prévia aos sentidos ordinários dos conceitos usados é propedeuticamente desejável e será aqui metodologicamente empregada.
22
eficácia se deve ao fato de que ela se encontra inevitavelmente impregnada de
pressupostos teóricos, que podem ser ou não ser explicitamente trabalhados.
Como o próprio Wittgenstein percebeu, é possível e mesmo necessário o
estabelecimento de apresentações panorâmicas (übersichtliche Darstellungen)
da estrutura lógico-gramatical dos conceitos constitutivos dos núcleos mais
centrais de nosso entendimento. Como ele escreveu em uma famosa passagem:
Uma fonte principal de nossa incompreensão é que não temos uma visão panorâmica dos usos de nossas palavras – falta caráter panorâmico à nossa gramática. A representação panorâmica permite a compreensão, que consiste justamente em “ver as conexões”. Daí a importância de encontrar e inventar articulações intermediárias. 1
É interessante notar que as articulações intermediárias não precisam se encontrar
já prontas. Aqui entra o elemento teorético. A articulação intermediária pode ser
simplesmente a regra geral, o elo comum relacionando uma variedade de casos.
Esse elo comum será mais propriamente chamado de descritivo se ele já se
encontrar manifesto na linguagem; mas ele será melhor chamado de teorético se
tiver de ser descoberto como uma maneira de dar conta da unidade na
diversidade daquilo que fazemos com a linguagem. É verdade que ao propor
essas coisas, Wittgenstein também afirmava que a filosofia deve ser descritiva e
não-teorética. Mas como notaram G.P. Baker e P.M.S. Hacker, o que
Wittgenstein quis através disso foi rejeitar o cientismo, entendido como a
assimilação do trabalho filosófico ao modelo de teoria da ciência particular e à
teoretização metafísica que mimetiza a ciência2 – o cientismo, que hoje em dia é
1 L. Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, I, sec. 122. Como notaram G.P. Baker e P.M.S. Hacker, Wittgenstein não rejeita o engajamento em teorizações filosóficas quando elas se fazem necessárias. Ver desses autores Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. 1, cap. XI. Além disso, Wittgenstein também usa a palavra ‘teoria’ para qualificar o seu próprio procedimento teórico, no sentido de um sistema “orgânico” ao invés de “arquitetônico”. Ver Wittgenstein: Wittgenstein’s Lectures, Cambridge – 1932-35, p. 43.2 G.P. Baker & P.M. Hacker: Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. II, p. 260.
23
redutivo não só no sentido de abandonar a mediação do senso comum, mas até
mesmo do saber comum, quando se encontra comprometido com o que é
pensado em alguma área específica da ciência. Contra isso, o que desejamos é
encontrar e expor as regras que governam a aplicação de nossos termos
filosoficamente relevantes, sem para tal comprometer o equilíbrio reflexivo com
o nosso saber comum.
O conhecimento tácito do significado: a explicação tradicional
Também assumimos o fato óbvio de que uma linguagem é um sistema de signos
governados por regras e que essas regras são convencionais. Uma convenção
linguística é uma regra que os participantes da comunidade linguística
geralmente seguem e esperam que os outros participantes também sigam,
mesmo que lhes falte consciência dessas regras.1 É devido a esse caráter
compartilhado das convenções que governam a linguagem que somos capazes
de usá-la de maneira a comunicar verbalmente o que pensamos. Uma das
assunções mais conhecidas da filosofia da linguagem tradicional é a de que não
temos consciência das regras semânticas que governam os usos que fazemos de
expressões centrais de nossa linguagem. Essas regras encontram-se geralmente
automatizadas em nós, de modo que ao usarmos uma expressão não precisamos
tomar consciência do complexo entrelaçado de acordos tácitos envolvidos. Uma
razão disso encontra-se no próprio modo como as expressões geralmente são
aprendidas. Filósofos analíticos – de Wittgenstein a Gilbert Ryle, P.F. Strawson,
Michael Dummett e Ernst Tugendhat – sempre apontaram para o fato de que
nosso aprendizado do significado das palavras, a saber, das regras convencionais
que determinam os seus usos, não costuma se dar através de definições verbais,
mas de modo não-reflexivo, através de exemplificações positivas e negativas
1 David Lewis: Conventions, cap. 1.24
realizadas em contextos interpessoais nos quais esses usos costumam ser
confirmados ou desconfirmados e corrigidos por outros falantes.1
Se considerarmos que esse aprendizado não-reflexivo inclui termos
filosóficos centrais como ‘conhecimento’, ‘consciência’, ‘causalidade’, ‘bem’, e
mesmo termos da filosofia da linguagem como ‘significado’, ‘referência’ e
‘verdade’, que por sua estrutura conceitual supostamente muito complexa são
particularmente elusivos, torna-se claro que essa falta de consciência semântica
pode se tornar uma grande fonte de confusões quando o filósofo procura
esclarecer o que esses termos querem dizer, especialmente se ele estiver sob a
pressão de alguma finalidade generalizadora extrínseca às demandas do próprio
objeto de sua investigação. A amplitude e força dessa idéia foi aceita por
Wittgenstein do início ao fim de sua trajetória filosófica:
A linguagem ordinária é parte do organismo humano e não menos complicada do que este. (...) As convenções implícitas para o entendimento da linguagem ordinária são enormemente complicadas.2
Nosso esforço pela generalidade tem outra origem maior. Filósofos têm os métodos da ciência natural sob os olhos e são inevitavelmente tentados a perguntar e responder questões ao modo da ciência. Essa tendência é a própria fonte da metafísica e deixa o filósofo em completa escuridão.3 Os homens não se dão conta dos verdadeiros fundamentos de suas pesquisas. A menos que uma vez tenham se dado conta disto. – E isso significa: não nos damos conta daquilo que, uma vez visto, é o mais marcante e o mais forte.4 A filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento de nosso intelecto pelos meios de nossa linguagem.5
Muitos e talvez o próprio Wittgenstein, pensaram no procedimento de
explicitação das convenções implícitas da linguagem ordinária como um
1 Afora Wittgenstein, ver especialmente M. Dummett: “What is a Theory of Meaning? (I)” e “What is a Theory of Meaning? (2)”.2 Ludwig Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus, 4.002.3 Wittgenstein: The Blue and Braun Books, p. 184 Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, seção 129.5 Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, seção 109.
25
procedimento revolucionário. Mas à parte artifícios como aquilo que Quine
chamou de ascese semântica (semantic accent) – o uso de uma metalinguagem
de maneira a descrever o conteúdo do que se encontra sob análise1 – e a
cuidadosa consideração dos usos lingüísticos demonstrando consciência das
sutis diferenciações semânticas – não há nada de verdadeiramente
revolucionário nesse procedimento. Pois a análise do significado de termos
filosoficamente relevantes dentro do escopo de uma metafísica descritiva
(dedicada, como a definiu Strawson, “a descrever a verdadeira estrutura de
nosso pensamento sobre o mundo”2) não é mais do que uma retomada, com a
adição de novos métodos de análise e de uma mais rigorosa atenção às sutilezas
da linguagem, de um projeto que perpassou toda a história da filosofia ocidental
e que já havia tomado a forma de análise conceitual nos diálogos de Platão.
Afinal, nesses diálogos Sócrates tipicamente aparecia com uma questão do tipo
“O que é X?”, onde X estava no lugar de termos como ‘conhecimento’, ‘justiça’,
‘beleza’, seguindo-se daí as tentativas geralmente aporéticas de se encontrar
uma definição capaz de resistir a objeções e contra-exemplos.
Duas objeções à explicação tradicional
A idéia de que possuímos cognições implícitas das convenções que determinam
os significados de nossas expressões lingüísticas foi desafiada por defensores do
externalismo semântico. Segundo o externalismo, os significados das expressões
podem residir fora do domínio do psicológico, no mundo físico e social,
dependendo assim apenas de seus objetos de referência, assim como,
eventualmente, de processos neurofisiológicos envolvendo mecanismos causais
autônomos. Em apoio a essa idéia pode ser aduzido o próprio caráter não-
reflexivo das regras semânticas que determinam nossos usos lingüísticos: se não
1 W.V.O. Quine: Word and Object, cap. VII, seção 56.2 P.F. Strawson: Individuals: An Essay on Descriptive Metaphysics, p. 9.
26
temos consciência do significado, então por que ele não pode ser simplesmente
não-psicológico, dependente apenas da maquinaria neuronal? Mas nesse caso
não seria em princípio sequer necessário o envolvimento de elementos
cognitivos no significado. Ele poderia envolver apenas mecanismos causais
autônomos, irresgatáveis para a consciência. John McDowell ilustra essa
posição ao observar contra Michael Dummett que
Podemos ter a habilidade de dizer que um objeto visto é o portador de um nome familiar sem ter a menor idéia de como o reconhecemos. O presumível mecanismo de reconhecimento pode ser maquinaria neural [e não psicológica] – suas operações sendo totalmente desconhecidas de quem as possui .1
Para McDowell a função referencial dos nomes próprios não é para ser
explicada com base em regras cognitivas implícitas de identificação do objeto, a
serem descritivamente resgatadas, pois:
As opiniões dos falantes sobre as suas susceptibilidades evidenciais divergentes com respeito a nomes são produtos de auto-observação, tanto quanto isso é acessível, de um ponto de vista externo. Elas não são intimações vindas do interior, de uma teoria normativa implicitamente conhecida, uma receita para o discurso correto, que guia o comportamento do lingüista competente. (grifo nosso)2
Essas considerações encontram-se em oposição ao que pretendo defender
nesse livro. Quero vir a demonstrar que alguma instanciação de regra semântico-
cognitiva interna acaba por ser indispensável à função referencial, se esta for
entendida em seu sentido próprio. Veremos que para haver referência um
elemento cognitivo geralmente não-consciente associado a nossas expressões
1 John McDowell: “On the Sense and Reference of a Proper Name”, p. 178. O conteúdo entre colchetes repete as palavras do autor em sua nota de rodapé sobre essa passagem. McDowell vê na posição de Dummett uma recaída no psicologismo justificadamente rejeitado por Frege.2 John McDowell: “On the Sense and Reference of Proper Names”, p. 190.
27
deve precisar ser instanciado em alguma medida, em algum momento e em
algum de seus usuários, ainda que isso não costuma ser necessário em toda
medida, a todo momento e para todo usuário.
Eis como podemos argumentar contra McDowell. Uma diferença entre a
opinião dos falantes resultante da auto-observação do ponto de vista externo
sugerida por McDowell e a opinião resultante da auto-observação do ponto de
vista interno pretendida por Dummett é a de que o resultado da primeira deveria
ser gradualmente reforçado pela consideração de uma multiplicidade de
exemplos, diversamente do resultado da segunda. Mas não parece que esse
reforço indutivo aconteça do modo esperado. Considere, por exemplo, o
significado de uma palavra como ‘cadeira’. Todos nós sabemos o significado
dessa palavra, mas normalmente não nos damos conta de qual seria a
explicitação analítica através de uma definição. Assim, seguindo o motto
wittgensteiniano de que o significado é aquilo que a explicação do significado
explica eis uma definição perfeitamente razoável a explicar o significado da
palavra ‘cadeira’:
(C) Cadeira (Df.) = banco provido de encosto.1
Quando ouvimos essa definição pela primeira vez ela se nos afigura
imediatamente como algo que parece ser correto. Depois que a ouvimos,
podemos tentar imaginar uma cadeira sem encosto, percebendo que não
conseguimos. Mas só isso já basta. Não precisamos ir além, imaginando toda
1 É difícil objetar contra. Podemos sempre imaginar casos limítrofes, como o banco com um encosto de apenas dois centímetros de altura (é banco ou cadeira?) ou a cadeira cujo encosto foi retirado por alguns minutos (ela se transformou em uma cadeira sem encosto ou provisoriamente virou um banco?). Casos limítrofes são inevitáveis, posto que nossos conceitos empíricos são inevitavelmente vagos. O que justifica um conceito é a sua utilidade nas inúmeras vezes nas quais ele pôde ser aplicado sem dificuldades e não os poucos casos nos quais ele deixa de ser útil.
28
sorte de cadeiras (cadeiras de balanço, cadeiras de lona, cadeiras de rodas,
poltronas...) de modo a irmos reforçando indutivamente nossa crença na
definição. Mas se McDowell estivesse certo, nosso conhecimento acerca do
significado de um nome comum como ‘cadeira’ fosse resultado da auto-
observação de um ponto de vista externo, então parece que ganharíamos maior
certeza de que cadeiras são bancos com encosto na medida em que isso fosse
indutivamente confirmado pela consideração de um número de exemplos cada
vez maior. Mas não é isso o que acontece e a explicação óbvia é que a definição
apenas recupera a convenção semântica resultante de um acordo tácito entre os
falantes que governa o uso da palavra ‘cadeira’ em identificações de cadeiras.
Mas se o que temos é uma convenção, então um elemento psicológico precisa
estar envolvido, mesmo que de modo não-consciente, mesmo que constituído
apenas do que poderia ser chamado de uma cognição não-reflexiva.
Confirmando a explicação tradicional, a definição torna explícita uma
convenção que se instancia em cognições implícitas, não-reflexivas, não-
conscientes.
Outro argumento que vai contra a idéia de que temos acesso cognitivo
implícito às convenções semânticas que governam nossas expressões foi
desenvolvido por Gareth Evans, o filósofo que mais diretamente influenciou
McDowell. Evans pede-nos para contrastar a crença que um ser humano tem de
que certa substância é venenosa com a disposição de um rato de evitá-la. No
caso do ser humano trata-se de uma cognição no sentido de uma crença genuína
envolvendo conhecimento proposicional; já no caso do rato trata-se de uma
simples disposição para reagir a certo odor, e não propriamente de uma crença.
A diferença se mede no fato de que
29
É da essência de um estado de crença que ele esteja a serviço de muitos distintos projetos, e que sua influência sobre qualquer projeto seja mediada por outras crenças.1
Assim, se temos a crença de que certa substância é venenosa podemos com
ela tentar matar um rato na expectativa de que ele venha a ingerir o venenou ou,
digamos, ingerir o veneno na intenção de nos suicidarmos. Nós relacionamos
inferencialmente o conteúdo cognitivo-proposicional da crença de que algo seja
venenoso a uma diversidade de outras crenças, como no caso de alguém que
acredita que se tornará imune a um veneno ao digerir diariamente uma pequena
quantidade dele e ir aumentando gradativamente a dose. Como nosso
conhecimento das regras semânticas não é susceptível de tais inferências,
raciocina Evans, ele não é constituído de estados de crença reais, mas de estados
insulares, semelhantes à disposição do rato. Eles não são, pois, estados
psicológicos propriamente cognitivos.2
A caracterização da crença proposta por Evans é interessante e correta.
Minha dificuldade com o seu argumento, porém, é que ele nos fecha os olhos
para a imensa distância que existe entre nosso conhecimento das regras
semânticas e a mera regularidade disposicional que leva o rato a evitar o veneno.
Considere, como analogia, o caso de nosso conhecimento das regras da
gramática portuguesa. Considere o caso simples das regras gramaticais de
concordância verbal. Uma criança as aplica sem consciência do que faz. Mas
tais regras já permitem à criança realizar uma diversidade de aplicações a verbos
muito diferentes em contextos muito distintos. Noam Chomsky manteve, creio
que corretamente, que mesmo não sendo consciente o conhecimento da
gramática envolve conhecimento proposicional e crença, tanto quanto o
conhecimento ordinário, sendo o conhecimento tácito que o falante tem da
1 Gareth Evans: “Semantic Theory and Tacit Knowledge”, p. 337.2 Evans: ibid. p. 339.
30
gramática inferencialmente avaliável na interação com os seus outros sistemas
de conhecimento e crença, sendo sempre capazes de ser trazidos para a
consciência quando sob circunstâncias apropriadas.1
A conclusão clara é que há uma gradação entre o estado mental inconsciente
mais primitiva e outras mais sofisticadas, que incluem crenças e pensamentos. O
problema é o do status da regra semântica implícita. Contudo, se o que
consideramos regras semânticas são aquelas que têm como exemplo mais
simples o caso da regra semântico-criterial (C) para identificar cadeiras como
bancos com encosto, então devemos rejeitar posições como a de Evans e
McDowell. Afinal, (C) também nos permite fazer inferências simples, como a de
que uma cadeira não é um banco, tendo assim muito maior proximidade com as
regras da gramática portuguesa do que com a regularidade disposicional
demonstrada por um rato de evitar alimentos com certos odores. Parece que em
tais casos, diversamente do caso da disposição do rato, inferências implícitas
para outras cognições encontram-se disponíveis, ainda que elas sejam limitadas
e que não se possua uma disponibilidade tão ampla quanto aquilo que possui o
caráter de ser conscientemente colocado a serviço de muitos e diferentes
projetos, como pretende Evans.2 A razão dessa confusão se encontra a meu ver
no fato de que as regras semânticas em questão não têm sido nem seriamente
nem suficientemente investigadas em si mesmas, diversamente do que espero
fazer no curso da presente investigação.
Cognições semânticas não-reflexivas
1 Noan Chomsky: Rules and Representations, pp. 92-93, ver também seu livro Knowledge and Language, pp. 261-265. 2 Freud distinguia a representação inconsciente, mas apta a associar-se a outras em processos de pensamento inconscientes, da representação inconsciente verdadeiramente insulada, não associável a outras, que para ele emergia em estados psicóticos e cujo mecanismo de repressão ele chamou de exclusão (Verwerfung). Evans trata o estado mental de domínio da regra semântica no melhor dos casos como se fosse um conteúdo “excluído” no sentido freudiano. Ver S. Freud: “Die Verneinung”.
31
Em apoio ao modo de ver recém-sugerido quero apelar para as teorias reflexivas
da consciência. A idéia introduzida na discussão contemporânea por D.M.
Armstrong1 é a de que existem basicamente dois sentidos da palavra
‘consciência’. O primeiro é o do que ele chama de consciência perceptual, que
consiste no organismo estar acordado, percebendo, reconhecendo os objetos ao
seu redor e a si mesmo. Esse nível de consciência é compartilhado com espécies
inferiores: dizemos que um hamster sedado com éter perdeu a consciência
porque ele deixou de perceber o mundo. Claro que nesse nível já existe
mentalidade e cognição! Mas ao perceber o mundo o organismo não percebe que
percebe, não tem consciência de sua percepção. O rato percebe o gato, mas é
discutível se ele é capaz de tomar consciência disso no sentido próprio; quando
ameaçada, uma serpente deve sentir raiva, mas certamente não tem consciência
da raiva que tem, pois ela não possui autoconsciência... Quando então temos
consciência de que percebemos, sentimos, pensamos? A resposta é dada pela
introdução de um segundo e verdadeiramente importante sentido da palavra
‘consciência’, que Armstrong chamou de consciência introspectiva e que nós,
seguindo Locke, chamaremos de consciência reflexiva (responsável pela
autocosnciência). A consciência reflexiva nasce quando os estados mentais de
primeira ordem, incluindo os da própria consciência perceptual, se tornam
objetos de cognições de ordem superior, a saber, de metacognições, as quais são
reflexivas do que se processa no primeiro nível (o que D.M. Rosenthal chamou
de higher order thoughts2). Só quando temos a consciência reflexiva de um
estado perceptual é que podemos dizer que ele “se tornou consciente” (por isso,
quando dizemos que uma sensação ou sentimento ou pensamento “é
1 Ver o artigo clássico de D.M. Armstrong: “What is Consciousness?”, pp. 55-67. Ver também seu livro Mind and Body: An Opinionated Introduction, cap. 10.2 Mesmo Armstrong concordaria que há um elemento cognitivo na reflexão de estados mentais de primeira ordem. Ver David Rosenthal: Consciousness and Mind, parte I. Para a origem da noção de consciência reflexiva, ver John Locke: An Essay Concerning Human Understanding, livro II, cap. 1, § 19.
32
consciente”, estamos querendo dizer que ele se tornou objeto de metacognições).
Isso demonstra que a consciência dita perceptual é na verdade uma consciência
inconsciente, posto que sendo não-reflexiva, nada sabe de si mesma.
Provavelmente só os seres humanos e alguns mamíferos superiores são capazes
de consciência reflexiva.
Frente ao que acabamos de considerar podemos distinguir entre duas formas
de cognição:
(i) cognição não-reflexiva: essa cognição é própria da consciência perceptual, ela é uma cognição que enquanto tal é inconsciente, nada sabendo de si mesma.(ii) cognição reflexiva: trata-se da metacognição de estados mentais de ordem inferior, os quais se tornam por esse meio conscientes no sentido importante da palavra. Entre seus objetos estão cognições não-reflexivas como as que ocorrem na própria consciência perceptual, que podem então ser chamadas de cognições reflexivas, por serem objetos de reflexão.
Podemos agora aplicar a distinção proposta ao entendimento do status dos
modos de uso de nossas expressões. Quando dizemos que as regras
determinantes de nossos usos das expressões, inclusive as regras criteriais
determinantes de seus usos referenciais, não são em geral conscientes, não
estamos querendo dizer que suas instanciações são realmente não-cognitivas,
que lhes falta qualquer forma de mentalidade, ou que elas se encontram
verdadeiramente insuladas ou excluídas. O que queremos dizer é apenas que as
cognições que instanciam psicologicamente essas regras são de um tipo pré-
reflexivo (ou seja, elas não aparecem na forma de cognições reflexivas, falta-
lhes consciência no sentido importante da palavra).1 Mais ainda: parece ser 1 Desconsidero aqui a idéia tradicional de que os estados mentais de primeira ordem geram automaticamente metacognições, o que tornaria impossível termos consciência perceptual sem o acompanhamento de consciência introspectiva. Não só essa idéia retira muitas vantagens explicativas das teorias reflexivas da consciência, como parece faltar a ela uma base intuitiva convincente.
33
sempre em princípio possível que essas cognições não-reflexivas envolvidas em
nossos usos significativos das palavras se transformem para nós em cognições
reflexivas, conscientes, na medida em que as tornamos objetos de
metacognições reflexivas, e que isso nos sirva de base para a compreensão
consciente e a explicação verbal de sua decomposição analítica. Proponho ser
esse o caminho pelo qual nos tornamos conscientes das regras semânticas
envolvidas nos usos das expressões lingüísticas.
Ainda é preciso fazer uma observação a respeito da sugestão de que a
consciência de um estado mental possa ser o resultado da simples integração
inferencial desse estado mental com os outros estados mentais constitutivos do
sistema. Sob essa perspectiva, uma cognição inconsciente seria aquela que
permanecesse em maior ou menor medida dissociada de outros estados mentais
(embora não insulada, não excluída). Isso pode ser correto. Contudo, por que
pensar que essa maneira de ver é incompatível com uma teoria reflexiva da
consciência? Afinal, parece razoável pensar que a propriedade de um estado
mental de ser objeto de reflexão metacognitiva seja também uma condição
talvez fundamental para que esse estado mental possa ser mais extensamente,
claramente e refletidamente integrado aos outros estados mentais constitutivos
do sistema.
Essas considerações vêm em apoio à tese geral desse livro porque nos
permitirão admitir a existência de ocorrências semântico-cognitivas, mesmo
para os casos nos quais não temos consciência das convenções semânticas que
estamos seguindo. As regras criteriais envolvidas no uso referencial das
expressões não precisam ser usadas de forma verdadeiramente não-cognitiva,
como mecanismos causais irresgatáveis para a consciência reflexiva, como
alguns pretenderam. Elas podem ser consideradas como sendo sempre, de um ou
de outro modo, cognitivamente aplicadas. Só que essas cognições, mesmo sendo
eventos psicológicos, por nunca terem se tornado objetos de metacognições 34
capazes de torná-las cognições reflexivas, não se fazem conscientes, por isso
mesmo não se tornando facilmente integráveis a outros estados mentais
constitutivos do sistema. Por isso, a falta de consciência do que está envolvido
no uso significativo das expressões não basta para fazer-nos rejeitar a eventual
indispensabilidade semântica de um elemento psicológico-cognitivo.
2. SEMÂNTICA WITTGENSTEINIANA
Quero nesse capítulo esboçar uma apresentação panorâmica do conceito de
significado em nossa linguagem representativa, com base principalmente em
uma leitura reconstrutiva de sugestões feitas por Wittgenstein. No próximo
capítulo irei aplicar os resultados dessa proposta à semântica fregeana, no
intento de produzir uma análise filosoficamente esclarecedora de suas principais
distinções.
35
1. O elo semântico-cognitivo
O ponto de vista que pretendo sustentar nesse livro é o de que uma expressão
referencial, seja ela qual for, só é capaz de referir devido a algum elo
intermediário que a vincula a sua referência. Quero defender que esse elo
intermediário é de natureza semântico-cognitiva no sentido de que ele pode ser
considerado sob duas perspectivas: uma semântica e outra psicológica. Sob uma
perspectiva semântica ele é chamado de sentido ou significado, uso, intensão,
conotação, conceito, conteúdo informativo e ainda modo de uso, critério ou
regra semântico-criterial. Já sob a perspectiva psicológica esse memo elo pode
ser chamado de idéia, representação, intenção, concepção e cognição. Eis um
esquema:
ELO SEMÂNTICO-COGNITIVO a) sentido, significado, conteúdo,EXPRESSÃO intensão, modo de uso, critério, REFERÊNCIA LINGUÍSTICA regra criterial, proposição... b) idéia, representação, pensamento, cognição, intenção, concepção...
Quais são as denominações mais adequadas? Quais as que devem ser
excluídas? Devemos excluir os ítens psicológicos, de modo a não confundir
semântica com psicologia? Ou devemos abandonar as abstrações semânticas
vazias em troca das concretudes empíricas?
Essas são maneiras comuns, mas em meu juízo incorretas, de se colocar as
questões. Quero sugerir que as perspectivas semântica e psicológica não são
alternativas que se excluem, mas que se complementam. Isso é assim pelo fato
de que o elo intermediário entre as palavras e as coisas pode ser aproximado de
dois modos. Enquanto elo cognitivo ele possui natureza psicológica, consistindo
de elementos que devem ser no final remetidos a tokens mentais em indivíduos
concretos; mas enquanto o elo semântico é de natureza semiótica, devendo ser 36
remetidos a types considerados na abstração de suas instanciações em indivíduos
concretos, não sendo assim psicológicos, mesmo não possuindo nenhuma
realidade fora dessas instanciações. Essa maneira de ver parece confirmar-se
quando notamos a correspondência aproximada que alguns sub-ítens de (a) e (b)
demonstram entre si. Eis algumas:
Perspectiva semântica Perspectiva psicológica:
Sentido, significado ≈ idéia Conceito ≈ concepção, idéia Configurações criteriais ≈ representações, imagens mentais demandadas proposições ≈ ocorrências de pensamento
No que se segue quero buscar alguma elucidação para esses sub-itens e para as
relações entre eles vigentes, usando como fio condutor sugestões feitas por
Wittgenstein.
2. Porque o significado não pode ser a própria referência
As palavras que mais facilmente nos ocorrem são ‘sentido’ e ‘significado’ (em
geral usadas como sinônimas), além de termos cognatos mais técnicos como
‘conteúdo’ ou ‘intensão’. O que é o significado? Uma primeira resposta é
oferecida pelo referencialismo semântico, concepção segundo a qual o
significado de uma expressão é a sua própria referência ou extensão. Essa
concepção nega a existência ou a importância de um elo intermediário.
Wittgenstein considerou essa maneira de ver em sua forma mais primitiva, que
ele chamou de “teoria agostiniana da linguagem”:
As palavras da linguagem denominam objetos – frases são ligações de tais denominações. Nessa imagem da linguagem encontramos as raízes da idéia:
37
cada palavra tem um significado. O significado é correlacionado à palavra. Ele é o objeto para o qual a palavra aponta.1
O principal objetivo de Wittgenstein nessa passagem foi o de objetar contra o
seu próprio referencialismo semântico dos nomes de objetos simples defendido
em seu primeiro livro, o Tractatus Logico-Philosophicus. Esse modo de ver tem
um apelo natural. Afinal, é comum que ao esclarecermos o significado de uma
palavra nós apontemos para um objeto que exemplifique o que ela quer dizer.
Explicamos o que queremos dizer com o nome ‘Fido’ apontando para o cão que
leva esse nome. Isso faz parecer que o significado da palavra seja o próprio
objeto referido: aqui está o nome, lá está o seu significado. Contudo, essa foi por
muitos apontada como uma idéia primitiva e enganosa, que tem sido apontada
como uma séria fonte de equívocos em filosofia da linguagem2, ainda que a sua
influência até hoje perdure.3
Há uma variedade de argumentos que parecem tornar evidente a falsidade da
concepção referencialista do significado. Um deles é que muitos termos
singulares têm a mesma referência, mas sentidos (significados) claramente
diversos: os termos singulares ‘Sócrates’ e ‘o marido de Xantipa’ têm
significados claramente diferentes, embora se refiram a um mesmo homem. E o
oposto acontece usualmente com termos gerais: o predicado ‘...é rápido’ na frase
“Bucéfalo é rápido” se refere a uma propriedade de Bucéfalo e na frase “Silver é
rápido” se refere a uma outra propriedade, pertencente a Silver. Mas embora se
referindo a diferentes propriedades, o termo geral guarda certamente o mesmo
significado ao ser aplicado a um e ao outro cavalo. Assim, parece que o
1 Ludwig Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, parte 1, sec. 1.2 Ver especialmente Gilbert Ryle em “The Theory of Meaning”.3 Ainda hoje existem defesas sofisticadas, embora pouco plausíveis, do referencialismo semântico, a mais clara sendo talvez a apresentada por Nathan Salmon em seu livro Frege’s Puzzles.
38
significado não pode ser confundido com a referência nem dos termos singulares
nem dos termos gerais.
O principal argumento contra a concepção referencialista do significado,
contudo, é mais básico e em meu juízo o mais destrutivo: trata-se do fato de que
quando uma expressão referencial não tem referência, ela não parece perder
nada do seu significado. O termo singular ‘Eldorado’ e o termo geral ‘flogisto’
não têm nenhuma referência, mas nem por isso deixam de ser significativos.
Consciente dessas dificuldades, Bertrand Russell decidiu defender a
concepção referencialista do significado em uma forma minimalista,
concernente apenas aos supostos elementos atômicos da linguagem e do mundo.
Ele deu a entender que ao menos o significado de alguns termos designadores de
objetos simples, por ele chamados de nomes próprios lógicos, seria o próprio
objeto referido; esse poderia ser o caso de uma palavra como ‘vermelho’. Afinal,
um cego não é capaz de aprender o seu significado.1
Contudo, um pouco de reflexão demonstra ser insustentável a idéia de que o
significado de uma palavra possa em algum caso se reduzir a sua referência tout
court. Suponha que alguém aplique demonstrativamente a palavra ‘vermelho’ a
uma ocorrência do vermelho (seja ela uma ocorrência no mundo externo, como
no caso da propriedade espaço-temporalmente singularizada de um objeto de ser
vermelho (o tropo), seja ela uma ocorrência interna, como seria o caso de
perceptos (sense data) de vermelho presentemente experienciados, como queria
Russell. Poderia ser essa ocorrência o significado da palavra?
Há uma razão óbvia para pensarmos que não, que é a falta de critérios de
identidade. Isso se nota quando consideramos que a ocorrência de vermelho –
seja ela fisicamente ou fenomenalmente pensada – será sempre outra a cada 1 Bertrand Russell: “The Philosophy of Logical Atomism”, pp. 194-5, 201-2. Como notou Mark Sainsbury, a concepção referencialista do significado é pelo menos implicada em certos textos de Russell. Ver M. Sainsbury: Russell, pp. 15-16. A mesma posição foi aceita de forma explícita pelo primeiro Wittgenstein: “O nome significa seu objeto. O objeto é seu significado”. Tractatus Logico-Philosophicus, 3.203.
39
nova experiência. Assim, se o significado de ‘vermelho’ for apenas o vermelho-
como-ocorrência, cada nova ocorrência de vermelho poderá ser um novo e
distinto significado.
Russell tinha como se defender dessa acusação, mas só ao preço de cair em
uma dificuldade muito pior. Ele sugeriu que o objeto-significado do nome
próprio lógico fosse um sense datum referido por um demonstrativo como ‘isso’
apenas pelo tempo em que possuíssemos consciência do sense datum. Claro está
que tal solução conduz diretamente ao solipsismo. Como inserir um nome
próprio assim pensado na linguagem? Que regras de correção poderiam ser
aplicadas ao seu uso se nem a sua própria reutilização no mesmo sentido pode
ser considerada? 1
Com efeito, conhecer o significado de uma palavra como ‘vermelho’ é na
verdade saber reconhecer uma ocorrência do vermelho como sendo ao menos
igual a outras ocorrências do vermelho. Mas esse reconhecimento não está
incluido na idéia de que o significado da palavra se reduz à própria coisa a qual
ela se refere. A noção de significado de um termo exige essencialmente que este
unifique múltiplas ocorrências daquilo a que se refere sob um mesmo
significado. Mas essa unificação deixa de ser possível para a palavra ‘vermelho’
se o seu significado for reduzido a sua própria ocorrência.
É verdade que uma concepção realista do significado, segundo a qual o
significado de uma palavra como ‘vermelho’ seria um vermelho-type, entendido
como uma entidade abstrata, comum a todas as ocorrências (tokens), resolveria
esse problema. Mas essa solução nos comprometeria com alguma forma de
platonismo, levantando a justificada suspeita de uma reificação ininteligível do
type em um topos atopos.1 Ver objeção já na discussão de “The Philosophy of Logical Atomism”, p. 203. Também, como notou Ernst Tugendhat, um termo singular tem a função de especificar um objeto, mas se a consciência se refere somente a um sense datum presente, a conclusão é que a palavra ‘isso’ não tem mais nenhuma função. Ver Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, p. 382.
40
Uma alternativa seria considerar o vermelho-type em questão como sendo o
conjunto das ocorrências idênticas entre si. Isso diminui o risco do platonismo,
mas não o elimina, pois conjuntos são entidades abstratas aparentemente
irredutíveis. Além disso, conjuntos podem ser maiores ou menores, aumentando
ou diminuindo, enquanto o significado da palavra ‘vermelho’ não tem tamanho e
nem aumenta nem diminui.
A seguinte alternativa parece ser mais viável. Podemos considerar o
significado de ‘vermelho’ como sendo qualquer ocorrência considerada igual a
uma ocorrência que estejamos usando como modelo. Assim, se reconheço aquilo
que me está sendo atualmente dado como sendo uma ocorrência de vermelho,
pode ser porque percebo que essa ocorrência é igual a outra que já me foi dada
antes como vermelho – o modelo do qual guardo memória – o que me faz
ganhar a consciência de que se trata de uma cor igual a que experienciei da outra
vez. Assim, chamando as diversas ocorrências experienciadas de vermelho de
{V1, V2... Vn } e a ocorrência que serve de modelo de Vm, posso dizer que V1 =
Vm, que V2 = Vm... e que Vn = Vm, e que por isso {V1 = Vm = V2}, sem recorrer
a uma entidade platônica ou sequer à noção de conjunto. O que chamamos de
significado da palavra ‘vermelho’ pode, sob esse prisma, ser identificado com a
conexão referencial, a saber, com a regra cognitiva que relaciona a ocorrência
experienciada à ocorrência-modelo de maneira a produzir a consciência do que
está sendo experienciado como sendo uma cor vermelha. Como essa regra
cognitiva requer modelos intersubjetivamente experienciados ou a memória
desses modelos, fica explicado porque o significado da palavra ‘vermelho’ não
pode ser aprendido por um cego. Parece, pois, que o significado da palavra
‘vermelho’ deve ser dado por uma regra semântico-cognitiva dependente de
ocorrências-modelos para a identificação de novas ocorrências como sendo
instâncias de vermelho. Contudo, tal regra é independente dessa ou daquela
ocorrência particular do vermelho. Enfim: ao refletirmos sobre a questão, 41
mesmo para uma coisa tão simples como a cor vermelha, acabamos por ir além
de uma concepção propriamente referencialista do significado.
Mesmo que o referencialismo estrito jamais se sustente, há uma lição a ser
aprendida. Nossa última sugestão de entendimento salva do referencialismo
russelliano uma sugestão importante, que é a da necessária existência de algum
objeto de referência para os supostos nomes de objetos simples. Mesmo
entendendo a expressão ‘objeto simples’ em um sentido que não é absoluto,
restringindo-se a uma entidade não-decomponível em certa prática linguística,
como bem poderia ser o caso de um percepto de vermelho ou do vermelho como
uma propriedade singularizada dada à experiência (um tropo), a conclusão é a
de que para que tais nomes tenham significado eles precisam ter referência. Eis
porque, em um sentido importante, um cego não pode saber o significado da
palavra ‘vermelho’. Pois não podendo ter contato sensorial com coisas
vermelhas, ele não pode construir a regra semântico-cognitiva constitutiva do
significado da palavra. Ao menos no caso de nomes de objetos simples,
referidos por algum subrogado dos nomes próprios lógicos restrito a certa
prática linguística, é necessário que exista alguma referência. Mas isso não quer
dizer que o significado do nome seja a própria referência. Isso quer dizer apenas
que a referência é necessária à constituição da regra semântica através da qual o
nome do objeto admitido como simples ganha referência.
3. Significado, uso, regra semântica
Passemos agora a outro candidato a elo semântico: o uso ou aplicação.
Wittgenstein sugeriu que o significado de uma expressão lingüística é o seu uso
(Gebrauch) ou aplicação (Verwendung). Como ele escreve em uma famosa
passagem das Investigações Filosóficas:
42
Pode-se, para uma grande classe de casos de utilização da palavra ‘significado’ – senão para todos os casos de sua utilização – explicá-la assim: o significado de uma palavra é o seu uso na linguagem.1
Essa sugestão se aplica tanto a palavras quanto a frases. Ela se aplica
claramente aos usos performativos das expressões, como o do verbo pedir em
proferimentos do tipo “Peço que p”. Esses usos constituem tipos de interação
entre o falante e o ouvinte chamadas de forças ilocucionárias.
Contudo, a identificação do significado com o uso não se aplica tão somente
ao significado descritivo, representacional ou semântico-cognitivo das
expressões, que é aquele que está em causa quando tratamos da referência. O
significado da frase descritiva “O céu está azul” não parece se reduzir aos seus
usos. Uma solução consiste em se fazer uma extensão justificada do conceito de
uso. Podemos dizer que aquilo que está em causa é nesses casos o uso
referencial de termos e frases: o uso envolvido no ato de tornar pública uma
descrição de como as coisas são. Podemos entender o uso referencial de
expressões como aquele em que um falante comunica a cognição de como as
coisas são ao ouvinte. Assim, no proferimento “O céu está azul” estou usando a
asserção de modo constatativo, para comunicar o conteúdo por ela descrito.2
Contudo, o que dizer da compreensão de um proferimento pelo ouvinte? O
ouvinte afinal não o está usando ao compreender o seu significado (quando leio
um livro tenho acesso ao significado das frases, mas não as estou usando). Aqui
precisamos recorrer a uma segunda extensão da palavra ‘uso’. Posso dizer que
também uso as expressões em pensamento. Quando penso que o céu está azul,
uso a linguagem no pensamento. E o pensamento é, como o definiu Platão, um
1 Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, seção 43.2 A linguagem não possui apenas uma função comunicacional, mas também organizativa, no sentido de que a usamos para pensar, para organizar nossas idéias e planejar nossa ação. A primeira vista a identificação do significado com o uso não parece fazer juz à função organizativa. Mas isso não é verdade. Se penso que a Torre Eiffel é de metal, estou usando esse nome referencialmente, em um diálogo comigo mesmo, ou seja, em pensamento.
43
“diálogo da alma consigo mesma”. Se concordo com algo, se me pergunto algo,
se constato algo para mim mesmo, trata-se de usos internalizados de expressões
determinados por regras também envolvidas na comunicação.
Também importante é perceber que não se trata simplesmente de uso no
sentido de uma mera ocorrência espaço-temporal (token) da expressão
lingüística, pois uma ocorrência difere sempre da outra em sua localização
espaço-temporal. Se fosse assim o significado seria um outro a cada nova
ocorrência, o que tornaria o número de significados de cada expressão ilimitado.
A alternativa plausível é entender o uso no sentido de modo de uso
(Gebrauchsweise) ou modo de aplicação (Verwendungsweise), pois uma mesma
palavra pode ser usada muitas vezes do mesmo modo. Mas o que é o modo de
uso? Ora, ele não parece ser outra coisa senão algo do tipo de uma regra (etwas
Regelartiges). O próprio Wittgenstein chegou a essa conclusão em uma
passagem menos quotada de Sobre a Certeza:
Um significado de uma palavra é um modo de sua aplicação (Art der Verwendung)... Daí que existe uma correspondência entre os conceitos ‘significado’ e ‘regra’. 1
Com efeito: usar uma expressão de modo significativo é usá-la de acordo
com o seu modo de uso. É usá-la corretamente, a saber, segundo as regras de
significação apropriadas. A correspondência entre modo de uso e regra fica clara
através de uma ilustração: imagine que você compre uma câmara de vídeo e que
na embalagem encontre um livreto no qual está escrito “modo de uso”. O que
vem a seguir são instruções que nada mais são do que regras para a correta
utilização do aparelho. O significado só pode ser aproximado do uso se for
entendido no sentido de modo de uso, de algo do tipo de uma regra, que
1 Wittgenstein: Über Gewissheit, seções 61-62.44
determina os usos-ocorrências singulares. E o uso referencial é uma forma
particularmente importante de modo de uso.
Mas por que então não podemos identificar o significado de nossas
expressões lingüísticas com regras simpliciter? A resposta também foi
aproximada por Wittgenstein com a sua analogia da linguagem com um
cálculo.1 As expressões lingüísticas em seu uso geralmente envolvem cálculos,
os quais nada mais são do que combinações ou concatenações de regras. E os
significados que elas possuem parecem constituir-se dessas combinações de
regras que são convenções automatizadas, mais ou menos compartilhadas entre
os falantes. É isso o que justifica a comparação da linguagem com um cálculo. A
multiplicação 12 . 30 = 360, por exemplo, pode para certa pessoa resultar da
combinação de três regras, uma multiplicando 10 . 30, outra multiplicando 2 .
30, e ainda outra somando os resultados 300 + 60, de modo a obter 360. O
sentido epistêmico da multiplicação 12 . 30 = 360 se encontraria então dado por
essa e por outras calculações equivalentes, pois tal proposição não faria sentido
se tais cálculos não pudessem ser realizados. O que havíamos chamado de algo
do tipo de uma regra parece esclarecer-se, pois, como uma combinação de
regras. O significado de uma expressão lingüística deve ser o mesmo que certas
regras ou combinações de regras que eventualmente determinam usos-
ocorrências corretos, quer pragmáticos, quer referenciais, quer na linguagem
falada, quer na linguagem pensada. Nesse livro usarei o termo ‘regra’ de
maneira a incluir combinações de regras, o que é no final das contas uma
extensão justificada do termo, posto que uma combinação de regras não é mais
do que uma regra composta, que embora não seja ela própria convencional (o
seu compartilhamento pelos falantes não é pressuposto), costuma ser
convencionalmente fundada, a saber, constituída com base em convenções.
1 Ver Wittgenstein: Ludwig Wittgenstein und der Wiener Kreis, p. 168, ver também Wittgenstein’s Lectures: Cambridge 1930-1932, pp. 96-97.
45
Há ao menos duas espécies de regras de significação que não podem deixar
de ser distinguidas. A primeira é a das regras cognitivo-criteriais responsáveis
pelo significado epistêmico das sentenças declarativas. Critérios são, no dizer de
Wittgenstein, “aquilo que confere às nossas palavras os seus significados
comuns”.1 Para ele essas regras são baseadas em critérios, que são condições que
precisam ser independentemente dadas para que tenhamos a cognição de que
algo é o caso. Usando um exemplo do próprio Wittgenstein, se alguém afirma
“Está chovendo”, isso envolve a aplicação de uma regra criterial, uma regra que
demanda que sejam dadas certas condições, como a de gotas de água caindo das
núvens, para que haja a cognição, a tomada de consciência do fato de que está
chovendo. A segunda espécie de regras de significação a ser mencinada é a das
regras ilocucionárias, determinadoras do sentido ilocucionário, ou seja,
estabelecedoras da espécie de interação que deve ocorrer entre falante e ouvinte.
Se ao fazer um pedido digo “Por favor, feche a porta”, essa frase não será
verdadeira ou falsa, mas bem sucedida ou não, sendo a regra ilocucionária
aquilo que nela é tematizado. As regras ilocucionárias estão fora do âmbito de
investigação desse livro, sendo mencionadas apenas no intuito de prevenir
confusões.
Contudo, se uma análise do apelo ao uso termina por apontar para regras
cognitivas semântico-criteriais, então por que começar pelo uso? Por que não
começar logo pela investigação dessas regras e de suas combinações? A resposta
é que começar pelo uso tem para Wittgenstein uma importância heurística. As
ocorrências de uso correto, devidamente interpretadas, devem constituir-se nos
hard data semânticos: evidências públicas e indiscutíveis da aplicação das
regras de significação, pois a linguagem é primeiramente um instrumento de
ação e as regras cognitivo-criteriais estão inevitavelmente associadas a funções
ilocucionárias. Ademais, o apelo à ocasiões de uso torna patentes as sutis
1 Ludwig Wittgenstein: The Blue and the Brown Books p. 57.46
variações semânticas que uma mesma expressão pode sofrer ao ocorrer em
diferentes contextos (práticas, jogos de linguagem), o que permite desfazer
equívocos surgidos de usos filosóficos da linguagem, que venham a confundir
essas variações.
4. Significados e práticas lingüísticas
Há mais a se dizer sobre o significado como função do uso: é que uma expressão
lingüística é normalmente usada dentro de um sistema de regras. Podemos
comparar uma expressão lingüística com uma peça de um jogo de xadrez e o seu
uso com um lance no jogo. Quando movemos a peça de xadrez, o significado do
movimento não é dado somente pela regra segundo a qual movemos a peça. Ele
é mais completamente dado pela estratégia, pelo cálculo das combinações
possíveis de regras na previsão de possíveis movimentos do adversário e das
respostas que poderiam se seguir. Esse cálculo é próprio para o jogo de xadrez e
será diferente, digamos, no jogo de damas. Algo semelhante se dá com um
proferimento lingüístico. As regras lingüístico-gramaticais de superfície são
como as que permitem os movimentos das peças de xadrez. Não são elas as que
mais importam. Elas dão à expressão o seu sentido meramente gramatical. As
regras constitutivas do significado da expressão se assemelham mais às
combinações de regras que justificam o movimento no contexto do jogo de
xadrez. Essas regras de uso de uma expressão linguística só se articulam no
contexto de sistemas de regras geralmente sintáticas, semânticas e pragmáticas,
que Wittgenstein inicialmente chamava de jogo de linguagem e mais tarde
passou a chamar de prática lingüística. Exemplos dados por Wittgenstein de
jogos de linguagem são ordenar, descrever um objeto pela aparência, informar
um acontecimento, fazer suposições sobre um acontecimento, inventar uma
47
estória, contar uma história, explicar, descrever uma paisagem, fazer teatro,
contar uma piada, traduzir etc.1
Ao fazer depender o significado das expressões de seus usos segundo as
regras de práticas lingüísticas, Wittgenstein estava endossando o que hoje
chamaríamos de uma forma de molecularismo semântico: o significado da
expressão não depende dela mesma em isolamento (atomismo semântico), nem
de sua inserção na linguagem como um todo (holismo semântico), mas de ela ser
usada no contexto de uma prática lingüística (um subsistema molecular da
linguagem). Em apoio a essa concepção ele descreveu a linguagem natural como
uma nebulosa de jogos de linguagem. Como ele escreveu:
A linguagem do adulto apresenta-se aos nossos olhos como uma massiva nebulosa, a linguagem ordinária, circundada de jogos de linguagem particulares mais ou menos definidos, que são as linguagens técnicas.2
A nebulosa de práticas linguísticas, por sua vez, é algo que só encontra a sua
razão de ser como parte constitutiva do que Wittgenstein chama de uma forma
de vida. Ao que consta, ele teria sido influenciado pela leitura de um artigo do
antropólogo Bronislaw Malinovski, o qual sugeriu que para aprender a língua de
um povo primitivo precisamos compartilhar da vida em sua sociedade.3 O
exemplo usado por Malinovski para ilustrar o seu ponto de vista pode ser útil:
quando os pescadores das ilhas Trobriandes usam a expressão ‘remamos em
lugar’, eles querem dizer com ela que estão próximos de uma aldeia, pois como
as águas, mesmo próximas da praia, são profundas, varar a canoa é impossível e
eles precisam usar os remos para chegar à aldeia. Só quando conhecemos o
1 Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, sec. 23.2 Wittgenstein: Eine philosophische Betrachtung (das Braune Buch), exemplo 6, p. 122.3 Bronislaw Malinowski: “The Problem of Meaning in Primitive Languages”, publicado como suplemento em C.K. Ogden & I.A. Richards: The Meaning of Meaning (1923), um livro lido por Wittgenstein.
48
contexto em que os nativos vivem ganhamos condições de entender o que essa
expressão quer dizer.
Como em outros pontos, a importância do que Wittgenstein diz consiste em
ter percebido o alcance e a abrangência de certas idéias. Para ele a expressão
‘forma de vida’ tem o sentido de modo de vida em sociedade, a dizer, do
complexo de regras que determinam a vida das pessoas em um grupo social.
Assim, a linguagem é um sistema imensamente complexo que é multiplamente
divisível em subsistemas que são as práticas lingüísticas, os jogos de linguagem,
os quais se encontram por sua vez enraizados em outro sistema, que é o
constituido pelas regras que determinam a vida das pessoas em sociedade, não
podendo ser inteiramente separado desse último. As práticas linguísticas
constitutivas de nossa linguagem ordinária nascem espontaneamente de nossa
forma de vida e dela dependem. Mesmo o aprendizado dos jogos de linguagem
especializados das ciências, só é possível porque já pressupõe algum domínio
das práticas da linguagem ordinária, também dependendo, por isso, em última
instância, da forma de vida. Eis porque um computador não seria capaz de dar
sentido às palavras com as quais opera: ele não é membro participante de uma
forma de vida.
Podemos sintetizar essas sugestões na idéia de que um significado de uma
expressão (palavra, frase) consiste em seu uso determinado pelas regras de uma
prática lingüística pertencente a uma forma de vida. Ou seja:
Um significado de uma expressão x = um uso de x segundo regras de uma prática lingüística radicada em uma forma de vida.1 1 C.F. Costa: “Wittgenstein e a gramática do significado”, em A Linguagem Factual, cap. 2. Meu pressuposto interpretativo é o de que Wittgenstein não estava fazendo tentativas de explicar a natureza do significado, que sempre acabavam se demonstrando fracassadas, sendo então substituídas por outras, em um processo de tentativas aleatórias, como alguns intérpretes parecem acreditar. O que ele tentou foi desenvolver diferentes sugestões aproximativas, cada qual abordando a mesma problemática sob uma nova perspectiva, sendo
49
Com isso temos uma primeira representação panorâmica da gramática do
conceito de significado, com alguma utilidade também como fundamento para
uma crítica da linguagem.
5. Transgressões do uso lingüístico
Gostaria de fazer agora um breve excurso sobre as duas maneiras como, em
concordância com os textos de Wittgenstein, o uso lingüístico correto pode ser
transgredido em filosofia de maneira a produzir maladies que demandam
terapia. Podemos chamá-los de uso deslocado e condensado de uma expressão,
termos que tomo de empréstimo da teoria freudinana sobre os mecanismos do
processo primário.1 No uso deslocado uma expressão é usada em uma prática
lingüística B preservando o seu modo de uso na prática lingüística A (ou seja,
segundo as regras semânticas de A). Já no uso confus tenta-se usar uma mesma
expressão que pode ser usada em duas ou mais práticas lingüísticas, digamos, A
e B, simultaneamente, como se isso constituísse uma única prática lingüística.
Exemplos filosóficos desses mecanismos são sempre contestáveis, por isso
vou considerar dois casos muito simples. Quanto ao uso equívoco, considere o
paradoxo de Estilpão. Esse filósofo negou a possibilidade de predicação. Para
tais sugestões em grande medida complementares entre si. Sob esse ponto de vista é possível encontrar uma continuidade nas concepções semânticas de Wittgenstein, que vai dos Livros de Notas 1914-1916 até Sobre a Certeza.1 Para Freud o deslocamento (Verschiebung) se dá quando a carga afetiva de uma representação passa a outra representação, a qual se torna consciente, enquanto a condensação (Verdichtung) se dá quando a carga afetiva de uma representação complexa se concentra em uma parte dela, a qual se torna consciente. Essa semelhança com os dois mecanismos fundamentais do processo primário, que Freud chamava de deslocamento e condensação, não é mera coincidência. A atividade filosófica é para Freud uma forma do processo primário, assim como a arte e a religião. Para ele o mecanismo de deslocamento é mais relacionado ao inconsciente do que o de condensação, o que também pode acontecer no caso de confusões linguísticas. O próprio Wittgenstein admitia alguma proximidade entre a sua terapia filosófica e a terapia psicanalítica, resguadadas as diferenças. Ver Sigmund Freud: Die Traumdeutung, cap. 7. Que existem dois modos de transgressão já foi notado antes por um intérprete minucioso e sagaz como Anthony Kenny em sua introdução à filosofia de Wittgenstein.
50
ele, se digo que Sócrates é sábio, caio em contradição, pois estou negando que
Sócrates é Sócrates... Para ele podemos dizer de alguma coisa que ela é o que é.
Mas se quisermos dizer algo mais do que isso, então caímos em contradição,
pois estamos negando que ela é o que é. Podemos identificar a falácia cometida
por Estilpão distinguindo uma prática linguística do tipo A, na qual o verbo ser é
usado no sentido de identidade (ex: “Sócrates é Sócrates”), de uma prática
linguísticas do tipo B, nas quais o verbo ser ganha um sentido predicativo (ex:
“Sócrates é sábio”). Estilpão começa por assimilar a segunda prática à primeira.
Ou seja: ele tenta usar o verbo ser em práticas do tipo B preservando o sentido
que ele tem em práticas do tipo A, que é o único que ele admite. Com isso ele
produz um uso deslocado que ele reconhece como sendo equívoco. Ao perceber
isso ele conclui pela rejeição da possibilidade de usarmos o verbo ser em
práticas linguísticas do tipo B.
Para tentarmos um exemplo de uso condensado, considere a sugestão de
alguns filósofos, segundo a qual o verbo ser deve ter um sentido unívoco
originário, que tanto é o de identidade quanto predicativo e mesmo existencial!
Digamos que, como comprovação disso, nos seja apresentada a frase: “O Ser é
Ser”, com a qual se pretenderia afirmar que o ‘é’ também tem uma propriedade
mais originária, superior a da mera identidade, que simultaneamente subsume
tanto a predicação da “seridade” do Ser quanto de sua própria existência. Contra
tal sugestão, o crítico da linguagem nos dirá ser muito mais plausível que aquilo
que o filósofo pretende com o ‘é’ da frase “O Ser é Ser” seja uma incoerente
mistura de sentidos, a saber, uma simples confusão decorrente da condensação
de três usos da mesma palavra, advindos de várias práticas lingüísticas distintas:
A (de afirmar identidade: “ser = ser”), B (de predicar algo: “Do ser se predica o
ser”) e C (de afirmar existência: “O ser é, ele existe”), do que resulta no melhor
dos casos em ambigüidade e no pior em confusão e impossibilidade conceitual.
51
Apresento essa explicação porque repetidamente nesse livro, ao praticar a
crítica da linguagem, recorrerei a argumentos que denunciam formas do uso
deslocado ou condensado das expressões. Lembremo-nos, porém, que a crítica
(ou terapia) da linguagem não esgota a questão. Usos deslocados e condensados
em filosofia estão geralmente apontando para questões relevantes, ainda que
inadequadamente abordadas.
6. Verificacionismo wittgensteiniano
Por hipótese, sob o suposto de que o sentido referencial das expressões seja dado
por regras semântico-cognitivas, podemos distinguir para cada expressão
referencial uma regra semântico-cognitiva específica. Para chegar a isso sugiro
seguirmos a estratégia de Ernst Tugendhat de nos concentrarmos nas regras
expressas pelos enunciados singulares, sejam eles predicativos ou relacionais.
Afinal, são eles os enunciados mais fundamentais, se considerarmos que
enunciados universais e existenciais podem ser analisados respectivamente
como conjunções e disjunções de enunciados singulares. Assim, lembrando que
a frase singular predicativa é constituida por um termo singular e por um termo
geral e seguindo uma classificação do próprio Tugendhat1, chamo a regra
semântico-cognitiva para o termo singular de uma regra de identificação do
objeto (Identifikationsregel), chamo a regra semântico-cognitiva para o termo
geral de sua regra de aplicação (Verwendungsregel) e chamo a regra semântico-
cognitiva para a frase predicativa singular de sua regra (método, procedimento)
de verificação (Verifikationsregel) do fato, o qual pode ser por enquanto
simplesmente estipulado como sendo o fazedor da verdade independente do
sujeito.2 Também como Tugendhat podemos supor que o significado da frase
singular predicativa envolve uma regra de verificação resultante da aplicação 1 E. Tugendhat: Logisch-Semantische Propädeutik, pp. 235-6, e Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, p. 262. 2 A discussão sobre o sentido coloquial da palavra ‘fato’ será deixada para o próximo capítulo.
52
combinada das duas regras anteriores, nomeadamente, da regra de aplicação de
termo geral com base na aplicação da regra de identificação do termo singular.1
No caso da frase singular relacional, a diferença é apenas que o termo geral
relacional tem uma regra de aplicação que se aplica em combinação com duas
ou mais regras de identificação de termos singulares para formar a regra de
verificação da frase relacional. Este recurso à regra de verificação foi, aliás,
visto por Tugendhat como uma maneira analiticamente mais aprofundada de se
falar da condição de verdade da frase,2 identificação à qual deveremos retornar
mais tarde.
Com a admissão teórica de que o conteúdo de significação da frase singular
possa ser dado por sua regra de verificação chegamos a um ponto bastante
polêmico: a admissão do que poderíamos chamar de verificacionismo semântico,
que é a identificação do conteúdo de significação cognitivo ou descritivo ou
factual ou informativo ou (como prefiro chamar aqui, seguindo o termo fregeano
Erkenntniswert) o significado epistêmico de uma frase enunciativa com a sua
regra de verificação. Embora nem todos saibam, foi Wittgenstein a primeira
pessoa a sugerir essa idéia.3 Vale, pois, considerarmos o que ele disse a respeito.
Eis algumas de suas declarações:
Uma frase (Satz) que não se deixa verificar de modo algum não tem nenhum sentido (Sinn).4
São duas frases verdadeiras ou falsas sob as mesmas condições, então elas têm o mesmo sentido (mesmo que elas nos pareçam diferentes).
1 A brilhante conclusão especulativa de Tugendhat em reflexão clássica sobre o que significa compreender uma sentença é a de que se a concepção por ele argumentativamente ganha é correta, então “a regra de aplicação do termo singular e a regra de aplicação do predicado constituem juntas a regra de verificação da frase predicativa”. E. Tugendhat: Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, p. 262.2 E. Tugendhat: Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, p. 259.3 Como nota o autor do dicionário Wittgenstein: “o princípio foi primeiramente defendido pelo Círculo de Viena, mas seus membros o atribuem a Wittgenstein, que o expôs a Waismann em conversações”. Hans-Johann Glock: Wittgenstein-Lexikon, p. 354.4 F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p. 245.
53
Determino sob que condições uma frase pode ser verdadeira ou falsa, então determino desse modo o sentido da frase. (Esse é o fundamento de nossas funções de verdade.)1
Para saber o sentido de uma frase, preciso conhecer um procedimento muito bem definido para saber se a frase é verificada.2
O método de verificação não é um meio, um veículo, mas o próprio sentido. Determino sob quais condições uma frase deve ser verdadeira ou falsa, assim determino o sentido da frase.3
O sentido de uma frase é o método de sua verificação.4
O que primeiro chama atenção em tais formulações é que elas são quase
trivialmente intuitivas, parecendo confirmar a sugestão wittgensteiniana de que
teses filosóficas são exposições de lugares comuns acerca dos quais deveríamos
todos estar de acordo. Sem dúvida, se considerarmos exemplos muito simples (e
penso que modelares de condições mínimas) como “O céu está azul” ou “A
chave está em cima do armário”, parece claro que só sabemos o que esses
enunciados querem dizer na medida em que sabemos como eles podem ser
tornados verdadeiros. Outro aspecto importante é que, diversamente do que os
membros do Círculo de Viena fizeram com a sua sugestão, Wittgenstein não se
colocava dentro de uma perspectiva logicista em busca de uma formulação
“formalmente precisa” do princípio, capaz de dar conta de suas mais variadas
aplicações. Suas formulações são genéricas, possuindo um viés operacionalista:
nelas as condições de verdade dadas à experiência seriam melhor entendidas
como constituintes distais da regra (procedimento, método) verificacional.5
Além disso, o princípio não é de antemão apresentado como arma ideológica no
combate à metafísica; a sua função primeira é a de expor uma condição lógico-
1 F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p. 244.2 F. Waismann (ed.): Wittgenstein und er Wienner Kreis, p. 47.3 F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis p. 244.4 F. Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, pp. 226, 227.5 Nesse aspecto as formulações de Wittgenstein o aproximam do físico norte-americano P.W. Bridgman, que em 1927, no livro The Logic of Modern Physics, defendeu que “nada mais queremos dizer com qualquer conceito do que um conjunto de operação; o conceito é sinônimo do conjunto de operações” (p. 5).
54
gramatical que se encontra no fundamento de toda a linguagem factual.
Finalmente, é questionável a sugestão frequente de que Wittgenstein teria mais
tarde abandonado o princípio da verificação em favor da idéia de que o
significado é o uso, posto que as duas sugestões podem ser vistas como
complementares. Como notou Moritz Schlick, o melhor leitor de Wittgenstein
daquele período:
Enunciar o significado de uma sentença é o mesmo que enunciar as regras de acordo com as quais a sentença é para ser usada, e isso é o mesmo que enunciar o modo pelo qual ele pode ser verificada. O significado de uma proposição é o método de sua verificação.1
Uso é aqui modo de uso que é regra de uso que é uma regra cognitiva, uma regra
(método, procedimento) de verificação, a qual é também uma regra criterial,
posto que estabelecedora dos critérios de verificação.
7. Regra verificacional como portadora da verdade
É preciso ter em mente o que a regra de verificação verifica. Ela verifica o
portador da verdade. Ela não verifica a frase, pois a frase não é o portador da
verdade. A frase não possui a estabilidade necessária ao portador da verdade,
que precisa ser sempre verdadeiro ou sempre falso na independência das
circunstâncias.2 Também o enunciado, que entendo como sendo a frase
adicionada ao seu sentido gramatical (ao seguimento de regras sintáticas) não
pode ser portador da verdade pelas mesmas razões. O que a regra de verificação
verifica é o conteúdo ou o sentido epistêmico do enunciado, e como ela mesma é
esse conteúdo, o que ela verifica é a si mesma. A regra de verificação verifica-se
a si mesma por meio de sua aplicação. Por isso a verdade da regra de verificação
é a sua aplicabilidade e a sua falsidade é a sua inaplicabilidade.1 M. Schlick: Gesammelte Aufsätze, p. 340.2 Para uma discussão sobre isso, ver meu artigo “O verdadeiro portador da verdade”.
55
Também é preciso considerar que a regra de verificação vem associada tanto
à verificação quanto à falsificação do enunciado. E a razão disso encontra-se no
fato de que essa regra, sendo o próprio significado epistêmico do enunciado, ou
seja, o seu próprio conteúdo cognitivo ou epistêmico verifica-se a si mesma ao
aplicar-se e se falsifica a si mesma ao se demonstrar inaplicável. Considere o
enunciado “Frege usava barba”. Aqui a regra de verificação se aplica a um fato
no mundo, logo o conteúdo enunciativo é verdadeiro, a própria regra é
verdadeira. Considere agora o enunciado “Russell usava barba”: aqui a regra de
verificação não se aplica a nenhum fato no mundo, logo o conteúdo enunciativo
é falso, a própria regra é falsa. (Similarmente, não existem fatos negativos: a
frase “Napoleão não usava barba” não se aplica ao fato negativo de ele não usar
barba. Pois “Napoleão não usava barba” quer dizer o mesmo que “É falso que
Napoleão usava barba”, o que, por sua vez, deve querer dizer o mesmo que “A
regra de verificação para o enunciado ‘Napoleão usava barba’ não se aplica”.)
8. Regra verificacional como regra cognitivo-criterial
Podemos compreender melhor a noção de regra de verificação tal como ela é
apresentada por Wittgenstein pela consideração da noção de critério e regra
criterial que, como já notamos, também tem a sua origem na filosofia de
Wittgenstein.1 As inicialmente supostas regra semânticas de identificação,
caracterização e verificação, também podem ser vistas como regras criteriais, a
saber, regras que estabelecem os critérios de identificação do objeto para o
termo singular, os critérios de classificação da propriedade para o termo geral,
e os critérios de verificação do fato para a frase singular.
A palavra ‘critério’ é ambígua. Ela pode se aplicar (i) a elementos
constitutivos da regra criterial, a saber, a condições que só existem como 1 Uma tentativa de esboçar uma semântica criterial a partir das sugestões de Wittgenstein foi feita por Gordon Baker em “Criteria: A New Foundation for Semantics”. Uma discussão útil encontra-se no último capítulo do livro de P.M.S. Hacker: Insight and Illusion.
56
representações em nossas mentes, ou então (ii) à condição correspondente,
objetivamente dada, que satisfaz os elementos constitutivos da regra criterial,
permitindo sua aplicação. Tanto num quanto no outro caso, os critérios
costumam se dispor em configurações. Assim, a regra verificacional se aplica
quando as configurações criteriais concebidas são satisfeitas pelas configurações
criteriais objetivamente dadas, as quais são constitutivas de fatos, entendidos
como sendo os fazedores da verdade encontrados no mundo.
Ora, também essa satisfação não poderia depender de nada concebivelmente
diverso de um isomorfismo estrutural entre, de um lado, os elementos inter-
relacionados que constituem as configurações criteriais pensadas e, de outro, os
elementos inter-relacionados que constituem configurações criteriais
efetivamente dadas no mundo atual. A verdade do conteúdo de significação da
frase enunciativa, que é a própria regra verificacional, resulta da aplicação dessa
regra (constituindo-se ao que parece em sua aplicabilidade), a qual depende da
satisfação de uma variedade das configurações criteriais que são pensadas
quando a regra é pensada pela variedade das configurações criteriais
constitutivas dos fatos como fazedores de verdade independentes do sujeito da
experiência. E a falsidade do conteúdo de significação da frase assertórica, a
falsidade da regra verificacional, resulta de sua inaplicabilidade, a qual se deriva
da ausência da correspondência de suas configurações criteriais com as
configurações de elementos constitutivos do fato. Essa seria a maneira de se
conformar o verificacionismo com uma concepção correspondencial da verdade.
Para esclarecer esse ponto, considere outra vez os critérios para a constatação
de que está chovendo, que podem ser dados quando vemos gotas d’água caindo
das nuvens. Ora, esse processo é constituído de propriedades identificadoras de
gotas e caracterizadoras de seus movimentos e direções. Essas configurações
criteriais podem ocorrer no mundo externo independente de nós, mas elas
também podem ser meramente concebidas na ausência da observação, como 57
acontece quando alguém imagina gotas D’água que caem das núvens. Para
enunciados completos deve haver critérios que se constituem em configurações
de elementos (propriedades, relações, objetos...) atuando como fazedores de
verdade a satisfazerem a regra de verificação.
A condição de verdade pode ser identificada com a condição de verificação,
nomeadamente, com a regra de verificação, mas sob a abstração das variadas
configurações criteriais específicas que nos permitem inferir que a condição de
verdade está sendo satisfeita, ou seja, que o fato no mundo (a condição de
verdade dada, que satisfaz a condição de verdade concebida) é efetivamente
dado. Como Wittgenstein observa:
Tudo o que é necessário para que nossas frases (sobre a probabilidade) tenham sentido é que nossa experiência em algum sentido (in irgendeinem Sinne) com ela concorde ou não concorde. Isso é: a experiência imediata deve comprovar apenas alguma coisa delas, alguma faceta.1
O seguinte exemplo de Wittgenstein esclarece melhor esse ponto:
A consideração do modo como o significado de uma sentença é explicado torna clara a conexão entre significado e verificação. Ler que Cambridge ganhou a corrida de botes, o que verifica “Cambridge venceu”, obviamente não é o significado, mas é conectado com ele. “Cambridge venceu” não é a disjunção ‘eu vi a corrida ou eu li o resultado ou...’ É mais complicado. Mas se excluirmos qualquer um dos meios de verificar o enunciado, nós alteraremos o seu significado. Seria uma infração de nossa gramática se nós excluíssemos da verificação algo que sempre acompanhou o significado. E se excluíssemos todos os meios de verificação, isso iria destruir o significado. É claro que nem toda espécie de verificação é realmente usada para verificar “Cambridge venceu” nem qualquer verificação dará o significado. As diferentes verificações do vencer a corrida de barcos têm diferentes lugares na gramática de “ter vencido a corrida de botes”.2
1 Friedrich Waismann (ed.): Wittgenstein und der Wienner Kreis, p. 282. 2 Wittgenstein’s Lectures, Cambridge 1932-5, p. 29.
58
Considerando que “Cambridge venceu a corrida de botes” é uma frase
predicativa singular, devemos notar que as regras fundamentais devem ser a
regra de identificação do termo singular ‘a equipe de Cambridge’ e a regra de
aplicação do predicado ‘...venceu a corrida de botes’. Mas o procedimento
verificacional é mais complexo; ele tem a forma de uma árvore, que pode se
ramificar em variadas formas verificacionais. O significado de uma frase deve
ser constituído pelas formas verificacionais que terminam nas configurações
criteriais cuja satisfação elas requerem. Há configurações criteriais
fundamentais, como a observação direta do acontecimento, feita por alguém que
realmente vê a equipe de Cambridge vencer a corrida de botes... Mas existe
também uma variedade indefinida de configurações criteriais secundárias, de
sintomas, que nos permitem inferir que Cambridge venceu a corrida de botes,
como é o caso da notícia de jornal ou do encontro de um novo troféu na estante
do clube de regatas. Essas regras podem ser aplicadas diretamente, no caso em
que vemos Cambridge vencer a corrida, ou indiretamente, quando a sua
aplicabilidade é deduzida de outros fatos. No primeiro caso Wittgenstein poderia
falar de critérios primários e no segundo ele fala de critérios secundários ou
sintomas. Os critérios primários são definitórios: uma vez dados eles decidem do
que o fato em questão está sendo dado; já os critérios secundários ou sintomas
apenas probabilizam o fato em questão.1 Assim – para tormar um exemplo de
Wittgenstein – pingos de chuva caindo do céu é critério de chuva, enquanto
calçadas molhadas são sintomas ou critérios secundários de chuva, pertencendo
secundariamente ao significado da atribuição de chuva.2 A investigação precisa
e detalhada da estrutura das regras de verificação em diferentes espécies de
enunciados é um empreendimento que me parece importante e que não foi
levado a termo.
1 Wittgenstein: The Blue and the Brown Books, p. 24.2 Wittgenstein: Wittgenstein’s Lectures, Cambridge 1932-1935, p. 28.
59
É preciso notar que intuitivamente a condição de verdade é o fato fazedor da
verdade do enunciado, como o de que chove ou de que Cambridge venceu a
corrida. O conceito de condição de verdade tem a mesma ambigüidade que o
conceito de critério: pode ser o fato no mundo (o fazedor da verdade) ou então
um fato meramente concebido. A suspeita que aqui emerge é a de que o conceito
de condição de verdade não pode ser dissociado do conceito de critério. A
condição de verdade é o fato, e o fato é o complexo de configurações criteriais
que nos permitiria verificar diretamente o enunciado. Contudo, se alguém
verifica que Cambridge venceu a corrida por encontrar uma taça no armário de
um clube, esses critérios secundários (sintomas) não serão parte do fato (evento)
de Cambridge ter vencido. Se vejo que o barômetro indica que está chovendo,
esse critério também é secundário, um mero sintoma de chuva, que não é parte
constitutiva do fato de que está chovendo, diversamente dos pingos de chuva
caindo, que posso discernir de diversas maneiras. Essas considerações
aproximam-nos das teorias do significado como condições de verdade.1
1 Uma teoria do significado como condição de verdade é a que foi exposta por Wittgenstein em seu Tractatus Logico-Philosophicus. Segundo a sua versão, o significado de uma frase é o fato possível por ela representado, sendo tal fato a sua condição de verdade. Outra influente teoria dessa espécie foi a sugerida por Donald Davidson com base em Tarski. Segundo essa última teoria, o significado de uma sentença é a sua condição de verdade (ver Donald Davidson: Inquires into Truth and Interpretation, caps. 1-5). Um problema com essas teorias é que enquanto as condições de verdade não forem explicadas com base em configurações criteriais, tais teorias permanecem filosoficamente triviais, não fornecendo uma decomposição suficientemente esclarecedora do significado. Em Davidson, por exemplo, a condição de verdade de uma frase ‘p’ pode ser dada pela própria frase p em seu modo de dizer objetual. A teoria exposta no Tractatus tem a vantagem de supor que as frases sejam analisáveis em frases elementares muito mais complexas, cujos elementos correspondem a objetos simples. Com isso ela já sugere o caminho para uma análise criterial, mesmo que de uma maneira dogmática. Só as análises criteriais do significado, como as que serão desenvolvidas em capítulos posteriores desse livro, permitirão analisar o significado de modo esclarecedor, decompondo-o em múltiplas constelações criteriais capazes de variar de contexto para contexto. Penso que a distinção feita por Michael Dummett entre teoria modesta (modest) do significado, que o traduz para quem já o reconhece, e uma teoria sangüínea (full-blooded) do significado, que é capaz de explicá-lo para quem não o conhece, busca refletir em termos metateóricos a diferença entre uma teoria do significado como condição de verdade e uma teoria criterial. Ver M. Dummett: The Seas of Language, p. 5 e ss. Também Ernst Tugendhat progrediu nesse sentido ao concluir que a
60
O mais importante acerca disso é perceber que a condição de verdade não
pode existir na independência de seus critérios. Ela não é algo que se encontra
para além deles, na independência deles, mas, como dissemos, é o próprio
complexo dos critérios que verificam o enunciado da maneira que consideramos
a mais direta. É uma falácia filosófica a crença de que uma condição de verdade
possa existir ou ser concebida sem os critérios que a constituem.
9. Verificacionismo e teoria correspondencial da verdade
A teoria correspondencialista da verdade resulta de uma sólida intuição de senso
comum e não há razão não-filosófica para duvidarmos dela. Por isso ela será
aqui em princípio admitida. Segundo essa teoria, a verdade de um conteúdo de
pensamento (proposição) consiste em sua correspondência com o fato. A
questão é: qual a relação entre correspondencialismo e verificacionismo? Ora,
essa complementariedade se torna clara quando consideramos que o fato que
deve corresponder ao pensamento só pode ser o fato que verifica a regra
verificacional, a qual nada mais é do que o próprio pensamento no sentido de
significado cognitivo da frase.
Para explicar a teoria correspondencial da verdade em sua conexão com o
verificacionismo quero valer-me de uma versão dessa teoria proposta por Moritz
Schlick no início do século XX.1 Traduzindo o que ele sugeriu em uma
condição de verdade seria mais profundamente formulada como uma condição de verificação, baseada obviamente em critérios. Ver E. Tugendhat: Vorlesungen zur Einführung in die Sprachanalytische Philosophie, pp. 259, 410. 1 M. Schlick: “Das Wesen der :Wahrheit nach der modernen Logik”. Ver também C.F. Costa “A pragmática da teoria correspondencial“ e “A verdadeira teoria da verdade“. É curioso notar que Edmund Husserl defendeu uma teoria da adequação não muito diversa dessa, embora vestida em termos de atos intencionais. Para Husserl a coincidência do objeto do ato de doação do significado (bedeutunsgsverleihende Akt) com o objeto do ato de preenchimento de significado (bedeutungserfühlende Akt) é o que objetivamente constitui a verdade. Basta substituirmos a palavra ‘objeto’ pela palavra ‘conteúdo’, ato de doação do significado por conteúdo da hipótese e ato de preenchimento de significado pelo conteúdo da constatação para termos a teoria de Schlick. Mas o apelo aos atos intencionais me parece aqui uma maneira obscurescedora de falar do que Schlick poderia chamar de procedimento
61
linguagem mais atual, a correspondência depende de um processo verificacional
constituído de três momentos:
(1) um momento suposicional, no qual se constrói um enunciado hipotético ou suposicional que pode ser abreviado como ?p (onde ? é o operador de suposição e p expressa um conteúdo de pensamento.(2) O segundo momento é o de um ato verificador no qual encontramos um conteúdo de pensamento contextualmente determinado como sendo capaz (ou não) de verificar p. Podemos abreviá-lo como !q (onde ! é o operador da constatação de um conteúdo q entendido como sendo indiscutivelmente certo dentro do contexto e do conteúdo informativo à disposição. Finalmente, há um momento (3) de comparação do conteúdo de ?p com o conteúdo da constatação Cq. Como resultado temos duas possibilidades 3a): “p = q”: nesse caso p é verificado como sendo uma frase de conteúdo verdadeiro, pois seu conteúdo é igual ao da constatação; 3b) “p ≠ q”. Nesse caso p é falseado por possuir um conteúdo diverso do conteúdo da constatação !q.
Alguns exemplos mostrarão como isso acontece nos diversos casos concretos.
1) O primeiro exemplo é muito simples. Eu ouço o som de gotas de chuva fora
do meu quarto. Minha suposição, minha hipótese ?p, é a de que deve estar
chovendo. Eu vou até a varanda e vejo que está chovendo: faço a constatação
observacional !q. Como “?p = !q”, a minha suposição foi constatada como sendo
verdadeira.
Veja que nesse caso trata-se de um fato observacional. Precisamos admitir
que o observação possui um conteúdo que é ele próprio o fato empírico de que
está chovendo, o qual (dentro do contexto e do pano de fundo informacional à
minha disposição) torna a minha suposição verdadeira. A maioria das
verificações empíricas, porém, não tem como constatação uma simples
observação. Elas são derivadas, resultando de inferências anteriores, por sua vez
baseadas em observações, como os próximos exemplos demonstrarão.
verificacional. Ver E. Husserl: Logische Untersuchungen, vol. 2, parte II, sec. 39.62
2) Considere agora como exemplo a descoberta das quatro luas do planeta
Júpiter por Galileu em 1610, através do telescópio por ele construído. Primeiro
ele notou que haviam quatro astros alinhados ao redor de Júpiter, que ele pensou
que fossem estrelas fixas. Ao repetir a observação nos dias seguintes ele
percebeu que os astros se moviam. Sua suposição ou hipótese foi ?p “Será que
Netuno tem quatro luas?”. Ao continuar as observações dia após dia ele
percebeu por observação a verdade de r: a constatação de que aqueles astros
realmente circundavam Netuno, o que o levou a concluir que a sua suposição era
correta.
Podemos esquematizar o processo verificacional indireto de modo a mostrar
que ele inclui a constatação de igualdade de conteúdo através de um
procedimento de verificação de correspondência. Primeiro houve a suposição ?
p: “(Será que) Netuno tem quatro luas?”. Depois houve a observação repetida
das mudanças na posição aparente dos quatro astros alinhados ao redor de
Netuno, que levou Galileu a concluir que a proposição r fosse verdadeira: eles
circundam Netuno. Com base em r Galileu concluiu uma constatação factual !q:
“Netuno tem quatro luas”. Finalmente, considerando a correspondência por
igualdade de conteúdo entre a hipótese ?p e a constatação factual !q Galileu
concluiu que essa hipótese era verdadeira.
É importante aqui notar que a constatação, embora derivada de observações,
não é ela própria observacional. Mesmo assim ela precisa ser tomada como
certa, indubitável, para poder servir como fazedor de verdade para a suposição,
caso contrário nós acabaríamos por cair em um regresso ao infinito. Mas é
preciso notar que esse caráter de certeza da constatação não precisa ser
considerado infalível. É assim no contexto dado de uma prática de conhecimento
– a da física – e sob o pressuposto do pano-de-fundo informacional à disposição
de Galileu.
63
3) Um outro exemplo de constatação derivada é o de um pastor Americano
chamado David, que logo após seu casamento com a sra. Mary foi internado
com fortes dores abdominais. No hospital descobriram altas doses de arsênio em
seu sangue. Suspeitou-se da verdade da suposição do tipo ?p, que é: “A Sra.
Mary tentou envenenar o reverendo David”. Embora não exista uma evidência
observacional para a comprovação da verdade de p, há uma série de proposições
de base observacional que se acumulam, que são: r = “Descobriu-se altas doses
de arsênio no sangue do pastor John”, s = “Encontrou-se traços de arsênio na
dispensa da senhora Rose”, t = “Exumaram-se os cadáveres dos quatro primeiros
maridos da senhora Rose, mortos por causas desconhecidas, encontrando-se alta
dose de arsênio em seus cabelos”. Note-se agora que a conjunção dos
enunciados r, s e t conduz à conclusão de que (dentro do contexto e pano de
fundo informacional dados) é considerada certa, o enunciado do tipo !q = “A
senhora Rose tentou envenenar o reverendo David” é verdadeira, que ela
exprime um fato. Finalmente, como p e q possuem iguais conteúdos, conclui-se
que a suposição de que a senhora Rose tentou envenenar o reverendo
corresponde ao fato descrito por q.
O interessante nesse exemplo é que ele envolve o que usualmente chamamos
de coerência: as proposições p, q, r, s e t são coerentes entre si. Nisso se
baseiam as chamadas teorias coerenciais da verdade. Mas o que esse exemplo
sugere é que a coerência é apenas um aspecto do mecanismo pelo qual tomamos
consciência da correspondência.
É interessante notar que enunciados formais (da lógica, da matemática, da
geometria...) também podem ter explicado o seu conteúdo cognitivo em termos
verificacionais. Há primeiro o caso de constatações não-derivadas, equivalentes
às constatações observacionais do conhecimento empírico. Por exemplo: “Na
geometria euclideana a reta é a distância mais curta entre dois pontos”, ou “uma
proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo”. Schlick sugeriu 64
que mesmo princípios como esse precisam de um exemplo que os torne
intuitivamente certos. De tais exemplos retiramos a constatação !q, que é igual à
suposição do princípio ?p, tornando-a verdadeira.
Na maioria dos casos, porém, o procedimento é derivado. Partindo de
axiomas combinamos regras formais de modo a produzir uma prova, que
constitui uma constatação cujo conteúdo é igual ao de uma suposição, tornando
esta última verdadeira por correspondência com a constatação do fato. Isso será
evidenciado nos dois exemplos seguintes.
4. Considere, no caso da geometria euclideana, o teorema da soma dos
ângulos de um triângulo. A hipótese a ser verificada é a de que a soma dos
ângulos internos de qualquer triângulo deva ser 180º. A partir de axiomas
bastante óbvios podemos demonstrar que a soma dos ângulos internos de certo
triângulo é, com certeza, 180º. Comparando o conteúdo da suposição com o
conteúdo desse resultado temos uma verificação da hipótese, que nada mais é do
que a satisfação dos critérios de verificação da hipótese.
5. Considere, por fim, um exemplo retirado da lógica modal. Consideremos
como suposição o seguinte enunciado da lógica modal “P → ◊P”: Esse
enunciado possui um significado gramatical, ao menos. Podemos inicialmente
apreendê-lo como a seguinte suposição: “?(P → ◊P)”. Mas, aceitando o sistema
S5, temos uma verificação, uma prova desse teorema, que é a seguinte:
1 □~P → ~P AS32 ~~P → ~□~P 1TRANS.3 P → ~□~P 2DN4 ◊P ↔ ~□~P AS15 ~□~P → ◊P 4 ↔ E6 P → ◊P 3,5 SD
Este argumento pode ser entendido como uma regra de verificação de “P ->
◊P”. Ele explicita de modo preciso por que temos a impressão de que “P -> ◊P”, 65
é um enunciado verdadeiro. O procedimento é equivalente ao que se dá na
verificação de enunciados empíricos. Primeiro temos uma suposição plausível,
que podemos expor como sendo ?p: “(P -> ◊P)?”. Depois, com base nos
axiomas AS3 e AS1, que são os equivalentes formais de observações empíricas,
produzimos uma combinação de regras da qual resulta a constatação do tipo !q
de que “(P -> ◊P)”. Ora, aqui vemos que há uma corespondência no sentido de
que ?p = !q, concretamente, que a suposição “(P -> ◊P)?” tem o mesmo
conteúdo que a conclusão do raciocínio que é a constatação (P -> ◊P)! tida como
certa. Como há correspondência, como os conteúdos da constatação que conclui
o raciocínio formal e o da hipótese são os mesmos, nós concluímos que “P ->
◊P” é um enunciado verdadeiro, ou seja, que “├(P -> ◊P)”. Uma diferença
importante com relação a verificações empíricas é que como os axiomas já estão
desde sempre à nossa disposição, de modo que construir a regra de verificação é
aqui o mesmo que verificá-la.
Há duas conclusões importantes a se retirar dessa maneira de se entender a
relação correspondencial tal como ela foi apresentada aqui. Uma delas é que a
teoria da correspondência passa a se aplicar a todo o campo do conhecimento.
Tradicionalmente, as ciências formais têm sido consideradas os redutos
indevassáveis do coerentismo, pois é pela coerência com as outras proposições
do sistema que uma proposição é dita verdadeira. Mas o que a sequência de
exemplos acima acaba de demonstrar é que a teoria da verdade como
correspondência se aplica também às ciências formais. A outra conclusão
importante é a de que a teoria coerencial da verdade é assimilada à teoria
correspondencial da verdade. A coerência continua existindo, mas ela é
absorvida no mecanismo de verificação. A coerência passa a ser apenas um
momento mais ou menos complexo de todo o procedimento verificacional
através do qual a correspondência se comprova.
66
A adição das intuições provenientes da teoria correspondencial da verdade ao
verificacionismo nos permite analisar melhor o que havíamos chamado de regras
verificacionais ao analisarmos o texto de Wittgenstein. Os procedimentos
através dos quais se constata a correspondência, derivados ou não, nada mais são
do que aquilo que chamamos de regras verificacionais, constitutivas do
conteúdo cognitivo completo do enunciado. As constelações criteriais cuja
satisfação é demandada pela regra variam com a correspondência derivada e
não-derivada. Na correspondência não-derivada elas são o próprio conteúdo da
constatação, que interpretamos como sendo o conteúdo externo, o próprio fato,
que também pode ser chamado de a condição de verdade. No caso da
correspondência derivada, as constelações criteriais em questão são o conteúdo
factual das observações ou dos axiomas dos quais se inferiu a constatação dada
como certa, entendida também como poussuindo o fato como conteúdo e
também podendo ser chamada de condição de verdade. Com isso chegamos a
uma idéia mais clara e precisa daquilo que chamamos de condição de verdade.
Podemos, finalmente, tomar qualquer um dos exemplos acima que consista
em uma frase predicativa singular e traduzi-lo em uma explicação de um ato
verificacional, seguindo o procedimento de Tugendhat de constituir a regra de
verificação através da regra de identificação do termo singular adicionada à
regra de aplicação do termo geral.
Considere, para tal, o enunciado de Galileu de que Netuno tem quatro luas.
Ele se verifica pela aplicação da regra de identificação de Netuno como o
planeta visto pelo telescópio em tal e tal região celeste, adicionada à constatação
de que ele tem quatro luas, que é resultado da aplicação da regra de aplicação do
predicado. Essa regra de aplicação do predicado, porém, só é aplicável pela
constatação da aplicação prévia da regra que teve como critério a série de
observações que demonstraram que os corpos celestes alinhados próximo a
Netuno o circundam. Fundamental é notar que a condição de verdade satisfeita é 67
o fato de que Netuno tem quatro luas, que esse fato nada mais é do que o
conteúdo da constatação correspondente, mas que nossa cognição desse fato
(dessa condição de verdade) não se sustenta em si mesma; ela é o resultado da
aplicação de regras criteriais, ou seja, é o resultado de inferências advindas de
observações outras.
Embora existam muitas objeções que poderiam ser feitas à teoria
correspondencial e que não posso responder aqui, quero me concentrar na
objeção que talvez seja a mais influente e cuja resposta repercutirá na na
avaliação das doutrinas de externalismo de conteúdo a serem abordadas mais
tarde nesse livro. Trata-se da objeção de que proposições só podem ser
comparadas com proposições e que ao compararmos proposições suposicionais
com costatações observacionais, na linha de base do procedimento
verificacional, mesmo que estes sejam admitidos como certos sob a suposição
do contexto e pano-de-fundo, permanecemos presos no interior de um círculo
lingüístico que exigirá novas verificações, as quais serão inevitavelmente
também intra-linguísticas etc. o que nos fará cair em uma redução ao infinito
cujo inevitável corolário será o ceticismo epistêmico.
Filsófos realistas como Moritz Schlick e A.J. Ayer1 defenderam que
realmente rompemos o círculo lingüístico quando fazemos a observação, mesmo
que seja natural e inevitável usarmos a linguagem para descrever a observação.
Outros filósofos consideraram que apesar de seu bom senso, essa maneira de
pensar desconsidera o fato de que a constatação – mesmo a constatação
observacional – é um conteúdo de crença, e que tal conteúdo precisa possuir um
caráter inevitavelmente psicológico, como o velho argumento que tanto
preocupou os filósofos, de Descartes a Kant, segundo o qual nunca temos acesso
1 “Truth”, in A.J. Ayer: The Concept of Person and Other Essays (London: Macmillan Press 1963) p. 186.
68
direto e definitivo às coisas tal como elas são, mas apenas a representações
(sensações, fenômenos, sense-data etc) das coisas.
O dilema recém colocado a meu ver se resolve se admitirmos que a frase
observacional possui uma face de Janus: o seu conteúdo pode ser visto como
psicológico ou como alguma coisa que realmente se dá na realidade, como um
fato empírico. Quando considerado dentro de um contexto de elementos
psicológicos como subjetivo, mas ele também pode ser hipoteticamente visto
como um conteúdo factual objetivo, se ele satisfizer critérios fisicalistas como os
de independência da vontade, de permanência, de máxima intensidade
perceptual, de seguimento de leis naturais e de acordo intersubjetivo sobre as
suas características entre os observadores. Não estou dizendo que nesse caso o
conteúdo observacional é necessariamente objetivo, real, externo ao observador.
A possibilidade de erro, por mais remota que seja, é sempre dada. Mas trata-se
aqui de uma assunção que a satisfação dos critérios nos autoriza a fazer. É no
fato de que essa assunção de objetividade do conteúdo observacional faz parte
de nosso próprio entendimento do que é a objetividade – da própria gramática
desse conceito, para usar uma terminologia wittgensteiniana, que se justificaç a
pretensão de que a observação nos faculta a romper com o círculo lingüístico.1
10. O status ontológico dos fatos
Ainda sobre a teoria correspondencial da verdade cumpre respondermos a uma
conhecida objeção sobre o status ontológico dos fatos. Há aqui uma controvérsia
entre os que julgam que fatos empíricos são entidades objetivas que estão no
mundo e aqueles que, como Frege, acreditavam que fatos são entidades abstratas
ou intra-linguísticas. P.F. Strawson em um artigo influente sugeriu que fatos
empíricos são meros correlatos pseudo-materiais, não se encontrando, pois, no
1 Ver C.F. Costa: “A pragmática da relação correspondencial”, IV-V.69
mundo.1 Seu mais incisivo argumento é o de que fatos não são espaço-
temporalmente localizáveis, diversamente dos eventos. Assim, o evento da
travessia do Rubicão por Cesar, por exemplo, deu-se no ano 47 a.C.; mas esse
fato não ocorreu no ano 47 a.C., pois fatos simplesmente não ocorrem.
Contudo, essa controvérsia é falsa. Uma maneira fácil de contorná-la foi
proposta por John Searle. Para ele nós precisamos de uma palavrinha para
designar aquilo no mundo que torna o pensamento verdadeiro. A palavra fato
está à mão. Assim, por que não usá-la estipulativamente para designar o fazedor
da verdade, seja ele qual for?2
Acredito, porém, que mesmo esse recurso seja necessário. Pois não me
parece implausível a sugestão de J.L. Austin, segundo a qual os argumentos
contra a realidade objetiva dos fatos empíricos nada têm de compelentes.3 Se
Austin tem razão, mesmo em seu sentido lexical, fatos podem ser correlatos
objetivos dos pensamentos, de modo que fatos empíricos no final das contas
podem ser considerados combinações de elementos dados no mundo.
Minha sugestão tem sido a de que a oposição fato-evento é falsa, pois
eventos nada mais são que sub-espécies de fatos. Melhor dizendo: ‘fato’ é uma
palavrinha guarda-chuva que serve como hiperônimo de uma diversidade de
hipônimos como ‘eventos’, ‘processos’, ‘situações’, ‘estados de coisas’. Esses
hiperônimos, por sua vez, dividem-se em duas classes, entre elas sim ocorrendo
a oposição divisada por Strawson. Essas duas classes são as de:
1. Fatos estáticos (formais ou empíricos): situações, circunstâncias, estados de coisas...
2. Fatos dinâmicos (somente empíricos): eventos, ocorrências, processos, acontecimentos... 4
1 P.F. Strawson: “Truth”. Essa posição foi mais tarde abandonada por Strawson. Ver “Reply to John Searle”, p. 402.2 J.R. Searle: “Truth: A Reconsideration of Strawson’s Views”. 3 J.L. Austin: “Unfair to Facts”. Ver C.F. Costa: “Fatos empíricos”.4 Ver C.F. Costa: “Fatos empíricos”, p. 122 ss.
70
Fatos estáticos definem-se como os que mantém as mesmas relações entre
seus elementos durante todo o período de sua existência. Fatos formais da
matemática e da lógica são trivialmente estáticos. Mas também há muitos fatos
empíricos, como o de que a terra é redonda e o de que ela gira em torno do sol,
que são estáticos. Mesmo o fato de a terra girar em torno do sol é estático no
sentido de que a propriedade de girar em torno permanece a mesma.
Já os fatos dinâmicos são aqueles que se deixam analisar em termos de
configurações de elementos que se alteram durante o período de sua existência
seguindo certa ordem. Por exemplo: o evento da queda das torres gêmeas. A
diferença entre o evento e o processo é que o processo é comparativamente mais
duradouro. Assim, a Primeira Guerra Mundial foi um processo desencadeado
pelo evento do assassinato do arquiduque austríaco. E o aquecimento global é
um lento processo. Tudo isso, no entanto, são obviamente fatos: é um fato que
as Torres Gêmeas desmoronaram, que a Primeira Guerra se deu e que o
aquecimento global está ocorrendo.
A travessia do Rubicão por César, por sua vez, é um caso especial. Trata-se
de um fato ambíguo causador de confusões: ela é geralmente entendida de forma
ilustrativa como um fato social estático; o estado de coisas instaurado pela
entrada do exército de Cesar no território italiano, violando a lei e forçando o
estado romano a declarar guerra contra ele. Mais raramente a travessia do
Rubicão pode ser entendida mais literalmente, como um fato dinâmico, o evento
físico da travessia, constituído pelas localizações de César em relação ao
Rubicão em t1, em t2.. em tn.
Devido à natureza dinâmica dos fatos dinâmicos, deles dizemos não só que
eles se situam, mas também que eles ocorrem no tempo, enquanto dos fatos
estáticos dizemos apenas que eles se situam no tempo. Com efeito, apenas os
fatos dinâmicos têm a propriedade de ocorrer no tempo, sendo a palavrinha 71
‘evento’ a mais apropriada para designá-la. A meu ver, sem ter notado que
eventos são subespécies de fatos e percebendo apenas que só os eventos ocorrem
no tempo, filósofos como Strawson concluíram apressadamente que só os
eventos estão no tempo, opondo-os aos fatos atemporais. Mas isso não é
verdade. Que eventos são subclasses de fatos é sugerido pela usual
intersubstitutividade salva-veritate: não é incorreto dizer que a ocorrência da
travessia do Rubicão por Cesar foi um fato e que esse fato se deu em 47 a.C. E
não é incorreto se ele for entendido como um fato dinâmico. Por outro lado, o
estado de coisas social estabelecido pela travessia foi muito mais duradouro,
dele resultando, como é sabido, o fim da república.
Continua, pois, aceitável considerarmos o fato dado no mundo como
constituido de uma variedade de configurações de elementos, a qual pode
corresponder ou não à configuração de elementos criteriais (propriedades ou
sistemas de propriedades singularizadas) demandada pela regra de verificação,
tal como ela se deixa conceber por sujeitos cognitivos. Por isso não parece
implausível a sugestão de que a correspondência depende da constatação de
alguma espécie de isomorfismo estrutural entre as configurações criteriais
concebidas e demandadas pela regra, de um lado, e as configurações de
elementos (combinações de propriedades singularizadas) constitutivos ou
indicadores do fato no mundo, de outro. Essa sugestão, como as outras, é tal que
contra ela poderia ser erguida uma muralha de argumentos cujas respostas não
podem ser aqui buscadas.
11. Isomorfismo estrutural e igualdade de conteúdo
A concepção correspondencial da verdade recém exposta pode ser
complementada com a idéia de que a única maneira de se explicar a
representação consiste em se admitir que os conteúdos de nossas frases
assertóricas precisam ser ao menos capazes de alguma espécie de isomorfismo 72
estrutural com os fatos que eles devem representar. A noção de isomorfismo
estrutural é central à teoria pictorial da linguagem defendida por Wittgenstein
em seu Tractatus Logico-Philosophicus. Ela pode ser resumida na idéia de que o
conteúdo da frase assertórica contém uma combinação de elementos que precisa
apresentar:
(i) uma relação biunívoca de cada elemento seu com um elemento de um fato atual ou possível, e(ii) a preservação de modos de combinação dos elementos do conteúdo semântico que sejam similares aos modos como os elementos do fato atual ou possível se combinam.
No Tractatus essa idéia é apresentada em conexão com uma improvável
metafísica atomista, em que cada pensamento deve ser analisado em elementos
que sejam nomes próprios lógicos de objetos simples e indestrutíveis. Essa
metafísica foi abandonada por Wittgenstein. Mas a idéia de que a representação
demanda isomorfismo estrutural não precisa ser por isso abandonada.1 Afinal,
podemos substituir os nomes elementares por termos singulares e predicados de
enunciados analisados segundo as exigências da prática lingüística, do jogo de
linguagem onde eles ocorrem. E o isomorfismo possível da estrutura do
conteúdo de pensamento com um fato correspondente deve ser buscado segundo
regras de projeção estabelecidas pela própria prática lingüística na qual o
1 Compartilho aqui da opinião de Erik Stenius de que Wittgenstein abandonou apenas a formulação metafísica por ele dada à teoria pictórica da frase no Tractatus, na qual ele supunha haver apenas uma única divisão do mundo em objetos simples, do insight original da teoria pictórica, segundo o qual toda representação demanda isomorfismo estrutural. Como notou Stenius, esse insight comparece nas Investigações Filosóficas sob o nome de radical de frase (Satzradikal). Se tomarmos uma foto de um lutador de boxe, escreve Wittgenstein, temos um radical de frase. Ele só nos irá dizer alguma coisa se a ele adicionarmos uma função. A hipótese do isomorfismo continua, todavia, válida na análise do próprio radical de frase em sua função em jogos de linguagem. (Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, nota à seção 22; ver também Erik Stenius: “The Picture Theory and Wittgenstein’s Later Attitude to it”.)
73
pensamento é expresso... Mas o que são essas regras de projeção? A resposta
seria: elas são as próprias regras verificacionais.
12. A objeção da inverificabilidade do próprio princípio
A primeira e mais notória objeção ao princípio da verificabilidade é que ele é
autodestrutivo. O argumento é o seguinte. O princípio da verificabilidade deve
ser tautológico ou sintético. Tautológico, ou seja, analítico,1 ele não pode ser,
pois nesse caso ele seria não-informativo. Mas ele nos parece claramente
informativo. Além disso, enunciados analíticos são auto-evidentes e a sua
negação é incoerente, o que não é o caso do princípio da verificabilidade. Por
conseguinte, ele é sintético. Mas se é sintético, então ele precisa ser destituído de
sentido, posto que quando tentamos aplicar o princípio da verificabilidade a ele
mesmo, descobrimos que é inverificável. Como conseqüência, o princípio é
destituído de significado pelos seus próprios standards...
Positivistas lógicos tentaram contornar essa objeção respondendo que o
princípio da verificabilidade de fato não tem valor-verdade, pois ele não passa
1 Entendo uma proposição analítica como sendo aquela cuja verdade decorre da combinação dos sentidos de suas expressões constitutivas. Enganou-se Quine (em “Two Dogmas of Empiricism”) ao rejeitar essa definição por ela se basear no conceito demasiado vago de significado. Vago ou não, esse conceito cumpre aqui com a sua função de produzir uma definição perfeitamente inteligível e em si mesma irretocável (R.G. Swinburne: “Analyticity, Necessity and Apriority”, p. 228; ver também H.P. Grice e P.F. Strawson em “In Defense of a Dogma”). Também me parece falaciosa a rejeição de Quine à sua própria tentativa de definir analiticidade através de sinonimidade e necessidade, em razão da excessiva proximidade semântica entre os vários conceitos envolvidos (significado, sinonimidade, necessidade...), o que produz, segundo ele, uma quase-circularidade na definição. Afinal, em nossas definições é natural e mesmo indispensável que os conceitos usados pertençam a um mesmo campo semântico. Cadeira, por exemplo, se define como “banco com encosto”, mas tanto o conceito de cadeira, como o de banco e o de encosto pertencem ao domínio da carpintaria e nem por isso essa definição é quase-circular. A crítica de Quine ao conceito de analiticidade só parece convincente por ser confundida com a constatação da vaguidade da fronteira entre o analítico e o sintético, ou a de que alterações em nossas práticas linguísticas podem tornar frases analíticas dispensáveis, relativizando-as por isso. Mas essas constatações já foram feitas, por exemplo, por Wittgenstein.
74
de uma recomendação metodológica, uma prescrição, uma proposta.1 A.J. Ayer
defendeu essa idéia desafiando os seus ouvintes a apresentarem uma opção mais
convincente... Todavia, um ouvinte de outra convicção poderia responder que
simplesmente não sente a necessidade de aceitar nem optar por coisa alguma...
Na verdade, a resposta de Ayer não parece apenas ad hoc. Ela vai contra a
sugestão wittgensteiniana de que aquilo que estamos fazendo é tão somente
investigar as intuições subjacentes à nossa linguagem natural em busca de
princípios da gramática conceitual nela embutidos. Por isso, impor à nossa
linguagem uma regra metodológica que lhe seja alheia seria arbitrário e mesmo
confusivo como meio de esclarecer o significado.
Diversamente disso, minha sugestão é manter o insight original de
Wittgenstein de que tal princípio deveria exprimir nosso entendimento do que é
efetivamente caucionado pela linguagem cotidiana, de modo a formar uma frase
gramatical expressiva de uma condição que precisa ser satisfeita pela totalidade
de nossa linguagem factual. Ora, uma vez que admitimos que o princípio faz
explícitas intuições lingüísticas pré-existentes, tornamo-nos autorizados a pensar
que ele é analítico, ou seja, que ele consiste na afirmação de uma sinonimidade
entre as expressões ‘significado (representacional) de uma frase’ e ‘modo como
o seu valor-verdade é estabelecido’. Assim, tomando p como uma frase
assertórica qualquer, podemos definir o significado cognitivo de p através da
seguinte proposição analítico-conceitual:
(Df.) Significado epistêmico de p = regra de verificação para p.
Contra isso se poderia insistir em objetar que sendo analítico, o princípio de
verificabilidade deveria ser não-informativo, devendo a sua negação ser
1 Essa posição foi aceita ou defendida por Rudolf Carnap, Hans Reichembach e A.J. Ayer (ver C.J. Misak: Verificationism, pp. 79-80).
75
incoerente, o que não parece ser o caso. Em busca de uma resposta gostaria de
primeiro remontar a uma sugestão que pode ser encontrada em John Locke. Esse
filósofo distinguiu entre conhecimento sensitivo (sintético ou empírico) e
relações de idéias (verdades analíticas); as últimas, por sua vez, foram
distinguidas como provendo conhecimento intuitivo ou demonstrativo.1 As
frases “Vermelho não é verde” e “Três é maior que dois” exprimem para ele
relações de idéias intuitivas, pois são auto-evidentes e a sua negação claramente
contraditória. Mas nem todas as frases analíticas são intuitivas. A frase “A soma
dos três ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos” exprime
conhecimento demonstrativo, mas apesar disso exprime para Locke uma relação
de idéias – uma frase analítica. Para quem pensa que a geometria não é analítica,
podemos escolher exemplos fórmulas matemáticas complexas ou tautologias
complexas como exemplos. Considere o seguinte enunciado “Se não é o caso
que uma figura é ambas, quadrada e redonda, então ela ou não é quadrada ou
não é redonda”. Esse enunciado pode não parecer analítico para pessoas não
familiarizadas com lógica, mas ele tem a estrutura lógica da frase “~(A & B) →
~(A v B)”, cujo caráter tautológico é facilmente demonstrável.
O conhecimento demonstrativo é o que pode ser fundado em demonstrações
cujas premissas são constituidas por conhecimento intuitivo, nomeadamente, por
verdades analíticas intuitivas. Por isso ele não pode ser realmente informativo,
ainda que aparente sê-lo. A questão é: por que o próprio princípio da
verificabilidade não poderia ser ele próprio expresso por uma frase analítica
demonstrativa?
Contra essa sugestão, a objeção mais imediata é a de que o princípio da
verificabilidade não pode ser demonstrativo no mesmo sentido de um teorema
da geometria ou de uma demonstração em lógica. Afinal, em casos como os
teoremas da geometria e das demonstrações lógicas, é fácil repercorrer os
1 John Locke: An Essay Concerning Human Understanding, livro IV, cap. II, § 7.76
caminhos já pré-determinados que conduziram à sua demonstração. Mas não
parece haver um caminho já percorrido para se demonstrar o princípio da
verificabilidade.
Acredito que a chave para uma resposta seja encontrada quando
comparamos o princípio da verificabilidade com enunciados que, tal como ele,
não parecem à primeira vista demonstráveis, mas através de análise se revelam
verdades demonstrativas encobertas. Um caso simples, que já vimos, é o de
sentenças complexas da linguagem ordinária cuja forma é tautológica. Mas há
exemplos mais sorrateiros, como o do seguinte enunciado:
Uma mesma superfície não pode ser vermelha e verde (ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto).
Esse enunciado não é analiticamente intuitivo. Na verdade ele já foi visto e até
hoje é visto como um exemplo standard do que poderia ser um juízo sintético a
priori.1 Mas se considerarmos que é intuitivamente (analiticamente) verdadeiro
que (i) cores podem ocupar superfícies, que (ii) duas cores diferentes não podem
ocupar a mesma superfície e que (iii) vermelho e verde são cores diferentes,
parece daí se deduzir o caráter analítico do enunciado “Uma mesma superfície
não pode ser vermelha e verde”. Eis como esse argumento pode ser melhor
organizado:
1 Duas coisas diferentes não podem ocupar um mesmo lugar ao mesmo tempo.
2 Uma superfície delimita um lugar.3 (1,2) Duas coisas diferentes não podem ocupar uma mesma
superfície ao mesmo tempo.4 Cores são coisas que ocupam superfícies.5 (3,4) Duas cores diferentes não podem ocupar a mesma
superfície ao mesmo tempo.
1 Ver, por exemplo, Laurence Bonjour: In Defense of Pure Reason, p. 100 ss.77
6 Vermelho e verde são cores diferentes.7 (5,6) O vermelho e o verde não podem ocupar a mesma
superfície ao mesmo tempo.
A mim, pelo menos, as premissas 1, 2, 4 e 6 são (em contextos adequados)
intuitivamente analíticas. Por conseguinte, a conclusão também deve ser
analítica, ainda que não pareça.
A sugestão que quero fazer é a de que também o princípio da verificabilidade
seja uma verdade analítica demonstrativa encoberta, podendo ter o seu caráter
auto-evidente esclarecido através de elucidação de seus pressupostos. Eis uma
maneira como isso poderia ser feito:
1. Sentidos cognitivos são determinados por regras cognitivas (ou seja: são constituidos por regras cognitivas ou por suas combinações).
2. Enunciados têm sentidos cognitivos (descritivos, factuais, representacionais).
3. (1,2) Os sentidos cognitivos dos enunciados dependem de regras cognitivas.
4. As regras determinadoras do sentido epistêmico são regras criteriais (baseadas em critérios).
5. (3,4) O sentido epistêmico do enunciado depende de suas regras cognitivo-criteriais.
6. O sentido epistêmico de um enunciado depende dos modos de determinação de sua verdade.
7. A verdade do enunciado só pode ser determinada pela satisfação de suas regras cognitivo-criteriais.
8. (5,6,7) O sentido epistêmico do enunciado depende de regras criteriais que são modos de evidenciação de sua verdade.
9. As regras cognitivo-criteriais determinadoras da verdade do enunciado são em conjunto chamadas de sua regra de verificação.
10.(7,8) O sentido epistêmico do enunciado é dado por sua regra de verificação.
Para mim, ao menos, as premissas 1, 2, 4, 6 7 e 9 (que é definicional) soam
mais claramente analíticas do que 10. Com efeito, elas são realmente analíticas
78
se pensarmos que os sentidos devem ser obviamente regras ou combinações de
regras, se considerarmos que enunciados têm obviamente sentidos
informacionais dependentes de critérios, sendo as suas regras de significação
regras cognitivo-criteriais, as quais não podem ser outras que não as regras
determinadoras do valor-verdade desses enunciados... Muitos filósofos da
linguagem discordarão. Mas filósofos são conhecidos pelo caráter
profissionalmente deturpado de suas intuições lingüísticas. Assim, como não
posso mais me estender nesse argumento, prefiro refugiar-me na escusa de um
personagem de Borges dizendo: “São as vossas impurezas que vos proibem de
reconhecer o esplendor da verdade”.
13. A objeção do holismo verificacional
Uma objeção sofisticada é a proveniente da generalização da tese de Duheim
feita por W.V-O. Quine. Segundo Quine, “nossos enunciados sobre o mundo
externo não fazem frente à experiência sensível individualmente, mas em um
corpo corporativo”.1 A implicação anti-verificacionista disso é clara: como o que
é verificado é todo um sistema de enunciados, e nunca um enunciado
isoladamente considerado, não faz sentido pensar que o enunciado tem uma
regra de verificação distintiva ou intrínseca, que possa ser identificada com o
seu significado.
Em meu juízo, se tomada de maneira suficientemente abstrata, a idéia de que
nenhum enunciado se verifica independentemente de outros enunciados do
sistema é correta. Ela constitui o que poderíamos chamar de um holismo formal
ou estrutural. Mas a conclusão insinuada por Quine, de que isso destrói o
verificacionismo – devido ao que poderíamos chamar de um holismo
verificacional – nada tem de segura, uma vez que nesse último caso
1 W.V-O. Quine: “Two Dogmas of the Empiricism”, p. 41.79
precisaremos levar em conta a variedade de formas de interdependência vigente
entre os enunciados que formam o sistema.
Vejamos a questão mais de perto. A tese do holismo verificacional é retirada
do fato bem conhecido pelos filósofos da ciência, de que enunciados
observacionais sempre dependem da verdade de assunções ou hipóteses
auxiliares para poderem ser verdadeiros. In abstracto isso é correto; afinal,
nossas crenças são interdependentes. Mas se desse holismo formal ou abstrato se
segue um holismo verificacional em um nível mais concreto é outra questão. Em
meu juízo, a tese de Quine é equívoca porque embora no final das contas o
sistema de enunciados realmente deva se confrontar como um todo com a
realidade, os seus enunciados não se confrontam nem conjuntivamente nem
simultaneamente com a realidade.
Nosso exemplo da descoberta dos satélites de Netuno por Galileu pode aqui
ser mais uma vez útil. Como dissemos, Galileu descobriu a verdade do
enunciado: (a) “Júpiter tem luas” pela observação telescópica. Seus
contemporâneos, porém, desconfiavam dos resultados da observação
telescópica. O aparelho poderia estar enfeitiçado etc. Mas filósofos da ciência
hoje notam que eles não estavam de todo destituídos de razão. Pois uma
assunção auxiliar para a aceitação da verdade do enunciado “Júpiter tem luas” é
que o telescópio seja um instrumento confiável. Ao aperfeiçoar o telescópio
Galileu certamente conhecia a lei da ampliação do telescópio, segundo a qual o
seu poder de ampliação resulta do seu comprimento focal dividido pela distância
focal da ocular. Mas para que essa assunção auxiliar fosse garantida, faltava
ainda no tempo em que Galileu construiu o seu telescópio, a comprovação de
outras assunções auxiliares, como as que constituem as leis da óptica.1
Considere, por exemplo, a fundamental lei da refração, segundo a qual sen i /
sen r = n2/n1. Essa lei só foi estabelecida por Snell, em 1626, enquanto as
1 Merrilee Salmon: Introduction to Logic and Critical Thinking, p. 276. 80
observações telescópicas de Galileu foram feitas em 1610. Ignorando as muitas
outras hipóteses auxiliares assumidas, a verificação feita por Galileu de que o
planeta Júpiter tem luas pode ser apresentada como resultado do seguinte
argumento indutivo:
1. Observação telescópica de quatro astros orbitando Júpiter.2. (Lei da ampliação do telescópio)3. ((sen i / sen r = n2/n1)) . 4. Conclusão: O planeta Júpiter tem luas.
Embora a premissa 3 tenha faltado para Galileu, ela reforça secundariamente
o argumento. A falta da premissa 2 enfraqueceria bem mais o argumento. Da
consideração da inclusão dessas e de outras premissas constitutivas de hipóteses
auxiliares comprovadas, o holista verificacional conclui que 4 não possui uma
regra de verificação independente, constitutiva de seu sentido.
Mas há problemas com esse raciocínio! Primeiro, precisamos notar que esses
enunciados não são simultaneamente verificados. O enunciado 4 foi verificado
como conseqüência direta da verificação do enunciado perceptual 1, que se
realizou pela observação diárias que Galileu fez das variações das posições dos
quatro astros alinhados ao redor de Júpiter... Contudo, isso não se deu
simultaneamente à verificação dos enunciados 2 e 3. Na verdade, a inferência da
conclusão 4 com base em 1 em boa medida pressupõe uma anterior verificação
da premissa 2, que por sua vez em alguma medida pressupõe a verificação da
premissa 3 (o que é indicado pelos parênteses). Ora, por serem anteriores e
pressupostas, torna-se claro que as verificações de 2 e 3 são independentes da
verificação de 4 por 1.
Generalizando: se chamamos o enunciado a ser verificado de P, o enunciado
observacional de O, e as hipóteses auxiliares de A, a estrutura de raciocíno
própria do procedimento verificacional não é
81
O
A1 + A2... + An
Logo P
Mas sim:
O
(assumindo a prévia verificação de A1 + A2... + An)
Logo P
Essa pressuposição de uma verificação prévia das hipóteses auxiliares é o
que em meu juízo faz toda a diferença, pois permite-nos separar a regra de
verificação de P, que o associa P diretamente às observações associadas a O, das
regras de verificação das verificação das hipóteses auxiliares, que são assumidas
como já tendo sido aplicadas.
Além disso, podemos claramente distinguir o que verifica cada hipótese
auxiliar. Por exemplo: a lei da ampliação do telescópio pode ser verificada
através de simples medições empíricas; e a lei da refração foi estabelecida com
base em medições empíricas da relação entre variações do ângulo de incidência
da luz e a densidade dos meios. Assim, embora seja verdade que em um nível
formal e abstrato a verificação de um enunciado dependa da verificação de
outros, no nível dos procedimentos cognitivos concretos a verificação dos
enunciados auxiliares já vem pressuposta, o que nos permite isolar os
procedimentos verificacioinais inerentes ao próprio enunciado em questão e
identificá-los com aquilo que estamos querendo dizer com ele. Ou seja: o que
nos permite distinguir modos de verificação específicos é que os diferentes
enunciados auxiliares devem ser verificados anteriormente ao procedimento 82
verificacional que conduz à conclusão, servindo de pressupostos para a
inferência. Isso nos permite distinguir e individuar o procedimento através do
qual cada enunciado é cognitivamente verificado, o modo (regra) de verificação
de cada enunciado, o que torna o holismo inofensivo como crítica ao
verificacionismo semântico. Por abstrair esse ponto, o argumento de Quine
produz a impressão equívoca de que toda verificação é holística e que o
significado do enunciado não pode ser identificado com a sua regra de
verificação.
Finalmente, cumpre notar que como cada enunciado tem um sentido que lhe
é próprio, torna-se outra vez razoável identificar o sentido do enunciado com o
seu modo de verificação, posto que ambos são individuados pelo enunciado e
não pelo sistema de enunciados. A conclusão inescapável é que o holismo
verificacional não se sustenta, pois a simples admissão do holismo formal, i.e.,
do fato dos enunciados estarem sempre em alguma medida inferencialmente
enovelados uns nos outros, não é suficiente para nos fazer concluir que as suas
regras verificacionais não possam ser distinguidas umas das outras de modo a
serem identificadas com os significados representacionais de seus respectivos
enunciados.
O que esse argumento sugere é que Quine estende indebitamente um holismo
formal perfeitamente justificado às regras de verificação, quando na verdade ele
forma, com elas, o pano de fundo sobre o qual elas se ressaltam. Isso produz a
ilusão de que os enunciados não tenham significados próprios, de que o
significado-verificação seja como uma nuvem dispersa pelo sistema de
enunciados. Contudo, um exame concreto dos procedimentos verificacionais tal
como eles concretamente ocorrem nos mostra que as regras de verificação são
distinguíveis umas das outras na mesma medida dos significados dos enunciados
correspondentes, o que mais uma vez sugere a correlação entre o significado
epistêmico do enunciado e a sua regra de verificação.83
14. O problema da assimetria existencial-universal
Outra objeção é a de que o princípio da verificabilidade só se aplica
conclusivamente a frases existenciais, mas não a frases universais. Para
verificarmos uma frase existencial como “Algumas peças de cobre se expandem
ao serem aquecidas”, basta identificarmos uma peça de cobre que se expande ao
ser aquecida; mas para verificarmos conclusivamente uma frase universal como
“Todas as peças de cobre se expandem ao serem aquecidas”, precisaríamos
vasculhar o universo inteiro, inclusive em seu futuro e em seu passado, o que é
impossível. É verdade que a universalidade absoluta é uma ficção e que, quando
falamos em frases universais, estamos sempre tendo em vista certo universo de
discurso. Mas apesar disso o problema permanece. Pois como o próprio caso da
expansão de metais exemplifica, o universo de discurso costuma ser muito mais
amplo do que tudo o que podemos efetivamente experienciar, impossibilitando
uma verificação conclusiva. Assim sendo e também pelo fato de que as leis
científicas costumam ter a forma de enunciados universais, ocorreu a alguns se
perguntar se não seria melhor admitirmos o sentido epistêmico das frases
universais, como sendo constituído por regras de falsificação, ao invés de regras
de verificação; seria essa a resposta correta?1
Penso que não. O problema é que, como já foi notado, não me parece que
exista uma regra de falsificação do enunciado, assim como certamente não
existe uma força desassertórica, nem uma regra de desidentificação do nome e
uma regra de desaplicação do predicado. Podemos, por exemplo, falsificar o
enunciado “Todos os corvos são pretos” com a verificação da frase “Esse corvo
é albino”. A regra de verificação desse último enunciado é tal que, se aplicada,
falsifica o enunciado “Todos os corvos são pretos”. Mas se o significado do
1 Ver C.G. Hempel: “Problems and Changes in the Empiricist Criterion of Meaning”, Revenue Internationale de Philosophie 11, 1950, 41-63.
84
enunciado universal fosse uma regra capaz de falsificá-lo, e a regra de
verificação do enunciado “Esse corvo é albino” é, quando aplicado, o que
falsifica o enunciado “Todos os corvos são pretos”, então parece que devemos
admitir que esse último enunciado significa o mesmo que “Esse corvo é albino”.
Mas isso é absurdo: a regra de verificação para corvos albinos não tem nada a
ver com o significado da afirmação de que todos os corvos são pretos.
Em que sentido então podemos falar de uma regra de falsificação? Para
chegarmos a uma resposta devemos nos lembrar que a regra de verificação é o
significado epistêmico da frase enunciativa, aquilo que Frege chamava de o
pensamento por ele expresso, o seu conteúdo proposicional. Ora, como a
verdade costuma ser admitida como sendo uma propriedade do pensamento ou
conteúdo proposicional, parece que a verdade também deve ser propriedade da
própria regra de verificação. Como a regra de verificação verdadeira é a que é
aplicável, e a regra de verificação falsa é a que é inaplicável, parece que a
verdade é ou tem a ver com a propriedade de uma regra de verificação de ser
aplicável, enquanto a falsidade deve ser ou ter a ver com a ausência dessa
propriedade. Se esse raciocínio estiver certo, torna-se vazia a questão de se saber
se o que está em causa é uma regra de verificação ou de falsificação: todas as
regras em questão são realmente de verificação, dado que a falsificação não é
mais do que uma ausência da propriedade da regra de verificação de se ter
demonstrado aplicável ou ter a ver com essa demonstração. Eis porque também
não existe regra de desidentificação para o termo singular, nem regra de
desaplicação para o termo geral: a desidentifacação e a desaplicação nada mais
são do que a respectiva ausência de aplicação das respectivas regras. Se formos
coerentes com as assunções feitas até agora, parece que devemos concluir que o
princípio da verificabilidade é aquele pelo qual tornamos verdadeira a própria
regra de verificação constitutiva do sentido epistêmico da frase enunciativa, e
que essa verificação consiste na demonstração de sua efetiva aplicabilidade aos 85
fatos. Mas quando falamos de uma regra de falsificação de um enunciado, tudo
o que podemos ter em mente é uma regra de verificação de outro enunciado,
cuja aplicação falseia o primeiro, de modo que, seja o que for que fizermos,
acabaremos sempre terminando com uma regra de verificação.
Essa espécie de argumento leva-nos a admitir que o significado do
enunciado universal deve ser a sua regra de verificação. Mas nesse caso parece
inevitável o retorno do problema da inconclusividade da verificação desses
enunciados. Não é necessário, porém, que seja assim. Minha sugestão é a de que
a objeção da inconclusividade é falsa, emergindo do fato de que nos enganamos
quanto ao reconhecimento da forma lógica dos enunciados universais. Basta um
breve exame para mostrar que eles são simultaneamente probabilistas e
conclusivos. Considere outra vez a frase:
O cobre se expande ao ser aquecido.
A sua forma não é:
Afirmo que é absolutamente certo que todas as peças de cobre se expandem
ao serem aquecidas,
onde o ‘absolutamente certo’ significa ‘sem possibilidade de erro’. Essa forma
seria apropriada para verdades formais como
Afirmo que é absolutamente certo que 2 + 3 = 5,
pois aqui não pode haver erro (exceto erro procedimental, o que está fora de
consideração). Mas essa forma não é apropriada a verdades empíricas sobre as
quais não vige a certeza resultante das próprias convenções conceituais 86
adotadas. A forma lógica da frase em questão é outra. Ela é a da certeza prática
expressa por
Afirmo que é praticamente certo que toda peça de cobre se expande ao ser aquecida,
onde ‘praticamente certo’ significa ‘com uma probabilidade suficientemente
elevada para que a possibilidade de erro possa ser negligenciada’. Se aceitarmos
essa paráfrase, uma frase como “O cobre se expande ao ser aquecido” se torna
conclusivamente verificável, pois podemos claramente encontrar evidências
indutivas protegidas por razões teóricas que tornem de modo conclusivo
praticamente certo que todas as peças de cobre se expandem ao serem
aquecidas. Em suma: a forma lógica de um enunciado universal não é “├todo S
é P” (usando o sinal fregeano de asserção), mas:
├é praticamente certo que todo S é P,
e enunciados dessa forma são conclusivamente verificáveis. Conseqüentemente,
o significado da frase universal também pode ser a sua regra de verificação.
15. A objeção da indireticidade
Outra objeção comum é a de que a regra de verificação de frases com conteúdo
empírico exige tomarmos como ponto de partida observações diretas e
intersubjetivamente possíveis dos fatos. Contudo, muitos enunciados não
dependem da observação direta para serem verdadeiros, como é o caso de “A
massa do elétron é de 9,109 vezes 10 Kgs elevado à trigésima primeira potência
negativa”. Isso nos força a admitir que muitas regras de verificação são
indiretas. Como notou W.G. Lycan1, se não fizermos isso seremos conduzidos a 1 W.G. Lycan: Philosophy of Language: A Contemporary Introduction, pp. 121-122.
87
um instrumentalismo grotesco, no qual aquilo que é real deve ser reduzido ao
que é intersubjetivamente observado, não existindo mais coisas como eléctrons e
suas massas... Mas se fizermos isso, como decidir quais são as observações
diretas e quais as indiretas? Não se trata de uma dessas distinções
desesperadamente confusas?
Outra vez, os problemas só emergem se embarcarmos na estreita canoa
formalista do positivismo lógico e sairmos por aí atropelando a linguagem com
exigências inadequadas. Nossas frases assertóricas são proferidas em práticas
lingüísticas, em jogos de linguagem. Por conseguinte, o critério para se
distinguir a observação direta da observação indireta deve ser sempre relativo a
uma prática lingüística que estamos tomando como modelo. Podemos ser
confundidos pelo fato de que nas (i) práticas observacionais cotidianas a
verificação direta costuma ser considerada aquela resultante da observação
virtualmente interpessoal de objetos sólidos opacos e de tamanho médio,
suficientemente próximos, sob iluminação adequada, por observadores em
condições normais e com os sentidos desarmados... Por ser a forma mais usual
de observação, ela tende a ser vista como um modelo default para a observação
direta, a ser contrastado com, digamos, a observação indireta através de
sintomas perceptualmente acessíveis, através de instrumentos óticos, através de
espelhos etc. Mas é um erro tentar generalizar esse contraste para outras práticas
linguísticas.
Para esclarecer esse ponto, quero considerar primeiro (ii) a prática linguística
do bacteriologista. Nessa prática o que está em causa é a descrição de bactérias
vistas ao microscópio. Nela, ver bactérias ao microscópio é o modelo da
observação e verificação. Mas o bacteriologista pode dizer que verificou
indiretamente a presença de um vírus devido a alterações que ele constatou nas
células que ele viu ao microscópio, usando como modelo de observação direta a
observação microscópica. Ninguém dirá que as verificações do bacteriologista 88
são todas indiretas, a não ser que tenha em mente a forma standard de
observação, o que não seria usual. Mas até isso é possível, contanto que o
modelo usado fique claro.
Se a prática for (iii) a de um trabalho paleontológico, então a descoberta de
restos fósseis será uma maneira direta de se verificar a existência desses seres
em um passado remoto, posto que a observação ao vivo é descartada. Por
comparação e contraste com esse modelo, o paleontólogo pode falar de
verificações indiretas. Assim, se ele sugere terem vivido hominídeos em certo
local apenas por ter encontrados lesões provocadas por instrumentos em ossadas
fósseis de animais, essa constatação poderá ser considerada resultante de uma
verificação indireta na prática paleontológica, em contraste com o encontro de
restos fossilizados de hominídeos. Claro que também na prática da
paleontologia, qualquer das verificações pode ser dita indireta se comparada
com as verificações que cotidianamente fazemos de objetos opacos de tamanho
médio próximos a nós (modelo da prática (i)). Mas isso só será problemático se
não for claro o modelo usado.
Se a prática lingüística for (iv) a de descrever sentimentos, a verificação de
uma frase pelo próprio falante será dita direta, ainda que subjetiva, enquanto que
a determinação da verdade por outros, com base no comportamento, será
geralmente dita indireta (ao menos por não-behavioristas). Não há aqui, aliás,
uma maneira fácil de comparar com a prática de observação de objetos físicos
de tamanho médio para considerar se a verificação é direta, pois elas pertencem
a domínios verificacionais muito diversos.
A conclusão me parece ser a de que não há dificuldade real em se distinguir
entre verificações diretas e indiretas, se tivermos clareza sobre a prática
lingüística com relação a qual essa verificação está sendo considerada. Basta que
os falantes compartilhem entre si os pressupostos da prática lingüística em
relação a qual o proferimento é avaliado e estarem cientes do modelo de 89
comparação empregado para se tornarem capazes de alcançar acordo sobre se a
verificação é direta ou indireta.
16. Contra-exemplos empíricos
Outra espécie de objeção diz respeito a enunciados que possuem sentido, mas
que não parecem possuir regra de verificação. Em minha opinião, esse tipo de
objeção demanda consideração caso a caso.
Considere, para começar, o enunciado “João era corajoso”, em uma
circunstância na qual João morreu sem ter tido nenhuma oportunidade de se
demonstrar corajoso. Se adicionarmos ao exemplo a assunção de que o único
meio de verificar se João era corajoso seja pela observação de seu
comportamento, esse enunciado se torna logicamente inverificável. Sendo
assim, segundo o princípio da verificação esse enunciado não tem significado.
Contudo, ele parece ser perfeitamente significativo!
A resposta é que o enunciado “João era corajoso” nas circunstâncias
consideradas apenas aparenta ter significado. Ele pertence ao conjunto dos
enunciados que apenas aparentam ter significado. No caso, trata-se de uma frase
que possui um sentido gramatical, dado pela combinação do nome próprio não
vazio com um predicado. Mas não há critério para aplicarmos ou não o
predicado. Assim, o enunciado não tem função na linguagem e nada é capaz de
dizer. Ele faz parte do conjunto de enunciados tais como “O universo duplicou
de tamanho durante essa noite” e “O mundo inteiro surgiu cinco minutos atrás”.
Esses enunciados apenas aparentam ter algum sentido epistêmico, pois possuem
sentido gramatical e são capazes de sugerir imagens e produzir ilações em
nossas mentes. Mas a rigor eles nada dizem.
Wittgenstein considerou um caso paralelo em Sobre a Certeza. Considere a
constatação “Você está diante de mim agora”, dita em circunstâncias normais
por uma pessoa que se encontra diante de outra. Ele sugeriu que tal frase apenas 90
aparenta ter sentido, dado que somos capazes de imaginar situações nas quais
ela teria algum uso, alguma função na linguagem, por exemplo, numa situação
em que estivesse tão escuro que fosse difícil ao interlocutor identificar o
falante.1 Aplicando isso ao caso de João, somos facilmente capazes de imaginar
situações contrafactuais na quais ele teria ou não teria demonstrado coragem, ou
de pensar nisso como uma possibilidade. Nas circunstâncias supostas, porém o
enunciado não possui o menor sentido.
É preciso observar que mesmo frases contextualmente independentes, como
“Leo ama Lia”, que encontro por acaso escrita em uma tira de papel em um local
que desconheço é, no sentido que estamos considerando, em si mesma e para
mim, destituída de significado. Ela tem significado gramatical: sei que ela
contém dois nomes próprios sintaticamente associados etc. Mas não sei de que
Leo e Lia ela trata. Não conheço nada das regras de indentificação para esses
nomes, não tendo como formar uma regra de verificação para o enunciado. A
frase não possui um sentido ou conteúdo representacional resgatável.
O que dizer de enunciados sobre o passado ou sobre o futuro? Aqui também
é necessário um exame caso a caso. Digamos que alguém afirme: “O Homem de
Java viveu há cerca de 1,8 milhões de anos”. Esse enunciado foi plenamente
verificado pelo crânio encontrado e por um seguro procedimento de datação. A
verificação observacional direta de acontecimentos passados é fisicamente e
praticamente impossível, mas ela não é parte da regra de verificação cuja
aplicação nos garante a verdade do enunciado em questão, nem sequer do que
queremos dizer com a frase.
Muito diferente é o caso de frases sobre o passado como “Sobre essa pedra
sentou-se um velho barbudo há exatamente dez mil anos” ou “Napoleão espirrou
mais de 30 vezes enquanto esteve na Rússia”, ditas em situações nas quais não
há nenhum meio prático de se verificar. Nesses casos a verificabilidade é, como
1 Ver Wittgenstein: Über Gewissheit, sec. 10. 91
se diz, apenas lógica; tal verificação não é praticamente realizável e
provavelmente não é sequer fisicamente realizável. Mas é difícil admitir que
enunciados empíricos, cuja verificabilidade é apenas lógica, sejam verificáveis
no sentido forte do termo, e que, por conseqüência, possam ter algum sentido
epistêmico. Para mim a distinção entre verificabilidade lógica e empírica (física,
prática) é uma distinção entre níveis de verificabilidade, correspondente a dois
níveis de significação, o último pressupondo o primeiro. Se a verificabilidade
for apenas lógica, o enunciado empírico não possui um sentido relevante, pois
não sabemos o que fazer com ele. Ele não é capaz de cumprir com a sua função
própria, que é a de representar um atual ou possível estado de coisas.
Algo semelhante pode ser dito de enunciados sobre o futuro, com a diferença
de que a verificação direta é fisicamente possível. O proferimento “Daqui a 7
dias irá chover” é indiretamente verificável pela metereologia, mas será
diretamente verificável em uma semana. O enunciado “Daqui a cerca de onze
bilhões de anos o sol irá se expandir e engolirá Mercúrio” é uma frase que
podemos ao menos indiretamente verificar com base no que sabemos do destino
de estrelas como o sol. Já para uma frase como “O primeiro bebê a nascer em
Montes Claros em 2040 será do sexo feminino” temos uma regra de verificação
que só poderá ser aplicada no futuro e de forma direta, o que nem por isso a
invalida enquanto tal. Esses enunciados são não só logicamente, mas também
fisicamente e em certa medida praticamente verificáveis; o primeiro
indiretamente, o segundo diretamente, mas em um tempo futuro. Vemos que não
há uma fórmula geral e única para o procedimento verificacional. Parece que a
espécie de regra de verificação exigida varia com o enunciado, de acordo com a
sua inserção na prática lingüística no qual ele é realizado, sendo geralmente a
confusão entre casos pertencentes a práticas diversas aquilo que pode levar-nos
a crer que existem enunciados que possuem sentido epistêmico e que apesar
disso são inverificáveis.92
17. Contra-exemplos formais
Pode-se também considerar a aplicação da tese verificacionista a enunciados
formais, como notamos ao considerar a relação entre verificação e
correspondência. Nesse caso a regra verificacional é o procedimento de prova,
que quando instituído verifica o enunciado, acrescentando-lhe sentido
epistêmico dentro do sistema formal no qual é considerado. Nesse caso, como já
notamos, dispor da regra de verificação já é o mesmo que aplicá-la, dado que os
critérios a serem satisfeitos são os próprios axiomas do sistema.
Um muito falado contra-exemplo ao verificacionismo aplicado a enunciados
formais é a conjectura de Goldbach. Essa conjectura pode ser enunciada como
g = Todo número inteiro par acima de dois resulta da soma de dois números primos.
A objeção é a de que essa conjectura é plena de significado epistêmico, embora
nunca se tenha conseguido prová-la, embora o procedimento verificacional
formal para g não tenha sido ainda encontrado. Logo, o seu significado não pode
ser uma regra de verificação!
A resposta a esse argumento é simples e advém da observação de que a
conjectura de Goldbach é apenas uma conjectura. Ora, o que é uma conjectura?
Não é uma afirmação, um teorema provado, mas o reconhecimento da
plausibilidade de algo. A conjectura de Goldbach tem a forma
É plausível que g.
Mas “É plausível que g”, melhor dizendo,
93
[Afirmo que] suponho que g,
ou ainda (usando o sinal fregeano da asserção) “├é plausível que g”, é algo
diferente de
Afirmo que g
ou “├g”. Ora, a regra de verificação do reconhecimento da plausibilidade é
muito diferente da regra de verificação da afirmação. Se nosso caso fosse o de
“Afirmo que g”, a saber, uma afirmação ou tese ou teorema Goldbach, a regra
de verificação seria realmente o procedimento de prova do teorema. Mas nosso
caso é
[Afirmo que] é plausível que g,1
no qual a regra de verificação consiste tão somente em um procedimento
verificacional que apenas sugere que g possa ser provada. Ora, esse
procedimento verificacional, essa regra, de fato existe. Ela consiste
simplesmente em considerar exemplos de números pares aleatoriamente dados e
verificar se eles podem resultar na soma de dois números primos. E essa regra
verificacional não só existe como tem sido aplicada até hoje sem exceção a
todos os números inteiros pares considerados, o que fornece grande parte da
base que temos para formular a conjectura de Goldbach. Se uma exceção tivesse
sido encontrada a conjectura teria sido provada falsa, pois “├~g” é incompatível
com1 Pode-se objetar aqui que g é apesar de tudo perfeitamente compreensível. Mas podemos replicar que g é na verdade compreensível apenas em termos gramaticais. Em termos semânticos, porém, compreender completamente o significado de g é compreender o que chamei de o seu significado epistêmico, aquilo que Frege chamou de valor de conhecimento (Erkenntniswert), que no caso é ser capaz de demonstrar a verdade de g.
94
[Afirmo que] é plausível que g.
Assim, a conjectura é verificável e tem sido verificada. O que não é
verificável nem foi verificado é a afirmação de g, que não faz realmente sentido,
posto que ainda não dispomos de um procedimento matemático que a verifique.
O erro consiste na confusão de uma suposição com uma afirmação, de uma
conjectura com um teorema.1
Note-se que a conjectura de Goldbach tanto pode ser demonstrada verdadeira
como também falsa. Ela será verdadeira se for encontrada uma demonstração a
partir de verdades intuitivas que para nós funcionam como axiomas do cálculo.
Ela será falseada, demonstrada como sendo não-verificável, se for encontrado
um único contra-exemplo. A conjectura será falseada pela não-aplicação da
regra que nos manda buscar a soma de dois números primos de modo a resultar
no número par em questão.
Um caso contrastante é o do último teorema de Fermat, que chamarei de f.
Segundo esse teorema
f = não existem três números positivos x, y e z que satisfazem a equação “xⁿ + yⁿ = zⁿ” se n for superior a 2.
Esse teorema já havia sido parcialmente demonstrado até que em 1995
Andrew Wiles conseguiu encontrar uma demonstração completa. Alguém
poderia aqui objetar que mesmo antes de sua demonstração f já era chamado de
“o teorema de Fermat” e que portanto fazia sentido como teorema mesmo sem
que tivéssemos uma demonstração...
1 É possível objetar que em “É plausível que g”, g comparece e g precisa afinal ter sentido apesar de inverificável. Mas podemos replicar que o g que aqui comparece tem um sentido apenas gramatical e não, para além disso, um sentido epistêmico.
95
Há, porém, um erro nessa objeção. Pois com ela se esquece que ‘o teorema
de Fermat’ é uma denominação fantasiosa. Chamamos f de teorema
equivocamente, apenas devido ao fato de que antes de sua morte Fermat
escreveu que tinha uma prova para ele, mas que não podia colocá-la no papel, já
que a margem de seu caderno era muito estreita para cabê-la. (Hoje sabemos,
aliás, que essa observação de Fermat não pode ter sido verdadeira, simplesmente
porque a matemática da época não lhe provia de meios para demonstrar a sua
conjectura.) Seja como for, a verdade é que f era uma conjectura da forma
[Afirmo que] é plausível que f,
até que Wiles a demonstrou, só depois disso tornando-se realmente um teorema.
Quando dizemos “[Afirmo que] é plausível que f”, o significado completo disso
(que muito poucos realmente conhecem) deve incluir a demostração encontrada
por Wiles, que nada mais é do que a aplicação de uma complexa combinação
verificacional de regras.
Há muito mais a ser dito sobre essas questões, que não são importantes para o
objetivo desse livro. Espero, contudo, que essas poucas considerações sejam
suficientes para convencê-lo de que o princípio da verificabilidade se deixa
plausivelmente reabilitar se for aproximado através de uma metodologia que não
viole a tecitura sutil da linguagem natural.
18. O semântico como abstração do psicológico
Tudo o que até agora consideramos sob a forma de abstrações semânticas pode
ser também enfocado sob um ponto de vista psicológico. Os critérios podem ser
objetivamente dados. Mas como sujeitos representacionals podemos sempre
conceber os elementos criteriais, mesmo na ausência de sua existência concreta.
Podemos seguir regras criteriais instanciando-as cognitivamente, caso em que 96
temos as cognições, representações, idéias de propriedades, objetos ou estados
de coisas. Podemos ainda entender a intensão com ‘s’ como expressão
semântica da intenção psicológica, enfatizando a direcionalidade do sentido.1 E
nossas cognições, representações, idéias, intenções, podem ser consideradas
como instanciações psicológicas de significados, de regras semântico-criteriais,
de conteúdos semânticos, de intensões com ‘s’.2
Vemos, pois, que o elo intermediário entre palavras e coisas se deixa dizer de
maneiras diferentes, quer sob o modo psicológico, quer sob o modo semântico,
em um entrelaçado de relações. Tentando resumir: sentidos ou significados são
regras de uso; sentidos referenciais são regras de uso cognitivas, que quando
analisadas em termos de suas condições de satisfação podem ser ditas regras
criteriais. Os sentidos referenciais das frases assertóricas são regras de
verificação que se aplicam quando configurações criteriais por elas requeridas
são satisfeitas, ou seja, quando as configurações criteriais concebidas são
satisfeitas, a saber, demonstradas estruturalmente isomórficas a configurações
criteriais efetivamente dadas no mundo, as quais são constituintes do fato (a
condição de verdade) representado pela frase assertórica ou pelo menos são
sintomas que nos permitem inferir esse fato. Quando isso acontece temos a
correspondência do conteúdo representacional com o fato, a saber, a verdade da
cognição. A cognição, a tomada de consciência da aplicabilidade de uma
1 Se nossa perspectiva for correta, então a intenção psicológica é sempre uma instanciação concreta de uma intensão com ‘s’, de um conteúdo, e não algo essencialmente diverso.2 Enquanto teorias como a de Davidson ficam aquém da marca, a teoria griceana do significado passa ao largo dela. O que H.P. Grice elucida ao sugerir que o significado do proferimento de p pelo falante S está no reconhecimento pelo ouvinte de sua intenção de dizer p, não é o significado cognitivo do proferimento, mas tão somente parte do procedimento pelo qual um mesmo significado é comunicado. Ver H.P. Grice: Studies in the Ways of Words, caps. 5, 6, 14 e 18. Na lição 14 de suas Vorlesungen zur Einführung in die Sprachanalytische Philosophie Ernst Tugendhat desmantelou a pretensão de teorias como a de Grice de explicar o significado próprio dos enunciados.
97
variedade de relações inferenciais dependentes da existência do fato
representado.1
Nisso tudo é importante mantermos clara a distinção entre o semântico e o
psicológico. O semântico é convencionalmente fundado e nesse sentido
necessário; o psicológico é espaço-temporalmente dado e por isso contingente.
Mas o semântico não existe fora de suas instanciações cognitivas. Ele é
constituído de estruturas de fundo convencional que se instanciam em atos
mentais, apenas que são consideradas em abstração desses estados. Supor que o
semântico possa existir sem o psicológico é hipostasiar a sua natureza.2
1 Observe-se que há outras espécies de regras constitutivas de significado que não são referenciais: podemos ter regras que relacionam pela linguagem dados empíricos a cognições, cognições a outras cognições, e cognições a ações. Mas para a questão da referência, o que mais interessa é a primeira espécie de regra, na medida em que for responsável pelo sentido referencial.2 Há várias maneiras de se incorrer em hipóstases. Uma delas é identificar o sentido com entidades platônicas (Frege); outra (que será criticada em seu devido tempo) é a de identificar o significado lingüístico com substratos essenciais das coisas (Putnam); outra é identificá-lo com unidades mínimas da referência (Russell); e ainda outra é identificar o significado com intenções meramente psicológicas (Grice).
98
3. FREGE: PARÁFRASES SEMÂNTICAS
O exemplo mais influente de uma semântica do elo intermediário é a teoria do
sentido proposta por Gottlob Frege em artigos como “Sobre sentido e
referência”1 e “O pensamento”.2 Essa teoria é importante porque, como
nenhuma outra, alia interesse filosófico à economia conceitual e amplitude
explicativa.
Frege explica a referência (Bedeutung) recorrendo a um elo semântico
intermediário abstrato, por ele chamado de sentido (Sinn). O esquema (1) mostra
como ele considera esses dois níveis tendo em vista o caso fundamental da frase
predicativa singular:
1 Gottlob Frege: “Über Sinn und Bedeutung” (1892).2 Gottlob Frege: “Der Gedanke” (1918).
99
(1)
termo singular termo geral fraseSentido modo de apresentação modo de apresentação pensamentoReferência objeto conceito > objeto valor-verdade
Para Frege os sentidos dos termos são os seus modos de apresentação e o
sentido da frase é o pensamento por ela expresso. Nesse capítulo quero mostrar
como a semântica fregeana pode ser parafraseada através da semântica de regras
cognitivas esboçada no capítulo anterior, propondo que o sentido do termo
singular deva ser analisado em termos de sua regra de identificação, que o
sentido do termo geral deva ser analisado em termos de sua regra de aplicação e
que o sentido da frase (o pensamento) deva ser analisado em termos de sua regra
de verificação.1 Quero mostrar que essa abordagem permite uma decomposição
analítica epistemologicamente enriquecedora do conceito fregeano de sentido.
Como é bem sabido a semântica fregeana não é isenta de curiosas
excentricidades. A meu ver elas encobrem profundos equívocos. A análise dos
dois níveis semânticos a ser proposta nos sugerirá algumas correções capazes de
expurgá-la de suas estranhezas mais flagrantes, incrementando a sua
consistência.
1. Referência do termo singular
Comecemos com os termos singulares. A referência de um termo singular é,
para Frege, o próprio objeto por ele referido, tomado a palavra objeto no sentido
1 Discordo parcialmente aqui da oposição defendida por Ernst Tugendhat entre teorias objetualistas do significado (Husserl, Frege...) e concepções do significado em termos de regras de uso (Wittgenstein, Grice...). Trata-se em parte, ao menos, de uma simples questão de níveis de análise, úteis para propósitos diversos. Em um primeiro nível de análise (o das teorias objetualistas) o significado é concebido como um objeto abstrato; em um nível de análise ulterior esse objeto é decomposto, por exemplo, na forma de regras cognitivo-criteriais. Por conseguinte em muitos casos, ao menos, as duas concepções podem ser vistas como complementares. (Ver especialmente a crítica de E. Tugendhat a Edmund Husserl em suas Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, lições 9 e ss.)
100
ampliado, que inclui objetos materiais, mas não se restringe a eles. A referência
do nome ‘Lua’, por exemplo, é a própria Lua com as suas crateras... Para
designar a referência ele usa a palavra alemã ‘Bedeutung’, cuja tradução literal
para o português é ‘significado’ e para o inglês é ‘meaning’. Os lúcidos
tradutores ingleses preferiram palavras como ‘reference’, ‘denotation’ e
‘nominatum’, que exprimem o que Frege realmente tinha em mente. Outros
termos usados foram ainda ‘semantic value’, ‘semantic role’ e ‘truth-value
potential’, que salientam a contribuição das referências dos componentes da
frase para o valor-verdade da frase como um todo. A tradução mais fiel ao texto
original é a literal, nomeadamente, ‘meaning’ em inglês e ‘significado’ em
português; mas por razões de sistematicidade e clareza, manterei aqui a palavra
‘referência’.1
Há uma discussão entre intérpretes sobre a razão pela qual Frege teria
escolhido a palavra ‘Bedeutung’. Uma delas seria a de que um dos significados
de ‘Bedeutung’ (como também de ‘significado’ e ‘meaning’) é relevância ou
importância, posto que a referência é aquilo que mais importa.2 Com efeito, essa
interpretação parece recomendar-se quando pensamos na estranha identificação
que Frege faz da referência da frase com o seu (sem dúvida importante) valor-
verdade. Contudo, quando pensamos na referência como sendo o objeto referido
por um termo singular, que é como o conceito foi inicialmente introduzido por
ele, uma sugestão alternativa se afirma como muito mais plausível. Podemos
introduzi-la a partir da consideração de que em várias línguas européias – tomo
aqui como exemplos o alemão, o inglês, o francês e o português – podemos
encontrar dois grupos diferentes de palavras, cada grupo evidenciando um
comportamento semântico algo diverso. Ei-los:
1 Sobre a espinhosa questão de como traduzir ‘Bedeutung’, ver M. Beaney (ed.): The Frege Reader, introdução, p. 36 ss.2 Ernst Tugendhat: “Die Bedeutung des Ausdrucks ‘Bedeutung’ bei Frege”, p. 231.
101
A .............x................B
Sinn Bedeutung sense meaning sens signification sentido significado
Normalmente as palavras dos grupos A e B significam a mesma coisa: elas
expressam o que poderíamos chamar de seu uso semântico intralingüístico, que
é simplesmente o de apontar para aquilo que queremos dizer com as expressões
por elas reportadas, ou seja, para os seus sentidos. Assim, na frase portuguesa
“A palavra ‘cadeira’ significa banco com encosto”, a palavra ‘significado’ pode
ser substituída por ‘tem o sentido de’, pois ambas as palavras são aqui usadas
como sinônimos que apontam para o uso semântico intralingüístico.
Contudo, para além desse uso intralingüístico as palavras do grupo B podem
ter um significado adicional que as palavras do grupo A não comportam. Elas
podem ser usadas no que poderíamos chamar de um uso referencial
extralingüístico. Isso acontece quando elas se modificam na forma de verbos
como ‘deuten’ em alemão e ‘mean’ em inglês, que querem dizer mostrar. Em
alemão o termo ‘bedeutet’ (significa) aparece em certas ocasiões no lugar de
‘bezeichnet’ (indica) ou ‘deutet an’ (sugere), o que nunca acontece com a
palavra ‘Sinn’. Algo semelhante acontece no português quando usamos o verbo
‘significar’ no sentido estendido de apontar, indicar, mostrar, referir, denotar,
ou mesmo estendê-lo mais ainda no sentido daquilo mesmo que é apontado,
indicado, mostrado, referido, denotado. Com efeito, segundo o dicionário
Aurélio, ‘significar’ também pode ser usado no sentido de ‘denotar’, e segundo o
dicionário Houaiss, etimologicamente ‘significar’ vem do latim ‘significare’,
que quer dizer “dar a entender por sinais, indicar, mostrar, significar, dar a
102
conhecer, fazer compreender”.1 Para tornar clara a diferença, compare os
proferimentos:
a) A palavra ‘cadeira’ significa (indica) coisas como aquilo ali. b) A palavra ‘cadeira’ tem o sentido de (indica) coisas como aquilo ali.
A frase (a) ainda é aceitável, embora pouco literal; mas a frase (b) soa
claramente inadequada. Minha sugestão interpretativa advém da observação
dessa diferença, que é mais evidente na língua alemã. Sugiro que ao introduzir o
termo ‘Bedeutung’ Frege estava substantivando o verbo ‘bedeuten’, usado para
expressar, não mais o apontar (deuten), o designar (bezeichnen), mas já aquilo
que é apontado (die Bedeutung), aquilo que é designado (das Bezeichnete), a
saber, a própria referência, o denotatum.2 Em alemão isso ficaria como:
Bedeutet... → deutet... bezeichnet... → /das, was gedeutet, bezeichnet ist/ (significa) (aponta... designa...) (aquilo que é referido) ↓ die Bedeutung (significado = referência, denotação)
Essa é a pequena torção semântica com a qual Frege transforma a palavra
‘Bedeutung’ em um termo técnico – uma torção que trai um resquício de
referencialismo semântico.3
1 Dicionário Houaiss, p. 2.569.2 Procurando na literatura descobri que esse ponto foi notado ao menos por W. Kneale e M. Kneale, segundo os quais “Sinn tem a mesma ampla variedade de aplicações que o inglês ‘sense’, e Bedeutung corresponde quase exatamente a ‘meaning’. (…) Mas o simples verbo deuten, do qual bedeuten e Bedeutung são derivados, pode ser usado para ‘point’, ao menos no sentido metafórico dessa palavra inglesa, e Frege parece ter-se fixado a essa peculiaridade como uma justificação para o seu uso técnico de bedeuten”. The Development of Logic, p. 495.3 Ver a introdução da distinção em “Funktion und Begriff”, p. 14 (paginação original). A explicação aqui exposta nos será útil mais tarde, quando considerarmos a fantasia da terra-gêmea de Hilary Putnam. Irei mostrar que Putnam se utiliza dessa mesma proximidade
103
2. Sentido do termo singular
Passemos agora ao sentido do termo singular. Para introduzi-lo, compare as duas
seguintes frases:
1. A estrela da manhã tem uma densa atmosfera de CO2.2. A estrela da tarde tem uma densa atmosfera de CO2.
As frases (1) e (2) referem-se a mesma coisa, que é o planeta Vênus. Mas apesar
disso, uma pessoa pode saber a verdade de (1) sem saber a verdade de (2). A
explicação disso é que embora os termos singulares ‘estrela da manhã’ e ‘estrela
da tarde’ se refiram ao mesmo planeta Vênus, eles veiculam conteúdos
informativos diferentes, eles têm sentidos (Sinne) diferentes. O sentido é
definido por Frege como sendo o modo de se dar do objeto (die Art des
Gegebenseins des Gegenstandes), o que melhor se traduz como o seu modo de
apresentação. O sentido do termo singular ‘estrela da manhã’, por exemplo,
deve ser Vênus apresentado como “o corpo celeste mais brilhante, geralmente
visto próximo ao horizonte pouco antes do sol nascer...” – diversamente do
sentido do termo singular ‘a estrela da tarde’. E o sentido do termo singular ‘o
perdedor de Waterloo’ é apresentado como “o general que perdeu a batalha de
Waterloo...” muito diversamente do sentido do termo singular ‘o vencedor de
Jena’.
Segundo Frege, palavras expressam o sentido (drücken den Sinn aus)
enquanto o sentido determina (bestimmt) a referência. Importante é que o
sentido é para ele condição necessária para a referência. Sem ele não é possível
o ato de referir, pois é ele que mostra o caminho para a referência. Isso é assim
mesmo nos casos em que a referência não existe, razão pela qual o sentido
semântica entre o verbo ‘significar’ (‘mean’) e aquilo que é significado (referência e extensão) como álibi para poder mergulhar fundo nos grotões do externalismo semântico.
104
também tem sido interpretado como sendo o modo de apresentação pretendido e
não o de algo necessariamente dado.1 Por isso uma expressão pode ter sentido
sem ter referência, mas não pode ter referência sem ter sentido.
A noção de sentido em Frege é abrangente, constituindo o que ele chama de
valor epistêmico (Erkenntniswert). O sentido fregeano possui interesse
epistemológico por envolver o conteúdo informativo da expressão lingüística;
ele é, no dizer de Michael Dummett, aquilo que entendemos quando entendemos
a expressão.2 A importância filosófica da semântica fregeana resulta dessa
importância epistemológica do seu conceito de sentido.
Frege concebe os sentidos como entidades abstratas, que ele só analisa em
termos de outros sentidos que lhe sejam constituintes. Ele os trata como
entidades primitivas, que ele elucida mas não explica. Ou seja: ele não se
preocupa em realmente analizá-los através de outros conceitos, talvez por vê-los
como lógico e não como epistemólogo. Essa análise, porém, é algo que
naturalmente se impõe. Pois parece muito plausível entendermos os sentidos
fregeanos como sendo regras criteriais semântico-cognitivas, as mesmas que já
consideramos ao analisarmos o significado como função do uso. Aqui reside a
conexão fundamental a ser feita entre as reflexões semânticas de Frege e do
último Wittgenstein.3 A plausibilidade dessa identificação fica particularmente
clara quando tomamos expressões numéricas como exemplos. Considere as
expressões “1 + 1”, “6/3”, “2 . (7 + 3 – 9)”. Tanto elas quanto um número
infinito de outras expressões que podem ser criadas têm a mesma referência, o
número 2, embora tenham sentidos fregeanos diferentes. Ao mesmo tempo elas
1 Max Textor: Frege on Sense and Reference, p. 134.2 M. Dummett: Frege: Philosophy of Language, p. 92.3 No que concerne a Frege, esse entendimento se deve principalmente a Michael Dummett. Mas orientações semelhantes podem ser encontradas em autores como P.F. Strawson e Ernst Tugendhat, entre outros.
105
constituem métodos, procedimentos, regras semântico-cognitivas diversas,
através das quais identificamos o mesmo número 2.1
Outra razão para tratarmos sentidos como regras semântico-cognitivas é o
contraste com o que Frege chamou de colorações (Färbungen). Colorações são
o mesmo que sentidos expressivos, a saber, estados afetivos que regularmente
associamos a certas expressões. Assim, as palavras ‘amor’ e ‘cão do inferno’, na
frase “O amor é um cão do inferno” (Bukowski), se associam contrastivamente a
emoções específicas. Como Frege percebeu, a fixação de colorações emocionais
similares a uma mesma palavra por diferentes pessoas não é resultado de
convenções. Ela é o mero resultado de regularidades produzidas pela relativa
semelhança entre nas naturezas humanas, que produz reações emocionais
semelhantes diante de certas expressões lingüísticas. Mas como as naturezas
humanas não são idênticas e não há base convencional, não se pode esperar
concordância completa. Eis porque alguns podem reagir emocionalmente a uma
poesia e outros lhe ficarem indiferentes, esta sendo. Eis porque é tão difícil
traduzir poesia, que em muito depende das colorações adquiridas por uma
expressão em uma língua específica.
Diversamente das colorações Frege achava que os sentidos, para terem sua
objetividade (intersubjetividade) garantida, como acontece na linguagem
emocionalmente neutra da ciência, precisam ser convencionais. Torna-se assim
óbvia a conseqüência de que Frege concordaria conosco se concluíssemos que a
razão da objetividade (intersubjetividade) e conseqüente comunicabilidade dos
sentidos se – em contraste com a menor falta de objetividade e comunicabilidade
das colorações – se encontra no fato de que esses sentidos-significados são
regras cognitivas convencionadas de modo geralmente pré-reflexivo, quando
não são as combinações de regras que o constituem ou determinam.1 Ver comentários de Edmund Runggaldier sobre a interpretação de Dummett em seu livro Zeichen und Bezeichnetes: sprachphilosophische Untersuchungen zum Problem der Referenz, p. 91 ss.
106
À luz dessas considerações, o sentido do termo singular deve ser considerado
o mesmo que uma regra ou método ou procedimento convencionalmente
fundado, cuja função é a de servir de caminho para a identificação do objeto.
Essa regra se deixa ao menos parcialmente exprimir por descrições. Assim, a
regra associada ao termo singular ‘a estrela da manhã’ deixa-se explicitar pela
descrição definida ‘o corpo celeste mais luminoso geralmente visto próximo do
horizonte pouco antes do sol nascer...’ E um nome próprio como ‘Aristóteles’,
na sugestão de Frege, estaria no lugar de uma variedade de modos de
apresentação exprimíveis através de descrições. Frege dá como exemplo disso as
descrições: (i) ‘discípulo de Platão e tutor de Alexandre o Grande’ e (ii) ‘pessoa
nascida em Estagira’.1 Segundo a interpretação proposta, as descrições (i) e (ii)
exprimem diferentes sentidos e, por conseguinte, diferentes regras para a
identificação de Aristóteles. Além disso, podemos suspeitar que (i) e (ii) façam
parte de alguma regra mais geral, estabelecedora de um vínculo unificador
dessas duas regras na identificação de um mesmo objeto. Mesmo sob essa
paráfrase o sentido determina a referência: para que se identifique a referência é
preciso que regras semânticas identificadoras do objeto se demonstrem
aplicáveis, a saber, que as configurações criteriais por ela geradas sejam
adequadamente satisfeitas.2
3. Referência do termo geral
1 Gottlob Frege: “Über Sinn und Bedeutung”, nota p. 28 (paginação original).2 Como observou Dummett, que creio compartilhar de meu entendimento dos sentidos fregeanos como regras cognitivo-criteriais: “Conhecer o sentido de um nome é ter um critério para reconhecer, para qualquer dado objeto, se ou não ele é o portador (referente) do nome; conhecer o sentido de um predicado é ter um critério para decidir, para qualquer objeto, se ou não o predicado se aplica aquele objeto; e conhecer o sentido de uma expressão relacional é ter um critério para decidir, dados quaisquer dois objetos tomados em uma ordem particular, se ou não a relação estatuida se mantém entre o primeiro objeto e o segundo”. M. Dummett: Frege: Philosophy of Language, p. 229.
107
Frege tem algo a dizer sobre a referência do termo geral em função predicativa,
a qual ele chama de conceito (Begriff). Isso é estranho porque parece natural
pensarmos o conceito como sendo o próprio sentido da expressão conceitual, o
seu modo de apresentação da referência, a qual deveria ser em seu sentido mais
corrente e próprio aquilo que podemos chamar de propriedade.
Além disso, para Frege o conceito é uma função. O conceito matemático de
função pode ser definido como sendo uma regra que tem como input
argumentos e como output valores (por exemplo: ‘3 + x = ...’ é uma função que
recebe como valor o número 6 quando o argumento que substitui x é o número
2). Para Frege um conceito é uma função cujo argumento é o objeto que “sob
ele cai” (fällt unter) e cujo valor é um valor-verdade, que pode ser o Verdadeiro
ou o Falso. Assim, o conceito designado pela expressão conceitual ‘...é branco’
tem o valor Verdadeiro quando sob ele cai o objeto Lua e tem o valor Falso
quando sob ele cai o objeto Sol.
Frege nunca explicou satisfatoriamente o que são conceitos entendidos nesse
sentido referencial. Para ele conceitos não podem ser nem objetos nem coleções
de objetos nem extensões.1 A razão disso é que o objeto, o conjunto de objetos, a
extensão, é uma entidade independente, não precisando de nada para completá-
la. Sendo uma função, o conceito por contraste se caracteriza por ser aberto, a
saber, uma entidade incompleta (unvollständig) ou insaturada (ungesätig),
precisando ser sempre preenchida por argumentos, que no caso são os objetos
que sob ele podem cair. Esses objetos, por contraste, são completos, saturados
ou independentes (unabhängig), sendo isso o que em última instância os
caracteriza.
Por exemplo: o predicado ‘...é um cavalo’ é uma expressão insaturada,
designando um conceito também insaturado, que se deixa completar pelo objeto
que sob ele cai, o qual é referido por um termo singular, por exemplo,
1 G. Frege: “Ausführungen über Sinn und Bedeutung”, pp. 130 ss.108
‘Bucéfalo’. Predicado incompleto e termo singular completo se combinam para
formar a frase completa “Bucéfalo é um cavalo”, que por ser completa, deve
outra vez ser nome de objeto. Que a frase completa se refere a um objeto (no
sentido especial dado por Frege à palavra) parece ser confirmado pela
possibilidade que temos de nominalizar frases transformando-as em descrições
definidas (aquelas que se iniciam com o artigo definido) como, por exemplo, ‘o
cavalo de nome Bucéfalo’, que pode comparecer na frase “O cavalo de nome
Bucéfalo pertenceu a Alexandre”.
Essas reflexões sobre a natureza insaturada do conceito levaram Frege à
estranha conclusão de que a frase:
(1) O conceito de cavalo não é um conceito,
é paradoxalmente verdadeira.1 Afinal, o termo singular ‘o conceito de cavalo’ só
pode designar uma entidade completa, saturada, independente. O mais próximo
que podemos chegar de nomear o referente de um termo geral é em uma frase
como:
(2) Bucéfalo é aquilo a que o termo geral ‘cavalo’ refere,
na qual é dito que o objeto Bucéfalo cai sob o conceito de cavalo. O problema é
que a negação de (1), nomeadamente, a frase
(3) O conceito de cavalo é um conceito,
soa como uma frase analítica necessariamente verdadeira! A meu ver a resposta
para esse paradoxo emerge quando distinguimos entre ser referência de um
1 Gottlob Frege: “Über Begriff und Gegenstand”, pp. 196-7.109
termo geral e exercer o papel de referência de um termo geral, quando este
aparece em sua posição predicativa. No caso em que a entidade referida pelo
termo geral não tem papel de referência de uma expressão predicativa, ela deixa
de ser vista como insaturada ou incompleta. Nesse caso (3) poderá ser entendida
como uma frase ambígua. Se a interpretarmos como
(4) A referência a palavra ‘cavalo’ é a referência de um termo geral,
ela será realmente verdadeira, mas se a interpretarmos como
(5) A referência da palavra ‘cavalo’ é (enquanto tal) insaturada,
ela se torna falsa. Sob essa interpretação o que Frege está dizendo torna-se
inofensivo.1
4. O status ontológico da referência das expressões predicativas
A discussão sobre a natureza insaturada da referência das expressões
predicativas nos leva à questão da natureza ontológica do que Frege entende
como sendo a sua referência: o conceito. A natureza referencial que ele atribui
ao conceito, junto a sua sugestão metafórica de que objetos podem “cair sob” o
conceito, produzindo assim a sua extensão, nos permitem especular se ele não
teria sido influenciado por alguma concepção realista-aristotélica do que seja a
referência de termos gerais. É possível que o que Frege chama de conceito tenha
sido postado no domínio da referência para exercer um papel semelhante ao de
universal in rebus (nos objetos), pertencendo por isso ao domínio da referência.
Se for assim, então os objetos poderão realmente “cair sob” o conceito,
1 Para uma resposta que converge com a minha, ver Anthony Kenny: Frege: An Introduction to the Founder of the Modern Analytic Philosophy, pp. 123-125.
110
produzindo a sua extensão. A favor disso fala o fato de que Frege chama o
conceito sob o qual cai o objeto de sua propriedade (Eigenschaft), identificando
assim o seu conceito de conceito com o conceito de uma propriedade que aqui é
obviamente entendida como uma propriedade universal. A favor disso fala
também o fato de que, tal como acontece com os universais, os componentes
(Merkmale) dos conceitos fregeanos não são suas propriedades constituintes
(Eigenschaften): não é propriedade constituinte do conceito expresso pelo
predicado ‘...veludo azul macio’, por exemplo, que ele seja azul ou que ele seja
macio (nem do universal). Um conceito (um universal in rebus) não tem cor
nem textura, diversamente dos objetos que caem sob ele.
A questão que surge dessa última interpretação do conceito fregeano é que se
o conceito (como o universal in rebus) está “nas coisas”, então, quando a
expressão predicativa não possui referência o seu conceito também não deveria
existir (um problema que, diga-se de passagem, também inflinge a própria idéia
do universal in rebus). Mas Frege tem o bom senso de admitir que conceitos
vazios existem. O termo predicativo ‘...é um unicórnio’ refere-se para ele a um
conceito, mesmo que sob ele não caia objeto algum. Contudo, parece
intuitivamente claro que ‘...é um unicórnio’ não possui referência alguma,
embora obviamente expresse um conceito. Minha conclusão é a de que a
identificação fregeana da referência da expressão predicativa com o conceito é
simplesmente incoerente, resultando de uma contaminação do domínio do
sentido – no qual falamos de conceitos como modos de apresentação – pelo
domínio da referência. Melhor seria admitir que o conceito é o sentido do termo
geral em sua função predicativa, o seu modo de apresentação, e que a sua
referência seja alguma outra coisa que, com efeito, “cai sob” esse conceito,
mesmo que ela não seja algo independente ou completo como um objeto ou
uma extensão. Mas que coisa é essa?
111
Quero aqui propor a única resposta que me parece viável. Quero revisar
Frege, interpretando a referência da expressão predicativa em termos do que
chamo de propriedades singularizadas ou propriedades-se ou simplesmente
propriedades, definidas como quaisquer propriedades espaço-temporalmente
singularizadas, como o branco que vemos quando olhamos para a Lua e que, de
certo modo, está lá (a reflexão do conjunto dos comprimentos de onda do
aspectro visível). As propriedades-s são hoje em dia mais usualmente chamadas
de tropos, pois a sua investigação ganhou proeminência com a moderna
ontologia dos tropos, introduzida em 1953 pelo filósofo australiano D.C.
Williams, que por meio dela sustentou que toda a realidade deve ser constituída
de tropos, os quais são as pedrinhas de construção do universo.1 Nesse sentido,
aquele som agudo que acabei de ouvir, essa superfície rugosa que toco, o branco
que vejo agora, e mesmo (talvez) essa forma quadrática do apagador de giz que
percebo diante de mim, são tropos. A importância dessa teoria é que ela permite
uma inusitada economia ontológica que nos livraria de uma vez por todas de
entidades desagradáveis como os universais puros e os substratos nus. Um
universal poderia ser definido, eu proponho, como um tropo-modelo T* (o qual
poderia variar com o sujeito cognitivo e até mesmo com o mesmo sujeito em
ocasiões diferentes) ou qualquer outro tropo T que seja igual a ele.2 E um
objeto material poderia ser minimamente analisado como um sistema de tropos
compresentes (ou seja, co-localizados e co-temporais) contendo um núcleo
constituído dos tropos que lhe são (de variados modos possíveis) 1 A teoria dos tropos foi introduzida pelo filósofo australiano D.C. Williams em seu artigo “The Elements of Being” (1953), tendo desde então suscitado crescente interesse. Uma primeira elaboração sistemática das idéias de Williams foi feita por Keith Campbell no livro Abstract Particulars, publicado em 1990. Para uma avaliação ver Anna Sofia-Maurin: If Tropes.2 Proponho essa caracterização como uma maneira de contornar a usual definição do universal como uma classe de tropos iguais entre si, uma vez que classes são objetos abstratos que podem aumentar ou diminuir de tamanho etc. Eu a utilizo inspirado no tratamento dado por filósofos empiristas como Berkeley à noção de idéia. Farei o mesmo com a noção fregeana de pensamento mais tarde.
112
definitoriamente atribuídos, acrescidos de tropos contingentes ou
circunstanciais.3
Embora a ontologia dos tropos seja uma aquisição muito jovem e traga
consigo muitos problemas irresolvidos, ela não produz mais dificuldades do que
as tradicionais doutrinas universais do realismo e do nominalismo. Em
compensação, ela promete uma solução extremamente econômica para os
problemas ontológicos, libertando-nos, finalmente, de entidades questionáveis
como universais platônico-aristotélicos e substâncias incognoscíveis, as quais
ocuparam as cabeças filosóficas por mais de dois milênios sem um progresso
que as tornasse mais plausíveis. Como não é aqui o lugar para fazer a defesa de
uma ontologia dos tropos, posso propor ao leitor a admissão bem menos
polêmica de que nossos termos empíricos se referem tendo como critérios
propriedades singularizadas, nomeadamente, tropos, como o desse vermelho e o
daquele som agudo. Essa suposição de bom senso já bastará.
Finalmente, como a palavra ‘propriedade’ na linguagem corrente significa o
mesmo que tropo, diversamente de seu uso filosófico costumeiro para designar
entidades abstratas, fiel ao meu princípio de privilegiar, sempre que possível, os
nomes ordinários das coisas, usarei nesse livro a palavra ‘propriedade’ no
sentido de propriedade individualizada ou propriedade-s ou tropo.
Segundo a releitura que proponho, a expressão predicativa ‘...é branco’ na
frase “A Lua é branca” tem como referência não um conceito, mas uma
propriedade singularizada: os arranjos de de propriedades que constituem a
brancura da Lua. Também aqui a propriedade ou seus arranjos pode ser
interpretada como uma função. Mas ela é uma função cujo argumento, no caso,
é o objeto Lua, e cujo valor parece ser simplesmente o fato de a Lua ser branca.
Nesse caso, a função referida pela expressão predicativa ‘...é branca’ seria
3 Essa sugestão demanda desenvolvimento. Ver a respeito Paul Simons: “Particulars in Particular Clothings: Three Trope-Theories of Substance”.
113
satisfeita pelo objeto referido pelo nome ‘Lua’, dando como valor o estado de
coisas (o fato) referido pela frase “A Lua é branca” (essa seria uma alternativa
para o artificioso recurso fregeano fregeano ao valor-verdade como o valor da
função conceitual).
5. Insaturação como dependência ontológica
Um problema com a idéia de incompletude ou insaturação é que ela não parece
suficiente para distinguir a função predicativa. Entre o objeto e a propriedade
designada pelo predicado vige uma bem conhecida assimetria: o objeto é
normalmente referido pelo sujeito e a propriedade é normalmente referida pelo
predicado (ex: “Sócrates é sábio”); mas enquanto a propriedade pode passar a
ser referida pelo sujeito (“Sabedoria é uma virtude”), o objeto não pode passar a
ser referido pelo predicado (“Sábio é Sócrates” não faz sentido, a não ser que
‘sábio é...’ seja entendido como predicado). Contudo, a distinção
saturado/insaturado nada parece fazer para explicar essa assimetria. Afinal,
parece igualmente possível afirmar que os termos singulares e, por conseguinte,
os seus referentes, são insaturados. Afinal, qual a diferença entre os
preenchimentos de “(Sócrates, Marx, Darwin, Lula...) ...é barbudo” e “Sócrates
é... (sábio, barbudo, baixinho, tagarela...)”? Tanto o termo geral quanto o termo
singular podem ser vistos como exprimindo funções que podem ser completadas
por uma infinidade de outros termos, o mesmo se aplicando aos seus referentes
putativos.1
Contudo, a noção de insaturação insinua algo mais do que isso. Em química
um composto de carbono é dito insaturado quando contém ligações carbono-
carbono removíveis pela adição de átomos de hidrogênio, o que torna o
composto saturado. Haveria uma maneira de resgatar essa metáfora? Será que
Frege não a explorou suficientemente?
1 Pelo que sei essa observação foi originariamente feita por Frank Ramsey. 114
Quero mostrar que o recurso a uma leitura da referência da expressão
predicativa em termos de tropos-funções nos possibilita uma paráfrase
esclarecedora da distinção fregeana entre saturação e insaturação. Essa paráfrase
inspira-se em uma das definições aristotélicas de substância como sendo aquilo
que existe na independência de outras coisas.1 Aplicada aos objetos materiais
entendidos como sistemas de propriedades, a intuição passa a ser a de que o
sistema de propriedades (singularizadas) reconhecível enquanto tal é algo
complexo e geralmente mais estável do que as propriedades isoladas; o sistema
existe de maneira independente relativamente com relação aos tropos a ele
associados. Propriedades não existem sozinhas: uma propriedade de ser verde,
por exemplo, não pode existir na independência de alguma propriedade de
forma, que para se localizar precisa estar espaço-temporalmente relacionaa a
outras propriedades etc. Admitindo que a existência de propriedades é
dependente da existência de objetos (particulares), os quais constituem-se
(talvez só em parte) de sistemas relativamente independentes e estáveis de
propriedades, podemos fazer o seguinte raciocínio: se os referentes de termos
predicativos (empíricos) forem propriedades espaço-temporalmente localizadas,
parece que podemos parafrasear melhor a dicotomia insaturação/saturação ou
incompletude/completude através da dicotomia dependência/independência,
raramente usada por Frege. Afinal, o que distingue a referência de um termo
geral, no caso da frase predicativa ou mesmo relacional singular, é que essa
referência é uma propriedade (ou complexo de propriedades que por sua vez
também pode ser chamado de propriedade) cuja existência depende de um todo
que é o sistema de propriedades constitutivo do objeto particular referido pelo
termo singular. Assim, o predicado ‘...é rápido’ na frase “Bucéfalo é rápido” e a
relação ‘...pertence a...’ na frase “Bucéfalo pertence a Alexandre” aplicam-se
respectivamente às combinações de propriedades próprias do ser rápido e do
1 Aristóteles: Categorias, sec. 5.115
pertencer a Alexandre, as quais só podem mesmo existir e se tornar
identificáveis na dependência da existência de sistemas de propriedades mais
complexos, estáveis, independentes, que são os sistemas constitutivos dos
objetos Bucéfalo e Alexandre. Já os sistemas de propriedades constitutivas dos
referentes dos nomes próprios ‘Bucéfalo’ e ‘Alexandre’ são objetos que existem
na independência da existência das combinações de propriedades constitutivas
do “ser rápido” ou do “pertencer a alguém”. Sugiro, pois, que as propriedades
referidas pelos predicados possuem uma inevitável relação de dependência para
com objetos particulares, e que isso se deixa melhor explicar quando nós as
entendemos quando sendo propriedades singularizadas ou tropos.
Mas que dizer do predicado “...é um cavalo”? na frase “Bucéfalo é um
cavalo”? Ora, a propriedade singularizada de ser um cavalo pode bem ser
essencial a Bucéfalo. Nesse caso a frase será analítica e ser um cavalo não será
dependente de ser Bucéfalo no sentido de lhe ser contingente. Mesmo assim a
propriedade de ser um cavalo não deixa aqui de ser dependente. Ela é
dependente no sentido de ser parte de ser Bucéfalo, pois na medida em que a
parte depende do todo, ser um cavalo depende de ser Bucéfalo.
Note-se que a relação de dependência/independência não se preservaria se
conceitos fossem extensões de expressões conceituais (classes de objetos aos
quais certas propriedades singularizadas se aplicam). A relação de
dependência/independência só se preserva quando entendemos a referência do
predicado em termos de propriedades singularizadas. Tal relação tem sua origem
ao nível ontológico da referência, mas ela se reflete ao nível da linguagem, na
distinção lógica entre sujeito e predicado, e ainda, como veremos, ao nível
epistemológico, pelo fato de que o sentido, o modo de identificação do objeto
referido pelo termo singular é independente do modo de identificação de
propriedades contingentes que dele se predicam, enquanto o sentido da
expressão predicativa, o modo de identificação desses tropos, é dependente da 116
prévia identificação do objeto referido pelo termo singular devido em última
instância à sua relativa independência.
Devemos também notar que a relação de independência/dependência não
precisa restringir-se a particulares empiricamente dados. Até mesmo os objetos
formais prioritariamente considerados por Frege parecem submeter-se a ela.
Considere uma predicação como ‘...é um número par’ aplicada à referência do
nome próprio ‘6’. Ela depende do reconhecimento da existência do número 6. E
o próprio conceito de ser um número par não parece ter lugar na independência
da existência dos números particulares que forma a série 2, 4, 6...
Essa espécie de solução parece finalmente viável pelo fato de ela ser em
princípio capaz de explicar a assimetria entre objeto particular e propriedade.
Essa assimetria é explicada pela independência da referência do termo singular.
O nome ‘Sócrates’ não pode passar à posição de predicado porque aquilo a que
ele se refere é algo independente (e independentemente identificável), a saber, é
o sistema de propriedades que constitui essencialmente este objeto particular.
Mesmo o nome de um objeto abstrato como o número ‘6’ não pode passar à
posição de predicado, posto que se refere a algo relativamente independente de
suas propriedades (alegadamente não as que lhe são definitóriamente atribuidas),
ou ao menos identificável independentemente de muitas de suas predicações,
digamos ‘...é par’ ou ‘...é maior do que 2’.
6. Sentido da expressão predicativa
Frege não explica o que ele entende pelo sentido do termo geral em sua função
predicativa. Isso é compreensível, já que o seu candidato natural, o conceito, foi
dubiosamente situado por ele mesmo no nível da referência. Mas a lógica de
nossa reconstrução nos leva a pensar que esse sentido, que não deve ser outro
que um modo de apresentação, nada mais seja do que a regra de aplicação do
termo geral e que essa regra seja aquilo que realmente merece ser chamado de 117
conceito. Deve ser esse sentido do predicado, e não o conceito fregeano, pois é
ele que como regra tem a capacidade de estabelecer o critério para quais objetos
caem e quais não caem sob o domínio de aplicação do predicado.1
Tal como acontece com o sentido do termo singular, o sentido do termo geral
também pode se alterar sem que a sua referência se altere. Considere as frases:
1. A Lua é branca. 2. A Lua reflete todos os comprimentos de onda.
É possível dizer que a referência – os arranjos de propriedades singularizadas
que constituem a brancura da Lua – permanece a mesma nas frases (1) e (2),
mas os sentidos dos predicados, as suas regras de aplicação, são diversos, o que
faz com que os sentidos das frases também sejam diferentes, razão pela qual
uma pessoa pode saber que a Lua é branca sem saber que a sua superfície reflete
todos os comprimentos de onda do aspectro visível.
Outro resultado desse entendimento contradiz as espectativas fregeanas de
que não seja possível um mesmo sentido para mais de uma referência. Considere
as seguintes frases:
3. A Lua é branca.4. O Mont Blanc é branco.
O predicado ‘...é branco’ nas frases (3) e (4) têm obviamente o mesmo
sentido, pois expressam a mesma regra de aplicação (diversamente instanciada).
1 Ernst Tugendhat observou que segundo Frege duas palavras-conceituais referem-se ao mesmo conceito quando as suas respectivas extensões coincidem. Isso quer dizer, como ele nota, que dois termos gerais com sentidos diferentes (ex: ‘animal com coração’ e ‘animal com rins’), mas com a mesma extensão, precisam se referir ao mesmo conceito. (E. Tugendhat: Vorlesungen, p. 322). O problema é que se pensarmos assim parece que não encontraremos mais nada além da própria extensão para identificar com o conceito. Não obstante, como já vimos, sendo a extensão um objeto Frege não pode identificá-la com o conceito. Mais uma razão para rejeitarmos o conceito como referência em Frege.
118
Mas a propriedade da brancura da lua está localizada na própria Lua, enquanto a
propriedade da brancura do Mont Blanc está localizada em suas neves eternas,
tratando-se aqui de particulares distintos. Mas esse não é um exemplo isolado: a
maioria dos sentidos dos termos gerais são regras com múltiplas referências,
tantas quantas forem os objetos que constituem a sua extensão. Em Frege, ao
contrário, isso não pode acontecer, posto que como já vimos a referência da
expressão predicativa é sempre uma só: o conceito – o universal in rebus
fregeano – sob o qual caem os objetos que constituem a sua extensão.
A distinção entre independência/dependência (saturação/insaturação) também
se dá para Frege ao nível do sentido. Isso fica compreensível se pensarmos o
sentido dos termos gerais como regras. As regras de identificação dos termos
singulares se aplicam a objetos, os quais são considerados como independentes
em relação às propriedades que lhes são mais ou menos contingentemente
predicadas. Por isso a regra de identificação também é passível de ser aplicada
independentemente das regras de aplicação, podendo ser elas mesmas
isoladamente concebíveis, sendo nesse sentido independentes, completas,
saturadas. O mesmo não acontece, porém, com as regras de aplicação expressas
pelos termos gerais. Sendo as propriedades ou conjuntos de propriedades às
quais elas ultimadamente se aplicam dependentes dos sistemas de propriedades
constitutivos dos objetos aos quais as regras de identificação se aplicam, as
regras de aplicação dos predicados demandam a aplicação prévia das regras de
identificação de objetos para poderem se tornar elas próprias aplicáveis, o que
as torna dependentes das regras de identificação dos termos singulares, do
mesmo modo que as propriedades são dependentes dos objetos que as possuem.1
1 Essa dependência que a aplicação da regra predicativa tem de uma prévia aplicação da regra de identificação do termo singular foi claramente notada, por exemplo, por Ernst Tugendhat em sua análise das condições de verdade da frase predicativa singular: “‘Fa’ é exatamente então verdadeira se, na medida em que a regra de identificação de ‘a’ foi seguida, com base no resultado do seguimento dessa regra, ‘F’ for aplicável de acordo com a sua regra de aplicação”. E. Tugendhat: Logisch-Semantische Propedeutik, p. 235.
119
O sentido do termo geral, que – divergindo de Frege – podemos identificar com
o conceito por ele expresso deve ser então uma regra cuja aplicação a um objeto
depende da prévia aplicação de outra regra. A regra de aplicação do termo
predicativo é dependente e por isso incompleta, insaturada, pois ela demanda a
aplicação prévia da regra identificadora do termo singular para poder se aplicar.
É preciso em suficiente medida identificar aquilo de que falamos, em geral pelo
ato de identificar ou localizar no espaço e no tempo ao menos um certo objeto
particular, para então poder caracterizar. É preciso aplicar a regra que nos
permite, por exemplo, localizar espaço-temporalmente o animal chamado de
Bucéfalo para, com base nisso, aplicar-lhe regras de caracterização de termos
gerais como ‘...é um cavalo’, ‘...é branco’, ‘...é dócil’. E essa constatação vale
também para entidades abstratas. É preciso aplicar a regra que nos permite
identificar mentalmente o número 6 para podermos caracterizá-lo como sendo
um número par, aplicando-lhe a regra que o classifica como sendo divisível por
dois.
Seria uma objeção ingênua a de que afinal de contas é possível dizer “Aquilo
é um cavalo” ou “Lá está uma coisa branca” sem precisar identificar Bucéfalo.
Afinal, os termos singulares indexicais ‘aquilo’ e ‘lá’ já identificam algum
particular na forma de alguma coisa espaço-temporalmente localizável de modo
independente, explicitável por expressões como ‘aquele animal’, ‘aquele
objeto’, ‘aquele lugar’, isso já podendo bastar. Assim, não só a referência do
predicado é dependente, mas também o seu sentido. A relação de dependência
semântica – ao nível do sentido – espelha aqui a relação de dependência
ontológica – ao nível da referência.
7. O conceito de existência como metaregra
Nesse ponto podemos adicionar uma consideração especial sobre o conceito de
existência. Aprofundando um insight kantiano, Frege sugeriu que a existência é 120
uma propriedade (Eigenschaft) do conceito, diversamente de seus componentes
(Merkmale). Essa propriedade de existência é a do conceito não ser vazio, mas
satisfeito, preenchido.1 Considerando que um conceito de primeira ordem
preenchido é aquele sob o qual cai ao menos um objeto, podemos dizer que para
Frege a existência é a propriedade de um conceito de sob ele cair pelo menos
um objeto. A mesma idéia foi defendida por Russell na sugestão de que a
existência é a propriedade de uma função proposicional do tipo “Ex(...)” de ser
verdadeira para ao menos uma instância.2
Seguindo uma terminologia mais atual, tomemos como exemplo a frase geral
“Cavalos existem”.3 Essa frase se deixa analisar como:
Existe ao menos um x tal que x é um cavalo.
Essa frase contém dois componentes. Um deles é expresso pelo predicado
‘...é um cavalo’,
1 Ver Gottlob Frege: Die Grundlagen der Arithmetik (Felix Meiner Verlag: Hamburg 1986), sec. 53.2 Bertrand Russell: “The Philosophy of Logical Atomism”, pp. 232, 250-54. Essa posição sustentada por Russell e Frege é disputada por muitos filósofos contemporâneos, que preferem considerar a existência como uma predicação de primeira ordem. As razões aduzidas me parecem contornáveis. João Branquinho, por exemplo, sugere que só podemos analisar uma frase como (i) “Há coisas que não existem” se admitirmos que predicados de existência são de primeira ordem, enquanto quantificadores significam apenas uma atribuição de “ser” no sentido meinonguiano. Assim, a simbolização da frase (i) seria ∑x(~Ex), onde ∑ significa ‘há’ (ver “Existência”, in Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, eds. J. Branquinho, D. Murcho e N.G. Gomes, Martins Fontes: São Paulo 2006, p. 300). Mas a frase (i) também poderia ser analisada ao modo fregeano. Podemos traduzi-la como “Existem coisas na mente que não existem na realidade externa”. Nesse caso, sendo M = “...na mente” e R = “...na realidade externa”, parece que podemos simbolizar “Há coisas que não existem” como Ex((Mx) & ~Ex(Rx)). Essa discussão, porém, foge aos limites do presente texto. 3 Ver J.R. Searle: “The Unity of Proposition”, in Philosophy in a New Century (Cambridge University Press: Cambridge 2008), p. 176.
121
simbolicamente Cx (onde x está no lugar de ‘...’ e C no lugar de ‘é um cavalo’).
O outro componente é o predicado de existência, constituído pela frase aberta
‘Existe ao menos um... tal que...’,
simbolicamente Ex(...). Isso significa que a predicação de existência Ex(...) é
um conceito de conceito, um conceito de ordem superior, um metaconceito sob
o qual podem cair outros conceitos. A frase Ex(Cx) expressa, pois, um conceito
de segunda ordem aplicado a um conceito de primeira ordem. O que esse
conceito de ordem superior faz é, para Frege, dizer que ao menos um objeto cai
sob o conceito de primeira ordem, ou seja, atribuir a satisfação ou
preenchimento ou a aplicação desse conceito de primeira ordem a ao menos um
objeto. Quando dizemos que cavalos existem estamos aplicando um conceito de
segunda ordem, o conceito de aplicabilidade a ao menos uma propriedade
singularizada, a um conceito de primeira ordem que o satisfaz.
Essa mesma idéia pode ser estendida a afirmações de existência de
portadores de nomes próprios através da transformação dos últimos em
predicados, como acontece quando formalizamos “Sócrates existe” como “Ex(x
= Sócrates)”, o que conserva a unicidade do particular mas é inadequado por
razões formais, ou “Ex(x socratiza)”1, o qual é mais adequado formalmente mas
não conserva a unicidade do particular (várias coisas podem socratizar). A
dificuldade e estranheza dessa última fórmula pode ser em parte desfeita se
1 Se entendermos (i) “Ex(x = Sócrates)” como exprimindo uma relação de identidade entre x e Sócrates, estaremos diante de um problema insolúvel, pois não teremos mais como negar a existência. Considere, por exemplo, (ii) “~Ex Ex(x = Sócrates)”. Segundo o princípio da generalização existencial, os nomes podem ser nesse caso substituídos por variáveis. Nesse caso (ii) pode ser substituido por (iii): “~Ey Ex(x = y)”. Mas isso é o mesmo que dizer que algo que não existe, existe. Por isso, ao invés de (i) preferimos adotar (iv) “Ex(x socratiza)”, pois (iv) pode ser negado por (v) “~Ex Ex(x socratiza)”, sobre o que não podemos aplicar o princípio da generalização existencial.
122
substituirmos o verbo socratizar por descrições definidas, de modo que, para
ilustrar, tenhamos algo como:
Ex(x foi o inventor da maiêutica, x foi o mestre de Platão, x foi o marido de Xantipa etc.).
Uma vez feito isso podemos analisar as descrições definidas russellianamente,
valendo-nos apenas de predicados quantificados como na seguinte ilustração,
um pouco mais aprimorada:
Ex(x foi inventor da maiêutica e exatamente um x foi inventor da maiêutica, x foi mestre de Platão e exatamente um x foi mestre de Platão, x foi marido de Xantipa e exatamente um x foi marido de Xantipa etc.)
É verdade que essa espécie de explicação descritivista dos nomes próprios
encontra dificuldades nas objeções feitas por Kripke, Donnellan e outros à teoria
do feixe dos nomes próprios, a teoria segundo a qual nomes próprios são
abreviações de feixes de descrições definidas. Contudo, é preciso notar que,
diversamente de um preconceito corrente, essas objeções pouco afetam versões
mais sofisticadas da teoria descritivista, tendo sido em sua maior parte
respondidas por J.R. Searle.1 Além disso, a versão mais elaborada da teoria do
feixe que irei propor no capítulo 9 desse livro (que organiza o feixe através de
metadescrições e que incorpora os elementos positivos das próprias concepções
de Kripke) faz com que as mencionadas objeções à concepção fregeana da
existência fiquem completamente fora de lugar.2
1 Ver J.R. Searle: Intentionality (Cambridge University Press: Cambridge 1983), cap. 9. Ver também as avaliações de David Braun e Marga Reimer em seus respectivos artigos para a Stanford Encyclopedia of Philosophy (internet).2 A teoria defendida no capítulo 9 encontra-se sintéticamente exposta em C.F. Costa: “A Meta-Descriptivist Theory of Proper Names”, Ratio 24, 2011.
123
A grande vantagem da maneira de conceber a existência propugnada por
Frege é que não encontramos problemas com a negação da existência. Pois
suponha que a existência seja uma propriedade do objeto. Nesse caso não temos
mais como negar a existência! Se ao dizermos “Vulcano não existe” a negação
da existência é aplicada ao próprio objeto, temos primeiro de identificar o
objeto, para então podermos negar que ele possui a propriedade de existir. Mas
como ao identificarmos o objeto já estamos assumindo que ele existe, caímos
em contradição. Ou seja: temos de admitir que Vulcano existe para podermos
negar que ele existe, daí resultando a impossibilidade de negar a sua existência.
A concepção de Frege e Russell evita essa catástrofe. Pois tudo o que fazemos
ao negar a existência de Vulcano é admitir que o conceito de Vulcano não cai
no conceito de existência por não ser um conceito preenchido ou satisfeito ou
efetivamente aplicável. Substituindo o nome ‘Vulcano’ pelo predicado
‘vulcaniza’, a sentença fica sendo “~Ex (x vulcaniza)”, ou, na análise proposta
“~Ex(x é o planeta que orbita entre Mercúrio e o Sol)” ou, mais detalhadamente,
“~Ex (x é um planeta que orbita entre Mercúrio e o Sol e para qualquer y, se y
for um planeta que orbita entre Mercúrio e o Sol, y = x)...”
Podemos agora interpretar o próprio conceito fregeano de existência em
termos de regra conceitual. Admitindo – em desacordo com a terminologia
artificial de Frege – que aquilo que chamamos de conceitos são os sentidos dos
termos predicativos, e não as suas referências, e aceitando a venerável idéia
kantiana de que conceitos são regras, podemos agora parafrasear a noção
fregeana de existência como sendo a do preenchimento ou satisfação da regra
conceitual, a saber, da regra de aplicação do termo predicativo. Além disso,
considerando que o preenchimento ou satisfação de um conceito ou regra
conceitual nada mais é do que a sua aplicação à propriedade correspondente
singularizada em relação a ao menos um objeto particular, podemos também
dizer que a atribuição de existência nada mais é do que a atribuição de efetiva 124
aplicabilidade de uma regra conceitual a ao menos uma propriedade
singularizada (entendendo-se por ‘efetiva aplicabilidade’ aquela que não é
meramente hipotética, mas que possui certa duração no tempo, a duração da
existência da propriedade singularizada). Ou seja: o metaconceito de existência
é uma metaregra de aplicação aplicável a regras conceituais de caracterização e
o critério de aplicação dessa metaregra é a aplicabilidade da regra conceitual de
caracterização a qual ela se aplica. Essa aplicabilidade da regra conceitual de
ordem inferior é, por sua vez, aquilo que produz a verdade da frase aberta do
tipo Ex(...), a saber, a verdade da atribuição de existência pela satisfação do
conceito por algo que sob ele cai.
Com isso encontramos também uma maneira de explicar porque de algum
modo tudo existe. Embora a existência seja tipicamente atribuída a propriedades
e objetos do mundo real, a existência pode ser atribuída também a objetos
imaginários ou concebíveis ou até mesmo contraditórios. Até da própria
existência pode ser dito que ela existe. Ora, isso é assim porque as regras
conceituais podem ser aplicadas na imaginação ou em um mundo ficcional. A
Alice do conto “O mágico de Oz” não existe no mundo real; mas ela existe no
pequeno mundo ficcional construído nessa estória. Ela existe porque temos
regras para a sua identificação aplicáveis no mundo ficcional, no qual são de
fato aplicáveis, preenchidas, satisfeitas (ela é a menina de oito anos cuja casa foi
levada por um tufão, que encontrou amigos com os quais foi pedir ajuda ao
mágico etc.).
O caso da atribuição de existência a contradições como “o quadrado
redondo” já é mais difícil, pois não podemos construir uma regra de
identificação. Por isso faz sentido reconhecer que o quadrado redondo não
existe, no sentido de que não podemos construir uma regra para a sua
identificação, o que o torna um objeto impossível. Contudo, se tudo o que
queremos dizer é que podemos combinar sintáticamente os adjetivos quadrado e 125
redondo, a regra que permite essa aplicação é aplicável, donde o quadrado
redondo – nesse sentido irrelevante – existe. Mas nesse caso o que queremos
dizer é mais propriamente expresso pela frase metalingüística: “O ‘quadrado
redondo’ existe (como expressão gramaticalmente correta)”.
Finalmente, sabemos que a existência existe no sentido de que sabemos que a
aplicabilidade de regras conceituais existe. Ela existe no sentido de que podemos
construir uma metametaregra que se aplique a metaregras de existência, cujo
critério de aplicação é a aplicabilidade de regras conceituais de primeiro nível.
Como essas metaregras se aplicam (como as coisas existem), a metametaregra
que demanda a aplicabilidade das metaregras para se tornar aplicável a elas
também se aplica, o que nos permite seguramente concluir que a existência
existe.
8. Excurso especulativo (i): existência e experiência fenomenal
É instrutivo considerar o que acontece quando comparamos o famoso insight
fenomenalista de John Stuart Mill sobre a “matéria” ou “substância” e a
concepção de existência como aplicabilidade conceitual. Mill parte da admissão
de que tudo a que temos acesso para informar-nos sobre o mundo externo são
nossas próprias sensações, posto que nenhuma de nossas experiências é capaz de
transcender o assim chamado “véu das sensações”. Mas o mundo externo é
diferente das sensações por sua objetividade, que foi analisada pelo próprio
Frege em termos de sua experienciabilidade intersubjetiva, além de uma usual
permanência na independência da vontade. Entretanto, se tudo o que nos é dado
são fenômenos sensoriais, então como justificar o mundo externo, a matéria, a
substância? A resposta de Mill consiste em sugerir que embora a matéria ou
substância não seja constituída de sensações, ela não é mais do que a certificada,
garantida, permanente possibilidade de sensações. Diversamente das sensações,
as permanentes possibilidades de sensações são para Mill objetivas, uma vez 126
quem, embora diferentes sujeitos não possam ter acesso à mesma sensação, eles
podem ter acesso às mesmas possibilidades de sensação... Os seguintes extratos
de seu texto servem para esclarecer a sua tão sugestiva quanto controversa
idéia1:
A concepção que formo do mundo existente em qualquer momento compreende, juntamente com as sensações que estou sentindo, uma variedade incontável de possibilidades de sensação – notadamente, o todo daquelas que a observação passada me diz que eu poderia, sob quaisquer circunstâncias suponíveis, experienciar nesse momento (...). Minhas sensações presentes são geralmente de pouca importância e são, além do mais, fugazes; as possibilidades, ao contrário, são permanentes, sendo isso o que mais distingue a nossa idéia de substância ou matéria da nossa noção de sensação. (...) apesar das sensações cessarem, as possibilidades continuam existindo; elas são independentes da nossa vontade, da nossa presença e de tudo o que nos pertence. (...) Outras pessoas não têm nossas sensações exatamente quando e como as temos, mas têm nossas possibilidades de sensação. (...) As possibilidades permanentes são comuns tanto a nós quanto aos nossos semelhantes; as sensações reais não. (...) O mundo de sensações possíveis, que se sucedem umas às outras segundo leis, está tanto em outros seres quanto está em mim; tem portanto uma existência fora de mim; é um mundo exterior.
Em um ponto fundamental o texto é claramente equívoco. É compreensível a
posição idealista segundo a qual o mundo externo seria constituído de perceptos
cuja experiência é continuamente (permanentemente) possível, mesmo que não
atuais. Mas os objetos materiais constitutivos do mundo externo não podem ser
reduzidos à simples “possibilidade permanente de sensações”, uma vez que a
possibilidade enquanto tal, permanente ou não, é singular: ela é sempre uma
única e a mesma, enquanto as coisas que constituem o mundo são múltiplas e
diversificadas.
Ora, quando consideramos essa concepção de Mill à luz de nossa
interpretação do conceito de existência em Frege, vemos que aquilo que o 1 J.S. Mill: An Examination of Sir William Hamilton Philosophy (1865), cap. XI.
127
primeiro chama de permanente possibilidade de sensações tem a ver com a
existência dos objetos e não com eles próprios. Pois se precisamos de uma regra
conceitual para a identificação do objeto, dessa regra devem se derivar uma
multiplicidade de configurações constitutivas de critérios de aplicação, a serem
no final das contas dados como configurações de sensações ou perceptos. Ora,
se dizer que um objeto material existe é dizer que o seu conceito é aplicável,
então dizer que ele existe é também dizer que as configurações sensoriais que
temos ao experiênciá-lo são permanentemente, garantidamente presentificáveis
sempre que forem dadas as condições adequadas para a sua experiência. Se a
isso adicionarmos que o critério para que uma configuração criterial de
sensações possa ser interpretada como uma configuração objetiva de
propriedades criteriais constitutivas de um objeto externo é a garantida ou
permanente experienciabilidade dessas sensações usualmente aliada à
independência da vontade, então dizer que uma regra criterial é garantidamente
e continuamente aplicável é o mesmo que admitir a existência do objeto no
mundo externo. Falar da permanente ou garantida possibilidade de sensações
vem a dar no mesnmo que falar da existência das coisas empíricas – uma
existência que se demonstra através de atos verificacionais que nos certificam ou
garantem que as mesmas configurações criteriais poderão ser sempre
reexperienciadas, dando-nos a idéia da permanência das coisas no tempo
(existir, como notou Kant, é “ser no tempo”).
Isso nos faz ver que a existência não pode ser confundida com uma
aplicabilidade em princípio, meramente potencial, da regra conceitual. A regra
de identificação do homem das neves, por exemplo, se bem construída, é em
princípio aplicável, ela é potencialmente aplicável, embora a sua aplicação
nunca tenha sido e quase certamente nunca será confirmada. Ao atribuirmos
existência não estamos falando de uma aplicabilidade em princípio, mas da
aplicabilidade que de algum modo foi confirmada e que será inevitavelmente 128
encontrada por quem quer que, em circunstâncias adequadas, tente aplicar a
regra. Para designar esse tipo de aplicabilidade uso a expressão ‘efetiva
aplicabilidade’, querendo com isso ressaltar que ela não é casual, nem subjetiva,
nem esporádica, tendo sido verificacionalmente confirmada, direta ou
indiretamente. Essa efetiva aplicabilidade é também contínua ou permanente, no
sentido de que a qualquer momento que se pretenda aplicar a regra conceitual,
dadas as circunstâncias adequadas, ela se aplica (a efetiva aplicabilidade dura
enquando durar o objeto de sua aplicação, ou seja, dura o quanto ele puder ser
dito existente). Quando tomamos consciência de que algo existe, o que acontece
é que tomamos conhecimento de que a aplicabilidade da regra conceitual se
encontra garantida por experiências de sua aplicação, sejam elas quais forem.
Considere os exemplos. Se o sentido (conteúdo conceitual) do termo singular
‘Vênus’ é a sua regra de identificação, falar da existência do objeto referido pelo
nome ‘Vênus’ torna-se o mesmo que falar da efetiva aplicabilidade da regra de
identificação desse termo. A compreensão disso torna mais claro que a negação
da existência não é predicação de coisa alguma. Se digo: “Vulcano não existe”,
estou dizendo apenas que a regra criterial que constitui o conceito de Vulcano
não possui a propriedade de ser efetiva e continuadamente aplicável, posto que
até hoje, malgrado esforços, ninguém conseguiu aplicá-la.
Aqui poderia ser levantada a objeção de que nós antropomorfizamos a
existência ao fazê-la depender da existência de sujeitos epistêmicos. A isso
podemos responder primeiro que uma regra pode ser efetivamente e
continuamente aplicável na independência de sua aplicação ter sido
efetivamente realizada por qualquer um de nós. Ela pode ser garantidamente
aplicável mesmo antes de ter sido inventada ou aprendida, no sentido de que se
tal regra fosse apreendida ou inventada por algum sujeito cognitivo, ela se
demonstraria efetivamente e continuamente aplicável na independência de sua
vontade. O mesmo pode ser dito da existência. Em um mundo no qual não 129
existissem seres humanos capazes de identificar a estrela da manhã, ela nem por
isso deixaria de existir, e a razão pela qual dizemos isso é que sabemos que em
tal caso a regra para a sua identificação seria continua e efetivamente aplicável,
pois caso existisse algum ser cognoscitivo capaz de institui-la e aplicá-la e ele
decidisse tentar aplicá-la, ele seguramente seria bem sucedido! Ou seja: uma
coisa existe se e somente se, no caso de existir uma regra para a sua
identificação, essa regra for efetivamente aplicável no tempo de duração dessa
coisa, o que não depende nem da existência concreta da regra em alguma mente,
nem de sua aplicação por nós. Esse argumento ratifica a idéia de que o existir de
uma coisa não consiste em suas propriedades singulares (como as do sol de ser
redondo e luminoso), mas no fato de o seu conceito ser satisfeito, que é o fato de
a regra de aplicação do termo geral ser efetiva e continuamente aplicável.
Pode-se também objetar que se a existência pertence ao conceito, se ela é
uma propriedade de uma regra, então parece que ela teria a ver tão somente com
a linguagem e estados psicológicos que a instanciam e não com as entidades que
constituem o mundo objetivo... mas que isso soa estranho, pois a existência
parece ter a ver com a realidade objetiva pertencente às próprias coisas, como o
fato de aquilo que existe “estar sendo dado no mundo”. A resposta é que assim
como dizer que um objeto existe é dizer que o seu conceito tem a propriedade de
ser satisfeito, dizer que um objeto existe é dizer que ele mesmo tem a
propriedade de cair sob o seu conceito. Em nossos termos: se dizer que um
objeto existe é dizer que a regra de aplicação de seu conceito é a ele
efetivamente aplicável, então dizer que esse mesmo objeto existe é dizer que ele
é tal que possui a propriedade de ter a regra de aplicação constitutiva de seu
conceito efetivamente aplicável a si mesmo. Com isso conferimos à existência a
espécie de objetividade que de direito lhe pertence, pois mostramos em que
consiste o “estar sendo dado no mundo” daquilo que existe, que nada mais é do
130
que ter a propriedade de ser objeto de efetiva aplicação de uma regra conceitual
virtualmente existente.
O paralelo entre o conceito de existência em Frege e o de existência em nossa
reconstrução do sentido como regra é rigoroso:
Conceito de existência (Frege) =Um conceito de segunda ordem que para a sua satisfação demanda que o conceito de primeira ordem que sob ele cai seja satisfeito por ao menos um objeto.
Conceito de existência (reconstruído) =Uma regra conceitual de segunda ordem que para a sua aplicação demanda que a regra conceitual-criterial de primeira ordem seja efetivamente aplicável a pelo menos um objeto.
A vantagem dessa última forma de análise é epistemológica: somos capazes
de melhor perscrutar a natureza de nossas atribuições de existência se pudermos
investigar as regras conceituais em termos das configurações criteriais que as
satisfazem a ponto de permitir a sua efetiva aplicação.
9. Excurso especulativo (ii): existência e objetualidade fenomenal
Mas se o discurso sobre as permanentes possibilidades de sensação não é
caracterizador dos objetos materiais, mas de sua existência, pode ainda o
fenomenalista parafrasear o que entendemos por objetos materiais? Pode nossa
paráfrase da existência como aplicabilidade da regra conceitual ser de algum
auxílio para o fenomenalista?
Sobre essa questão quero fazer um segundo e ainda mais especulativo
excurso, que foge ao nosso presente questionamento e para ser satisfatoriamente
desenvolvido demandaria uma detalhada investigação em filosofia da percepção.
Primeiro parece-me haver uma razão muito forte a favor do fenomenalismo que
é a seguinte. Imagine que no futuro sejam desenvolvidas muito boas máquinas 131
produtoras de realidade virtual. Uma pessoa entra em uma dessas máquinas e
todos os seus sentidos passam a ser alimentados por estímulos vindo de
computadores fazendo-a, por exemplo, ter a ilusão sensorial de que se encontra
em uma cidade da China nos tempos de Gengis-Kahn. Essa sugestão nada tem
de impensável ou impossível. Mas ela se torna perturbadora quando
consideramos que não parece haver nada que nos permita distinguir o nosso
mundo presente de um mundo de aparências produzidas em nossos cérebros.
Tudo o que nos é dado à experiência são, com efeito, grupamentos mutáveis de
sensações dos mais variados tipos. A própria causalidade não precisa ir além
disso; afinal, ela também pode ser mimetizada no mundo virtual, pois quando
observamos um objeto causar um efeito em outro, tudo o que nos é dado são
complexos grupamentos de sensações que se sucedem entre si.1
Minha sugestão para tratar desse problema consiste em remontar ao ponto de
vista já apresentado, segundo o qual a existência do objeto é a efetiva e contínua
possibilidade de experienciarmos configurações de dados sensíveis que atuam
como critérios para aplicação de regras cognitivo-conceituais. Mas se a
existência do objeto é a efetiva aplicabilidade da sua regra de identificação, ou
seja, a efetiva possibilidade de satisfação de modos de apresentação sensoriais
unidos por alguma regra, então (ao menos para nós) o próprio objeto existente
nada mais deve ser além de conjuntos de propriedades particularizadas (tropos)
que satisfazem configurações criteriais constitutivas da multiplicidade de modos
de apresentação do objeto (sentidos), conquanto sejam considerados sob o ponto
de vista de sua contínua possibilidade de satisfação. Essa solução, que retoma de
modo corrigido o insight de Mill, a ele adiciona, como unificador das
configurações sensoriais, uma regra cognitivo-conceitual.
Restringindo-nos a objetos particulares, chegamos a algumas caraterizações
iniciais. A primeira delas é a do objeto pensado ou concebido:
1 Cf. Alan Ryan, The Philosophy of John Stuart Mill, p. 96.132
1. Objeto concebido = conjunto meramente concebido de configurações criteriais constitutivas de modos de apresentação (sentidos) unificáveis pela regra de identificação do objeto pelo termo singular.
A segunda caracterização é a da existência do objeto:
2. Existência do objeto = efetiva aplicabilidade da regra de identificação do objeto por um termo singular através da satisfação de configurações criteriais constitutivas de modos de apresentação (sentidos) por ela unificáveis.
A terceira caracterização, que decorre das anteriores, é a de objeto existente,
a referência do termo singular:
3. Objeto existente (“ser”) = conjunto das configurações criteriais constitutivas de modos de apresentação (sentidos) unificáveis pela regra de identificação do objeto pelo termo singular, a qual se demonstra efetivamente aplicável.
Note-se que quando falamos do objeto existente, não estamos apenas falando
dos modos de apresentação conhecidos, que sabemos que são satisfeitos, mas
também de modos de apresentação desconhecidos, a serem descobertos, mas que
ainda assim sabemos serem unificáveis pela regra.
Comprometer-nos-ia essa posição com o idealismo ou com alguma forma de
anti-realismo? Espero que não. Embora os feixes de propriedades criteriais
geralmente só nos possam ser apresentados como sensações, elas são peculiares:
(i) elas são dados sensíveis considerados como efetivamente e continuadamente
experienciáveis; sabemos que essas sensações são efetiva e continuamente
experienciáveis com base na garantia oferecida por experiências verificacionais
virtualmente intersubjetivas, ou ao menos através de inferências baseadas em
outras experiências verificacionais também virtualmente intersubjetivas... Além 133
disso, (ii) esses dados sensíveis são experienciáveis em circunstâncias
específicas que podem ser pré-determinadas; nessas circunstâncias eles são
experienciados em sua relação com outros objetos, os quais são situados em um
espaço físico intersubjetivo e não em um espaço psicológico subjetivo. A
hipótese é a de que uma vez satisfeitas condições como essas as configurações
de dados sensíveis que satisfazem a efetiva aplicabilidade da regra conceitual
podem passar a ser interpretadas de modo fisicalista, como configurações de
propriedades singularizadas, a saber, configurações de tropos, pertencentes ao
mundo externo e capazes de constituir os próprios objetos materiais. Essa
hipótese está em conformidade com a sugestão de Frege de que a referência não
pode nos ser dada sem o sentido: não podemos ter qualquer idéia do objeto
independentemente de seus modos de apresentação cognitivos, de seus sentidos
– não podemos falar da Lua, por exemplo, sem caírmos numa exposição de
modos de apresentação.
Resumindo: segundo a maneira de ver recém-aventada, o objeto pensado
seria um conjunto de sentidos, de modos de apresentação meramente
concebidos, contendo critérios de identificação sensoriais exprimíveis por um
termo singular, os quais são constitutivos da regra de identificação que os
unifica. Já o objeto existente é um conjunto de tropos resultantes de uma
interpretação fisicalista dos dados sensíveis formadores de uma multiplicidade
de configurações criteriais concebidas como efetivamente dadas, as quais
instituem modos de apresentação expressos pelo termo singular e unidos por
uma regra de identificação que é garantidamente e continuamente aplicável. A
objetividade do objeto somente é garantida pelo fato de os dados sensíveis por
nós experienciados serem pensados como capazes de ser em princípio
efetivamente, continuamente capazes de experienciação intersubjetiva.
10. Referência da frase como o fato134
Voltando a Frege, passemos agora à referência da frase. Ele a entende como
devendo ser aquilo que permanece o mesmo quando mudamos o sentido dos
componentes da frase sem alterar a sua referência. Isso acontece quando
substituímos “A estrela da manhã é iluminada pelo sol” por “A estrela da tarde é
iluminada pelo sol”; aqui as referências dos componentes permanecem as
mesmas. Logo, a referência da frase também deve permanecer a mesma. Mas o
que não se alterou? A resposta de Frege é: o valor-verdade. Ambas as frases
permanecem verdadeiras. Disso ele conclui que ao menos na linguagem
extensional a referência das frases é o seu valor-verdade. Em adição a isso Frege
nota que a busca da verdade é o que nos leva do sentido para a referência. E o
valor-verdade é certamente da maior importância (Bedeutung) para a lógica, por
ser aquilo que deve ser preservado em argumentos válidos.
Não obstante, independentemente de qualquer vantagem teórica que essa
sugestão possa trazer, ela é profundamente implausível. A conseqüência anti-
intuitiva óbvia de se supor que a referência da frase seja o seu valor-verdade é
que todas as frases verdadeiras passam a ter a mesma referência, que é o
Verdadeiro (das Wahre), enquanto todas as frases falsas passam a ter como
referência o Falso (das Falsche). Contudo, é completamente contra-intuitivo que
frases que nada têm em comum, como “2 + 2 = 4” e “Napoleão nasceu na
Córsega” tenham a mesma referência; tão contra-intuitivo quanto a sugestão de
que uma frase como “2 + 2 = 4 é o mesmo que Napoleão nasceu na Córsega”,
por conter duas frases referindo-se ao verdadeiro, seja verdadeira. Além disso, a
referência da frase, que deveria pertencer ao mesmo domínio ontológico da
referência dos seus componentes, passa usualmente para outro domínio:
enquanto a referência do nome ‘Napoleão’ é o próprio Napoleão de carne e osso,
a referência de “Napoleão nasceu na Córsega” é o objeto abstrato o Verdadeiro.
Por fim, mesmo sob a perspectiva da semântica fregeana essa idéia é
inadequada, pois viola o princípio da composicionalidade: a referência da frase, 135
sendo o seu valor-verdade, não pode ser constituída da referência de suas partes,
pois o valor-verdade não tem partes.1
Esse resultado é tanto menos aceitável por existir uma alternativa muito mais
intuitiva à mão, a qual, como notou Anthony Kenny, não chegou a ser sequer
aventada por Frege.2 Podemos, como Wittgenstein, Russell e outros fizeram,
admitir que a referência de uma frase possa ser o fato verificador, que como já
vimos tanto pode ser estático (situação, estado de coisas...) como dinâmico
(evento, processo, acontecimento...). Assim, a referência das frases “A torre
Eiffel é de metal” ou “Amanhã irá chover” ou “A soma dos ângulos de um
triângulo é 180º” são fatos que verificam o que nelas é pensado. Como o próprio
Kenny reconhece, essa alternativa envolve grandes dificuldades e carece de
desenvolvimento adequado.3 A sua dificuldade, porém, não pode ser razão para
que ela seja precipitadamente rejeitada.
1 Frege reconhece isso em Frege’s Lectures on Logic: Carnap’s Jena Notes, 1910-1914, p. 87.2 Anthony Kenny: Frege: An Introduction to the Founder of Analytic Philosophy, p. 133.3 Uma conhecida mas a meu ver irrelevante dificuldade com a identificação da referência da frase com o fato foi encontrada pelo fregeano Alonzo Church. Trata-se do curioso argumento do estilingue, destinado a provar que a referência das frases mais diversas é o seu valor-verdade. Considere as seguintes frases: (1) Sir Walter Scott é o autor de Waverley; (2) Sir Walter Scott é o homem que escreveu as 29 novelas de Waverley; (3) O número que é tal que Walter Scott é o homem que escreveu esse número de novelas de Waverley é 29; (4) O número de condados em Utah é 29. Assumindo a plausibilidade de que (2) e (3) sejam frases, se não sinônimas, ao menos co-referenciais, então (1) tem a mesma referência que (4). Como (1) diz respeito a um fato completamente diferente de (4), parece que a única coisa que resta como referência é a verdade de ambas as frases... O problema com esse argumento é que (2) e (3) não parecem ser nem frases sinônimas nem co-referenciais, pois a frase (2) é sobre Sir Walter Scott (que tem a propriedade de ser o autor de Waverley), enquanto a frase (3) é sobre o número 29 (que tem a propriedade de se instanciar no número de novelas de Waverley escritas por Sir Walter Scott). Mais além, o fato referido por (2) é o de que Walter Scott escreveu as novelas de Waverley, enquanto o fato referido por (3) é o de que o número 29 tem a propriedade de se instanciar como o número de novelas de Waverley. Embora tendo algo em comum, esses fratos parecem ser diferentes. Que referências diferentes tenham algo em comum não deve servir de álibi para a adoção da idéia de que a referência deva ser a mesma.
136
Uma dificuldade com essa idéia relacionada à semântica fregeana é que
podemos ter uma variedade de frases exprimindo pensamentos diferentes, mas
referentes a um mesmo fato. Considere primeiramente as duas seguintes frases
predicativas:
1. A Lua é branca. 2. A Lua reflete todos os comprimentos de onda
As expressões predicativas dessas duas frases, eu diria, têm a mesma
referência, que é a propriedade singularizada da brancura da lua. Mas elas
diferem no sentido. Contudo, como tanto o nome como os predicados têm as
mesmas referências, parece que elas devem se referir ao mesmo fato. Quero
chamar a esse fato que pode ser referido de várias maneiras de fato
fundamentador. O problema é: que fato é esse? Haverá uma forma lingüística
standard de nos referirmos a ele? No caso em questão eu preferiria considerar a
frase (1) como exprimindo o fato fundamentador, pois sem a definição
fenomenal do conceito de brancura não seria possível definir o que é a brancura
de um objeto em termos físicos. Assim, (2) se refere ao mesmo fato que (1)
porque a frase “Um objeto é branco é o mesmo que um objeto que todos os
comprimentos de onda do aspectro visível”. Assim, podemos fazer o raciocínio:
1. A Lua é branca.2. A Lua é um objeto3. Um objeto é branco = um objeto que reflete todos os comprimentos de
onda.4. (1,2,3) A lua reflete todos os comprimentos de onda.
Esse é, porém, um exemplo dentre muitos outros. Considere agora as seguintes
frases de identidade:
137
Exemplo I:
1. A estrela da manhã é a estrela da manhã,2. A estrela da manhã é a estrela da tarde,3. A estrela da manhã é Vênus,4. Vênus é o segundo planeta a orbitar o sol,5. A estrela da manhã é o segundo planeta a orbitar o sol.
precisam designar um mesmo fato. Qual seria aqui a descrição privilegiada do
fato fundamentador que ultimadamente verifica os pensamentos expressos por
todas essas frases, além dos pensamentos expressos por um número
indeterminado de outras frases de identidade que podem ser produzidas acerca
de Vênus? Minha sugestão meramente conjectural é a de que essa tarefa pode
ser realizada por frases de identidade entre nomes próprios. Admitindo por
hipótese que seja correta, em sua intuição fundamental, a teoria dos nomes
próprios como abreviações de feixes de descrições supostamente sugerida por
Frege, então o nome próprio ‘Vênus’ abrevia em seu sentido modos de
apresentações exprimíveis através de descrições como ‘a estrela da manhã’, ‘a
estrela da tarde’, ‘o segundo planeta a orbitar o sol’ etc. Ora, nesse caso a frase
“Vênus é (o mesmo que) Vênus” seria capaz de descrever o fato fundamentador
das verificações das frases de 1 a 4 e outras mais. Por exemplo: se o nome
‘Vênus’ abrevia as descrições ‘a estrela da manhã’ e ‘a estrela da tarde’, de
“Vênus é Vênus” podemos derivar a frase 2 e mesmo todas as outras.
Essa possibilidade parece confirmar-se com exemplos da matemática.
Considere as identidades:
Exemplo II:
1. 3 + 1 = 3 + 1,2. 3 + 1 = 2 + 2,3. 2 + 2 = 4,4. 4 = √16,5. √16 = 3 + 1.
138
As expressões numéricas de cada lado dessas igualdades são termos
singulares referindo-se a um único número, o número quatro. Se admitirmos a
teoria do feixe então o nome próprio privilegiado para todas essas descrições é
‘4’, pois esse nome pode ser entendido como abreviando as outras descrições.
Assim, considerando que o nome ‘4’ inclui os modos de apresentação, podemos
de “4 = 4” derivar a frase “√16 = 3 + 1”, o mesmo procedimento podendo ser
aplicado às outras frases. Certamente, é preciso pressupor um hoje questionável
descritivismo sobre nomes, mas essa dificuldade será sanada mais tarde nesse
livro, quando uma forma articulada de descritivismo causal for desenvolvida.
Finalmente, essa estratégia deveria ser complementada pela distinção entre o
fato fundamentador e as configurações criteriais que objetivamente verificam os
pensamentos expressos pelas frases dos exemplos I e dos exemplos II, as quais
podem ser consideradas subfatos. Assim, para além dos sentidos como regras de
identificação, parece que o fato de a estrela da manhã ser a estrela da tarde seria
um subfato do fato de Vênus ser Vênus. Similarmente, o fato de que 2 + 2 = 4
seria um subfato do fato de que 4 = 4. Nesse caso, cada frase de identidade
contendo descrições definidas diferentes terá uma sub-referência em um subfato
diferente, que será aquilo que satisfaz ou preenche o modo de apresentação da
referência que unifica essas diversas frases de identidade concernentes ao
mesmo objeto, que é o fato fundamentador da verificação. Obviamente, essas
considerações demandam desenvolvimento. Queria apenas demonstrar que a
questão está longe de ser destituída de esperança.
11. O sentido da frase como o pensamento
Voltando a Frege, passemos agora às frases (Sätze). Aqui ele fez uma
constatação definitiva, qual seja, a de que o sentido da frase completa é o
pensamento (Gedanke) por ela expresso. Ele chega a esse resultado pela 139
aplicação do seu princípio da composicionalidade, demandando que o sentido de
uma expressão complexa seja formado pelos sentidos de suas expressões
componentes apresentadas em certa ordem. Se, por exemplo, na frase “A estrela
da manhã é um planeta” substituirmos a expressão ‘a estrela da manhã’ por ‘a
estrela da tarde’, que é co-referencial, mas de sentido diverso, a referência da
frase não pode mudar, mas muda o sentido, e muda, sem dúvida, o pensamento
por ela veiculado. Como o pensamento é aquilo que se modifica quando um
componente da frase é substituído por um outro componente co-referencial mas
com sentido diverso, Frege concluiu muito coerentemente que o pensamento é o
sentido da frase.
A palavra ‘pensamento’ é ambígua. Ela também pode ser usada para designar
um processo psicológico de pensar, como na frase “Estava agora mesmo
pensando em você!” Mas ela também parece designar algo que independe de
ocorrências mentais particulares, um conteúdo de pensamento como o expresso
pelo proferimento “O pensamento expresso pela frase 12 x 12 = 144 é
verdadeiro”. Frege tinha esse último sentido em mente. Nesse sentido a palavra
‘pensamento’ é o único correspondente na linguagem natural a termos técnicos
denotadores daquilo que a frase diz, como ‘proposição’, ‘conteúdo
proposicional’ ou ‘conteúdo enunciativo’, razão pela qual a adotarei aqui.1
Para Frege faz parte do pensamento tudo o que contribui para a determinação
do valor-verdade da frase. Por isso as frases “A estrela da manhã é Vênus” e “A
estrela da tarde é Vênus” podem ser contadas como exprimindo pensamentos
diferentes: os termos singulares que compõem essas duas frases de identidade
referem-se ao mesmo planeta, mas por modos de apresentação diferentes, por
diferentes caminhos determinadores do seu valor-verdade, ou ainda, por
diferentes regras de identificação constitutivas dos seus procedimentos 1 Como nota Tyler Burge em “Sinning against Frege”, “a palavra ‘pensamento’ é o melhor substituto de ‘proposição’ por sua naturalidade semântica dentro do escopo apropriado à filosofia linguística”, pp. 227-8.
140
verificacionais. (Já segundo Frege as sentenças “Alfredo não chegou” e
“Alfredo ainda não chegou” expressam o mesmo pensamento, pois o advérbio
‘ainda’ exprime apenas uma expectativa sobre a chegada de Alfredo, não
contribuindo para o valor-verdade.1)
12. O pensamento como o portador da verdade
Outra sugestão fregeana bastante plausível é a de que o portador da verdade não
é a frase, mas o pensamento. Para Frege aquilo que dizemos ser verdadeiro (ou
falso) deve ser sempre verdadeiro (ou falso) e só o pensamento, sendo imutável,
possui a estabilidade requerida. Eis como pode ser argumentado: Frases
idênticas exprimindo pensamentos diferentes podem possuir diferentes valores-
verdade; esse é o caso da frase indexical “Sinto dores”, cujo pensamento se
altera com o falante. E frases diferentes exprimindo o mesmo pensamento, como
“It rains” e “Il pleut”, se proferidas no mesmo contexto, devem ter o mesmo
valor-verdade. Assim, na relação entre pensamento e valor-verdade há uma co-
variância que falta à relação entre frases e valor-verdade, o que nos leva à
conclusão de que o portador da verdade é o pensamento e não a frase.2
Frege também sugeriu que aquilo que chamamos de fato é o pensamento
verdadeiro, pois quando o cientista descobre um pensamento verdadeiro ele diz
que descobriu um fato.3 Mas essa conclusão nada tem de forçosa, pois o cientista
também poderá dizer a mesma coisa – e com mais propriedade – entendendo por
fato aquilo que corresponde ao seu pensamento verdadeiro; afinal, é intuitivo
pensar que se ele descobre o pensamento verdadeiro é porque a fortiori ele
descobriu o fato que lhe é correspondente. A razão pela qual Frege pensava que
o fato é o pensamento verdadeiro repousa, aliás, em sua adoção da concepção da
verdade como redundância. A mais natural e plausível concepção de verdade, 1 G. Frege: “Der Gedanke”, p. 64 (paginação original).2 Ver C.F. Costa: “O verdadeiro portador da verdade“.3 Gottlob Frege: “Der Gedanke”, p. 74.
141
porém, é a correspondencial, que sugere que fatos são complexos de elementos
objetivos, de algum modo isomórficos aos pensamentos que visam representá-
los.1 No que se segue pretendo completar minha leitura dos sentidos fregeanos
como regras semântico-cognitivas sob a perspectiva de quem prefere adotar a
teoria correspondencial da verdade.
13. O pensamento como a regra de verificação
Também os pensamentos podem ser parafraseados em termos de regras
semânticas. Como vimos ao examinarmos a semântica wittgensteiniana, o
sentido epistêmico da frase é a sua regra de verificação. Ora, se o sentido da
frase é o pensamento por ela expresso, então esse pensamento deve ser a própria
regra de verificação da frase. Como o sentido da frase é uma combinação de
regras semântico-cognitivas, o mesmo se pode dizer do pensamento, que no
caso da frase predicativa singular nada mais é do que a combinação da regra de
identificação do objeto (sentido do termo singular) com a regra de aplicação do
predicado (sentido do termo geral).
A identificação que especulativamente proponho entre sentido-pensamento e
regra de verificação da frase reforça-se pela sugestão fregeana de que o critério
para identificarmos aquilo que pertence ao pensamento é ter algum papel no
estabelecimento de sua verdade. Sendo assim, então o sentido-pensamento da
frase é o mesmo que o significado epistêmico identificado pelo verificacionista
com a regra (procedimento, método) que permite o reconhecimento da verdade
da frase, o que costuma redundar, como mostrou Wittgenstein, em um
ramificado de procedimentos verificacionais possíveis. Ora, se o pensamento é o
portador da verdade e ele é a regra de verificação, então é a própria regra de
verificação que é o portador da verdade (não em casos concretos de sua
aplicação, obviamente, mas na abstração deles). E como o que torna o
1 Ver C.F. Costa: “A verdadeira teoria da verdade”.142
pensamento verdadeiro (assumindo a teoria correspondencial) é a sua
correspondência com o fato, o que torna a regra de verificação verdadeira deve
ser a correspondência das configurações criteriais por ela demandadas com
aquilo que às satisfaz e, em última análise, com o fato (ou os fatos) no mundo.
Mas isso é o mesmo que dizer que a regra de verificação é verdadeira quando
ela é satisfeita ou preenchida, melhor dizendo, quando ela é efetivamente e
continuamente aplicável. Assim, o pensamento será considerado verdadeiro
quando a regra de verificação que o constitui se demonstrar aplicável; e ele será
considerado falso quando a regra de verificação que o constitui não se
demonstrar aplicável. Daí que a efetiva aplicabilidade da regra de verificação
deve ser o mesmo que a verdade do pensamento, enquanto a sua efetiva
inaplicabilidade deve ser o mesmo que a sua falsidade. E o fato, sob esse
entendimento, não deixa de ser uma combinação de elementos por nós aceita
como sendo dada como certa, de um modo ou de outro. Por sua vez, tal
combinação deveria satisfazer a regra verificacional quando ela satisfaz ou
preenche as combinações de configurações criteriais demandadas pela regra
verificacional para que ela possa se demonstrar efetivamente aplicável no
sentido de corresponder a elas. O que chamamos de juízo, por sua vez, é o
reconhecimento que o sujeito epistêmico faz da efetiva aplicabilidade da regra
verificacional, de que a verificação de algum modo foi realizada, garantindo a
aplicabilidade. Por isso dizer “É verdade que p”, “Eu ajuízo que p” ou “Eu
afirmo que p” são coisas similares.
Essas admissões são reconhecidamente conjecturais. Elas sugerem, porém,
um secreto parentesco entre os conceitos de verdade e existência. Pois o
conceito de verdade aplicado ao conteúdo de pensamento se demonstra análogo
ao conceito de existência aplicado ao conceito-sentido do termo geral e do termo
singular. Considere: a verdade é a efetiva aplicabilidade da regra verificacional
constitutiva de um conteúdo de pensamento, enquanto a existência é a efetiva 143
aplicabilidade da regra de aplicação ou identificação constitutiva de um
conteúdo conceitual. Em outras palavras: assim como a existência é a
propriedade de segunda ordem do conceito de sob ele cair um objeto, a verdade
deve ser a propriedade de segunda ordem do pensamento de sob ele “cair” o fato
que lhe corresponde. Ela é, pois, o correspondente da existência ao nível da
combinação de sentidos que constitui o pensamento. Ou ainda, expressando-nos
de um modo um tanto quanto hegeliano: a verdade é a existência do
pensamento, enquanto a existência é a verdade do conceito.
A essa consideração pode ser finalmente oposto que podemos dizer de um
fato que ele existe e que isso não é o mesmo que dizer de seu pensamento que
ele é verdadeiro. Afinal, se a verdade fosse o correspondente da existência ao
nível do fato, dizer que o fato existe seria o mesmo que dizer que o fato é
verdadeiro, embora possamos dizer que o objeto existe. A resposta que posso
dar a essa objeção repousa na constatação da flexibilidade e mesmo
rusticalidade da linguagem natural: ela nos permite dizer “Esse fato é
verdadeiro” no mesmo sentido de “Esse fato existe”, querendo dizer com isso
que o seu pensamento tem a propriedade de ser verdadeiro, que a sua regra de
verificação é satisfeita.
14. Pensamento e condição de verdade
É preciso também considerar a ligação entre o pensamento como regra de
verificação e aquilo que tem sido chamado de condição de verdade. A noção de
condição de verdade, como a de critério, é ambígua: ela pode ser parte da regra
verificacional que constitui o pensamento e que, se demonstrada efetivamente
aplicável, nos permite reconhecê-lo como verdadeiro. Mas ela também pode ser
aquilo que está no mundo e que satisfaz essa regra de modo a tornar o
pensamento verdadeiro. Nesse último caso ela é aquilo mesmo que torna o
pensamento verdadeiro. Assim, a condição de verdade para o pensamento 144
expresso pela frase “Cambridge ganhou a corrida de botes” é o fato de
Cambridge ter ganhado a corrida de botes (ver exemplo da seção 11 do capítulo
anterior). Quando essa condição é dada, o pensamento reconhecido como
verdadeiro, a regra verificacional que o constitui é reconhecida como
efetivamente aplicável; quando essa condição não é dada o pensamento é
reconhecido como falso e a regra verificacional que o constitui é reconhecida
como efetivamente inaplicável. Quando a condição de verdade é dada, a própria
condição é um fato real; quando ela não é dada, ela é apenas um fato possível.
Há aqui uma distinção a ser feita entre a condição de verdade, o fato
verificador, e os critérios secundários que nos permitem inferir a verdade da
frase. Considere, por exemplo, a condição de verdade para a minha constatação
de que hoje é feriado. Essa condição é um fato institucional: o fato de que o
governo decretou feriado no dia de hoje. Mas eu posso vir a saber desse fato
com base em diferentes configurações criteriais, por exemplo, porque notei que
as lojas estão fechadas, porque há pouco movimento na free-way, porque
consultei o calendário... Esses critérios não são a condição de verdade, mas me
permitem inferir que ela está sendo dada como um estado de coisas no mundo.
Parece, pois, que aquilo que chamamos de a condição de verdade pode ser
entendido como um fato responsável pela satisfação de uma variedade de regras
criteriais secundárias. As diversas configurações criteriais exigidas atuam, pois,
como condições mais específicas para a constatação da verdade.
15. O status ontológico do pensamento
Antes de terminarmos é importante notar que para Frege os pensamentos
(incluindo os sentidos dos quais são compostos) seriam entidades platônicas
pertencentes a um terceiro reino ontológico, que não é nem psicológico nem
físico. Para ele há, primeiro, um reino de entidades físicas, como os objetos
concretos, que são objetivas. Elas são objetivas no sentido de serem 145
interpessoalmente acessíveis e independentes da vontade: e são reais no sentido
de estarem situadas no espaço e no tempo. Há um segundo reino, das entidades
psicológicas, dos estados mentais que ele chama de representações
(Vorstellungen). Essas últimas são subjetivas, por não serem interpessoalmente
acessíveis e geralmente vezes dependerem da vontade. Contudo, nem por isso
elas deixam de ser reais, pois se encontram no espaço e no tempo, a saber, nas
cabeças dos que as têm. Há, por fim, um terceiro reino, dos pensamentos e dos
seus sentidos constitutivos. Esse reino é objetivo, posto que os pensamentos são
interpessoalmente acessíveis; mesmo assim ele não é real, posto que os
pensamentos não estão nem no espaço nem no tempo.
Com efeito, para Frege os pensamentos são atemporais, imutáveis, para
sempre verdadeiros ou falsos, além de não serem criados, mas descobertos por
nós. A razão que ele tem para introduzir esse terceiro reino de pensamentos é
que eles precisam ser objetivos – intersubjetivamente acessíveis – para serem
comunicáveis. Representações são, ao contrário, estados psicológicos subjetivos,
contingentes, variáveis. Por isso a única maneira de explicar como é possível
que sejamos capazes de compartilhar de um mesmo pensamento é distingui-lo
rigorosamente das representações psicológicas. Afora isso, é sempre possível
objetar que se os pensamentos estiverem no nível das representações
psicológicas, eles poderão sofrer variações de pessoa para pessoa (como o
variável sentimento que uma melodia desperta em pessoas diferentes); nesse
caso eles também não parecem possuir a estabilidade requerida ao papel de
portadores da verdade.
Apesar disso, muito poucos hoje aceitariam a solução platonista de Frege.
Afinal, ela parece comprometer-nos com uma duplicação dos mundos (o mundo
visível e o mundo inteligível) e com as demais dificuldades do platonismo. O
preço que Frege estava disposto a pagar para não se incorrer no subjetivismo
psicologista parece-nos alto demais.146
Acredito que as dificuldades antevista por Frege na sugestão de que o status
ontológico dos pensamentos seja meramente psicológico eram exageradas e que
não é difícil garantir a objetividade, a invariabilidade e a estabilidade dos
pensamentos psicologicamente concebidos. Para demonstrá-lo quero aplicar
uma estratégia muito simples, inspirada no particularismo ontológico dos
filósofos do empirismo inglês, de Locke a Hume, segundo o qual o universal
não existia para além da similaridade com uma idéia mental.1 Ora, chamando o
pensamento no sentido fregeano de pensamento-f, e chamando o pensamento
como mera ocorrência psicológica de pensamento-p, penso que podemos
garantir a invariabilidade e a estabilidade do pensamento-f sem hipostasiá-lo
como uma entidade platônica e mesmo sem recorrer a conjuntos de
pensamentos-p. Isso é possível através da seguinte definição:
Um pensamento-f X (Df.p) = um dado pensamento-p X instanciado em alguma mente ou algum outro pensamento-p Y qualquer igual a X, instanciado na mesma mente ou em alguma outra mente qualquer.2
Exemplificando: o pensamento-f de que a torre Eiffel é feita de metal pode
ser o pensamento-p que eu tenho em mente ao escrever essa frase ou, digamos, o
pensamento-p que você tem em mente ao lê-la, posto que eles são iguais.
Caracterizado pela disjunção entre pensamentos iguais instanciados em uma
1 Mesmo sem aceitar o imagismo de Berkeley, a idéia é exemplarmente expressa na seguinte passagem: “...uma idéia, que se considerada em si mesma é particular, torna-se geral ao ser feita para representar ou estar no lugar de todas as outras idéias particulares do mesmo tipo. (...) uma linha particular torna-se geral por ser tornada um signo, de modo que o nome linha, que considerado absolutamente é particular, ao ser um signo é tornado geral”. G. Berkeley: Principles of Human Knowledge, introdução, seção 12. Ver também David Hume: A Treatise of Human Nature, livro I, parte 1, seção VII.2 Ver C.F. Costa: Estudos Filosóficos, p. 126. Scott Soames aproxima-se de minha posição ao sugerir que proposições sejam tipos de eventos cognitivos (What is Meaning? Cap. 6). Mas ao recorrer a tipos (types) ele indesejavelmente recai nos mesmos problemas ontológicos já mencionados, contornados apenas ao preço de alguma confusão. Minha sugestão, recorrendo a igualdades com um token escolhido ao acaso é de molde a contornar as dificuldades mais evidentes.
147
mesma mente ou em outra mente qualquer, o pensamento passa a ser
considerado na abstração de sua dependência de essa ou de aquela mente
humana específica na qual ele venha a se instanciar. Mesmo assim e por isso
mesmo, ele não deixa de ser psicológico, não menos do que qualquer um dos
pensamentos-p, posto que ele não é passível de ser considerado na
independência de sua instanciação em ao menos uma mente qualquer que o
pense. Assim, quando dizemos que temos um mesmo pensamento, o que
queremos dizer é apenas que temos conteúdos psicológicos de pensamento
instanciáveis que são iguais entre si. Essa seria uma maneira de trazer os
pensamentos do domínio das entidades platônicas para o domínio do
psicológico, sem um comprometimento com a psicologia transitória dos
indivíduos particulares.
Com efeito, parece que um erro muito comum em filosofia é ver-se
identidade numérica onde existe apenas identidade qualitativa ou, como prefiro
dizer, igualdade. É verdade que podemos falar do número 3 no singular e
podemos questionar o significado da palavra ‘vulgívaga’, usando o artigo
definido, mas isso é apenas por simplicidade de expressão. O que na verdade
temos em mente são ocorrências cognitivas de conceitos iguais do número 3 e
ocorrências cognitivas de significados iguais da palavra ‘vulgívaga’ e nada mais.
Podemos falar do pensamento de que 2 + 2 = 4, mas se não estamos nos
referindo a uma ocorrência desse pensamento, estamos nos referindo a uma ou a
outra ocorrência qualquer, sem querer distinguir qual ela seja, sendo essa a razão
pela qual falamos do pensamento e não dos pensamentos. A adoção de uma
definição como a proposta para o pensamento-f (que é facilmente generalizável
para conceitos ou sentidos fregeanos) é o máximo em abstração a que podemos
chegar sem recairmos em alguma das muitas formas de reificação platonista que
infectaram a filosofia em toda a sua história.
148
Aqui se levanta porém a seguinte dúvida: mas como é possível que a
definição psicologicamente dependente do pensamento recém-sugerida é capaz
de garantir a objetividade dos pensamentos-f? Como vimos, para Frege se
pensamentos fossem entendidos como representações psicológicas, como é o
caso dos pensamentos-p, eles seriam subjetivos, não sendo susceptíveis de serem
comparados entre si. Daí a necessidade que Frege sente de admiti-los como
pertencentes a um terceiro reino, de pensamentos-f entendidos como entidades
não-psicológicas, platônicas. Mas essa conclusão parece precipitada. Não há
dúvida que aquilo que Frege chama de representações, os conteúdos mentais
psicológicos, podem ser em boa medida expressos pela linguagem e através dela
subjetivamente identificados e reidentificados como sendo os mesmos. É
verdade que um estado mental que só uma pessoa tem, por exemplo, uma aura
epiléptica, não é comunicável, a não ser indiretamente, por metáforas. Mas a
maioria dos estados mentais, como é o caso de sentimentos, imagens, sensações,
são coisa que todos nós somos capazes de ter e que podemos aprender a
identificar em nós mesmos, através de indução por exclusão, e, em outras
pessoas, através de indução por analogia, baseada em estados físicos
intersubjetivos acompanhantes. Estou consciente de que há argumentos
filosóficos importantes contra isso, mas este é um desses fatos que só filósofos
colocam em questão. É justo que esses paradoxos sejam seriamente discutidos
por razões heurísticas; mas não é justo que o fato indubitável que eles estão
colocando em dúvida seja desacreditado sempre que fazemos filosofia!1
1 Refiro-me principalmente ao famoso argumento da linguagem privada proposto por Wittgenstein, segundo o qual não é possível construir regras para a referência de expressões cujos correlatos empíricos são estados mentais, posto que não há como corrigir tais regras publicamente e regras publicamente incorrigíveis não se distinguem de impressões de regras (Investigações Filosóficas, parte I, sec. 258). Penso ter demonstrado que esse argumento é incorreto. O problema com ele é que as regras privadamente instituidas só serão incorrigíveis se forem logicamente incorrigíveis, pois regras incorrigíveis por razões práticas são perfeitamente concebíveis (pense, por exemplo, nas regras inventadas por Robinson Cruzoé em sua ilha). Contudo, é questionável se as regras de uma linguagem privada (como parece ser a nossa própria linguagem fenomenal) são
149
É importante também salientar que não é necessário um modelo ou padrão
único que sirva como objeto de consideração intersubjetiva. Não há certamente
nenhuma instanciação de pensamento que sirva como um modelo fixo ao qual
recorremos. O que fazemos é simplesmente recorrer alternadamente a variedade
de modelos que nos são dados geralmente pela memória: a um e depois a outro,
que reconhecemos como sendo idêntico ao primeiro e assim por diante. Mas
nenhum deles existe sem estar sendo psicologicamente instanciado. E a
linguagem é o veículo de comunicação que permite a reprodução de igual
conteúdo psicológico de pensamento nas mentes dos ouvintes. Pode a primeira
vista parecer paradoxal que a linguagem seja capaz de reproduzir em outras
mentes e mesmo na própria mente repetidamente a mesma coisa subjetiva, o
mesmo conteúdo de pensamento, a mesma instanciação reconhecível de uma
combinação convencionalmente fundada de regras semânticas. Contudo, o
paradoxo é apenas aparente. Se a informação genética, por exemplo, se reproduz
idêntica em sucessivos indivíduos biológicos1, por que com as convenções, que
devidamente combinadas se instanciariam na constituição de pensamentos-p, e
logicamente incorrigíveis, pois isso depende da vigência de um princípio da incompartilhabilidade lógica dos estados mentais (se penetrássemos nas mentes de outras pessoas teríamos nossas próprias experiências de suas experiências, e nunca as suas próprias experiências enquanto tais, logo não estaríamos realmente verificando os seus estados mentais.). Há razões, contudo, para pensar que tal princípio da incompartilhabilidade lógica do mental seja falso. Basta para tal admitir que o estado mental do qual se tem experiência seja logicamente separável do sujeito (da consciência) que o tem, pois nesse caso será possível que dois sujeitos possam compartilhar de um mesmo conteúdo experiencial. É essa idéia impossível? Parece que não. Afinal é natural, por exemplo, imaginar um computador A lendo diretamente um programa instalado no computador B, ao invés de copiá-lo para só então lê-los em si mesmo). Para uma crítica mais detalhada ao argumento da linguagem privada, complementada por uma demonstração da razoabilidade de uma versão mais elaborada do tradicional argumento da analogia para outras mentes, ver C.F. Costa “Linguagem privada e o heteropsíquico”, em Critérios de realidade e outros ensaios, cap. 4.1 As próprias mutações são acidentes cuja probabilidade de incidência precisaria ser evolucionariamente calibrada. Só espécies cujos organismos seriam capazes de sofrer mutação em quantidades adequadas seriam capazes de se preservar. Uma espécie fixa, sem mutações, é algo provavelmente possível, mas que não possuiria a flexibilidade necessária à sobrevivência de seus membros.
150
que são aptas a serem sustentadas em sua igualdade através de mecanismos de
correção, não poderia acontecer o mesmo?
Finalmente, vale recordar aqui a distinção feita por Searle entre o que é
ontologicamente e o que é epistemicamente objetivo ou subjetivo.1 Esse filósofo
notou que um acontecimento pode ser ontologicamente objetivo – por exemplo,
a vantagem social da mudança da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília
– e mesmo assim epistemologicamente subjetivo – pois não há acordo acerca
disso. Em contrapartida, um fenômeno pode ser ontologicamente subjetivo, mas
mesmo assim epistemologicamente objetivo – por exemplo, a dor provocada por
uma queda – pois todos podem concordar acerca de sua existência e natureza.
Algo semelhante podemos sugerir com relação aos pensamentos-f. Esses
conteúdos de pensamento podem ser, em sua natureza ontológica, subjetivos
(posto que são redutíveis a eventos psicológicos). Mas nem por isso eles deixam
de ser epistemologicamente objetivos. Afinal, nós somos intersubjetivamente
capazes, tanto de admitir a sua existência quanto de avaliar o seu valor-verdade.
Assim, uma frase como “O amor é o amém do universo” (Novalis) possui
apenas coloração, sendo susceptível apenas de apreciação estética em certa
medida subjetiva. Contudo, uma frase como “A torre Eiffel é feita de metal”,
exprime um pensamento-f epistemicamente objetivo, posto que tanto ele quanto
o seu valor-verdade são plenamente avaliáveis e comunicáveis com base em
convenções linguísticas.
A rápida reconstrução da semântica fregeana feita nesse capítulo contém
muitas sugestões programáticas que demandariam uma defesa e elaboração
muito mais cuidadosa e detalhada. Isso não chega a ser necessário aos nossos
propósitos porque não será muito mais do que a idéia central de que os sentidos
fregeanos devem ser analisados em termos de regras semântico-cognitivas,
aquilo que será mantido em vista de maneira a servir como guia para nossa
1 John Searle: Mind, Language, and Society, pp. 43-45.151
investigação dos mecanismos pelos quais termos singulares e termos gerais
referem.
PARTE II: TERMOS SINGULARES
152
4. CLASSIFICANDO OS TERMOS SINGULARES
Quero começar mapeando brevemente o território a ser explorado ao expor a
classificação tradicional dos termos singulares.
1. Tipos de termos singulares
153
Um termo singular é aquele que é usado para referir ou designar um indivíduo
específico, distinguindo-o de qualquer outro. Nas línguas européias os termos
singulares costumam ser claramente divisíveis em indexicais, descrições
definidas e nomes próprios.
Comecemos com os assim chamados termos indexicais1. Eles podem ser
definidos como sendo aqueles termos singulares cuja referência costuma variar
com o contexto do proferimento, como é o caso dos pronomes demonstrativos.
David Kaplan distinguiu dois tipos de indexicais: demonstrativos verdadeiros e
indexicais puros.2 Os primeiros são termos como ‘esse’, ‘essa’, ‘isso’, ‘aquilo’,
‘ele’, ‘ela’, ‘seu’, ‘sua’. Eles precisam vir acompanhados de ações ou intenções
do falante, através do que ele seleciona para ele mesmo e para o auditório,
dentre as coisas que o circundam, aquela a que está se referindo. Por isso os
demonstrativos verdadeiros costumam vir acompanhados de gestos de ostensão
(atos de apontar), quando não de algum termo descritivo desambiguador como
em ‘essa bola’, ‘essa cor’. Já os indexicais puros são aqueles cuja referência é
automática, não dependendo nem de ações nem de intenções. Eles se
exemplificam pelo pronome pessoal ‘eu’, pelo pronome possessivo ‘meu’, por
advérbios como ‘aqui’, ‘agora’, ‘hoje’, ‘amanhã’, e ainda por adjetivos como
‘atual’ e ‘presente’.
Há muitas outras expressões cujo conteúdo, em maior ou menor medida,
depende do contexto. Como notou John Searle, é razoável pensar que todos os
nossos enunciados empíricos possuem algum traço de indexicalidade3.
Considere, por exemplo, o enunciado singular “Galileu foi o primeiro a
1 A palavra ‘indexical’ vem da noção de índice de C.S. Peirce. Outros termos usados no mesmo sentido são particulares egocêntricos (Russell), termos token-reflexivos (Hans Reichembach), indicadores (Nelson Goodman, W.V.-O. Quine), demonstrativos (John Perry) e dêiticos (Ernst Tugendhat, John Lyons, S.C. Levinson).2 David Kaplan: “Demonstratives”, pp. 490-491.3 Ver J.R. Searle: Intentionality, p. 221.
154
descobrir a lei da inércia” e o enunciado universal “Todos os corpos materiais
têm força gravitacional”. Parece claro que com o enunciado sobre a descoberta
da lei da inércia estamos nos referindo indexicalmente a um acontecimento no
planeta terra há algumas centenas de anos. Se em algum outro planeta habitado
de nossa galáxia alguém descobriu a lei da inércia há um milhão de anos, isso
não afetará a verdade desse enunciado. Quanto ao enunciado sobre a
universalidade da força gravitacional, ele é considerado verdadeiro em relação
ao nosso universo. Se existir um universo paralelo no qual há corpos materiais
destituídos de força gravitacional, ele não deixará de ser verdadeiro. Contudo,
mesmo que a maioria de nossos enunciados considerados não-indexicais
contenha um elemento indexical oculto em seu pano de fundo contextual, isso
não altera nossa classificação, pois ao considerarmos os termos indexicais
estamos fazendo um uso restritivo do conceito. Nós queremos nos limitar às
expressões que, embora variando a sua referência com a variação do contexto de
proferimento, fazem isso com a função de designar particulares que tipicamente
se encontram no âmbito da experiência perceptual do falante.
Passemos agora às descrições definidas. Elas são complexos nominais
geralmente iniciados com um artigo definido no singular. Exemplos são ‘o
Homem da Máscara de Ferro’, ‘a Dama das Camélias’, ‘a Cidade Luz’. O que
caracteriza as descrições definidas legítimas é que elas são capazes de
representar ou conotar, através de seu sentido, propriedades distintivas do objeto
ao qual se referem. Assim, a descrição ‘o pai de Sócrates’ é referencial por
representar uma propriedade distintiva de uma pessoa de ser o pai de Sócrates. E
o mesmo se aplica às outras descrições definidas listadas acima, que conotam
respectivamente as propriedades distintivas de usar uma máscara de ferro, de
gostar de camélias e de ser uma cidade extraordinariamente bela. Por outro lado,
uma expressão como ‘O Sacro Império Romano’ – que, como notou Voltaire,
não era nem sacro nem império nem romano – não é uma descrição definida, 155
mas um nome próprio (tendo por isso iniciais maiúsculas), posto que não conota
propriedades do objeto referido.
As descrições definidas fazem contraste com as descrições indefinidas, que
começam com artigo indefinido, como, por exemplo, ‘uma mulher’, ‘um terno
azul’. Essas últimas nos permitem apenas falar de algum objeto qualquer
pertencente a uma classe de objetos, mas sem identificá-lo. Por serem incapazes
de identificar um objeto específico, elas não são termos singulares.
Os nomes próprios, por fim, são expressões geralmente destituídas de
complexidade sintática, que têm a função de designar um particular na
independência do contexto do proferimento.1 Diversamente das descrições
definidas, os nomes próprios não exprimem um sentido único. Segundo uma
sugestão de Stuart Mill, eles não conotam propriedades específicas do objeto
referido; eles apenas o denotam. Mesmo quando eles possuem alguma
complexidade sintática, como é o caso do nome ‘Touro Sentado’, ela de nada
serve à referência.
Nomes próprios são classificados nos livros escolares como nomes de
pessoas, objetos ou lugares. Mas essa é uma classificação simplificadora se
considerarmos a grande variedade de objetos particulares que podem ser
referidos por eles. Além de nomes de pessoas e animais, há nomes de
construções humanas, como cidades, de objetos geológicos, como montanhas e
rios, de objetos astronômicos, como planetas e nebulosas, de fenômenos naturais
como furacões e vulcões, de regiões geográficas e de instituições financeiras,
além de nomes de objetos abstratos como números e fórmulas matemáticas.
1 Os nomes próprios de pessoas, especialmente, em sua expressão fonética ou ortográfica, costumam ser multiplamente ambíguos, de modo que a univocidade de sua designação acaba por depender do contexto. Esse fato não nos leva a confundir nomes próprios com indexicais, pois o contexto desambiguador do nome próprio não é o do proferimento, mas o de um mais amplo domínio de crenças que, conectadas ao proferimento, fazem valer certa regra de identificação.
156
2. Relações entre os tipos de termos singulares
Faz parte da concepção cognitivista-descritivista a ser defendida nesse livro a
sugestão de que não deve haver uma fronteira nítida a separar os indexicais de
descrições definidas e essas últimas dos nomes próprios. Uma descrição definida
como ‘o homem que está discursando naquele palanque’, por exemplo, é
conotativa, mas contém o demonstrativo ‘aquele’ com função indexical. Nesse
sentido ela não é uma descrição definida tão pura quanto, digamos, ‘o sapo
barbudo’. Considere agora um termo singular como ‘o Cristo Redentor’. Sendo
antecedido de artigo definido, ele conota descritivamente a propriedade
identificadora da estátua, que é a de ser uma homenagem ao Deus cristão. Ele
contém, pois, elementos de descrição definida. Contudo, ele também tem
aspectos de nome próprio, na medida em que ao usá-lo não costumamos ter em
mente a homenagem ao Deus cristão, mas a própria estátua do Cristo situada no
alto do Corcovado. Assim, a expressão ‘o Cristo Redentor’ parece estar a meio
caminho entre uma descrição definida e um nome próprio. Muito diferente é o
caso de um nome próprio típico como ‘Machado de Assis’, referente ao grande
escritor carioca. Mesmo que ‘machado’ conote uma ferramenta e ‘Assis’ uma
cidade, esses elementos descritivos não têm nenhuma função identificadora, pois
o escritor nem era um machado nem nasceu na cidade de Assis.
Há uma hipótese vislumbrada por filósofos como P.F. Strawson1, que ajuda a
explicar a ausência de fronteiras definidas entre indexicais, descrições definidas
e nomes próprios. Queria colocá-la como sugerindo que deve haver uma
progressão estrutural (e não necessariamente genética), que vai dos indexicais
para as descrições definidas e delas para os nomes próprios.2 Os indexicais
teriam de algum modo prioridade como fontes originadoras da referência.
1 Ver P.F. Strawson em Individuals: An Essay on Descriptive Metaphysics, parte I.2 Mesmo admitindo que o indexical costume depender do uso de conceitos para ser capaz de identificar algo, parece claro que o indexical deve ter um papel fundamental no aprendizado inicial de novos conceitos.
157
Afinal, parece que a única maneira pela qual podemos aprender a identificar
objetos nos estágios iniciais do aprendizado da linguagem é por intermédio de
atos de chamar a atenção e apontar dos adultos. Parece ser com base nesse uso
indexical da linguagem que assimilamos regras de identificação, as quais podem
mais tarde ser expressas por meio de descrições definidas que, diversamente dos
indexicais, podem ser usadas para a comunicação mesmo na ausência dos
objetos por elas referidos. Essa é a vantagem da constância. Finalmente, como
as maneiras de se identificar um objeto, assim como as descrições
correspondentes, podem se diversificar cada vez mais, aprendemos a colocar um
nome próprio no lugar do conjunto de descrições definidas usadas para designar
um mesmo objeto, usando-o indistintamente para significar essa ou aquela
descrição ou conjunção de descrições. Com isso podemos nos comunicar sobre
objetos sem precisarmos nos comprometer com o compartilhamento de
conteúdos de descrições específicas. Com isso ganham os nomes próprios, além
da vantagem da constância, típica das descrições definidas, também a vantagem
da flexibilidade. Temos aqui não apenas uma hipótese de trabalho, mas um
itinerário a ser seguido.
158
5. A SEMÂNTICA DOS TERMOS INDEXICAIS
Indexicais são termos singulares que nos permitem identificar particulares
diferentes em diferentes contextos de proferimento. Eles são
epistemologicamente importantes porque é através deles que a linguagem, por
assim dizer, toca na realidade. Geralmente se admite que um indexical possui
minimamente duas espécies de significado: a função lexical e o conteúdo
semântico. Quero considerar cada um deles separadamente.
159
Quanto à função lexical (também chamada de significado lingüístico, literal,
caráter, papel...), trata-se de algo que não varia com o contexto do proferimento,
ainda que dependa da presença de elementos contextuais para existir. Os
principais elementos do contexto de um proferimento indexical são (a) o falante,
(b) o auditório, (c) o objeto (o particular) sobre o qual ele fala e (d) o local e o
tempo em que o proferimento ocorre. Usualmente cada termo indexical, através
da regra constitutiva de sua função lexical, indica seletivamente um tipo de
elemento do contexto de avaliação do proferimento – que em geral é o mesmo
que o contexto de sua ocorrência – o que permite ao indexical tornar-se
reflexivo dessa ocorrência. Eis algumas expressões dessas regras:
1. Os demonstrativos ‘isso’ e ‘aquilo’ têm a função de indicar algo que circunda o falante quando ele os profere, respectivamente, o mais próximo e o mais distante, geralmente com auxílio de algum gesto indicador (ostensão).
2. O pronome pessoal ‘eu’ tem a função de indicar quem o está proferindo.3. A palavra ‘nós’ costuma indicar os falantes e ouvintes presentes em seu
proferimento.4. Os pronomes ‘tu’, ‘vocês’, ‘ele’, ‘ela’, ‘eles’, ‘elas’, indicam
primariamente componentes do auditório, respectivamente, o ouvinte, os ouvintes, um terceiro, uma terceira, os terceiros, as terceiras, no contexto do proferimento.
5. Os advérbios ‘aqui’ e ‘agora’ têm a função de indicar respectivamente o lugar e o momento em que são proferidos.
O sentido ou a função lexical de um indexical é uma invariante, uma vez que
se traduz em uma regra capaz de se aplicar a uma ilimitada diversidade de
elementos contextuais do tipo por ela indicado. O pronome ‘eu’, por exemplo, é
feito para se referir sempre a quem fala, independentemente de quem fala.
Vejamos agora a segunda espécie de significado do indexical. Ela é o que
chamamos de conteúdo semântico. Diversamente do caso do sentido lexical, o
conteúdo semântico do indexical depende da identificação daquilo que é
160
referido, o que o faz variar com o contexto do proferimento. É fácil demonstrar
que esse conteúdo existe. Imagine que você entra em uma casa abandonada e
que alguém na sala ao lado daquela na qual você se encontra diga “Lá está um
rato”. Ouvindo o proferimento, você entende o sentido lexical do indexical ‘lá’,
que indica um local não muito próximo do falante. Mas alguma coisa
fundamental lhe escapa. Como você não está na sala, você não tem como
reconhecer o local nem conferir visualmente a existência do objeto, não podendo
constatar se o proferimento é verdadeiro ou falso. Parece claro que o inteiro
conteúdo semântico do indexical não se limita à simples discriminação do tipo
de referente (conteúdo lexical), estendendo-se pelo menos também à localização
espaço-temporal do referente (o conteúdo semântico de ‘lá está...’) e mesmo a
outras coisas como uma pessoa (‘você’), o seu gênero (‘ele’, ‘ela’) e outras
características eventuais.
Há duas concepções gerais competitivas sobre a natureza do conteúdo
semântico, que são a da referência direta (ou milliana) e a cognitivista (ou
fregeana). Segundo a primeira concepção, o conteúdo semântico do indexical é
o próprio objeto por ele referido no mundo. Já segundo as teorias cognitivistas,
o conteúdo semântico do indexical é um modo de apresentação fregeano, em
nosso entendimento, uma regra cognitiva episódica.
1. A teoria kaplaniana dos indexicais
Uma particularmente influente teoria referencialista dos indexicais foi proposta
por David Kaplan.1 O sentido lexical do indexical é chamado por ele de caráter.
Kaplan costuma expor as regras constitutivas de caráteres como funções
matemáticas cujos argumentos são contextos. Eis algumas delas:
1 Ver Kaplan: “Demonstratives” e “Afterthoughts”. Uma posição similar foi defendida por John Perry em: “The Problem of the Essential Indexical”, pp. 3-20.
161
1. O caráter do pronome ‘isso’ é uma função de contextos cujos valores são objetos apontados.
2. O caráter do pronome ‘eu’ é uma função de contextos cujos valores são os falantes que o proferem.
3. O caráter do pronome ‘tu’ é uma função cujo valor, para cada contexto, é a pessoa endereçada pelo falante no contexto.
4. O caráter do advérbio ‘aqui’ é uma função de contextos cujos valores são os inúmeros locais que podem ser referidos pela palavra.
5. O caráter do advérbio ‘agora’ é uma função cujo valor, para cada contexto, é o tempo desse contexto.
Além disso, o caráter da sentença “Eu estou com fome”, falada por João, é a
função de um contexto cujo valor é o próprio estado de coisas de João estar com
fome. Essa é, porém, apenas uma elegante maneira alternativa de exprimir as
regras que expomos ao introduzirmos a noção de sentido lexical do indexical.
A teoria de Kaplan também deve dar conta do conteúdo semântico do
indexical em sua variabilidade contextual. Para tal ele advoga uma teoria da
referência direta, segundo a qual o conteúdo de um indexical não é algo que se
encontra em nossas mentes, mas a sua própria referência. Assim, o conteúdo do
demonstrativo ‘isso’ é o objeto por ele referido em um contexto C; o conteúdo
do demonstrativo ‘aqui’ é a localização de C; o conteúdo do advérbio ‘agora’ é o
tempo de C; o conteúdo do pronome ‘eu’ em C é o próprio agente; o conteúdo
de um predicado com respeito a C é a propriedade ou relação; e o conteúdo de
uma sentença indexical proferida em um contexto C é a proposição estruturada,
que poderíamos entender como um fato no mundo (um estado de coisas ou um
evento) constituído pelo conteúdo da sentença, podendo esta proposição conter
não só particulares, mas também propriedades e relações como constituintes.
Assim, se João diz “Eu estou com fome”, o conteúdo do pronome pessoal é para
Kaplan o próprio João e o conteúdo do predicado ‘...estou com fome’ é a própria
condição de ele estar faminto.
162
Além disso, o conteúdo de uma sentença com relação ao contexto tem um
valor-verdade de acordo com o mundo (a totalidade consistente dos estados de
coisas) no qual se encontra inserido o contexto. Assim, “Lá está um rato” é uma
sentença falsa no mundo de C, no qual o falante está apontando para um filhote
de gambá; mas ela será verdadeira no mundo possível de C*, no qual o animal
apontado é mesmo um rato. Há, pois, sempre um mundo de um contexto no qual
a proposição é verdadeira.
Kaplan também admite que os indexicais são designadores rígidos. O termo
‘designador rígido’ foi inventado por Saul Kripke, tendo em mente
especialmente o caso dos nomes próprios. Kripke definiu o designador rígido
como sendo um termo que designa o mesmo objeto em todos os mundos
possíveis ou pelo menos em todos os mundos possíveis nos quais ele existe.1
Assim, o nome próprio ‘Benjamin Franklin’ é um designador rígido porque ele
se aplica em todos os mundos possíveis nos quais Benjamin Franklin existe.
Mas há expressões referenciais, como as descrições definidas, que não
costumam ser designadores rígidos, mas acidentais, a saber, aqueles que
designam objetos diferentes em diferentes mundos possíveis. Considere a
descrição definida ‘o inventor das bifocais’. Essa descrição é um designador
acidental, pois embora em nosso mundo se refira a Benjamin Franklin, em um
mundo possível no qual João da Silva foi quem inventou as bifocais ela se
referirá a João da Silva, que é outro objeto.
É realmente plausível considerar que os indexicais como sendo designadores
rígidos, tal como os nomes próprios. Considere, por exemplo, o pronome ‘eu’.
Ele designa a mim mesmo no contexto C do mundo atual. Mas eu o uso como
designador rígido, pois em qualquer mundo possível no qual eu existisse e
proferisse a palavra ‘eu’, ainda que as circunstâncias fossem muito diferentes e 1 Segundo Kaplan, Kripke informou-lhe por carta que preferiria manter-se neutro quando a questão de se o termo designa alguma coisa em um mundo possível no qual o objeto a ser referido por ele não existe. Ver comentário de G.K. Fitche em Saul Kripke, pp. 36-37.
163
que eu mesmo fosse muito diferente – conquanto não deixasse de ser quem sou
– essa palavra continuaria designando a mim mesmo. Do mesmo modo, se
aponto para uma maçã vermelha e digo “Isso é vermelho”, o demonstrativo
‘isso’ se aplicará em qualquer mundo possível no qual ele for usado de modo a
apontar para o que estiver na mesma localização espaço-temporal, mesmo no
caso em que o proferimento seja falso por existir uma pera verde no lugar
apontado ou, digamos, não existir objeto algum nesse lugar.
Mas Kaplan quer mais. Ele quer que o indexical seja um designador cujas
regras semânticas façam com que em qualquer mundo possível o seu referente
seja o mesmo que no mundo atual.1 O efeito disso é que mesmo nos mundos
possíveis nos quais a referência não existe, o indexical se torna capaz de cumprir
com a sua função referencial, posto que ele é indexado pelo mundo atual!
Mas será que essa sugestão é coerente? Os seguintes exemplos sugerem que
não. Imagine que você esteja em uma sala iluminada e diga “Há luz aqui” e que
esse enunciado seja verdadeiro. Mas se em um mundo possível muito próximo
ao nosso nesse mesmo instante falta luz e a sala está às escuras, esse seu
enunciado se torna falso. Contudo, se o advérbio ‘aqui’ fosse indexado pelo
mundo atual, como Kaplan pretende, parece que o enunciado deveria continuar
sendo verdadeiro. Ou não? Considere agora o proferimento “Eu estou com
fome”. Ele é falso se pensado agora por mim. Mas imagine que em um mundo
possível, nas mesmas circunstâncias presentes, eu pense estar com fome e esteja
realmente com fome. É isso possível, mesmo que o pronome pessoal se refira a
mim mesmo no mundo atual, onde eu não estou com fome? Tais incoerências
me parecem fatais. E a razão é simples: um local, um objeto, só se inserem em
um mundo possível através de suas relações espaço-temporais e causais com
elementos contextuais pertencentes a esse mundo. Assim, não é coerente que se
fale de um local ou objeto em outro mundo possível, inserindo-o assim
1 Kaplan: “Demonstratives”, p. 492.164
relacionalmente no contexto desse outro mundo, e, ao mesmo tempo, inserindo-
o relacionalmente no contexto de nosso próprio mundo, a menos que se misture
os critérios pelos quais inserimos o local ou objeto em cada mundo possível.
(Uma maneira de tornarmos a proposta de Kaplan coerente seria reduzir a
aplicação do indexical em outros mundos às relações espaço-temporais e causais
que ele tem em nosso mundo atual. Mas isso tornaria a sua proposta
inesperadamente fraca, equivalendo apenas a dizer que o indexical não possui
referência em nenhum outro mundo possível à exceção de nosso próprio mundo
atual.)
Devido a essa incoerência com a noção de indexação pelo mundo atual nos
ateremos nesse livro à idéia intuitivamente mais segura de que indexicais são
designadores rígidos no sentido de identificarem o mesmo objeto em qualquer
mundo possível no qual esse objeto existe.
2. Problemas com a referência direta
Para começar há algumas objeções gerais à concepção do conteúdo semântico
como sendo a própria referência. A primeira delas depende do que poderíamos
chamar de o desafio representacionalista. Uma descoberta e um problema
fundamental de toda a epistemologia moderna de Descartes a Kant, repercutindo
também em Russell e, implicitamente, em Frege1, é que o nosso conhecimento
do mundo externo se intermedia inevitavelmente pela representação. É sempre
através de nossos perceptos – através daquilo que tem sido chamado de “o véu
das sensações” – que nos referimos às coisas. Assim, se apertarmos o lado de
1 H.K. Wettstein sugeriu que Frege sustenta que a referência ao objeto exige a intermediação do sentido (Sinn) porque ele possuía um entendimento representacional da percepção, tal como o próprio Russell. Com efeito, a admissão do representacionalismo psicológico tende a conduzir ao representacionalismo semântico, particularmente quando pensamos, como sugeri no capítulo anterior, que estamos tratando apenas de duas faces de uma mesma moeda. Wettstein: “Frege-Russell Semantics?”, in H.K. Wettstein: Has Semantiks Rested on a Mistake? p. 90. Ver também Wettstein: The Magic Prism: An Essay in the Philosophy of Language, p. 37.
165
um globo ocular com o dedo, os objetos a nossa frente parecem se mover...
Como esses objetos na verdade não se movem, fica claro que o que aquilo que
realmente nos é dado pelo sentido da visão são representações desse objeto. Se
adicionarmos a isso nosso conhecimento de que o cérebro vê através da
estimulação luminosa das células retinianas, e que exemplos e considerações
similares podem ser feitas para qualquer outro sentido, fica claro que toda a
nossa experiência do mundo externo é sempre e inevitavelmente intermediada
por estados sensórios psicológicos que podem ser chamados de representações.1
Ora, se considerarmos os proferimentos indexicais com demonstrativos
verdadeiros como ‘isso’, ‘aquilo’, ‘ele’... deixa de ser plausível que o conteúdo
de uma crença indexical seja o próprio estado de coisas que o falante pretende
designar (a proposição estruturada), o qual se encontra lá fora no mundo.
Certamente, esse conteúdo é o estado de coisas que está sendo concebido pelo
falante como aquele que se encontra lá fora, causando essa sua representação.
Mas ao dizermos que ele é concebido já estaremos admitindo que ele é de
natureza mental.
É por ser assim que se torna sempre possível usarmos um demonstrativo
verdadeiro erroneamente em uma falsa localização espaço-temporal de um
objeto, o que não poderia acontecer se o conteúdo fosse o próprio objeto.
Suponhamos que uma pessoa aponte para um objeto estereoscopicamente
produzido dizendo “Isso se move”, acreditando que ele seja real e esteja
próximo dela, quando na verdade ele é apenas uma imagem projetada em uma 1 Poder-se-á objetar que essa admissão nos compromete com o representacionalismo ou realismo indireto (quando não com o fenomenalismo) em teoria da percepção, em desfavor do realismo direto, da idéia de que geralmente percebemos diretamente as coisas tal como elas são, e que isso não condiz com a nossa bem fundada decisão de levar a sério nossas intuições de senso comum. Mas é bem possível que o senso comum seja aqui mal-interpretado pelos filósofos. Quando dizemos que percebemos diretamente as coisas ao nosso redor tal como elas são, a palavra ‘diretamente’ é usada em abstração do mediador representacional, posto que ele é para todos os efeitos irrelevante. (Da mesma forma dizemos que um objeto foi entregue pelo correio diretamente ao seu destinatário, abstraindo o fato de que ele passou por vários entrepostos antes de chegar a ele.)
166
tela distante. Ao dizer “Isso se move” há um conteúdo que além de não existir
realmente é falsamente localizado. Se o conteúdo fosse o próprio objeto
localizado espaço-temporalmente, ele precisaria existir como objeto, na medida
em que fenomenalmente ele não se diferencia de objetos reais visualmente
experienciados.
Contudo, o que dizer de indexicais puros como ‘meu’, ‘aqui’, ‘eu’...?
Certamente, posso pensar e afirmar que é minha uma coisa pertence a outrem.
Mas fica mais difícil errar quando aplico indexicais como ‘aqui’ e ‘agora’.
Mesmo assim, parece que uma pessoa poderia, ao viver uma experiência de
realidade artificial, pensar que está aqui quando na verdade se encontra em outro
lugar. Mas que dizer do pronome pessoal ‘eu’? Russell sugeriu que somos
capazes de nos referir diretamente a nós mesmos pelo que ele chamou de
conhecimento por acquaintance. O eu é, pois, um candidato forte à referência
direta. Antes de tentar mostrar que isso é um erro, quero considerar que a
hipótese do caráter indireto do acesso aos objetos da experiência pode ser
estendida ao caso em que esses objetos são os próprios estados mentais. Basta
para tal se admitir que a experiência verdadeiramente consciente não seja direta,
o que está de acordo com as bastante plausíveis teorias reflexivas da consciência
consideradas no primeiro capítulo desse livro. Essas teorias exigem a meta-
cognição de um estado mental para que ele se torne consciente; além disso,
pensa-se que nas assim chamadas patologias da consciência essa meta-cognição
se encontra em desacordo com o conteúdo mental que objetiva refletir,
produzindo a falsa consciência. Guardando isso em mente, quero considerar dois
casos. Digamos primeiro, que eu por alguns instantes me convença que sou o
meu avô Elvino, que era apicultor, tendo a experiência alucinatória de que estou
escrevendo um livro sobre apicultura. Nesse caso, se digo “Eu existo”, quero
dizer que o meu avô existe. Como meu avô já é falecido, “Eu existo” torna-se
um proferimento falso. Contra isso se poderá objetar que mesmo pensando 167
falsamente que eu sou meu avô, eu continuo sendo eu mesmo, o que torna o meu
proferimento “Eu existo” outra vez um pensamento verdadeiro, ao menos com
relação a minha própria pessoa, que certamente não é a do meu avô. Mas esse
raciocínio se aproveita de uma ambigüidade quanto ao proferimento “Eu
existo”, que é a seguinte. Quando eu penso “Eu existo” e me refiro a mim
mesmo como sendo o meu avô Elvino, digo algo que certamente é falso. Mas
quando você (ou alguma outra pessoa) me ouve dizer “Eu existo”, você
interpreta o meu proferimento como uma verdade. Se essa verdade for
necessária e a posteriori, parece que temos um conteúdo que se refere
diretamente ao seu objeto, que no caso é o eu. Contudo, também isso pode ser
questionado. Se for considerada a posteriori parece que a verdade em questão
deverá ser contingente, pois é resultado da sua experiência de me ouvir dizer
“Eu existo”, que também pode ser ilusória. Por outro lado, ela será uma verdade
necessária se for considerada a priori, ou seja, se você assumir que eu realmente
disse “Eu existo”, pois é a priori verdadeiro que se eu realmente disse “Eu
existo” é porque existo. Mas nesse caso ela será também uma verdade
irrelevante.
O segundo caso que desejo expor é uma forma radicalizada do primeiro.
Imagine que eu esteja convencido de que sou o meu irmão, que se chama Nei,
embora na verdade eu esteja em um laboratório no qual existam meios de se
fazer com que eu tenha acesso somente aos estados mentais (pensamentos,
memórias, emoções...) do meu irmão e não aos meus próprios. Nesse caso,
quando digo “Eu existo”, estou me referindo ao meu irmão Nei como se ele
fosse a pessoa que está espaço-temporalmente situada onde eu estou agora. (Ou
seja: “Eu existo” tem um sentido congruente com “Claudio existe”, mas não
com “Nei existe”.) Ora, mas como a pessoa espaço-temporalmente situada onde
eu estou agora, a pessoa que é realmente o sujeito da experiência sou eu e não o
meu irmão, esse proferimento só pode ser falso. Parece-me que o exame de 168
ambos os casos considerados traz problemas para o cogito cartesiano, que
precisaria no último caso ser reduzido a alguma coisa comum tanto a “Claudio
existe” quanto a “Nei existe”, digamos, “alguém ou alguma coisa existe em
algum lugar”, nomeadamente, quase nada. Mas o importante para nós no
momento é que esses casos sugerem que podemos aplicar erroneamente até
mesmo o pronome pessoal ‘eu’.
Outro problema geral consiste no que fazer com as crenças indexicais falsas.
Digamos que uma pessoa vítima de psicose alcoólica tenha a alucinação perfeita
de um cavalo branco. Ela diz “Lá está um cavalo branco”, apontando para o
espaço vazio. Em uma teoria da referência direta, a crença falsa que a pessoa
está tendo precisaria ter uma natureza intrinsecamente diversa da natureza da
crença que ela tem quando aponta para um cavalo branco de carne e osso no
mundo atual. Afinal, só no último caso o conteúdo semântico está realmente
sendo dado. Contudo, não parece haver qualquer diferença intrínseca entre um e
outro conteúdo fenomenal de crença e as alucinações na psicose alcoólica
podem ser absolutamente realistas. O que permite diferenciar um caso do outro
são na verdade elementos extrínsecos ao conteúdo próprio da crença, como o
estado mental do falante, o contexto e a ausência de compartilhamento
intersubjetivo do que é dado à experiência. Isso fica claro quando consideramos
ilusões perceptuais, que em um momento são consideradas percepções
verdadeiras e no outro são reconhecidas como falsas.1
Por fim é interessante perguntarmos como as coisas ficam se admitirmos a
reconstrução do fenomenalismo de Stuart Mill especulativamente sugerida na
introdução desse livro. Segundo ela, objetos, propriedades e fatos externos,
1 A referência direta através de indexicais constituiria casos típicos do que foi chamado de crenças irredutivelmente de re, crenças que são ao menos parcialmente individuadas pelos próprios objetos constitutivos do mundo. Mas não há argumentos decisivos para provar que tais crenças existem, e nosso argumento contra o externalismo semântico de Putnam desenvolvido no capítlo 12 desse livro irá reforçar esse ceticismo. Para uma crítica a existência de crenças irredutivelmente de re, ver J.R. Searle: Intentionality p. 208 ss.
169
podem ser reduzidos a uma interpretação fisicalista das impressões sensíveis que
possuem efetiva e contínua possibilidade de serem atualizadas. No caso do
objeto, propriedade ou fato, estar sendo presentemente observado, as sensações
psicológicas, os perceptos a ele correspondentes, na medida em que só
consideradas efetivamente, continuamente e intersubjetivamente retornáveis à
experiência sempre que forem dadas as condições adequadas, são susceptíveis
de interpretação fisicalista, como compostos, sistemas e combinados de tropos.
Ora, se o sentido fregeano é o modo de apresentação do objeto (e no caso ao que
parece também da propriedade e do fato), podemos então nos perguntar se nesse
caso dizer que observamos o objeto (a propriedade, o fato) através do véu das
sensações não equivale a dizer que observamos “diretamente” o objeto – ainda
que pela intermediação dos perceptos, nomeadamente, segundo o modo pelo
qual ele se nos apresenta – uma vez que esse objeto nos é apresentado através de
dados sensíveis efetivamente e continuamente experienciáveis, o que nada mais
é do que dizer que ele nos é dado aspectualmente enquanto tal.
Esse entendimento me parece correto e é capaz de render uma forma de
externalismo internalista capaz de dar conta do falibilismo de toda a experiência.
Digo, porém, que se trata de um externalismo internalista porque um modo de
acesso originariamente interno é preservado: somos nós que supomos que o
objeto é-nos dado enquanto tal; somos nós que admitimos que podemos traduzir
os dados sensíveis em termos de algo que seja efetivamente, continuamente,
intersubjetivamente experienciável e, portanto, em termos de sistemas e
combinações de tropos. E isso equivale outra vez a dizer que o objeto nunca é
mais do que somente concebido por nós na objetividade de sua existência, e que
somente por meio desse conceber é que podemos nos relacionar com ele.
3. Os argumentos de Kaplan
170
Kaplan apresenta uma variedade de originais e elaborados exemplos destinados
a mostrar que a referência direta existe. Por interessantes que sejam eles não me
parecem nem um pouco bem sucedidos.
Adaptando um de seus exemplos, eis um argumento engenhoso que faz apelo
a substituições questionáveis. Eu aponto para uma pessoa na rua que me parece
ser João e digo1:
(1) Ele mudou-se para Brasília,
Isso é verdadeiro para João. Contudo, quem está passando na rua não é João,
mas José, devidamente disfarçado de modo a parecer João, e José não se mudou
para Brasília. Logo a proposição é falsa. Para Kaplan, se a proposição fosse
mero conteúdo cognitivo, ela deveria ser verdadeira, pois a crença que tenho é a
de que a pessoa por mim apontada é João, sendo verdadeira a minha crença de
que João foi para Brasília. Mas não é o que acontece. Portanto, é o estado de
coisas real e não o conteúdo da crença que constitui o conteúdo semântico
envolvido.
Não é difícil, porém, encontrar a falha no argumento. Para dizer (1) eu
preciso primeiro identificar a pessoa: eu só estou autorizado a afirmar “Ele
mudou-se para Brasília” porque reconheço a pessoa na rua como sendo João e
porque sei que João mudou-se para Brasília. O proferimento (1) é, pois, pensado
por mim como pressupondo meu reconhecimento correto de João, devendo ser
apresentado como a conclusão explícita do seguinte argumento que subjaz
disposicionalmente ao proferimento:
(2) Aquele sujeito lá é João. F João mudou-se para Brasília. V1 Kaplan: “Demonstratives”, IX. Simplifico o exemplo de Kaplan de modo a desencobrir o que me parece falacioso.
171
Logo: ele (aquele sujeito lá) mudou-se para Brasília. F
Mas se o conteúdo de pensamento expresso por (1) é a conclusão de (2),
então não há razão alguma para que seja considerado verdadeiro, posto que
sendo a primeira premissa do raciocínio falsa, a conclusão não precisa ser
verdadeira, além de ser no exemplo em questão efetivamente falsa. Assim,
diversamente do que possa parecer, a crença que (1) expressa é quase
certamente falsa, tornando nossa intuição perfeitamente ajustável à interpretação
cognitivista.1
Outro argumento de Kaplan, dessa vez inspirado no externalismo semântico
de Putnam, diz respeito a dois gêmeos idênticos, Castor e Pollux, cujos cérebros
1 Kaplan sugere que se a pessoa referida por (1) fosse realmente João, a proposição que seria verdadeira não poderia ser a mesma, posto que o indexical é um designador rígido e, uma vez se referindo a José em nosso mundo, se referirá a José em qualquer situação contrafactual. Não penso que seja assim. A proposição (1) teria no caso a mesma forma:
(4) Aquele sujeito lá é José. V João mudou-se para Brasília. V Logo: Ele (aquele sujeito lá) mudou-se para Brasília. V
A única diferença é que a conclusão aqui é verdadeira, posto que as premissas são verdadeiras. A melhor maneira de conciliar as coisas é a meu ver rejeitar a pretensão de que os indexicais ou outros termos quaisquer possam ser designadores rígidos no sentido proposto por Kaplan de serem indexicados pelo mundo atual. A sugestão que apresentarei mais adiante será a de que indexicais como ‘aquele’ são mais o que poderíamos chamar de localizadores rígidos, ou seja, eles apontam para um mesmo local em qualquer mundo possível no qual esse local exista, podendo variar aquilo que preenche esse local. Ademais, Kaplan rejeita que para o fregeano indexicais possam ser designadores rígidos, posto que os modos de apresentação variam. Mas isso é incorreto. Para o fregeano o modo de apresentação do indexical precisa ser rígido. A razão é a seguinte. O conteúdo semântico do indexical não pode variar de mundo para mundo, pois ele não é um nome próprio, que está no lugar de um feixe de descrições. Como o conteúdo semântico do indexical é para o fregeano o seu modo de apresentação, esse modo também precisa ser rígido: o indexical é um designador rígido no sentido de que ele deve apresentar o seu objeto do mesmo modo em todos os mundos possíveis nos quais esse objeto existe. Assim, se digo “Aquele é João”, o demonstrativo ‘aquele’ é um localizador rígido porque tem sempre uma mesma relação de designação, apontando para um mesmo local, sob a mesma perspectiva etc.
172
são monitorados de modo a terem sempre os mesmos estados cognitivo-
psicológicos.1 Em um dado momento ambos dizem:
(1) Meu irmão nasceu antes de mim.
Como Pollux nasceu antes, Castor diz algo verdadeiro e Pollux diz algo falso.
Para Kaplan, como os estados cognitivos são idênticos, a diferença no conteúdo
de crença só pode estar no mundo lá fora, na proposição estruturada.
Contudo, há algo de errado com esse exemplo. Ele só funciona se
assumirmos, como Kaplan, que o externalismo de Putnam é correto. Se for,
então podemos querer dizer coisas diferentes mantendo o mesmo estado mental.
O argumento de Putnam, porém, será demonstrado implausível quando
discutirmos as referências dos termos gerais. Se abstrairmos o externoalismo de
Putnam, porém, a assunção de que Castor e Pollux estejam tendo idênticos
estados cognitivo-psicológicos e querendo dizer coisas diferentes torna se
gratuita. Afinal, com a expressão ‘meu irmão’, Castor deve ter em mente Pollux
e Pollux Castor, e com o pronome ‘mim’ Castor tem em mente Castor e Pollux
Pollux. Mesmo sendo idênticos, os gêmeos possuem nomes diferentes e se
diferenciam pelas posições diferentes que ocupam no espaço. (Castor pode não
saber onde está Pollux, mas sabe que Pollux não pode estar onde ele, Castor,
está, mas sempre em algum outro lugar e vice-versa.)
Assim, é natural pensarmos que das duas uma: ou eles querem dizer coisas
diferentes ao custo de estados cognitivo-psicológicos diversos, ou então eles
pronunciam frases idênticas sem serem capazes de querer dizer com elas algo
que vá além do mero sentido gramatical. Nesse último caso, a única maneira de
se conceber que Castor diz algo verdadeiro e Pollux diz algo falso é considerar o
que eles dizem sob o ponto de vista do ouvinte, que entende o conteúdo do
1 David Kaplan, “Demonstratives”, XVII.173
proferimento de Castor como verdadeiro e o de Pollux como falso. Mas nesse
caso um proferimento é verdadeiro e outro falso porque os estados cognitivo-
psicológicos do ouvinte a considerar a frase “Meu irmão nasceu antes de mim”
dita por cada um dos gêmeos é diferente. Assim, uma origem da impressão de
que seja possível que Castor e Pollux tenham idênticos estados cognitivo-
psicológicos e diferentes conteúdos de crença pode ser encontrada na falha em
perceber o papel dos intérpretes do proferimento.
Para enfatizar as dificuldades, quero adaptar aqui um exemplo conhecido.1
Imagine que em uma loja de roupas Maria veja uma mulher a sua frente e, em
um dos espelhos ao lado, veja refletida de outro espelho a mesma mulher de
costas. Confundida, Maria pensa que são duas pessoas distintas. Ela está em
condições de dizer:
(i) Essa pessoa não é aquela pessoa.
Contudo, se o conteúdo do pensamento de Maria fosse a proposição estruturada
e o objeto fizesse parte dessa proposição, parece que ela deveria saber que se
trata de um mesmo objeto, de uma mesma mulher. Mas não é isso o que
acontece. Maria acredita falsamente na verdade do seu conteúdo de pensamento
expresso em (i).
A resposta do defensor da teoria da referência direta poderia ser a de que um
mesmo objeto pode ser acessado sob modos diferentes, os quais são
condicionados pelos caráteres dos indexicais envolvidos. Assim, os indexicais
‘essa’ e ‘aquela’ em (i) tem caráteres diversos, que para Kaplan estão no lugar
dos sentidos fregeanos, permitindo o erro na identificação “dessa” ou “daquela”
pessoa. Essa resposta esbarra em dificuldades. Afinal, Maria poderia ter usado o
mesmo indexical duas vezes para designar objetos diferentes, como na frase:
1 David Braun: ”Demonstratives and their Linguistic Meanings“, p. 147.174
(ii) Essa pessoa não é essa pessoa,
e ao fazer isso apontar primeiro para a pessoa a sua frente e depois para a
pessoa refletida no espelho ao seu lado.1 Seria possível, é verdade, responder
que nesse caso a primeira ocorrência do demonstrativo ‘essa’ não pode ser
substituída por ‘aquela’, enquanto a segunda ocorrência pode, o que mostra que
o diferente caráter dos indexicais está implícito. Mas podemos imaginar
situações nas quais esse não é o caso, como no caso em que os dois objetos que
aparecem a Maria estão muito próximos, ou no caso de uma língua na qual os
demonstrativos ‘essa’ e ‘aquela’ são cobertos por um único indexical.
O que esses contra-exemplos sugerem é que existe mais entre o indexical e o
objeto do que o simples caráter. Ao influir na atribuição de verdade, o modo de
apresentação do objeto pelo indexical permite um detalhamento cognitivo da
experiência que vai além daquilo que a função lexical do indexical é capaz de
explicitar. Nós experienciamos os objetos sempre sob perspectivas, sob modos
de apresentação, sob sentidos fregeanos com base nos quais os inferimos.
Entender o conteúdo semântico em termos da referência enquanto tal, na
independência desses modos de apresetação, é deixar sem explicação o caráter
perspectivista ou aspectual da experiência.
Talvez hajam estratégias concebíveis contra as objeções recém apresentadas.
Podemos interpretar o objeto, a propriedade e mesmo o fato de uma maneira
aspectual e mesmo assim externa. Nesse caso (i) diz respeito a dois subfatos: (i-
a) o subfato de algo que aparece à frente do falante com a aparência de uma
mulher vista de frente e (i-b) o subfato de algo que aparece ao lado direito do
falante com a aparência de uma mulher vista de costas. Cada um desses subfatos
é objetivo (pois poderia ser similarmente acessado por outra pessoa que
1 Ver, por exemplo, Howard Wettstein: “Has Semantics Rested on a Mistake?“ pp, 115-116.175
estivesse no lugar de Maria) e mesmo diversamente localizável no mundo
externo, o que torna compreensível a objetividade do erro. Não obstante, se
considerarmos o que foi dito sob o véu das sensações e sobre o caso dos
proferimentos indexicais falsos, continua sendo indiscutível que também esses
subfatos são primeiramente dados à experiência como modos de apresentação
cognitivos e então concebidos como pertencentes ao mundo externo.
4. Alternativas fregeanas
As idéias de Frege sobre os proferimentos indexicais foram muito brevemente
esboçadas em algumas poucas frases de seu ensaio “O pensamento”. Ele
percebeu que o pensamento, no caso de proferimentos indexicais, vai além do
que as palavras dizem. Em um exemplo seu, se alguém diz:
(1) Essa árvore está florida,
esse pensamento não se torna falso daqui a oito meses, quando o inverno tiver
feito a árvore secar. E a razão disso é que nesse caso “o momento da enunciação
é parte da expressão do pensamento”.1 Frege dá a entender que os elementos
contextuais que cercam o proferimento indexical são partes não-simbólicas da
expressão do pensamento. Para ele, o tempo (e certamente o lugar) do
proferimento, o gesto de apontar, os olhares, são capazes de atuar como meios
complementares de expressão do pensamento. Como consequência, o
proferimento “Essa árvore está florida” feito na primavera exprimirá um
pensamento diferente de quando é feito no inverno. Esse pensamento também
irá variar com a posição do falante e com o lugar espacial para o qual ele aponta.
Note-se, contudo, que pelo próprio fato desses elementos contextuais para
Frege serem parte da expressão do pensamento, eles próprios não são o
1 G. Frege: “Der Gedanke”, Beiträge zur philosophie des deutschen Idealismus, p. 66.176
pensamento. Admitindo-se nossa reconstrução cognitivista da concepção
platonista que Frege mantinha sobre a natureza do pensamento, devemos
concluir que, como estado cognitivo-psicológico objetivamente concebido, o
pensamento indexical – nomeadamente, o que é apresentado no proferimento
indexical – precisa incluir em si mesmo a representação mental desses
elementos conceituais. Como notou Michael Luntley, “o pensamento é conteúdo
contextualmente expresso e não o próprio estado de coisas contextualmente
situado; ele não é sequer um amálgama de conteúdo mais contexto”.1
Outro ponto é que se o sentido é um modo de apresentação geralmente
exprimível em descrições, parece que os elementos contextuais que ajudam a
exprimir o pensamento indexical deveriam poder ser traduzidos em termos
descritivos de modo a formar frases eternas, capazes de expressar o pensamento
na independência do contexto. Assim, parece que um proferimento como (1)
poderia ser substituído por
(2) O lugar L que o falante F situado na região R no tempo T aponta contém uma árvore que está florida.
Note-se que o sentido do demonstrativo ‘essa’ no proferimento (1) é ‘o lugar
E que o falante F situado na região R no tempo T aponta’, que é um modo de
apresentação contextualizador. Certamente, se uma dessas variáveis mudar, o
pensamento expresso também será alterado.
Essa maneira de ver contrasta com o ponto de vista de Kaplan. Para ele o
caráter do indexical é o seu sentido fregeano, enquanto o conteúdo semântico é o
seu objeto referido. Essa correlação <sentido-caráter> seria mais plausível se
expressões outras que não as indexicais não tivessem algo equivalente ao caráter
ou função lexical. Mas não é assim. O nome próprio tem algo equivalente ao
1 M. Luntley: Contemporary Philosophy of Thought: Truth, World, Content, p. 334. 177
caráter, que consiste na sua função de nomear o seu portador. Mesmo assim, o
sentido fregeano do nome próprio não é a sua referência, mas o seu modo de
apresentação, que em nosso entendimento inclui a função de nomear, embora de
modo algum se limite a ela. O mesmo podemos dizer do termo geral: o seu
caráter é a sua função predicativa, que é parte do modo de apresentação
fregeano. A própria frase tem um caráter, que consiste no que tem sido chamado
de o seu sentido literal, que também seria parte do sentido-pensamento
fregeano. Esse sentido literal da frase pode ser caracterizado como aquilo que
podemos entender se não tivermos qualquer informação que auxilie na
identificação da referência.1 Uma frase como “Antônio visitou Calpúrnia”, por
exemplo, tem um sentido literal, um caráter, que é de certo modo anterior ao
sentido fregeano ou cognitivo, pois nós sabemos que ela é sintaticamente
correta, mesmo sem conhecer nada sobre os romanos e sobre os modos de
apresentação, os sentidos fregeanos dos nomes ‘Antônio’ e ‘Calpurnia’. Já para
entendermos o sentido-pensamento expresso, nós precisamos mais do que isso.
Nós precisamos conhecer, ao menos em suficiente medida, os modos de
apresentação associados a esses nomes, o contexto no qual seus portadores
existiram, elementos que doam valor epistêmico (Erkenntniswert) ao que é dito.
Ora, se mesmo em frases não-indexicais a tricotomia <caráter – sentido
epistêmico – referência> se mantém, por que rejeitá-la para as frases indexicais?
Se ela existe para nomes próprios, por que rejeitá-la para os termos indexicais?
Podemos com isso retornar ao esquema fregeano dos níveis semânticos
tendo em vista a frase indexical predicativa singular. Para tal é preciso
distinguir dois subníveis semânticos do sentido epistêmico (Sinn): o subnível do
sentido lingüístico (lexical, literal), contextualmente independente, e o subnível
mais propriamente epistêmico (Erkenntniswert) do conteúdo semântico, que 1 Jeronime Katz caracterizou o sentido literal como aquele que é apreendido em um contexto informacionalmente pobre. Ver J. Katz: Propositional Structure and Illocutionary Force, pp. 14 ss.
178
Frege mais propriamente tinha em mente e que no caso é também
contextualmente determinado. Eis o esquema:
Indexical predicado frase
Sentido sentido + função = sentidosentido linguístico lexical predicativa lingüísticocognitivo Sentido conteúdo + conteúdo = conteúdo de Epistêmico semântico conceitual pensamento
Referência objeto + propriedade = fato (sistema de (tropo ou (combinado tropos) composto de tropos) de tropos)
Vemos, pois, que o sentido lexical do indexical também pode ser entendido
como fazendo parte (secundária) do sentido epistêmico ou fregeano, pois ele
consiste na determinação geral de um tipo de entidade a ser apresentada. Mas
ele precisa ser complementado por aquilo que é epistemicamente relevante, pelo
conteúdo semântico-cognitivo, que no caso é o modo de apresentação de
alguma coisa contextualmente dada. O mesmo acontece com a frase indexical.
Considere a frase “Aquilo é uma raposa”. A articulação gramatical da frase é
parte do sentido que ela exprime. Mas ele só se torna relevante e se completa
como pensamento se contiver também o restante da regra verificacional, que
deve incluir os critérios específicos de identificação de um objeto físico com as
propriedades que fazem do animal uma raposa.
Um outro ponto é que embora o sentido determine a referência, no caso do
proferimento indexical verdadeiro a referência também de certo modo determina
o sentido. A árvore florida real determina causalmente a sua identificação pelo
demonstrativo ‘aquela’, o qual, por seu conteúdo epistêmico, passa a determinar
para o intérprete onde a árvore se encontra. Mas não parece que esse fato 179
requeira uma modificação significativa no princípio fregeano de que o sentido
determina a referência. Afinal, é óbvio que em geral as regras semânticas são
estabelecidas convencionalmente tendo como base causal a própria referência.
Isso acontece com nomes próprios e termos gerais, cujas regras semânticas são
determinadas com base na experiência que temos do objeto ou tipo de objeto. A
diferença é que no caso dos nomes próprios e dos termos gerais essa experiência
é remota e gerou convenções semânticas tácitas, mais ou menos compartilhadas
entre os falantes, os sentidos fregeanos, que por sua vez são usados para
determinar a referência. A diferença com relação ao indexical não está, pois, no
fato de o sentido epistêmico ser determinado pela referência, mas no fato de ele
ser presentemente determinado pela sua referência e pelo fato de a regra que o
constitui, que é o próprio conteúdo semântico do indexical, não ter chegado a se
instituir na forma de uma convenção entre os falantes (embora, como veremos,
tal conteúdo possa se tornar eventualmente uma convenção, no caso em que
alguma parte importante do conteúdo acabe por se tornar explicitável através de
uma descrição definida conhecida dos falantes).
Finalmente, a teoria fregeana responde às dificuldades epistemológicas
básicas que a teoria da referência direta não parece ter recursos para resolver
satisfatoriamente. A conformidade dessa teoria com o representacionalismo a
torna capaz de nos permitir uma resposta ao problema do conteúdo das frases
indexicais falsas, pois para ela o conteúdo fenomenalmente dado da crença
indexical verdadeira não precisa ser de natureza essencialmente diversa do que é
quando a crença é falsa. Há uma diferença, é certo, mas ela não precisa ser
fenomenal ou intrínseca. Essa diferença se resolve extrinsecamente, com base
em outras crenças de algum modo relacionadas ao contexto. Embora o conteúdo
de uma alucinação não se diferencie intrinsecamente do conteúdo de crença
indexical verdadeira, há diferenças extrínsecas na intersubjetividade potencial,
no seguimento de leis causais próprias do mundo físico externo… em nossas 180
informações sobre o estado e situação do observador, sobre aquilo que a orienta
e modela causalmente.1
5. Objeções e respostas
Quero agora apresentar algumas objeções mais importantes feitas à concepção
cognitivista do conteúdo semântico dos indexicais, seguidas de suas respostas.
A primeira é a de que devem existir conteúdos de pensamento
irredutivelmente indexicais. John Perry2 introduziu essa objeção com um famoso
exemplo. Encontrando-se uma vez em um supermercado ele percebeu um rastro
de açúcar no chão e pôs-se a procura do responsável. Após dar uma volta ao
redor da estante ele percebeu que o rastro vinha do seu próprio carrinho! No
começo a sua constatação era
(1) Alguém está fazendo uma bagunça.
No final a sua constatação se tornou
(2) Eu estou fazendo uma bagunça.
A constatação (2) não é a mesma que (1), pois acompanhou-se de uma súbita
mudança de comportamento. Ela também não pode ser substituída por (3) “Perry
está fazendo uma bagunça”, pois suponha que Perry estivesse sofrendo de
demência, tendo esquecido o seu próprio nome... A constatação poderia, é certo,
1 Gareth Evans ressaltou o elemento causal: se estou diante de um objeto real ao qual me refiro pelo demonstrativo “isso”, o meu conteúdo de crença é causado pelo objeto, de modo que se o objeto se alterasse ou deixasse de existir, meu conteúdo de crença indexical (pensamento) também se alteraria ou deixaria de existir. Mas isso não altera a natureza cognitiva do pensamento demonstrativo. Ver G. Evans: The Varieties of Reference, 5.1, 9.4, 9.5.2 J. Perry: “The Problem of the Essential Indexical”, pp. 3-20.
181
ser substituída por (4): “Perry está fazendo uma bagunça e Perry sou eu”. Mas
nesse caso apenas se reconhece a indispensabilidade do indexical.
O ponto em questão é o seguinte. Se Frege estivesse certo, então o modo de
apresentação do objeto expresso pelo indexical deveria poder ser sempre
parafraseado por uma descrição definida. Mas o exemplo de Perry demonstra
que o ‘Eu’ em “Eu estou fazendo uma bagunça” não pode ser substituído por
descrição alguma sem que o seu conteúdo se altere. Ora, isso parece suportar a
idéia de que o conteúdo semântico do indexical é o próprio objeto referido e que
a teoria da referência direta dos indexicais é que é correta.
Uma resposta a essa objeção já foi dada por J.R. Searle. Ele admite que a
frase descritiva (3) não exprime o mesmo pensamento que a frase indexical (1),
não preservando exatamente os mesmos critérios de verdade. Contudo, ele pensa
que essas constatações não bastam para derrubar a idéia de que os indexicais
possuem sentidos fregeanos como conteúdos semânticos, pois mesmo que não
possamos substituir o indexical por uma descrição equivalente, isso não implica
que o conteúdo semântico não seja um sentido fregeano.1 É perfeitamente
possível que o indexical se refira através de um modo de apresentação sem que o
último seja resgatável por descrições, ou pelo menos sem que ele seja
inteiramente resgatável por elas.
Há outras objeções mais diretas. Em outro contra-exemplo que adapto de
Perry2, Maria profere o enunciado
(1) Hoje é 7 de setembro.
no dia 6 de setembro. Logo a crença é falsa. Perry supõe que para Frege é
preciso haver alguma descrição que capture o sentido do indexical ‘hoje’. 1 J.R. Searle: Intentionality, pp. 218-192 J. Perry, “Frege on Demonstratives”, pp. 487-8.
182
Suponha que Maria esteja pensando na descrição ‘o dia da proclamação da
república’. Nesse caso, ao dizer (2) Maria está querendo dizer
(2) O dia da proclamação da república é 7 de setembro.
Nesse caso, a teoria fregeana implica que a palavra ‘hoje’ dita no dia 6 se refere
ao dia 7 de setembro, e que o proferimento (1) dito em 6 de setembro expressa
uma crença verdadeira, o que é absurdo. Portanto, a teoria de Frege não deve ser
correta.
O problema com essa objeção de Perry é que ela é claramente ad hoc ao
escolher uma conhecida característica do dia 7 de setembro. Contudo, tal
substituição não se impõe a nós mais do que, digamos, sob o suposto de que o
único dia do ano no qual Maria comeu arroz com brócolis foi no dia 6 de
setembro, a substituição que produz o proferimento (3) “O único dia de
setembro no qual Maria comeu arroz com brócolis foi o dia 7 de setembro”, que
é corretamente falsa, poderia ser adequada. Inúmeras outras descrições poderiam
prestar esse mesmo serviço de alterar ou não o valor-verdade ao substituir o
indexical hoje em (1).
Considere, porém, a descrição (4): “No dia 6 de setembro de 2011 Maria diz
‘Hoje é dia 7 de setembro’”. É verdade que a frase (4) não é sinônima de (1): ela
lhe acrescenta informação. Mas ela contém uma melhor substituição ao
transformar o indexical ‘hoje’ em algo que é metalinguisticamente mencionado,
ou seja, em algo que tem como referência (supomos) apenas a sua função
lexical, que não é contextualmente relativa, sem deixar de preservar o mesmo
valor-verdade (falso) da frase (1).
Kaplan adiciona a essas objeções um problema modal. Suponha que eu diga:
(1) Se eu existo então eu estou falando. 183
e suponha que o sentido do termo ‘eu’ seja ‘a pessoa que está falando’. Nesse
caso a sentença passa a significar o mesmo que
(2) Se a pessoa que está falando existe então a pessoa que está falando está falando.
Contudo, pensa Kaplan, (2) exprime uma verdade necessária, uma proposição
verdadeira em todos os mundos possíveis, diversamente de (1), que é
contingente. Logo, (2) não pode querer dizer o mesmo que (1).
Nossa resposta provém da constatação de que o pensamento (1) é ambíguo.
Ele pode querer dizer (1a): “Se acontece de eu existir, então acontece de eu estar
falando”, que é contingente. Mas ele também pode querer dizer (1b) “Se eu
existo ao falar o que estou falando, então estou falando”, que é necessário.
Afinal, em qual mundo possível seria verdadeiro o proferimento “Se eu existo
ao falar o que estou falando, então eu não estou falando”? Contudo, é o
pensamento (1b) – e não (1a) – que implica em (2). Assim (2) não pertence,
afinal, a uma categoria diferente de (1), ao contrário do que Kaplan tentou
sugerir, pois só se deixa implicar por (1) se este também for interpretado no
sentido de um enunciado necessário.
Em mais um exemplo de Perry1, elaborado de forma mais enfática por
Searle2, imagina-se que David Hume diga
(1) Eu sou Hume,
1 J. Perry: “Frege on Indexicals”, Philosophical Review, p. 485 ss.2 J.R. Searle: Intentionality, p. 219.
184
e que nesse mesmo momento em um planeta distante chamado terra-gêmea –
onde quase tudo acontece exatamente do mesmo modo que aqui na terra – o
Doppelgänger de David Hume, que se chama Heimson, diga
(2) Eu sou Hume.
Parece que o pensamento é o mesmo: ambos pensam ser o filósofo David Hume.
Contudo, a sentença (1) é verdadeira, enquanto a sentença (2) é falsa. Parece,
portanto, que Frege está errado e que o conteúdo semântico do indexical não se
reduz ao pensamento. Ele deve ser a própria referência, que só no primeiro caso
é o próprio Hume, sendo no segundo caso Heimson!
Para responder a tal objeção é preciso em primeiro lugar considerar que para
uma concepção como a de Frege não só o tempo, mas também o lugar do
proferimento, de algum modo pertencem ao pensamento indexicalmente
expresso. Ora, como o verdadeiro ‘Hume’ se encontra na terra e não na terra-
gêmea, (1) é um proferimento verdadeiro por se referir ao Hume da terra,
enquanto (2) é falso por se referir a quem não é o Hume da terra.
Essa resposta demanda elaboração. Hume pode dizer “Eu sou Hume” de
olhos fechados ou sem saber onde se encontra e o pensamento será verdadeiro.
Mesmo assim, é certo que ele está em um lugar e tempo particulares que se
forem reconhecidos o serão como sendo aonde se deu o pensamento indexical.
Que o lugar e tempo do pensamento sejam determinados é, pois, um pressuposto
daquilo que é pensado, ainda que não pertença ao pensamento. Assim, quando
Hume diz “Eu sou Hume”, ele está em sua casa em Edimburg (o que ele pode
ter presentemente em mente), além de estar na Escócia e no planeta Terra (o que
ele ao menos sabe), além do sistema solar se encontrar no braço Órion da Via
Láctea, a 33.000 anos luz de seu centro (o que ele certamente não sabe). Mas
toda essa informação é um pressuposto inevitável do pensamento indexical, quer 185
seja ela sabida por alguma pessoa ou não. E a prova disso é que ela será
reconhecida pelo próprio Hume como um pressuposto para o pensamento
indexical que ele tem nesse momento e lugar, se lhe forem dadas as informações
em questão. Nosso espaço, como Kant já havia notado, forma uma totalidade
única. Ora, se supomos existir uma terra-gêmea, então também precisamos
supor que é possível distingui-la da nossa terra, por ser um corpo celeste situado
em outra região do espaço. Mas se é assim, então é porque, ao menos em termos
de localização espacial, devemos diferenciar o proferimento “Eu sou Hume”
feito por Hume e o mesmo proferimento feito por Heimson: o primeiro ocorre
em certo lugar de nossa própria terra, enquanto o segundo ocorre em um lugar
que, embora enquanto tal seja qualitativamente similar (Heimson está na
Edinburg-gêmea), está situado lá na terra-gêmea. Por isso os dois pensamentos
não podem ser idênticos (afinal, devemos estar cientes de tudo isso na suposição
do exemplo). O que nos confunde é a identidade qualitativa dos falantes e dos
arredores, que enganosamente nos fazem a supor que sejam capazes de nos
prover de uma identidade no conteúdo do pensamento.
A essa resposta se poderia ainda objetar que “Eu sou Hume” é verdadeiro
para o Hume da terra e falso para Heimson, mesmo que eles não saibam de nada
acerca da terra e da terra-gêmea; afinal, não precisamos, para usarmos indexicais
corretamente, conhecer muito mais além das circunstâncias imediatas de sua
aplicação. Contudo, essa objeção advém de não termos percebido, não só que ao
pensamento indexical pertence mais do que a frase que o exprime, mas que ele
pressupõe muito mais do que a frase indexical. De fato, não percebemos que o
pensamento não envolve apenas aquilo que é conscientemente estruturado pela
linguagem, mas também, secundariamente, aquilo que é pressuposto pelo que é
pensado e que pertence disposicionalmente a ele. Assim, quando Heimson diz
186
“Eu sou Hume”, na medida em que ele tem a intenção de identificar-se com
David Hume1, ele só pode estar querendo dizer
(2’) Eu sou o Hume histórico do planeta terra.
Mas com isso Heimson faz incluir no pensamento as assunções contextualmente
falsas de que ele é Hume e de que ele está na terra e não na terra-gêmea. Quem
quer que saiba que o Hume histórico do planeta terra não pode ser Heimson,
saberá que o proferimento (2’) é falso.2
6. Sentido como modo de localização espaço-temporal
Há um usual engano sobre a natureza do conteúdo semântico do indexical; um
engano que se mantém tanto nas teorias da referência direta quanto no
fregeanismo. Trata-se da idéia de que o termo indexical objetiva designar
alguma coisa definida, que é um objeto no caso de demonstrativos como ‘isso’
ou ‘aquilo’, a pessoa do falante no caso do pronome pessoal ‘eu’, a pessoa do
ouvinte no caso do pronome ‘tu’ etc. Certamente, isso é bem verdade no caso do
pronome ‘ela’, que geralmente designa uma pessoa do sexo feminino. Não estou
1 Note-se que no exemplo em questão a diferença de conteúdo não se deve às diferenças simbólicas superficiais entre as palavras ‘Hume’ e ‘Heimson’, caso no qual “Eu sou Hume” quereria dizer o mesmo que “Eu me chamo Hume” ou, ainda mais explicitamente, “Eu sou o portador do nome ‘Hume’”. Mas não é isso o que está em questão, pois nesse caso os próprios pensamentos expressos pelos proferimentos (1) e (2) precisariam ser também diferentes, um verdadeiro e outro falso.2 No exemplo original de Perry, Heimson é um imitador de Hume que, acreditando ser o próprio Hume, diz “Eu escrevi o Treatise”, o que é obviamente falso, pois só o próprio Hume poderia dizer isso. Nenhuma descrição, insiste Perry, pode substituir aqui o pronome pessoal ‘eu’ dito pelo próprio Hume. Com efeito, o pronome pessoal ‘eu’ não parece ser substituível por coisa alguma de forma absolutamente congruente. Mas, como veremos, uma congruência parcial pode estar perfeitamente em ordem. Na maioria dos contextos “Hume escreveu o Treatise” faz o mesmo serviço que o proferimento acima.
187
querendo negar que essa função exista. Posso dizer “Ela é hipocondríaca”
querendo dizer com ‘ela’ ‘a Maria Lúcia’. Mas essas funções são adicionais. A
função originária e primordial dos indexicais é a de localização espaço-
temporal. Ela consiste na identificação de certo lugar espaço-temporal por sua
relação com o lugar espaço-temporal daquele que fala. Por isso é a rigor
inadequado dizer que o demonstrativo ‘isso’ se refere a um objeto próximo, pois
isso sugere tratar-se propriamente de um objeto material. Afinal, se aponto para
um buraco na parede dizendo “Isso precisa ser reparado”, não estou apontando
para nenhum objeto material, sequer para uma propriedade. Também é falso
pensar que ‘eu’ designa uma pessoa; um autômato falante pode usar a palavra
‘eu’ para designar aquilo que está falando sem nos comprometer com a idéia de
que ele é um ser humano. E da mesma forma é possível a alguém dar uma
ordem a um autômato ou a um animal tratando-o com o pronome pessoal ‘tu’
sem precisar ser uma pessoa. Percebido isso vemos que precisamos revisar as
regras constitutivas do sentido lexical dos indexicais apresentadas no início
desse capítulo como sendo originariamente regras para a identificação de locais
espaciais no tempo do proferimento, tendo como centro – o ponto-zero
egocêntrico do campo espaço-temporal do proferimento – o próprio falante.
Podemos refazer essas regras afirmando que tipicamente e primariamente:
(1) ‘isso’ e ‘aquilo’ têm a função de indicar um local respectivamente mais próximo e mais distante do falante no tempo do proferimento,
(2) ‘eu’ tem a função de indicar o local de emissão do proferimento no tempo do proferimento.
(3) ‘tu’ e ‘vocês’ tem a função de indicar respectivamente o local onde se encontra o ouvinte e o local onde se encontram os ouvintes no tempo do proferimento.
(4) ‘aqui’ e ‘agora’ tem a função de indicar respectivamente os locais espacial e temporal em que se dá o proferimento no tempo do proferimento.
188
Note-se que não estou afirmando que em contextos normais esses
demonstrativos e pronomes pessoais não possuem funções adicionais,
designando também objetos, pessoas etc. Quero dizer apenas que essas funções
lhes são secundárias e inessenciais, dependendo do contexto para existirem.
Se o sentido lexical primordial dos indexicais é o de uma regra para indicar
locais, a pergunta agora concerne o conteúdo semântico do indexical. Ora, o que
a regra constitutiva do sentido lexical do indexical faz é, dado um contexto,
indicar um local espaço-temporal particular com relação ao falante. É essa
indicação de um local que varia a cada uso de um mesmo indexical produzindo
diferentes conteúdos semânticos, diferentes modos de apresentação fregeanos de
local. É verdade que não existe um local espaço-temporal particular sem algum
preenchimento por um “algo” definido, mesmo que esse algo não seja coisa
alguma. É aqui que surgem coisas identificáveis como objetos, sujeitos, homens,
mulheres etc. que preenchem esses locais. Em suma: o conteúdo semântico
fregeano primário do indexical nada mais é do que o modo de apresentação de
um local espácio-temporal específico sob a perspectiva do falante.
Seria interessante ver agora em que medida podemos capturar
descritivamente os elementos contextuais em frases eternas tendo em mente
nosso atual entendimento do conteúdo semântico dos indexicais. Minha sugestão
é fazer isso resgatando na frase eterna não somente o contexto, mas também a
própria frase proferida, que precisa ser mencionada por pertencer ao contexto.
Eis alguns exemplos de como fazer isso:
1 Aquilo é um urso.1’ O local mais distante apontado pelo falante F no contexto da região espacial E no momento T de seu proferimento da frase ‘Aquilo é um urso’ contém um objeto que tem a propriedade de ser um urso.
2 Essa árvore está florida.
189
2’ O local mais próximo apontado pelo falante F no contexto da região espacial E no momento T de seu proferimento da frase ‘Essa árvore está florida’ contém um objeto que tem as propriedades de ser uma árvore e de estar florido.
3 Eu sou jovem.3’ O local no qual se encontra o falante F no contexto da região espacial E no momento T de seu proferimento da frase ‘Eu sou jovem’ contém um objeto que é uma pessoa e que tem a propriedade de ser jovem.
O fato de a frase indexical se repetir mencionada na exposição do conteúdo
de pensamento acontece pela propriedade de reflexividade-token das frases que
aparecem nos proferimentos indexicais: elas usam-se a si mesmas como meio de
estabelecer as relações contextuais expressivas do pensamento, as quais
precisam ser capturadas pela paráfrase descritiva. É verdade que indexicais
como ‘aquilo’, ‘essa’ e ‘eu’ comparecem nas paráfrases descritivistas (1’), (2’),
(3’); mas eles não comparecem mais com o seu conteúdo semântico; eles
aparecem mencionados metalinguisticamente em sua função lexical, em seu
caráter, que independe de variações contextuais.
7. A nova dicotomia e o problema do indexical essencial
Essa nova maneira de pensar a distinção entre sentido lexical e conteúdo
semântico tem a meu ver uma vantagem teórica importante ao permitir-nos uma
tradução suficientemente adequada das frases indexicais em frases eternas, uma
tradução que a meu ver desfaz o problema do indexical essencial.
Usando exemplos do próprio Perry, imagine que em diferentes ocasiões ele
diga:
A1 Eu estou fazendo uma bagunça.2 Agora preciso ir à reunião.3 Hoje está chovendo.
190
4 Hoje é 4 de julho de 1972 (dita em 3 de julho).
Considere agora os correspondentes proferimentos substitutivos:
B1 O local no qual se encontra o falante Perry no contexto da região espacial
da seção de adoçantes do supermercado Fleuty às 8 da noite do dia 23/06/1968, quando ele profere a frase ‘Eu estou fazendo uma bagunça’, tem um objeto que é uma pessoa que está fazendo uma bagunça.
2 O local no qual se encontra o falante Perry no contexto da região espacial do Departamento de filosofia da UCLA-Berkeley ao meio dia de 2/08/1972, quando ele profere a frase ‘Agora preciso ir à reunião’, tem um objeto que é uma pessoa que precisa ir à reunião.
3 O local no qual se encontra o falante Perry no contexto da região espacial do Willard Park em Berkeley às duas horas da tarde do dia 12/05/1972 quando ele profere a frase ‘Hoje está chovendo’, é o de um dia que está chovendo.
4 O tempo no qual se encontra o falante Perry no contexto da região espacial de Berkeley, onde ele profere a frase “Hoje é 4 de julho de 1972” é o de um dia que é 3 de julho de 1972.
É fundamental que se entenda que não estou tentando defender que os sentidos
pensados pelos falantes das respectivas sentenças do primeiro e do segundo
grupo são os mesmos. No que concerne à relação entre B1 e A1, por exemplo, é
possível que Perry tenha esquecido o próprio nome, que ele não saiba em que
supermercado se encontra, que ele não saiba que nesse dia está em Berkeley,
nem que está no Willard Park. Mas minha opinião é que isso não tem a menor
importância para o ponto que pretendo demonstrar, pois nós percebemos que
um número indeterminado de detalhes pode ser adicionado na complementação
das frases eternas. Posso, por exemplo, dizer que o supermercado Fleuty está ao
norte da cidade de Connecticut, nos EUA, que o Willard Park é uma praça em
Berkeley, que a tarde de 12/05/1971 é a estabelecida por certo tipo de calendário
referente ao tempo histórico no planeta terra etc. Essa possibilidade de
191
complementação da determinação espaço-temporal tem a ver, aliás, com o
elemento indexical pervasivo em todo o discurso empírico. O que quero dizer,
porém, é que Perry pode saber mais ou menos de 1, 2 e 3, mas que aquilo que
Perry sabe é no mínimo implicado por 1, 2 e 3 respectivamente, a saber, está
contido nesses pensamentos. Em outras palavras, o que faço ao traduzir uma
sentença indexical em sentenças eternas da espécie indicada é adicionar
elementos que o falante possivelmente desconhece, ainda assim capturando tudo
o que o falante realmente tem a dizer. É essa relação de pertencimento de
conteúdo e não uma relaçãoi de identidade de conteúdo o que aqui importa. Pois
afinal, o que uma tradução precisa capturar é o conteúdo independente daquilo
que traduz, não importando que lhe adicione elementos factuais novos, sendo
isso o que as paráfrases da coluna B fazem.
Mas se é assim, então por que o indexical parece essencial e insubstituível? A
resposta é em meu juízo bem mais banal do que se possa imaginar. Ela reside no
simples fato de que os elementos fenomenalmente dados à percepção não podem
ser linguisticamente reproduzidos por descrições. Não posso reproduzir através
de descrições lingüísticas o perfume da água de colônia, nem o calor do sol, nem
o caráter plástico de uma pintura, a não ser por paráfrases indiretas, que só serão
úteis a quem já possui experiências fenomenais equivalentes. Eu reconheço que
quanto a isso os conteúdos semânticos dos indexicais permanecem intraduzíveis
em termos descritivos. Se ao chegar pela primeira vez a Paris alguém exclama
“Lá está a torre Eiffel”, o conteúdo fenomenal de sua experiência não pode ser
satisfatoriamente reproduzido por descrições. Frege certamente sabia disso,
chamando o elemento fenomenal, na medida em que capturado pela linguagem,
de coloração (Färbung), que em contraste com o sentido resulta de regularidades
não-convencionais. Contudo, não é esse elemento o que importa. E a razão pela
qual esse elemento não tem importância é que ele não é comunicável através da
linguagem convencional. Por exemplo: só quem participa da situação indexical 192
como falante ou ouvinte pode ter acesso ao conteúdo fenomenal do proferimento
“Lá está a torre Eiffel!”.
Com efeito, o que importa é que em termos lingüístico-convencionais os
pensamentos B sempre podem substituir os pensamentos A, mesmo que os Bs
percam o elemento fenomental e que aos As ainda faltem elementos
convencionais. Mais ainda, essas substituições são freqüentes e realmente úteis.
Isso nos mostra que aquilo que há de essencial e único no indexical é apenas que
aspectos fenomenais de seus sentidos – que poderíamos chamar fregeanamente
de colorações do proferimento indexical – são episódicos e irrepetíveis.
Contudo, por isso mesmo esses aspectos se tornam incomunicáveis, deixando de
importar à linguagem. Ou seja, embora o episódio identificador e verificacional
no qual se dá o pensamento indexical seja, no que concerne à coloração, seja
único e insubstituível, a tal ponto que o próprio falante não seria capaz de
efetivamente reproduzi-lo, o mesmo não acontece com o pensamento indexical.
Esse pensamento, entendido como um modo de apresentação fregeano, ou, tal
como gostaríamos de interpretá-lo, como uma combinação episódica de regras
relacionando o falante ao contexto, não possa ser descritivamente registrado e
reproduzido. A regra constitutiva do conteúdo semântico do indexical é
episódica, tal como a coloração fenomenal, mas diversamente da última, é
descritivamente reproduzível pela linguagem. Algo se perderá, certamente, mas
o trabalho da linguagem é o de selecionar o que pode ser comunicado, pois é
isso o que mais interessa à comunidade linguística. A prova do que estou
dizendo é que o próprio Perry poderia geralmente reconhecer essas substituições
como sendo válidas. Ele poderia ser informado, por exemplo, que ao dizer que
estava fazendo uma bagunça era o dia 23/06/1968 e que ele estava no
supermercado Fleuty, ao norte de Connecticut etc. Em outras palavras: os
sentidos dos substitutos não-indexicais dos proferimentos indexicais podem ser
considerados traduções adequadas, uma vez que aquilo que eles perdem são 193
elementos fenomenais subjetivos e episódicos, enquanto o que lhes é adicionado
são elementos compatíveis com o conteúdo semântico dos indexicais por eles
capturados.
Isso pode ser melhor esclarecido quando percebemos que a tensão entre o
sentido episódico do proferimento indexical e o sentido da sua paráfrase não-
indexical só costuma ocorrer enquanto o conteúdo do proferimento é acessível
ao falante e ao ouvinte, mas não à comunidade lingüística em geral. Se o
avaliador do conteúdo dos proferimentos da coluna A não for o próprio Perry,
mas uma terceira pessoa que os reporta, passamos a admitir mais facilmente que
os seus conteúdos sejam descritivamente explicitáveis. Por exemplo: Mary
ouviu Perry dizer que está chovendo. Mas Perry tomou um alucinógeno e, como
resultado disso, além de acreditar que é outra pessoa, está alucinando chuva.
Mais tarde, ao contar o episódio a alguém, Marry diz algo como “Quando
estávamos no Willard Park em Berkeley, no diz 12, Perry disse que estava
chovendo quando na verdade não estava”. Aqui, para o propósito de
comunicação, A3 já foi completamente substituída por ao menos parte de B3.
Ora, como o proferimento com indexicais só ganha interesse em termos
informativos para a comunidade lingüística na medida em que ele for
substituível por proferimentos em terceira pessoa cujo conteúdo é
interpessoalmente acessível através de descrições independentes do contexto, o
elemento fenomenal fica limitado ao episódio em que o indexical tiver sido
usado deixa de ser relevante.
Em suma: a possibilidade de uma substituição do indexical por uma
descrição capaz de preservar o que mais interessa e adicionar elementos que
possam não ter sido pensados pelo falante, mas que seriam por ele reconhecidos
como assunções complementadoras. Por serem comunicáveis na independência
do contexto, essas apresentações descritivamente resgatáveis são as que mais
importam. Elas são possíveis e desejáveis, podendo bem servir como um filtro 194
através do qual são abstraídos os aspectos fenomenais não-convencionalmente
fundados de menor interesse.
8. A elasticidade semântica do pensamento
Considere agora os seguintes pares de proferimentos e pergunte-se se eles têm
ou não têm o mesmo sentido:
1a Eu estou com fome (dito por João) e 1b Você está com fome (dito por Maria para João).
2 Hoje é um belo dia (dito hoje) e 2b Ontem foi um belo dia (dito amanhã no mesmo local).
A resposta de Frege para casos como esses parece claramente inconsistente.
Explicitamente, ao analisar o caso (2), ele sugere que se trata do mesmo
pensamento1, o que está de acordo com nossa intuição lingüística ordinária (algo
que, aliás, a identificação kaplaniana do sentido com o caráter não permitiria
explicar). Mas essa sugestão contraria o próprio critério para a identidade do
pensamento sugerido por Frege, segundo o qual, dados dois pensamentos P1 e
P2, eles serão idênticos quando for impossível atribuir um valor-verdade a P1
sem atribuir o mesmo valor a P2, o que não acontece com os pares de
pensamentos recém-considerados.
A resposta que quero propor é a de que em um nível mais profundo Frege
não estava sendo inconsistente, pois ambas as respostas são alternativamente
corretas. Minha sugestão é a de que é preciso admitir que nosso conceito de
pensamento possui uma espécie de relatividade ou flexibilidade que gostaria de
chamar de elasticidade semântica. Trata-se aqui da propriedade de certos
conceitos de terem suas condições de aplicação tornadas mais ou menos estritas
na dependência do que estamos querendo fazer com eles. Ou seja: devemos 1 G. Frege: “O Pensamento“, p. 64 (paginação original).
195
admitir que usamos a expressão ‘o mesmo pensamento’ de maneira mais ou
menos exigente, de acordo com o contexto, sem que haja um critério geral que
estabeleça para todos os casos o grau de precisão que deve ser admitido. Sob tal
perspectiva as frases dos tipos (a) e (b) sob um ponto de vista dizem o mesmo,
mas sob outro ponto de vista não; elas exprimem o mesmo pensamento se não
formos exigentes; caso contrário, exprimem pensamentos diferentes.1
Com efeito, é assim que trabalha a linguagem. Quando digo que você e eu
tivemos “o mesmo” pensamento, estamos falando de similaridade entre dois
conteúdos de pensamento, e o grau de congruência exigido dependerá dos
interesses envolvidos no contexto do proferimento. Considere os exemplos. Os
pensamentos (1a) e (1b) são similares, pois compartilham de alguns critérios de
verificação, mas não de outros. Maria sabe que João está com fome porque sabe
que ele ficou sem comer por muito tempo; João sabe que ele próprio está com
fome porque sente a barriga roncando. Os dois critérios são inferencialmente
interligados, o primeiro usualmente implicando no segundo, que é a própria
fome de João – a condição de verdade, o fato verificador. Por isso, embora
grosso modo os proferimentos (1a) e (1b) expressem um mesmo núcleo de
pensamento, que atribui a João a sensação de fome, um exame mais acurado
mostra que esses pensamentos diferem em detalhes, pois eles constituem
procedimentos verificacionais um tanto diversos, modos de apresentação algo
diversos de um mesmo estado de coisas, procedimentos verificacionais algo
diversos, o primeiro direto, o segundo indireto. O mesmo se aplica a (2a) versus
(2b). “Hoje é um belo dia” se verifica diretamente pela percepção, enquanto
“Ontem foi um belo dia” se verifica indiretamente, pela memória da percepção,
1 Outro conceito elástico poderia ser o de identidade pessoal. Há usos nos quais uma pessoa de 80 anos é considerada a mesma pessoa que foi ao nascer, quando talvez sequer fosse uma pessoa. Há outros usos nos quais essa pessoa não pode ser identificada com a criança que foi aos sete anos de idade. E ainda há outros usos (que Chisholm chamava pejorativamente de frouxos) nos quais ela não é a mesma pessoa que era antes de ter se casado ou mesmo antes de ter bebido...
196
pela qual o mesmo estado de coisas é apresentado por um caminho
verificacional mais longo, que pressupõe o primeiro. Contudo, o critério mais
próprio está outra vez na condição de verdade, no fato verificador. Assim, de um
ponto de vista maximamente genérico, que envolve somente a condição de
verdade, os pensamentos são os mesmos. Mas se tomarmos como base a
diferença no modo de apresentação do estado de coisas, refletida na diversidade
do indexical empregado, os critérios deixam de ser os mesmos.
Diante disso pode ser argumentado que do ponto de vista da teoria fregeana
do sentido, a alternativa mais coerente poderia ser a de elevar as exigências ao
máximo, demandando que qualquer diferença criterial que possa produzir
alguma variação no valor-verdade da frase nos permitirá identificar um diferente
pensamento – afinal, é esse o critério que satisfaz a condição fregeana de
identidade do pensamento. Quero apresentar dois exemplos para mostrar que
essa solução não só não corresponde à nossa práxis lingüística, mas também não
costuma ter utilidade prática. O primeiro diz respeito a uma visita que fiz ao
museu egípcio em Berlim a procura do busto de Nefertitis. Ao entrar em um
salão cheio de gente, eu divisei o busto ao longe, me aproximei e, estando perto,
o rodeei lentamente, admirando a qualidade da escultura. Há uma série de
crenças indexicais que posso ter tido nessa ocasião. Algumas delas seriam
formuláveis como:
A1 Lá está Nefertitis (quando a distingo de longe),2 Ali está Nefertitis (quando me aproximo dela),3 Aqui está Nefertitis (quando a examino de perto),4 Aqui está Nefertitis (quando a vejo de lado),5 Aqui está Nefertitis (quando a vejo de trás)...
Outro exemplo diz respeito ao relato sobre o terremoto do Haiti. Posso dizer:
197
B 1 Acaba de haver um terremoto no Haiti (dito minutos após). 2 Acaba de haver um terremoto no Haiti (dito horas após).
3 Hoje houve um terremoto no Haiti.4 Ontem houve um terremoto no Haiti.5 Há seis meses houve um terremoto no Haiti.
A questão é: até que ponto os pensamentos de cada grupo são os mesmos? Se
mantivermos a tese da plasticidade semântica do pensamento, a resposta pode
variar.
Primeiro, se decidirmos ignorar as diferenças entre os componentes
lingüísticos e contextuais da expressão do pensamento, considerando apenas a
condição de verdade, o fato verificador, o estado de coisas, podemos dizer que
há um único pensamento expresso pelos cinco proferimentos de cada grupo,
qual seja, o de que CFC no dia tal e tal viu o busto de Nefertitis no primeiro e o
de que houve um terremoto no Haiti, no segundo. Escolho aqui o núcleo de
pensamento contido em todos os outros (a representação do estado de coisas)
cuja condição de verdade é também implicada pelas dos outros.
Se decidirmos ser um pouco mais exigentes, fazendo apelo a critérios
lingüísticos, então há três pensamentos diferentes, distinguidos pelos sentidos
lexicais dos indexicais ‘lá’, ‘ali’ e ‘aqui’; eles são (A1), (A2) e (A3, A4 e A5)
para o grupo A e (B1, B2), (B3), (B4) e (B5) para o grupo B.
Finalmente, se quisermos satisfazer rigorosamente a condição fregeana de
identidade do pensamento como dependente de qualquer coisa que influa em seu
valor-verdade, então devemos considerar o contexto espacial que envolve a
perspectiva e distância da experiência sensorial que tenho do objeto (explicitado
entre parênteses) como constituintes da expressão do pensamento. Nesse caso há
aqui cinco pensamentos em cada grupo, pois as perspectivas e distâncias
diferentes no espaço e no tempo contam, posto que deão ao falante diferentes
modos de apresentação, diferentes caminhos referenciais ou sentidos. (Se o
198
busto de Nefertitis estivesse no interior de uma câmara incrustada na parede, de
modo que não se pudesse vê-lo de trás, haveriam perspectivas que me
impediriam de atribuir verdade ao pensamento; e quanto ao terremoto do Haiti,
se eu me encontrasse em um lugar onde não me fosse possível receber
informações atuais sobre o mundo, certas distâncias temporais seriam
excluídas).
Contudo, se considerarmos assim a questão que se apresenta é o que devemos
considerar como uma diferença relevante de perspectiva. Será que eu teria um
pensamento diverso a cada 90 graus? Ou a cada 10 graus? Ou a cada mudança
perceptível de perspectiva? E o que contaria para uma alteração significativa da
distância? Para não nos perdermos em arbitrariedades, podemos estabelecer que
qualquer alteração perceptível na distância ou na perspectiva é suficiente para
produzir alguma alteração no conteúdo do pensamento – essa pode ser uma
minimização compreensível, mas é certamente ociosa. O mesmo acontece
quando consideramos (B1) e (B2) como pensamentos diferentes pelo fato de
ocorrerem em instantes perceptivelmente diferentes após o acontecimento
relatado.
Para concluir, podemos estabelecer para esses exemplos no mínimo três
critérios intuitivamente respaldados para a identidade de pensamentos em
proferimentos indexicais, do menos para o mais determinado:
1 o critério do fato referido (a condição geral de verdade empiricamente dada),
2 o critério lingüístico,3 o critério da proximidade e perspectiva espacial e/ou proximidade
temporal.
Podemos agora ver que a oscilação sobre o critério de identidade do
pensamento em Frege resulta de uma alternância implícita entre a aceitação do
199
critério (2) (diferenças nos indexicais) e a aceitação do critério (3) (qualquer
coisa que contribua para diferenciar a avaliação da verdade do pensamento). Ela
é, em meu juízo, apenas o reflexo da elasticidade semântica do pensamento
constituída pela variabilidade dos seus critérios de identificação.
9. Indexicais, descrições, regras de identificação
Vimos que muitas vezes as descrições definidas são capazes de substituir
indexicais. Quero agora mostrar que é parte da função comunicacional das
descrições definidas realizarem tais substituições.
Posso esclarecer o que quero dizer através de um exemplo. Digamos que na
preparação de um jantar a anfitriã entre em uma sala e diga ao seu ajudante:
“Leve essa cadeira para junto à mesa quando chegar a hora”. Com isso ela cria
uma regra de identificação. Isso fica claro quando, passado algum tempo o
auxiliar vai ao quarto, pega a cadeira e a leva para junto à mesa. Ele reidentifica
o objeto corretamente. A regra de identificação é aqui criada tendo como
critérios primeiro a indicação de um local no espaço egocêntrico (digamos, o
canto direito do quarto ao lado da cozinha do velho casarão) – que constitui o
conteúdo semântico, o sentido fregeano do demonstrativo ‘isso’ junto ao gesto
de ostensão; depois é adicionada a especificação do tipo de coisa que preenche o
local indicado – dada pelo sortal ‘cadeira’, ao que se adicionam as propriedades
percebidas da cadeira em questão. Qual é a estrutura dessa regra? A linguagem
nos guia: as palavras ‘essa cadeira’ formam a expressão de uma regra de
identificação. Essa regra compartilhada entre falante e ouvinte permite que o
objeto em questão seja reidentificado. Ao menos parcialmente, os critérios de
identificação dessa regra podem ser resgatados por uma descrição definida mais
elaborada como, digamos, ‘o objeto com forma de cadeira, feito de madeira,
com estofado de pano vermelho que se encontra no canto direito do quarto que
fica ao lado da cozinha da casa...’, ou ainda, sob a forma de uma descrição 200
russelliana como “Existe no mínimo um x e no máximo um x, tal que x se
encontra no canto direito do quarto ao lado da cozinha e x tem a forma de
cadeira com estofado vermelho”.1 A descrição definida, por sua vez, pode ser
também considerada como aquilo que Wittgenstein chamou de uma expressão
de regra (Regelausdruck)2, a saber, o símbolo lingüístico de uma regra. Trata-se
da expressão de uma regra cognitivo-criterial de identificação do objeto a ser
levado para junto da mesa. O que a regra nos diz é que a presença de certas
combinações de propriedades em certas circunstâncias espacio-temporais nos
autoriza a reidentificar certo objeto. Com efeito, se o ajudante tiver se esquecido
da regra, a anfitriã poderá lembrá-lo de que se trata da cadeira de estofado
vermelho que está no quarto ao lado da cozinha, recorrendo assim à descrição. A
vantagem da descrição reside no fato de possibilitar a referência mesmo na
ausência do objeto.
Os indexicais são os termos capazes de codificar informacionalmente nosso
acesso perceptual ao mundo através de alguma perspectiva contextualmente
dada, cada qual traduzindo um sentido, um modo de apresentação, um sentido.
O que mais importa ao modo de apresentação do indexical não são as suas
colorações fenomenais episódicas, mas aquilo que dele pode ser comunicado na
independência do contexto e que é resgatável através de descrições definidas. A
vantagem que a descrição definida tem sobre o indexical está na fixação de um
sentido comunicável independente da presença de um contexto próprio, ou seja,
no que já havíamos chamado de permanência.
1 A teoria das descrições de Russell só será considerada no próximo capítulo. Contudo, se nossa análise é correta, ela se aplica também ao conteúdo intersubjetivamente resgatável dos proferimentos indexicais.2 L. Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus, 5.476; Philosophische Untersuchungen, I, seção 201.
201
6. A SEMÂNTICA DAS DESCRIÇÕES
DEFINIDAS
Quero nesse capítulo passar às descrições definidas, considerando-as primeiro
sob a perspectiva da celebrada teoria das descrições de Russell1 e comparando-a,
1 B. Russell: “On Denoting” (1905), pp. 479-493. Ver também B. Russell: Introduction to Mathematical Philosophy (1919), cap. 16.
202
a seguir, com a teoria alternativa que pode ser encontrada em Frege. Geralmente
se pensa que uma dessas teorias deve ser correta (ou estar próxima disso)
enquanto a outra deve ser falsa, mesmo que ambas pareçam conter alguma
verdade. Minha suspeita é a de que se ambas parecem conter alguma verdade
então é porque ambas contém alguma verdade. Por isso sugiro a conciliação
como o melhor remédio, tentando mostrar que ambas são compatíveis no que
têm de verdadeiro, só não sendo compatíveis no que têm de falso. Melhor
dizendo, quero demonstrar que se ambas as teorias forem suficientemente
revistas – ou seja, depuradas de seus comprometimentos metafísicos
desnecessários – elas deixarão de se demonstrar competitivas, revelando-se tão
somente diferentes de se dizer o mesmo. Antes disso, porém, quero recapitular
brevemente as teorias de Russell e Frege.
1. A teoria das descrições
Considere uma sentença como “O autor de Waverley é Scott”, que começa com
uma descrição definida. Aparentemente, a sua forma lógica é a mesma que a
gramatical: trata-se de uma sentença do tipo sujeito-predicado, com a descrição
definida ‘o autor de Waverley’ no lugar do sujeito. Mas para Russell a forma
gramatical é enganadora. Ela oculta uma forma lógica mais complexa que
contém quantificadores. Para ele a sentença “O autor de Waverley é Scott” é na
verdade constituída por uma conjunção de três sentenças:
1. Há no mínimo uma pessoa que foi o autor de Waverley2. Há no máximo uma pessoa que foi o autor de Waverley.3. Se alguém foi o autor de Waverley esse alguém foi Scott.
203
Representando o quantificador existencial por E, o predicado ‘autor de
Waverley’ por W e ‘Scott’ por S, essa conjunção de sentenças se deixa
simbolizar como:
(Ex) (Wx & (y) (Wy → y = x) & Sx)
Com isso o valor-verdade de “O autor de Waverley é Scott” passa a depender
da conjunção das três sentenças sob o escopo do quantificador existencial, só
sendo verdadeiro se todas as três forem verdadeiras.
Na análise russelliana, ao serem parafraseadas por predicados quantificados
(símbolos incompletos), as descrições definidas desaparecem da posição de
sujeitos. Para Russell, isso evidencia duas teses:
(a) Descrições definidas não são expressões referenciais. (b) Descrições definindas não têm significado por conta própria.
As descrições definidas não são expressões referenciais porque em sua forma
analisada não contém nomes, reduzindo-se a conjunções de predicados
quantificados. Russell defende que, como as descrições definidas enquanto tais
não nomeiam nada, elas não podem ter qualquer sentido por conta própria, mas
apenas como parte da sentença. Como Russell escreveu:
A expressão (descrição definida) per se não tem nenhum significado, porque qualquer proposição na qual ela ocorre, a proposição, inteiramente expressa, não contém a expressão, que foi desmembrada. 1
Russell pensa assim porque defende uma concepção referencialista do
significado do termo singular, segundo a qual ele deveria ser dado por sua
própria referência. Como já vimos no capítulo 2, para ele isso só aconteceria 1 B. Russell: “On Denoting”, p. 51.
204
realmente no caso de nomes próprios lógicos como “isso”, ditos na presença de
sua referência seja ela um sense datum ou um universal... Como descrições
definidas não são nomes próprios lógicos, elas nem referem nem podem ter
significado por si mesmas. Todavia, já vimos que a concepção referencialista do
significado mantida por Russell é praticamente insustentável. Isso acaba por
tornar, como veremos mais tarde, tanto (a) quanto (b) teses igualmente
insustentáveis.
Russell estende a sua análise das descrições definidas aos nomes próprios
usuais, que para ele são descrições truncadas ou abreviadas. Assim, um nome
próprio como ‘Bismark’ poderia abreviar ao menos uma descrição como ‘o
primeiro chanceler do império Germânico’. E um nome próprio sem referente,
como ‘Pégaso’, poderia abreviar uma descrição como ‘o cavalo alado de
Belerofonte’. Uma sentença como “Pégaso é rápido” significa então o mesmo
que “O cavalo alado de Belerofonte é rápido”, a ser analisada como “Há no
mínimo um e no máximo um cavalo alado de Belerofonte e ele é rápido”.
Chamando o predicado ‘cavalo alado de Belerofonte’ de B e o predicado ‘é
rápido’ de R, essa última sentença pode ser simbolizada como:
(1) (Ex) (Bx & (y) (By → y = x) & Rx).
Essa sentença é falsa, pois “(Ex) (Bx)” é uma sentença falsa.
Russell se defronta aqui com o seguinte problema. Considere a negação de
(1):
(2) O cavalo alado de Belerofonte não é rápido.
Pela teoria das descrições, a análise dessa sentença parece ser: “Há no
mínimo um e no máximo um cavalo alado de Belerofonte, e ele não é rápido”. 205
Mas essa é uma sentença falsa, dado que a primeira sentença da conjunção
permanece a mesma e que ela é falsa. Assim, tanto a sentença analisada (1)
quanto a sua negação (2) são falsas. Mas essa conclusão infringe o princípio da
bivalência, segundo o qual a negação de uma sentença verdadeira é sempre falsa
e vice-versa.
A solução encontrada por Russell para o problema consiste em entender
sentenças similares a (2) como sendo ambíguas, admitindo duas leituras. Na
primeira, a descrição definida não é constituinte de uma expressão mais
complexa, tendo escopo amplo (ocorrência primária). Nesse caso temos
(3) (Ex) (Bx & (y) (By → y = x) & ~Rx)
que é uma sentença também falsa, posto que “(Ex) (Bx)” é falso. Mas (3) não é a
negação de (1) e sim o seu contrário. A negação de (1) é aquela na qual a
descrição definida se torna constituinte de uma expressão mais complexa,
passando a ter escopo estreito em relação a ela (ocorrência secundária). Nesse
caso ela será:
(4) ~(Ex) (Bx & (y) (B y → y = x) & Rx).
Ora, segundo essa interpretação a negação da sentença “Pégaso é rápido” é a
sua contraditória, ou seja, “Não é o caso que: Pégaso é rápido”, que se deixa
analisar como uma sentença verdadeira, demonstrando que a infração do
princípio da bivalência era apenas aparente.
2. Objeções de Strawson
Quero agora considerar algumas objeções mais importantes feitas à teoria das
descrições, para mostrar que nenhuma delas chega a ser decisiva.206
Entre as objeções mais influentes destacam-se as de P.F. Strawson.1 Uma
primeira e mais geral objeção é a de que Russell analisa sentenças (sentences),
enquanto o que precisa ser analisado são sentenças enquanto estão sendo usadas
por seres humanos na conversação, a saber: enunciados (statements) – pois é aí
que se dá o ato de referir.
Essa objeção só se aplica realmente a sentenças que contém indexicais, como
é o caso da sentença escolhida por Strawson, que é (i) “O presente rei da França
é sábio”, cujo sentido epistêmico é completado pelo contexto. Outras sentenças,
como “O autor de Waverley é Scott” ficam imunes a essa objeção. Além disso,
como já vimos, mesmo no caso da sentença conter um elemento indexical, ele
pode ser essencialmente explicitado em parlavras no interior de sentenças, como
acontece na sentença (i’) “O Rei da França em 2012 é sábio”.
A segunda e mais famosa objeção é a de que enunciados sobre objetos
inexistentes não são falsos, como a teoria das descrições exige, mas destituídos
de valor-verdade. Considere, por exemplo, o seguinte enunciado:
(i) O atual rei da França é sábio.
Se perguntarmos a alguém se o atual rei da França é calvo, a pessoa não
responderá que isso é falso. Ela dirá: “Mas como assim? A França não tem rei!”
Em outras palavras, o enunciado em questão, embora possuidor de sentido, é
falho, não chegando a possuir valor-verdade. Strawson tem razões para pensar
assim. Para ele o enunciado “O atual rei da França é calvo” não implica no
enunciado “Existe um atual rei da França”, como pensa Russell, mas o
pressupõe. Um enunciado B pressupõe um enunciado A quando B só pode ser
verdadeiro ou falso no caso de A ser verdadeiro. Ora, como o enunciado “O
1 P.F. Strawson: “On Referring”.207
atual rei da França existe” é falso, o enunciado “O atual rei da França é calvo”,
que o pressupõe, não pode ser nem verdadeiro nem falso.1
O recurso à pressuposição cria ao menos um problema imediato: o que dizer
de negações de enunciados de existência sem referência? Considere o enunciado
“O atual rei da França não existe”. Ele é certamente verdadeiro. Mas como o
enunciado por ele pressuposto – “O atual rei da França existe” – é falso, ele não
pode ser nem verdadeiro nem falso. Como vimos, Russell resolve esse caso sem
criar problemas.
Outro ponto, notado pelo próprio Russell em sua resposta a Strawson é que a
linguagem natural não é suficientemente perspícua para forçar-nos a concordar
com Strawson: se ela não nos fornece a intuição de que “O atual rei da França é
calvo” é uma sentença falsa, ela também não nos informa que a sentença não
possui valor-verdade.2
A resposta que me parece a mais acertada é a de Russell. Ela foi elaborada
por defensores da teoria das descrições na forma da seguinte explicação. 3
Embora não nos pareça intuitivamene claro qual possa ser o valor-verdade do
enunciado “O atual rei da França é sábio” ou mesmo que ele tenha um valor-
verdade, ele é de fato falso. E a razão disso fica clara quando o comparamos
com enunciados usuais como, digamos, “A rainha da Inglaterra tem cabelos
brancos” (dito em 2011). É que na imensa maioria dos casos, quando
predicamos falsamente alguma coisa, nós já estamos assumindo a existência do
objeto referido pela sentença para então constatarmos que o predicado não se
aplica a este objeto. Como no enunciado selecionado por Strawson isso não
acontece, nós o achamos estranho e confusivo, posto que ele é inútil no contexto
1 P.F. Strawson: Introduction to Logical Theory, p. 184 ss.2 Cf. Bertrand Russell: “Mr. Strawson on Referring”, pp. 245-6.3 Mark Sainsbury: Russell, pp. 120-121; Peter Hilton: “The Theory of Descriptions”, p. 230; Simon Blackburn: Spreading the Word: Groundings in the Philosophy of Language, pp. 309-310.
208
de nossas práticas conversacionais. Por isso hesitamos em chamá-lo de falso. No
entanto, também nesse enunciado ocorre do predicado não se aplicar, se não pela
razão usual, que seria a de não ser satisfeito por propriedades do objeto referido
pelo termo singular, ao menos pela razão anômala de que não há nenhum objeto
sendo referido por um termo singular. Seja como for, o que é semanticamente
decisivo é se o predicado se aplica ou não. E como ele não se aplica é mais
correto dizer que ele é falso.
Essa explicação fica mais convincente quando percebemos que o enunciado
escolhido por Strawson é um caso isolado, e que muitos outros enunciados
destituídos de referência realmente são vistos como sendo falsos. Considere os
seguintes:
(i) O atual rei da França está querendo proibir os turistas de visitar o palácio de Versalhes.
(ii) O atual rei da França está namorando a minha mãe.(iii) Encontrei o atual rei da França fazendo exercícios na praia esta
manhã.
Apesar de não possuírem referência, os enunciados de (i) a (iii) nos parecem
claramente falsos.1 Mas por que eles contrastam com o exemplo de Strawson? A
razão parece-me ser a seguinte: por ser o termo geral ‘sábio’ desprovido de
articulação sintática, “O atual rei da França é sábio” é uma frase que enfatiza a
descrição definida, voltando-nos a atenção para o fato de que essa descrição não
se refere a coisa alguma. Mas nesse caso, por que predicar? Que sentido faz
dizer algo assim? Já nos exemplos (i)-(iii), predicados com articulação sintática
como ‘está querendo proibir os turistas de visitar o palácio de Versalhes’ nos
chamam mais a atenção do que a descrição definida, fazendo-nos atentar para o
fato de eles se aplicarem ou não, o que já basta para nos enclinarmos a lhes
atribuir valores-verdade. Esses predicados desviam-nos do fato perturbador que 1 Exemplos similares encontram-se em Stephen Neale: Descriptions, p. 27.
209
é o da inutilidade conversacional de enunciados predicativos referencialmente
vazios. Mas como a estrutura dos enunciados (i)-(iii) é a mesma do exemplo
escolhido por Strawson, é natural e correto estender a atribuição de falsidade
também a esse exemplo ao invés de recorrer ao artifício da pressuposição.
Uma terceira objeção diz respeito à idéia de unicidade. A sentença (1) “A
mesa redonda está coberta de livros” começa com uma descrição definida. A
paráfrase russelliana dessa sentença seria: (2) “Existe no mínimo uma mesa
redonda, no máximo uma mesa redonda, e ela está coberta de livros”. Mas isso é
absurdo, pois implica que só existe uma mesa redonda no universo.
Há duas estratégias mais comuns para se responder a essa objeção. A
primeira consiste em sugerir que um enunciado como (1) é elíptico, vindo no
lugar de uma descrição mais complexa como (3): “A mesa redonda localizada
no meio da sala de estar do apartamento 403 do edifício Villagio… está coberta
de livros”. A análise russelliana disso não nos comprometeria mais com a
afirmação de que só existe uma mesa redonda no mundo.
Uma dificuldade com essa espécie de solução é que não existe uma regra que
nos permita identificar qual é a descrição completa. Considere a descrição (4)
“A mesa redonda que foi comprada por Ana Lúcia no ano passado está cheia de
livros”. Sendo verdadeira e se referindo a mesma mesa que (1), a descrição que
ela contém tem o mesmo direito de figurar como a descrição completa quanto
(3), pois (2) pode ser considerada uma forma elíptica de ambas. Como em geral
não somos capazes de dizer que descrição completa tínhamos em mente ao usar
a suposta descrição elíptica, a solução parece ser arbitrária.1
A outra estratégia consiste em limitarmos contextualmente o domínio dos
quantificadores. Assim, na sentença resultante da análise de (1) o domínio dos
quantificadores deve ficar contextualmente restringido, digamos, ao conjunto
dos objetos que se encontram no apartamento 403 do edifício Villagio de
1 Howard Wettstein: “Demonstrative Reference and Definite Descriptions”, pp. 241-257.210
Milano. Chamando esse domínio de D, temos (5) “Existe somente um x
pertencente ao domínio D, tal que x é uma mesa redonda, e para todo y
pertencente ao domínio D, se y é uma mesa redonda, y = x, e x está coberta de
livros”. Além de evitar ambigüidades, essa estratégia é condizente com o fato de
que em nossa linguagem quantificadores nunca são usados em um domínio
verdadeiramente universal. Se digo “Todos os homens são mortais”, por
exemplo, me refiro ao domínio dos homens que viveram até hoje,
desconsiderando, por exemplo, homens que venham a nascer no futuro como
efeito de alguma manipulação genética capaz de deter o envelhecimento.
Uma objeção feita a essa solução seria que ela mostra que a descrição
analisada tem uma extensão maior do que a descrição original, não podendo
ambas ser equivalentes.1 Mas essa pode bem ser uma impressão ilusória.
Considere que em sua formulação analisada a sentença (1) quer dizer apenas (6)
“Existe somente uma mesa redonda (nesse apartamento), que está coberta de
livros”. Mas com (1) queremos dizer intuitivamente o mesmo que (7) “A mesa
redonda (desse apartamento) está coberta de livros”. Mas há realmente alguma
diferença entre (6) e (7)? Parece que não. É razoável pensarmos em (7) como
sendo uma sentença implicitamente quantificada, cujo domínio é estabelecido
pelo contexto conversacional como sendo o espaço do apartamento em questão,
dizendo por isso a mesma coisa que (6). Tipicamente, a unicidade da predicação
parece ser garantida por uma restrição do domínio da quantificação que varia
com a prática lingüística na qual o proferimento é feito.
3. Donnellan: usos atributivo e referencial
1 Jason Stanley e Timothy Williamson: “Quantifiers and Context Dependence”, pp. 291-295.211
Outra objeção influente foi feita por Keith Donnellan.1 Esse filósofo partiu de
uma distinção entre dois usos da descrição definida, que ele chama de atributivo
e referencial.
Vejamos primeiro o uso atributivo, tradicionalmente considerado pela teoria
das descrições de Russell. Nele a descrição vale pelas propriedades que ela
atribui a algo. Assim, se é mostrado a alguém o cadáver de Mário, que foi
brutalmente assassinado, a pessoa pode ser levada a proferir a frase “O assassino
de Mário é insano”. Mesmo que desconheça o assassino de Mário, a pessoa
atribui a propriedade de ser o assassino de Mário e de ser insano a uma única
pessoa.
Vejamos agora o uso referencial identificado por Donnellan. Digamos que
alguém esteja em um tribunal e que o réu acusado de ter assassinado Mário se
comporte de forma insana. Querendo comentar o seu comportamento, a pessoa
pode ser levada a proferir a frase “O assassino de Mário é insano”. Mas aqui não
importa se o réu é realmente o assassino de Mário. Pode até ser que Mário não
tenha sido realmente assassinado. Mesmo assim, todos compreendem a quem a
pessoa está se referindo. No uso referencial as propriedades conotadas pela
descrição não têm importância; o que importa é a intenção de referência do
falante.
A opinião de Donnellan é de que a teoria de Russell não se aplica nem ao uso
referencial nem ao uso atributivo. Não se aplica ao uso referencial porque ao
afirmar que o assassino de Mário é insano dentro do contexto em questão, não se
está querendo dizer que existe exatamente um assassino de Mário, como a
análise de Russell sugere. O enunciado pode inclusive ser verdadeiro, mesmo
que o réu não seja o assassino, diversamente do que a análise russelliana prevê.
Está-se aqui apenas usando a descrição como uma ferramenta para a referência.
1 Keith Donnellan: “Reference and Definite Descriptions”.212
Além disso, como Donellan aceita a teoria pressuposicional de Strawson, para
ele a teoria de Russell também não dá conta do uso atributivo.
Contra a opinião de Donnellan pode ser observado que no que concerne ao
uso atributivo, não há razões suficientes para crermos que a análise russelliana
não se aplica, dado que a crítica de Strawson não tem nada de decisivo. Mas que
dizer do uso referencial? Antes de respondermos, vale expor a importante
análise do uso referencial sugerida por Saul Kripke.1
Segundo Kripke, há no uso referencial duas espécies de referência: a
referência semântica (semantic reference) e a referência do falante (speaker
reference). A referência semântica diz respeito ao sentido literal das palavras na
descrição, que pode ser analisado pela aplicação da teoria das descrições. Para
explicá-la, considere outra vez o proferimento “O assassino de Mário é insano”
em seu uso referencial. Considerado pelo seu sentido literal, ele será um
proferimento falso no caso do réu em questão não ser o assassino de Mário. Mas
esse sentido literal não é o que está sendo tematizado no uso referencial. O que
importa no uso referencial é a referência do falante, que é o sentido não-literal
da referência mediado pelo contexto. Ao tematizar a referência do falante, a
descrição definida passa a funcionar indexicalmente, como uma espécie de
demonstrativo. A descrição “O assassino de Mário” tem o sentido de, digamos,
‘aquele réu que nós vimos hoje no tribunal’; eis porque o proferimento é
verdadeiro mesmo que o réu seja inocente. (Há é claro, casos nos quais a
descrição não identifica algo que se encontra no campo perceptual do falante,
mas isso não invalida a tese de que ela funciona como um indexical, posto que
demonstrativos nem sempre demandam que o referente sempre pertença ao
campo perceptual do falante.)
No uso referencial, a referência semântica é apenas um veículo para a
referência do falante. Esse ponto essencial é facilmente obscurecido pelo fato de
1 Ver Saul Kripke: “Speaker’s Reference and Semantic Reference”, pp. 6-27.213
que entre o uso atributivo e o uso referencial há uma variedade de graus
intermediários, em que a referência semântica ainda mantém uma maior ou
menor importância. Se descontarmos isso, veremos que a tematização da
referência do falante torna a análise russelliana irrelevante para o caso do uso
tipicamente referencial.
Seja como for, o que a distinção kripkiana sugere é que o uso atributivo é que
é característico das descrições definidas, enquanto o uso referencial é
parasitário. Essa suspeita é reforçada quando percebemos que o fenômeno da
indexicalização do termo singular não se restringe às descrições definidas. Ele
também pode acontecer com nomes próprios. Digamos que em uma festa
alguém diga: “A Joana está soltando a franga”, referindo-se ao comportamento
estravagante de uma mulher que na verdade tem outro nome. Nesse caso ‘a
Joana’ está no lugar de um demonstrativo como ‘aquela moça loira...’ Isso
apenas reforça a idéia de que o uso referencial é secundário, não-literal,
adventício. Aqui o termo singular é usado como um indexical que conota apenas
um tipo genérico de coisa, por exemplo, ‘ele’ (‘o assassino de Mário’) ou ‘ela’
(‘a Joana’). A análise russelliana não se aplica a esses casos porque ela não foi
concebida para ser aplicada a indexicais camuflados na forma de descrições
definidas.
Por fim, é possível argumentar no sentido de mostrar que a análise russelliana
se aplica até mesmo à referência do falante no uso referencial. Afinal, se o
indexical também pode envolver um conteúdo semântico suficientemente
resgatável em termos descritivos, como já foi sugerido no capítulo anterior,
então a análise russelliana também deve se aplicar ao indexical e, por
conseguinte, ao uso atributivo. Ao invés de “O assassino de Mário é insano”
podemos dizer “Aquele sujeito no tribunal é insano”, e ainda “Existe somente
um x que é réu no julgamento do assassinato de Mário, e x é insano”. Ao invés
de “A Joana está soltando a franga” podemos dizer “Aquela moça loira 214
dançando sozinha no salão está soltando a franga”, ou ainda “Existe no mínimo
um x e no máximo um x que é uma moça loira que dançou sozinha no final baile
de formatura, e x estava soltando a franga”.
4. Soluções russellianas dos enigmas da referência
A teoria das descrições foi criada para resolver os chamados enigmas da
referência, concernentes a descrições definidas e a nomes próprios. Quero expor
esses enigmas seguidos das soluções de Russell.
(i) Referência a inexistentes. Considere outra vez uma sentença cujo sujeito
gramatical não se refere a nada, como “O atual rei da França é calvo”. Como é
possível predicar calvície de algo que não existe? A resposta de Russell é que
esse problema só existiria se a descrição ‘o atual rei da França’ fosse uma
expressão referencial, funcionando como termo singular, um nome próprio. Mas
esse não é o caso. Chamando os predicados ‘atual rei da França’ de F e ‘é calvo’
de C, a teoria das descrições nos permite simbolizar “O atual rei da França é
calvo” como: “(Ex) (Fx & (y) (Fy → y = x) & Cx)”. Ou então, para usar uma
formulação mais intuitiva na qual parafraseamos ‘no mínimo um e no máximo
um’ por ‘exatamente um’ temos a seguinte sentença:
Existe exatamente um x, tal que x é o atual rei da França e x é calvo.
Em qualquer das formulações, uma coisa fica clara: não estamos predicando
calvície do atual rei da França! Por isso não precisamos assumir a existência
desse rei.
(ii) Existenciais negativos. O segundo enigma, uma variante do primeiro, diz
respeito à aparente impossibilidade de se negar a existência de um objeto
quando o enunciado em que se nega a existência é sobre esse mesmo objeto.
Para esclarecê-lo, considere as seguintes frases:215
(1) O atual rei da França não existe,(2) (1) é sobre o atual rei da França.
Ambas parecem ser verdadeiras. Mas elas são inconsistentes entre si. Se a
frase (2) é verdadeira e (1) é sobre o atual rei da França, então a frase (1) precisa
ser falsa e vice-versa.
Russell resolve o enigma sugerindo que (2) é uma sentença falsa. Para tal ele
interpreta a descrição definida em (1) como possuindo um escopo estreito em
relação à descrição definida. A forma analisada da sentença (1) fica sendo ~(Ex)
((Fx & (y) (Fy → y = x)), ou ainda, em uma formulação mais intuitiva:
Não é o caso que existe somente um x, tal que x é o atual rei da França.
Essa é uma sentença verdadeira, pois é a negação de uma conjunção falsa.
Mas com ela não nos comprometemos com a existência do atual rei da França
para podermos negar que ele existe. Nós nos comprometemos apenas com a
negação da existência de algo que tenha a propriedade de ser o atual rei da
França.1
(iii) Sentenças de identidade. O terceiro enigma é o paradoxo fregeano da
identidade. Considere o enunciado: (1) “O autor de Waverley é Scott”. Ele
contém duas expressões referenciais, ambas denotando a mesma pessoa. Mas se
é assim, então a sentença (1) deveria ser tautológica, dizendo o mesmo que (2)
“Scott é Scott”. Contudo, sabemos que (1) é uma sentença informativa e
contingente. Por quê?
1 Ignoro imperfeições na análise de Russell como o fato de que a negação é verdadeira não só no caso de não existir nenhum atual rei da França, mas também no caso de existir mais de um.
216
A solução de Russell consiste outra vez em fazer desaparecer a descrição
definida. Chamando Scott de s, podemos parafrasear a identidade como “(Ex)
(Wx & (y) (Wy → y = x) & (x = s))”. Ou, mais intuitivamente:
Existe somente um autor de Waverley e ele é Scott.
Através dessas formulações fica claro que (1) é uma sentença informativa, pois
o que dizemos deixa de apresentar uma identidade tautológica para se tornar
uma afirmação substantiva.
(iv) Opacidade. Um quarto enigma que a teoria das descrições é chamada a
resolver é o da intersubstitutividade em sentenças que exprimem atitudes
proposicionais, que são estados relacionais conectando uma atitude mental a
uma proposição ou pensamento. Considere, por exemplo, a sentença “George IV
acredita que Scott é Scott”. Para acreditar nisso de forma indubitável, ela precisa
apenas saber aplicar o princípio da identidade. Pois Scott é Scott é uma verdade
necessária. Mas como o nome ‘Scott’ e a descrição ‘o autor de Waverley’ se
referem reconhecidamente a uma mesma pessoa, parece que podemos substituir
a primeira ocorrência da palavra Scott na primeira sentença por essa descrição,
disso resultando “George IV acredita que o autor de Waverley é Scott” sem que
a sentença se torne falsa. Mas não é isso o que acontece: pode muito bem ser
que essa última sentença seja falsa, apesar da primeira ser verdadeira. Por que é
assim?
Para responder a essa objeção, podemos usar a teoria das descrições para
parafrasear a descrição que vem após ‘George IV acredita’ como:
George IV acredita que existe somente um autor de Waverley e que ele é Scott.
217
Certamente, essa é uma crença informativa, claramente distinta da crença
tautológica de que Scott é Scott. Por isso ela pode ser falsa.
5. Soluções fregeanas para os enigmas da referência
Frege tem uma solução explícita para os dois últimos enigmas da referência.
Quanto aos dois primeiros, a solução pode ser reconstrutivamente buscada.
(i) Referência a inexistentes. Frege sugeriu que na linguagem ideal o termo
singular sem referência deva se referir ao conjunto vazio. Podemos aplicar essa
sugestão à linguagem ordinária, sugerindo que uma frase como “O atual rei da
França é calvo” é falsa, posto que o conjunto vazio não é calvo. Mas além de ser
artificiosa essa sugestão conduz a conclusões absurdas, como a de que a frase
“Pégaso é o atual rei da França” é verdadeira, posto que tanto ‘Pégaso’ quanto
‘o atual rei da França’ se referem a mesma coisa, a saber, ao conjunto vazio.
Uma alternativa mais aceitável, que irei admitir para fins de discussão,
consiste em sugerir que os termos singulares sem referência adquirem em frases
referência indireta, passando o predicado a eles ligado a aplicar-se ao seu
sentido e não mais ao seu objeto. Assim, o predicado ‘...é calvo’ na frase ‘O
atual rei da frança é calvo’ passa a se referir ao sentido da descrição ‘o atual rei
da França’. No linguajar fregeano, o que cai sob o conceito referido pelo
predicado deixa de ser um objeto para se tornar o próprio sentido do termo
singular. Mesmo que essa aplicação do predicado não lhe permita alcançar o
objeto, ela é capaz de nos permitir ao menos completar o pensamento e dar
sentido à frase, ao menos na medida em que o termo singular possui realmente
sentido.1 Além disso, frases com termos singulares vazios não teriam valor-
verdade, pois aplicado o predicado apenas ao seu sentido (podemos supor) não
1 Penso em casos de termos singulares vazios como ‘Vulcano’, que foram propostos com um modo de apresentação voltado para o mundo real, o que não é o caso de nomes meramente ficcionais.
218
teríamos como saber se o predicado se aplica à referência do termo singular ou
não.
(ii) O enigma dos existenciais negativos pode ser mais razoavelmente resolvido
usando a concepção fregeana de existência. Considere, por exemplo, a frase (1):
“O atual rei da França não existe”. A existência é para Frege uma propriedade
do conceito de sob ele cair ao menos um objeto. Assim, a frase (1) não é sobre o
atual rei da França, mas sob o seu conceito. A sua formalização não é ~Ef (onde
‘~E’ estaria predicando a inexistência e ‘f’ estaria no lugar da descrição
definida). Mas, estando o predicado F no lugar de ‘...é atual rei da França’, uma
formalização aproximada seria “~Ex(Fx & (y) (Fy → y = x))”, ou seja, “Não
existe um x que é atual rei da França, e para todo y que é atual rei da França, ele
é x”, mais brevemente, “Não existe um algo que seja o atual rei da França”.
Além disso, se nomes próprios, como Frege teria sugerido, são abreviações de
feixes de descrições definidas, então uma estratégia semelhante seria aplicável a
existenciais negativos com nomes vazios, como “Pégaso não existe”. O que essa
frase quer dizer é que o conceito de algum modo expresso pelo feixe de
descrições definidas abreviado pelo nome ‘Pégaso’ não é satisfeito por nenhum
objeto.
(iii) O enigma da identidade entre descrições pode ser exemplificado pela frase
mais discutida da filosofia analítica: “A estrela da manhã é a estrela da tarde”.
Para Frege tal frase de identidade é informativa porque as descrições ‘a estrela
da manhã’ e ‘a estrela da tarde’ têm sentidos ou modos de apresentação do
objeto que são diferentes, apesar de ambas terem a mesma referência, o planeta
Vênus. Ora, é informativo dizer que esses dois valores epistêmicos diversos
dizem respeito a um mesmo objeto.
(iv) Quanto ao enigma dos contextos opacos, Frege sugere que em
proferimentos de atitudes proposicionais a frase subordinada não tem a
referência habitual, mas uma referência indireta, que é o seu próprio sentido. 219
Assim, no proferimento “George IV acredita que o autor de Waverley é Scott”, a
referência da frase subordinada “o autor de Waverley é Scott” não é nem o seu
valor-verdade nem o fato no mundo, mas o pensamento por ela expresso. Como
“o autor de Waverley é Scott” exprime um pensamento diferente de “Scott é
Scott”, a substituição salva-veritate entre eles não é possível.1
Não quero discutir aqui as objeções de detalhe que poderiam ser feitas a cada
uma dessas soluções. Quero responder apenas à objeção geral feita às soluções
fregeanas dos enigmas da referência, segundo a qual elas nos comprometem
com um realismo platonista de sentidos e pensamentos, diversamente da solução
ontologicamente mais econômica de Russell.
Não creio que o compromisso com entidades abstratas seja forçoso. Como já
vimos no capítulo sobre Frege, os sentidos fregeanos podem ser identificados
com regras ou combinações de regras semântico-cognitivas, as quais
determinam usos referenciais das expressões.2 Sob esse entendimento o sentido
da descrição definida deve ser uma regra capaz de identificar o objeto a ela
associado. Como já vimos, o mesmo pode ser suposto com respeito a outras
expressões lingüísticas, disso resultando uma paráfrase do discurso sobre
sentidos através de um discurso sobre regras cognitivas, o qual pode ser visto
como ontologicamente inócuo.
1 Há o problema decorrente do fato de que se a frase subordinada se refere ao seu sentido ela precisa exprimir um sentido idêntico de nível superior através do qual faça essa referência, o qual parece permanecer opaco à apreensão intuitiva, além de produzir eventuais regressos. Melhor seria não tomarmos o esquema fregeano demasiado a sério. Não existem sentidos de nível superior aqui. Acontece apenas que quando a referência usual não entra mais em questão, a única referência que resta é o próprio sentido. A frase subordinada expressa um sentido ao mesmo tempo que se refere a ele em função de sua dependência da frase principal.2 Como já foi observado no capítulo 2, essa idéia é plausível, dado que a linguagem é um sistema de convenções, o que é perfeitamente compatível com a identificação do significado com o uso por um filósofo como Wittgenstein, posto que o significado não pode ser o uso-ocorrência, mas sim o modo de uso, e o modo de uso nada mais pode ser do que a regra ou combinação de regras que produz o uso-ocorrência. Até mesmo a idéia de Russell de que o sentido de um nome próprio lógico como “Isso-vermelho” é o próprio sense-datum do vermelho torna-se mais aceitável se ele for, ao invés, identificado com uma regra que associe a palavra ‘isso’ à cognições de sense-data de vermelho.
220
Aqui também poderá ser feita a objeção de que estamos apenas substituindo a
palavra ‘sentido’ pela palavra ‘regra’, e que essa é uma solução meramente
verbal, pois se os sentidos são entidades abstratas, as regras também parecem sê-
las. No entanto, também é possível responder, como já fizemos, alegando que as
regras em questão não existem fora de suas instanciações como eventos
cognitivo-psicológicos capazes de se evidenciar publicamente pelas
manifestações comportamentais de suas aplicações, nada mais existindo fora
disso. Tais cognições podem ser identificadas como iguais umas às outras, não
por serem instanciações de algum objeto abstrato, “a Regra”, mas por
similaridade suficiente com outros atos anteriores de sua aplicação, que nos
serviriam de modelos. Tal assunção impede que o sentido – o modo de
apresentação informacional parafraseado como regra semântica – seja
injustamente decepado pela navalha de Ockham.
6. Compatibilizando “Russell” com “Frege” (considerações preliminares)
Quem está certo? Russell ou Frege? Muita tinta já foi derramada na disputa
sobre a teoria correta. Como já observei no início, minha sugestão é que não se
trata de uma questão de escolha entre uma e outra teoria, uma vez que ambas
podem ser tornadas compatíveis entre si. Melhor dizendo: se elas forem
revisadas de maneira suficientemente radical, elas podem ser demonstradas
formas diversas de se dizer o mesmo. Pois é lícito supor que a incompatibilidade
entre as duas teorias resulta dos pressupostos e princípios metafísicos
implausíveis que seus autores lhes adicionaram como complementos que eles
tinham por necessários. Assim, minha proposta é reapresentar essas teorias
retirando-lhes a gordura metafísica, ou seja, depurando-as de seus respectivos
pressupostos e compromissos implausíveis e preenchendo as lacunas com novos
pressupostos, o principal deles sendo a interpretação dos sentidos fregeanos
como regras semânticas semântico-cognitivas. É isso o que faremos a seguir.221
Comecemos com Frege. Já vimos que é preciso eliminar o anacrônico
realismo ontológico dos sentidos, que devem ser vistos como simples
instanciações psicológicas de conteúdos ou regras semânticas. Repetindo o que
já foi sugerido em nossa leitura de Ernst Tugendhat no capítulo 3, para o caso
fundamental das frases predicativas singulares o termo singular possui uma
regra de identificação, o termo geral possui uma regra de aplicação e a frase
singular predicativa possui uma regra de verificação, constituída pelo que
poderíamos chamar de um uso combinado de sua regra de identificação com a
sua regra de aplicação1, sendo perfeitamente plausível identificarmos os sentidos
fregeanos desses elementos da linguagem com as suas respectivas regras
semânticas. Assim:
1) Sentido da termo singular (modo de apresentação do objeto) = regra de identificação do termo singular, cujos critérios de aplicação são propriedades identificadoras do objeto.
2) Sentido do termo geral (conteúdo conceitual) = regra de aplicação da expressão predicativa, cujos critérios de aplicação seriam propriedades particularizadas associadas ao objeto.
3) Sentido completo da frase (pensamento) = regra de verificação da frase predicativa singular, cujos critérios de aplicação seriam os fazedores da verdade, como vimos, os fatos.
Uma outra coisa que fizemos foi parafrasear a noção de existência. Vimos no
capítulo 3 que para Frege e também para Russell a existência é a propriedade
que um conceito tem de ser satisfeito por ao menos um objeto2, ou, como
preferimos entender, a propriedade de aplicar-se de modo efetivo (e não
meramente suposto) a pelo menos um objeto durante um certo período de tempo
(no qual ele é dito existente). Se dizemos saber que um objeto existe, o que
queremos dizer é que sabemos que o seu conceito é efetivamente e 1 Ernst Tugendhat: Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, p. 262. Ver também Ernst Tugendhat e Ursula Wolf: Propedêutica Lógico-Semântica, p. 185.2 Gottlob Frege: Die Grundlagen der Arithmetik, par. 53.
222
continuamente aplicável enquanto o objeto puder ser dito existente.
Considerando que conteúdos conceituais são sentidos e que sentidos são regras,
então o que chamamos de existência desse objeto passa a ser a propriedade de
uma regra conceitual de se aplicar efetiva e continuamente a pelo menos um
objeto. Mais ainda, vimos que isso não retira da existência certa objetividade.
Pois se ela é a efetiva aplicabilidade de uma regra conceitual, então o seu objeto
pode ser dito existente na medida em que ele possui a propriedade de satisfazer a
regra, ou seja, de ter essa regra efetiva e continuamente aplicável a ele mesmo.
Isso pode ser admitido para cada uma das regras consideradas: (i) a existência de
um objeto é a efetiva aplicabilidade da regra de identificação do seu termo
singular, (ii) a existência de uma propriedade singularizada é a efetiva
aplicabilidade da regra de aplicação de seu predicado, e (iii) a existência de um
fato é a efetiva aplicabilidade da regra de verificação da sentença (o que para
nós só é constatado através de comprovações experienciais de sua aplicação).1
Ora, se as existências do objeto e da propriedade que lhe predicamos são,
respectivamente, a efetiva aplicabilidade da regra de identificação de seu nome e
a efetiva aplicabilidade da regra de aplicação do seu predicado, então a
existência do fato deve ser a propriedade da regra de verificação da frase de ser
efetivamente aplicável ao que a frase descreve, e como a regra de verificação é o
1 Cada um desses três casos pode ser expresso pela lógica predicativa, na medida em que transformarmos as expressões referenciais em expressões predicativas, delas predicando existência: Considere a frase “Mamíferos voadores existem”; simbolizando ‘mamíferos’ por M e ‘voadores’ por V, temos “(Ex) (Mx & Vx)”. Considere uma descrição definida como em “A estrela da manhã existe”; simbolizando o predicado ‘estrela da manhã’ como M temos “Ex (Mx & (y) (My → y = x))”. Para o nome próprio na frase ‘Sócrates existe’, abreviando o conteúdo descritivo que o nome possa conter através do predicado ‘socratiza’ e simbolizando o último por S, temos (Ex) (Sx & (y) (Sy → y = x)). Considere, ainda, a frase predicativa singular “Sócrates é calvo”, que pode ser traduzida como “Existe somente um algo que é Sócrates e ele é calvo”. Entendendo-se ‘Sócrates’ como a abreviação de descrições analisáveis através de predicados, abreviando esses predicados por meio do predicado ‘socratiza’, que simbolizamos como S, e simbolizando o predicado ‘calvo’ como C, temos “Ex (Sx & (y) (Sy → y = x) & Cx)”.
223
mesmo que o pensamento, a existência do fato deve ser também o mesmo que a
efetiva aplicabilidade do pensamento expresso pela frase.
Com isso passamos à relação entre existência e verdade. Se a existência da
referência do pensamento, que é o fato, é a propriedade de seu pensamento de
ser efetivamente aplicável, e se, como também havíamos sugerido, a verdade do
pensamento, da regra de verificação da frase, é também a sua efetiva
aplicabilidade, então a atribuição de existência ao fato deve ser algo análogo à
atribuição de verdade ao seu pensamento. Ou ainda: a atribuição de existência
do fato é o mesmo que a atribuição de verdade do seu pensamento. Ou seja:
dizer que o pensamento expresso pela frase “Sócrates é calvo” é verdadeiro é o
mesmo que dizer que o pensamento, a regra verificacional expressa por essa
frase, é aplicável ao fato, que as configurações criteriais por ela exigidas
correspondem às configurações criteriais constitutivas do fato, ou ainda, que é
um fato que Sócrates é calvo, ou ainda, que esse fato existe. Conversamente,
atribuir existência a um fato é a mesma coisa que atribuir efetiva aplicabilidade
à regra verificacional constitutiva de seu pensamento, o que é o mesmo que
atribuir verdade ao pensamento expresso pela frase correspondente. A existência
do fato, já dissemos, é a verdade de seu pensamento.
Finalmente, quero tratar as frases sem referentes como sendo no final das
contas falsas, e não como sendo destituídas de valor-verdade, como Frege
sugeriu em alguns exemplos. Afinal, a razão pela qual Frege pensava que frases
com componentes sem referência são destituídas de valor-verdade está em sua
insistência na idéia artificial de que a referência da frase deva ser o seu valor-
verdade. Mas como, contrariamente a Frege, estamos dispostos a admitir que a
referência da frase seja um fato, a ausência desse fato – devida à falta de
referência do termo singular – conduz apenas à falsidade da frase. Ora, isso já
aproxima bastante o nosso Frege revisto da posição de Russell, que via frases
com descrições definidas vazias como sendo falsas.224
Passemos agora à revisão dos pressupostos da teoria das descrições de
Russell. Um primeiro passo consiste em descartarmos a tese (a) de Russell: a sua
afirmação de que descrições definidas e nomes próprios usuais (que para ele são
descrições) não referem, não são expressões referenciais no sentido de não
serem termos singulares. O resultado disso, como Ernst Tugendhat notou, é que
todos os nossos enunciados passam a ser gerais e deixam de existir enunciados
singulares, de modo que não podemos mais nos referir a objetos particularse;
mas nesse caso, como construir enunciados gerais, se as suas condições de
verdade remetem a enunciados singulares?1
Afora isso, é óbvio que do ponto de vista definitório as descrições definidas e
nomes próprios comuns são termos singulares. Eles são os modelos para tal
definição! Descrições e nomes próprios usuais só não são termos singulares sob
a moldura artificial do peculiar e implausível referencialismo semântico
sustentado por Russell, segundo o qual somente os nomes próprios lógicos
seriam expressões referenciais verdadeiras. Certamente, essas expressões não
são capazes de funcionar como os putativos nomes próprios lógicos, pois a
técnica da teoria das descrições mostrou que elas são parafraseáveis como
funções predicativas quantificadas. Mas nada disso as faz perder a função
identificadora dos termos singulares no sentido próprio da expressão! Pois se o
termo singular é definitoriamente entendido como uma expressão referencial
cuja função é a de identificar um único objeto particular, e se a descrição
definida e o nome próprio usual são termos singulares (que mesmo quando
russellianamente analisado continuam a nos informar da existência de
exatamente um único objeto com propriedades que, devidamente
contextualizadas, se tornam identificadoras de objetos particulares, então elas
preservam a função referencial, elas são, precisam ser, termos singulares. Que
isso seja feito através de funções predicativas quantificadas é indiferente. Se
1 E. Tugendhat: Lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem, p. 437.225
abstrairmos a distorciva metafísica russelliana que hipostasia a função
referencial dos supostos nomes próprios lógicos, as descrições definidas, assim
como os nomes próprios comuns, voltam a se afigurar como autênticas
expressões referenciais.1
Em segundo lugar, devemos rejeitar também a tese (b) de Russell: a sua
confusa sugestão de que as descrições definidas não possuem qualquer sentido
em si mesmas.2 Essa idéia parece-me proveniente de um amálgama
escassamente inteligível do princípio fregeano do contexto e da noção de
incompletude da predicação: se o significado é o objeto e a descrição definida
deixa de nomeá-lo para designar propriedades, ela não pode ter significado fora
do contexto de algo mais que é oferecido pela sentença. Contudo, se rejeitarmos
a doutrina de que os sentidos dos supostos nomes próprios lógicos (ex:
“Vermelho-isso”) são os seus referentes e admitirmos que o sentido é sempre
dado por regras semânticas, fica claro que a exigência da aplicação do predicado
a um único objeto feita pela análise russelliana já constitui uma regra de
identificação constitutiva de um sentido completo. Uma descrição definida deve
1 De nada adianta, como faz Gareth Evans (Varieties of Reference, p. 56) notar que as descrições definidas podem se referir a indivíduos diferentes em diferentes mundos possíveis, pois podemos rigidificá-las. Além disso, podemos entendê-las como semanticamente subordinadas ao nome próprio correspondente, de modo a admitirmos que ela identifica o objeto apenas na medida em que esse nome próprio também o identifica. Assim, no mundo possível no qual João da Silva e não Benjamin Franklin foi o inventor das bifocais, podemos dizer que a descrição ‘o inventor das bifocais’ deixou de referir-se ao seu objeto usual, o que não lhe faz perder a característica de ser uma marca identificadora de Benjamin Franklin em nosso mundo., ao entendê-las como nomes próprios, rigidificá-las. Uma descrição definida não deixa de funcionar como um termo singular, conquanto ela se refira a um único indivíduo em qualquer mundo possível, na medida em que indivíduo tiver a propriedade que ela descreve, pois mesmo que esse indivíduo seja outro no sentido de que ele possui outras propriedades mais importantes que lhe são constitutivas, eledele são muito diferentes, , como veremos, elas só são termos singulares enquanto rigidificadas e só não são rígidas na medida em que são usadas em contraste com nomes próprios correspondentes (ver capítulo 6 do presente livro).2 “De acordo e advogo, uma expressão denotativa é essencialmente parte de uma sentença, e não tem, como a maioria das palavras isoladas, qualquer significação por si mesma”. B. Russell: “On Denoting”, p. 489.
226
funcionar como um termo referencial com significado completo, o qual nada
mais deve ser do que a regra identificadora por ela expressa.1
7. Compatibilizando “Russell” com “Frege” (os enigmas da referência)
Uma vez de posse das análises de Frege e Russell destituidas de seus
implausíveis invólucros teorético-especulativos, o essencial de minha estratégia
passa a ser usar as identificações de sentidos com regras semânticas e da
existência com as efetivas aplicabilidades dessas regras para construir uma ponte
capaz de nos permitir trafegar dos sentidos “fregeanos” para as definições
contextuais “russellianas” e vice-versa. Por essa via espero mostrar que as
respostas fregeanas e russellianas revisadas dos enigmas da referência são
intertraduzíveis. Eis como isso pode ser feito com respeito às soluções dos
enigmas fregeanos da referência:
Referência a inexistentes. Já vimos que nesse caso a solução fregeana de apelar
para o conjunto vazio é artificial e não traduz uma aplicação de sua teoria do
sentido. Nem me parece suficientemente correto dizer que quando em uma frase
o objeto referido pelo termo singular não existe, ele passa a ser entendido como
possuindo referência indireta, referindo-se ao seu sentido. Pois como então
explicaríamos a aparente falsidade de sentenças como “O atual rei da França
veio jantar comigo na semana passada”?
Um melhor entendimento emerge quando traduzimos os sentidos fregeanos
em termos de regras semântico-cognitivas. Nesse caso diremos, fazendo nossa
uma sugestão de Ernst Tugendhat, que em frases predicativas singulares
1 Podemos especular se não seriam os predicados da descrição analisada expressões que nos permitiriam designar conjuntos de sense data que, estabelecidos como univocamente existentes pelos quantificadores existencial e universal, se transformariam em conjuntos de propriedades constitutivos de propriedades e relações do objeto referido. Russell não dispunha da noção de propriedade como tropo (propriedade particularizada no espaço e no tempo), nem via os predicados como designando menos do que os próprios universais. Mas nós somos ao menos em princípio autorizados a analisar os predicados da descrição como designadores de propriedades através de sense-data.
227
verdadeiras a regra de aplicação do predicado se aplica a sua referência usual
por intermédio da aplicação da regra de identificação do termo singular.
Considere, por exemplo, a frase de Iuri Gagarin ao ver a terra pela primeira vez
à distância:
A terra é azul.
Primeiro ele precisou identificar alguma coisa no espaço, um objeto, o planeta
terra. Só por meio dessa identificação ele pôde aplicar o predicado ‘...é azul’ ao
objeto que ele havia individuado. Vemos que a regra de aplicação do predicado
‘...é azul’ precisa ser primeiro, digamos assim, orientada pela aplicação da regra
de identificação do objeto a ser referido (que seleciona entre outros aquele
chamado ‘terra’), de maneira a encontrar o objeto, só então podendo aplicar-se a
ele de maneira a identificar sua propriedade singularizada de ser azul. A regra de
aplicação do predicado precisa, pois, aplicar-se em combinação com a regra de
identificação do objeto, pois só assim ela pode encontrá-lo de modo que ele
possa satisfazê-lo ou não. Note-se que se a frase fosse “A terra é vermelha”, ela
seria falsa, pois o objeto individuado pela regra de identificação do nome não
satisfaria a regra de aplicação do predicado ‘vermelho’.
Vejamos agora o caso de termos singulars vazios, da pretensa referência a
inexistentes, como a encontrada na sentença “Vulcano é vermelho”. Vulcano,
como é sabido, é um planeta que os astrônomos acreditavam que deveria existir
entre o Sol e Mercúrio de maneira a explicar as variações no periélio do último,
tendo sido inclusive calculado que ele se encontraria a cerca de 21 milhões de
quilômetros do Sol, sendo esse o seu sentido fregeano, o modo de apresentação
do objeto. Mas para a decepção dos astrônomos, Vulcano nunca foi encontrado,
sendo hoje indubitável a conclusão de que ele não existe, de que a sua regra de
identificação é inaplicável, de que a sua referência é vazia. Como resultado 228
disso, a aplicação da regra de aplicação do predicado ‘...é vermelho’ também
fica também impossibilitada. Como a regra de identificação do termo singular
não chega a aplicar-se ao seu objeto, a regra de aplicação do predicado também
não o alcança, não chegando a ser satisfeita por nenhuma propriedade realmente
dada, o que faz com que o predicado não se aplique e com que a frase seja falsa
(pace Frege).
Contudo, aqui já temos uma explicação mais apropriada para o que acontece.
Isso só é possível a meu ver devido à imaginação. Nós somos capazes de
conceber como seria a aplicação de ambas as regras em combinação, embora
não possamos aplicá-las combinadamente ao mundo real. É só na medida em
que somos capazes de conceber como seria a aplicação de ambas as regras de
modo combinado em uma situação real, na constituição do que Tugendhat
chamou de uma regra de verificação, que compreendemos o significado da frase,
que a frase exprime um pensamento, um sentido fregeano.
É por isso que uma frase como “O atual rei da França é sábio” já é capaz de
exprimir um sentido completo, um pensamento. Isso quer dizer que já somos
capazes de conceber as duas regras usadas em combinação de modo a formarem
a regra de verificação, o sentido da frase, o pensamento, que por falta de objeto
e, portanto, de um fato correlato, fica sem aplicação, tornando a frase falsa.
À questão de saber como é possível predicar calvície de algo que não existe,
a resposta fica agora sendo: nós só predicamos na medida suficiente para formar
o pensamento, ou seja, só na medida em que o sentido do termo singular passa a
ser concebido pela imaginação como estando em combinação com o sentido do
predicado de modo a construir um pensamento completo concebivelmente
aplicável, mas que permanece inaplicado. Nós só predicamos, pois, de maneira a
dar sentido à frase, ou seja, de maneira a produzir uma combinação da regra de
aplicação com a regra de identificação, de modo a formar a regra de verificação
que é o pensamento, aplicável a um fato meramente concebível. Mas nós não 229
predicamos da maneira completa que se dá quando a regra de aplicação do
predicado se aplica à propriedade do objeto identificado pelo termo singular,
posto que esse objeto não existe. Trata-se de uma predicação incompleta,
parcial, inacabada, sem força assertórica, pois sem relação com o mundo.
Ora, à luz dessa reconstrução fica mais fácil fazer a teoria do sentido
concordar com a teoria das descrições. Podemos parafrasear a descrição ‘o atual
rei da França’ russellianamente como ‘somente um x, tal que x é atualmente rei
da França’. E podemos dizer que o que ganhamos com isso é uma formulação
analisada do mesmo sentido fregeano, da mesma regra de identificação para o
atual rei da França, que passa a ser vista como possuindo dois componentes:
(i) a condição de univocidade,(ii) a regra de aplicação do predicado ‘é atualmente rei da França’.
Trata-se de uma regra de identificação porque ela permite distinguir um e não
mais do que um objeto através de sua propriedade criterial, que é a de reinar a
França na atualidade. A inexistência do atual rei da França corresponde à
inaplicabilidade desse predicado e portanto da regra de identificação formada
por (i) e (ii), e portanto, à falta de referência do sentido por ela formado. Quanto
ao predicado ‘x é sábio’, ele também não se aplica, posto que não existe algo
com a propriedade de ser o atual rei da França a que ele possa se aplicar. Mas
esse predicado também expressa uma regra de aplicação e portanto um sentido
fregeano. Juntando os fios, pela sentença “Existe somente um x tal que x é
atualmente rei da França e x é calvo”, nada mais fazemos do que tentarmos
aplicar a mesma regra de verificação que a expressa pela frase “O atual rei da
França é calvo”, ou seja, nada mais fazemos que tentar asserir o mesmo sentido,
o mesmo pensamento, percebendo então que a regra não possui aplicação
efetiva, que esse pensamento não corresponde ao fato, que o pensamento é
230
falso. É falso porque, pela inaplicabilidade da regra de identificação, a regra de
aplicação do predicado não tem como encontrar seu objeto, ou, em termos
fregeanos, não há objeto a cair sob o conceito. Analisando o caso da referência
a inexistentes vemos já que é possível transitar de uma explicação “fregeana”
para uma explicação “russelliana” e vice-versa, usando como ponte a
identificação do sentido fregeano com a regra semântico-cognitiva.
(ii) Existenciais negativos. Em um entendimento fregeano, a negação da
predicação de existência seria a negação da propriedade do conceito de ter ao
menos um objeto que o satisfaça. No caso da frase “O atual rei da França não
existe”, queremos dizer que o sentido de ‘o atual rei da França’ não encontra a
sua referência.
Como expressaríamos isso falando de regras semântico-cognitivas no lugar
de sentidos? Ora, diríamos que o sentido de uma descrição definida como ‘o
atual rei da França’, é dado por sua regra de identificação. Como a existência
nada mais é do que a efetiva aplicabilidade de uma regra conceitual, dizer que o
objeto referido por essa regra de identificação não existe, é o mesmo que dizer
que essa regra não tem a efetiva e contínua aplicabilidade demandada.
Passemos agora à análise “russelliana”. Nela uma descrição como ‘o atual rei
da França’ é transformada em ‘ao menos um x e não mais que um x tal que x é o
atual rei da França’. Com isso o que temos é uma regra de identificação, posto
que ela deve distinguir um objeto particular. Essa regra é a meu ver composta
por duas sub-regras:
(i) a condição de unicidade e(ii) a regra de aplicação do predicado ‘...atual rei da França’.
Dizer que o atual rei da França não existe é ao menos dizer “Não é o caso que
existe ao menos um x e não mais que um x, tal que x é atualmente rei da
231
França”, e isso é o mesmo que dizer que essa regra de identificação composta
pelas condições (i) e (ii) não é efetivamente aplicável. Qual a diferença entre
essa regra, a regra anterior e o sentido da descrição? A resposta é que se trata de
exposições diversas da mesma coisa. A regra de identificação é apenas
decomposta pela análise “russelliana” em duas: a regra de unicidade e a regra de
aplicação do predicado. Dizer que o atual rei da França existe é dizer que a regra
de aplicação do predicado ‘atual rei da França’ se aplica e que ela se aplica a um
único objeto. E dizer que o atual rei da França não existe é dizer que a regra de
aplicação do predicado ‘atual rei da França’ não se aplica e que ela não se aplica
a um único objeto.1 Como o que temos são formas diversamente analisadas do
modo como a referência é determinada, as análises “russelliana” e “fregeana”
dos existenciais negativos convergem no sentido de se tornarem duas maneiras
diversas de se dizer o mesmo.
(iii) Identidade. Considere agora sentenças de identidade como “A estrela da
manhã é a estrela da tarde”. Como pode ser essa sentença informativa, se as
descrições se referem a um mesmo objeto? A resposta de Frege é que essas
descrições têm sentidos diferentes e que mostrar que a mesma referência pode
ser acessada de modos diferentes é informar. Parafraseando o conceito de
sentido em termos de regra, o que Frege sugere é que a frase acima é
informativa porque nos diz que podemos identificar o mesmo objeto através de
duas regras de identificação diferentes, que apelam a configurações criteriais
diversas.
Em termos da teoria das descrições, chamando o predicado ‘estrela da
manhã’ de M e o predicado ‘estrela da tarde’ de T, a frase de identidade fica
simbolizada como “Ex (Mx & Tx & (y) (My → y = x)) & (z) (Tz → z = x))”. Ou
seja: “Existe somente um x que é estrela da manhã e esse mesmo x é estrela da
1 É verdade que a possibilidade de existirem vários reis da França fica aberta, mas esse é um problema secundário que também atinge a formulação russelliana.
232
tarde”. Mas como a conjunção da regra de aplicação de um predicado com a
cláusula de que ela não pode se aplicar a mais de um objeto constitui, como
vimos, uma regra de identificação desse objeto, o que essa frase quer dizer é que
tanto a regra de aplicação do predicado ‘estrela da manhã’ quanto a regra de
aplicação do predicado ‘estrela da tarde’ efetivamente se aplicam a não mais que
um único objeto que acontece de ser o mesmo. Assim, a análise russelliana nos
garante que a regra de identificação constituída por “Ex (Mx & (y) (My → y =
x))” se aplica ao mesmo objeto que a regra de identificação constituída por “Ex
(Tx & (z) (Mz → z = x))”, dado que por transitividade y = z. Mas isso é o
mesmo, no final das contas, do que dizer que temos duas regras de identificação
diferentes, dois modos de apresentação, dois sentidos fregeanos diferentes para o
mesmo objeto. Outra vez, as duas análises demonstram-se intertraduzíveis.
(iv) Contextos opacos. Finalmente, considere os proferimentos de atitude
proposicional como:
(1) George IV acredita que Scott é Scott
e
(2) George IV acredita que o autor de Waverley é Scott.
Por que a verdade de (1) não garante a verdade de (2), se ambas as frases
subordinadas são frases de identidade sobre a mesma pessoa?
Para Frege a resposta é que em tais casos a frase subordinada não tem a sua
referência usual, que para ele é o valor-verdade – ela se refere ao seu sentido ou
pensamento. Como conseqüência, o valor-verdade da frase que exprime atitude
233
proposicional deixa de ser função do valor-verdade da frase subordinada,
tornando a intersubstituição salva veritate impossível.1
Como rejeitamos a implausível idéia fregeana de que a referência usual da
frase deva ser o seu valor-verdade, precisamos primeiro refazer a sua solução.
Podemos preservar a sua idéia de que a referência da frase subordinada seja o
seu sentido em proferimentos de atitudes proposicionais do tipo “aAp”, quando
‘a’ está no lugar de certa pessoa, ‘p’ no lugar de um pensamento, e ‘A’ no lugar
de uma atitude, que pode ser de crença, de conhecimento, de desejo etc. Mas
isso significa então que nessa posição p não se refere mais ao fato que lhe possa
eventualmente corresponder, deixando de entrar em questão a sua
correspondência com o fato, a sua verdade. Na frase de atitude proposicional o
que importa é certa relação entre o conteúdo da frase principal (geralmente
expressando uma disposição ou ato mental de que atribuímos a certa pessoa) e o
pensamento expresso pela frase subordinada, de modo que a verdade da frase de
atitude proposicional depende apenas do fato de essa relação se dar realmente ou
não, na independência do pensamento da frase subordinada corresponder ou não
ao fato que lhe deveria ser correlato, na independência de esse pensamento ser
verdadeiro ou não. Com efeito, a referência da frase subordinada é um conteúdo
de pensamento em relação ao qual afirmamos que a pessoa tem uma atitude.
Assim, um enunciado do tipo “aAp” é verdadeiro see a sua referência aAp for
um fato constituído pela existência da pessoa a e de sua atitude A em relação ao
seu pensamento p. É por isso, afinal, que o pensamento expresso pela frase
subordinada não pode ser substituído salva veritate: ele é a sua referência.
Parafraseando agora pensamentos como regras de verificação de frases,
podemos dizer que as regras de verificação das frases subordinadas de (1) e (2)
são diferentes, sem para isso nos comprometermos com a efetiva aplicabilidade 1 É preciso lembrar que falta de intersubstitutividade das frases subordinadas em enunciados de atitude proposicional é apenas um dos variados casos considerados por Frege em “Über Sinn und Bedeutung” (ver pp. 36-49).
234
dessas regras, com a existência real daquilo que as satisfaz. Assim, considerando
o sentido do termo singular com uma regra de identificação, podemos
parafrasear (1) como
(1’) George IV acredita que a regra de identificação (sentido) que ele conhece para Scott se aplica ao mesmo objeto que a regra de identificação (sentido) que ele conhece para Scott,1
e (2) como
(2’) George IV acredita que a regra de identificação (sentido) que ele conhece para Scott se aplica ao mesmo objeto que a regra de identificação (sentido) que ela conhece para o autor de Waverley.
Como em (1’) e (2’) os conteúdos de pensamento com relação aos quais George
IV tem a relação de crença são diferentes, e os enunciados de atitude
proposicional dependem apenas da correspondência entre a relação de crença
enunciada e a relação de crença factualmente dada (estado de coisas) para serem
verdadeiros, as frases subordinadas não podem ser substituídas salva-veritate,
pois se referem a pensamentos ou regras semânticas ou verificacionais
diferentes.
Passemos agora a uma paráfrase em termos russellianos. A frase subordinada
de (1) é analisada como:
(1’’) George IV acredita que existe somente um x que é Scott e que esse x é Scott.
E a frase subordinada de (2) é analisada de modo a obtermos:
1 Esse entendimento não precisa ser o único, pois pode ser que George IV não saiba quem é Scott. Nesse caso a expressão “que ele conhece” deve ser excluída, bastando que ele saiba que Scott é um nome próprio.
235
(2’’): George IV acredita que existe somente um x que é autor de Waverley e que esse x é Scott.
Ora, como ‘somente um x que é Scott’ e ‘somente um x que é autor de
Waverley’ são expressões de diferentes regras caracterizadoras do objeto, “Scott
é Scott” não pode querer dizer o mesmo que “Scott é o autor de Waverley”.
O ponto a ser notado é que aquilo que em nosso entendimento a análise
russelliana faz é apenas explicitar melhor um aspecto de nossa versão da análise
fregeana. Afinal, a análise em (2’), por exemplo, também pode ser apresentada
como
(2’’’): George IV acredita que existe somente um x tal que a regra de aplicação que ele conhece para Scott, tanto quanto a regra de aplicação que ele conhece para o autor de Waverley, a ele se aplicam.
Mas (2’’’) e (2’’) não diferem essencialmente. Afinal, dizer ao modo de Russell
que George IV acredita que a regra de aplicação que ele conhece para o
predicado ‘Scott’ se aplica a somente um objeto e que a regra de aplicação que
ele conhece para o predicado ‘o autor de Waverley’ se aplicam a um único e
mesmo objeto que aquele ao qual se aplica a primeira regra, vem a dar no
mesmo que dizer ao modo de Frege que George IV acredita que a regra de
identificação (sentido) que ele conhece para o termo singular ‘Scott’ tem o
mesmo referente que a regra de identificação (sentido) que ele conhece para ‘o
autor de Waverley’. Conclusão: também no caso das atitudes proposicionais as
análises são intertraduzíveis.
Sumarizando, podemos analisar a função referencial das descrições definidas
de no mínimo três maneiras: (i) em termos de entidades abstratas, como Frege
fez ao falar de sentidos como valores cognitivos, (ii) em termos de regras
236
semântico-criteriais, inspirados em uma abordagem wittgensteiniana, e ainda
(iii) usando os recursos da lógica predicativa, como Russell fez em sua teoria
das descrições. Trata-se, porém, apenas de maneiras complementares de se dizer
o mesmo. A impressão de que se trata de abordagens conflitivas fica por conta
do arcabouço teorético que impregna aquilo que cada filósofo diz. Muito
diversamente do que Russell pensava, as paráfrases produzidas pela teoria das
descrições nada mais são do que um artifício pelo qual se torna possível
exprimir formalmente a função referencial-identificadora das descrições
definidas em seu uso atributivo, a saber, a existência de expressões predicativas
que, quando usadas em um domínio adequado e devidamente rigidificadas, se
tornam caracterizadoras de um único objeto por exprimirem regras de
identificação, modos de apresentação, sentidos fregeanos. Como essas regras se
aplicam sempre em instanciações cognitivas, fica claro o compromisso da teoria
das descrições assim revista com o cognitivismo.
7. NOMES PRÓPRIOS (I): TEORIAS
DESCRITIVISTAS237
Nesse capítulo começaremos a discussão de como os nomes próprios referem.
Existem duas espécies gerais de teorias dos nomes próprios: as descritivistas,
que enfatizam o elo intermediário cognitivo-descritivo entre o nome e o objeto,
e as referencialistas, que enfatizam o objeto referido e sua relação com o
proferimento, rejeitando a relevância de um elo intermediário. Meu objetivo
nesse e no próximo capítulo será o de fornecer suporte para o capítulo 9, no qual
apresentarei a minha própria teoria da função referencial dos nomes próprios.
Assim, nesse capítulo discutirei as versões clássicas do descritivismo e no
próximo as principais idéias do referencialismo. Antes disso, porém, quero
introduzir criticamente a teoria referencialista dos nomes próprios sugerida por
John Stuart Mill ainda no século XIX e que está na origem da discussão
contemporânea.
1. Stuart Mill: nomes sem conotação
Mill começou por distinguir entre a denotação e a conotação de um termo: a
denotação é a referência do termo, enquanto a conotação é o seu elemento
descritivo, que implica um atributo. Entre as expressões referenciais a descrição
definida (chamada por ele de ‘nome individual’) possui tanto denotação quanto
conotação. Ela denota através de sua conotação, nomeadamente, por expressar
atributos que, possuídos unicamente pelo seu objeto, nos permitem identificá-lo
referencialmente. Uma descrição como ‘o pai de Sócrates’ conota um atributo
que somente um indivíduo possui, nomeadamente, o de ser o pai de Sócrates. O
mesmo não acontece com o nome próprio. Ele não tem conotação. Ele tem uma
estrutura mais simples: ele refere diretamente, como se fosse um rótulo colado
ao seu portador. Em suas palavras:
238
Nomes próprios não são conotativos: eles denotam os indivíduos que são chamados por eles, mas não indicam ou implicam quaisquer atributos como pertencentes àqueles indivíduos. Quando chamamos uma criança pelo nome Paulo ou um cão pelo nome César, esses nomes são simples marcas usadas para permitir aos indivíduos se tornarem objeto do discurso. (...) Nomes próprios são ligados aos objetos em si mesmos, não dependendo da continuidade de nenhum atributo do objeto.1
Como para Mill o significado não reside naquilo que um nome denota, mas
naquilo que ele conota, segue-se que nomes próprios não possuem significado.2
A teoria da referência direta proposta por Mill é facilmente refutável. Na
forma acima apresentada ela não é capaz de resolver satisfatoriamente os
enigmas da referência já considerados em nossa discussão da teoria russelliana
das descrições. Quanto ao enigma da referência a inexistentes, como dar sentido
a uma frase como “Papai Noel vive no Pólo Norte”, se o nome ‘Papai Noel’ não
possui nem conotação nem denotação? A isso Mill poderia responder que Papai
Noel se refere a um objeto imaginário. Mas considere o caso de um existencial
negativo verdadeiro como “Papai Noel não existe”. Se tudo o que pertence ao
nome é a sua referência, tal frase parece contraditória, pois aplicar o nome já
seria admitir a sua existência. Quanto aos enunciados de identidade contendo
nomes co-referenciais, considere a diferença entre a frase (a) “Hesperus é
1 J.S. Mill: System of Logic: Ratiocinative and Inductive, livro 1, cap. 2, seção 5, p. 20. 2 Contudo, Mill também fez afirmações que estão em dissonância com a interpretação standard acima apresentada. Como ele escreveu: “Um nome próprio não é mais do que uma marca sem significado que conectamos em nossas mentes com a idéia do objeto, de modo que sempre que essa marca encontra nossos olhos ou ocorre em nosso pensamento, podemos pensar naquele objeto individual”. (p. 22, grifo nosso). Parece, pois, que por significado Mill entendia o significado lingüísticamente expresso, que se distingue da idéia do objeto. De fato, o nome próprio não tem um significado lingüisticamente expresso, como o da descrição definida. Contudo, o que Mill chama de idéia do objeto parece ser o conteúdo informativo, ou seja, o sentido fregeano. Se esse for o caso, então a teoria de Mill admite que nomes próprios têm sentidos fregeanos, daí resultando que deixa de haver uma contradição real entre a sua posição e o descritivismo sobre nomes próprios defendido por Frege e outros. Por razões de exposição, contudo, ignoro essas considerações.
239
Hesperus” e a frase (b) “Hesperus é Phosphorus”. A primeira é tautológica, nada
dizendo, enquanto a segunda pode ser informativa. Como para Mill os nomes
co-referenciais, por não conotarem, não podem possuir diferentes valores
cognitivos, a sentença (b) deveria ser tão trivial quanto (a). Finalmente, quanto
ao problema da ausência de intersubstitutividade em contextos opacos, considere
uma sentença como “João acredita que Cicero, mas não Tulio, é um orador
romano”. Se os nomes próprios ‘Cicero’ e ‘Tulio’ são apenas rótulos para uma
mesma pessoa, parece que João precisa ser capaz de acreditar em coisas
totalmente inconsistentes, como a de que Cicero não é Cicero. Não é sem razão,
pois, que, sob a influência contrária de Russell, a teoria milliana da referência
direta dos nomes próprios cedo tenha sido abandonada.
2. Descritivismo (i): Frege e Russell
A teoria descritivista dos nomes próprios dominou o século XX até a década de
1970, quando foi eclipsada pela nova versão da teoria referencialista proposta
por Kripke, seguido de Donnellan e outros. A idéia geral do descritivismo sobre
nomes próprios é a de que o nome próprio refere indiretamente, por uma alusão
a propriedades geralmente exprimíveis através de conjuntos de descrições. Ou
seja: contrariamente ao millianismo, nomes próprios conotam. Eles conotam por
estarem no lugar de conjuntos de descrições, sendo por isso logicamente mais
complexos e não mais simples do que elas.
Segundo uma interpretação corrente, há duas formas de descritivismo: uma
mais primitiva, defendida por Frege e Russell, segundo a qual o sentido de um
nome próprio é dado por uma única descrição definida associada a ele, e uma
sofisticada, defendida por filósofos como Wittgenstein, Strawson e Searle,
segundo a qual o sentido do nome próprio é dado por um feixe ou agregado de
240
descrições1. Quero demonstrar aqui que essa interpretação é incorreta. Uma
complexa teoria descritivista dos nomes próprios já era aludida nos escritos de
Frege e Russell, embora neles se encontrasse apenas fragmentariamente
tematizada. O que houve desde então foi uma progressiva explicitação e adição
de detalhes, em torno de um insight comum.
Para demonstrar essa interpretação, comecemos considerando a formulação
fregeana. Quando escreve sobre a referência dos nomes próprios, Frege
interpreta os seus sentidos como exprimíveis por diferentes descrições ou
conjunções de descrições que a ele associamos. Como ele escreve em uma
conhecida nota de seu artigo “Sobre sentido e referência”, onde a teoria
descritivista propriamente se origina:
No caso de nomes genuinamente próprios, como ‘Aristóteles’, opiniões sobre o seu sentido podem divergir. O seguinte sentido pode ser sugerido: discípulo de Platão e tutor de Alexandre o Grande. Quem quer que aceite esse sentido irá interpretar o sentido do enunciado “Aristóteles nasceu em Estagira” diferentemente de quem interpreta o sentido de Aristóteles como o professor estagirita de Alexandre o Grande. Na medida em que o nominatum permanece o mesmo, essas flutuações no sentido são toleráveis.2
Aqui, o que essa nota sugere é que pessoas diferentes podem associar
descrições ou conjunções de descrições diferentes a um mesmo nome;
conjunções como ‘o discípulo de Platão e o tutor de Alexandre’. Os diversos
sentidos associados ao nome são expressos pelas diversas descrições, sob a
condição de que elas preservem a referência.
Contudo, Frege também observa que as flutuações no sentido não podem ser
tão grandes a ponto de impedir a comunicação: se diferentes usuários da
1 Ver Michael Devitt e Kim Sterelny: Language and Reality: An Introduction to the Philosophy of Language, p. 45. W. G. Lycan: “Names”, pp. 256-7. S. P. Schwartz (ed.): Naming, Necessity, and Natural Kinds, pp. 18-19. Essa interpretação foi assumida por Saul Kripke que, por sua vez, a deve ter tomado de John Searle. 2 Gottlob Frege: “Über Sinn und Bedeutung”, p. 28 (paginação original).
241
linguagem associam descrições ou conjunções de descrições totalmente
diferentes a um nome próprio, perde-se a unidade do sentido e torna-se
impossível para eles saberem se estão falando da mesma pessoa. Suponha,
escreve Frege, que Leo Peter tenha ido à residência do doutor Gustav Lauben e
o tenha ouvido dizer “Eu fui ferido”, isso sendo tudo o que ele sabe sobre
Gustav Lauben. Leo Peter tenta comentar o ocorrido com Herbert Garner, que
por sua vez sabe de um Dr. Gustav Lauben que nasceu em 13 de setembro de
1875 em N.N., não sabendo, por sua vez, onde o Dr. Lauben reside agora nem
qualquer outra coisa sobre ele. Disso resulta que Leo Peter e Herbert Garner não
conseguem saber se estão falando da mesma pessoa. Pois segundo Frege eles
não falam a mesma língua, ainda que com esse nome eles de fato designem o mesmo homem; pois eles não sabem que fazem isso. Herbert Garner não associa, pois, à frase "Dr. Gustav Lauben foi ferido", o mesmo pensamento que Leo Peter quer com ela exprimir.1
Dessa discussão deixa-se facilmente concluir que Frege concordaria com a
tese descritivista de que o sentido completo de um nome próprio é constituído
por um conjunto de valores cognitivos (sentidos) geralmente exprimíveis através
de descrições; cada falante tem geralmente acesso a um subconjunto desse
conjunto de valores cognitivos; mas esse acesso precisa ter em comum ao menos
o suficiente para que os falantes possam saber que estão falando da mesma
coisa; é preciso que os dois conjuntos de descrições se interseccionem.
Michael Dummett, o mais original e influente intérprete de Frege, protestou
contra a idéia de que este último teria proposto uma teoria descritivista dos
nomes próprios2. Dummett alega que Frege usou descrições porque eram
1 Gottlob Frege: “Der Gedanke”, pp. 64, 76.2 Autores norte-americanos, influenciados por Saul Kripke, associam Frege ao descritivismo, enquanto autores ingleses, influenciados por Michael Dummett, costumam rejeitar essa associação. Ver M. Dummett: Philosophy of Language, pp. 97-98, pp.110-111. Ver também The Interpretation of Frege’s Philosophy, p. 186 ss. Corroborando a interpretação de
242
maneiras fáceis de esclarecer o sentido de alguns exemplos; mas isso não tem
nada a ver com a idéia de Russell de que o nome próprio é a abreviação de uma
descrição complexa nem com a concepção referencialista do significado inerente
à teoria das descrições... Além disso, escreve Dummett, não há nenhum indício
de que Frege concordaria com a idéia de que o sentido do nome próprio possa
ser sempre expresso através de descrições. Segundo ele, o importante para Frege
é que o nome próprio seja associado a um critério para reconhecer um dado
objeto como o seu referente. Dummett ilustra o seu ponto considerando as
inúmeras maneiras possíveis de se identificar o rio Tâmisa1. Muitas vezes,
escreve ele, isso é feito indiretamente, a partir de informações colaterais, como é
o caso de uma pessoa que percebe que se trata do mesmo rio que passa sob a
ponte de Radcot ou através da cidadela de Henley. E uma pessoa pode saber que
ele passa por Oxford sem saber que ele é o mesmo rio que atravessa Londres,
ainda assim identificando o rio corretamente. Não há, conclui ele, nenhuma
condição suficiente que todos precisem saber para a identificação do Rio
Tâmisa.
A meu ver, nenhuma das razões aduzidas por Dummett justifica o seu
protesto. Primeiro, é obviamente possível adotar o descritivismo sem se
comprometer com uma concepção referencialista do significado. Depois, o
descritivista não defende que tudo pode ser expresso por meio de descrições.
Representações táteis, visuais e auditivas, nunca são totalmente resgatáveis em
palavras. Descrições são apenas as formas lingüísticas mais típicas, pelas quais
valores cognitivos assomam à linguagem. O que realmente conta são as regras
semântico-criteriais que geralmente se deixam exprimir através de descrições, as
quais de algum modo servem para vincular o nome próprio ao seu portador. Esse
entendimento, porém, é complementar à própria idéia de Dummett de que o
Dummett estão Leonard Lynski: Names and Descriptions, pp. 42-43 e, mais recentemente, Michael Luntley, Contemporary Philosophy of Thought: Truth, World, Content, p. 261.1 Michael Dummett: Frege: Philosophy of Language, pp. 97-98, 101-111.
243
importante para o sentido do nome próprio é que ele seja associado a um critério
de identidade para o objeto, permitindo que ele seja reconhecido outra vez como
sendo o mesmo1. Penso que Dummett tinha uma visão demasiado restritiva do
que pode ser uma teoria descritivista dos nomes próprios, orientada pela teoria
das descrições de Russell. Isso ficará mais claro quando compararmos o seu
exemplo do rio Tâmisa com o exemplo de Russell sobre Bismark.
Passemos agora à concepção de Russell. Como já foi notado, ele via os
nomes próprios da linguagem ordinária como descrições definidas abreviadas,
truncadas ou disfarçadas, sugerindo que eles pudessem ser analisados pelo
mesmo método pelo qual ele analisara as descrições definidas. Como ele não
estava primariamente interessado na prática lingüística ordinária, ele pouco se
deteve na questão. Mas o nome próprio não abrevia uma única descrição, como
muitos interpretam e como ele próprio, por mera conveniência de exposição,
costuma colocar em seus textos mais técnicos. Não obstante, em um texto como
o de Os Problemas da Filosofia, ele demonstra possuir um entendimento muito
mais complexo da questão. Eis uma passagem:
Palavras comuns, mesmo nomes próprios, são geralmente descrições. Isto é, o pensamento na mente de uma pessoa usando um nome próprio corretamente em geral só pode ser expresso explicitamente se o substituirmos por uma descrição. Mais além, a descrição requerida para exprimir o pensamento irá variar para pessoas diferentes, ou para uma mesma pessoa em diferentes tempos. (grifos meus)2
O que essa passagem sugere é que há na linguagem um vasto repositório de
informações sobre o objeto de um nome, as quais são exprimíveis na forma de
descrições definidas. Quando proferimos o nome próprio, costumamos ter em
1 Michael Dummett: Frege Philosophy of Language, p. 73.2 Bertrand Russell: The Problems of Philosophy, p. 29. Essa passagem, com a próxima passagem a ser citada, encontra-se idêntica em “Knowledge by Acquaintance and Knowledge by Descriptions”, artigo sobre o qual foi baseado o capítulo do livro.
244
mente uma ou mais dessas descrições, e tudo o que é necessário para que o
ouvinte entenda que se trata da mesma pessoa, escreve Russell, é que ele saiba
que as descrições se aplicam a mesma entidade evocada em sua mente1.
Russell apresenta como exemplo o nome ‘Bismark’. Uma primeira e peculiar
forma de acesso a Bismark é a que o próprio Bismark tem de si mesmo, em um
juízo como “Eu sou Bismark”. Nesse caso, para Russell o próprio Bismark é um
componente de seu juízo, sem passar por uma descrição. Uma outra maneira de
se ter em mente Bismark é a das pessoas que lhe foram pessoalmente
apresentadas. Nesse caso, o que a pessoa tem em mente é o corpo e a mente de
Bismark, conhecidos por intermédio de conjuntos de sense-data a eles relativos,
geralmente aptos a serem expressos por descrições. Ainda outra maneira de se
conhecer Bismark, escreve Russell, é através da história. Nesse caso associamos
a sua pessoa descrições como ‘o primeiro chanceler do império germânico e um
astuto diplomata’ (que é uma descrição composta, formada pela conjunção de
uma descrição definida com uma descrição indefinida). No final das contas, o
que temos em mente é um vasto conjunto de informações históricas exprimíveis
sob a forma de descrições capazes de identificar a pessoa univocamente. Como
ele escreve:
Quando nós, que não conhecemos Bismark, fazemos um juízo sobre ele, a descrição em nossas mentes será provavelmente alguma mais ou menos vaga massa de conhecimento histórico – muito mais, geralmente, do que é requerido para identificá-lo. Mas aqui, por razão de ilustração, vamos assumir que pensamos nele como ‘o primeiro chanceler do império alemão’. (grifos meus)2
O texto é do próprio Russell e não me deixa mentir. O que ele sugere é que
quando usamos um nome próprio em terceira pessoa, o que temos em mente é 1 Russell: The Problems of Philosophy, p. 30.2 B. Russell: The Problems of Philosophy, p. 30.
245
uma descrição composta por uma variedade de outras descrições. Essa descrição
possui contornos vagos (que costumam variar de usuário para usuário, e mesmo
para um mesmo usuário), pertencendo a um ainda maior repositório de
descrições que expressam informações identificadoras do mesmo objeto.
Semelhante descrição composta pode ser analisada como uma conjunção de
descrições sobre o mesmo x, a saber, como uma conjunção de atribuições
existenciais unívocas de propriedades. Se essas propriedades forem
simbolizadas como as do conjunto {F1, F2... Fn}, a descrição definida composta,
quando formada por outras descrições definidas, pode ser simbolizada como
(Ex) ((F1x & F2 x... & Fnx) & (y) ((F1x1 → x1 = x) & (F2x2 → x2 = x)... & (Fnxn
→ xn = x))). A sugestão de que Russell pensava que ao usarmos nomes próprios
temos em mente uma única descrição não passa, pois, de uma lenda.
O que essas leituras textuais também demonstram é que Russell está disposto
a analisar o nome ‘Bismark’ de uma maneira que não difere substancialmente
daquela pela qual Dummett analisa o sentido do nome ‘Tâmisa’. Uma descrição
central, como ‘o primeiro chanceler do Império Germânico’, é para Russell
apenas uma dentre a massa de descrições que alguém pode associar a Bismark,
da mesma forma que para Dummett a descrição central ‘o rio que atravessa
Londres’ é apenas uma dentre as muitas descrições que alguém pode associar ao
Tâmisa.
Se insistirmos em achar que Frege não foi um descritivista, então parece que
deveremos concluir o mesmo de Russell. Mas como Russell foi o descritivista-
mór, a conclusão só pode ser a de que Frege também foi um descritivista. E há
uma razão para que se pense assim: se há uma unidade no objeto teórico das
teorias descritivistas, então as suas várias versões não podem ser alternativas
inconsistentes entre si, mas aproximações mais ou menos congruentes de um
mesmo fenômeno complexo, cada qual pondo em relevo diferentes aspectos
246
desse fenômeno, mesmo que divergindo em métodos e em pressupostos
filosóficos.
3. Descritivismo (ii): Wittgenstein e Searle
Após Frege e Russell, vários outros filósofos, principalmente Wittgenstein, P.F.
Strawson e J.R. Searle, apresentaram sugestões de interesse no sentido de
aprimorar a teoria dos nomes próprios como feixes ou agregados de descrições.
Quero considerar brevemente as sugestões de Wittgenstein e Searle.
Na seção 79 das Investigações Filosóficas Wittgenstein adiciona alguns
comentários à concepção de Russell. Segundo ele, ‘Moisés’ poderia abreviar
descrições como ‘o homem que guiou os israelitas através do deserto’, ‘o
homem que viveu naquele tempo e naquele lugar, e que naquela época foi
chamado de ‘Moisés’’, ‘o homem que em criança foi retirado do Nilo pela filha
do faraó’ etc. A isso ele adiciona que o nome ‘Moisés’ ganha sentidos diferentes
de acordo com a descrição que a ele associamos, reconhecendo assim que nomes
têm sentidos cognitivos expressos pelas descrições a ele associadas. A questão
que emerge é: em que medida as descrições do feixe de descrições vinculadas ao
nome precisam ser satisfeitas pelo objeto? Wittgenstein evade-se de uma
resposta direta. Ele escreve apenas que nós utilizamos nomes próprios sem uma
significação rígida, e que mesmo que algumas descrições falhem em se aplicar,
ainda assim poderemos nos servir das outras como suporte. A linguagem natural
é inevitavelmente vaga. E com o tempo o corpo de descrições identificadoras do
objeto referido por um nome próprio pode variar: características que antes se
afiguravam irrelevantes podem, em um conceito elaborado pela ciência, se
tornar relevantes e convencionalmente aceitas, enquanto outras podem se
enfraquecer ou serem rejeitadas...1
1 Leonard Linsky interpretou Wittgenstein como tendo aqui sugerido a ausência de limites convencionais para fixar as descrições. Mas não há suficiente evidência textual para essa idéia. Seja como for, se Wittgenstein tivesse pensado assim ele estaria errado. Não parece
247
A formulação mais elaborada da teoria descritivista dos nomes próprios foi
exposta por J.R. Searle em um artigo de 1958. Para esse autor, um nome próprio
tem suas condições de aplicação definidas pela aplicação a um mesmo objeto de
um suficiente, mas indefinido número de descrições. Searle exemplifica isso
com o nome ‘Aristóteles’, que se encontra associado a uma classe de descrições
definidas como ‘o tutor de Alexandre o Grande’, ‘o autor da Ética a Nicômano,
da Metafísica e De Interpretatione’, ‘o fundador da escola do Liceu em Atenas’
e mesmo as descrições indefinidas como ‘um grego’ e ‘um filósofo’. O nome
próprio ‘Aristóteles’ preserva a sua aplicação se um número suficiente e variável
de tais descrições se aplica. Um número que minimamente se reduziria a uma
disjunção de descrições.
Essa questão das condições de aplicação de um nome é também a do seu
sentido. Na paráfrase sintética de Susan Haack: os sentidos que damos a um
nome próprio são expressos por subconjuntos não previamente determinados de
um conjunto aberto de descrições co-referenciais.1 O fato dos nomes próprios
não conotarem sentidos específicos não quer dizer que eles não conotam sentido
algum. Os nomes próprios conotam descrições de forma solta (in a loose way).
Longe de ser um defeito, é isso o que dá ao nome próprio a sua imensa
flexibilidade de aplicação. Como escreveu Searle:
...o caráter único e a imensa conveniência pragmática dos nomes próprios em nossa linguagem repousa precisamente no fato de que eles nos permitem referir publicamente a objetos sem sermos forçados a levantar questões e chegar a um acordo sobre que características descritivas exatamente constituem a identidade do objeto. Eles funcionam, não como descrições, mas como cabides para pendurar descrições.2
concebível que os nomes próprios pudessem ter algum sentido e serem comunicacionalmente úteis se os limites de sua aplicação resultassem de decisão arbitrária. Ver L. Linsky, Names and Descriptions, p. 99.1 Susan Haack: Philosophy of Logics, p. 58. 2 J.R. Searle: “Proper Names”, Mind 1958, p. 171.
248
Essa versão do descritivismo permite explicar uma variedade de casos. É
possível, por exemplo, que um objeto satisfaça apenas umas poucas, ou mesmo
uma única das descrições associadas ao nome próprio. O que não pode acontecer
é que o nome próprio se aplique sem que nenhuma das descrições relevantes
seja satisfeita. Como Searle notou:
Se um especialista em Aristóteles vier nos informar que descobriu que Aristóteles na verdade não escreveu nenhuma das obras a ele atribuídas, mas foi na verdade um mercador de peixes veneziano do renascimento tardio, nós entenderemos isso como uma piada de mau gosto e nos recusaremos a ver qualquer propósito no que ele está dizendo.1
De posse dessa teoria dos nomes próprios Searle tem condições de explicar
melhor afirmações de existência com nomes próprios, bem como identidades
analíticas e não-analíticas entre eles: dizemos “O Everest existe” quando um
número mínimo, mas indeterminado, de descrições, se aplica ao objeto;
afirmamos uma identidade analítica, como “O Everest é o Everest” quando os
mesmos conjuntos de descrições de cada ocorrência do nome se aplicam ao
mesmo objeto; e afirmamos identidades não-analíticas, como “O Everest é o
Chomolungma”, quando diferentes conjuntos de descrições se aplicam ao
mesmo objeto.2 Essas explicações estão em perfeito acordo com as de Frege.3 Às
duas últimas ele poderia adicionar que os conjuntos de descrições não podem ser
disjuntos; se eles não forem idênticos, eles precisam ao menos se interseccionar
para que saibamos que estamos falando de um mesmo objeto.
Embora Searle tenha desenvolvido a melhor versão de descritivismo em
oferta, há objeções, boas e más, contra ela. Uma boa objeção, proposta por 1 J.R. Searle: “Proper Names and Descriptions”, p. 490.2 J.R. Searle: Speech Acts: An Essay in the Philosophy of Language, p. 171.3 Searle pensa que não porque ele interpreta erroneamente o exemplo de Frege de Herbert Garner e Leo Peter como exigindo que nosso aporte descritivo para o nome seja o mesmo. Mas não há nada na passagem de Frege a suportar essa afirmação. Ver J. Searle: Speech Acts, p. 169.
249
William Lycan, é a seguinte1: mesmo que o número de descrições satisfeitas
pelo objeto não seja definido, ele precisa ser superior a metade do feixe de
descrições, pois menos do que isso permitiria que dois objetos totalmente
diversos, cada um satisfazendo uma metade das descrições, fossem identificados
pelo mesmo nome próprio. Contudo, parece perfeitamente possível que se
descubra um objeto que satisfaça menos da metade das descrições, talvez apenas
uma ou duas, e mesmo assim seja referido pelo nome.
A resposta à objeção de Lycan é fácil de ser encontrada. Como todo critério
de aplicação, o critério de satisfação parcial de um feixe de descrições tem seus
limites de aplicação. Assim, se um objeto satisfaz metade das descrições e outro
objeto satisfaz a outra metade, simplesmente não há mais como saber a que
objeto devemos aplicar o nome próprio e ele perde a sua função referencial. Isso
não impede, porém, a existência de casos nos quais apenas umas poucas
descrições do feixe sejam satisfeitas e que isso seja suficiente para que o nome
próprio se aplique: basta que não se tenha encontrado nenhum objeto
concorrente que satisfaça um número tão grande de descrições identificadoras
tão importantes quanto as já satisfeitas pelo suposto portador do nome próprio.
A objeção mostra, pois, que a teoria de Searle demanda algum acréscimo para
continuar sustentável. É preciso acrescentar ao menos a exigência da
inexistência de concorrentes à altura do objeto em consideração.
O que esse breve excurso histórico demonstra é que, diversamente do que se
tende a pensar, há uma forte unidade naquilo que os defensores do descritivismo
tradicional sustentaram. Não se trata de várias teorias, mas de uma única, que foi
desenvolvida sob ênfase e perspectiva diferente por cada autor, o que parece
falar algo a favor do seu potencial heurístico.
1 William Lycan: “Some Flaws in Searle’s Theory of Proper Names”.
250
8. NOMES PRÓPRIOS (II): TEORIAS CAUSAIS-
HISTÓRICAS
Em 1970 Saul Kripke proferiu em Princeton as palestras que deram origem ao
texto de Meaning and Necessity. Esse texto, um dos mais originais da filosofia
contemporânea, não contém apenas um influente assalto às teorias descritivistas
dos nomes próprios. Ele também contém (entre outras coisas) o esboço de uma
inovadora teoria referencialista dos nomes próprios, muito próxima da teoria da
251
referência direta de J.S. Mill, agora também estendida aos termos de espécies
naturais. Pode ser que – como eu mesmo creio – em sua forma própria a
concepção de Kripke não seja no final das contas sustentável. Mesmo assim,
cumpre reconhecer que o panorama da discussão sobre nomes próprios foi
definitivamente transformado por suas idéias, tornando-se bem mais difícil,
intrincado e desorientador.
1. Objeções kripkianas ao descritivismo
Quero começar expondo as objeções de base feitas por Kripke às teorias
descritivistas dos nomes próprios. Elas têm sido classificadas como sendo de
três tipos1: a objeção de rigidez (o problema modal), a objeção da necessidade
indesejada (o problema epistêmico) e a objeção da ignorância ou erro (o
problema semântico). Quero me limitar aqui a uma exposição crítica dessas
objeções, deixando uma discussão detalhada para o próximo capítulo.
Vejamos primeiro a objeção da rigidez (modal). Ela parte da constatação
feita por Kripke de que os nomes próprios são designadores rígidos, a saber,
termos capazes de designar um mesmo objeto em todos os mundos possíveis, ou
pelo menos naqueles nos quais esse objeto existe. Como as descrições definidas
não costumam ser designadores rígidos e os nomes próprios são sempre
designadores rígidos, os últimos não podem equivaler às primeiras, posto que o
seu perfil modal é diferente: o mecanismo pelo qual nomes próprios referem
deve ser intrinsecamente diverso do mecanismo pelo qual descrições definidas
referem.
Com efeito, parece que para qualquer descrição que venhamos a escolher
como constitutiva de um nome próprio é possível imaginar casos em que o
objeto existe e que ela não se aplique. Podemos, escreve Kripke, imaginar um
1 Ver N.U. Salmon: Reference and Essence, p. 23-31.
252
mundo possível no qual Aristóteles nunca tenha realizado os grandes feitos que
lhe atribuímos. Esse é o caso de um mundo no qual Aristóteles realmente
existiu, mas morreu muito cedo. Nesse mundo ele não foi o preceptor de
Alexandre, nem fundou o Liceu, nem escreveu nenhum dos grandes textos
filosóficos pelos quais o seu nome é lembrado. Sequer descrições contendo o
lugar e data de nascimento são garantidas. Podemos perfeitamente imaginar um
mundo possível no qual Aristóteles viveu quinhentos anos mais tarde, tendo sido
ainda assim o mesmo Aristóteles.1
Todavia, a objeção de rigidez só se aplica a teorias descritivistas que
identificam o sentido de um nome próprio com uma descrição definida ou com a
conjunção ou mesmo com um subconjunto das descrições definidas que
constituem o feixe. Contudo, para quem leu o capítulo anterior deve ter ficado
claro que ninguém, nem Frege, nem mesmo Russell, defendeu semelhantes
idéias. Uma teoria como a de Searle é tornada explicitamente imune à objeção
por enfatizar que nenhuma descrição específica pertencente ao feixe precisa ser
satisfeita, conquanto um número suficiente embora indefinido delas seja
satisfeito. Mesmo que seja possível imaginar, como fez Kripke, que Aristóteles
não satisfaça a grande maioria das descrições, não é possível imaginar que ele
não satisfaça nenhuma delas. Não é possível imaginar, por exemplo, que ele não
tenha sido um filósofo, mas um grande armador grego que viveu no século XX,
seduziu Callas e se casou com Jackeline, pois esse com certeza nada teria a ver
com o nosso Aristóteles.
Outro tipo de objeção é a da necessidade indesejada (epistêmica). Se o nome
próprio for equivalente a uma descrição, então ela necessariamente se aplica.
Uma frase como “Aristóteles foi o autor da Metafísica” deveria ser a priori, pois
se a descrição ‘o autor da Metafísica’ faz parte da definição de Aristóteles, então
dizer que Aristóteles foi o autor da Metafísica seria fazer um enunciado
1 Kripke: Naming and Necessity, p. 62.253
tautológico, incapaz de suportar contradição. Mas não é isso o que acontece.
Aristóteles poderia muito bem ter existido sem jamais ter escrito uma linha da
Metafísica.
A objeção da necessidade indesejada também não se aplica a teorias do feixe
de descrições como a de Searle, que não demanda a aplicabilidade de nenhuma
descrição individual pertencente ao feixe. Se minha leitura de Frege e Russell no
capítulo anterior é correta, essa objeção também não se aplica a nenhuma teoria
descritivista, mas somente a uma tosca caricatura dessas teorias. A única
necessidade que precisa ser sustentada pela teoria do feixe é a de que ao menos
uma descrição definida pertencente ao feixe se aplique ao objeto nomeado, no
caso desse objeto existir, não havendo nenhuma descrição específica ou mesmo
conjunção de descrições que seja necessária. Mas essa necessidade, como
vimos, nunca foi contestada.
Finalmente, há a objeção da ignorância e do erro (semântica). Kripke
observou que podemos associar a um nome próprio apenas uma descrição
indefinida, sem por isso deixarmos de referir. Este é o caso do nome próprio
‘Feynman’. Muitas pessoas associam a este nome apenas a descrição indefinida
‘um físico norte-americano’. Apenas uns poucos seriam capazes de dissertar
sobre as suas contribuições para a microfísica. Mesmo assim, as pessoas são
capazes de se referir a Feynman através de seu nome. Uma descrição indefinida,
no entanto, é incapaz de garantir a unicidade da referência. Quanto ao problema
do erro, Kripke observou que existem pessoas que associam ao nome ‘Einstein’
a descrição ‘o inventor da bomba atômica’. Apesar da descrição não se aplicar,
essas pessoas conseguem se referir a Einstein. Ora, se é assim, então parece que
descrições nada têm a ver com aquilo através do que o nome refere.
A essa espécie de objeção Searle responderia que aquilo que mais importa é o
conteúdo que as pessoas da comunidade lingüística à qual pertence o falante
254
tomam como relevante para a designação do objeto.1 Assim, para esse filósofo,
se uma pessoa tem em mente uma descrição como ‘o indivíduo que minha
comunidade chama de Einstein’, isso pode bastar para neutralizar o conteúdo
divergente.
Há objeções bem mais detalhadas de Kripke que irei responder no próximo
capítulo, quando poderei aplicar minha versão da teoria descritivista para
conseguir respostas mais completas. Mas como essas poucas considerações
atuais sugerem, as objeções de Kripke ao descritivismo nada tem de decisivo2,
ao contrário do que seus defensores insistem em manter.3
É difícil encontrar qualquer objeção decisiva contra uma formulação como a
que Searle fez para a teoria descritivista dos nomes próprios, e a razão disso está
no fato de ela ter sido apresentada de forma não-simplificadora e
suficientemente vaga. Mas, como se tornará claro no próximo capítulo, essa
vantagem é também uma fraqueza, pois devido a sua própria vaguidade essa
teoria carece de recursos para proporcionar respostas mais eficazes e completas
a uma variedade de contra-exemplos e objeções.
2. Batismo e cadeia causal-histórica
A crítica de Kripke ao descritivismo só se torna atraente por ter sido
complementada com uma versão mais sofisticada e consequente da concepção
inicialmente sugerida por Stuart Mill. Para introduzi-la, considere o fenômeno
da rigidez dos nomes próprios. Um nome próprio como Benjamin Franklin é
rígido porque ele se aplica a um mesmo objeto – Benjamin Franklin – em
qualquer mundo possível no qual esse objeto exista. Mas o mesmo não acontece
com a maioria das descrições definidas. A descrição definida ‘o inventor das 1 Ver John Searle: Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, p. 253.2 Essa também é a conclusão chegada por David Braun e Marga Reimer em seus respectivos artigos para a Stanford Encyclopedia of Philosophy. 3 Ver, por exemplo, Scott Soames: Beyond Rigidity: The Unfinished Semantic Agenda of Naming and Necessity, cap. 2.
255
bifocais’ se aplica a Benjamin Franklin no mundo atual; mas ela poderia se
aplicar a João da Silva em um mundo no qual João da Silva e não Benjamin
Franklin tivesse descoberto as bifocais. Qual a explicação para isso?
Para quem é simpático à solução de Stuart Mill, a explicação está à mão. Ela
advém da idéia de que descrições referem indiretamente, por conotarem
atributos de objetos, enquanto nomes próprios referem diretamente aos seus
próprios objetos, como se fossem rótulos que lhes tivessem sido colados. Ora,
isso deve tornar a referência dos nomes próprios independente de propriedades
acidentais descritivamente representáveis. A referência deve dizer respeito ao
objeto em si mesmo. Só isso explica porque, diversamente das descrições
definidas, os objetos de referência continuam os mesmos em qualquer mundo
possível.
Kripke também parece pensar assim. Para ele os nomes próprios se referem
aos seus objetos sem intermediários. Eles não podem se referir nem a substratos
nus (bare particulars), subjacentes aos objetos, nem a feixes de qualidades
abstratas (bundles of qualities) constitutivas do objeto. Como ele escreve:
O que eu nego é que um particular não seja nada além de um ‘feixe de qualidades’, seja o que for que se queira dizer com isso. Se uma qualidade é um objeto abstrato, um feixe de propriedades é um objeto com um grau até mais alto de abstração, não um particular. Filósofos chegaram à posição oposta através de um falso dilema: eles perguntaram: estão os objetos atrás do feixe de qualidades, ou o objeto não é nada além do feixe? Nada disso é o caso. Essa mesa é de madeira, é marrom, está no quarto etc. Ela tem todas essas propriedades e não é uma coisa sem propriedades, atrás delas. Mas não deveria por isso ser identificada com um conjunto ou ‘feixe’ de suas propriedades, nem com o subconjunto de suas propriedades essenciais.1
Com efeito, o dilema não parece aceitável: objetos não são nem feixes de
qualidades abstratas sem critério de individuação, nem substratos nus
1 Kripke: Naming and Necessity, p. 52.256
incognoscíveis enquanto tais. Mas apesar de Kripke rejeitar o dilema, ele não
oferece nenhuma solução verdadeira. Ele apenas nos pede para aceitarmos que
identificamos particulares pelo que eles são, fazendo de conta que essa exigência
não requer maior explicação, como se essa identificação acontecesse por
mágica. Contudo, a única maneira de evitarmos a magia e encontrarmos o
caminho da explicação é admitindo que isso acontece pelo reconhecimento de
propriedades identificadoras do objeto, sejam elas o que forem.
Penso que a saída mais interessante para o dilema consistiria hoje em recorrer
à emergente teoria dos tropos.1 Segundo essa teoria, objetos físicos nada mais
são do que sistemas de propriedades espaço-temporalmente localizadas, mais
propriamente chamadas de tropos. Esses objetos não precisam ser identificados
por meio de um único conjunto de tropos ou mesmo por meio de tropos
essenciais, mas talvez por combinações adequadas de tropos estabelecidas
através de alguma regra, o que em princípio permitiria uma resposta à objeção
de Kripke de que não há um subconjunto de propriedades essenciais a serem
identificadas com o objeto. Essa alternativa, contudo, não só era quase
desconhecida na década de 1960, quando Kripke desenvolveu suas idéias, mas
lhe teria sido de muito pouca valia, pois parece conformar-se muito melhor com
o descritivismo. Afinal, se o objeto referido por um nome é um sistema de
tropos, parece que a maneira pela qual o nome a ele se refere deve ser pela
identificação das variadas propriedades ou combinações de propriedades pelas
quais esse sistema nos pode ser apresentado. Essas variadas propriedades ou
combinações de propriedades, por sua vez, seriam eventualmente aquilo que
satisfaz descrições a serem avaliadas por alguma regra – a regra de identificação
do nome próprio.
1 Ver minha tentativa de parafrasear a natureza insaturada dos conceitos empíricos em termos da contingência dos tropos isolados na introdução desse livro.
257
Admitindo, para efeito de discussão, que a resposta de Kripke seja correta,
uma outra pergunta que emerge é sobre a constituição dos nomes próprios: como
se formam esses designadores rígidos capazes de se referir sem a intermediação
de propriedades conotadas? A resposta que ele oferece encontra-se em sua
concepção causal-histórica da relação referencial, segundo a qual os nomes se
referem por meio de uma apropriada relação causal com os seus objetos.1 Eis
como ele a apresenta:
Um ‘batismo’ inicial se dá. Aqui o objeto pode ser nomeado por ostensão, ou a referência do nome pode ser fixada por uma descrição. Quando o nome é passado ‘de elo a elo’ o receptor do nome deve, eu penso, ter a intenção de usá-lo com a mesma referência do homem do qual ele o ouviu.2
Em outras palavras: primeiro há um ato de fixação da referência (reference
fixing) através do batismo de um objeto com um nome ou através de descrição.
Depois o mesmo objeto passa a ser referido pelo mesmo nome por outros
falantes, que o ouvem e o comunicam de um para outro, em um processo de
empréstimo da referência (reference borrowing). Mesmo que a descrição que
eles possam vincular ao nome se demonstre insuficiente ou errônea, a referência
ocorrerá, conquanto a cadeia causal seja mantida e os diversos falantes
preservem a intenção de se referir ao mesmo objeto específico referido por
quem emprestou o nome. Note-se que essa intenção de se referir ao mesmo
objeto não deve ser confundida com a intenção de se referir a um objeto
específico, pois tal intenção, caso exista, pode não corresponder àquilo que a
pessoa está realmente se referindo, como no caso da pessoa que acredita estar se
referindo ao inventor da bomba atômica através do nome ‘Einstein’.
1 Há uma variedade de versões da teoria causal-histórica, entre elas as de Donnellan e de Devitt. Por simplicidade de exposição apresento apenas a de Kripke, que acabou por se estabelecer como uma espécie de versão standard. 2 Kripke: Naming and Necessity, p. 96 (ver também p. 91).
258
Chamando de nomeadores originários às pessoas que fixaram práticas
sociais de referência de um nome (como acontece com os responsáveis pelo
batismo e om os especialistas, mas também com especialistas), e chamando de
nomeadores secundários os demais usuários do nome, eis o esquema de uma
cadeia causal-histórica que termina com o proferimento do nome por um falante:
Nomeador(es) originário(s) relação causal objeto ... (relações causais) Nomeadores secundários ... (relações causais) Proferimento do nome por um falante...
Há alguns nomes próprios que não são introduzidos através de descrições e
não de batismo, mas através de descrições, como o próprio Kripke reconheceu.
Considere o caso do nome próprio de um objeto inferido, como o planeta
Netuno. O astrônomo Leverrier calculou que deveria existir um novo planeta
situado em certa região do espaço, responsável pelos desvios de órbita de Urano.
Leverrier chamou esse planeta de ‘Netuno’ antes mesmo de encontrá-lo, tendo
em mente as descrições correspondentes ao lugar e massa aproximada. Apesar
disso, é possível argumentar que uma vez que o objeto seja encontrado, a
referência passa a ser sustentada pela cadeia causal que com ele se inicia,
podendo a descrição até mesmo revelar-se falsa sem que o nome perca a sua
referência.1
Há um elemento intuitivo bastante compelente na teoria causal-histórica que
mesmo um descritivista deve reconhecer. É que nós vivemos em um universo
causal. Por isso, se agora escrevo a palavra ‘Aristóteles’, parece que só posso
designar o filósofo porque existe um inconcebivelmente complexo tear causal
que começou com (o batismo de) Aristóteles e terminou em meu proferimento
1 G.W. Fitch: Saul Kripke, p. 41.259
atual. Considere, para contrastar, um caso no qual o nome próprio não é capaz
de referir e nem mesmo de fazer sentido, uma vez que a cadeia causal não
existe. Digamos que eu invente arbitrariamente uma a frase:
1. Saratoga é uma cidade espanhola,
sem saber se isso faz sentido e se Saratoga é nome de alguma coisa. Mas
suponha também que por puro golpe de sorte isso seja verdade. Suponha que
exista uma cidade espanhola com esse nome. Certamente, ninguém admitirá que
consegui me referir a essa cidade com a frase acima. A razão é que falta uma
cadeia causal que ligue o portador do nome, caso ele exista, ao meu
proferimento dele.
Essa constatação é válida também para outros termos singulares, como os
indexicais. Digamos que alguém de olhos vendados tente adivinhar o que foi
colocado em cima da mesa dizendo:
2. Lá está um vaso de flores.
Digamos que realmente tenha sido colocado um vaso de flores sobre a mesa.
Mesmo assim, não há como se admitir que a pessoa se referiu ao vaso de flores.
Pode ser lembrado que a frase é verdadeira, e que sendo verdadeira a pessoa
deve ter se referido ao vaso de flores. Mas ela própria não sabe que a frase é
verdadeira. Ois embora a frase seja verdadeira, ela é verdadeira para seus
intérpretes, as outras pessoas que realmente comparam o pensamento que a frase
exprime com a realidade. (Uma explicação neofregeana disso nos diria que
embora a pessoa que profere a frase tenha o pensamento expresso por (1) e seja
capaz de dar um sentido (um modo de apresentação) à expressão ‘(aquele) vaso
de flores’, ela não determina através desse sentido a referência, nem esse sentido 260
é co-determinado pela experiência visual do vaso de flores, o que impede a frase
de possuir referência.
3. Dificuldades internas
Quero agora considerar duas dificuldades internas à teoria causal-histórica da
referência dos nomes próprios proposta por Kripke.
Uma primeira é a seguinte. Nas passagens onde Kripke introduz a sua idéia
da cadeia causal-histórica, ele Kripke recorre explicitamente a ao menos uma
intenção, que é a de “usar o nome com a mesma referência do homem de quem
a ouviu”.1 Essa intenção serve para selecionar o objeto referido na cadeia
comunicacional como sendo o mesmo, tanto para o falante quanto para o
ouvinte. Contudo, se essa intenção de preservar a mesma referência for
entendida como a preservação de conteúdos cognitivos vinculados ao nome,
parece que estamos recaindo no descritivismo, pois esses conteúdos se deixam
geralmente exprimir por intermédio de descrições. Mas se o descritivismo acaba
por emergir do interior do próprio externalismo kripkiano, a suposta vantagem
da teoria causal-histórica – a de superar as falhas do descritivismo – parece se
perder. Pois a próxima pergunta a ser feita será sobre a natureza dessa intenção
de preservar a mesma referência, sobre os critérios que a qualificam como capaz
disso.
Pode-se tentar contornar essa falha sugerindo que a intenção seja a de
preservar a mesma referência independentemente de sermos capazes de
conceber qualquer coisa de seu objeto. Mas se o ouvinte não precisa ter qualquer
1 Kripke: Naming and Necessity, pp. 91, 96. Searle nota que as explicações dadas por Kripke da introdução do nome próprio são inteiramente descritivistas: implicitamente, escreveu ele, também recorre a uma intenção quando fala da percepção do objeto pelo falante e ouvinte no ato do batismo, posto que a percepção possui um conteúdo intencional, o que acaba por pressupor o descritivismo. Mas podemos relevar esse ponto, imaginando que o ato de batismo (mesmo que intencional) inclua um compartilhamento mecânico, não-intencional, da referência, e que isso seja tudo o que importa como fator causal (Ver J.R. Searle: Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, pp. 234-235).
261
idéia de qual possa ser a intenção do falante, então a intenção de com o mesmo
nome se referir ao mesmo objeto se reduz a uma aposta arbitrária. É como se
alguém dissesse: “Quero comprar o mesmo perfume que você comprou, mas não
precisa me dizer qual é” – o que traduz uma intenção vazia que de nada serve. A
intenção de referir-se a mesma coisa sem que se saiba nada sobre o que a coisa é
vale tanto quanto um zero à esquerda.
A segunda dificuldade diz respeito às mudanças na denotação. Gareth Evans
formulou contra-exemplos decisivos a respeito. Um deles diz respeito ao nome
próprio ‘Madagascar’.1 Sabe-se que originariamente o nome ‘Madagascar’ se
referia à região mais oriental do continente africano. Mas quando Marco Polo
esteve por lá, uma tradução incorreta levou-o a pensar que ‘Madagascar’ fosse o
nome da grande ilha situada próxima à costa oriental da África. Mais tarde,
devido aos relatos de Marco Polo, as pessoas passaram a chamar a ilha pelo
nome de Madagascar, esquecendo-se da referência original. Certamente, se a
referência do nome fosse fixada apenas por um batismo inicial, essa alteração
não poderia ter ocorrido. Afinal, Marco Polo tinha a intenção de se referir a
mesma coisa que a pessoa da qual ele ouviu o nome próprio pela primeira vez e
não de introduzir uma nova referência para o mesmo nome.
Uma resposta plausível para esse tipo de objeção foi sugerida por Michael
Devitt.2 Segundo esse autor, o sentido de um nome próprio não tem a ver
propriamente com a referência, mas é uma habilidade de designar um objeto.
Essa habilidade não costuma ser aprendida por um único batismo, mas por
muitos, em um processo que ele chama de fundamentação múltipla (multiple
grounding). Assim, o nome Madagascar havia sido fixado através de múltiplos
batismos como uma região oriental do continente africano, até que foi
inadvertidamente rebatizado por Marco Polo. Se nos usos subseqüentes as
1 Gareth Evans: “The Causal Theory of Names”.2 Michael Devitt: Designation, 2.1-2.3
262
pessoas passaram a seguir Marco Polo, referindo-se à ilha, é porque a
fundamentação múltipla entrou novamente em ação formando um novo hábito
de referir, um sentido diverso para o nome. O que parece problemático nesse
apelo à fundamentação múltipla produtora de um hábito é que ela recorre a um
mecanismo psicológico-empírico que em si mesmos não parece capaz de refletir
o caráter convencional do uso do nome próprio.
Uma resposta que evita esse último problema é a proveniente do próprio
Kripke.1 Para ele, uma intenção, no caso, a intenção de Marco Polo de se referir
a uma ilha, sobrepuja a intenção dos antigos usuários do nome, estabelecendo
uma nova prática social. A partir disso o nome próprio ganha um novo sentido e
uma nova referência. Embora essa resposta seja mais apropriada, ela sofre de
descritivismo camuflado ao refletir o convencinal na forma de intenções. Afinal,
a intenção de Marco Polo de se referir à ilha só pode ser a de fazer valer
descrições como: ‘a grande ilha próxima da costa oriental do continente
africano’.
Uma dificuldade adicional, que quero rapidamente considerar, diz respeito ao
significado de nomes próprios diversos de um mesmo portador. Há casos em
que esses nomes próprios têm o mesmo conteúdo informativo (ex: José e Zé).
Mas há casos em que este último difere. Por exemplo: padre Marcial Maciel foi
fundador da ordem dos Legionários de Cristo e também um criminoso. Entre os
seus muitos atos criminosos estava o de manter falsas identidades. Uma delas foi
a de Raul Rivas, um empregado da Shell e agente da CIA que, que em 1976
conheceu a senhora Blanca Lara Gutierrez, que se apaixonou por ele e com a
qual teve dois filhos sem que a família descobrisse sua verdadeira identidade. Os
conteúdos informativos dos nomes ‘Marcial Maciel’ e ‘Raul Rivas’ são (ou
foram) cerrtamente, muito diversos. A teoria do feixe não encontraria problemas
em explicar essa diferença: o conjunto de descrições abreviadas pelo falso nome
1 Saul Kripke: Meaning and Necessity, p. 163.263
era um, o conjunto de descrições abreviadas pelo nome verdadeiro era outro,
mais tarde descobriu-se que o primeiro é conjunto é um subconjunto do
segundo, daí a mesma referência. Nossa questão aqui é como explicar esses
sentidos diversos através da teoria causal-histórica. Suponhamos primeiro, que
na teoria causal-histórica o significado do nome próprio seja dado por sua fonte
causal última e que essa seja o objeto do ato de batismo. Mas sendo essa fonte a
mesma para ambos os nomes próprios, eles deveriam ter o mesmo conteúdo
informativo, o mesmo significado. Mas isso é contra-intuitivo. Suponhamos,
alternativamente, que a fonte seja o próprio ato do batismo. Nesse caso teremos
atos diferentes, um para cada nome próprio. Mas com isso o objeto, a pessoa,
parece perder-se de vista, assim como a razão para se dizer que os dois nomes se
referem ao mesmo objeto. A melhor solução encontra-se na sugestão de que a
própria cadeia causal-histórica é aquilo que dá ao nome o seu significado. Como
essa cadeia difere para os nomes próprios ‘Marcial Maciel’ e ‘Raul Rivas’, dado
que as suas origens causais foram advindas de tempos e situações diferentes, o
conteúdo informacional desses nomes irá variar, mesmo que eles sejam de um
mesmo objeto.
4. Problema (i): uso referencial sem causação objetual
Há outras dificuldades apontadas na teoria causal-histórica, cuja consideração
pode ser instrutiva. Uma delas é a que concerne a nomes que não tem ou não
parecem ter relação causal com as suas referências. Quero começar
considerando dois exemplos em que, segundo J.R. Searle, a causação do nome
pelo seu portador não existe.1 Primeiro, sabendo que existe a 5ª avenida em
Nova York, podemos inferir que existe uma 4ª avenida, referindo-nos assim a
algo de que nunca ouvimos falar e que não pode ser origem causal de nosso
1 A maioria desses exemplos foi considerada por J.R. Searle em seu livro Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, pp. 238-9
264
proferimento. Além disso, se tudo o que sabemos acerca do faraó Ramsés VIII é
que ele veio depois de Ramsés VII e antes de Ramsés IX, podemos inferir que
Ramsés VIII existiu, sem que nenhuma cadeia causal tenha chegado até nós
partindo de seu batismo. Outros exemplos são os de coisas que só existirão no
futuro, como o furacão chamado ‘Katrina’, que recebeu esse nome antes de ele
se formar, ou a cidade planejada chamada ‘Brasília’, que recebeu esse nome em
1955 antes de ela ser construida. Ainda outro caso é o da referência a coisas
meramente possíveis, como Lauranda, que seria o ser humano que teria nascido
da célula espermática que originou Laura com o óvulo que originou a sua irmã
Amanda.1 E há também os casos de nomes de objetos abstratos da matemática,
como o número , que de modo algum seriam capazes de eficácia causal. Kripke
não nega que esses nomes todos tenham referência, mas a sua teoria parece
insuficiente para explicá-la.
Há, porém, respostas possíveis em defesa da concepção causal-histórica.
Uma delas consistiria em exigir apenas uma cadeia causal potencialmente
existente, mesmo que ela não seja atualmente dada. Em todos os casos acima,
com exceção talvez do último, essa potencialidade existe. Mas essa solução é
demasiado fraca, pois não justifica a potencialidade em questão. Uma variante
consistiria em exigir a existência de circunstâncias quaisquer (causalmente)
determinadoras do uso referencial do nome próprio, o que trivialmente acontece
nos casos acima. Essas duas condições podem se completar na formulação da
seguinte condição causal:
Cc: O uso referencial efetivo de um nome próprio só é possível se:(i) ele for adequadamente causado pelo seu objeto de referência,
ou se(ii) existirem circunstâncias que permitam com suficiente
probabilidade inferir a existência do objeto de referência do nome,
1 C. Hughes: Kripke: Names, Necessity, and Identity, p. 45 (baseado em Salmon).265
o qual, por sua vez, será capaz de se tornar a adequada origem causal do uso referencial do nome.
Se aplicarmos essa condição aos dois primeiros exemplos de Searle, é possível
responder considerando que aquilo que chamamos de causa eficiente é apenas
um elemento mais relevante de um conjunto de fatores causais que constitui uma
situação, um estado de coisas, um processo, muitos desses fatores podendo ser
apenas inferidos como existindo.1 Assim, sabendo que a 5ª avenida é o fator
causal efetivo que está na origem da cadeia causal que nos permite nomeá-la, e
sabendo que ele deve ser parte de um estado de coisas constituido por uma
sequência de avenidas numeradas, nós inferimos que uma 4ª avenida também
deve existir; com isso concluimos também que a 4ª avenida é uma causa
potencial de nosso uso referencial desse nome. Do mesmo modo, Ramsés VII e
Ramsés IX fazem parte de um processo de sucessão de faraós que naturalmente
inclui Ramsés VIII como um elemento do processo causal iniciador da cadeia
causal que chega até nós, mas que sabemos ser um fator causal potencial. Não
importa que tais fatores causais não façam parte do que foi para nós o fator
causal eficiente no estado de coisas ou processo; importa que eles foram parte
dos de estado de coisas e processo respectivos, que através de fatores causais
ditos eficientes deram inicio à cadeia causal-histórica que a nós chegou.
No caso do furacão Katrina, existiam elementos causais que permitiriam
prever o seu aparecimento, mas esses elementos não podem fazer parte do
furacão, embora possam causá-lo. No caso de Brasília tampouco: a cidade
existia apenas na mente dos arquitetos e urbanistas, e o que originou
inicialmente a invenção do nome foi a simples intenção do presidente Jucelino e 1 Segundo J.L. Mackie, o que chamamos de ‘causa’ é resultado da escolha pragmática de um fator causal que é parte necessária, mas não suficiente, de um conjunto de fatores causais que é suficiente, embora não necessário, para que o efeito se dê. O que quero notar aqui é que a relevância dos fatores causais se desfaz gradualmente na amplitude do contexto espaço-temporal que circunda os fatores causais mais relevantes e centrais. Ver J.L. Mackie: The Cement of Universe: A Study of Causation, caps. 2 e 3.
266
seu governo de construir uma nova capital federal.1 Essas condições, porém, já
teriam sido suficientes para a assunção de objetos potencialmente causadores da
referência, a serem futuramente atualizados. No caso de Lauranda, devemos
admitir que um objeto meramente possível não é um objeto existente e que por
conseqüência esse nome próprio não possui referência. Finalmente, o número
talvez possa ser considerado resultante de quaisquer circunstâncias de fixação
da referência através das quais dividimos o diâmetro de um círculo pelo seu
raio.2 Parece, pois, que em qualquer um dos casos até agora considerados, ao
menos a condição Cc(ii).
Outra forma de objeção seria a elaboração de situações imaginárias nas quais
a cadeia causal-histórica não existe. Searle imaginou uma pequena comunidade
lingüística na qual cada nome próprio é estabelecido indexicalmente na presença
de todos os outros falantes, de modo que nenhuma cadeia causal precisa se
formar. Como esse argumento não demonstra que os objetos não sejam a causa
dos proferimentos indexicais, ele só prova que a relação causal não precisa
chegar a produzir uma cadeia causal-histórica, o que de fato nunca foi
requerido.3
1 A teoria descritivista não encontra problemas em explicar nada disso. Sempre podemos encontrar descrições definidas, como a descrição localizadora de Brasília como sendo a cidade situada no centro geográfico do país, ou a descrição caracterizadora de Brasília como a sua capital.Tendo em vista tais casos, seria possível apelar para a causalidade regressa, sugerindo que no caso de nomes próprios referentes a objetos existentes no futuro o efeito (o proferimento do nome) viria antes da causa (o objeto a ser batizado). O problema é que parece definicional à relação causa-efeito que a causa seja algo que vem normalmente antes do efeito e em alguns casos junto com ele, de modo que se admitirmos que efeitos podem vir antes das causas, a própria distinção se perde.2 Se admitimos que objetos formais como o número não pertencem a um reino platônico, mas têm alguma existência no mundo real através de suas instanciações, então eles talvez possam ter um efeito causal indireto, como propriedades secundárias de propriedades causais primárias. Duas ostras estragadas, por exemplo, devem fazer mais mal do que apenas uma...3 Searle adiciona, porém, que essa nomeação só é possível porque as pessoas formam representações intencionais dos objetos ao batizá-los. Ver J.R. Searle: Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, pp. 240-241.
267
Parece também possível imaginar situações em que o uso referencial bem
sucedido do nome próprio não passe por Cc. Digamos que exista um vidente
que, olhando para a sua bola de cristal, seja capaz de adivinhar nomes próprios e
de nos informar toda espécie de coisas sobre a sua referência. Ele olha para a sua
bola de cristal e diz: ‘Kamchatka!’, dissertando sobre os belos vulcões dessa
isolada península. Ele olha outra vez para a bola e diz ‘Tom Castro!’, passando a
dissertar sobre a vida desse notório vilão. Se, depois de fazer todos os testes
concebíveis, não descobríssemos nenhum truque, começaríamos a desconfiar do
inevitável: sem precisar recorrer nem a cadeias causais-históricas nem a
circunstâncias que permitam inferir a existência dos portadores de nossos nomes
próprios, o vidente se refere efetivamente a eles.
Podemos mesmo conceber uma situação extrema, um mundo no qual as
pessoas não precisem aprender os sentidos ou referências dos nomes próprios,
nem comunicá-los umas às outras, aprendendo o seu uso intuitivamente. A cada
pessoa ocorreriam nomes próprios, havendo uma concordância mágica entre os
sentidos e referências que cada pessoa desse a cada nome. Um nome próprio
seria pronunciado apenas para comunicar algo sobre o seu portador que as outras
pessoas ainda desconheçam.
Em minha opinião, nenhuma dessas objeções parece suficientemente forte
para destruir a intuição inerente à concepção causal-histórica. No exemplo de
Searle, a circunstância causal está no próprio ato de batismo, mesmo que não
chegue a formar uma cadeia causal-histórica. No exemplo do vidente, ele nos
afirma que o nome tem referência sempre que sabemos que ele a tem. Mesmo
que a relação causal do que o vidente vê com a cadeia causal-histórica nunca
seja esclarecida, isso não quer dizer que ela não exista. E uma semelhante
correlação causalmente imediata (mesmo que misteriosa) poderia ser suposta no
caso do mundo possível onde nomes e referências fossem intuitivamente
aprendidos.268
5. Problema (ii): Nomes Próprios Vazios
O problema mais resiliente para a teoria causal-histórica é o que diz respeito a
nomes próprios sem referência. Eis alguns exemplos:
1. Vulcano,2. Eldorado,3. Atlântida,4. Rumpelstiltskin,5. Sherlock Holmes,6. Gandalf.
Tais nomes não podem satisfazer Cc, pois não possuem sequer um objeto
potencialmente causal. Como eles possuem sentido, eles não constituem
problema para teorias fregeanas ou descritivistas da referência, segundo as quais
tudo o que um nome próprio precisa é ter sentido. Mas nomes sem referência
são um grave problema para as teorias causais como a de Kripke, que fazem
depender a função referencial dos nomes do objeto de sua referência.
Uma estratégia para o defensor da teoria causal-histórica poderia ser sugerir
que nomes próprios sem referência não são verdadeiros nomes próprios, mas
descrições definidas disfarçadas, as quais referem por um mecanismo conotativo
muito diferente daquele pelo qual o nome próprio refere. O problema é que um
exame cuidadoso mostra que nomes próprios vazios não diferem essencialmente
dos nomes próprios mais comuns.
Considere primeiro os exemplos (1)-(3). Se os examinarmos mais de perto
veremos que esses nomes não substituem uma única descrição, mas todo um
feixe de descrições, o que parece nos reconduzir à teoria do feixe. No caso de
Vulcano, trata-se do nome de um planeta postulado por Leverrier no século XIX 269
como encontrando-se a cerca de 21 milhões de km do Sol, de modo a explicar as
mudanças no periélio de Mercúrio (as quais foram mais tarde explicadas pela
teoria da relatividade). É possível sugerir implausivelmente que a frase acima
exprime apenas uma descrição complexa. Mas (3) e (4) são nomes próprios com
conteúdo informacional ainda mais complexo, não diferindo do que feixes de
descrições exprimem. O nome próprio ‘Eldorado’ procede de relatos e rituais
indígenas, os quais levaram os conquistadores espanhóis a crer que em alguma
região no oeste da Amazônia existiria uma cidade cujo rei se vestia de ouro e
que possuía inacreditáveis riquezas. Com base nessas e noutras descrições,
aventureiros e exploradores procuraram em vão encontrá-la, frequentemente
acabando na condição de repasto de canibais. O nome lendário de ‘Atlântida’ foi
associado por Platão a uma variedade de descrições que contam da existência de
uma ilha situada entre o mar mediterrâneo e o oceano atlântico; essa ilha, que
entre outras coisas teria sido habitada por um povo muito rico, teria
desaparecido no mar devido a um maremoto há cerca de 9.000 anos a.C. Se
Eldorado e Atlântida fossem encontrados seria porque pelo menos algumas
descrições dos respectivos feixes se aplicam.
É verdade que os feixes de descrições dos exemplos acima são pobres se
comparados com os de nomes próprios como Marte, Paris e Aristóteles. Mas
isso se deve ao fato natural de que, pelo próprio fato de existirem, esses objetos
nos permitem, com o tempo, acumular informações identificadoras acerca deles,
enriquecendo mais e mais o feixe de descrições, e não devido a um mecanismo
de identificação essencialmente diverso.
Compare agora o funcionamento do nome ‘Atlântida’ com o do nome
‘Tróia’. Também nesse último caso, tudo o que se tinha em mãos era um
limitado feixe de descrições retirado da Ilíada de Homero. Contudo,
diferentemente dos casos anteriores, Tróia foi encontrada. Pois como é sabido,
tendo levado a sério essas descrições Schliemann encontrou o sítio no qual se 270
situam os restos da verdadeira cidade de Tróia. Qual a diferença entre os nomes
‘Eldorado’ e ‘Atlântida’, de um lado, e o nome ‘Tróia’, de outro? A meu ver só
uma: os primeiros são vazios, o último não. Fora isso, eles se comportam todos
da mesma maneira. Logo eles são todos nomes verdadeiros. Logo, a teoria
causal-histórica não é capaz de explicá-los.
Consideremos agora os exemplos (4)-(6), os quais, diversamente de (1)-(3),
são de nomes ficcionais. Aqui também temos feixes de descrições
identificadoras do objeto, ainda que elas não sejam aplicadas à realidade atual,
mas apenas ao domínio de objetos de mundos ficcionais. Rumpelstiltskin
abrevia descrições identificadoras de um anão em um conto de fadas, Sherlock
Holmes abrevia as de um detetive de uma série de contos de Conan Doyle,
Gandolf abrevia as de um mágico detalhadamente caracterizado no mundo
ficcional criado por Tolkien. Os mecanismos de identificação permanecem os
mesmos, alterando-se apenas o domínio de aplicação, que é o de realidades
meramente ficcionais.
Mesmo admitindo que os nomes próprios vazios como (1)-(6) não abreviam
descrições definidas isoladas, mas feixes de descrições, satisfazendo a teoria
descritivista, há estratégias possíveis para a teoria causal-histórica aplicáveis
mesmo a esses casos. Podemos admitir que (1)-(6) são verdadeiros nomes
próprios que, embora não se refiram a objetos reais, possuem ao menos
circunstâncias fixadoras da referência.1 Embora tais circunstâncias existam, o
objeto da referência não existe. Mas elas nos mostram como encontrá-lo se ele
existisse. Ele é um objeto potencial, não menos que Lauranda. Mas as
circunstâncias fixadoras da referência já têm um papel causal na determinação
do uso referencial e supostativamente do significado do nome próprio. Podemos
1 Essa solução não difere muito a meu ver da solução tentada por Keith Donnellan em “Speaking of Nothing”, segundo a qual o nome próprio vazio é aquele cuja cadeia causal termina em um “block”, posto que esse “block” nada mais seria do que as próprias circunstâncias fixadoras da referência.
271
definir essa situação sugerindo que um nome próprio pode ter significado e ser
vazio na medida em que entre as causas de seu proferimento estejam
circunstâncias fixadoras de referência capazes de tornar a existência de seu
objeto de referência ao menos possível.
Embora essa solução, como outras concebíveis, possa ser tentada, ela padece
de uma deficiência no que concerne ao conceito de circunstâncias fixadoras da
referência. Não sendo objetos kripkianos, tais circunstâncias, afinal, só podem
ser descritas em termos de propriedades ou conjunto de propriedades criteriais.
Tais propriedades, por sua vez, podem ser descritas. E as suas descrições, por
sua vez, acabam por se evidenciar como os mesmos constituintes dos feixes de
descrições que os nomes próprios vazios abreviam. E com isso voltamos a
admitir assunções próprias da teoria descritivista dos nomes próprios.
6. Nomes próprios vazios e rigidez
A admissão de que nomes próprios podem ter sentido, mesmo não se referindo a
coisa alguma, nos permite dissolver uma ambiguidade existente na concepção
kripkiana de designador rígido. Kripke definiu inicialmente o designador rígido
como o que hoje chamamos de um designador persistente: aquele que designa
um mesmo objeto em qualquer mundo possível no qual esse objeto existe.1 Mais
tarde e em outras passagens ele definiu o designador rígido como o que hoje
chamamos de um designador obstinado: aquele que designa o mesmo objeto em
todos os mundos possíveis, mesmo naqueles nos quais esse objeto não existe.2 O
próprio Kripke parece, pelo que sabemos, preferiu não se decicir entre essas
duas definições.3
1 Saul Kripke: “Identity and Necessity”, p…2 Saul Kripke: Meaning and Necessity, pp. 21, 48.3 Em uma carta a Kaplan, Kripke notou que preferiria se manter neutro a esse respeito. Ver G.W. Fitch: Kripke, p. 36.
272
A ambiguidade de Kripke é compreensível, pois parece haver vantagens e
desvantagens em ambas as definições. Que nomes próprios sejam designadores
persistentes está de acordo com a assunção de que eles só tem sentido porque o
seu uso resulta de um processo causal que tem origem no próprio objeto
existente: em um mundo no qual esse objeto não existe não deve existir o nome
próprio caracterizado por sua função identificadora. Mas há uma vantagem em
se admitir que nomes próprios são designadores obstinados, que é a de sermos
capazes de explicar porque podemos falar deles como designando possibilidades
inatualizadas no mundo em questão. Considere, por exemplo, um mundo no
qual Aristóteles nunca existiu. Mesmo assim parece que podemos supor a
possibilidade de ele existir nesse mundo. Mas essa suposição só parece viável se
o nome próprio ‘Aristóteles’ tiver alguma referência, mesmo que ela não exista
nesse mundo.1 A solução de quem aceita que nomes próprios são designadores
obstinados é dizer que em mundos nos quais a referência não existe eles se
referem ao objeto em nosso próprio mundo atual. Mas, como vimos ao discutir o
atualismo de Kaplan, essa resposta não é coerente, pois não podemos usar um
nome para um objeto em um mundo possível sem inserir o nome nesse mundo; e
inserir o nome em um mundo possível significa relacioná-lo ao contexto desse
mundo. Usar um nome em um mundo possível de modo a que ele se refira ao
nosso mundo atual seria o mesmo que tentar inseri-lo simultaneamente nos dois
mundos, o que levaria a uma contraditória mistura na satisfação dos critérios de
inserção contextual: Aristóteles teria escrito e não escrito a Metafísica, ele seria
barbudo e imberbe etc.
A esse problema poderíamos adicionar a consideração facilmente esquecida
de que não existe referência sem objeto de referência. Com efeito, é parte da
gramática de nosso conceito de referência que só podemos atribuir função
referencial a um termo se admitimos que o seu objeto de referência existe, de
1 G.W. Fitch: Naming and Believing, pp. 45, 46.273
modo que quando descobrimos que esse objeto não existe, nós negamos o
sucesso referencial.1 Por conseguinte, em mundo possível algum pode um nome
próprio se referir a algo que nele não existe.
Minha sugestão é a de que a nossa intuição de que um nome próprio pode se
referir a um objeto não atualizado (o Vulcano possível) em um mundo possível
que não seja o nosso, se baseia na admissão de que ele mesmo assim possui um
sentido descritivo. Por isso o nome próprio pode ser usado para designar um
objeto em outro mundo possível, no qual esse objeto existe. Ora, quando
falamos em possibilidades não-atualizadas, estamos considerando precisamente
isso: a referência de nomes próprios em mundos possíveis nos quais seus objetos
de referência existem, mesmo que considerada em mundos possíveis nos quais
essas referências não existem. É nesse sentido que nomes próprios podem se
referir a seus objetos em mundos possíveis nos quais eles não existem. Para que
esse raciocínio fique mais convincente, basta pensar que esse mundo possível no
qual o objeto não existe seja o nosso próprio mundo atual.
A inexistência de referência sem objeto de referência não significa que não
possamos falar de possibilidades não-atualizadas. Podemos, encontrando-nos em
nosso mundo atual, nos referir a objetos que são possibilidades não atualizadas,
como Vulcano, Eldorado, Gandalf, simplesmente no sentido de que podemos
imaginar mundos possíveis nos quais esses nomes tem referência. É fácil
explicar como isso é possível se admitirmos que o significado de um nome
próprio pode ser dado por modos de apresentação descritivos, pois mesmo que
esses modos de aprsentação não sejam satisfeitos no mundo atual, eles podem
ser satisfeitos em algum mundo possível, explicando como podemos imaginar a
sua referência efetiva em outros mundos possíveis, explicando a sua
1 É verdade que podemos nos referir a objetos ficcionais como Sherlock Holmes e Gandolf. Mas nesse caso estamos assumindo a existência desses objetos em domínios ficcionais. O que não podemos é nos referir a coisas supostamente pertencentes ao mundo real mas que não existem, como Vulcano e o Eldorado.
274
possibilidade de referência. Se admitirmos – contra Kripke – que nomes
próprios não demandam a existência do objeto para servirem como nomes
próprios, o entendimento de um nome próprio como sendo um designador
persistente se torna o mais natural. Por isso o adotarei daqui em diante.
7. O problema do autômato kripkiano completo
Podemos também demonstrar a necessidade do elemento cognitivo-
representacional concebendo o que eu gostaria de chamar de um autômato
kripkiano completo, capaz de criar e usar nomes próprios. Chamo esse autômato
de completo no sentido de ele não corre o risco de incorrer em descritivismo,
uma vez que não porecisa satisfazer sequer a exigência kripkiana de ser capaz de
ter a intenção de usar as palavras com a mesma referência que os outros
autômatos da mesma espécie. Imagino, pois, esse autômato como um ser
bastante primitivo, desprovido de qualquer forma de mente ou consciência, mas
ainda assim capaz de “identificar” pessoas através de seus sensores fotoelétricos
e de batizá-las com “nomes próprios”. Esses autômatos seriam certamente
capazes de reter imagens e características comportamentais da pessoa que
batizam com o nome próprio e ainda de transmiti-las para outros seres da mesma
espécie, “comunicando-as” assim a esses nomeadores secundários, os quais a
partir de então se tornam capazes de repetir o nome da pessoa quando a “vêem”
ou, por exemplo, quando “perguntadas” sobre como se chama uma pessoa com
tais e tais características. Como pode ser notado, o mecanismo de referência se
reduz aqui a uma pura cadeia causal-histórica externa, destituída de qualquer
elemento psicológico.
O interesse dessa experiência em pensamento é que ela não chega a ser
convincente como reprodução do que fazemos ao referir. Não entendemos
realmente como é possível que, nos nossos sentidos das palavras, um autômato
kripkiano tenha batizado uma pessoa e que apenas isso seja suficiente para que 275
ele possa reidentificá-la ou para que possa levar outros a reidentificá-la ou a usar
o nome próprio como resposta à representação de certas características. Afinal,
parece claro que esses autômatos não estão ainda usando os nomes próprios para
denotar no sentido próprio da palavra. As palavras ‘nome’, ‘referência’,
‘comunicação’, ‘visão’, ‘avistar’, ‘representação’, ‘intenção’ estão todas sendo
usadas aqui em um sentido extremamente simplificado e analógico. O que esses
autômatos fazem é apenas produzir imitações mecânicas de processos
referenciais que se dão em mentes conscientes, mas sem realizá-los
efetivamente, o que se demonstra em sua quase completa ausência de
flexibilidade, complexidade e sofisticação comportamental.
Imagine, porém, que não se trate mais de autômatos kripkianos completos,
mas de andróides extremamente sofisticados, tais como os que aparecem nos
filmes de Steven Spielberg; seres capazes de compartilhar com perfeição nossa
forma de vida, de aprender todos os detalhes de nossa linguagem natural, usando
os nomes próprios tão perfeitamente quanto nós mesmos.1 Ora, nesse caso não
ficaremos mais satisfeitos em considerar os seus atos de nomear elos terminais
de uma cadeia causal puramente externa. Por analogia com nós mesmos será
inevitável lhes atribuirmos mentalidade. Isso significa que seremos compelidos a
identificar certos pontos nodais de seus caminhos causais como também sendo
internamente descritíveis em termos psicológicos como cognições,
representações ou intenções. Afinal, não temos como nos impedir de
identificarmos a consciência alheia por analogia com a nossa.
Mas e se esses andróides na realidade fossem zumbis completamente
destituídos de consciência, mas apesar disso capazes de falar e de se comportar
de modo indistinguível dos seres humanos? E se eles viessem conversar
1 Digo isso supondo que a sua construção seja logicamente possível. Parece-me defensável a idéia de que somente seres biológicos com vidas semelhantes às nossas sejam capazes disso, justificando-se isso no insight wittgensteiniano de que uma expressão tem sentido somente no fluxo da vida.
276
conosco, tentando nos convencer que são completamente destituídos de
consciência, não possuindo realmente pensamentos, nem intenções, nem
vontade? Ora, a resposta é que não acreditaríamos em suas afirmações, pois elas
nos soariam ridiculamente incoerentes e inverossímeis. (Assim também o
proferimento “Eu te batizo com o nome ‘Aristóteles’” deve ter uma certa
configuração cognitiva para quem batiza, que é reproduzida na mente de quem o
compreende através de um processo causal; como essa reprodução poderia não
ser em algum sentido consciente?)
A conclusão sugerida por esses casos imaginários é a de que se quisermos
que os nomes próprios tenham referência no sentido próprio da palavra,
precisaremos elaborar a causação mecânica, externa, a tal ponto que ela
inevitavelmente passe a refletir-se na forma de processos causais psicológicos,
internanente avaliáveis, nos quais o elemento cognitivo-representacional-
intencional e, por consequência, o elemento descritivo, ganhem um papel
preponderante.
8. Cadeias causais, elos cognitivos e histórias causais
Mesmo concedendo que possa haver uma explicação causal-histórica para a
referência de nomes próprios, a questão é saber o quanto essa explicação
explica. Uma teoria causal-histórica realmente coerente precisaria ser construída
sem a admissão de quaisquer elos psicológicos como intenções, cognições,
representações, que geralmente se deixam expressar como descrições. Mas não
parece que o simples recurso a uma cadeia causal externa, a saber, uma cadeia
causal constituída de elementos físicos intersubjetivamente acessíveis, como
ondas de som, descargas neuronais, movimentos corporais... seja suficiente para
explicar a referência. Mesmo que Kripke admita que precisamos ter a intenção
de nos referir ao mesmo objeto, já vimos que para ser inteiramente conseqüente
277
ela precisa se reduzir a uma intenção de reprodução de um conteúdo
desconhecido, o que é o mesmo que nada.
É interessante considerar as dificuldades que aparecem quando tentamos
explicar a referência do nome próprio através de uma cadeia causal puramente
externa. Uma primeira dificuldade é que existem incontáveis cadeias causais que
nos estão sendo continuamente dadas e cujo elo final não é o uso de um nome
próprio para referir. Ora, como então identificar a cadeia causal que tem como
elo final o uso referencial de um nome próprio? Como saber, por exemplo, que a
palavra ‘Cacilda’ está sendo usada como nome próprio, e não em um sentido
meramente exclamativo? Como saber que uma pessoa está usando o nome
próprio ‘Aristóteles’ corretamente, segundo as causas apropriadas? Digamos que
ao ouvir pela primeira vez o nome ‘Aristóteles’, um nomeador secundário
conclua que o falante quer se referir a um colégio de sua cidade. Como saber
que essa não é, afinal, a cadeia causal-histórica correta sem recorrer a
representações-descrições relacionadas a pessoa de Aristóteles? Somos muito
pouco conscientes do fato de que vivemos em um imenso oceano causal. Como
escolher, entre inúmeras cadeias causais que simultaneamente ocorrem e se
entrecruzam, aquela que é responsável pela referência? Tão certo quanto a sua
existência é o fato de que a cadeia causal-histórica é em si mesma praticamente
inexcrutinizável e inseparável das outras conexões que formam o imenso tear
causal que termina no proferimento de um nome. Como então estarmos tão
certos de sua existência?
Parece que há uma única maneira claramente concebível de em princípio
identificar a cadeia causal externa relevante, que é pela suposição de que seus
elos físicos neurofisiológicos possam ser também de algum modo descritos em
termos psicológicos, nomeadamente, como cognições, representações ou
intenções de designar um certo objeto. Mas isso significa que é praticamente
inevitável considerarmos primeiro cognições ou representações internas para 278
então nos tornarmos capazes de perceber uma correlação entre essas cognições
ou representações internas e a sua contraparte física na forma de elos
neurofisiológicos constitutivos da cadeia causal externa. Contudo, como
cognições e representações internas são em princípio exprimíveis através de
descrições, se admitirmos que é esse o caminho para a identificação das cadeias
causais, parece que acabamos por nos comprometer com alguma forma de
descritivismo.
Não estou querendo afirmar que é logicamente impossível explicar a
referência dos nomes próprios recorrendo apenas às cadeias causais externas.
Imagine que seres extraterrenos quase oniscientes, de visita ao nosso planeta,
decidissem estudar nossos usos lingüísticos. Suponha que eles fossem capazes
de registrar todos os nossos atos comunicacionais e de identificar as cadeias
causais-históricas que nos levam a proferir nossos nomes próprios nos diversos
contextos. Parece razoável pensar que eles se tornariam no final capazes de
identificar essas cadeias sem recurso a nossas descrições de elos cognitivo-
representacionais. Isso sugere que uma explicação puramente causal em terceira
pessoa é logicamente possível. Mas, em primeiro lugar, é um fato que não temos
essa perspectiva quase onisciente em relação a nós mesmos. Pelo contrário,
sabemos muito mais sobre nossos estados mentais ao usarmos os nomes
próprios e explicações da referência que apelam a esses usos como as
explicações naturais e efetivas. Outro ponto é que os extra-terrestres acabariam
concluindo que, por tudo o que fazemos com as palavras, não podemos ser
autômatos kripkianos, mas seres conscientes, capazes de acesso cognitivo-
representacional às referências dos nomes próprios que usamos. Finalmente,
para identificar nossa linguagem enquanto linguagem e nossos usos referenciais,
os extraterrestres precisam saber o que é uma linguagem e possuírem estados
cognitivos-representacionais correspondentes. Ou seja: em algum momento e
lugar será sempre necessário que seja dado um padrão constituído por estados 279
cognitivos-representativos-descritivos conscientes, que sirvam de elos causais
interpretáveis em termos fisicalistas. O elemento psicológico é no final das
contas irredutível.
Minha conclusão é que, como explicação isolada para a referência, o
externalismo causal acaba incorrendo em petição de princípio: para se evitar o
recurso a um elemento cognitivo-descritivo comprometedor, apela-se a uma
cadeia causal puramente externa. Mas, considerando-se a pletora de cadeias
causais ligadas ao proferimento de um nome, como distinguir aquela que conduz
ao seu proferimento correto? Ora, a única maneira de responder a isso parece ser
apelando para cognições ou representações internas, que constituem a
apresentação psicológica de elos neurofisiológicos da cadeia causal externa.
Contudo, tais cognições ou representações internas costumam ser, por sua vez,
susceptíveis de exposição descritiva, o que nos compromete outra vez com
alguma forma de descritivismo. Kripke evita o descritivismo através do recurso
a alguma coisa que acaba por pressupô-lo.
Devemos concluir desses argumentos que o recurso à cadeia causal externa é
incapaz de desempenhar qualquer papel no sentido de explicar a referência?
Creio que não. Embora o rastreamento do tear causal externo (os sons proferidos
em atos de batismo, os seus efeitos específicos nos cérebros dos participantes
etc.) seja praticamente impossível, é muitas vezes possível uma identificação do
que pode ser chamado de história causal, que seria a história derivada do
percurso espaço-temporal delineado pela efetiva cadeia causal. Considere, por
exemplo, o nome ‘Sócrates’. Sabemos que Sócrates existiu devido aos
testemunhos deixados por contemporâneos que o conheceram pessoalmente,
como Platão, Xenófanes e Aristófanes, testemunhos esses mais tarde lembrados
por Aristóteles e pelos socráticos menores. Podemos discernir nisso histórias
causais que, através das mais variadas ramificações, chegaram até nós. Embora
nunca venhamos a reconhecer as cadeias causais específicas que se deram entre 280
o Sócrates histórico e o que ele possa ter produzido nos que possam tê-lo
batizado com esse nome e mais tarde nos cérebros de Platão, de Aristóteles e
dos socráticos menores, somos ainda assim capazes de identificar uma história
causal que contém em suas estações eventos causais nos cérebros de Platão,
Aristóteles e outros. Informações sobre a história causal podem ser relevantes
para a explicação da referência. Podemos tomar ciência dela. E a constatação de
uma completa ausência de histórias causais pode até mesmo levar-nos a rejeitar
uma suposta referência como ilegítima.
É importante enfatizarmos, porém, que as histórias causais só ganham força
explicativa com relação à determinação da referência porque nós tomamos
consciência de seus elos, ou seja, porque somos capazes de representá-los
cognitivamente, o que normalmente significa torná-los susceptíveis de
representação descritiva. Uma teoria descritivista dos nomes próprios poderia
incorporar informações relativas à história causal ao feixe de descrições
constitutivas do sentido de um nome próprio, exigindo então que a comunidade
lingüística (ao menos através de alguns de seus membros) fosse capaz de, em
algum momento, produzir representações descritivas justificadoras do seu uso
referencial.
Quero finalmente esclarecer melhor o modo de ver recém-sugerido apelando
para o exemplo de um nome próprio muito simples, tal como Devitt fez com a
sua gata Nana, em defesa de sua versão da teoria causal-histórica.1 Minha
história é a de uma cadela chamada Dodó (corruptela de ‘Dona’), que minha
mulher e eu também tivemos. Antes de ela ter um nome nós já sabíamos
identificá-la como ‘o nosso cão’. Nós a identificávamos perceptualmente pelo
seu pequeno tamanho, pela cor dos pelos, pela forma do focinho e pelo fato de
que ela era o único habitante canino da casa. Quando ela passou a ser chamada
1 M. Devitt: Designation, p. 28 ss.
281
de Dodó, nós usávamos o nome tendo em mente o animal com as características
recém-descritas. O que fizemos foi associar o nome a representações capazes de
serem em certa medida expressas na forma descritiva de um retrato falado ou
coisa parecida. Quem realmente conheceu a Dodó, conheceu uma descrição da
forma: ‘a cadela com tais e tais características, que morou em tal e tal lugar e
que pertenceu a tais e tais pessoas’. Claro, eu pude passar o nome a outras
pessoas que nunca a viram sem o auxílio dessa descrição, dizendo que tenho um
cão. Elas conheceram, portanto, a representação expressa pela descrição parcial:
‘o cão do Claudio’. Note-se que há aqui uma cadeia causal-histórica e que ela é
indispensável. Contudo, é importante notar que os elos da cadeia causal que
acabei de expor podem ser descritos como conteúdos cognitivo-
representacionais internos, similares ou complementares, que se repetem
atualizando-se (talvez de forma não-reflexiva) nas mentes das pessoas e sendo,
em grande medida, exprimíveis através de regras-descrições. É verdade que
todos cumprimos com a exigência de Kripke de ter a intenção de designar o
mesmo objeto. Mas essa intenção não é um querer destituído de conteúdo, mas a
intenção de designar o mesmo objeto por compartilhar da mesma intenção de
outros usuários do nome. Essa intenção só existe porque os elos do tear causal
são eventos neurofisiológicos, sejam eles quais forem, que se nos apresentam
como conteúdos cognitivo-representacionais em geral passíveis de apresentação
descritiva, além do fato de que esses elos, quando pensados pelos diversos
falantes, apresentam o necessário grau de similaridade e complementaridade
entre si. O exemplo sugere que, contrariamente ao que se supõe, cadeia causal-
histórica e cognição-representação-descrição são coisas que se complementam
ao invés de se opor.
9. O Descritivismo dos elos Causais
282
As considerações feitas até aqui sugerem um quadro mais complexo,
teoricamente capaz de integrar a visão causal-histórica a um descritivismo dos
elos causais. A existência de alguma conexão causal externa, atual ou ao menos
possível, é uma condição necessária para que o nome próprio possua referência.
Mas essa condição não parece ser suficiente. É preciso que ela possa ser
reconhecida como adequada para que o nome tenha a função de referir. Mas ela
só será reconhecida como adequada se for aquela cujos elos causais são capazes
de preservar a relação de referência que o nome tem com o seu objeto. E o
candidato natural a elo causal capaz de preservar essa relação é aquele
constituído por conteúdos cognitivos (representacionais, intencionais) que se
reiteram e se complementam no estabelecimento da relação referencial. Esses
elos cognitivos poderiam então instanciar regras descritivamente exprimíveis,
capazes de identificar o referente através de suas propriedades singularizadoras,
quaisquer que sejam elas. Se assumirmos a condição da existência da cadeia
causal externa como sendo satisfatoriamente resgatável pelas descrições que
expressam cognições que constituem momentos de histórias causais corretas,
essas histórias e as resultantes descrições dos elos causais cognitivos
instanciadores de regras de conexão com o objeto serão aquilo que no final das
contas é capaz de explicar a referência, pois é só a esses elementos cognitivos
que temos ou podemos ter efetivo acesso como usuários conscientes da
linguagem. Conseqüentemente, uma versão mais adequada da teoria causal-
histórica deveria supor como elos causais externos estados neurofisiológicos
capazes de serem descritos internamente como elos causais cognitivos
geralmente exprimíveis através de descrições que expressam procedimentos de
identificação que se afiguram como padrões complementares e reiteráveis no
delineamento do tear causal.1
1 É importante notar a proximidade dessas idéias com a versão da teoria causal-histórica defendida por Michael Devitt, segundo a qual o fixador cognitivo do referente não é uma descrição, “mas com um sistema de cadeias-d geradas por vínculos de papel conceitual que
283
O esquema que se segue visa ilustrar a estrutura do tear causal cujos elos
importantes podem ser internamente interpretados como conteúdos cognitivo-
representacionais geralmente passíveis de formulação descritiva:
Nomeador originário: (primeiro elo causal: relação causal objeto nome + cognições)
... (relações causais cognitivas) Nomeadores secundários: (elos causais cognitivos...)
... Proferimento do nome pelo falante...
Cumpre lembrar que os elos causais relevantes devem ser estads cognitivos
que podem ser apenas em medidas cada vez menores reproduzidos pelos
nomeadores secundários. Esses elos são geralmente descritíveis internamente e
em primeira pessoa como cognições (representações, intenções, idéias...),
devendo poder também ser em princípio descritíveis externamente, em terceira
pessoa, na forma de comportamento neuronal. Nós não teríamos como nos guiar
em qualquer forma de identificação externa (seja a de histórias causais, seja a de
supostas cadeias causais-históricas), a não ser por meio de alguma espécie de
correspondência (alegadamente, uma identificação) entre elos causais e
cognições internas.
vão de pensamentos para estímulos periféricos e de estímulos para o mundo externo” (“Against Direct Reference”, p. 227). Esse sistema em geral não é externo, pois “uma grande parte do sistema de cadeias-d para um nome consiste em processo e funcionamento mental” (p. 217), embora quase nada disso precise ser consciente (p. 227). Em minha opinião, o que Devitt está identificando com o sentido é uma mistura de representações psicológicas explicitáveis em termos de regras-descrições, mesmo que não-conscientes, com a leitura dessas mesmas representações em termos neurofisiológicos. Mas parece claro que tudo o que se apresenta em termos psicológicos também deve ser passível de descrição em termos de comportamento neuronal. Assim, o que Devitt está defendendo é no fundo uma forma de cognitismo que ele equivocamente interpreta em termos externalistas.
284
Outro ponto a ser notado é que as cognições que podem ser entendidas como
constituindo elos da cadeia causal não precisam ser conscientes: elas podem ser
cognições semânticas não-reflexivas. Afinal, se admitirmos as teorias meta-
cognitivas da consciência, segundo as quais uma cognição só é efetivamente
consciente se ela for objeto de uma metacognição1, então somos capazes de
realizar um imenso número de atos cognitivos de cuja estrutura nunca teremos
consciência, mas que permanecem em princípio resgatáveis para a consciência.
Em resumo: sob o modo de entender a cadeia causal aqui sugerido, os elos
causais relevantes são os internamente descritíveis, em primeira pessoa, em
termos de cognições e suas descrições, as quais podem em princípio ser
externamente descritas, em terceira pessoa, em termos neurofisiológicos. Essas
descrições exprimem conteúdos fundados em convenções estabelecidas pelos
membros da comunidade lingüística, sendo socialmente originadas e
psicologicamente instanciadas. Certamente, as cognições-descrições em causa
não precisam ser compartilhadas entre todos os falantes. O quase nada que eu sei
do conteúdo informacional do nome ‘Jayavarman VII’, por exemplo, se vincula
a tudo aquilo que os especialistas em conjunto (e nenhum deles em particular)
sabem sobre a esse príncipe, de um modo semelhante ao modo como um
terminal de computador se vincula ao processador central.2 Podemos saber
muito pouco sobre o sentido de um nome, mas, na medida em que formos
capazes de nos conectar com a fonte, que é a própria comunidade lingüística,
realizada nas pessoas de seus nomeadores originários ou privilegiados, seremos
capazes de introduzir o nome em um discurso público no qual a sua referência
possa ser reconhecida. Com efeito, o significado mais completo das palavras é
1 David Rosenthal: Consciousness and Mind, parte I. 2 Retiro essa analogia do livro de Michael Huntley, Contemporary Philosophy of Thought: Truth, World, Content, p. 280. Meus dois esquemas causais-históricos são aprimoramentos dos esquemas apresentados em seu livro (pp. 271-282).
285
atributo da comunidade lingüística e a referência não é nenhum ato privado no
sentido de fundamentar-se naquilo que acontece na mente de uma única pessoa.
10. Considerações finais
O ponto fundamental de minha crítica a uma teoria causal-histórica que se
reporte tão somente a uma cadeia causal externa é que essa teoria incorre em
uma petição de princípio, pois a identificação da cadeia causal acaba por
pressupor inevitavelmente uma contrapartida cognitivo-representacional, em
princípio descritivamente resgatável. Ou seja: se quisermos explicar a referência
valendo-nos apenas de cadeias causais externas, isso parece ser de algum modo
e em princípio, ao menos, possível. Mas para identificarmos as cadeias causais
externas verdadeiras precisaremos sempre, em algum momento, identificar os
atos cognitivos a que elas correspondem e através dos quais usamos o nome
próprio na identificação consciente de seu objeto.
Do ponto de vista dos usuários do nome, pelo menos, algum elemento
cognitivo interno termina sendo em algum momento imprescindível. Quero
ilustrar esse ponto com um exemplo de explicação psicológica. Suponha que eu
decida comprar um presente para alguém em agradecimento a um favor. Se me
perguntarem “Por que você decidiu comprar o presente?”, eu responderei: “Por
me sentir grato por um favor que a pessoa me fez”. Nesse caso há uma decisão
psicológica explicada por um sentimento também psicológico, sustentando uma
identidade de nível entre o explicandum e o explicans. Mas suponha que seja
possível explicar minha decisão de comprar o presente apelando aos processos
neurofisiológicos em meu cérebro correspondentes ao meu sentimento de
gratidão com relação ao favor que foi feito. Seria essa explicação isolada
suficiente e adequada para a minha decisão de comprar o presente? Parece-me
que não. Pois ela só poderá ser considerada adequada se já de antemão for
sabido que o processo neurofisiológico em questão corresponde respectivamente 286
à decisão de comprar o presente e ao sentimento de gratidão para com o
comportamento de meu amigo. Ou seja: mesmo que possível, a explicação
causal externa, fisicalista, de atos conscientes, só faz sentido na medida em
formos capazes de traduzi-la como correspondendo à explicação causal interna,
psicológica. Algo similar acontece quando consideramos uma possível
explicação da referência pelo recurso a cadeias causais externas: tais explicações
só farão sentido na medida em que forem vistas como contendo traduções
externas de processos internos, nos quais o semântico é de algum modo em
algum momento psicologicamente instanciado.
287
9. NOMES PRÓPRIOS (III): META-
DESCRITIVISMO CAUSAL
Como escreveu Ermano Bencivenga, nossas convicções filosóficas comportam-
se por vezes como pêndulos, que primeiro oscilam para um lado e depois para o
outro.1 Um resultado disso é que quando consideradas por um período
demasiado breve, elas nos oferecem a ilusória impressão de que continuarão
sempre seguindo a mesma direção. Com efeito, a teoria da referência direta dos
nomes próprios, alegadamente proposta por Stuart Mill, caiu por terra com o
desenvolvimento das teorias descritivistas de Frege, Russell, Wittgenstein e
Searle. Contudo, o que ninguém poderia prever é que ela iria renascer
metamorfoseada na forma da teoria causal-histórica dos nomes próprios
defendida por Kripke e por outros, em um movimento que até hoje persiste.
Como vimos no capítulo anterior, não é nem um pouco certo que esse
movimento seja definitivo. Com efeito, meu objetivo neste capítulo é tentar
inverter a direção do pêndulo na direção das teorias descritivistas, mesmo que
preservando alguns resultados positivos da concepção causal-histórica.
Minha hipótese de trabalho sobre as teorias descritivistas dos nomes próprios
é a de que elas falham por falta de estrutura. Um nome próprio não pode estar
no lugar de um simples amontoado de descrições, como pretenderam
descritivistas como John Searle. As descrições que compõem o feixe devem ser
submetidas a um princípio estruturador. Por não dar conta dessa organização,
uma teoria como a de Searle perde em poder explicativo, dando a impressão de
1 Ermano Bencivenga: Die Referenzproblematik: eine Einführung in die analytische Sprachphilosophie, pp. 129-130.
288
que as teorias causais-históricas constituem uma opção eventualmente mais
plausível.
Por força dessa hipótese de trabalho, meu objetivo será mostrar que as
descrições constitutivas do significado dos nomes próprios devem satisfazer
uma regra mais geral, capaz de lhes hierarquizar valorativamente. Como as
descrições constitutivas do feixe são expressões de regras cognitivas que as
conectam com o seu objeto de referência, essa suposta regra estruturadora do
feixe de descrições deve ser uma regra de regras, a saber, uma regra de ordem
superior, exprimível por meio de uma descrição de segunda ordem ou meta-
descrição. Por isso chamo a versão do descritivismo que irei propor de uma
teoria meta-descritivista dos nomes próprios, na verdade um meta-descritivismo
causal, dado que um reconhecido elemento causal deverá ser a ela integrado.1
Há também diferenças de abordagem. Quero começar investigando
sistematicamente os tipos de descrições pertencentes ao feixe. Os filósofos que
investigaram nomes próprios tomavam como exemplos as descrições
substitutivas que lhes passarem pela mente de modo mais ou menos aleatório.
Quero mostrar que precisamente por serem arbitrariamente escolhidas, tais
descrições eram muitas vezes de importância meramente aparente. Frege, por
exemplo, sugere que o nome ‘Aristóteles’ possa estar no lugar das descrições ‘o
discípulo de Platão’ e ‘o professor estagirita de Alexandre o Grande’. E
Wittgenstein sugere que o nome ‘Moisés’ possa estar no lugar da descrição ‘o
homem que quando bebê foi retirado do Nilo pela filha do faraó’. Mas, como
veremos, nenhuma dessas descrições é fundamental.
1. Regras-descrições fundamentais
1 A expressão ‘descritivismo causal’ foi cunhada por David Lewis para designar teorias mistas dos nomes próprios en seu artigo “Putnam’s Paradox”. Ver também D.K. Lewis, “Naming the Colors” e Frederick Kroon: “Causal Descriptivism”.
289
Há sem dúvida descrições mais e menos importantes associadas ao nome
próprio. Considere, por exemplo, ‘Moisés’. A descrição ‘o homem que guiou os
israelitas até a terra prometida’ parece mais importante do que ‘o homem que
quando bebê foi retirado do Nilo pela filha do faraó’. Afinal, a falsidade da
última descrição traria muito menos conseqüências que a falsidade da primeira.
Com o fito de hierarquizar as regras-descrições, quero distinguir três grupos de
descrições definidas atributivas capazes de exprimir partes do conteúdo
informativo dos nomes próprios: os grupos A e B – que são os do que chamo de
descrições fundamentais – e o grupo C – que é o daquilo que chamo de
descrições auxiliares. Quero evidenciar que os grupos A e B são os das
descrições realmente relevantes para a identificação do objeto, enquanto o grupo
C é o das descrições que, embora de alguma valia para a conexão com o objeto,
não chegam a desempenhar um papel fundamental. Quero começar procedendo
de modo meramente classificatório.
Vejamos primeiro o que chamei de descrições fundamentais. Para encontrá-
las gostaria de proceder atentando para a sua relevância na linguagem. Mas
como fazê-lo? J.L. Austin, o filósofo da linguagem ordinária, aconselhava que
ao fazermos filosofia tivéssemos à mão o Oxford English Dictionary. Contudo,
não podemos buscar os tipos de descrição mais importantes associados aos
nomes próprios, posto que nomes próprios não se encontram em geral
dicionarizados. Mas isso não nos deve desanimar. Pois se os nomes próprios não
se encontram dicionarizados, pelo menos muitos deles se encontram
“enciclopedizados”. Daí o meu conselho: se queres encontrar as descrições que
importam ao nome próprio, consultes os cabeçalhos dos seus verbetes nas
enciclopédias! Vejamos o que podemos encontrar, por exemplo, no verbete
‘Aristóteles’ do pequeno dicionário filosófico da Penguin. Lá está escrito:
290
Aristóteles = (384 a.C – 322 a.C.) nascido em Estagira, no norte da Grécia, Aristóteles produziu o maior sistema filosófico da antiguidade. (Segue-se uma exposição sumária das grandes obras de Aristóteles.)
Quando examinamos esse e outros verbetes do gênero para o nome
‘Aristóteles’, o que depreendemos é que eles abreviam especialmente duas
regras-descrições, uma estabelecendo o lugar e o tempo de seu nascimento e
morte (ao que podem ser adicionadas etapas de sua carreira espaço-temporal), a
outra estabelecendo as propriedades mais importantes de Aristóteles, aquelas
que constituem a razão pela qual aplicamos o nome. Essas propriedades são,
acima de tudo, as idéias e argumentos presentes no opus aristotélico.
Podemos agora abstrair desse caso concreto dois tipos de regras-descrições
fundamentais próprias dos grupos A e B respectivamente:
A) Regra localizadora = expressa pela descrição que estabelece o que consideramos localização e percurso espaço-temporais do objeto1.B) Regra caracterizadora = expressa pela descrição que estabelece o que consideramos as propriedades mais relevantes do objeto, aquelas que constituem a razão pela qual o nomeamos.
Consideremos agora as regras-descrições localizadora e caracterizadora de
Aristóteles de modo mais explícito. Elas são:
(a) Descrição localizadora do nome ‘Aristóteles’ = a pessoa que nasceu em Estagira em 384 a.C., que viveu a maior parte de sua vida em Atenas, teve de fugir para Assos, retornou a Atenas, mas acabou tendo de fugir para Chalcis, onde morreu em 322 a.C.(b) Descrição caracterizadora do nome ‘Aristóteles’ = o autor das doutrinas filosóficas expostas na Metafísica, na Física, na Ética a Nicômano, no Organon, nos Tópicos e nas demais obras que compõem o opus aristotélico.
1 O fato de que as regras espaço-temporalmente localizadoras tem um papel privilegiado não passou completamente despercebido. Segundo Paul Ziff, descrições localizadoras ou que implicam em localização formam uma parte central do mecanismo de referência do nome próprio (ver “The Meaning of Proper Names”).
291
Tais regras fundamentais podem ser mais e mais descritivamente detalhadas.
No caso de Aristóteles elas ultimadamente se justificam pelos testemunhos
históricos.
Para evidenciar a importância das regras-descrições fundamentais, eis alguns
exemplos de descrições definidas do grupo A, que retiro diretamente do
cabeçalhos de verbetes da Wikipedia.1 Eles apresentam como condições de
identificação propriedades localizadoras de objetos referidos por nomes
próprios:
1. Pelé (Edson Arantes do Nascimento) = a pessoa que nasceu na cidade de Três Corações em 1940 e que hoje vive em Santos e nos EUA.
2. Taj Mahal = um mausaléu construído de 1630 a 1652 perto da cidade de Agra, na Índia, existindo até hoje.
3. Paris = cidade de mais de dez milhões de habitantes situada no norte da França, às margens do rio Sena. Seu surgimento como cidade remonta ao século IX.
4. Amazonas = o rio que nasce nas montanhas do Peru e deságua no atlântico, seguindo a linha do equador. Junto aos seus afluentes ele forma a maior bacia hidrográfica do mundo. Existe desde tempos imemoriais...
É preciso notar que a descrição localizadora possui ao menos um elemento
caracterizador, que consiste na discriminação do tipo de objeto a ser referido.
Assim, Pelé é discriminado como sendo uma pessoa, o Taj Mahal como um
mausaléu, o Amazonas como um rio, Vênus como um planeta. Esse mínimo de
caracterização é indispensável para que a descrição localizadora chegue a fazer
sentido.
Que as regras-descrições do grupo B também são fundamentais você também
pode comprovar consultando os cabeçalhos dos mesmos verbetes. Na mesma
ordem, eis o que eles dizem:
1 Escolho a Wikipedia pelo acesso fácil; qualquer outra enciclopédia realçará dados similares.292
1. Pelé (Edson Arantes do Nascimento) = o mais famoso jogador de futebol de todos os tempos.
2. Taj Mahal = o belíssimo mausaléu de mármore feito pelo imperador Shah Johan para a sua esposa favorita, Aryumand Bam Began...
3. Paris = a capital da França, centro econômico e turístico do país e uma das mais belas cidades do mundo.
4. Amazonas = o mais caudaloso e provavelmente também o mais longo rio do mundo, responsável por 1/5 da água doce que desagua nos oceanos.
É principalmente em razão da importância das propriedades denotadas por
tais descrições definidas que esses nomes são usados por nós. Isso não significa,
é claro, que estejamos concebendo as propriedades por elas denotadas como
“essências reais”; elas são no máximo “essências nominais”, resultantes da
concordância entre usuários privilegiados dos nomes.
2. Regras-descrições auxiliares
Quero agora considerar as descrições definidas que ficaram de fora, a saber, as
descrições auxiliares, pertencentes ao grupo C. Elas constituem um grande
número de descrições cotidianas. Por isso mesmo, como já sugeri, elas
confundiram os filósofos, dificultando a detecção daquilo que é mais importante.
No que se segue apresento uma classificação que cumpre com uma finalidade
que é só prática.
(1) Um primeiro caso do grupo C é o de descrições que podem ser chamadas
de metafóricas, freqüentemente usadas no lugar do nome próprio. Exemplos são
descrições como ‘o marechal de ferro’, ‘a águia de Haia’, ‘a cidade luz’. As
propriedades que elas aludem não são, em geral, as mais importantes para a
identificação do objeto. Mas elas nos chamam atenção como sugestivos e
pitorescos artifícios mnemônicos. Assim, ‘o marechal de ferro’ chama atenção
por apontar para uma característica marcante do marechal Floriano Peixoto, que
foi o seu caráter autoritário e intransigente. Mas isso é de pouco auxílio no 293
sentido de nos permitir identificar univocamente Floriano Peixoto, pois há
outros marechais com traços de caráter semelhantes. O que mais propriamente
nos permite identificar Floriano Peixoto é, certamente, saber que ele satisfaz a
descrição localizadora (a) de ter sido ‘a pessoa nascida em Joazeiro em 1936,
que esteve na guerra do Paraguai e no Acre e que veio a falecer em Barra Mansa
em 1895’, além da descrição caracterizadora (b) de ter sido ‘o segundo
presidente e o primeiro vice-presidente do Brasil, responsável pela consolidação
da república’, ambas encontradas em enciclopédias.
(2) Há também regras-descrições auxiliares não-metafóricas, que podemos
classificar como acidentais, apesar de bem conhecidas. Exemplos de descrições
acidentais bem conhecidas são ‘o homem que em criança foi retirado do Nilo
pela filha do faraó’ e ‘o tutor de Alexandre o Grande’. Essas descrições são
conhecidas pela maioria das pessoas que sabem os significados dos nomes
‘Moisés’ e ‘Aristóteles’. Mesmo assim elas são acidentais, pois nem Moisés
nem Aristóteles deixariam de ser quem se acredita que foram se elas fossem
descobertas falsas.
A esse tipo pertence também uma descrição muito específica, que é aquela da
forma ‘o portador do nome ‘N’’, por exemplo, ‘o portador do nome
‘Aristóteles’’. Embora conhecidas, essas descrições são acidentais, pois
ninguém deixaria de ser quem é, nem de ser identificável como quem é, se
tivesse recebido um nome diferente. Com efeito, é um mero acidente que
Aristóteles tenha sido chamado pelo nome ‘Aristóteles’, enquanto não parece ter
sido igualmente acidental para nós o fato de ele ter escrito o opus aristotélico. Se
em um mundo possível Nicômaco, o médico da corte de Felipe, ao invés de ter
batizado o filho nascido em Estagira em 384 a.C. de ‘Aristóteles’, o tivesse
batizado com o nome de ‘Pitacus’, e se Pitacus tivesse estudado com Platão,
escrito todo o opus aristotélico e tido exatamente o mesmo curso de vida de
Aristóteles, não hesitaríamos em dizer que nesse mundo possível Pitacus foi 294
Aristóteles.1 Que a regra-descrição da forma ‘o portador do nome N’ não é
fundamental para a identificação de um objeto particular se deixa comprovar
pelo fato de que podemos utilizar um nome próprio e, após descobrirmos que ele
é incorreto, substituí-lo pelo nome correto da mesma pessoa. Além disso,
podemos saber quem é uma pessoa, aquilo que é importante acerca dela, sem
nos recordarmos mais de como ela se chama. O nome próprio é como o rótulo
de um fichário que contém as descrições mais e menos relevantes; podemos
trocar o rótulo, mas o que importa é o conteúdo do fichário (embora precisemos
de um nome para selecionar o fichário, o nome é contingente).
Essas considerações nos levam a uma conclusão curiosa. Se admitirmos que
em nossas reflexões sobre a linguagem uma explicação filosoficamente
relevante é aquela que tem um importe epistemológico ou metafísico2, então
uma teoria filosófica da semântica dos nomes próprios não é uma teoria daquilo
que chamamos de nome próprio na linguagem corrente, que é a sua expressão
fonética ou ortográfica, o que podemos chamar de expressão simbólica do nome.
Essa expressão é aquilo que faz com que, por exemplo, ‘Köln’ seja um nome
diferente de ‘Colônia’.3 Uma teoria filosoficamente relevante dos nomes
próprios precisa ser uma teoria de seu conteúdo semântico capaz de explicitar os
mecanismos de referência contidos nas regras-descrições relevantes a eles
associadas; ela é uma teoria do fichário e não do seu rótulo. Podemos fazer aqui
uma distinção paralela a que já vimos entre o sentido lexical e o conteúdo
semântico dos indexicais. O sentido lexical do nome próprio é o de um termo
usado para nomear um objeto particular; esse sentido pode ser expresso por uma
1 Kripke tem razão em pensar que mesmo a sentença “Aristóteles é o indivíduo chamado ‘Aristóteles’” não é a priori. Ver Meaning and Necessity p. 68 ss.2 Uma razão pela qual a filosofia da linguagem se distingue da lingüística é não só pela amplitude de escopo, que vai além das línguas particulars, mas pela presença de implicações epistemológicas e mesmo metafísicas em seu desiderato.3 Kripke chega a uma conclusão parecida ao recomendar que consideremos homônimos como sendo nomes diferentes, posto que diferença de referentes deve ser suficiente para a diferença de nomes. Ver seu Naming and Necessity, p. 8.
295
descrição do tipo ‘o portador do nome ‘N’’. Uma teoria do sentido lexical do
nome próprio é possível, mas lhe faltará importe epistêmico. Uma teoria do
conteúdo semântico do nome próprio, por sua vez, será uma teoria dos seus
sentidos fregeanos, dos seus valores cognitivos (Erkenntniswerte), dos seus
critérios de identificação. Só ela terá força explicativa para esclarecer a relação
epistêmica entre o nome próprio e o seu objeto. Mas por isso mesmo para ela a
expressão simbólica do nome próprio é no final das contas acidental, pois se
admite que um conjunto de expressões simbólicas equivalentes possa exprimir
um idêntico ou similar conteúdo semântico e com isso produzir um idêntico ou
similar ato de nomear.1
(3) Há também regras-descrições acidentais e geralmente desconhecidas.
Exemplos são ‘o marido de Pitias’, ‘o amante de Herfilis’, ‘o neto de Achaeon’.
Poucos sabem que essas descrições se associam todas ao nome ‘Aristóteles’.
Tais descrições definidas podem, naturalmente, ser multiplicadas à vontade,
sendo encontradas aos montes em biografias. Por serem conhecidas de alguns
poucos, elas não têm função relevante em sua associação com o nome próprio.
Pois imagine que tudo o que um falante sabe de Aristóteles é que ele foi o neto
de Achaeon. Ele não será capaz de fazer uso desse nome de modo a comunicar-
se com outras pessoas em geral. Pois a falta de compartilhamento da descrição
1 Compare as descrições: 1. ‘o portador do nome ‘Tom Jobim’, 2. ‘o portador do nome ‘Antônio Carlos Jobim’ e 3. ‘o portador do nome ‘Ismael Silva’. Em uma teoria do sentido lexical do nome próprio – chamada de teoria metalinguística – devemos distinguir aqui três sentidos lexicais diversos, posto que cada descrição tem uma expressão de nome próprio diversa. Intuitivamente, porém, é bastante claro que o sentido do nome próprio em 3 é muito distinto dos sentidos assemelhados dos nomes próprios em 1 e 2. A diferença só se torna explicável porque ela diz respeito ao conteúdo semântico desses nomes, às regras através das quais os seus objetos são identificados. Se entendermos o sentido do nome próprio em abstração de sua expressão verbal, então 1 e 2 contém nomes bastante similares, por sua vez muito distintos do nome contido em 3.
296
não auxilia as pessoas a reconhecerem no nome ‘Aristóteles’ por ele usado o
filósofo grego e não digamos o milionário grego Aristóteles Onassis.1
(4) Finalmente, há descrições auxiliares adventícias, como a expressa pela
descrição ‘o filósofo mencionado pelo professor’, ‘a senhora que nos foi
apresentada na reunião’. As regras aqui expressas associam o nome ao contexto
no qual foi propriamente usado. Elas são provisórias. Elas costumam ser
constituidas, usadas por algum tempo e depois abandonadas e esquecidas, não
sendo por isso constituintes semânticos característicos do nome. Contudo, por se
reportarem a um contexto compartilhado por outros, tais regras podem servir
para que o falante seja capaz de usar o nome próprio em conversação, de modo
que ele seja univocamente reconhecido pelos seus interlocutores, com a
subseqüente troca de informações e possível troca de informações sobre o
portador.
Nesse ponto poderia ser feita a seguinte objeção. Afora o fato de constarem
nos cabeçalhos dos verbetes das enciclopédias, não parece haver maiores razões
para se privilegiar as descrições ditas fundamentais. Afinal, assim como as
descrições auxiliares são contingentes, o mesmo parece acontecer com as
próprias descrições fundamentais: é perfeitamente possível que Aristóteles não
tivesse nascido em Estagira em 384 a.C., que Pelé não tivesse se tornado
jogador de futebol, que o Taj Mahal não tivesse sido construído perto de Agra!
Podemos, afinal, imaginar mundos possíveis nos quais nada disso seja o caso,
mas onde mesmo assim existem Aristóteles, Pelé e o Taj Mahal. As descrições
fundamentais não designam, pois, uma essência necessária ao portador do nome
próprio. Em contrapartida, podemos identificar um único objeto por meio de
uma descrição auxiliar: pode me ser suficiente para saber que alguém está
1 Suponho aqui que ele saiba muito pouco acerca de quem foi Achaeon e sobre quando e onde ele viveu, pois isso já implica que ele associa ao nome descrições como ‘um filósofo macedôneo do século III a.C’.
297
falando de Aristóteles saber que ele fala do fundador do Liceu ou mesmo do
amante de herphylis.
A única coisa que posso fazer diante dessa objeção é pedir ao leitor
paciência. Só após a introdução de regras de ordem superior capazes de
selecionar as combinações de regras-descrições de primeira ordem capazes de
justificar a aplicação de um nome próprio é que a importância das descrições
dos grupos A e B se tornará saliente.
3. A regra disjuntiva
Cumpre assim demonstrar que há meios de distinguir quais as combinações
entre as descrições do feixe que licitam a aplicação referencial do nome próprio.
Trata-se, para tal, de estabelecer uma regra-descrição de segunda ordem capaz
de se aplicar às regras-descrições de primeira ordem associadas a um nome
próprio qualquer, de maneira a selecionar as combinações que tornam a
aplicação do nome possível. Essa regra de regras deve ser, portanto, uma regra
meta-descritiva aplicável a nomes próprios em geral.
Para começar podemos descartar como insuficientemente relevantes as
descrições do grupo C. Elas são identificadoras apenas no sentido de auxiliar na
conexão do falante com o objeto, na medida em que possibilitam a sua inserção
em um meio comunicacional que já tem como pressuposto que as verdadeiras
regras de identificação do objeto capazes de concluir essa conexão já são
conhecidas ao menos pelos usuários privilegiados do nome ou ao menos do
conjunto deles. A evidência que podemos oferecer para isso é que elas podem
estar todas ausentes: podemos imaginar que Aristóteles não tivesse sido o tutor
de Alexandre, nem o filho de Nicômano, nem o marido de Pítias, nem o
fundador do Liceu, e que mesmo assim fosse o grande filósofo grego por nós
conhecido. Contudo, o mesmo não pode ser dito das descrições fundamentais.
Não podemos conceber que nem a descrição localizadora nem a descrição 298
caracterizadora se apliquem; não podemos conceber “~A & ~B”. Para
evidenciar isso, basta lembrarmo-nos do exemplo de Searle do especialista em
Aristóteles que veio nos informar ter descoberto que Aristóteles na verdade não
escreveu nenhuma das obras a ele atribuídas, mas foi na verdade um mercador
de peixes veneziano do renascimento tardio...1 Ou então, imagine que alguém
venha nos dizer que Aristóteles não foi um filósofo, mas um grande armador
grego que viveu no século XX, seduziu Calas e se casou com Jackeline... nós
responderemos que está se falando de outras pessoas de nome Aristóteles, que
nada têm a ver com a pessoa que tinhamos em mente. E a razão disso é que
nenhuma das regras-descrições fundamentais que usamos associar ao nome
‘Aristóteles’ está sendo minimamente satisfeita.
Se a regra meta-identificadora exclui “~A & ~B”, excluiria ela “A & B”?
Deveria ela exigir a conjunção da descrição localizadora com a descrição
caracterizadora, ou apenas a sua disjunção? Ainda que usualmente os objetos
satisfaçam uma conjunção de condições dos grupos A e B, é muito fácil
conceber situações e casos incomuns, em que o nome se refere sem que a
condição pertencente a um desses dois grupos seja satisfeita.
Considere, uma vez mais, o nome ‘Aristóteles’. Não é difícil imaginar
mundos possíveis próximos ao nosso, nos quais ele existiu sem satisfazer à
conjunção das regras de localização e de caracterização para Aristóteles. A regra
de localização para Aristóteles não precisa necessariamente se aplicar: podemos
perfeitamente conceber um mundo possível próximo ao nosso no qual
Aristóteles escreveu o opus aristotélico, mas nasceu e morreu em Roma dois
séculos mais tarde, não tendo existido nenhum discípulo de Platão chamado
Aristóteles e nascido em Estagira no século IV a.C. Mesmo assim, não
hesitaremos em reconhecer nele o nosso Aristóteles, posto que a regra de
aplicação, ao menos, continua sendo satisfeita.
1 J.R. Searle: “Proper Names and Descriptions”, p. 490.299
Podemos também conceber um mundo possível nos qual somente a regra de
localização para Aristóteles é satisfeita, mas não a regra de caracterização, pois
nele a filosofia de Aristóteles nunca existiu. Suponha que nesse mundo
Aristóteles tenha nascido em Estagira em 384 a.C., filho de Nicômano, médico
da corte de Felipe, e que aos 17 anos ele tenha viajado para Atenas para estudar
com Platão. Infelizmente, pouco após a sua chegada ele foi vítima de uma febre
cerebral que o incapacitou para atividades intelectuais pelo resto de sua vida, até
a sua morte em Chalcis, em 322 a.C. Apesar disso, parece que temos elementos
suficientes para reconhecer nessa pessoa o nosso Aristóteles “em potência”. Mas
aqui só a regra de localização está sendo satisfeita.
Outra evidência de que a satisfação da conjunção das regras identificadoras
não é necessária é que há nomes próprios que por convenção se referem a um
objeto somente através de sua localização ou somente através de sua
caracterização.
Como exemplo do primeiro tipo, suponhamos que alguém decida chamar de
Z o centro de um círculo. Esse ponto satisfaz a condição do tipo A de ter
localização espaço-temporal definida, mas não é preciso que possua nenhuma
característica distintiva relevante.
Outro exemplo é o nome ‘Vênus’. A regra de localização é ‘o segundo
planeta do sistema solar enquanto foi identificado como tal e provavelmente há
milhões de anos’, enquanto a regra de aplicação é ‘um planeta com um terço da
massa da terra e densa atmosfera’. Contudo, o que importa aqui é que a regra de
localização seja satisfeita, a regra de caracterização importando muito pouco, se
é que importa alguma coisa. Se Vênus perdesse parte de sua massa ou se
perdesse a sua atmosfera, conquanto continuasse a ser um planeta (uma
demanda já incluída na regra de localização), ele continuaria a ser Vênus.
Podemos imaginar que ele deixe de orbitar o sol. Mas nesse caso ele não deixará
de satisfazer a regra de localização, pois no tempo em que foi batizado ele 300
orbitava o sol. E se for descoberto que ele não pertenceu ao sistema solar
primitivo, mas veio do espaço há um milhão de anos atrás, ainda assim ele
satisfará a regra de localização.
Uma maneira de se explicar o que acontece em tais casos é dizer que neles a
regra de aplicação é a própria regra de localização. Lembremo-nos que a regra
de aplicação foi definida como a razão pela qual nomeamos. Mas em casos
como o do centro Z do círculo e do planeta Vênus, essa razão é a própria
localização.
Também existem exemplos que exigem apenas a satisfação da regra de
aplicação. Um deles é oferecido pelo nome ‘Almostasin’, que aparece no conto
de Borges intitulado A aproximação de Almostasin. Almostasin é algo, talvez
uma pessoa, que pelo contato com as outras emana perfeição. Alguns acreditam
que podemos nos aproximar dele pelo contato com outros seres humanos que
sejam repositórios limitados de sua grandeza. Apenas nessas indicações vagas se
constitui a regra caracterizadora desse nome. Mas não há uma regra
identificadora de sua localização espaço-temporal, pois ninguém jamais
encontrou Almostasin e alguns até mesmo negam que ele exista. Há inclusive
um exemplo de nome próprio que por definição não pode ter regra de
localização: trata-se da palavra ‘Universo’ (ou ‘multiverso’, se preferirem). O
objeto referido por esse nome tem regra de caracterização: ele é tudo o que
empiricamente existe. Mas ele não pode ter regra de localização espaço-
temporal, pois por conter todo o espaço e todo o tempo, o Universo não pode
estar nem no espaço nem no tempo.
Ora, se excluirmos “~A & ~B” e também “A & B”, é forçoso que a condição
meta-descritiva usual para a aplicação do nome próprio seja “A v B”, ou seja
uma disjunção inclusiva das descrições localizadora e caracterizadora. Dessas
considerações segue-se uma primeira e mais rudimentar versão da regra
referencial meta-identificadora para os nomes próprios, a ser aplicada a regras-301
descrições fundamentais de primeiro nível pertencentes aos grupos A e B.
Chamo-a de regra disjuntiva:
RD:Um nome próprio N refere-se propriamente a um objeto x pertencente a uma classe G de objetossee,(i-a) x satisfaz sua regra de localização e/ou(i-b) x satisfaz sua regra de caracterização.
Para exemplificar: podemos aplicar o nome próprio ‘Aristóteles’ a um objeto
da classe dos seres humanos se e somente se existe um indivíduo que (i-a)
satisfaz a regra de localização para ‘Aristóteles’, que é a de ter nascido em
Estagira em 384 a.C. tendo vivido boa parte de sua vida em Atenas... e falecido
em Chalcis em 322 a.C. e/ou (i-b) satisfaz a regra de aplicação de ‘Aristóteles’,
que é a de ter produzido o conteúdo do opus aristotélico.
Algumas explicações são exigidas. Primeiro digo “N refere-se propriamente
ao objeto x” entendendo por isso que a referência feita por um usuário
idealizado do nome, que realmente conheça a regra, o que costuma ser o caso
dos usuários privilegiados, embora não necessariamente. Assim, a referência é
própria no sentido de que ela não é feita com insuficiente base cognitiva, como
acontece quando uma pessoa emprega nomes como ‘Feynman’ e ‘Einstein’ sem
saber realmente sobre quem está falando. Segundo, a classe C é algo equivalente
ao genus proximum, delimitando o gênero de coisas mais relevante ao qual x
pertence. O recurso à classe C serve para limitar previamente o escopo da
definição. O nome ‘Aristóteles’, por exemplo, deve ao menos referir-se a algo
que pertença à classe dos seres humanos. Se em um mundo possível um
computador denominado ‘Aristóteles’ produzisse o opus aristotélico, teríamos
muita dificuldade em acreditar que ele fosse o nosso Aristóteles, mesmo que ele
302
fosse construído por alienígenas no ano 384 a.C. em Estagira, utilizado por mais
de vinte anos em Atenas e finalmente desmantelado em 322 a.C. em Chalcis.
Preferiríamos considerar essa uma coincidência de nomes.
Outra pergunta é: qual o papel das descrições auxiliares? Poderiam elas
sozinhas dar conta do recado? Suponha que certo objeto satisfaça muitas ou
todas as descrições auxiliares associadas ao seu nome, mas sem satisfazer
nenhuma das descrições fundamentais. Suponha que um certo Aristóteles tenha
vivido no século XVI em Veneza e que ele tenha sido um mercador de peixes
intelectualmente obtuso. Mas suponha que mesmo assim ele satisfaça a maioria
as descrições auxiliares para esse nome. Suponha que ele tenha sido filho de um
médico chamado Nicômaco, neto de Achaeon, que ele tenha sido marido de
Pítias e amante de Herphylis e que tenha fundado um Liceu e ensinado
Alexandre. Ora, por mais notáveis que fossem essas coincidências, elas não
seriam relevantes, pois lhes faltariam os contextos apropriados de localização e
caracterização. Afinal, esse médico chamado Nicômaco não poderia ser o
Nicômano que sabemos ter trabalhado na corte do Felipe da Macedônia, nem o
avô Achaeon pode ser aquele mesmo que viveu no século IV a.C. Nem Pítias
nem Herphylis poderiam ser mulheres da Grécia antiga, apesar dos nomes. O
Alexandre que esse falso Aristóteles ensinou não poderia ter sido o maior
conquistador de todos os tempos. E o Liceu que esse inepto fundou não poderia
ter nada a ver com o Liceu que produziu o aristotelismo antigo. A barafunda
conceitual criada na tentativa de se conceber uma situação na qual só as
descrições auxiliares permanecessem as mesmas não é capaz de produzir mais
do que uma série de curiosas e estranhas coincidências, que se nos apresentam
como uma persiflagem dos acontecimentos – uma farsa incapaz de nos
convencer da autenticidade do Aristóteles proposto.
4. O papel da conexão causal303
Antes de continuarmos é interessante nos perguntarmos se resta aqui algum
papel para a conexão causal normalmente existente entre o objeto e o uso do
nome para referir quando este último tem referência. Podemos avaliar esse ponto
examinando um conhecido contra-exemplo ao descritivismo sugerido por Keith
Donnellan1. O contra-exemplo diz respeito ao filósofo Tales, sobre o qual não
sabemos muito mais do que a descrição definida “o filósofo milesiano antigo
que afirmou que tudo é água”. Imagine agora que as nossas fontes, Aristóteles e
Herótodo, estivessem mal-informadas, e que Tales tenha sido apenas um sábio
cavador poços que, cansado de sua profissão, exclamou: “Quem me dera se tudo
fosse água para eu não ter de cavar esses malditos poços!”, e que um viajante
tenha por engano entendido essa frase como dizendo respeito à natureza da
realidade, tendo sido esse engano repetido por Herótodo e por Aristóteles, que o
legou à tradição filosófica. Além disso, imagine que tenha existido um eremita
que nunca divulgou suas idéias, mas que realmente sustentou que tudo é água.
Nesse caso, escreve Donnellan, nossa tendência continuaria sendo a de pensar
que com o nome ‘Tales’ não estamos nos referindo ao eremita, mas ao cavador
de poços, apesar de ele não satisfazer a nossa descrição. Nós fazemos essa
referência, pensa ele, devido ao tear causal-histórico que se inicia com Tales,
mesmo que associado a uma descrição errônea. A favor dessa conclusão está o
fato de que não há relação causal alguma entre o nosso uso do nome ‘Tales’ e o
eremita. Não é o pensamento desse eremita (talvez nunca transmitido a
ninguém) de que tudo é água que foi lembrado por sucessivas gerações de
filósofos.
Vejamos agora como seria a resposta descritivista. Searle, examinando esse
exemplo, começa por relativizar a conclusão de Donnellan ao conceber uma
versão do exemplo que parece contradizer a concepção causal-histórica. Se
Herótodo tivesse um poço no qual um sapo coaxasse de modo a emitir sons
1 Keith Donnellan: “Proper Names and Identifying Descriptions”, pp. 373-375.304
parecidos com a frase “Tudo é água” e o sapo pertencesse à espécie chamada
‘tales’, ele poderia ter dito “o Tales disse que tudo é água”, originando ele
próprio o equívoco. Mas se a teoria causal-histórica é certa, uma vez
esclarecidos sobre esse fato nós deveríamos concluir que com o nome ‘Tales’
estamos nos referindo ao sapo do poço de Herótodo, o que certamente não é o
caso.1 O que concluiríamos, certamente, é que Tales nunca existiu. Parece, pois,
que a origem causal só não basta.
Mas o que mais nos interessa notar é que o descritivista pode responder
introduzindo descrições relativas ao que já chamamos de história causal. Como
Searle observa:
Quando dizemos “Tales foi o filósofo grego que sustentou que tudo é água”, não queremos apenas dizer qualquer um que sustentou que tudo é água, nós queremos dizer a pessoa que era conhecida de outros filósofos gregos como argumentando que tudo é água, que era referida em seu tempo ou subseqüentemente por algum predecessor grego pelo nome ‘Tales’, cujos trabalhos e idéias chegaram até nós postumamente através dos escritos de outros autores e assim por diante.2
Com efeito, mais do que outros filósofos, a importância de Tales está em seu
lugar na origem histórica da filosofia ocidental. Como resultado da longa
história causal daí resultante, o que justifica a aplicação do nome passou a ser
em grande parte a crença na aplicabilidade de uma variedade de descrições
históricas, de modo que ao recebermos a notícia de que Tales era um cavador de
poços, passamos a oscilar entre a admissão de que ele realmente foi um cavador
de poços e, como Searle também percebeu, a conclusão de que o filósofo ‘Tales’
na verdade nunca existiu.
1 J.R. Searle: Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, pp. 252-253.2 Searle: Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, p. 253. Por passagens como essa Searle pode ser interpretado como um descritivista causal.
305
Como já foi visto no capítulo anterior, embora não possamos resgatar
cognitivamente a própria cadeia causal-histórica, nós podemos resgatar
cognitivamente elementos da história causal, a saber, acontecimentos espaço-
temporais representativos de elos de cadeias causais, principalmente através de
seus supostos nódulos representacionais ocorrentes nas mentes das pessoas e
linguisticamente manifestados. No caso de Tales, nós diríamos que é parte
constitutiva de sua caracterização, não somente que ele foi alguém que disse que
tudo é água, mas que ele foi “a pessoa nomeada por Herótodo e Aristóteles na
doxografia como sendo o filósofo pré-socrático que afirmou que tudo é água...”,
o que nos permite resgatar pontos nodais cognitivos do caminho causal
concernentes a representações que devem ter ocorrido nas mentes de Heródoto e
Aristóteles. É verdade que essa caracterização é apenas muito parcialmente
satisfeita pelo cavador de poços. Contudo, a referência continua sendo
alicerçada pela satisfação suficiente da regra de localização espaço-temporal
como sendo a da pessoa que viveu provavelmente de 624 a 548-5 a.C., que
nasceu e morreu em Mileto e que viajou ao Egito... É pela satisfação da
descrição localizadora, além da satisfação parcial da descrição caracterizadora,
junto com a satisfação de descrições do caminho causal (as quais no caso são
incluidas na regra caracterizadora) que sabemos que mesmo um cavador de
poços sem qualquer relação com a filosofia poderia, eventualmente, satisfazer a
regra disjuntiva, continuando a ser o nosso Tales. Finalmente, Tales não poderia
ser um sapo que viveu por volta de 580 a.C., em Mileto, pela simples razão de
que a regra disjuntiva demanda que ele pertença à classe dos seres humanos.
Não obstante, a assunção da cadeia causal em casos como o recém exposto
não deixa de ser de fundamental importância. Basta imaginarmos que o eremita
considerado por Donnellan, além de ter sustentado que tudo é água, tenha
satisfeito a condição localizadora para Tales de ter vivido entre 624 e 548-5 a.C.,
tendo nascido e morrido em Mileto e viajado ao Egito. Nesse caso, ele satisfaz 306
mais as regras fundamentadoras do que o Tales cavador de poços, que podemos
imaginar como não tendo vivido precisamente entre esses anos e nunca tendo
visitado o Egito. Mesmo assim, sentimos que o eremita não pode ter sido Tales.
E isso é assim por que ele não satisfaz o pressuposto de estar vinculado aos
nossos proferimentos do nome ‘Tales’ por adequadas cadeias causais. Parece,
pois, que no caso de Tales a condição disjuntiva deve ser completada pela
condição de que esteja sendo satisfeito o pressuposto da existência de uma
adequada cadeia causal vinculando o seu proferimento ao (batismo do) objeto,
uma cadeia que nos é revelada por seus caminhos causais.
A admissão desse pressuposto é complicada pelo fato de que em certos casos
o nome próprio tem referência sem que nos seja dada uma vinculação causal
com o objeto. A solução que havíamos sugerido no capítulo anterior foi a de
exigir que em casos nos quais o objeto não está na orígem causal do
proferimento do nome próprio, as circunstâncias (causalmente) determinadoras
do uso referencial do nome próprio (as quais sempre existem) nos permitam
inferir a existência (em algum tempo) de um objeto potencialmente capaz de se
tornar a adequada origem causal do uso referencial do nome próprio. Eis como
essa condição foi apresentada:
Cc: Um nome próprio possui referência somente se(i) ele for adequadamente causado pelo seu objeto de referência,
ou se(ii) existirem circunstâncias causais objetivas que permitam (com
suficiente probabilidade) inferir a existência do seu objeto de referência – um objeto que por sua vez será potencialmente capaz de se tornar a origem de uma adequada cadeia causal originadora de nosso uso referencial do nome.
Como também vimos, Cc(ii) serve para validar a referência nos casos em que
esta última existe em uma adequada cadeia causal-histórica. Por exemplo,
307
mesmo que não tenha existido uma cadeia causal vinculando o nome ‘Netuno’
ao planeta Netuno, quando este foi assim chamado por Leverrier antes de sua
descoberta telescópica, ele pôde ser por ele referido, devido à circunstância das
perturbações na órbita de Urano conhecidas na época, as quais permitiram a
Leverrier inferir a existência de Netuno como sendo a sua causa e,
ultimadamente, a descoberta telescópica desse planeta, o que acabou criando a
cadeia causal-histórica que determina a sua nomeação atual. Podemos resumir
Cc na condição de que uma condição necessária para sabermos que nomes
próprios possuem referência, ou seja, que nossas cognições de que certas
descrições fundamentais são em medida suficiente satisfeitas, somente no caso
em que essa consciência seja, ou resultado de uma adequada vinculação causal-
histórica entre nós e o objeto referido, ou então, caso isso não for possivel, ao
menos essa vinculação causal seja (com suficiente probabilidade) inferida como
sendo potencialmente efetivável com base na consideração das circunstâncias
dadas que demandam a existência (presente, passada ou futura) do objeto.1
Resumindo essa condição na afirmação de que o objeto deve estar na origem
(causal ou inferencial) de nossa consciência da aplicabilidade das descrições
constitutivas do nome próprio, podemos reformular RD com a adição desse
pressuposto como:
RD’Um nome próprio N refere-se propriamente a um objeto x pertencente a uma classe G de objetossee,pode ser assumido que x está na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de quex pode (causalmente) nos fazer conscientes de que(i-a) x satisfaz a regra de localização para N e/ou
1 Isso deve cobrir os casos nos quais o objeto ainda não existe, como o da anã branca em que o sol deverá se transformar em alguns milhões de anos.
308
(i-b) x satisfaz a regra de aplicação para N.
Só quando pressupomos que nossa cognição de que a regra-descrição
localizadora e/ou a regra-descrição caracterizadora se aplica a um objeto, ou
seja, que o objeto está em sua origem, ou no sentido de que ele atualmente a
causa (como elo inicial de uma cadeia causal-histórica) ou no sentido de que a
sua suposição é base inferencial para a conclusão de que ele ao menos
potencialmente poderia causá-la (que ele existiu, existe ou existirá) é que
podemos saber que o nome próprio tem referência.
5. Regra meta-identificadora: primeira versão
Embora a regra disjuntiva seja importante por evidenciar o papel das descrições
que realmente importam, ela não é de modo algum suficiente, pois ela é de um
lado estreita demais e de outro larga demais. Ela é estreita demais ao exigir uma
satisfação completa de ao menos um disjunto de regras-descrições fundamentais
de primeiro nível. Afinal, podemos imaginar não apenas casos de aplicação do
nome próprio nos quais ambas as regras fundamentais são apenas parcialmente
satisfeitas, mas também casos de aplicação nos quais apenas uma dessas regras é
parcialmente satisfeita, enquanto a outra não é satisfeita de modo algum.
Consideremos primeiro o caso em que a regra localizadora é
incompletamente satisfeita e que a regra caracterizadora não é nem um pouco
satisfeita. Imagine um mundo possível próximo ao nosso, no qual não existiu a
filosofia aristotélica, mas no qual existiu um Aristóteles, que morreu ainda
jovem, ao chegar a Atenas, vitimado pela febre cerebral. Mesmo assim, se
soubermos que ele nasceu em Estagira em 384 a.C., filho do médico Nicômano
da corte de Felipe, e que ele foi enviado pelo avô Achaeon para Atenas aos 17
anos para estudar com Platão, não teremos dúvida de que se trata de nosso
309
Aristóteles “em potência”, mesmo que RD seja por ele apenas parcialmente
satisfeita.
Consideremos agora um caso no qual só a regra caracterizadora é satisfeita e
mesmo assim de modo incompleto. Imagine um mundo possível próximo ao
nosso no qual não existiu nenhum Aristóteles nem obra aristotélica no mundo
antigo, embora tenha existido Platão e seus antecedentes. Imagine que nesse
mundo, no século XII, em Córdoba, um filósofo árabe que leu tuda a filosofia
grega disponível e tenha escrito em grego antigo partes da obra de Aristóteles,
incluindo o Organon e conteúdos da Metafísica e da Ética a Nicômano sob o
pseudônimo de ‘Aristóteles’ (ou se quisermos que tenha escrito em árabe o
conteúdo ideativo relevante de todo o opus aristotélico). Em tal situação, na qual
não há nenhum concorrente para o nome, também tenderíamos (com alguma
relutância) a reconhecer essa pessoa como o nosso Aristóteles.
Claro que há limitações para isso. Se, em um mundo possível similar ao
nosso, no qual a filosofia aristotélica nunca existiu, em 384 a.C., em Estagira, o
médico da corte não fosse Nicômano, filho de Achaeon, mas apesar disso uma
pessoa que teve um filho que foi chamado de Aristóteles, o qual morreu pouco
após o seu nascimento, teremos dificuldade em crer que ele tenha sido o nosso
Aristóteles. E se o filósofo árabe de pseudônimo Aristóteles tivesse escrito
apenas a primeira seção do livro Alfa da Metafísica, nós não o reconheceríamos
como o nosso Aristóteles. Tais casos tenderiam a ser por nós reconhecidos como
estranhas e inexplicáveis coincidências. Isso nos faz concluir que a regra meta-
identificadora disjuntiva deve ser completada por uma condição exigindo que as
regras-descrições fundamentais sejam suficientemente satisfeitas de acordo com
as circunstâncias dadas, não precisando ser completamente satisfeitas.
Consideremos agora o caso em que as descrições caracterizadoras são
conjuntivamente satisfeitas, mas apenas de modo parcial. Nesse caso parece que
o limite mínimo de satisfação exigido para cada descrição se tornaria menor do 310
que o limite mínimo para a satisfação da descrição no caso em que somente uma
das regras fundamentais fosse incompletamente, mas suficientemente satisfeita.
Assim, se em um mundo possível tivesse nascido um único Aristóteles em 384
a.C. em Atenas, o qual tivesse estudado com Platão e escrito apenas as
Categorias, parece que isso seria suficiente para admitirmos que se trata do
nosso Aristóteles. Nesse caso, parece que da satisfação insuficiente de cada
disjunto resulta uma satisfação suficiente da regra disjuntiva. Ou seja: a
exigência de uma satisfação suficiente da disjunção inclusiva deve incluir a
soma da satisfação dos disjuntos.
Uma dúvida importante que resta é sobre a medida exata do que devemos
entender como sendo suficiente. Não creio que exista uma resposta para isso.
Afinal, a linguagem empírica é inevitavelmente vaga e nossos critérios de
aplicação das palavras não delimitam as fronteiras de sua aplicação de forma
absoluta. Há sempre casos incertos, acerca dos quais não sabemos se devemos
ou não aplicar nossos critérios. Importante é que apesar dessa vaguidade de
nossa linguagem natural, somos na maioria dos casos perfeitamente capazes de
nos comunicar sobre os objetos de referência. Por isso a vaguidade da
linguagem natural, que certamente reflete a vaguidade das próprias divisões da
realidade que pretendemos categorizar, não é uma imperfeição dessa linguagem,
mas um fato a ser admitido, sendo frequente ser uma linguagem vaga aquela de
que mais precisamos.
Outro ponto é que o Aristóteles recém-mencionado deixaria de ser o nosso
Aristóteles se existisse um ou mais concorrentes que também satisfizessem a
regra disjuntiva. Assim, imagine um mundo possível no qual Nicômano tivesse
dois gêmeos idênticos batizados ‘Aristóteles’ e que eles fossem estudar com
Platão e tivessem escrito o opus aristotélico a quatro mãos. Embora seja possível
dizer que esse mundo tem dois Aristóteles, a rigor esse mundo não tem nenhum
Aristóteles, pois um nome próprio é um termo singular que por definição se 311
aplica a apenas um único objeto. Essa consideração nos leva a mais uma
condição a ser adicionada, que é a de univocidade. Precisamos admitir como
condição de aplicação da própria regra meta-referencial identificadora uma
condição de univocidade, qual seja a de que um único objeto satisfaça a regra
disjuntiva (as dificuldades disso serão consideradas mais adiante).
O principal caso no qual a condição de univocidade deixa de ser satisfeita é
aquele em que a regra de localização é satisfeita por um objeto enquanto a regra
de aplicação é satisfeita por outro. Este seria o caso em um mundo possível M1
no qual existiu (a) um Aristóteles grego, filho de Nicômano, que nasceu em
Estagira em 384 a.C., mas que contraiu febre cerebral ao chegar a Atenas e não
fez coisa alguma em filosofia até a sua morte em Chalcis em 322 a.C., e (b) um
filósofo de nome ‘Aristóteles’, que escreveu o opus aristotélico em Roma cerca
de duzentos anos mais tarde. Nessas circunstâncias, não temos mais como
decidir quem foi o verdadeiro Aristóteles, se o grego ou o romano, pois as
nossas duas regras identificadoras fundamentais entram em conflito uma com a
outra. A alternativa mais natural e imediata é abandonarmos a suposição de que
nosso Aristóteles existe em tal mundo, posto que a condição de univocidade do
objeto não é satisfeita.
Esse caso é similar ao do paradoxo do navio de Teseu relatado nos manuais
de filosofia. Digamos que esse navio tenha o nome de ‘Calibdus’. No curso dos
anos Teseu repôs pouco a pouco as partes do seu navio até que, no final, todas
elas foram substituídas. Alguém decidiu então recondicionar as partes antigas e
construir outro navio igual ao primeiro. Digamos que então alguém pergunte:
“Qual dos dois navios é Calibdus?” O paradoxal aqui é que não sabemos o que
responder. A primeira vista pode parecer que ambos são o navio de Teseu. Mas
isso seria contraditório, pois um termo singular não pode se referir a mais de um
objeto. A nossa proposta é a de que a questão de saber qual dos navios é
Calibdus é indecidível devido a um conflito criterial que se dá entre as duas 312
regras-descrições fundamentais para esse nome. O primeiro navio satisfaz uma
regra localizadora, que nos diz que o navio de Teseu é aquele que foi construído
em um lugar e tempo específicos, tendo então seguido uma certa carreira
espaço-temporal. A segunda regra, satisfeita pelo segundo navio, é uma regra
caracterizadora, que nos diz que o navio de Teseu é aquele que foi construído
com certo material. Não temos, por isso, como decidir.
Nesse ponto alguém poderá, com razão, objetar que a regra caracterizadora é
mais complexa do que isso, incluindo características funcionais e estruturais do
navio, as quais são preservadas em ambos os navios, o que torna mais
admissível que o primeiro navio fique sendo o Calibdus. Contudo, podemos
equilibrar essa diferença aumentando a rapidez da substituição das partes velhas
pelas novas, de modo a encurtar a carreira espaço-temporal do objeto até que a
substituição das peças se complete. Assim, se toda a seqüência de substituições
de partes tivesse lugar em apenas três meses, teríamos dúvidas. E se ela tivesse
lugar em uma semana? Nesse caso com certeza consideraríamos o segundo
navio como sendo o de Teseu e não mais o primeiro, dizendo que ele foi
primeiro desmontado e depois remontado em outro lugar.
Por fim, resta a estratégia de renomear os objetos. Assim, se nos for útil
podemos introduzir nomes próprios substitutivos, admitindo a existência de dois
Aristóteles no mundo possível M1: o Aristóteles-1, que é o da Grécia antiga e
que satisfaz somente a regra de localização, e o Aristóteles-2, que é apenas o
autor do opus aristotélico, e que satisfaz somente a regra de caracterização. Do
mesmo modo, Calibdus-1 satisfaz a regra de localização enquanto Calibdus-2
satisfaz a regra de aplicação, que entre outras coisas exige a preservação do
mesmo material do navio por tempo suficiente. Nesse caso substituímos o nome
próprio ambíguo por dois nomes próprios com significados diversos. Mas trata-
se digamos de uma nova partida. Trata-se de um novo movimento em que são
313
introduzidas novas convenções para novos termos referenciais, a serem usados
no lugar de um termo malogrado.
Adicionando as condições de suficiência e univocidade à regra disjuntiva,
chegamos a uma mais apropriada formulação da regra meta-identificadora
reguladora do comportamento semântico das regras-descrições fundamentais
concernentes a cada nome próprio. Eis como ela pode ser formulada:
RMI1:Um nome próprio N refere-se a um objeto x pertencente a uma classe G de objetosseepode ser assumido que x está na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de que(i-a) x satisfaz uma regra de localização L para N e/ou(i-b) x satisfaz uma regra de aplicação C para N e(ii) a satisfação de L e/ou C por x é em seu todo suficiente e(iii) unívoca.
Chamo a regra resultante da aplicação da regra meta-identificadora às regras-
descrições fundamentais de um dado nome próprio de regra meta-identificadora
específica para este nome próprio, ou simplesmente – para evitar uma
terminologia especiosa – de sua regra de identificação ou regra definicional.
Assim, a regra de identificação para o nome próprio ‘Aristóteles’ pode ser
abreviadamente expressa como:
Regra de identificação para o nome próprio ‘Aristóteles’:Usamos o nome próprio ‘Aristóteles’ para nos referirmos apropriadamente a um objeto x pertencente à classe dos seres humanosseepode ser assumido que x está na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de que
314
(i-a) x satisfaz a sua regra de localização de ter nascido em Estagira em 384 a.C., vivido grande parte de sua vida em Atenas e falecido em Chalcis em 322 a.C. e/ou(i-b) x satisfaz a sua regra de aplicação de ter sido o autor das grandes idéias do opus aristotélico e(ii) a satisfação da regra de localização e/ou da regra de aplicação por x é em seu todo suficiente e (iii) unívoca.
6. Regra meta-identificadora: segunda versão
Embora RMI1 já seja uma regra bastante satisfatória, explicando a grande
maioria dos casos de aplicação de nomes próprios, ela resulta de uma análise
incompleta. Afinal, não é difícil demonstrar que a condição de unicidade é
derivada e que RMI1 não dá conta de contra-exemplos que dependem de um
estágio anterior a essa derivação. Para tal quero examinar dois deles.
Um primeiro contra-exemplo vale-se da fantasia da terra-gêmea. Uma terra-
gêmea é aquela na qual tudo existe e acontece de forma idêntica (ou quase
idêntica) ao que existe e acontece em nossa terra. Assim, o que se aplica a um
objeto na terra deve se aplicar ao seu Doppelgänger na distante terra gêmea.
Não obstante, mesmo que soubéssemos da existência de uma terra-gêmea, nós
continuaríamos tendo uma forte intuição de que com o nome ‘Aristóteles’ nós
estamos a nos referir ao nosso Aristóteles e não ao Aristóteles da terra-gêmea.
Contudo, se considerarmos a primeira formulação da regra de identificação para
Aristóteles, ela não parece mais aplicável, pois tanto o Aristóteles da nossa terra
quanto o da terra gêmea parecem satisfazer suficientemente a regra disjuntiva.
De um lado, ambos parecem satisfazer a regra de localização espaço-temporal,
pois ambos nasceram em 384 a.C. em Estagira... E mesmo que esse não seja o
caso, é indubitavel que ambos os Aristóteles satisfazem a regra de
caracterização: ambos escreveram o opus aristotélico até a sua última vírgula.
315
Ora, como basta a satisfação de um disjunto, os dois Aristóteles satisfazem
suficientemente a regra disjuntiva. Mas se é assim, a condição de univocidade
deixa de ser satisfeita, disso resultando a conclusão contra-intuitiva de que
Aristóteles não existe. Mas certamente ele existe, e ele é o nosso Aristóteles e
não o da terra-gêmea!
Exemplos com mundos possíveis também podem ser facilmente imaginados.
Digamos que em um mundo possível M1 em Estagira em 384 a.C. Nicômano, o
médico da corte, tenha sido pai de dois gêmeos, ambos tendo sido batizados com
o nome ‘Aristóteles’. O primeiro tornou-se médico como o pai, tendo se alistado
no exército de Alexandre e morrido de sede na travessia do deserto ao retornar
do oriente. O segundo acabou indo para Atenas, onde escreveu todo o opus
aristotélico. Como ambos satisfazem suficientemente a regra de localização,
ambos satisfazem suficientemente a regra disjuntiva, tendo como efeito que a
condição de unicidade deixa de ser satisfeita, deixando RMI1 insatisfeita e
levando à conclusão de que Aristóteles não existe. Mas não há dúvida que para
nós ele existe e que ele é o segundo Aristóteles e não o primeiro. Mesmo que,
em um mundo possível M2, que diferisse de M1 apenas pelo fato do segundo
Aristóteles não ter chegado a nascer, nós seríamos induzidos a considerar o
primeiro deles o nosso Aristóteles “em potência”, ainda que mal-orientado.1
A pergunta a ser feita aqui é: o que nos leva a no primeiro contra-exemplo
escolhermos o Aristóteles da terra e no segundo o Aristóteles que escreveu o
opus aristotélico? A resposta é fácil: a satisfação das regras-descrições
identificadoras de certo nome por mais de um objeto elimina da competição pelo
1 Note-se que a teoria kripkiana do batismo também encontraria dificuldades em explicar a nossa preferência pelo segundo Aristóteles em M1. Ela não teria como distinguir o verdadeiro Aristóteles, pois não teria à disposição o recurso de se valer de descrições para privilegiá-lo. Além disso, ela não teria como explicar porque o verdadeiro Aristóteles passa a ser o primeiro em M2. Contudo, como as descrições são causalmente determinadas, é sempre possível desenvolver uma solução causal-histórica para tais casos como, também, para qualquer outro caso. Tal solução seria, porém, sempre em última instância dependente da identificação consciente das descrições relevantes, implicadas na intenção de preservar a mesma referência.
316
direito ao nome o objeto que as satisfaz menos. A solução, portanto, é
estabelecer o que eu gostaria de chamar de condição de predominância: a
condição de que no caso de mais de um objeto satisfazer a regra disjuntiva de
um nome próprio, o portador do nome deve ser o objeto que mais
completamente a satisfaz.
Quero agora sugerir a forma mais aprimorada de regra meta-identificadora
que incorpora em si essa última condição. Ei-la:
RMI2: Um nome próprio N refere-se propriamente a um objeto x pertencente a uma classe G see pode ser assumido que x está na origem de nossa consciência de que (i-a) x satisfaz uma regra de localização L para N e/ou (i-b) x satisfaz uma regra de aplicação C para N, (ii) x satisfaz L e/ou C em medida no todo suficiente e
(iii) x satisfaz L e/ou C mais do que qualquer outro objeto pertencente à classe G.
Substituímos aqui a condição de unicidade pela condição de predominância,
que serve para garanti-la. Note-se que a condição (ii), de suficiência, é aplicável
tanto a um dos disjuntos, caso ele seja isoladamente satisfeito, quanto ao todo da
conjunção de (i-a) e (i-b), mesmo que ambos sejam apenas parcialmente
satisfeitos. Isso nos permite resgatar a intuição de que quando ambos os
disjuntos estão sendo parcialmente satisfeitos, isso pesa mais do que a satisfação
parcial de apenas um disjunto, possibilitando no todo uma medida suficiente,
mesmo que as parcelas satisfeitas sejam demasiado limitadas para isoladamente
justificar a aplicação do nome próprio. Quanto à condição (iii), de
predominância, ela é aplicada de modo a selecionar o objeto que satisfaz
suficientemente a disjunção inclusiva dos disjuntos mais do que qualquer outro
317
objeto da mesma classe que também a satisfaça, obtendo assim uma
identificação unívoca desse objeto.
Do mesmo modo que no caso anterior, quando a regra de regras RMI2 é
aplicada às regras-descrições fundamentais de um nome próprio qualquer, ela
produz uma regra de identificação ou regra definicional para o nome próprio.
Eis como essa regra se afigura para o nome ‘Aristóteles’:
Regra de identificação para o nome próprio ‘Aristóteles’:
Usamos o nome próprio ‘Aristóteles’ para nos referirmos propriamente a um objeto x pertencente à classe dos seres humanosseepode ser assumido que x está na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de que(i-a) x satisfaz a sua regra de localização de ter nascido em Estagira em 384 a.C., vivido grande parte de sua vida em Atenas e falecido em Chalcis em 322 a.C. e/ou(i-b) x satisfaz a sua regra de aplicação de ter sido a pessoa que produziu o conteúdo relevante do opus aristotélico e(ii) x satisfaz a disjunção (i-a) ou (i-b) em medida no todo suficiente e(iii) x satisfaz a disjunção (i-a) ou (i-b) mais do que qualquer outro ser humano.
A regra de identificação resultante da aplicação de RMI2 às duas descrições
fundamentais de Aristóteles nos dá uma resposta intuitiva ao problema do
Aristóteles da terra-gêmea. Pois segundo ela, embora tanto o Aristóteles da
nossa terra quanto o da terra-gêmea satisfaçam a regra de aplicação, o
Aristóteles da nossa terra é o único que verdadeiramente satisfaz a regra de
localização espaço-temporal; afinal, só ele existe em nossa região espaço-
temporal, sendo a essa região que a regra foi feita para se aplicar – a essa região
específica do espaço único que inclui ambas as terras – e não à região espacial
análoga situada na distante terra-gêmea. Assim, o Aristóteles da nossa terra
318
satisfaz mais completamente a regra disjuntiva do que o Aristóteles da terra
gêmea. Ao fazer isso ele preenche a condição de predominância da regra
identificadora para Aristóteles resultante da aplicação de RMI2 às regras-
descrições fundamentais associadas a esse nome, o que se encontra em plena
conformidade com a nossa intuição de que é ao Aristóteles da nossa terra que
estamos a nos referir. A aplicação de RMI2 também resolve o problema dos dois
Aristóteles gêmeos que em M1 satisfazem a regra disjuntiva. O primeiro (que foi
para a Índia com Alexandre) satisfaz apenas o suficiente da regra localizadora,
nada satisfazendo da regra caracterizadora. Mas o segundo (que foi para Atenas
e escreveu o opus aristotélico) satisfaz não só suficientemente a regra
localizadora, mas também, mais do que suficientemente, a regra caracterizadora.
O último Aristóteles, pela predominância na satisfação da regra disjuntiva, passa
a ser escolhido por nós como sendo o verdadeiro, o que também se conforma
com nossas intuições.
Voltando a RMI2, resta uma questão a ser respondida. Imagine que outros
nomes para o mesmo objeto, com regras de identificação próprias, viessem a
competir com a regra de identificação do nome que estamos considerando.
Assim, se feixes de descrições diversos associados aos nomes próprios diversos
N1... Nn satisfazem RMI2 para um mesmo objeto, ou seja, se regras de
identificação diferentes são satisfeitas, parece que deveria haver uma condição
para se saber qual dos nomes próprios verdadeiramente se refere a esse objeto.
Não seria necessária uma condição de predominância de regra exigindo que um
objeto, para poder ser referido, deva satisfazer a regra disjuntiva de
identificação para o nome em questão mais do que qualquer outra regra de
identificação de outro nome que também se refira a ele?
Felizmente, não parece que no caso dos nomes próprios essa condição
adicional precise ser introduzida, pois a identidade de objeto faz com que essas
regras se somem ao invés de se excluir, ao menos no que concerne às descrições 319
caracterizadoras. Para evidenciá-lo, consideremos um exemplo. Suponha que
venha a ser descoberto, como já se pretendeu, que Lord Bacon tenha sido o
verdadeiro autor das obras de Shakespeare, e que não existiu nenhum
Shakespeare com a carreira espaço-temporal que a ele atribuímos. Nesse caso
parece que as regras de identificação de Bacon e Shakespeare deveriam
competir. Contudo, isso não precisa acontecer. Não nos encontramos realmente
forçados a escolher entre Bacon ser Bacon e Bacon ser Shakespeare. Nesse caso
nós estenderemos os atributos de uma mesma pessoa de modo a abranger os
nomes de Bacon e Shakespeare, dizendo que Bacon, além de ser o cientista,
filósofo e diplomata que foi, também escreveu anonimamente as obras de
Shakespeare. O que há de importante a ser notado é que aquilo que garante a
aplicabilidade da regra de identificação de um nome próprio é a unicidade de
seu objeto, já garantida por RMI2. Mais tarde veremos que os termos gerais, não
se aplicando a um único e mesmo objeto, mas geralmente a muitos, se
comportam nesse aspecto de forma muito diferente, exigindo comparação entre
as regras descrições caracterizadoras.
7. Interpretação descritivista da divisão de trabalho da linguagem
Contra RMI e as regras de identificação ainda poderia ser oposta a seguinte
objeção: não precisamos conhecer as descrições fundamentais associadas a um
nome próprio para podermos usá-lo corretamente e com ele denotar o seu
portador. Talvez a única coisa que a maioria das pessoas hoje sabe sobre
Aristóteles é que ele satisfaz a descrição indefinida ‘um grande filósofo da
Grécia antiga’. Uma pessoa que só conheça isso só saberá generalidades
implicadas pelas descrições (a) e (b) respectivamente. Mesmo assim, nós
costumamos dizer que tal pessoa é capaz de se referir a Aristóteles. Mais ainda,
uma pessoa pode ser admitida como se referindo a Aristóteles, mesmo
associando a este nome uma única descrição auxiliar como ‘o maior discípulo de 320
Platão’ após ter visto uma foto do afresco de Rafael, ou associar a esse nome
apenas a descrição ‘o tutor de Alexandre’ após ter visto um filme sobre as
conquistas de Alexandre, ou até mesmo uma descrição auxiliar adventícia, como
‘o filósofo mencionado pelo professor na aula de ontem’. Além disso, para
Kripke uma pessoa poderia se referir a Aristóteles mesmo associando a ele uma
descrição errônea, digamos, ‘um filósofo medieval’ ou ‘um general grego’.
Como isso é possível?
A resposta que podemos dar a essa questão vale-se do que poderíamos
chamar de um entendimento descritivista da hipótese da divisão de trabalho da
linguagem. Essa divisão foi proposta por Hilary Putnam em termos não-
descritivistas. Para Putnam, uma mesma palavra é usada por diferentes pessoas
de diferentes maneiras, podendo cada uma delas ter um maior ou menor
conhecimento do que se pode querer dizer com ela. Segundo Putnam, há
palavras que não funcionam tanto como ferramentas, como propôs Wittgenstein,
mas como barcos a vapor; diferentes pessoas usam o barco com funções e
finalidades diversas: assim, umas o usam como passageiros, outras como
membros da tripulação, que por sua vez podem trabalhar no comando, na casa
de máquinas, no serviço de bordo. Putnam, compromissado com o seu
externalismo semântico, considera essa divisão de trabalho da linguagem sem
recorrer a aspectos cognitivo-descritivos. Mas outros filósofos consideraram que
seria até mais natural entender a divisão de trabalho da linguagem como uma
divisão fregeana entre diversos estados cognitivos descritivamente exprimíveis
que cada falante associa à Palavra.1 Afinal, alusões à divisão de trabalho da
linguagem podem ser encontradas na obra de filósofos internalistas bem
anteriores a Putnam, começando com o próprio Locke, que foi o defensor
1 Michael Dummett: Frege: Philosophy of Language, pp. 138-139; D.H. Mellor: “Natural Kinds”, p. 115.
321
clássico de uma semântica descritivista em que os significados são “idéias”
psicológicas.1
Baseando-me nisso quero interpretar aqui essa divisão em termos das
variadas cognições de conteúdos semânticos descritivamente exprimíveis que
diversos falantes associam à palavra, em nosso caso específico, ao nome
próprio. Com isso podemos sugerir que ao atribuirmos referência, estamos
falando de sucesso referencial, que por sua vez tem ao menos dois sentidos:
(a) o de uma referência completa.(b) o de uma referência incompleta.
Consideremos primeiro o caso da referência completa. Ela é aquela capaz de
por si mesma nos oferecer uma garantida identificação do objeto como algo
existente no mundo. Nesse sentido o critério do sucesso referencial é a
aplicação, por parte do falante, da própria regra de identificação no nome
próprio, o seja, a aplicação de suas regras-descrições localizadora e/ou
caracterizadora das quais ele tem suficiente domínio. Há muitos nomes próprios,
por exemplo, de nossos familiares, cuja regra de identificação é-nos bem
conhecida. Mas há muitos nomes cujo sentido, cujo conteúdo informativo
relevante só é conhecido por um usuário privilegiado do nome, como, digamos,
o especialista, o historiador, a testemunha do batismo, alguém seja capaz de se
referir plenamente ao seu portador, sendo geralmente o responsável por sua
instituição e manutenção: o nomeador privilegiado.
É com efeito freqüente atribuirmos referência tendo em mente apenas uma
referência incompleta ou esquemática ou errônea feita por alguém. Isso é
freqüente com o nome ‘Aristóteles’. Afinal, é usual dizermos de pessoas que
1 Ver John Locke: An Essay Concerning Human Understanding, 2.31.4-5, 2.32.12, 2.29.7, 3.10.22, 3.11.24.
322
conhecem apenas generalidades ou descrições auxiliares associadas a um nome
próprio como ‘Aristóteles’, que elas se referem ao seu portador. Esse é o caso
das pessoas que só sabem de Aristóteles que ele é uma figura de um afresco de
Rafael ou que ele apareceu no filme sobre Alexandre como o seu tutor. Embora
essas pessoas sejam capazes de se referir ao filósofo no sentido de que,
conhecendo a gramática dos nomes próprios e possuindo certo pano de fundo
informacional, que lhes permite ter consciência daquilo que podem – e
principalemnte daquilo que não podem – fazer com a palavra, elas são capazes
de inserir o nome ‘Aristóteles’ em situações conversacionais pouco exigentes,
de tal modo que um intérprete que realmente conheça a regra de identificação
desse nome será capaz de reconhecer esse uso como sendo correto. Isso
acontece, aliás, sob o pressuposto de que a comunidade lingüística possui (ou
em algum momento possuiu) nomeadores privilegiados, a saber, pessoas que
estão em situação que lhes permite completar a referência do nome pelo domínio
de sua regra de identificação.
Com isso podemos propor um segundo sentido de sucesso referencial, cujo
critério é o de que um nomeador privilegiado seja capaz de reconhecer o uso
que o falante em questão faz do nome próprio como sendo correto. Assim, uma
pessoa é capaz de usar o nome referencialmente, mesmo com conhecimento
deficiente das descrições que lhe são constitutivas, mesmo via descrições
complementares e até parcialmente errôneas, tão somente pelo fato de que ao
inserir o nome na linguagem ela tem consciência e/ou nós temos consciência de
que nomeadores privilegiados seriam capazes de reconhecer que a inserção do
nome próprio no discurso é suficientemente correta para não obstar o caminho
de uma referência mais completa. Nesse sentido de sucesso referencial, não é o
falante sozinho que usa o nome para se referir ao objeto. Ele o faz apoiado em
uma comunidade lingüística, que conta como sendo capaz de completar a
referência para ele. Ou seja: ele se refere ao objeto por intermédio da 323
comunidade lingüística, que é constituída de outros falantes diversamente
qualificados, que serão capazes de completar cognitivamente os sentidos das
expressões por ele usadas. Embora esse processo seja social, ele não deixa de ser
interno. O significado do nome próprio, mesmo estando apenas de modo muito
parcial na cabeça do falante, mesmo encontrando-se diversamente distribuído
nas cabeças de outros falantes, dos potenciais intérpretes de sua referência, é
interno em todos os seus momentos. Retornando à metáfora de Putnam: uma
pessoa é bem sucedida em referir segundo o critério (b) de êxito referencial da
mesma maneira que um passageiro diz que tomou um barco para ir até um certo
lugar, mesmo sabendo que foi a tripulação que realmente conduziu o barco até
esse lugar. Uma pessoa é bem sucedida em referir segundo o critério (a) quando,
como piloto da embarcação, realmente a usa com a função de conduzir o barco
até onde é estabelecido que ele vá. Finalmente, se quisermos ser rigorosos,
devemos admitier que as pessoas que usam um nome próprio sem conhecerem
as suas regras-descrições fundamentais não sabem realmente o que estão
dizendo com o nome: elas só são capazes de inserir o nome na linguagem porque
confiam na existência de nomeadores privilegiados que sejam realmente capazes
de identificar o seu portador.
Podemos também imaginar uma situação na qual, por alguma razão, todos os
nomeadores privilegiados desaparecessem. Imagine que uma catástrofe como a
guerra atômica ocorresse e que apenas umas poucas pessoas iletradas
sobrevivessem, e que essas pessoas encontrassem alguns papéis mencionando
Aristóteles, aprendendo então que ele foi um filósofo antigo. Nesse caso, as
pessoas na realidade deixariam de ser capazes de se referir a Aristóteles, mesmo
no sentido (b) da palavra, simplesmente pela falta do suporte de uma
comunidade lingüística que incluísse falantes capazes de garantir a referência e
dar-lhe um sentido que fosse. Sem usuários privilegiados capazes de conhecer a
324
regra de identificação, mesmo que por partes, a possibilidade do uso referencial
de nomes entraria em colapso.
8. O significado do nome próprio
Vejamos agora a questão do significado do nome próprio. Para chegarmos a
uma resposta, basta nos recordarmos do argumento apresentado no capítulo
introdutório, mostrando que o significado – entendido como o sentido fregeano
(Sinn), o conteúdo cognitivo ou informativo (Erkenntniswert) do termo singular
– se deixa plausivelmente esclarecer em termos de regras ou de combinações de
regras que possibilitam a efetiva aplicação das expressões.1 Onde há regra há
significado de algum tipo, mesmo que não do tipo que possa interessar (quando
falamos do significado de uma expressão lingüística, geralmente estamos
considerando somente as regras que contam na explicação daquilo que
entendemos com a expressão). A conclusão inevitável disso é que uma teoria
descritivista dos nomes próprios, sendo uma teoria das regras semânticas
expressas pelas descrições, também vale como uma teoria do significado dos
nomes próprios.
Esse ponto de vista contrasta fortemente com a opinião daqueles que
defendem que nomes próprios são destituídos de sentido.2 As razões por eles
apresentadas são conhecidas: se nos perguntam pelo significado de um nome
próprio, ficamos sem saber como responder. Além disso, como já notamos, os
nomes próprios geralmente não se encontram dicionarizados; e como a
1 O sentido epistêmico (Sinn) ou informativo (Erkenntniswert) é, como vimos, mais do que o sentido literal; ele é uma espécie de intenção (com ç) que com base em convenções somos capazes de associar à expressão. Essa posição, além do mais, opõe-se ao externismo semântico de Putnam e outros, cuja implausibilidade será evidenciada no capítulo XI.2 Paul Ziff: Semantic Analysis, pp. 93-94. Desde então essa idéia tem sido freqüentemente repetida.
325
finalidade dos dicionários é esclarecer os significados das palavras, tem-se mais
uma razão para se rejeitar que os nomes próprios tenham significação.1
Contudo, essa tese não resiste à reflexão. Certamente, o nome próprio tem
significado no sentido de ter uma função lingüística de identificar o seu
portador. Mas ele também tem significado no sentido de ter um conteúdo
semântico. Que nomes próprios devem ter significado nesse último sentido fica
logo claro quando consideramos sentenças como “Dr. Jeckill é Mr. Hide”, que
seriam tautológicas e não informativas se os nomes próprios ‘Jeckill’ e ‘Hide’
não quisessem dizer coisas bastante diferentes. Além disso, se pensarmos no
significado tal como fez Frege, em termos de sentido epistêmico ou informativo,
nomeadamente, em termos de conteúdo informacional, parece claro que muitos
nomes próprios são repletos de significado. Afinal, parece que muitos deles são
repositórios de uma massa difusa de conteúdo informacional variadamente
acessado. Considere, por exemplo, a imensa carga de conteúdo informacional
que associamos ao nome do conquistador Napoleão ou do filósofo Bertrand
Russell. Sob tal perspectiva, a questão não é tanto que o nome próprio contenha
significado de menos, mas demais. E tanto é assim que o lugar reservado para a
exposição do significado de certos nomes próprios não é o dicionário, mas a
enciclopédia. E em alguns casos, mais do que a enciclopédia, o lugar onde
encontramos o significado mais detalhado e completo do nome próprio é a
biografia. Biografias como as de Napoleão, autobiografias como a de Russell,
são os lugares nos quais podemos encontrar uma pormenorizada exposição do
conteúdo informacional associado a esses nomes próprios. E as regras de
localização e caracterização não são em tal caso apresentadas em uma forma
abreviada, como temos feito, mas em forma muito mais detalhada e completa.
1 Ao bem da verdade deve ser notado que existem dicionários específicos para nomes próprios, como os que explicam os sentidos etimológicos dos nomes próprios de pessoas e fornecem informações genéricas sobre os seus portadores mais conhecidos.
326
Mas por que então alguns sustentaram que nomes próprios são vazios de
significado? Uma resposta emerge do fato de que quando usamos um nome
próprio tudo o que costumamos saber dele são aspectos geralmente vagos e
variáveis de seu significado, partes restritas de seu conteúdo informacional, cujo
domínio em geral varia de falante para falante. O que (disposicionalmente)
intencionamos ao usar um nome próprio é geralmente alguma parcela do seu
significado, não todo ele; e uma parcela que varia de pessoa para pessoa, de
ocasião para ocasião, dado que o conteúdo completo de muitos nomes próprios é
conhecido por poucos e em alguns casos por ninguém. Devido a isso, quando
contrastamos esse estado de coisas com o significado permanente, distinto e
universalmente compartilhado dos predicados mais simples (como, digamos ‘...é
azul’), temos a impressão de que nomes próprios podem não ser capazes de
significar nada de específico e por isso mesmo não são capazes de significar
coisa alguma.
Identificando o sentido com regras consideremos então a questão do sentido
dos nomes próprios tendo em vista as expressões descritivas de regras já
consideradas. Quais seriam as de maior valor semântico? Uma primeira regra a
ser excluída é a própria regra meta-identificadora: o núcleo semântico distintivo
de um nome próprio não pode ser por ela constituído, pois ela é uma forma
compartilhada pelas regras de identificação de quaisquer nomes próprios,
enquanto o que mais importa no significado de um termo é aquilo que o
distingue de outros termos do mesmo gênero. O significado também não deve
ser relevantemente constituído pelas regras auxiliares expressas pelas descrições
do grupo C, dado que elas são muito mais contingentes em relação à aplicação
do nome. Restam, pois, as regras fundamentais de localização e/ou
caracterização, expressas respectivamente pelas descrições dos grupos A e B.
São elas que constituem relevantemente o significado de um nome próprio. Com
efeito, se nos perguntarmos, por exemplo, quais as descrições que expressam o 327
âmago do que se pode querer dizer com o nome próprio ‘Aristóteles’, a resposta
mais natural parece vir através das descrições fundamentais do homem que
nasceu em Estagira em 384 a.C., que desenvolveu as idéias que influenciaram
profundamente o curso da filosofia ocidental, expostas em obras como a
Metafísica, a Ética a Nicômano e o Organon... E quando tudo o que uma pessoa
sabe de Aristóteles é que ele foi ‘um grande filósofo grego’, ela está dizendo
algo que é ao menos implicado pelas descrições fundamentais. Trata-se do
conteúdo informativo indispensável, do sentido mais próprio do nome próprio.
Afora esse núcleo semântico primário, há um halo de significação secundário
em geral expresso pelas regras-descrições auxiliares. Assim, a descrição auxiliar
metafórica ‘o mestre dos que sabem’, feita para conotar Aristóteles, também
contribui para a massa de conteúdo informativo que constitui o significado total
desse nome próprio, da mesma forma que descrições acidentais mais
conhecidas, como ‘o maior discípulo de Platão’, ‘o tutor de Alexandre’, ‘o
fundador do Liceu’... posto que quem as conhece já é capaz de dar algum
sentido epistêmico ao nome. Nem todas as regras auxiliares, contudo,
contribuem para enriquecer o conteúdo informativo do nome próprio. As regras-
descrições acidentais ignoradas, como ‘o neto de Achaeon’, certamente não
contribuem de modo relevante. E as regras-descrições adventícias, como ‘o
filósofo mencionado pelo professor na aula’, por sua natureza circunstancial em
nada contribuem para o conteúdo informativo do nome próprio, não sendo por
encontradas por isso nem em enciclopédias nem em biografias. Apesar disso
pode-se dizer que essas últimas regras ainda expressam um sentido ocasional,
que está sendo intencionado pelo usuário do nome quando este o emprega.
Para evitar confusão devemos também distinguir entre o significado completo
e o significado intencionado do nome próprio. Comecemos pelo significado
intencionado. Ele é aquele sentido variável que cada qual tem em mente ao
aplicar o nome próprio. Podemos dizer que ele consiste naquilo que é, se não 328
atualmente, ao menos disposicionalmente intencionado pelo falante quando ele
pensa ou profere o nome (ele é aquilo que Russell chamou de “descrição em
nossas mentes”1). Digo que este significado é ao menos disposicionalmente
intencionado porque a regra-descrição intencionada – que tanto pode ser
fundamental como auxiliar (e que pode ser uma conjunção de regras-descrições)
– não precisa ser reflexivamente considerada no momento da aplicação do
nome, embora ela determine o uso do nome pelo falante e possa em princípio ser
tornada consciente. Em geral conhecemos pouco dos significados dos nomes
próprios que usamos, o significado intencionado só poucas vezes coincidindo
com o significado completo.
Quanto ao significado completo, ele é constituído primariamente pelo que
podemos chamar de significado próprio: o conjunto formado pelas regras-
descrições localizadora e caracterizadora (o núcleo semântico primário); já
secundariamente ele é formado também pelo que poderíamos chamar de
significado auxiliar: as regras-descrições auxiliares (o halo semântico).
O esquema seguinte sumariza as distinções feitas aqui:
Significado próprio Significado completo (núcleo semântico) (eventualmente conhe- Significado cido pelos usuários Significado auxiliar (sentido, valor privilegiados do nome) (halo semântico) cognitivo, con- teúdo informa- Significado intencionado do nome próprio cional) do nome (é convencionalmente fundado, identifican- próprio do-se com o sentido fregeano que o usuário dá ao nome)
Finalmente, é possível nesse contexto esclarecer o papel semântico das regras
auxiliares expressas pelas descrições do grupo C. Muitas vezes começamos a
1 B. Russell: The Problems of Philosophy, p. 30.329
conhecer um nome próprio através de uma regra-descrição auxiliar de conexão
com o objeto. Claro que uma pessoa que só conhece uma regra-descrição
auxiliar ainda não possui conhecimento relevante do significado do nome
próprio. Mas regras-descrições como ‘o marechal de ferro’, ‘o maior discípulo
de Platão’, ou mesmo ‘o filósofo citado pelo professor’, já podem bastar para
permitir ao falante inserir o nome próprio no discurso de maneira
comunicacionalmente eficaz, obtendo sucesso referencial em um sentido
enfraquecido da palavra. Como já vimos, para entendermos essa inserção
precisamos reconhecer que mesmo tendo conhecimento insuficiente do
significado da palavra, a pessoa é capaz de usar o nome próprio
significativamente-referencialmente no sentido de que pode contar com uma
comunidade lingüística possuidora de uma adequada divisão do trabalho
lingüístico, contendo intérpretes capazes de completar o significado e a
referência do nome próprio que ela foi capaz de inserir corretamente no
discurso.
9. Porque nomes próprios são designadores rígidos
As regras de identificação resultantes da aplicação das RMI mostram o caminho
para resolver um problema que tem assombrado o descritivismo, que é o da
razão pela qual os nomes próprios são designadores rígidos. Para responder a
questão precisamos atentar para algumas propriedades semânticas das regras de
identificação para nomes próprios. Uma delas é que essas regras podem ser
sempre traduzidas na forma de sentenças descritivas a serem lidas como
verdades analítico-conceituais. Podemos tornar isso claro reescrevendo a regra
de identificação do nome próprio ‘Aristóteles’ de forma descritivada, como se
segue:
330
O nome próprio ‘Aristóteles’ se refere à pessoa que estiver na origem de nossa consciência de que ela satisfaz de modo em seu todo suficientemente a condição de ter nascido em Estagira em 384 a.C., vivido em Atenas e morrido em Chalcis em 322 a.C. e/ou a condição de ter sido o autor das idéias fundamentais do opus aristotélico, satisfazendo essa disjunção mais do que qualquer outra pessoa.
Mesmo que essa sentença contenha uma disjunção e assim elementos
descritivos que individualmente podem se aplicar ou não ao portador do nome,
caso ele exista, como tal ela exprime uma verdade analítica necessária e a priori,
posto que estabelecida por convenção tácita. Afinal, não há mundo possível no
qual ela seja falsa. Não podemos conceber um mundo possível no qual
Aristóteles exista e a sentença acima não seja verdadeira, ou, o que dá no
mesmo, em que a sua regra de identificação não se aplique.
Isso não nos surpreende, aliás, se admitirmos a identificação fregeana da
existência com a satisfação ou ec-aplicabilidade do conceito. Pois se o conceito
associado a um nome próprio é a sua regra de identificação, então a existência, a
satisfação do conceito, nada mais é do que a efetiva e contínua aplicabilidade da
regra de identificação associada ao nome próprio. Assim, aplicar a regra de
identificação para Aristóteles em um mundo possível é o mesmo que admitir que
Aristóteles existe nesse mundo, não podendo haver nenhuma lacuna entre uma
coisa e outra. Por isso a ec-aplicabilidade da regra de identificação é, de um
certo modo, “constituidora” do objeto, que só ganha “ser” como aquilo a que a
regra é efetiva e continuamente aplicável. Ou seja: atribuir efetiva
aplicabilidade ao nome e existência ao seu objeto são a mesma coisa, disso
resultando que o nome se torna um designador rígido, ou seja, que a regra de
identificação a ele associada se aplica em todos os mundos possíveis nos quais o
seu objeto venha a existir. Essa é a verdadeira explicação para a rigidez do nome
próprio: ela decorre do caráter necessário da aplicabilidade da regra de
identificação do nome próprio (a regra resultante da aplicação de RMI às 331
descrições fundamentais de cada nome próprio) em qualquer mundo no qual o
objeto possa ser dado como existente.
Podemos nos perguntar agora: mas não haveriam casos incertos, mundos
possíveis nos quais não há como saber se podemos ou não aplicar a regra,
mundos nos quais só existe, digamos, “meio” Aristóteles? A resposta é
afirmativa. Mas isso não tem, obviamente, a menor importância. A vaguidade é
uma característica inexpugnável da linguagem e a semântica dos mundos
possíveis também precisa ser adequada a isso. Certamente, há mundos possíveis
nos quais não existe o suficiente de Aristóteles para sabermos se podemos ou
não aplicar a sua regra de identificação. Neles não se pode dizer de Aristóteles
nem que ele existe nem que ele não existe; e neles (assumindo que a vaguidade
advenha da própria realidade) Aristóteles realmente nem existe nem não existe.
Isso não significa que o nome ‘Aristóteles’ não seja um designador rígido, pois
fora dessa fronteira de indeterminação esse nome pode ser certamente aplicado.
Há, contudo, uma maneira natural de acomodar o conceito de designador
rígido a tais casos. Basta redefinir mais adequadamente o conceito como
designando a propriedade de uma expressão referencial de se aplicar a todos os
mundos possíveis nos quais o objeto referido definidamente existe. A rigidez é,
em outras palavras, a propriedade da regra semântica de uma expressão
referencial de “constituir” a existência do seu objeto em todos os mundos
possíveis nos quais ela se revela (via atos verificadores) efetivamente e
continuamente aplicável de uma forma definida, ou seja, inquestionavelmente
determinada.
Seria ainda possível objetar lembrando o paradoxo sorites. Se há fronteiras
de indeterminação, onde elas acabam? Se não há um limite definido para o seu
término, o que nos justifica dizer que já chegamos a uma zona de clareza na
aplicação do conceito, em que o portador do nome definidamente existe?
Contudo, o sorites pode ser gerado para virtualmente qualquer conceito vago de 332
nossa linguagem sem que esse termo deixe de ser na prática aplicado. Com
efeito, mesmo conscientes do sorites, não deixamos de aplicar a palavra ‘calvo’
diante de um homem realmente calvo, nem a palavra ‘monte’ diante de um
monte de verdade. Por conseguinte, assim como não precisamos solucionar o
sorites para aplicarmos a maioria de nossos predicados, não precisamos fazer
desaparecer os casos indecidíveis para admitirmos que o nome próprio
Aristóteles é um designador rígido.
10. Porque descrições definidas não costumam ser designadores rígidos
Já vimos que uma vantagem da teoria causal-histórica está no fato de que ela
fornece uma explicação intuitiva para o fato de as descrições definidas serem
designadores acidentais enquanto os nomes próprios são designadores rígidos:
os nomes próprios, por se conectarem diretamente com o objeto, identificam-no
em qualquer mundo possível onde ele exista; já as descrições, por fazerem isso
indiretamente, por intermédio do conteúdo semântico conotado, tornam-se
capazes de identificar objetos diferentes em diferentes mundos possíveis.
Essa explicação é insatisfatória, pois deixa em aberto o que possa ser essa
misteriosa “conexão direta com o objeto” que os nomes próprios possuem. Em
compensação, a teoria metadescritivista dos nomes próprios possibilita uma
explicação muito mais convincente da diferença de comportamento entre
descrições e nomes próprios.
Para chegarmos a essa explicação podemos começar perguntando: em que
casos as descrições definidas se tornam designadores rígidos? Um primeiro caso
é aquele no qual elas são artificiosamente usadas de modo rigidificado. Para tal
basta estipular, por exemplo, que a descrição ‘o último grande filósofo da
antiguidade’ se refere necessariamente a Aristóteles, o que excluirá, por
exemplo, que em outro mundo possível esse filósofo tenha sido Platão. Mas não
é isso o que quero considerar aqui. Podemos fazer o que quisermos com a 333
linguagem pela simples estipulação de novas convenções, sem que isso nos leve
a lugar algum. O que quero considerar é o caso de descrições atributivas
perfeitamente normais, que mesmo assim se deixam naturalmente interpretar
como designadores rígidos. Eis alguns exemplos:
(A)(i) a raiz quadrada de nove,(ii) o ponto mais oriental da América Latina,(iii) o terceiro regimento de cavalaria de Sintra.(iv) o último período glacial,(v) o assassinato do arquiduque austríaco Ferdinando em Sarajevo
em 1914.
A descrição (i) seria admitida pelo próprio Kripke como um designador
fortemente rígido, posto que o seu caráter formal a torna aplicável em qualquer
mundo possível. Mas não é ela que nos interessa aqui e sim as descrições (ii)-
(v), cujo conteúdo é empírico. Considerá-las designadores rígidos ou não
costuma depender da maneira como as interpretamos. Se entendermos a
descrição (ii) como indicando um local geográfico no nordeste brasileiro onde se
encontra a cidade de João Pessoa, que é onde em nosso mundo se situa o ponto
mais oriental da America Latina, então essa descrição será acidental, pois em um
mundo possível no qual a Patagônia fosse embicada em direção à África de
modo a ficar mais ao leste do que João Pessoa (ii) se referiria a um local
geográfico muito diferente. Contudo, se definirmos (ii) como indicando
simplesmente qualquer local que venha a se situar no ponto mais ao leste da
América Latina, abstraindo de sua latitude e de qualquer indicação geográfica,
então mesmo em um mundo possível no qual esse ponto esteja muito
diversamente localizado, ele continuará sendo o mesmo ponto, a saber, o ponto
mais oriental da América Latina. Nesse caso (ii) será um designador rígido,
aplicando-se a qualquer mundo possível no qual exista uma América Latina e,
334
portanto, um ponto geográfico que lhe seja mais oriental. Assim, se em um
mundo possível a Patagônia fosse embicada em direção à África de modo a ficar
mais ao leste do que João Pessoa, a descrição (ii) se aplicaria a algum local da
Patagônia, sem deixar de designar um mesmo ponto. O interessante, nesse caso,
é que a leitura de (ii) como sendo um designador rígido não é nenhuma
imposição estipulativa, mas uma interpretação natural do conteúdo da descrição.
O ponto fica mais claro quando consideramos outras descrições. Considere
(iii): se tivermos em mente somente o terceiro regimento de cavalaria da cidade
de Sintra (posto que há outros), na abstração dos soldados e cavalos particulares
que o constituem (o que é usual), sua descrição se torna um designador rígido,
aplicando-se ao mesmo regimento em qualquer mundo no qual ele exista. As
regras descrições localizadora (em Sintra...) e caracterizadora (o terceiro
regimento de cavalaria) já se encontram aqui expressas.
O mesmo também pode ser feito com as descrições (iv) e (v). A descrição
(iv) pode ser entendida como designando um estado de coisas caracterizado pelo
último período de esfriamento da terra (que no nosso mundo durou de 110.000
até 12.000 anos atrás, mas que em outro mundo possível poderia ter ocorrido em
um período muito diverso sem deixar de ser o último período glacial). A
descrição (v) é de um evento, contendo explicitamente a localização espaço-
temporal e a sua caracterização como o assassinato de uma pessoa específica
(que em nosso mundo deveu-se ao tiro desferido por Gavrilo Princip, mas em
outro mundo possível poderia ter sido causado por estrangulamento, por
envenenamento etc. sem deixar de ser um assassinato).
Vemos, pois, que existem descrições definidas de pontos, objetos, estados de
coisas e eventos que são naturalmente interpretáveis como designadores rígidos.
Uma característica comum a todos esses exemplos é, aliás, que eles constituem
descrições expondo regras fundamentadoras de localização e/ou caracterização e
não regras auxiliares, como no caso de descrições metafóricas ou acidentais. 335
Outra característica é que não existem nomes próprios correspondentes a essas
descrições. Logo veremos que essas marcas são decisivas.
Para contrastar, consideremos agora exemplos de descrições definidas usuais,
que se comportam como designadores distintamente acidentais ou flácidos:
designadores de objetos diferentes em diferentes mundos possíveis. Eis alguns
exemplos:
(B)(i) a águia de Haia,(ii) o marechal de ferro,(iii) a cidade luz.(iv) o fundador do Liceu,(v) o primeiro imperador romano.
Essas descrições são designadores tipicamente acidentais. Ao contrário das
descrições anteriores, rigidificá-las é possível apenas por estipulação. Considere
(i): é natural pensarmos na descrição ‘A águia de Haia’ como uma metáfora
laudatória do poder oratório de Rui Barbosa em sua passagem por Haia em
1907. Mas podemos conceber um mundo possível no qual o navio que levava
Rui Barbosa ao congresso de Haia tenha afundado no meio do atlântico e que ele
tenha sido substituido por um orador igualmente impressionante, o qual tenha
sido cognominado pelos seus compatriotas de a ‘Águia de Haia’. O mesmo vale
para qualquer outra descrição do grupo (B).
A questão que se coloca é: o que torna as descrições do grupo (B) acidentais,
em contraste com as descrições rígidas do grupo (A)? A resposta não é a de que
as descrições do grupo (B) são auxiliares, pois poderíamos adicionar a essa
última lista descrições como ‘o mais famoso jogador de futebol de todos os
tempos’, ‘a cidade de mais de dez milhões de habitantes situada a margem do
Sena”, que são fundamentais e mesmo assim flácidas. A resposta é outra; ela é a
seguinte: as descrições do grupo (B), diversamente das pertencentes ao grupo 336
(A), encontram-se semanticamente associadas a nomes próprios
correspondentes, os quais são, respectivamente, (i) Rui Barbosa, (ii) Floriano
Peixoto, (iii) Paris, (iv) Aristóteles e (v) Júlio Cesar. Contudo, essas descrições
não precisam ser verdadeiras para o mesmo objeto referido pelo nome próprio
correspondente, em todos os mundos possíveis em que ele existe, pois há
mundos possíveis nos quais Aristóteles não fundou o Liceu, Rui Barbosa
desistiu da carreira diplomática, Júlio César defendeu tenazmente a república,
Floriano Peixoto foi um cândido adepto da monarquia e Paris foi destruída no
século XIV, antes de se tornar a cidade luz.
A consideração desse ponto pesa contra explicações millianas da flacidez das
descrições, segundo as quais elas são acidentais porque denotam indiretamente,
com base em propriedades conotadas, e não diretamente, como é o caso do
nome próprio. O que acabamos de evidenciar é que a descrição definida não é
acidental por si mesma. Ela se torna acidental por sua associação com um nome
próprio. Ela se torna acidental porque vem frouxamente, contingentemente, e
não necessariamente, associada a certo nome próprio, o que vale não só para as
descrições auxiliares como até mesmo para as descrições fundamentais quando
consideradas isoladamente. Podemos parafrasear essa mesma idéia dizendo que
qualquer descrição asssociada a um nome próprio possui subordinação
semântica parcial com relação ao restante do conteúdo informativo desse nome
próprio, por ser considerada por nós como fazendo parte das descrições que
constituem o seu conteúdo semântico sem que da aplicação do nome próprio se
siga necessariamente a aplicação da descrição e sem que da aplicação da
descrição se siga necessariamente a aplicação do nome próprio. Por isso,
descrição e o nome próprio ao qual ela pertence tendem a se referir ao mesmo
objeto, mas não o fazem necessariamente. Isso faz com que a referida
subordinação semântica seja parcial, no sentido de que ela não é um traço
necessário à aplicação do nome próprio. Trata-se de uma relação que supomos 337
ser o caso apenas em nosso mundo e não algo que precise ser o caso em todo e
qualquer mundo possível em que o nome se aplica ao seu portador. Assim, em
nosso mundo ‘o autor do opus aristotélico’ é a descrição caracterizadora de
Aristóteles. Mas em outro mundo possível, no qual Aristóteles morreu logo
depois de chegar a Atenas, nunca tendo escrito o opus aristotélico, essa
descrição – para os falantes desse mundo possível – perderá a subordinação
parcial que ela tinha com o nome próprio ‘Aristóteles’, mesmo que ela seja parte
fundamental (mas não necessária) da nossa regra de identificação para esse
nome. Por causa dessa possível desconexão entre referência do nome próprio e a
referência de qualquer descrição a ele frouxamente associada, a descrição é
considerada como capaz de identificar diferentes objetos ou mesmo nenhum
objeto em outros mundos possíveis nos quais o nome próprio correspondente se
aplica, e identificar objetos em mundos possíveis nos quais o nome próprio que
a ela asssociamos não possui referente, o qua a torna um designador acidental ou
flácido do portador desse nome próprio.
Um exemplo para esclarecer. Uma descrição como ‘o primeiro imperador
romano’ exprime parte da descrição caracterizadora de Júlio Cesar (Cesar foi
imperador, embora de forma inoficial). Como a regra disjuntiva para a
identificação de Júlio César é mais completa, permitindo identificar o objeto
muito mais especificamente, nós consideramos a descrição ‘o primeiro
imperador romano’ como exprimindo uma propriedade contingente, ainda que
muito importante, de Júlio César. É contingente porque segundo a sua regra de
identificação ele pode ser identificado como tal, mesmo que essa descrição não
venha a lhe pertencer. Só por isso é que essa descrição se torna acidental,
havendo mundos possíveis nos quais a propriedade referida por essa descrição
pode pertencer a outro objeto, ligando-se a outras descrições fundamentais,
como no mundo possível no qual Brutus foi o primeiro imperador romano, ou
338
mesmo a nenhuma, como no mundo possível no qual Júlio Cesar foi um teimoso
defensor da república e no qual essa instituição persistiu até o fim do império.
Claro que podemos por estipulação abstrair da relação da descrição ‘o
primeiro imperador romano’ com certo imperador específico designado pelo
nome ‘Júlio César’; nesse caso a descrição se torna um designador rígido, pois
ela designará o primeiro imperador romano em qualquer mundo possível no qual
ele venha a existir, o que pode ser feito com qualquer outra descrição de
aplicação unívoca. Contudo, no caso das descrições do grupo (A) a rigidez se
demonstra uma característica natural da descrição: ‘o terceiro regimento de
cavalaria de Cintra’ naturalmente, ou seja, por força das convenções tácitas
nascidas de nossa prática lingüística, sempre se aplicará ao mesmo objeto em
qualquer mundo possível no qual ele exista. A explicação dada acima explica
porque isso ocorre. Como as descrições do grupo (A) não se encontram
frouxamente subordinadas a nome próprio algum, elas se referem ao mesmo
objeto em qualquer mundo possível no qual esse objeto venha a existir, sendo
isso o que as torna nomeadores rígidos. Vemos, pois, que diferentemente do que
Kripke sugeriu, a relação descrição-designador acidental e nome próprio
designador rígido não tem nada a ver com o mecanismo de referência dessas
diferentes espécies de termos singulares, mas tão somente com as relações que
eles podem possuir um com o outro.
Um ponto a se adicionar é que nos casos em que a descrição definida é
auxiliar, a regra de conexão com o objeto por ela expressa não é suficiente para
identificá-lo. Uma descrição como ‘a águia de Haia’, por exemplo, não é capaz,
pelo seu conteúdo explícito, de identificar na independência da regra de
identificação geralmente associada ao nome ‘Rui Barbosa’, pois ela não possui
conteúdo descritivo suficiente. Isso reforça a sua subordinação semântica parcial
a um nome próprio que seja detentor da regra de identificação do objeto, pois o
halo semântico é dependente do núcleo semântico, podendo esse nome ser Rui 339
Barbosa ou João da Silva. Essa dependência se aplica pelo menos também às
descrições (ii), (iii) e (iv) de (B).
Essas considerações nos permitem prever que a dependência que a descrição
definida tem do nome próprio correspondente deve ser maior quando mais
irrelevante ela for para a identificação do objeto. Assim, será mais fácil
considerar acidental uma descrição definida auxiliar como ‘o tutor de
Alexandre’ ou ‘o neto de Achaeon’ ou ‘o amante de Herphylis’, posto que ela
desempenha um papel secundário na determinação da referência do nome
‘Aristóteles’. Mas será menos fácil no caso das descrições fundamentais. E se a
descrição definida contiver tudo aquilo que é essencial ao nome próprio ao qual
se encontra subordinada, ela se torna rígida. Esse é o caso da formulação
descritivada da regra de identificação para o nome ‘Aristóteles’ que, como
vimos, é rígida.
Se a flacidez é proveniente do contraste da descrição com o nome próprio,
podemos nos perguntar se ela não ocorre também pelo contraste entre um nome
próprio e outro. Com efeito, isso pode ocorrer. Considere o caso do jovem de
nome Jacinto, que por custar muito a entender as coisas foi apelidado pelos seus
colegas de Cabeça-de-Bigorna ou simplesmente “o Bigorna”. Há mundos
possíveis nos quais Jacinto não era cabeçudo, ou não teve colegas maldosos, ou
em que o seu colega João da Silva é quem recebeu esse apelido. Nesses mundos
o apelido ‘Bigorna’ ou não se aplica, ou identifica outra pessoa que não Jacinto.
Esse apelido é – se considerado por contraste com o nome próprio mais
autorizado – um designador acidental, um nome próprio flácido.
As explicações aqui apresentadas para a diferença no comportamento
semântico entre nomes próprios e descrições definidas não são apenas mais
detalhadas, mas têm mais poder explicativo do que a obscura sugestão
referencialista de Kripke, segundo a qual o nome próprio refere-se por possuir
uma relação de secreta e indevassável intimidade com o seu objeto. Pois a 340
rigidez do nome próprio deixa de ser interpretada como a sua misteriosa
propriedade de designar o objeto em si mesmo, sem intermediação de
propriedades, para se tornar a propriedade de designar quaisquer combinações
de propriedades que satisfaçam a sua regra de identificação.
11. Respostas aos contra-exemplos de Kripke
Gostaria agora de examinar as objeções usualmente feitas às teorias
descritivistas dos nomes próprios por defensores de teorias causais-históricas.
Quero demonstrar que a teoria meta-descritivista dos nomes próprios é capaz de
oferecer respostas mais detalhadas e convincentes a essas objeções, as quais
geralmente falham em distinguir o papel das regras fundamentadoras, quando
não falham em considerar o papel do contexto.
1. Objeção de rigidez
Consideremos primeiro a objeção de rigidez (modal), segundo a qual se o
descritivismo fosse correto então os nomes próprios não poderiam ser
designadores rígidos, posto que descrições não são designadores rígidos.
A resposta geral a essa objeção é que embora nenhuma regra-descrição de
primeira ordem precise se aplicar em todos os mundos possíveis em que o objeto
definidamente existe, a regra-descrição de identificação do nome próprio
(resultante da aplicação da regra meta-identificadora às suas específicas regras-
descrições localizadora e/ou caracterizadora) se aplica necessariamente em todos
os mundos possíveis em que o objeto definidamente existe. (Como vimos,
podemos ter mundos possíveis nos quais não se pode saber se a regra de
identificação de um nome próprio se aplica ou não; mas tais mundos coincidem
com aqueles nos quais o objeto também não possui uma existência definida,
uma vez que a própria existência do objeto se define pela efetiva aplicabilidade
dessa regra.)341
Kripke considera casos nos quais nossas descrições definidas usuais não se
aplicam. Assim, ele considera a possibilidade de que Aristóteles tivesse morrido
muito jovem, nunca tendo escrito os textos filosóficos pelos quais o seu nome é
lembrado, ou ainda, um mundo possível (dificilmente imaginável) no qual
Aristóteles viveu quinhentos anos mais tarde; ainda nesses casos, pensa ele,
podemos reconhecer Aristóteles, o que o leva à conclusão de que até mesmo a
disjunção das descrições do feixe é desnecessária à aplicação do nome.1 Mas
essa conclusão é simplesmente falsa, pois tudo o que Kripke nos oferece como
exemplo é no máximo o caso de não-aplicação da regra caracterizadora, mas de
aplicação tácita da regra localizadora, ou o caso inverso. Contudo, já vimos que
esses casos são previstos como plenamente compatíveis com a aplicação de RMI
às descrições fundamentadoras de um nome próprioe assim com a aplicação da
sua regra de identificação. O que Kripke jamais chega a considerar é um caso no
qual a regra identificadora de um nome próprio não seja aplicável e ainda assim
o seu portador exista. O que ele não chega jamais a considerar é um exemplo
concreto em que a disjunção das descrições do feixe seja realmente
desnecessária, a saber, no qual nenhuma das descrições se aplique em nenhuma
medida. E isso acontece pela simples razão de que tal exemplo é inconcebível!
Retornando ao caso imaginado por Searle, se alguém nos viesse dizer que
descobriu que Aristóteles não foi um filósofo grego, mas um mercador de peixes
que viveu em Veneza na renascença tardia, nossa reação seria considerar essa
afirmação intuitivamente absurda, posto que o pescador em questão não satisfaz
nenhuma das descrições do feixe associado a Aristóteles.
Outro contra-exemplo de Kripke ao descritivismo diz respeito ao nome
próprio ‘Hesperus’.2 Se Hesperus abreviasse a descrição ‘o corpo celeste visível
por lá ao entardecer’, diz ele, então isso seria uma verdade necessária. Mas
1 Kripke: Naming and Necessity, pp. 62-63.2 Kripke: Naming and Necessity, pp. 57-58.
342
imagine que depois de ter sido cunhado esse nome um planeta errante do mesmo
tamanho tivesse colidido com Hesperus, de modo que ele deixasse de ser visível
ao entardecer, ou então (para piorar as coisas) tenha em seu lugar se tornado
visível ao entardecer o próprio planeta errante. Nesse caso não parece que com o
nome ‘Hesperus’ estamos nos referindo ao corpo celeste que satisfaz a descrição
acima, mesmo que enganosamente acreditemos nisso.
Consideremos a questão tendo em mente a concepção meta-descritivista. O
caso do nome próprio Hesperus é parecido com o caso já visto do planeta
Vênus.1 Como já vimos, podemos assimilar a regra caracterizadora do planeta
Vênus à sua regra localizadora, posto que a propriedade que nos importa é a de
ser o segundo planeta do sistema solar. Assim, a descrição localizadora-
caracterizadora essencial à identificação de Hesperus é:
O planeta que orbita o sol entre marte e a terra desde que foi identificado como tal e provavelmente já há milhões de anos.
Nesse caso, a regra de identificação será de um tipo que exige a necessária
satisfação dessa regra-descrição localizadora, tal como no exemplo da regra de
identificação do planeta Vênus. Isso demonatra que a satisfação da descrição
proposta por Kripke ‘o corpo celeste visível por lá ao entardecer’ não é
relevante, a não ser como um dos possíveis meios de identificação do planeta.
Afinal, se Hesperus perdesse a sua atmosfera e por isso deixasse de brilhar à
noite, ele não deixaria de ser Hesperus. Contudo, no caso de um planeta errante
tomar o lugar de Hesperus, mesmo satisfazendo essa descrição auxiliar, ele não
satisfará a regra de localização para Hesperus, pois não era ele que orbitava o sol
na época da denominação de Hesperus, nem nos milhões de anos que a
1 O exemplo foi aliás inicialmente sugerido por Ruth Barcan Marcus usando o nome ‘Venus’ em uma conferência assistida por Kripke. R.B. Marcus: Modalities: Philosophical Essays, p. 11.
343
antecederam. Por isso, se o que nós virmos “por lá” ao entardecer deixar de
satisfazer a regra de identificação – por não ser o planeta que orbitou o sol no
tempo de sua denominação, mas, digamos, outro planeta – ele não será mais
Hesperus, mas outra coisa, por não se conformar com nossa descrição.
Esse contra-exemplo deve parte de sua eficácia ao fato de que o nome
próprio ‘Hesperus’ pode realmente ser entendido como sendo referido a algo
como a estrela mais brilhante (regra caracterizadora) que aparece ao anoitecer
(regra localizadora). Certamente era isso o que havia sido entendido com a
palavra antes de a astronomia ter sido desenvolvida, quando não fazia diferença
se Hesperus fosse o planeta Vênus ou um anjo reluzente. Nesse caso não pode
ser que Hesperus não satisfaça a descrição, pois o nome se refere a uma mera
aparência perceptual. Mas ninguém mais hoje se atém a esse sentido morto da
palavra.1
2. Objeção da necessidade indesejável
Vejamos agora a objeção de necessidade indesejável (epistêmica). Essa objeção
parte da constatação de que, sendo os nomes próprios designadores rígidos, eles
se aplicam necessariamente aos seus objetos. Como nenhuma descrição se aplica
necessariamente ao seu objeto, nomes próprios não podem ser reduzidos a
descrições.
Se essa objeção, como já vimos no capítulo 8, se aplica somente a uma
caricatura do descritivismo, não faz o menor sentido querer aplicá-la ao meta-
descritivismo. O que necessariamente se aplica, caso o objeto definidamente
exista, é apenas a regra de identificação (i.é ao menos uma descrição
fundamental deve ser suficientemente e predominantemente aplicável a algo).
1 Não há, por isso, qualquer razão para se tentar contornar o argumento modal tornando o nome próprio equivalente a uma descrição rigidificada, ou seja, indexada ao mundo atual, com todos os problemas que isso envolve (ver, por exemplo, J. Stanley: “Names and Rigid Designation”).
344
Assim, como também já vimos, a regra de identificação para o nome próprio
‘Aristóteles’ pode ser transformada em uma descrição necessariamente
aplicável, abreviadamente expressa como:
a pessoa que satisfaz suficientemente e predominantemente as descrições de ter nascido em Estagira em 384 a.C. vivido em Atenas e falecido em Chalcis em 322 a.C. e/ou a pessoa que foi o autor das idéias do opus aristotélico.
Ao fazermos tal consideração não devemos nos esquecer que as descrições
constitutivas do significado de um nome próprio são capazes de serem alteradas
e ampliadas, podendo inclusive sofrer variações locais e temporais dentro da
comunidade lingüística. Essas alterações, contudo, não devem ser tais que
ponham a perder a unidade do significado. O exemplo do impostor de nome
‘Tom Castro’ pode esclarecer. Nascido na Jamaica, ele foi certamente
identificado através de regras de localização e caracterização por seus familiares
quando criança. Mas adulto ele foi viver na Inglaterra, onde por alguns anos
conseguiu se fazer passar pelo filho de uma nobre inglesa, que muitos anos
antes havia desaparecido nas costas do Caribe. A regra caracterizadora pela qual
o conhecemos é a de um grande impostor. Mas sabemos que é a mesma pessoa
que foi conhecida pelos seus pais devido ao compartilhamento de uma mesma
regra de localização hoje conhecida de todos.
Passemos agora a um dos mais bem conhecidos exemplos de Kripke,
concernente à descrição que a maioria das pessoas associa ao lógico Kurt Gödel.
Essa descrição é: ‘o homem que descobriu a incompletude da aritmética’.
Podemos imaginar que Gödel não tenha descoberto o teorema da incompletude.
Suponhamos, diz Kripke, que Gödel tenha tido um amigo, um obscuro lógico
chamado Schmidt, que desenvolveu sozinho o teorema de incompletude em um
artigo, tendo logo depois morrido em circunstâncias obscuras. Gödel apossou-se
então do artigo e o publicou em seu próprio nome. Imagine também que, como 345
muitas outras pessoas, tudo o que João associa ao nome ‘Gödel’ é a descrição ‘o
inventor do teorema da incompletude da aritmética’. Nesse caso, pensa Kripke,
segundo o descritivismo, quando João fica sabendo que foi Schmidt quem
descobriu o teorema da incompletude, ele deve ser levado à conclusão de que o
nome ‘Gödel’ significa o mesmo que ‘Schmidt’, ou seja, de que Gödel é
Schmidt. Mas não é isso o que acontece. Pois continua bastante claro que Gödel
é Gödel e que ele não é Schmidt.1
Discordando da análise de Kripke, John Searle notou que uma pessoa dirá
que Gödel não é Smith porque ela entende por Gödel
o homem que minha comunidade lingüística, ou pelo menos aqueles através dos quais eu cheguei a esse nome, chamam de Gödel, assumindo que algo mais é requerido.2
Com efeito, se tudo o que João sabe sobre Gödel é que foi ele quem descobriu a
incompletude da aritmética e assume que isso é suficiente para a identificação,
então ele não entende a gramática dos nomes próprios, não sabe o que é um
nome próprio, não é capaz de dar sentido.
Com base em nossa análise de como os nomes próprios referem podemos
especificar aquele algo mais que segundo Searle a pessoa assume que é
requerido. Nossa resposta é que a conclusão de Kripke é incorreta porque não
leva em conta a regra de identificação que a comunidade lingüística tem para o
nome ‘Gödel’ e a assunção feita por João, como falante competente da
linguagem, de que ele não a conhece o suficiente para saber que a referência se
alterou.
Vejamos primeiro, o que seria a regra de identificação do nome ‘Gödel’ para
os nomeadores privilegiados da comunidade lingüística. Do ponto de vista
1 Kripke: Naming and Necessity, pp. 83-84.2 John Searle: Intentionality p. 251.
346
desses nomeadores há duas razões para Gödel não ser identificado com Schmidt.
Em primeiro lugar, a descrição ‘o descobridor do teorema da incompletude’ não
é mais do que uma parte da regra-descrição caracterizadora para Gödel. O
teorema da incompletude foi apenas a mais importante dentre as muitas
contribuições de Gödel. Além disso, mesmo sem ser Schmidt, Gödel foi um
lógico suficientemente competente para ser aceito em Princeton. Assim, a regra
de aplicação para Gödel continua a ser parcialmente satisfeita pelo nome
‘Gödel’ (digamos, 2/3 dela), mesmo que ele não tenha descoberto o teorema em
questão. A segunda razão pela qual a comunidade lingüística continua a chamar
Gödel de ‘Gödel’ é que a regra-descrição localizadora continua sendo
plenamente satisfeita por Gödel! Afinal, continua sendo Gödel, e não Schmidt,
o homem que nasceu em Brünn em 1906, tendo estudado na Universidade de Viena e em 1940 emigrado pela ferrovia transiberiana para os EUA, onde trabalhou na universidade de Princeton até a sua morte em 1978.
Não devemos sobrepor a nossa conclusão de que Gödel não pode ser Smith à
conclusão de João, pois esse último só é capaz de suspender o juízo. Contudo,
seu domínio da gramática dos nomes próprios lhe permite concluir que ele não
tem elementos suficientes para concluir que Gödel é Schmidt. João está ciente
de que ao associar o nome ‘Gödel’ à descrição ‘o inventor da prova da
incompletude da aritmética’, ele provavelmente domina apenas uma parte da
regra-descrição caracterizadora de Gödel, que é mais completamente dominada
por alguns outros membros da comunidade lingüística. Mas o ponto central é
que, como falante competente da linguagem, ele sabe que sendo Gödel o nome
de uma pessoa, deve haver também alguma regra de localização espaço-
temporal para Gödel, a qual ele desconhece, uma regra que precisa ser diferente
da regra de localização espaço-temporal para Smith, posto que as informações
que ele tem são de que Smith é outra pessoa (Gödel não poderia matar-se a si 347
mesmo para então roubar-se o manuscrito). Sabendo disso e sabendo que
desconhece as regras de localização ele sabe que não está em condições de
concluir coisa alguma.
Há uma curiosidade a respeito. Como ao menos parte de uma das duas
descrições fundamentais identificadoras de Gödel é satisfeita por Schmidt, é
possível dizer que este último passa a herdar alguma coisa do significado do
nome ‘Gödel’, mesmo que não ganhe a sua referência. E isso realmente
acontece. Digamos que um lógico, revoltado pela notícia acerca do roubo do
teorema e com pena de Schmidt, lance a exclamação “Schmidt é quem foi o
verdadeiro Gödel!” Essa é uma frase verdadeira se for entendida como uma
hipérbole. E a razão pela qual ela é verdadeira é dada por nossa versão da teoria
descritivista, a qual prevê que o nome Schmidt herda alguma coisa relevante do
significado do nome ‘Gödel’.
Há, por fim, uma maneira de fazer com que Gödel seja realmente Schmidt,
mas ela dá a Kripke o bolo sem o direito de comê-lo. Imagine que bem no início
da estória Schmidt, por alguma razão, tivesse assassinado o jovem Gödel e
assumido a sua identidade. Schmidt, que era muito melhor matemático que
Gödel, descobriu a incompletude da aritmética, casou-se com Adele, tornou-se
professor em Princeton e faleceu em 1978, de modo que aquele sujeito de calças
curtas junto a Einstein na famosa foto de ambos era ele mesmo, o falsário
Schmidt. Nesse caso não há dúvida de que Gödel é Schmidt. E o
metadescritivismo explica: ele é Schmidt porque as regras-descrições
caracterizadora e localizadora, com exceção das descrições relativas à infância,
são as de Schmidt e não as de Gödel, o qual há muito deixara de existir.
3. Objeção da ignorância e erro: nomes próprios ficcionais
348
Vejamos agora casos que envolvem ignorância e erro. Eles são importantes por
iluminarem o caráter social dos conteúdos representacionais envolvidos na
referência.
Um caso especial de ignorância e erro (além de necessidade indesejável)
exposto por Kripke foi o de nomes próprios parcialmente ficcionais, como
Jonas, o pregador. Ele distingue tais casos daqueles de nomes próprios
propriamente ficcionais, como Santa Claus. Mesmo que tenha existido um
religioso com o nome de Santa Claus no passado, sabemos que o nosso Santa
Claus nada tem a ver com ele e que esses nomes são meros homônimos, assim
como Napoleão, como o nome da figura histórica e como nome do cão que
assim foi batizado.1 Mas o mesmo, pensa Kripke, não se dá no caso de Jonas.
Segundo a Bíblia, Jonas foi um pregador enviado por Deus à cidade de Nineveth
para converter os pagãos e que acabou sendo engolido por um grande peixe.
Mas ninguém acredita que essas descrições sejam verdadeiras. Mesmo assim,
estudiosos da Bíblia acreditam que realmente existiu uma pessoa que originou a
estória.2 Mas se é assim, o descritivismo é errado, pois não possuímos descrições
capazes de identificar univocamente Jonas3. E a teoria causal deve ser certa, pois
o uso semi-ficcional do nome foi realmente causado por seu portador.
Um exemplo similar e mais adequado é o do justiceiro Robin Hood.
Historiadores crêem que a lenda de Robin Hood é baseada em alguma pessoa
real, que viveu no século XIII. Para tal há uma lista de candidatos. Entre eles,
porém, encontram-se pessoas que não eram pobres, que não eram fora-da-lei,
que não viveram na floresta de Sherwood e que nem sequer se chamavam Robin
Hood! Contudo, o referente dessas figuras parcialmente ficcionais é suposto
como sendo um e o mesmo, apesar do fato de não satisfazer propriamente
1 Kripke: Naming and Necessity, pp. 93 e 97.2 Admito essa afirmação de Kripke para o bem do exemplo, pois a maioria dos estudiosos realmente acredita que esse personagem bíblico seja inteiramente ficcional.3 Kripke: Naming and Necessity, p. 67-68.
349
descrição alguma. Para Kripke, a razão pela qual estamos no final das contas
tratando de pessoas que realmente existiram é que a cadeia causal começa com o
reconhecimento do personagem real. Desse modo a teoria causal-histórica teria
uma explicação para algo que a teoria descritivista não é capaz de explicar.
Antes de respondermos, precisamos lembrar que há coisas que podem ser
aceitas como portadoras do nome e outras não. Suponha, por exemplo, que um
antigo escrivão da Bíblia tenha pisado em um ouriço-do-mar, e que no doloroso
período de convalescência que se seguiu, as lembranças do ocorrido o tenham
induzido a inventar a história de Jonas; ou então, suponha que algum escritor de
ficção da idade média tenha sido agredido pelas costas à noite por um assaltante
desconhecido, o que o deixou desacordado, e que por causa disso, ao voltar a si
ele tenha imaginado a estória de Robin Hood. Obviamente, ninguém dirá que o
ouriço-do-mar é Jonas e que o ladrão desconhecido é Robin Hood, só porque
eles podem ser considerados as causas da invenção desses personagens. Alguém
poderá aqui objetar que para Kripke a cadeia causal-histórica precisa ser
associada a um ato de batismo, o que não é aqui o caso. Mas podemos ainda
imaginar, por exemplo, que o antigo escrivão da Bíblia tenha guardado o ouriço-
do-mar em sua casa e que logo depois de inventar a história de Jonas e contá-la
aos seus amigos, ele tenha pegado o ouriço na mão e dito: “Por isso eu chamo
esse meu ouriço de Jonas”. Não parece que ele teria sido capaz de assim originar
uma cadeia causal capaz de fazer-nos reportar o nome ‘Jonas’ ao ouriço-do-mar.
Ora, por que em certos casos reconhecemos a causa como sendo o portador
do nome e em outros não? A única resposta plausível é que a causa que
reconhecemos como adequada é aquela capaz de satisfazer algum elemento
cognitivo que associamos ao nome. Nos casos de Jonas e Robim Hood, mesmo
havendo uma cadeia causal (o que é inevitável), o que confere adequação a essa
cadeia causal são representações descritivamente exprimíveis, mesmo que
bastante vagas, de quem seriam Jonas e Robim Hood, as quais seriam refletidas 350
nas cadeias causais. Com efeito, da história bíblica nós inferimos alguma coisa
da descrição localizadora, qual seja, a de que o Jonas real teria sido uma pessoa
que viveu nos tempos bíblicos (entre 600 a 1.000 anos a.C.), e alguma coisa da
descrição caracterizadora, qual seja, a de que ele foi algum pregador da bíblia. E
quanto à pessoa que gerou a lenda de Robin Hood, sabemos que ela deve
satisfazer alguma coisa da descrição localizadora, de ter vivido na Inglaterra do
século XIII, além de boa parte da descrição caracterizadora, ao ser alguém que
tirava dos ricos para dar aos pobres. Além disso, em ambos os casos vagas
histórias causais podem ser supostas. É essa provável satisfação genérica de
cada regra-descrição fundamental segundo a regra meta-identificadora para
nomes próprios o que torna esses nomes semi-ficcionais indicadores de coisas
alegadamente reais. É verdade que essas descrições são insuficientes para a
identificação unívoca de Jonas e de Robin Hood, mas não é isso o que
pretendemos com elas, pois afinal não somos realmente capazes de identificar
essas pessoas. O que elas nos permitem fazer é propor hipóteses plausíveis –
supor que esses personagens existiram realmente.
Podemos, pois, distinguir nas descrições associadas aos nomes de
personagens semi-ficcionais dois elementos. O primeiro é o elemento ficcional,
constituído de descrições geralmente coloridas e fantasiosas, que não foram
feitas para se aplicar à realidade. O segundo é o elemento não-ficcional; são
descrições localizadoras e caracterizadoras muito vagas, que seriam implicadas
pelas regras localizadora e caracterizadora que supomos que poderiam ser
construídas se tivéssemos as informações suficientes a respeito do portador do
nome. Aquilo que define o que chamamos de caráter semi-ficcional é a adição
do elemento imaginativo, decalcado sobre os critérios identificadores originais.
4. Objeção da ignorância e erro: descrições elípticas e incorretas
351
A mais interessante forma de objeção da ignorância e do erro é aquela na qual
Kripke demonstra que geralmente as pessoas conseguem fazer com que um
nome próprio tenha referência, mesmo quando a ele associam apenas uma
descrição indefinida ou uma descrição incorreta. Exemplos do primeiro caso são
os nomes ‘Cicero’ e ‘Feynman’, aos quais muitos associam apenas alguma
descrição indefinida como ‘um famoso orador romano’ para o primeiro e ‘um
grande físico norte-americano’ para o segundo.1 Apenas uns poucos seriam
capazes de explicar a situação política de Cicero ou de dissertar sobre as
contribuições de Feynman para a microfísica. Mesmo assim, as pessoas são
capazes de se referir a Feynman através do seu nome. Mais do que isso, as
pessoas são capazes de usar um nome próprio referencialmente, mesmo quando
associam a ele descrições blatantemente errôneas. Kripke diz que em sua época
muitos associavam ao nome ‘Einstein’, a descrição ‘o inventor da bomba
atômica’.2 Com isso as pessoas conseguiam se referir a Einstein, acredita ele,
embora a bomba atômica tenha sido elaboração dos cientistas do projeto
Manhattan, do qual Einstein nunca participou. Finalmente, imagine que você
ouve alguém dizer o nome ‘Elias’ em uma conversação. Você não tem nenhuma
idéia de quem é a pessoa ou sobre o que estão conversando. Mas você não é
capaz de se referir ao mesmo Elias ao repetir o nome? Se assim é, então parece
que descrições não têm nada a ver com aquilo através do que o nome refere.
Podemos desenvolver aqui mais adequadamente a resposta esboçada por
Searle de que a descrição sustentada pelo falante deve estar em convergência
com o conteúdo caucionado pela comunidade lingüística. Essa convergência já
permite um uso vago, que por isso mesmo não deixa de ser correto, do nome
próprio na linguagem. Ela permite o que chamamos de uma referência
incompleta, um gesto em direção à verdadeira referência. Associando os nomes
1 Kripke: Meaning and Necessity, pp. 81-82.2 Kripke: Meaning and Necessity, p. 85.
352
‘Cicero’ e ‘Feynman’ a descrições indefinidas, e mesmo associando o nome
‘Einstein’ a uma descrição errônea, as pessoas já se tornam capazes de colocar o
nome na órbita da referência, ou seja, usar o nome próprio em práticas
lingüísticas nas quais ele seja capaz de ser interpretado por nomeadores
privilegiados de maneira a realmente denotar o seu portador. Afinal, mesmo no
caso de uma descrição incorreta, como ‘o inventor da bomba atômica’, a pessoa
já sabe que o nome ‘Einstein’ se refere a um cientista e a um ser humano, e não,
por exemplo, a uma espécie de pedra preciosa. Assim, se a pessoa disser que
Einstein inventou a bomba atômica, outros poderão corrigi-la, admitindo que ela
queria se referir a mesma pessoa a qual elas se referem com esse nome.
Contudo, se, como já notamos, uma pessoa usasse o nome ‘Einstein’ para
designar um diamante, ou usasse o nome ‘Feynman’ para designar uma marca
de perfume, ela não estaria tentando se referir a mesma coisa a que nós nos
referimos com esses nomes, não sendo capaz de inseri-los adequadamente em
situações dialógicas. Finalmente, você só consegue se referir ao mesmo Elias
sobre o qual as pessoas estão conversando porque você vincula ao nome a
descrição adventícia correta ‘a pessoa sobre a qual eles estavam conversando’.
Seria possível opor à resposta descritivista o fato de que uma razão pela qual
nos lembramos do físico Robert Oppenheimer é que ele foi o principal
responsável pela criação da bomba atômica. Logo, quem diz que Einstein foi o
inventor da bomba atômica está usando a regra caracterizadora para
Oppenheimer, devendo fazer referência a Oppenheimer ao falar de Einstein, o
que não é o caso... A resposta a essa objeção é que tudo depende do que está
sendo enfatizado. Se a frase fosse “O inventor da bomba atômica foi Einstein”, a
pessoa seria de fato corrigida com a resposta de que o responsável pela criação
da bomba foi Oppenheimer e não Einstein. Contudo, quando o nome próprio
‘Einstein’ está na posição de sujeito, nós enfatizamos a regra associada à
descrição auxiliar ‘o portador do nome “Einstein’”. A posição de sujeito só 353
deixa de importar nesse aspecto quando a informação é mais detalhada. Se uma
pessoa dissesse: “Einstein foi o físico que dirigiu o projeto Manhattan, que
produziu a primeira bomba atômica, tendo nascido em Nova York em 1904 e
falecido de câncer em 1967”, nós não a corrigiríamos dizendo que Einstein não
foi o responsável pela invenção da bomba atômica; nós diríamos que a
pessoaestá realmente falando de Oppenheimer.
Um último argumento de Kripke é o que apela à circularidade: o nome
Einstein não pode ser explicado pela descrição ‘o criador da teoria da
relatividade’, pois o nome ‘teoria da relatividade’ é explicado pela descrição ‘a
teoria criada por Einstein’.1 Uma circularidade semelhante ele aponta na
explicação do nome próprio ‘Giuseppe Peano’. Muitos de nós associamos a esse
nome a descrição ‘o descobridor dos axiomas da aritmética’. Trata-se, porém, de
um engano. Peano apenas expôs os axiomas, adicionando ao seu texto uma nota
na qual atribuía corretamente o seu descobrimento a Dedekind. O erro, porém,
perpetuou-se. Uma solução, escreve Kripke, seria dizer que Peano é ‘a pessoa
que a maioria dos experts referem como Peano’. Mas essa solução seria circular.
Como identificar os experts em Peano? Suponhamos que eles sejam os
matemáticos. Mas pode ser que a maioria dos matemáticos erroneamente associe
ao nome Peano à descrição ‘o descobridor dos axiomas da aritmética’.
Poderíamos então sugerir o recurso à descrição ‘a pessoa a qual a maioria dos
Peano-experts refere pelo nome Peano’. Mas essa solução seria também circular,
pois para identificar os Peano-experts já precisamos ter identificado Peano, já
precisamos saber quem é Peano.2
Essas objeções de circularidade parecem-me claramente equívocas e me
pergunto se alguma vez alguém já as levou realmente a sério. Por certo é
1 Kripke: Naming and Necessity, p. 82.2 Kripke: Naming and Necessity, pp. 84-5, 88-9. O exemplo é elaborado por Scott Soames em seu livro Philosophical Analysis in the Twentieth Century, vol. 2, p. 361.
354
possível que alguém aprenda a teoria da relatividade na independência de
qualquer referência ao nome de Einstein. E quanto a Peano, se tudo o que penso
saber dele é que foi o descobridor dos axiomas da aritmética, essa é uma
descrição falsa, mas convergente. Posso digitar “O descobridor dos axiomas da
aritmética” no Google e descobrir que errei. Mas por ser convergente a
descrição já implica coisas verdadeiras, como o fato de que Peano foi um
famoso matemático italiano. Assim, percebido o erro eu recomeço orientando-
me por elas. Para aprender mais posso buscar uma enciclopédia ou um livro de
história da matemática. Lá eu encontrarei informações mais detalhadas,
oferecidas pelos matemáticos. De posse dessas informações e da bibliografia
dada eu chegarei a textos específicos sobre Peano, escritos por especialistas em
Peano, e mesmo aos próprios textos de Peano. O processo não é circular, mas de
ascenção em báscula: de informações preliminares sobre x à aquisição de
informações adicionais sobre x, e com base nessas informações adicionais sobre
x, outra vez rumo a uma adição ainda maior de informações sobre x. Claro que a
adição de informações já contém as informações anteriores, o que pode dar uma
impressão de circularidade. Mas isso não é suficiente para tornar o processo
circular, uma vez que é o conhecimento adicionado e não somente o
conhecimento preservado, aquilo que nos leva a adiquirir novo conhecimento.
Isso se aplica, é claro, também ao procedimento que Kripke tenta
exemplificar. É verdade que se para saber quem é o especialista em Peano
precisássemos já saber tudo o que o especialista em Peano sabe sobre Peano,
precisaríamos saber quem é Peano para saber quem é o especialista em Peano e
cairíamos em circularidade. Mas como para saber quem é o especialista em
Peano precisamos no máximo saber algumas generalidades sobre Peano (um
grande matemático do século XIX etc.), e para saber quem é Peano o
especialista em Peano precisa saber muito mais coisas sobre Peano do que nós
sabemos, nós caímos, não em uma circularidade, mas no que já chamamos de 355
movimento bascular ascendente, cada vez mais detalhador de informações sobre
o objeto referido. Você mesmo poderá comprovar o processo na próxima vez
que fizer uma pesquisa no Google.
Respostas aos contra-exemplos de Donnellan
Além das objeções feitas por Kripke precisam ser lembrados alguns contra-
exemplos de Keith Donnellan apresentados em um importante artigo de 1970,
onde ele defendeu uma teoria causal-histórica semelhante a de Kripke. O
primeiro contra-exemplo é sobre um estudante que conversou em uma festa com
uma pessoa que ele acreditava ser um grande filósofo, J.L. Aston-Martin, o autor
de “Outros Corpos”.1 Embora a pessoa coincida em se chamar Aston-Martin, ela
apenas se faz passar pelo filósofo. Donellan nota que a frase (a) “Na noite
passada eu falei com Aston-Martin”, é falsa, pois associa o nome ‘Aston-
Martin’ à descrição
D1: o filósofo autor de “Outros Corpos”,
enquanto as frases (b) “No final da festa Robinson tropeçou nos pés de Aston-
Martin e deu com a cara no chão” e (c) “Fui quase o último a sair, só Aston-
Martin e Robinson ficaram”, são verdadeiras, pois vêm associadas à descrição
D2: o homem chamado Aston-Martin que encontrei na festa.
A objeção é que a teoria do feixe de descrições não explica essa alteração: tanto
em (a) quanto em (b) e (c) o nome Aston-Martin deveria vir associado ao
mesmo feixe de descrições que inclui ‘o autor de “Outros Corpos”’.
1 Keith Donellan: “Proper Names and Identifying Descriptons”, p. 364.
356
Penso que essa objeção possa ser eficazmente respondida pela aplicação a
nomes próprios de uma distinção similar à introduzida pelo próprio Donnellan
entre usos atributivo e referencial de descrições definidas. No caso das
descrições definidas, o uso atributivo era aquele vinculado ao conteúdo da
descrição, enquanto o uso referencial era vinculado a função indexical da
descrição. No caso do nome próprio, o equivalente ao uso atributivo é aquele
que se baseia nas descrições da sua regra de identificação. Esse é o caso do
nome ‘Aston-Martin’ na frase (a), pois a descrição ‘o autor de Outros Corpos’
exprime parte da regra de identificação do objeto. No caso equivalente ao uso
referencial para o nome próprio o elemento indexical e o contexto têm papel
decisivo, de modo que a regra de identificação usual deixa de importar. Esse é o
caso do uso do nome ‘Aston-Martin’ nos casos (b) e (c). Aqui o que importa é a
descrição adventícia D2 no lugar da qual comparece o nome próprio. Como tal
ela é provisória e dependente da situação conversacional na qual foi adquirida.
O que o falante nesses casos pretende é apenas identificar um certo participante
da festa utilizando o nome pelo qual ele foi chamado, não tendo qualquer
importância se esse é o nome verdadeiro da pessoa que lá se encontrava ou não.
Outro contra-exemplo de Donnellan é o de uma pessoa A que, usando óculos
especiais, identifica em uma tela dois quadrados idênticos, colocados um em
cima do outro. Ao quadrado que está em cima ela chama de Alfa, ao quadrado
embaixo ela chama de Beta. A única descrição que ela tem para a identificação
de Alfa é
(a) o quadrado que está em cima.
Acontece que, sem que a pessoa saiba, ela está usando óculos que invertem a
posição dos quadrados, de modo que o quadrado Alfa é o que está embaixo.
Donnellan pensa ter assim demonstrado que o quadrado ao qual a pessoa se 357
refere é o quadrado Alfa (o de baixo), mesmo associando à palavra a descrição
errônea (a).
Como resposta, sugiro que a pessoa só se refere ao quadrado Alfa porque,
embora associando a Alfa uma descrição errônea, trata-se de uma descrição
convergente, corrigível para
(b) ˹O quadrado˺ (que A vê como o) ˹que está em cima˺.
Essa correção, por sua vez, é parte da verdadeira descrição identificadora do
quadrado Alfa, que é:
(c): ˹o quadrado˺ (que A vê como o) ˹que está em cima˺ (quando na verdade é o que está embaixo, uma vez que A está usando óculos que invertem a posição das imagens),
que o observador A desconhece. Essa última descrição é conhecida de outros
usuários da linguagem, de nomeadores bem informados, que podemos chamar
de B. Esses usuários dirão que A se refere ao quadrado Alfa que está embaixo
por disporem da informação dada pela descrição (c) que expressa o mais
completo modo de apresentação do objeto. Em contrapartida, de posse das
informações oferecidas pelos nomeadores B, que incluem a descrição (c), A
concordará em revisar a descrição (a) como parte de (b), referente apenas ao
modo como A vê, que por sua vez é parte da descrição (c). Embora literalmente
falsa, a descrição (a) é útil à referência porque reinterpretável como parte de
uma descrição identificadora correta mais completa.
Um último contra-exemplo de Donnellan é o de uma criança que já foi para a
cama e que é acordada brevemente pelos pais.1 Tom, um velho amigo da família,
chegou de visita e gostaria de ver o filho mais jovem, que ainda não conhece. A
1 Keith Donnellan: “Proper Names and Identifying Descriptions”, p. 364. 358
mãe diz “Esse é Tom”. Tom diz “Oi jovem”. No dia seguinte a criança acorda e
tudo o que ela sabe dizer de Tom é que ele é ‘uma pessoa simpática’. Ela sequer
se recorda de ter sido acordada na noite anterior. Mas ela se refere a Tom sem o
auxílio de descrições definidas. Para W.G. Lycan essa é uma prova contundente
da teoria causal dos nomes: a criança é capaz de se referir a Tom apenas através
de uma transferência causal demonstrativa.1
Examinando esse exemplo Brian Loar considerou que bem pode ser que a
linguagem aqui nos engane, como no caso em que uma pessoa percebe de que
faltam convidados para o jantar, mas não se recorda quem; somos intitulados a
dizer que ela se refere a quem não compareceu, mas a palavra ‘refere’ não
parece estar sendo usada aqui no sentido apropriado.2 Com efeito, se a criança
de nada se recorda ao dizer que Tom é simpático, não podemos sequer distinguir
o seu proferimento da mera expressão da vontade de agradar os pais.
Contudo, podemos ainda admitir – para o bem do exemplo – que a criança
possui cognições semânticas não-reflexivas relacionadas ao seu encontro com
Tom, que lhe permitem responder que ele é simpático. Nesse caso há um
elemento cognitivo convergente, que nos permite dizer que a criança logra
introduzir a palavra na situação dialógica referindo-se a Tom. Mas ainda aqui
trata-se de uma referência incompleta, de um limitado e insuficiente gesto em
direção à referência. Como todos sabem a quem a criança está se referindo, o
exemplo pode produzir a falsa impressão de que a criança é capaz de fazer uma
referência identificadora completa a Tom. Mas isso é ilusório. Ela não saberia
reconhecer Tom se o encontrasse. Se ela dissesse ‘Tom é uma pessoa simpática’
a estranhos que desconhecessem as circunstâncias, a lembrança do testemunho
seria perdida e ninguém seria capaz de dizer de quem se trata. Por conseguinte, o
proferimento se refere efetivamente a Tom, não para o falante, mas para os
1 W.G. Lycan: Philosophy of Language: A Contemporary Introduction, pp. 46-7.2 B. Loar:: “The Semantics of Singular Terms”, p. 367.
359
intérpretes capazes de completar a referência, que no caso são os pais da criança.
Afinal, não só eles recordam que a criança foi introduzida a Tom e pressupõem
que é por causa disso que ela agora diz que Tom é simpático, mas são eles que
realmente sabem quem é Tom e que são capazes de reidentificar a pessoa a
quem as palavras se referem. E isso acontece porque eles conhecem a regra de
identificação para o nome ‘Tom’, a qual pode ser descritiva de sua aparência,
dos seus traços psicológicos, do que ele faz, de onde ele vive e de onde ele veio.
Eles também conhecem descrições auxiliares relevantes, concernentes às
relações de Tom com a família. Como o proferimento da criança acontece em
um espaço público em que esses intérpretes privilegiados estão presentes, a
intenção da criança de se referir a alguma pessoa simpática com a qual esteve
em contato é complementada pela identificação referencial dessa pessoa feita
pelos outros participantes da situação conversacional, o que pode produzir a
ilusão de que a criança produziu uma referência completa.
Resposta à objeção de magia epistêmica
Há, finalmente, uma objeção genérica levantada por filósofos externalistas como
Michael Devitt, segundo a qual existe alguma coisa mágica no descritivismo.
Segundo essa objeção, o descritivismo atribui à mente uma propriedade
extraordinária, que é a de permitir aos seus conteúdos se relacionarem como que
por encanto às coisas fora dela. Como escreve Devitt em sua crítica a Searle:
Como poderia algo dentro da cabeça determinar a referência, que é uma relação com coisas particulares fora da cabeça? ...supor que o pensamento de alguém pode alcançar objetos particulares fora da mente é sustentar teorias mágicas da referência e intencionalidade. 1
1 Michael Devitt: “Meanings Aren’t Just in the Head”, p. 83360
Como pode uma coisa dentro da cabeça se referir a uma coisa fora da cabeça? Searle não vê problema: simplesmente acontece. Essa é a verdadeira mágica.2
Frente a isso um cognitivista poderia redarguir que a sua tese de que as
palavras se ligam aos objetos devido a idéias ou representações que eles
veiculam é um lugar comum perfeitamente natural e intuitivo. É verdade que,
enquanto filósofos, somos também conduzidos ao tradicional e até hoje
irresolvido problema da percepção, a saber, o problema de como podemos ir
além do véu da percepção, posto que tudo o que pode ser dado à experiência são
impressões sensíveis. Essa é uma questão em aberto, que o fenomenalismo
discutido na introdução desse livro, segundo o qual podemos “constituir” a
realidade externa com base em sensações possíveis efetivamente
experienciáveis, oferece uma esperança de resposta. Aqui há um mistério que
parece demandar mágica para ser resolvido. Mas a mágica pela qual, através de
representações mentais, podemos ter acesso a um mundo físico exterior é,
podemos apostar, meramente aparente. Esse é, afinal, um problema filosófico
central. Muito mais extrema, porém, parece-me a feitiçaria do referencialismo
direto, segundo o qual as próprias palavras, sem intermediação cognitiva, têm o
poder de alcançar os seus objetos de maneira a se referirem a eles. É verdade
que Devitt defende uma forma matizada de referencialismo, segundo a qual
redes causais parcialmente cognitivas são responsáveis pela referência. Mas
ainda assim, se ele não quiser recair no cognitivismo, ele precisa ignorar
qualquer força explicativa originada do conteúdo dessas cognições. Mas então a
pergunta retorna: como podem essas cadeias causais, na independência de seu
conteúdo, ser capazes de explicar a referência às coisas particulares que as
originaram? Isso nos faz suspeitar que as considerações de Devitt sejam
2 Michael Devitt: “Meanings Aren’t Just in the Head”, p. 91361
psicologicamente explicáveis como uma projeção inconsciente da negação do
próprio problema do referencialismo no campo inimigo do cognitivismo.
Reformulações russellianas
Vale aqui notar que as regras meta-identificadoras permitem uma aplicação
sistemática do procedimento da teoria das descrições à teoria metadescritivista
dos nomes próprios, o que pode ser útil no objetivo de exibir a estrutura lógica
da regra de identificação. Considere, por exemplo, a sentença (i) “Aristóteles
teve de abandonar Atenas”. Tendo em mente a aplicação de RMI1 na formulação
da regra de identificação para ‘Aristóteles’, podemos parafrasear essa regra
através do método proposto por Russell em sua teoria das descrições como:
1. Há ao menos um x que satisfaz suficientemente a condição de ter nascido em Estagira em 384 a.C., vivido em Atenas e morrido em Chalcis em 322 a.C. e/ou a condição de ter sido o autor das grandes doutrinas do opus aristotélico.
2. Não existe mais de um x para o qual vale o que foi enunciado em 1.3. Este x se chama Aristóteles e teve de abandonar Atenas.
A condição 1 inclui a idéia de suficiência, a condição 2 expõe a idéia de
univocidade, e a condição 3 associa o que foi univocamente delimitado ao nome
‘Aristóteles’, adicionando a predicação de (i). Para formular a sentença (i)
simbolicamente, estabelecemos que N = ‘...é a pessoa de nome ‘Aristóteles’’, A
= ‘...satisfaz suficientemente a condição de ter nascido em Estagira em 384 a.C.,
tendo vivido em Atenas e morrido em Chalcis em 322 a.C.’ (regra localizadora),
B = ‘...satisfaz suficientemente a condição de ter sido o autor das grandes
doutrinas do corpus aristotélico’ (regra caracterizadora), e T = ‘...teve de
abandonar Atenas’. Segue-se a formulação:
Ex ((Ax v Bx) & (y) ((Ay v By) → y = x) & Nx & Tx)362
Com isso é requerida a existência, a unicidade e a suficiência, que aqui
entram como parte dos predicados que expressam as propriedades
identificadoras.
O mesmo, podemos supor, pode ser feito com regras de identificação
resultantes da aplicação de RMI2. Seja como for, o que essas breves
considerações sugerem é que o verdadeiro serviço da teoria das descrições seja o
de exibir a estrutura lógica das regras de identificação.
Respondendo aos enigmas fregeanos da referência
Tendo como pressuposto a compatibilização de “Frege” com “Russell” sugerida
no capítulo 6 e a recém exposta acomodação da teoria das descrições de Russell
à versão metadescritivista da teoria do feixe, quero agora abordar os quatro
enigmas da referência. Esses enigmas – que são uma velha pedra no sapato das
teorias referencialistas – permitem uma explicação metadescritivista bastante
razoável.
1. Referência a inexistentes
Considere a sentença “Vulcano é quente”.1 O nome ‘Vulcano’ foi dado por
Leverrier no século XIX para o pequeno planeta que deveria orbitar entre
Mercúrio e o Sol à cerca de 21 milhões de quilômetros deste último, como uma
maneira de explicar as variações do periélio de Mercúrio. Há, pois, uma regra de
identificação para Mercúrio, em essência uma regra de localização (para
simplificar, desconsidero a massa provável do planeta). Esse é também o sentido
do nome ‘Vulcano’, o seu modo de apresentação. Contudo, é hoje considerado
1 Quero evitar frases com nomes ficcionais como “Rumpelstiltskin era ambicioso”, pois elas não foram feitas para ser eventualmente aplicadas ao mundo real: dizer que Rumpelstiltskin não existe (no mundo real) faz pouco sentido. O que importa é que ela exista no conto de fadas.
363
certo que a regra de localização para o nome próprio ‘Vulcano’ não se aplica ao
mundo real, primeiro foram inúmeras as vezes em que se tentou localizar esse
planeta, segundo porque a variação do periélio de Mercúrio é hoje explicada
pela teoria geral da relatividade. Devido a isso, a regra de aplicação do
predicado ‘...é quente’ também não se aplica: pois a aplicação de uma regra de
aplicação depende da prévia aplicação da regra de identificação para o termo
singular (da localização e/ou caracterização do objeto de predicação). A frase
“Vulcano é quente” é falsa, se quisermos, pois o predicado não se aplica pelo
fato do nome não se aplicar. A regra de verificação para essa frase também não
se aplica, pelas mesmas razões, também por isso tornando-a falsa. Como o
sentido do nome próprio ‘Vulcano’ é dado por seu modo de apresentação, que é
a regra de identificação, o sentido continua existindo, o mesmo se dando com o
sentido do predicado, constituído de sua regra de aplicação. Por isso também a
sentença não deixa de ter sentido, pois esse último se constitui na regra de
verificação constituída pela combinação da regra de identificação do nome com
a regra de aplicação do predicado, independentemente dessa combinação ser
aplicável ou não. Não há aqui enigma algum, pois nenhum desses
procedimentos nos compromete com a existência de Vulcano.
A formulação russelliana nos conduz à mesma conclusão. A sentença
“Vulcano é quente” fica sendo:
Existe exatamente um x que satisfaz suficientemente a condição de ser um planeta descrito por Leverrier como orbitando o sol entre Mercúrio e esse último e esse x é quente.
Chamando de V o predicado ‘...é um planeta do sistema solar denominado
‘Vulcano’ por Leverrier no século XIX, devendo ser encontrado entre Mercúrio
e o Sol, a cerca de 2,1 milhões de Km do último”, e chamando de Q o predicado
364
‘...é quente’, temos a seguinte apresentação simbólica da regra de identificação e
de sua articulação com a regra de aplicação do predicado:
(Ex) (Vx & (y) (Vy → y = x) & Qx)
Exige-se aqui a efetiva aplicabilidade da regra de aplicação do predicado
exprimindo uma propriedade fundamental que devem identificar um único
objeto. Essa exigência não é satisfeita, o que faz com que a regra de aplicação
do predicado ‘...é quente’ também não se aplique. Da não aplicação da primeira
regra segue-se já que a sentença “Vulcano é quente” é falsa, posto que ele não
existe e que sendo o primeiro conjunto falso a conjunção se torna como um todo
falsa. A formulação russeliana, bem entendida, é apenas uma versão formalizada
da formulação neo-fregeana acima proposta.
2. Existenciais negativos
Considere agora a sentença “Vulcano não existe”. Interpretada como “Não é o
caso que Vulcano existe”, podemos simbolizá-la a partir de MRI1 como:
~(Ex) (Vx & (y) (Vy → y = x))
Essa sentença tem um sentido, que reside na regra de identificação para
Vulcano representada pela conjunção “Vx & (y) (Vy → y = x)”, cuja
aplicabilidade é negada. Dizer que Vulcano existe é simplesmente dizer que essa
regra de identificação é aplicável. Essa é uma sentença falsa, posto que tal regra
de identificação é inaplicável. A sentença acima é, por sua vez, verdadeira, pois
é a negação de uma conjunção falsa. Mas com ela também não nos
comprometemos com a existência de Vulcano, pois tudo o que fazemos é negar
a aplicabilidade das regras-descrições fundamentais dos predicados A e/ou B.365
3. Sentenças de identidade.
Outro enigma é o da necessidade indesejável em frases de identidade como
“Cicero é Tulio”. Como explicar que essa frase possa ser informativa? Se o
nome à esquerda de ‘...é (o mesmo que)...’ exprime a mesma regra de
identificação que o da direita, e se essas regras são designadores rígidos, como
concedemos, então esses nomes deveriam significar a mesma coisa e a frase de
identidade deveria ser uma tautologia analítica como “Cicero é Cicero”.
Quero abordar esse problema chamando atenção para a distribuição de
descrições associadas a cada nome próprio, a saber, o fato de que quando temos
dois nomes próprios homônimos, certas descrições são mais freqüentemente
associadas a um homônimo do que a outro, tendendo, pois, a distribuir-se
diversamente nas mentes dos usuários de um e de outro nome próprio.
Vejamos antes o caso mais simples, que diz respeito à descrição contida na
própria expressão do nome. Considere o caso de Cicero, cujo nome completo era
‘Marco Tulio Cicero’. Um falante pode proferir o nome ‘Tulio’ conhecendo as
regras-descrições fundamentais e auxiliares, mas sem conhecer a regra-descrição
‘o portador do nome ‘Cicero’’ ou a regra-descrição ‘o portador do nome
‘Marco’’. Mas ele não poderá desconhecer que Tulio é ‘o portador do nome
‘Tulio’’, que pare ele torna-se uma descrição necessária. Por sua vez, essa
descrição poderá ser perfeitamente desconhecida por alguém que profere o nome
‘Cicero’. Por isso, por muitas vezes faltar o conhecimento de que descrições
auxiliares de símbolos de nomes próprios estão ligadas ao que queremos dizer
com o nome diversamente simbolizado, o proferimento “Cicero é Tulio” pode
ser informativo. Ao ouvirmos “Cicero é Túlio” ficamos sabendo que ao portador
do nome ‘Tulio” o nome ‘Cicero’ também se aplica.
Geralmente o caso não é tão simples. Há nomes que contém diferenças nas
regras de conexão com o objeto que vão além da diferença na mera regra 366
auxiliar de expressão simbólica do nome. A diferença também pode incluir
partes da regra de identificação ou definicional. Esse é o caso do enunciado de
identidade “George Eliot é Mary Evans”. A escritora inglesa Mary Evans
decidiu adotar um nome masculino, em parte para proteger a sua vida pessoal,
que não correspondia à moral vitoriana da época. Assim, há um grupo (i) de
pessoas, o grande público, que conhecia o essencial de (b), a regra-descrição
caracterizadora ‘o autor de Middlemarch e outras finas obras literárias’. Esse
grupo costumava não conhecer a regra-descrição ‘a pessoa cujo verdadeiro
nome é Mary Evans’, geralmente não associada ao nome ‘George Eliot’. Há
também pessoas de um grupo (ii), que conheceram fortuitamente Mary Evans
como Mary Evans. Elas geral elas sabem um pouco da regra-descrição
caracterizadora no que diz respeito a traços psicológicos e físicos da Mary
Evans, além de pequenos segmentos de sua carreira espaço-temporal. Mas elas
não costumam conhecer a descrição ‘a escritora cujo pseudônimo literário é
‘George Eliot’’. Há, por fim, pessoas de um grupo (iii), que inclui parentes
próximos, amigos, amantes e maridos de Mary Evans. Essas pessoas a
conheciam bem e sabiam que Mary Evans era George Eliot. Essas pessoas
conheciam tanto as regras de conexão conhecidas pelas pessoas do grupo (i)
como as do grupo (ii), de modo que para elas a frase ‘George Eliot é Mary
Evans’ exprime uma tautologia. Mas o mesmo não acontece com as pessoas dos
grupos (i) e (ii), entre as quais a distribuição do conhecimento de regras-
descrições sobre Mary Evans e sobre George Eliot diverge bastante.
As diferenças de sentido de expressões simbólicas diversas de um mesmo
termo singular são, sob esse prisma, uma questão relativa a diferentes
distribuições das descrições do feixe no que concerne ao que é
disposicionalmente intencionado pelos usuários do nome. Contudo, se as
diversas expressões simbólicas dos nomes se referirem realmente ao mesmo
objeto, então os seus significados referenciais completos devem ser os mesmos, 367
variando apenas a distribuição na intensão usual dos falantes, e com isso o
sentido intencionado que eles contextualmente lhe dão.
Considero agora a mais famosa frase da filosofia analítica: “A estrela da
manhã é a estrela da tarde”. Em geral sabemos que essas duas descrições se
referem a uma mesma coisa, o planeta Vênus. Mas enquanto um falante que usa
‘a estrela da manhã’ para Vênus necessariamente sabe que Vênus é ‘a estrela da
manhã’, ele não precisa necessariamente saber que ele é ‘a estrela da tarde’ e
vice-versa. A regra de conexão com o objeto que a pessoa deve ter em mente ao
usar uma descrição é diferente da regra de conexão que ela deve ter em mente ao
usar a outra, do que resultam as diferenças no sentido das descrições apontadas
por Frege.
Esses pontos também podem ser refletidos em apresentações russellianas das
sentenças. Restringindo-me apenas ao primeiro exemplo, supondo que tanto o
nome ‘Tulio’ quanto o nome ‘Cicero’ abreviem a mesma regra disjuntiva
expressa pelos predicados A v B, estando T no lugar de Tulio e C no lugar de
Cicero, a sentença “Tulio é Cicero” fica sendo:
(Ex) ((Ax v Bx) & (y) ((Ax v Bx) → y = x)) & Tx & Cx
Como Tx e Cz são predicações diferentes que podem ser diversamente
sabidas, “Tulio é Cicero” pode ser uma sentença informativa para uns embora
tautológica para outros.
(iii) Substitutividade. O quarto enigma é o da intersubstitutividade salva
veritate em contextos opacos. Compare os enunciados “Maria acredita que Tulio
é Tulio” com “Maria acredita que Tulio é Cicero”. O fato de o primeiro
enunciado ser verdadeiro não implica na verdade do segundo. Mas por que, se
Tulio é a mesma pessoa que Cicero? A resposta está no fato de que Maria pode 368
conhecer a regra de identificação para um desses nomes próprios sem saber que
ela também é a regra de identificação do outro nome próprio, pois ela pode não
saber que a regra de conexão auxiliar do símbolo de um dos nomes pertence ao
feixe de descrições fundamentado pela regra de identificação do outro nome. É
isso o que torna a crença na identidade de Tulio com Cicero a crença em um
conteúdo proposicional diferente do conteúdo da crença na identidade de Túlio
com Tulio.
Supondo que Maria tenha conhecimento da regra de identificação para
Tulio., se simbolizarmos ‘A v B’ = ‘Nascido em 105 a.C em Arpino e executado
em 43 a.C. em Formia... e/ou um grande orador, político, filósofo e escritor
romano, autor das Catilinárias...’, ‘T’ = ‘é chamado de Tulio’, ‘C’ = ‘é chamado
de Cicero’, podemos usar a teoria das descrições de modo a analisar a sentença
(i) “Maria Crê que Tulio é Tulio” como:
Maria crê que (Ex) ((Ax v Bx) & (y) ((Ay v By) → y = x) & Tx & Tx)
Essa sentença é evidentemente tautológica. Considere agora a sentença (b)
“Maria crê que Tulio é Cicero”. Ela fica sendo:
Maria crê que (Ex) ((Ax v Bx) & (y) ((Ay v By) → y = x) & Tx & Cx)
Esta, contudo, é uma sentença cujo conteúdo costuma ser informativo. Pois se
Maria não souber que z = x, isto é, que C e T se aplicam ao mesmo objeto, ela
não saberá que esses nomes próprios são intersubstituíveis salva veritate.
Conclusão
Como sempre acontece em filosofia, mesmo que solucionemos os problemas de
agora, novos problemas esperam-nos sempre na próxima curva do caminho.
369
Contudo, um pouco de reflexão sobre a maneira de ver aqui proposta mostra que
ela possui coerência interna suficiente para se tornar não só viável como
desejável. Para demonstrar que houve algum progresso, suponha que RMI2 seja
implementada em um programa de computador, e que sejam introduzidos no
programa nomes próprios junto com as informações necessárias sobre as suas
descrições fundamentais, histórias causais nível de satisfação das descrições etc.
Nesse caso parece prima facie concebível que o computador seria capaz nos nos
dizer com boa margem de segurança se o nome próprio é ou não aplicável. Mas
o mesmo não me parece sequer pensável para as teorias descritivistas
tradicionais e menos ainda para as vagas sugestões causais-históricas.
PARTE III: TERMOS GERAIS
370
10. INTRODUÇÃO: DESCRITIVISMO VERSUS
CAUSALISMO
Consideremos agora os termos gerais. Se os limitarmos a palavras-conceitos,
eles incluem os assim chamados nomes contáveis como ‘tigre’ e ‘cadeira’,
nomes de massa, como ‘água’ e ‘ouro’, nomes de espécies naturais como
‘átomo’, ‘tigre’, ‘água’ e ‘ouro’, nomes de espécies sociais como ‘ditador’ e
‘filósofo’, nomes de artefatos, como ‘cadeira’ e ‘computador’, e ainda outros.
Também aqui há uma disputa entre a concepção descritivista e a causal-
histórica. Do mesmo modo que no caso dos termos singulares quero, nesse e no
371
próximo capítulo, argumentar a favor de uma concepção dos termos gerais que
apesar de admitir um elemento causal é predominantemente descritivista.
Descritivismo
A teoria descritivista dos termos gerais é análoga à teoria descritivista dos
nomes próprios. Por isso ela está em consonância com a semântica fregeana e
foi tradicionalmente defendida por filósofos como John Locke, J.S, Mill, C.I.
Lewis, Rudolph Carnap e Carl Hempel, sendo ainda hoje por vezes revisitada
em novas versões1. Eis uma versão mais ou menos standard do descritivismo
tradicional. Um termo geral está no lugar de uma descrição ou de um feixe de
descrições que exprimem o seu sentido, intensão, conotação, conceito ou regra
de aplicação. Esse feixe de descrições acaba por definir aquilo que se pode
querer dizer em termos representativos ao se aplicar o termo geral. Basta que um
número suficiente de descrições constitutivas do sentido do termo geral seja
satisfeito por ao menos um objeto para que o termo encontre aplicação. Assim,
um termo geral como ‘tigre’ poderia ser definido por meio de uma complexa
descrição como ‘grande felino asiático carnívoro e quadrúpede, com pelo
amarelo, listas escuras transversais e focinho branco’. Se for encontrado algo
que satisfaz suficientemente as propriedades expressas pela descrição, nós o
identificaremos como sendo um tigre.
Um problema é que nem todo termo geral pode ser definido através de
descrições. Pois as descrições que definem um termo geral também contém
outros termos gerais, que por sua vez demandarão novas definições. Essas novas
definições não poderão recorrer totalmente ao que já foi definido, sob pena de
circularidade. Por isso, se todos os termos gerais fossem definidos através de
descrições, nós cairíamos em um regresso ao infinito, daí resultando que nada
1 Ver, por exemplo, D.K. Lewis “How to Define Theoretical Terms” e A.D. Smith: “Natural Kind Terms: a New-Lockean Theory”.
372
poderia ser completamente definido. A solução geralmente aceita pelos
descritivistas é a de que pelo menos alguns termos gerais devem ser primitivos,
não sendo analisáveis em termos de descrições.1 Palavras como ‘vermelho’ e
‘redondo’ são candidatos a esse papel.
Teorias descritivistas dos termos gerais têm a vantagem de explicar como é
possível que dois termos gerais com a mesma extensão possuam sentidos
diferentes. Considere as frases:
a. Todo animal que tem coração tem coração.b. Todo animal que tem coração tem rins.
Suponhamos que o sentido do termo geral fosse determinado por sua
extensão. Como a extensão do termo geral predicativo ‘animais que têm
coração’ é a mesma do termo ‘animais que têm rins’, as sentenças (a) e (b)
deveriam ter o mesmo sentido. Mas esse não é o caso: enquanto (a) é uma frase
tautológica, (b) é uma frase informativa, capaz de nos dizer alguma coisa sobre
o mundo. Além disso (a) e (b) têm sentidos claramente diferentes, exprimem
pensamentos-f diferentes. A teoria descritivista dos termos gerais explica de
modo contundente a razão dessas diferenças de modo análogo aquele pelo qual a
teoria descritivista fregeana dos termos singulares explicava o enigma da
identidade: é que o termo ‘coração’ abrevia a descrição ‘órgão que bombeia o
sangue’, enquanto o termo ‘rim’ abrevia a descrição ‘órgão que depura o
sangue’. Essas descrições exprimem diferentes sentidos, modos de apresentação,
regras de aplicação constitutivas de conteúdos conceituais, as quais têm
diferentes critérios de aplicação, mesmo que a mesma classe extensional de
objetos a satisfaça. Esses critérios são em um caso o órgão que bombeia o
sangue e no outro caso o órgão que depura o sangue, ambos se encontrando
presentes em cada um dos seres vivos constitutivos da extensão dos respectivos 1 Ver C. Hempel: Philosophy of Natural Science, cap. 7.
373
conceitos, daí resultando que as duas regras de aplicação são satisfeitas por
órgãos diferentes, ainda que ambos presentes em cada ser vivo pertencente a
uma mesma classe.
Problemas com o descritivismo
Tal como aconteceu com a teoria descritivista dos nomes próprios, a teoria
descritivista dos termos gerais foi atacada por Kripke e também por Putnam,
embora com menor sucesso. As objeções costumam ser análogas às que foram
feitas às teorias descritivistas dos nomes próprios. Quero discutir apenas duas
delas: a objeção epistêmica da necessidade indesejada e a objeção semântica da
ignorância e do erro, mostrando que há respostas searleanas a elas.
Comecemos com a objeção de necessidade indesejada. Considerando o
exemplo mais citado, parece que as pessoas entendem geralmente por ‘tigre’
algo que satisfaz à seguinte descrição:
Dt = grande e feroz felino asiático carnívoro e quadrúpede com pelo amarelo, listas escuras transversais e focinho branco.
Segundo a objeção da necessidade indesejada, se a teoria descritivista é
correta, então a proposição “Tigre = Dt” deve ser analítica; ou seja, tigres devem
satisfazer Dt necessariamente. Mas não é isso o que acontece. Afinal, em um
mundo possível poderíamos encontrar animais que satisfazem todas as
propriedades descritas em Dt, mas que não se cruzem com os tigres já
conhecidos possuindo um layout genético que os torne mais próximos dos
répteis do que dos felinos. Além disso, nenhuma propriedade descrita por Dt é
necessária: devido a falhas genéticas há tigres que nascem com cinco patas, há
tigres albinos etc. Pode até mesmo ser que nenhuma das propriedades descritas
por Dt se aplique. Podemos imaginar um mundo possível no qual a evolução
374
acabe por produzir o vexame da espécie: tigres albinos e sem listas, herbívoros,
que andam sobre as patas traseiras e são mansos como gatos. Mesmo assim eles
poderiam ser tigres, digamos, por descenderem dos tigres e por ainda serem
capazes de se entrecruzar com os nossos tigres. Em princípio, ao menos, é
possível encontramos animais que não satisfazem a descrição, mas que são
tigres, e animais que a satisfazem, mas que não são tigres. Assim, diversamente
do que o descritivismo prevê, o termo geral ‘tigre’ não é sinônimo de Dt, e
“Tigre = Dt” não é uma proposição analítica nem necessária.
Podemos responder genericamente à objeção de necessidade indesejável
ampliando o domínio das descrições e admitindo que um número indefinido,
mas suficiente, de elementos descritivos, é o que basta para a aplicação do termo
geral. Restringindo-nos ao exemplo em questão, precisamos ampliar as
descrições para além das descrições de superfície expressas em Dt, estendendo-
as a fatos científicos, históricos e mesmo a eventuais estruturas subjacentes.
Afinal, nem por isso elas deixam de ser descrições. Assim, quando tigres não
têm as características descritas por Dt, basta adicionarmos a regra-descrição
mais usual para a definição de uma espécie, que nada mais é do que a exigência
de que os seus membros sejam entrecruzáveis sem com isso produzirem
descendentes estéreis. Assim, tomando-se como referência exemplares que
satisfazem a descrição de superfície Dt, a condição proposta para qualquer
exemplar pertencer à espécie tigre passa então a ser a de que ele satisfaça à
descrição zoológica Dte, de ser um animal entrecruzável com exemplares que
pertencem ou ao menos descendem das populações de animais que
historicamente foram chamados de tigres por satisfazerem a descrição de
superfície Dt, sem disso resultarem descendentes estéreis.1 Com isso podemos já 1 Não há uma definição única de espécie, reinando confusão entre zoólogos e principalmente botânicos (ver Dupré, J.: The Disorder of Things: Metaphysical Foudations of the Disunity of Science). Contudo, como já notamos, a vaguidade é uma propriedade pervasiva de nossos conceitos empíricos com a qual precisamos conviver. Eis porque, para os nossos propósitos, a caracterizações aproximativa apresentada no texto pode ser aceita como suficientemente
375
explicar a possibilidade da existência de um exemplar que apresente todas as
propriedades descritas por Dt, mas que não é um tigre, pois ele não se cruza com
os demais. E também podemos explicar a existência de exemplares da espécie
tigre que não satisfazem nenhuma das propriedades de Dt. Basta que esses
exemplares sejam entrecruzáveis com animais que ao menos descendam dos que
historicamente possuíam as propriedades descritas por Dt.
Passemos agora a objeção da ignorância e do erro. Muitas vezes nada
sabemos acerca das descrições relevantes, ou então associamos ao termo
descrições errôneas. A maioria de nós, por exemplo, sabe que Olmos são
‘alguma espécie de árvore’, sem ter qualquer idéia de como essas árvores são.
Mesmo assim, ela pode ser capaz de fazer uso correto do termo. Exemplo usual
de associação com uma descrição errônea pode se dar com o termo geral
‘baleia’, ao qual alguns associam a descrição ‘grande peixe do mar’, o que é
estritamente falando incorreto. No entanto, mesmo tendo em mente uma
descrição como ‘grande peixe do mar’, essas pessoas conseguem usar a palavra
de modo a se referir a baleias.
Essas objeções de ignorância ou erro também podem ser respondidas, tal
como no caso dos nomes próprios, pela sugestão de que as descrições associadas
precisam ser ao menos convergentes. A maioria das pessoas só podem usar
corretamente a palavra ‘olmo’ em contextos comunicacionais pouco exigentes,
posto que tudo que elas sabem a respeito é que se trata de uma espécie de
árvore. Mas se a pessoa pensa que olmo é o nome de um duende que só aparece
após a meia-noite, a sua tentativa de inserir a palavra no discurso poderá ficar
seriamente comprometida. Da mesma forma, por saber que a baleia é um animal
grande que vive no mar, uma pessoa já pode usar o termo em contextos
adequados, mesmo supondo erroneamente que ele seja um peixe. Podemos
mesmo admitir que essa pessoa é capaz de usar referencialmente a palavra
correta.376
‘baleia’, entendendo por isso que ela é capaz de inserir essa palavra
corretamente no discurso e ser corretamente entendida por outros que
disponham de conhecimento idêntico ou mais aperfeiçoado do conteúdo
descritivo da palavra. Contudo, isso não seria o caso se ela pensasse que a baleia
é o nome de uma montanha que lhe foi apontada quando viajou à Serra das
Cajazeiras. Parece óbvio que ao confundir um termo geral com um nome
próprio a pessoa não consegue mais fazer um uso referencial do termo.
Como nos casos dos nomes próprios, porém, as razões putativas contra o
descritivismo também aqui são reforçadas por uma versão da teoria causal capaz
de explicar a referência de termos gerais.
A teoria causal dos termos gerais
A teoria causal dos termos gerais sugerida por Kripke, Putnam e outros, é uma
extensão da teoria causal-histórica dos nomes próprios.1 Muitos termos gerais,
especialmente os de espécie natural, são para esses autores designadores rígidos,
referindo-se a uma mesma espécie de coisas em quaisquer mundos possíveis nos
quais ela exista.2 Por isso as descrições associadas aos termos gerais podem
variar e uma descrição como Dt não precisa se aplicar a qualquer caso.
Mas então como os termos gerais se aplicam? A resposta é que ao menos no
caso dos termos de espécies naturais, eles se aplicam por se referirem a uma
propriedade microestrutural subjacente – a uma essência que a ciência empírica
acaba por descobrir. Assim, o termo ‘tigre’ poderia se referir a uma certa
estrutura genética, o termo ‘ouro’ ao elemento de número atômico 79, o termo
1 Há na verdade uma variedade de versões da teoria. Versões standard são as de Kripke em Meaning and Necessity, cap. III e também a de Putnam em “The Meaning of ‘Meaning’”. Uma versão posterior, que apela para a fundamentação múltipla e reconhece a necessidade do apelo a descrições tipificadoras, foi proposta por Kim Sterelny em “Natural Kind Terms”.2 Ver Keith Donnellan: “Kripke and Putnam on Natural Kind Terms”. A espécie de coisa, por sua vez, não precisa ser entendida como uma entidade abstrata, mas como um ou outro indivíduo concreto que exemplifique as propriedades que lhe são constitutivas.
377
água ao composto químico H2O. Com isso as propriedades usualmente
designadas pelas descrições de superfície associadas aos termos gerais passam à
categoria secundária daquilo que Putnam chamou de estereótipos.
E como chegamos a usar corretamente os termos gerais? Aqui também a
resposta costuma apelar para atos de batismo. Por causa do contato com tigres
reais as pessoas inventaram a palavra ‘tigre’. Essa palavra passa de falante para
falante em uma cadeia causal, acabando por chegar até nós. Isso sugere que em
princípio, ao menos, não precisaríamos conhecer as descrições dos estereótipos
associados ao termo, nem tomar consciência da constituição essencial de seu
referente.
Problemas com a teoria causal
Hoje é geralmente reconhecido que a teoria causal dos termos gerais encontra
dificuldades no mínimo tão sérias quanto as do descritivismo.1 Uma primeira é
que há um grande número de exceções. Considere o caso dos artefatos. Não os
explicamos por apelo a uma essência microestrutural subjacente, mas por
descrições de superfície.2 Assim, uma cadeira pode ser descrita como um banco
(um objeto feito para sentar) provido de encosto. E um lápis costuma ser
descrito como “um instrumento manuseável usado para escrever através de uma
ponta de material sólido, não devendo se diferenciar em demasia de certos
exemplares prototípicos bem conhecidos (tubos alongados de madeira contendo
uma vareta de grafite em sua extensão).
Mesmo no caso mais típico, que é o das espécies naturais, há exceções.
Embora seja aceitável que a água seja essencialmente constituída por moléculas
1 Stephen Schwartz: “General Terms and Mass Terms” (2006). Compare essa sua exposição com a esperançosa introdução de Naming, Necessity and Natural Kinds, livro editado por Schwartz trinta anos antes. 2 Ver Stephen P. Schwartz: “Putnam on Artifacts”.
378
de H2O1, o conceito de espécie animal não parece incluir essencialmente o
layout genético, como supõe Kripke. Como já vimos, uma espécie pode ser
razoavelmente definida pela capacidade de entrecruzamento de seus exemplares
segundo fórmulas exprimíveis por descrições de superfície. O compartilhamento
de certo layout genético é um achado empírico posterior à definição. Ainda que
fosse muito estranho, se o layout genético se demonstrasse o mesmo, se não
houvesse entrecruzamento as espécies seriam consideradas distintas. Assim,
embora provido de valor explicativo, o layout genético é aqui um elemento
explicativo derivado e não há qualquer garantia de que ele seja possivelmente
capaz de deixar de sê-lo.
Outra complicação é que o batismo precisa vir acompanhado de algum
elemento descritivo que nos diga de que tipo de coisa se trata (o chamado qua-
problema), uma vez que cada coisa pertence simultaneamente a muitos tipos.2
Assim, se nomearmos um objeto como um exemplar de ‘tigre’ estamos
apontando também para um felino, um mamífero, um animal, um ser vivo, um
objeto físico. Mesmo admitindo que a aplicação do termo geral precise ter uma
ascendência causal, não parece possível que possamos explicar a referência dos
termos gerais prescindindo por completo de descrições de superfície.
1 Essa identificação já foi questionada. Mellor observa que porções de água podem conter isótopos (D.H. Mellor: “Natural Kinds”, p. 72) e Joe LaPorte nota que o deutério ou D2O difere molecularmente muito pouco da água, embora não sirva para beber e possa servir de material para a bomba nuclear (J. LaPorte: “Chemical Kind Terms Reference and the Discovery of the Essence”, pp. 116-121). Quanto a primeira objeção, é preciso notar que isótopos como D2O (água pesada) aparecem em quantidades mínimas na água, de modo que dizer que água não é H2O por conter isótopos é como dizer que o conceito de água também precisa incluir a consideração das impurezas normalmente presentes na água, o que seria absurdo. Melhor é definir a água pela molécula mais comum a uma porção líquida, se ela for de H2O, e definir deutério pela molécula mais comum a uma porção líquida, se ela for de D2O. A objeção de Laporte, por sua vez, apenas demonstra a importância das propriedades de superfície na definição do termo. As propriedades de superfície do deutério são muito diferentes das da água, sendo a expressão ‘água pesada’ apenas um apelido jocoso.2 Devitt M. & K. Sterelny: Language and Reality: An Introduction to the Philosophy of Language, p. 92.
379
Teorias causais-históricas que introduzem um elemento descritivo inevitável
são chamadas de teorias mistas. Se as aceitarmos, porém, parece que estamos
expondo a nova maneira de ver aos mesmos problemas a que ela foi chamada a
resolver.
11. PUTNAM, A TERRA-GÊMEA E A FALÁCIA
EXTERNALISTA
A teoria causal dos termos de espécie natural está intimamante associada ao
externalismo semântico defendido por Hilary Putnam e outros. No que se segue
quero expor e criticar os argumentos externalistas desse autor ao mesmo tempo
que, por oposição, desenvolver uma explicação descritivista neo-fregeana e
internalista do significado do conceito de água, capaz de melhor responder aos
problemas por ele levantados. Para reforçar meu ponto de vista terminarei
fazendo uma rápida crítica ao externalismo de Tyler Burge e à idéia a meu ver
incorreta de que o enunciado “Água é H2O” é necessário e à posteriori.
380
O externalismo semântico de Putnam
Putnam usa como instrumento para demonstra o seu externalismo semântico a
sua famosa fantasia da terra-gêmea.1 Considero essa fantasia
extraordinariamente original, engenhosa, estimulante e indubitavelmente falsa.
Acho mesmo difícil compreender como ela possa ter se afigurado convincente a
várias gerações de filósofos. A meu ver o argumento de Putnam não deve ser
tomado em sua face de valor. Eu o vejo como um exemplo de metafísica
revisionária, como os que encontramos de Berkeley a Bradley e MacTaggart.
Ele pode ser negativamente avaliado, como uma falácia resultante de um 1 Hilary Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’” (1975). O artigo é uma elaboração de “Meaning and Reference”, publicado dois anos antes. Outro famoso argumento de Putnam que favorece o externalismo é o do cérebro na cuba (ver seu livro Reason, Truth and History, cap. 1). Esse último argumento objetiva demonstrar que é falsa a hipótese cética de que talvez sejamos cérebros imersos em cubas, com os agregados neuronais aferentes e eferentes ligados a um supercomputador que produz em nós uma permanente alucinação de interação com o mundo externo. Segundo Kripke cérebros em cubas não podem pensar que são cérebros em cubas, e como podemos pensar que somos cérebros em cubas, não podemos ser cérebros em cubas. Ele sustenta esse argumento na idéia de que cérebros em cubas não podem ter pensamentos sobre coisas reais como água, cuba, cérebro... porque não podem ter qualquer contato causal com essas coisas reais ou com os seus componentes. Devo notar, porém, que o argumento de Putnam é controverso. A idéia a ele subjacente é a de que cérebros na cuba não podem ter pensamentos sobre coisas reais como árvore, água, cuba, cérebro... porque eles não têm nenhum contato causal com essas coisas reais ou com os seus componentes. Para reforçar essa idéia, Putnam imagina um cérebro na cuba que tenha sido gerado por mera coincidência cósmica, sem a existência sequer de programadores que pudessem ter tido contato causal com água, cuba, cérebro... e que pudessem passar essas informações para o programa. Nesse caso, pensa ele, as referências do cérebro na cuba seriam tão ilusórias quanto a palavra Churchill casualmente escrita por uma formiga ao andar na areia... Como nós temos pensamentos sobre árvores, água, cérebros, cubas, então não podemos ser cérebros em cubas. A objeção básica a ser feita ao argumento é que nele Putnam ignora a plasticidade da linguagem. Afinal, por que em um cérebro na cuba, mesmo naquele gerado por acaso cósmico, as representações de árvores, água, cérebros não podem ser de fato causadas por estímulos que sejam, digamos, meras imagens eletrônicas de árvores, água, cérebros, acessadas pelo cérebro na cuba em meio a uma práxis lingüística intersubjetiva também ela meramente ficcional? Por que não pode haver uma geração causal de representações a partir dessas imagens, que seja similar à geração causal de representações a partir das próprias coisas realmente pertencentes ao mundo real? Sob essa perspectiva não há nada de compelente no argumento.
381
entendimento sistematicamente inadequado e no final das contas perverso dos
significados que os termos ganham em seus usos ordinários, reclamando uma
terapia à lá Wittgenstein. Mas ele também pode ser positivamente avaliado,
como um desafio dialeticamente importante, posto que (como Wittgenstein
também diria) é pela dissolução das tensões causadas por ilusões profundas que
costuma advir um avanço em nossa compreensão das questões filosóficas.
Vale lembrar que esse suposto entendimento perverso de nuances nos
sentidos ordinários das palavras seria aqui originado pelo que podemos chamar
(seguindo Searle e Strawson) de cientismo, que no caso aparece como uma
tentativa de imitar em filosofia da linguagem o que acontece em ciências como a
física ou a matemática, nas quais têm sido feitas descobertas desconcertantes,
que parecem contradizer frontalmente nossas intuições de senso comum1. O
problema é que essas ciências produzem descobertas contra-intuitivas em
domínios muito distantes de nossa experiência cotidiana, enquanto a filosofia da
linguagem pretende analisar conceitos que todos nós continuamente usamos,
como os de referência, significado, verdade... sendo nesse terreno muito difícil
ser espetacular sem ser falacioso.
No que se segue pretendo começar fazendo uma crítica sistemática ao
argumento de Putnam. Essa crítica mostrará que uma abordagem cognitivista-
descritivista neo-fregeana é capaz de resolver com vantagens os problemas por
ele colocados. Depois disso pretendo fazer uma análise neo-descritivista
aprofundada do conceito de ‘água’ envolvido na fantasia de Putnam, explicando
em algum detalhe como as coisas realmente acontecem. Essa explicação
mostrará que mesmo contendo insights importantes, se tomado em sua face de
valor, o externalismo semântico por ele proposto é indefensável.
1 Como observa Putnam no início de “The Meaning of ‘Meaning’”: “De fato a conclusão de nossa discussão será que os significados não existem exatamente como pensamos que existem. Mas elétrons também não existem da maneira que Bohr pensou que existiam”. (p. 3)
382
Desconstruindo o argumento da terra-gêmea
Vejamos agora o argumento da terra-gêmea.
Exposição: Putnam começa considerando duas teses: (I) o significado (intenção,
sentido) determina a extensão, (II) os estados psicológicos (de entendimento)
fixam o significado. As duas teses devem ser aceitas pelo descritivismo
tradicional. Mesmo que se acredite (como Frege e Carnap) que o significado
seja uma entidade abstrata, é preciso admitir que nós apreendemos
psicologicamente o significado, devendo uma diferença no significado
corresponder a uma diferença no estado psicológico de quem o apreende. A
consequência da aceitação de (I) e (II) é que devemos assumir que estados
psicológicos fixam significados, os quais por sua vez determinam as suas
referências.
O que a fantasia da terra-gêmea demonstra, porém, é que um mesmo termo
pode ter extensões diferentes, mesmo quando os estados psicológicos são
exatamente os mesmos. Assim, uma das duas teses deve estar errada. A solução
de Putnam é rejeitar a tese (II): estados psicológicos não fixam o significado. E
isso acontece porque o significado não está, no essencial, em nossas cabeças,
mas no próprio mundo externo, no domínio da própria referência. Quanto à tese
(I), ela pode ser mantida: o significado determina a extensão, mesmo que de
modo não-fregeano, como veremos, pela seleção demonstrativa de exemplares
que paradigmaticamente satisfazem as propriedades de superfície constitutivas
do estereótipo.
Para chegar a essa conclusão Putnam imagina um planeta que ele chama de
terra-gêmea, no qual tudo existe e acontece tal como na terra, exceto pelo fato de
que os seus rios, lagos e mares, estão cheios de um líquido que em condições
normais de temperatura e pressão é indistinguível da água, saciando a sede
quando bebido, caindo sob a forma de chuva etc., diferindo da água apenas pelo
fato de que a sua composição química não é H2O, mas algo muito diverso, que 383
pode ser abreviado como XYZ.1 Imagine então que uma nave espacial da terra
visite a terra-gêmea. A princípio os astronautas pensarão que ‘água’ tem o
mesmo significado (meaning) na terra e na terra-gêmea. Mas, observa Putnam
Se uma espaçonave da terra visita a terra gêmea, então a suposição inicial será de que ‘água’ tem o mesmo sentido (meaning). Essa suposição será corrigida quando for descoberto que ‘água’ na terra-gêmea é XYZ, e que a espaçonave da terra irá reportar algo como “Na terra-gêmea a palavra ‘água’ quer dizer (means) XYZ”. (...) Simetricamente (...) a espaçonave da terra-gêmea ira reportar: “Na terra a palavra ‘água’ quer dizer (means) H2O”.2
O que Putnam está querendo introduzir é a sugestão de que em tal caso a
palavra ‘água’ quer dizer ou significa duas coisas. Na terra ela significa (means)
água-t, uma vez que diz respeito à extensão do composto H2O, enquanto na
terra-gêmea ela significa (means) água-g, posto que diz respeito à extensão do
composto XYZ. Putnam interpreta a sua fantasia como tendo demonstrado que a
palavra ‘água’ tem e de fato sempre teve esses dois significados,
independentemente do que possa passar ou ter passado pela cabeça dos
habitantes da terra ou da terra-gêmea, devendo-se essa diferença de significado à
constituição essencial do líquido apontado com o nome de ‘água’ em cada
planeta. O que a palavra quer dizer (means) independe do que passa pelas
cabeças das pessoas que usam o termo, sendo externamente determinado por sua
referência.
1 Vários filósofos notaram que não parece nomologicamente possível que um líquido com as mesmas propriedades da água tenha uma fórmula química muito diversa. Mas não é necessário à fantasia de Putnam que todas as propriedades superficiais de H2O e XYZ sejam idênticas. Afora isso, podemos substituir a palavra ‘água’ pelo nome de pedras preciosas como topázio e citrino, que são aparentemente iguais, mas que possuem fórmula química muito diversa (ver Gabriel Segal: A Slim Book About Narrow Content, pp. 25-26).2 Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’”, p. 223.
384
Comentário: Já agora, ante essas considerações iniciais de Putnam, quero
introduzir minha objeção central, baseada em uma análise de nossos usos
ordinários das palavras. Penso que na base do que Putnam procura fazer há uma
sutil confusão entre o nível do sentido/significado-intensão e o nível da
referência-extensão.1 A palavra ‘mean’, usada por Putnam em inglês, assim
como seus correspondentes “Bedeutung’, ‘significado’ e ‘querer dizer’, possuem
uma espécie enganadora de ambigüidade, já referida em nossa discussão da
origem da distinção fregeana entre Sinn e Bedeutung na introdução desse livro.
Como havíamos notado, normalmente e em seu sentido próprio e relevante, a
palavra ‘significado’ tem um uso semântico intralingüístico, que é o de indicar o
“conteúdo semântico de um signo lingüístico, acepção, sentido, significação,
conceito, noção” (Houaiss), a saber, o sentido convencionalmente fundado da
expressão a que se reporta. Esse sentido intralingüístico, que inclui o sentido
(Sinn) fregeano, é o único sentido importante da palavra ‘significado’ na
linguagem, o sentido próprio da palavra. Ele é exemplificado em proferimentos
como
(a-i) A palavra ‘cadeira’ significa banco com encosto. (a-ii) A frase “O gato pegou o rato” significa o mesmo que a frase “O rato foi pego pelo gato”.
Mas a palavra ‘significa’ (assim como ‘means’ e ‘Bedeutet’) também pode
ser usada como uma maneira lingüística de apontar para a referência (a entidade
referida), no que já chamei de seu uso referencial intralingüístico. Como já
vimos, etimologicamente a palavra ‘significado’ vem do latim ‘significare’, que
quer dizer “dar a entender por sinais, indicar, mostrar, dar a conhecer, fazer
compreender” (no inglês ‘mean’ também significa ‘to convey, show or indicate’
1 Putnam chega a divisar a dificuldade quando, em um longo parênteses, tenta explicar porque a palavra ‘mean’ não pode ser substituida por ‘the meaning of’ nas frases citadas.
385
e no alemão ‘bedeutet’ também significa ‘heisst, bezeichnet’). Nesse uso
estendido da palavra, ‘significar’ ou ‘querer dizer’ são sinônimos de ‘indicar’,
‘designar’ e ‘referir’, podendo ser facilmente, ainda que inapropriadamente,
extrapolados de modo a designar aquilo mesmo que é indicado, o designatum, a
referência. É nesse uso referencial que a palavra ‘significa’ e a expressão ‘quer
dizer’ aparecem em proferimentos demonstrativos como
(b-i) A palavra ’cadeira’ significa (means) coisas como aquilo ali.(b-ii) A frase “o gato foi pro mato” quer dizer (means) que o gato foi pro mato.
A frase (b-i) é aceitável quando usada por um adulto para explicar a uma
criança o significado de palavras como ‘cadeira’, enquanto a frase (b-ii) expõe a
relação entre uma frase e o fato correspondente.
Como já vimos nos capítulos iniciais, a proximidade semântica do verbo
‘significar’ em seu uso referencial com a palavra ‘referência’ está ligada à
concepção referencialista do significado. O erro dessa concepção consiste em
transformar proximidade semântica em promiscuidade semântica, confundindo
significado com referência ou extensão. Como também sugerimos no capítulo 3,
há ecos dessa teoria no próprio Frege, quando ele decidiu usar a palavra
‘Bedeutung’ no sentido técnico de ‘referência’, ao substantivar o verbo
‘bedeuten’, usado no sentido de ‘referir’, como ‘Bedeutung’, entendido como a
referência.
Também notamos que a palavra ‘sentido’ (assim como o equivalente inglês
‘sense’ e o equivalente alemão ‘Sinn’) resiste a essa ambigüidade: ela possui
apenas um uso semântico intralingüístico, indicando os sentidos
convencionalmente fundados das expressões a que se reporta. Assim, no
dicionário Houaiss ‘sentido’ significa simplesmente ‘cada um dos significados
de uma palavra ou locução’. Por isso, ao usarmos as palavras ‘significado’ e 386
‘querer dizer’ de modo intralingüístico podemos facilmente substituí-las pela
palavra ‘sentido’, enquanto o mesmo não é possível quando essas palavras
ganham usos referenciais. Posso dizer, por exemplo:
(a-i’) O sentido da palavra ‘cadeira’ é o de ‘banco com encosto’. (a-ii’) O sentido da frase ‘O gato pegou o rato’ é o mesmo que o da frase ‘O rato foi pego pelo gato’.
Pois a palavra ‘significado’ em (a-i) e (a-ii) tem um uso semântico
intralingüístico. Mas soa muito estranho dizer
(b-i’) A palavra ‘cadeira’ tem o sentido de coisas como aquilo ali. (b-ii’) O sentido da frase “O gato foi pro mato” é que o gato foi pro mato.
uma vez que a palavra ‘significado’ em (b-i) e (b-ii) tem uso referencial
extralingüístico. Essa estranheza na substituição se repete com os equivalentes
da palavra ‘sentido’ em outras línguas, como o ‘sense’ no inglês, o ‘Sinn’ no
alemão e o ‘sens’ no francês. Podemos resumir as considerações feitas até aqui
no seguinte quadro:
Sentido uso semântico xxx (Sinn, sense) intralingüístico
Significado uso semântico uso referencial (Bedeutung, meaning) extralingüístico extralingüístico
Pois bem. Minha sugestão é a de que Putnam joga com essa ambigüidade da
palavra ‘significa’ (means), entendendo o uso referencial estralinguístico
secundário da palavra, no qual ela é mero sinônimo de ‘se refere a’ ou ‘denota’,
387
como se fosse uma continuação apropriada do seu próprio uso intralingüístico.
Quando o astronauta diz
(c) Na terra-gêmea a palavra ‘água’ significa (means) e sempre significou (meant) XYZ,
ele está usando a palavra ‘significa’ no sentido inócuo de ‘se refere a’, e o que
ele quer dizer é simplesmente que na terra-gêmea a palavra ‘água’ denota e
sempre denotou XYZ. Mas isso não é nenhuma descoberta espetacular! A
palavra ‘água’ obviamente se refere a XYZ na terra-gêmea, posto que nesse
planeta o objeto da referência é e sempre foi esse mesmo stoff extralingüístico. E
não há nada de especial nisso, posto que por definição a referência ou denotação
é alguma coisa extra-lingüística, em nada dependendo de estados psicológicos
ou cerebrais. Assim, ao desconsiderar a ambigüidade da palavra ‘significa’
(mean) absorvendo a referência no significado, Putnam produz um equívoco
sutil. Ele quer nos fazer crer que existe algum sentido referencial ou extensional
da palavra ‘significado’ (meaning) a ser resgatado; mas esse sentido é uma
persistente quimera filosófica, a mesma que motivou o referencialismo
semântico. Essa impossibilidade demonstra-se quando substituímos em (c) a
palavra ‘significa’ pela expressão ‘tem o sentido de’. Nesse caso temos:
(c’) Na Terra-gêmea a palavra ‘água’ tem e sempre teve o sentido (sense) de XYZ,
o que soa claramente insatisfatório, posto que antes da descoberta da fórmula
química a palavra não tinha esse sentido (sense). Com efeito, a substituição de
(c) por (c’) é um caso similar ao da substituição das expressões do grupo (b)
pelas do grupo (b’), substituições que sugerem a inexistência de um uso
388
referencial da palavra ‘significado’ capaz de preservar qualquer coisa do sentido
próprio da palavra, o sentido no qual ela é sinônima da palavra ‘sentido’.
Exposição: Em continuação, Putnam repete o argumento de um modo mais
elaborado e eficaz ao situar a aplicação do termo ‘água’ em 1750, quando a sua
estrutura atômica ainda era desconhecida. Imagine que por essa época o Oscar-1
da Terra diga algo como “Isso é água”, referindo-se ao líquido inodoro, insípido
e transparente que vê num copo, o qual realmente contém H2O. Quando isso
acontece, o seu Doppelgänger na terra-gêmea, Oscar-2, também diz “Isso é
água” apontando para um copo contendo XYZ. Os estados psicológicos (e
cerebrais) de Oscar-1 e de Oscar-2 são absolutamente idênticos. Ambos têm as
mesmas cognições. Mesmo assim, pensa Putnam, Oscar-1 está se referindo a
H2O, enquanto Oscar-2 está se referindo a XYZ. (Afinal, o que causa a
experiência perceptual de Oscar-1 na terra é H2O, enquanto o que causa a
experiência perceptual de Oscar-2 na terra-gêmea é XYZ.) Até aqui tudo é
perfeitamente plausível. Mas a conclusão que Putnam tira dessas constatações é
um surpreendente murro em nossas intuições semânticas:
Oscar-1 e Oscar-2 entenderam o termo ‘água’ diferentemente em 1750, embora eles estivessem no mesmo estado psicológico, e embora, dado o estado de desenvolvimento da ciência da época, a comunidade científica devesse levar ainda cerca de 50 anos para descobrir que eles entenderam o termo ‘água’ diferentemente. Assim, a extensão do termo ‘água’ (e, de fato, o seu ‘significado’ no uso pré-analítico intuitivo do termo) não é função do estado psicológico do falante. (grifos meus)1
Em outras palavras: primeiro Putnam constata que a referência e a extensão
da palavra ‘água’ usada por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750 eram diferentes, pois
um se referia ao líquido H2O encontrado na terra, enquanto o outro se referia ao 1 Hilary Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’”, in H. Putnam: Mind, Language and Reality, p. 224.
389
líquido XYZ da terra-gêmea. Ora, se as referências e extensões eram diferentes,
pensa ele, então os significados, determinadores dessas referências e extensões –
também eram diferentes. Ora, como os estados psicológicos de Oscar-1 e Oscar-
2 eram idênticos, então os significados, sendo diferentes, não poderiam se
encontrar em suas cabeças!
Posteriormente, sob as influêcias de Tyler Burge e de John McDowell,
Putnam ampliou as conclusões de sua surpreendente descoberta: não só
significados e entendimentos, mas também estados mentais (pensamento,
crenças, intenções) e mesmo as próprias mentes, em um sentido amplo,
encontram-se fora de nossas cabeças.1 Considero essas ampliações um reductio
ad absurdum da tese original.
Comentário: Podemos responder mostrando que há uma interpretação
descritivista ou neo-fregeana mais completa para o que Putnam nos conta. Para
tornar isso claro, considere a pergunta: qual a referência e a extensão da palavra
‘água’, quando usada por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750? Duas respostas
conflitantes parecem intuitivamente aceitáveis, produzindo um dilema
amplamente discutido na literatura a respeito:
(a) A primeira resposta intuitivamente aceitável (que costuma ser a escolhida
por críticos fregeanos) é a de que a referência e a extensão eram as mesmas.
Como os Oscares tinham em mente o mesmo líquido transparente e inodoro... a
palavra ‘água’ no caso cobriria tanto a água da terra quanto a da terra-gêmea.
Afinal, se os dois Óscares pudessem na época se encontrar sem ter ganho
nenhum conhecimento da estrutura molecular dos compostos apontados, eles
certamente concordariam que estavam se referindo a mesma coisa, e que a
extensão do conceito de água abrange tanto a água da terra quanto a da terra-1 Ver introdução de Putnam em A. Pessin e G. Goldberg: The Twin Earth Chronicles, p. xviii. Ver também Tyler Burge: “Individualism and the Mental” e McDowell: “Putnam on Mind and Meaning”.
390
gêmea. Mesmo após se ter descoberto a diferença na estrutura química da água
da terra e da água da terra-gêmea, é possível dizer que a referência e a extensão
são as mesmas, pois se trata de uma mesma coisa perceptível que, dependendo
do lugar no qual é encontrada, é diferentemente constituida. Essa mesma coisa
perceptível possui inclusive as mesmas virtualidades causais ao produzir os
mesmos estados mentais nos Oscares.
(b) A segunda resposta intuitivamente aceitável (a defendida por Putnam) é a
de que os Oscares estavam se referindo a coisas diferentes com extensões
diferentes. Oscar-1 estava se referindo a um composto cuja estrutura é H2O e
cuja extensão não inclui a água da terra-gêmea. Já Oscar-2 estava apontando
para um composto cuja estrutura é XYZ e cuja extensão se limita ao líquido
transparente e inodoro da terra-gêmea. Idênticos estados mentais são causados
por líquidos de estrutura química muito diferente. Com efeito, se os dois Oscares
pudessem ser trazidos pela máquina do tempo até nossa época e aprendessem
um pouco de química, eles concordariam com a nossa afirmação de que eles
estavam se referindo a substâncias diferentes com extensões diferentes...
A interpretação de Putnam dá conta da intuição que conduz à segunda
resposta, rejeitando a primeira. Já a interpretação descritivista tradicional (que
reduz o sentido da palavra água à descrição ‘líquido transparente inodoro etc.’)
dá conta da primeira intuição, mas não da segunda. Contudo, quero a seguir
mostrar como uma interpretação descritivista algo mais sofisticada é capaz de
dar conta das duas intuições conflitantes, ao fazê-las resultar de dois parâmetros
diferentes de avaliação do elemento referencial. Isso será possível porque, sendo
a referência e a extensão pertencentes à realidade extra-lingüística, elas podem
ser determinadas sob diferentes perspectivas, na dependência do sujeito
epistêmico que as considera e do sentido epistêmico através do qual esse sujeito
tem acesso a ela.
391
Vejamos como a interpretação descritivista minimamente sofisticada explica
a primeira resposta. Ela segue a intuição de que as referências e extensões
consideradas pelos Oscares em 1750 eram as mesmas. Essa primeira intuição se
explica quando tomamos como parâmetro de avaliação do elemento referencial a
sua determinação pelos sentidos dados pelos Oscares à palavra ‘água’ em 1750.
Com efeito, se considerarmos que eles tinham em suas cabeças os mesmos
estados psicológicos, e que por conseguinte os sentidos que eles davam à
palavra ‘água’ eram os mesmos, a saber, algo como ‘líquido transparente,
inodoro e insípido... de substrato químico desconhecido’, como o sentido
determina a referência, as referências só poderiam ser de um mesmo tipo, sendo
a extensão da palavra ‘água’ a mesma, cobrindo tanto o líquido transparente e
inodoro da terra quanto o da terra-gêmea. Obviamente, tudo isso é compatível
com a idéia de que os significados estão em nossas cabeças: os estados
psicológico-neuronais de Oscar-1 e Oscar-2 são iguais e por isso os sentidos que
eles dão à palavra ‘água’ são iguais e por isso o tipo de referência é o mesmo,
assim como a extensão.
Mesmo para nós hoje, se preferirmos considerar o significado da palavra
‘água’ em termos de uma mera descrição de propriedades superficiais. Tal
sugestão não é contra-intuitiva1; nós diremos então que os Oscares estavam se
referindo a mesma coisa com a mesma extensão, e nós também, e o que eles
tinham e nós temos na cabeça era a mesma coisa, o mesmo líquido inodoro etc.
Tudo aqui é bem fregeano: o sentido pensado determina a extensão.
Vejamos agora como seria a interpretação descritivista da segunda intuição,
segundo a qual em 1750 os Oscares, mesmo tendo os mesmos estados
psicológicos e cerebrais, estavam se referindo a coisas diferentes, com extensões
diferentes. A interpretação descritivista que quero propor é bastante intuitiva e
evidente, embora pareça ter passado desapercebida dos críticos de Putnam. Para
1 Ver, por exemplo, Avrum Stroll: Twentieth Century Analytic Philosophy, p. 241392
chegar a ela devemos primeiro notar que não há nada que nos impeça de
entender fórmulas como H2O e XYZ em termos de descrições, sentidos, modos
de apresentação fregeanos. Melhor dizendo, podemos sugerir que o termo
‘água’ entendido como ‘água-t’ inclui em seu sentido a descrição ‘volume
líquido de estrutura molecular H2O’, enquanto o mesmo termo entendido como
‘água-g’ inclui em seu sentido a descrição ‘volume líquido de estrutura
molecular XYZ’. Afinal, não há razão alguma para, enquanto descritivistas,
restringirmos os sentidos dos termos gerais a descrições de superfície, a
estereótipos. Uma vez estabelecido isso, devemos chamar atenção para o fato de
que, como os elementos de referência e extensão se encontram no mundo
externo, não tendo nada a ver com o que possa ter passado pelas mentes dos
Oscares, nós implicitamente e naturalmente tomamos como parâmentros de
avaliação desses elementos referenciais, não o que possa ter sido intencionado
pelos Oscares em 1750, mas o que nós mesmos hoje temos em mente com a
palavra ‘água’. Ou seja: nós consideramos a questão da referência e extensão
sob nossos próprios parâmetros ou critérios de sentido, isto é, sob a perspectiva
de sujeitos epistêmicos que (na estória imaginada) sabem que a água da terra é
descrita como possuindo a estrutura química H2O, enquanto que a água da terra-
gêmea é descrita como possuindo a estrutura química XYZ. Claro que nesse
caso nós diremos que o tipo de referência e a extensão da palavra ‘água’ usada
por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750 eram diferentes; afinal, Oscar-1 estava
apontando para H2O, cuja extensão não inclui a XYZ da terra-gêmea, o que vale
mutatis mutandis para Oscar-2. Para chegarmos a isso, contudo, precisamos
projetar os nossos próprios modos de apresentação descritivos da natureza da
água nas circunstâncias indexicais dos proferimentos dos Oscares em 1750.
Melhor dizendo, o que fazemos é usar os proferimentos dos Oscares como
instrumntos indexicais para uma determinação da referência que é feita através
de nossos próprios sentidos descritivos instanciados em nossos própios estados 393
psicológico-cerebrais, os quais são, como seria de se esperar, diferentes para
cada caso, disso resultando a determinação de referências e extensões diferentes.
Como, quando consideramos “Isso é água” ditos por Oscar-1 e por Oscar-2
associamos a palavra ‘água’ a sentidos diferentes na determinação de referências
e extensões diferentes, e como esses sentidos ou significados diferentes estão em
nossas próprias cabeças e não nas cabeças dos Óscares, eles são perfeitamente
compatíveis com os diferentes estados psicológicos que realmente temos, posto
que eles nada tem a ver com os estados psicológicos idênticos dos Oscares de
1750. Nada nos força, pois, à idéia de que os significados estão fora das cabeças.
Mesmo no caso em que os Oscares viessem até nós pela máquina do tempo e,
tendo aprendido um pouco de química, pudessem concluir que em 1750 eles
estavam usando a palavra ‘água’ para se referir a coisas diferentes com
extensões diferentes, eles estariam usando nossos próprios sentidos estendidos
diversos da palavra ‘água’ como ‘água-t’ e ‘água-g’, envolvendo estados
psicológico-cerebrais diversos, na determinação projetiva das referências e
extensões diversas apontadas por eles mesmos como seus próprios instrumentos
indexicais em 1750. Note-se que isso só é possível porque referência e extensão
são entidades extralingüísticas e extramentais, sendo apenas em sua apreensão
determinadas pelo sentido (psicologicamente instanciado) expresso pela palavra,
o qual pode variar com a informação acessível ao sujeito epistêmico.
A dupla resposta neo-fregeana é baseada na idéia de que estados mentais
fixam o sentido ou significado, o qual determina a referência. Essa maneira mais
refinada de entender e explicar o descritivismo resolve o dilema, pois explica a
duplicidade de nossas próprias intuições sobre a referência e a extensão da
palavra ‘água’ dita pelos Óscares, o que a explicação de Putnam é incapaz de
fazer.
E quanto ao significado (meaning)? Como é possível que em 1750 Oscar-1 e
Oscar-2 possam ter querido dizer, entendido coisas diferentes com a palavra 394
‘água’, como sugere Putnam? A resposta é que aqui outra vez adentramos o
terreno da pura confusão lingüística. Em um uso semântico intralinguistico da
palavra ‘significado’ devemos concordar que Oscar-1 e Oscar-2 atribuíam
exatamente os mesmos significados – os mesmos sentidos – à palavra ‘água’ em
1750, e que por isso mesmo eles tinham exatamente os mesmos estados
psicológicos e neurofisiológicos correspondentes. Mas quando fazemos um uso
referencial extralinguistico da palavra ‘significado’, ela não indica outra coisa
senão o ato de referir, de apontar, ou mesmo aquilo que é referido, apontado,
nomeadamente, a própria referência. É com base nisso que Putnam tem sucesso
em sugerir que Oscar-1 significou (meant) algo diferente de Oscar-2 com a
palavra ‘água’. Mas tudo o que ele pode querer dizer com isso é que a referência
e a extensão do que eles estavam apontando será diferente se considerada sob a
perspectiva de outros sujeitos epistêmicos – nós mesmos – os quais conhecem a
diferença de estrutura química entre a água da terra e da terra-gêmea, dando por
isso sentidos-significados diferentes à palavra num e noutro caso de sua
aplicação. Tudo aqui é fregeano: temos em mente sentidos diversos para o que
Oscar-1 e Oscar-2 apontam e através disso determinamos referências e
extensões diferentes para aquilo que eles disseram.
Exposição: No último passo de seu argumento Putnam começa considerando a
objeção de que o termo ‘água’ teria tido em 1750 uma extensão diversa da
extensão que ele passou a ter em 1950 (em ambas as terras). Essa objeção ele
considera errônea: se apontamos para um copo D’água e dizemos “Isso é água”,
escreve ele, estamos apontando para uma identidade-l (sameness-l) do líquido
em questão com a maior parte do stuff que nós e nossa comunidade lingüística
em outras ocasiões chamamos de água, devendo ser a natureza desse stuff
determinada por testes de senso comum ou pela ciência. Assim, se apontamos
para um copo de gim pensando que é água, alguns poucos testes mostrarão que 395
ele não tem a identidade-l com o restante do stuff que chamamos de água. Além
disso, nota ele, a identidade-l é uma relação teorética que pode ser sempre
derrotada (defeated) por uma nova concepção do que ela seja, que resulte da
investigação científica.
Putnam prossegue notando que a palavra ‘água’ não mudou o seu significado
de 1750 para cá, posto que a relação de identidade-l sempre foi a mesma. Ou
seja: o significado da palavra deve ser atrelado à relação de identidade-l com a
essência do que é apontado,, mesmo que esta ainda não tenha sido descoberta.
Por isso, não só a extensão e a referência, mas também aquilo que chamamos de
significado, o que se quer dizer, e mesmo o entendimento da palavra ‘água’ nos
proferimentos de Oscar-1 e de Oscar-2, se tornam para Putnam diferentes,
mesmo que eles tenham ocorrido em 1750, quando não era possível ter acesso
experiencial às propriedades microestruturais da água. Ora, como os estados
psicológicos (e cerebrais) de Oscar-1 e de Oscar-2 eram exatamente os mesmos,
o conteúdo semântico precisa ir além desses estados, sendo mais uma vez
forçoso reconhecer que os significados, os entendimentos etc. de Oscar-1 e de
Oscar-2, naquilo que é relevante para a determinação da referência e extensão,
não se encontram em suas cabeças, mas no mundo, a saber, nos fatores causais
diferentes que produziram a mesma experiência cognitivo-perceptual. É a
própria presença causal externa de substratos diferentes – H2O na terra e XYZ
na terra-gêmea – que produz a diferença nos conteúdos semânticos. Ou ainda, na
conclusão triunfante de Putnam: “divida-se o bolo como quiser, os significados
simplesmente não estão na cabeça”.1
1 John Searle rejeitou essa conclusão sugerindo que mesmo sendo os estados psicológicos de Oscar-1 e Oscar-2 idênticos, eles determinam diferentes condições de satisfação e diferentes conteúdos intencionais, os quais são internos e intrínsecos aos estados psicológicos. Mas como é implausível a idéia de que um mesmo estado psicológico possa ter conteúdos diferentes, essa resposta acaba trazendo mais lenha para a fogueira do externalismo. Ver J. Searle, Intentionality, pp. 206-7. Ver a resposta de Putnam na introdução de A. Pessin, e S. Goldberg (eds.): The Twin Earth Chronicles: Twenty Years of Reflexion on Hilary Putnam’s ‘The Meaning of ‘Meaning’”.
396
Comentário: Contra essa resposta podemos objetar que a noção de identidade-l,
tal como é usada por Putnam, nada tem a ver com o significado no sentido
próprio, do uso semântico intra-lingüístico – o sentido de sentido (Sinn) – o
único relevante, e que introduzir essa identidade para esclarecer o significado é
cair na mesma confusão de pensar que o uso referencial de palavras como
‘significar’ e ‘querer dizer’ tem a ver com o significado em qualquer sentido
relevante do termo.
É verdade que, como Putnam observou, embora em 1750 os Oscares não
pudessem conhecer a essência microestrutural subjacente ao que estavam
chamando de ‘água’, eles já dispunham (caso não fossem totalmente incultos) da
idéia de uma essência subjacente e de uma identidade-l microestrutural ainda
desconhecida. Mas o que dizer dos Oscares das cavernas, há 20.000 anos atrás?
Será que ao dizerem “Vamos procurar água” eles estariam querendo se referir a
alguma essência microestrutural subjacente desconhecida? Creio (muito
firmemente) que não. É claro que podemos dizer que mesmo nos casos dos
Oscares das cavernas, as referências ou extensões sempre foram diversas, uma
vez que se trata de coisas extralingüísticas: uma era a referência e extensão de
H2O, outra a de XYZ. Mas determinamos isso através de diferentes estados
psicológicos nossos, os quais instanciam sentidos descritivos diferentes, os quais
determinam, ao modo fregeano, referências e extensões diferentes. Repetindo o
que disse, claro que aquilo que fazemos é projetar nos proferimentos dos
Oscares nossas próprias instanciações cognitivas de sentidos diversos, usando
esses proferimentos como instrumentos indexicais para a determinação das
referências diversas através dos nossos próprios sentidos diversos. Para fazer
valer o que pensa, Putnam teria de sustentar que os Oscares das cavernas teriam
de dar diferentes sentidos à palavra água e até mesmo entendê-la de modo
diverso, o que não é assim tão implausível para quem acredita que os 397
pensamentos e as próprias mentes dos Oscares não estavam em suas cabeças
quando eles realizaram esses proferimentos.
Exposição: No final de seu artigo Putnam resume e qualifica mais claramente a
sua posição. Ele admite que descrições de superfície desempenhem algum papel
na constituição do significado de termos como os de espécies naturais. O
significado passa a ser constituído por quatro componentes: marcadores (i)
sintáticos e (ii) semânticos, que no caso da palavra ‘água’ são respectivamente
um nome de massa concreto e o nome de uma espécie natural (líquido). Depois
há (iii) o que ele chama de estereótipos, que já vimos serem as descrições de
superfície, no caso da água, o líquido transparente, insípido, inodoro etc. Ele
admite que tanto marcadores quanto estereótipos fazem parte da competência do
falante e têm instanciação psicológica. Contudo, o componente mais importante
do significado, aquele que determina a referência e a extensão, não é
psicológico, mas externo. Ele é o sentido extensional, a própria extensão, que no
caso da água é determinada pelos volumes líquidos que compartilham da mesma
constituição essencial de H2O. Embora possamos descrever esse componente
através da linguagem, ele deve ser entendido como “a extensão em si mesma
(conjunto), e não como uma descrição da extensão”.1 O significado como
extensão torna-se assim o que determina a referência.
Comentário: Contra nossa análise, um defensor de Putnam poderia argumentar
que o uso referencial extralingüístico da palavra ‘significado’ tem uma razão de
ser, que é exatamente a de apontar para a grande descoberta de Putnam, que foi
a do “significado referencial”, do significado extensional que está fora da
cabeça.
1 Hilary Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’”, p. 270.398
Contudo, as lacunas explicativas na teoria de Putnam tornam mais plausível a
admissão de que ele procede realmente uma enganosamente sutil inversão dos
valores semânticos. Ele quer nos convencer que o uso referencial da palavra
‘significado’ é que é fundamental, enquanto o uso semântico é parasitário,
dizendo respeito somente aos estereótipos etc. Não obstante, pelas razões já
aduzidas, parece claro que o sentido relevante da palavra ‘significado’ é dado
por sua função semântica de reportar um conteúdo convencionalmente fundado,
enquanto o uso referencial extralingüístico da palavra é apenas uma extensão
indébita, posto que na verdade não tem mais nada a ver com o significado, mas
só com a referência. Em tal sentido dizer que o significado está fora da cabeça
torna-se inofensivo, pois redunda na trivialidade de dizer que a referência está
fora da cabeça.
Análise neo-descritivista do significado da palavra ‘água’
Quero passar agora à segunda parte de meu argumento, que consiste em
desenvolver uma explicação descritivista suficientemente sofisticada para a
fantasia da terra-gêmea. Quero mostrar que essa explicação deve ser preferida
por acomodar melhor nossas intuições semânticas e por possuir maior poder
explicativo do que a de Putnam.
Quero começar expondo a maneira como um filósofo descritivista refinado,
disposto a ignorar todo o maquinário de argumentos externalistas, analisaria a
estrutura e o funcionamento do conceito de água. Depois disso irei opor esses
resultados ao argumento de Putnam, o que espero servir como golpe de
misericórdia.
O que o nosso descritivista refinado diria? Primeiro, ele não consideraria
marcadores sintáticos e semânticos como fazendo parte significativa do
significado. Que ‘água’, por exemplo, seja um nome de massa, e que esse nome
designe uma espécie natural, isso já lhe outorga uma função classificatória. Essa 399
regra classificatória, contudo, não é capaz de individuar o uso da palavra. Afinal,
‘ouro’ e ‘oxigênio’ também são termos de massa que designam espécies
naturais. E uma determinação semântica incapaz de diferenciar água de ouro ou
de oxigênio deve ser bem pouco útil como componente constitutivo do
significado da palavra ‘água’. A regra semântica que realmente interessa é
sempre aquela capaz de individuar o uso da palavra, distinguindo-o dos usos de
outras palavras da mesma espécie.
Mas o que nosso filósofo diria das descrições que formam o estereótipo?
Penso que ele poderia razoavelmente admitir que o significado do termo geral
‘água’ é pelo menos em parte dado por um feixe cumulativo de regras-
descrições. Mas também aqui esse feixe não é desorganizado. Ele se constitui de
aglomerados descritivos de valores diversos. Além disso, ele é dinâmico. Como
acontece em muitos casos, o conceito sofreu uma evolução histórica expressa
por um gradual acúmulo de descrições que o exprimem. Há primeiro um
significado originário, expresso pela seguinte descrição de características de
superfície:
Ds: Líquido transparente, insípido, inodoro, que serve para matar a sede, apagar o fogo, lavar, que enche os rios, lagos e mares, que cai sob forma de chuva, que entra em ebulição quando fervido e se congela quando faz frio...
Ds é o núcleo descritivo do senso comum, conhecido desde o tempo do
homem das cavernas, o qual não poderia sequer suspeitar da existência de uma
microestrutura subjacente essencial. Nessa época a palavra ‘água’ não
significava mais do que Ds, que serviria de base para se determinar a referência
e a extensão. Mesmo o que poderia ser identificado, dentro de uma concepção
primitiva do mundo, como a causa própria de nossa percepção da presença de
água: o líquido que em estado puro é transparente, insípido, inodoro.
400
Com o passar dos milênios novas descrições foram sendo adicionadas.
Aprendeu-se mais sobre a água. Aprendeu-se que ela é um bom solvente, que
ela não se mistura com óleos, que ela é um mau condutor de eletricidade quando
em estado puro... Podemos chamar essas e outras descrições adicionais de
descrições disposicionais, funcionais ou dinâmicas, formadoras de um sub-
núcleo adicional de descrições. Eis algumas delas, já conhecidas há cerca de três
séculos
Dsd: um líquido que é bom solvente, não se mistura com óleos, em estado puro é mau condutor de eletricidade, produz ferrugem (oxidação) quando em contato com ferro...
Adicionando-se agora Dsd ao núcleo original, temos um núcleo mais amplo
de descrições de superfície. Podemos simbolizar as descrições que exprimem
esse primeiro núcleo semântico – o núcleo do senso comum informado – como:
<Ds + Dsd>
Esse já seria, digamos, o sentido da palavra ‘água’ reconhecido por pessoas
bem informadas por volta de 1750. Podemos chamá-lo de sentido popular da
palavra.
Contudo, algo extraordinário aconteceu na evolução do sentido da palavra
‘água’. Em 1768 Lavoisieur colocou hidrogênio e oxigênio em um balão de
vidro e aqueceu a mistura. O resultado foi uma explosão que liberou gás e água.
Através dessa e de outras experiências ele acabou por concluir que a água é
composta de duas porções de hidrogênio e uma de oxigênio. Em 1781
Cavendish realizou na Inglaterra experiências semelhantes usando faíscas
elétricas. Em 1783 Lavoisier realizou o procedimento reverso, decompondo
água em oxigênio e hidrogênio. Em 1800 Nicholson and Carlisle conseguiram 401
os mesmos resultados usando a eletricidade de uma “pilha voltaica” em um
processo chamado de eletrólise. Em 1811, baseado em sua lei dos gazes e na
eletrólise, Avogadro estabeleceu a composição atômica da água como sendo
HO1/2 , um resultado que foi corrigido em 1821 por Berzelius, que finalmente
estabeleceu a fórmula H2O...1 Chegou-se assim ao estabelecimento de uma nova
descrição, a descrição de profundidade da água como sendo constituída de
moléculas de hidróxido de hidrogênio ou H2O.
É importante perceber, porém, que as descrições de superfície das próprias
experiências referidas por Lavoisieur, Cavendish, Avogadro, Berzelius e ainda
outros formam um grupo a parte de descrições, que por vários caminhos
permitem inferir a estrutura essencial subjacente das massas D’água. Mais além,
o conhecimento da estrutura molecular da água, em adição ao tear teórico-
conceitual da química, leva-nos a fazer inferências teóricas no nível
microestrutural, como a de que 2H2O + O2 = 2H2O2. Finalmente, tal
conhecimento da estrutura subjacente nos permite fazer inferências de novas
descrições de superfície, como as que exprimem propriedades como a da alta
tensão superficial, da ação capilar e da boa solvência de açúcares e sais, que se
deixam explicar pela coesão entre os dipolos positivo e negativo das moléculas
de H2O.
O que tudo isso acabou por produzir foi um novo núcleo de significado para
a palavra ‘água’. Esse novo núcleo semântico é expresso primariamente pela
descrição da microestrutura profunda das massas D’água, a qual podem ser
adicionadas ainda propriedades e relações químicas:
Dp: Volume constituído por moléculas formadas por dois átomos de hidrogênio e por um átomo de oxigênio (e também um composto dipolar que tende a formar cadeias isoméricas etc.)
1 Ver Philip Ball: A Biography of Water (Berkeley, California: University of California Press 2001), capítulo 5.
402
Mas isso não parece ser tudo. Como vimos acima, Dp se encontra ladeada
por dois grupos de descrições de superfície a ela inferencialmente ligadas e que
também são expressivas do novo núcleo semântico. De um lado elas constituem
o que chamo de Dsp, o conjunto das descrições de superfície, de tudo aquilo de
observável, que permitem ao químico inferir a estrutura química da água, entre
elas as descrições das experiências de Lavoisieur, Cavendish e Avogadro. De
outro lado, as descrições constituem o que chamo de Dps, a saber, o conjunto
das descrições das propriedades superficiais que se deixam inferir de nosso
conhecimento da estrutura subjacente das massas d’água, como, por exemplo, a
propriedade de, diversamente de outras moléculas semelhantes, se manter em
estado líquido a temperaturas ambientes (o que também se deixa explicar a partir
da forte coesão das moléculas dipolares de H2O).
Temos, pois, um núcleo semântico constituído por três subnúcleos
semânticos inferencialmente interligados, um formado por descrições da
microestrutura subjacente e dois formados por descrições de superfície. Eis
como podemos simbolizar esse novo conjunto de descrições:
<Dsp + /Dp/ + Dps>
Quero sugerir que esse último núcleo de significação constitui o sentido
científico da palavra ‘água’, um sentido que só é muito esquematicamente
conhecido pela maioria de nós. Esse sentido descritivo foi negligenciado pelas
teorias descritivistas tradicionais dos termos gerais, como a de Locke. Mas ele
parece ser perfeitamente legítimo no interior de um descritivismo mais
sofisticado, que não tem por que se restringir a descrições de superfície.
Há aqui a seguinte objeção a ser considerada: o número de inferências
relacionadas à estrutura química H2O é indeterminado, o que torna os limites do 403
significado indefiníveis. Uma primeira reação seria delimitar-se à descrição
“Líquido com estrutura química H2O”, como a única capaz de delimitar
precisamente o núcleo semântico científico. Embora reconhecendo a
importância desse núcleo semântico, não creio que essa seja a resposta mais
adequada.
Minha resposta é a de que as fronteiras de significado entre um termo e outro
são de fato graduais e que as inferências mais e menos relacionadas à estrutura
química da água proporcionam um bom exemplo de como isso funciona.
Considere, por exemplo: “2H2O → 2H2 + O2” é uma inferência interna, no
sentido de que os conceitos que a compõem são constitutivos da própria fórmula
química. Compreendê-la faz a meu ver parte da compreensão do conteúdo
semântico de ‘H2O’. Mas considere as seguintes fórmulas:
1) 2Na + 2H2O → 2NaOH + H2 2) 2H2O + 2O2 → 2H2O2
3) 2Fe + O2 + 2H2O → 2Fe(OH)2
A equação (1) diz respeito à formação de soda cáustica (2NaOH), sendo a sua
contribuição semântica tanto para o conteúdo informativo do que o químico sabe
sobre a água quanto (mais ainda) sobre o conteúdo informativo do que ele sabe
sobre a soda cáustica, estando quase que a meia distância de uma contribuição
para o esclarecimento semântico de ambos os conceitos. A equação (2) respeito
à formação de água oxigenada (H2O2) e a equação (3) à formação de ferrugem
(Fe(OH)2). Por isso, essas últimas fórmulas contribuem para o esclarecimento,
não mais do significado de ‘água’ (hidróxido de hidrogênio), mas são0
respectivamente constitutivas dos significados de água oxigenada e ferrugem, da
mesma forma que “2H2O → 2H2 + O2” é constitutiva do significado de ‘água’.
A contribuição dessas inferências para o conteúdo informativo do que o químico
entende com o conceito de água como hidróxido de oxigênio fica, pois, dividida, 404
o que impede a suposta ampliação indefinida das contribuições inferenciais para
o significado da palavra ‘água’ no domínio das equações químicas. Isso nos
permite responder à questão inicial: embora o número de inferências seja
indeterminado, os limites de sua contribuição para o significado da palavra-
conceito em questão é determinado pelas outras palavras-conceito para cujo
significado essas relações inferenciais passam a contribuir.
Uma alternativa curiosa, mas a meu ver falsa, estaria na adoção de uma
posição estritamente fenomenalista: considerar Dp como uma construção, se não
supérflua, meramente convencional, ou seja, defender que podemos passar
apenas com Dsp e Dps. Não creio. Pois é preciso notar que a estrutura química
H2O, essencialmente presente em Dp, é essencial por duas razões: primeiro, ela
pode ser acessada e referida através de uma diversidade de descrições
constituitivas de Dsp, que se constitui em um conjunto aberto de descrições; por
sua vez, ela permite a inferência de uma diversidade também indeterminada de
descrições constitutivas de Dps, as quais também formam um conjunto aberto. A
estrutura química é, pois, como um ponto de cruzamento inevitável entre uma
multiplicidade de caminhos inferenciais, não decorrendo necessariamente de
nenhum deles, embora todos decorram necessariamente dela. É essa centralidade
que faz da descrição da estrutura química uma espécie de “essência nominal”.
Os dois núcleos semânticos, o núcleo expresso pelas descrições que nos dão
o componente ordinário ou popular do sentido da palavra ‘água’ e o núcleo
expresso pelas descrições associadas a sua essência subjacente, as quais nos dão
o componente científico do sentido da palavra, podem ser simbolizados em
conjunto como:
____Np___ ______Nc______
<Ds + Dsd> + <Dsp + /Dp/ + Dps>
405
De algum modo temos aqui, sinopticamente apresentado, o completo
conjunto de descrições que exprimem as regras semânticas constitutivas do
sentido da palavra ‘água’: esse feixe de descrições inter-relacionadas é capaz de
exprimir o sentido ou significado mais completo da palavra ‘água’, tal como ela
é capaz de ser entendida hoje.1 Embora esse sentido não seja em seus detalhes
conhecido da maioria dos falantes, partes dele são geralmente conhecidas e esse
conhecimento parcial já é suficientemente compartilhado para permitir a
comunicação do conceito.
Finalmente, o elemento causal precisa ser considerado. Nosso conhecimento
da existência de exemplares de massas D’água depende dessas massas d’água o
terem causado ou pelo menos delas potencialmente o causarem. Contudo, o
significado da palavra tem a ver muito indiretamente com uma cadeia causal
originada de um batismo e muito mais com uma regra conceitual capaz de
pressupô-la, daí porque o significado da palavra ‘água’ é independente da
existência efetiva de massas d’água, a saber, da efetiva aplicabilidade da regra
conceitual.
A regra de aplicação para a palavra ‘água’
Estamos agora preparados para construir uma regra de aplicação que estabeleça
um limite mínimo de satisfação das regras-descrições superficiais e profundas
até aqui consideradas para que a palavra ‘água’ se torne aplicável. Eis como a
regra de aplicação para o termo geral ‘água’ ou RC-‘água’ poderia ser exposta:
RC-‘água’:
1 Em sua crítica a Putnam e Kripke, Avrum Stroll nota que esses autores produzem uma falsa dicotomia entre propriedades fenomenais e a microestrutura, como se fossem alternativas competidoras: “Uma explicação correta do que é a água não irá mencionar apenas as suas propriedades fenomenais, mas tambérm aquelas que não são imediatamente acessíveis.” Contudo, por razões sistemáticas, Stroll receia considerar a última um aspecto do significado. A. Stroll: Sketches of Landscapes, pp. 56-57.
406
Usamos o termo geral ‘água’ para nos referirmos à propriedade singularizada em uma instanciação de uma substância química em um objeto xseea substância está na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de que:(i) x satisfaz as regras de caracterização expressas pelo núcleo semântico popular <Ds + Dsp> e/ou pelo núcleo semântico científico <Dps + /Dp/ + Dsp> associado à palavra(ii) em medida no todo suficiente e(iii) sem competição com regras conceituais para outras substâncias químicas.
Essa regra de aplicação constitui o que podemos realmente chamar de o
conceito de água. Ela requer alguma clarificação. Primeiro há a assunção de que
água é uma substância química, limitando o domínio da definição
(estabelecendo o equivalente a um genus proximum). Um segundo ponto
concerne o elemento causal mencionado depois do condicional. Um termo geral
funciona de modo muito diferente de um nome próprio. No caso do nome
próprio há somente um portador do nome, o que explica a importância da função
causal do portador em atos de batismo. Contudo, o termo geral não é vinculado a
nenhum portador originário, mas sim a qualquer portador que compartilhe da
propriedade que ele é capaz de designar. Essa é a razão pela qual muitos hoje
duvidam da importância da relação entre objetos e termos gerais.1 Um outro
ponto é que , como vimos, no caso da frase singular, o portador precisa ser antes
identificado pela regra de identificação do termo singular, para só depois disso
ser classificado pela regra de aplicação do termo geral, o que faz com que a
regra do termo geral basicamente se aplique combinada com a regra de
identificação do termo singular. Essa é a razão pela qual é razoável se fazer
1 Essa é também a razão pela qual a idéia de que termos gerais são designadores rígidos é hoge em dia geralmente considerara um problema irresolvido pela maioria dos defensores do externalismo causal.
407
menção a um objeto x, que no caso é um volume de água ocupando um local
espaço-temporal.
A condição (i) é o que poderíamos chamar de condição de significado, pois
ela envolve o conteúdo informativo mais próprio da palavra ‘água’, aquele que
encontramos em dicionários; saber o significado da palavra água é conhecer essa
regra parcial, na qual conectamos os dois componentes de significado – popular
e científico – com uma disjunção inclusiva (que nada tem a ver com a regra de
identificação de nomes próprios). De acordo com essa condição, podemos
chamar um líquido de ‘água’ quando ele tem as propriedades fenomenais da
água mesmo se ele não tem a correspondente estrutura subjacente e vice-versa.
Essa pode parecer uma maneira excessivamente liberal de se entender o
significado da palavra ‘água’. Mas a uma consideração mais detida percebemos
que apenas parece ser assim, uma vez que a palavra ‘água’ é geralmente usada
em contextos que restringem o seu significado. Uma vez percebido isso veremos
que a condição (i) é a mais adequada, pois permite justificar a aplicabilidade do
conceito nos mais variados contextos; ela exprime o único significado que faz
juz a toda flexibilidade dos modos como somos capazes de usar a palavra.
Finalmente, se o conceito de água é a regra RC-‘água’ fica claro que o
significado da palavra, sendo restrito à condição (i), se torna mais precisamente
delimitado como parte do conceito e não como o seu todo.
A condição (ii) é o que chamamos de condição de suficiência, de acordo com
a qual descrições de (i) não precisam ser completamente satisfeitas, mas – se
tomadas como um todo (ou seja, em seu somatório) – somente suficientemente
satisfeitas. Quantas condições são necessárias para preencher o requerimento de
‘suficiência’ fica aqui também, aliás, inespecificado, como parte da vaguidade
do conceito (parece que um líquido que não é nem transparente nem sem gosto
ou mesmo sequer feito de H2O ainda pode, em circunstâncias muito pouco
exigentes, ser chamado de ‘água’).408
Finalmente, (iii) é o que chamamos de condição de predominância, dizendo-
nos que um exemplar de um líquido deve satisfazer a condição (i) mais do que
qualquer outro conceito do mesmo tipo. Isso indica que a regra-significado para
o líquido água deve ser mais completamente satisfeita do que qualquer outra
regra de aplicação conceitual para outras substâncias líquidas (suponha que
precisemos distinguir entre água e peróxido de hidrogênio: o que predomina em
quantidade é o que decide). Mais além, vale notar que as condições (ii) e (iii)
nâo podem ser partes relevantes do significado da palavra ‘água’ porque, como
elas se aplicam certamente a muitos outros conceitos, elas não são capazes de
diferenciar o significado naquilo que o distingue de qualquer outro.
A mais interessante diferença com relação à regra de identificação de nomes
próprios aparece quando consideramos a condição (iii). Como estamos
lembrados, no caso dos nomes próprios, a terceira condição seria individuadora.
Daí ser possível que um mesmo objeto seja capaz de satisfazer diferentes regras
de identificação, amalgamando várias coisas em uma só (ex: Bacon poderia ser
também Shakespeare), conquanto as regras se apliquem mais a ele do que a
qualquer outro objeto, o que o individualiza. Mas no caso da regra de aplicação
de um termo geral, não faz sentido termos uma regra individuadora, pois fica
sempre indeterminado o número de objetos capazes de satisfazê-la. Por
conseguinte, a exigência (iii) não precisa mais ter a função de singularizar um
objeto, mas apenas a de classificar objetos que caiam sob o termo geral. E isso é
alcançado pela exigência de que os elementos da classe em questão não
satisfaçam outras regras de identificação de termos gerais do mesmo gênero
mais do que aquela que está sendo aplicada.
Exemplos de aplicação da regra de aplicação
Eis alguns exemplos elucidativos do funcionamento da regra de aplicação do
termo geral ‘água’. Se colhermos uma amostra da água de um pântano, ela pode 409
não ser transparente, nem insípida, nem inodora, não servindo para beber nem
para lavar... A amostra será de água com impurezas. Mesmo assim ela será água,
uma vez que é um líquido com estrutura química H2O, satisfazendo com isso as
condições (i) e (ii). Além disso, a regra parcial (iii) também está sendo satisfeita,
pois não podemos dizer que outras regras de identificação de termos gerais
caracterizadores de outros compostos químicos se aplicam na mesma medida (a
água pode conter óxido de ferro, mas a regra de aplicação do óxido de ferro não
se aplica na mesma medida às amostras). Assim, podemos estar certos de que se
trata de água. Em contraste, suponha que temos diante de nós um líquido
transparente, mas viscoso e de gosto amargo. Esse líquido é capaz de reagir com
cobre entrando em combustão, daí resultando água e oxigênio. E a sua
constituição química não é H2O, mas H2O2. Embora esse composto tenha
similaridades com a água, ele não pode ser água porque a regra de identificação
de outro termo geral do mesmo gênero – que classifica compostos químicos – de
preferência se aplica. Trata-se, pois, devido à subcondição (iii), de peróxido de
oxigênio e não de água.1
Eis um outro exemplo: suponha que você faz uma sobremesa de gelatina.
Embora a gelatina não satisfaça as descrições de superfície para a identificação
da água (não é líquida, não é transparente, não mata a sede, não apaga o fogo),
ela ainda assim satisfaz descrições de estrutura subjacente, pois sabemos que ela
é em sua maior parte constituída de H2O. Com isso ela satisfaz a disjunção
exigida por (i). Todavia, mesmo assim ela não será confundida com água. Por
quê? Ora, porque ela não satisfaz a condição (iii) de regra de aplicação da água,
posto que uma regra competitiva, a regra de aplicação para o que chamamos de
gelatina – uma substância sólida gelatinosa constituída por uma mistura de água
1 É interessante notar que a água oxigenada que compramos na farmácia é realmente água, pois 97% dela é constituída de H2O e apenas 3% dela é constituído de H2O2 ou peróxido de oxigênio. Ela é água porque a regra de identificação do termos geral ‘água’ se lhe aplica mais do que a de qualquer outro conceito do mesmo gênero – água contendo de H2O2.
410
com celulose – é preferivelmente aplicável. O máximo que podemos dizer é que
ela contém (bastante) água em sua composição. Para saber se uma regra de
aplicação é aplicável é preciso saber se outras regras do mesmo tipo não se
aplicam preferencialmente, é preciso saber o lugar da regra na gramática, por
assim dizer.
Um último contra-exemplo introduzido por Avrum Stroll: se Putnam está
certo e ‘Água = H2O’, então certamente ‘H2O = gelo”, e “H2O = vapor d’água”.
Mas se é assim, pela transitividade da identidade, então “água = gelo”, e “vapor
d’água = gelo”. Mas essa é uma conclusão insólita, que se fosse verdadeira me
permitiria pedir dois cubos de água no lugar do gelo, dizer que a água (o gelo)
flutua na água e que o vapor d’água é sólido. Gelo não é o mesmo que água e
menos ainda que vapor d’água, o que leva Stroll a concluir que o ‘é’ de “Água é
H2O” é um é de composição e não o é da identidade.1 Com efeito, podemos
dizer que o gelo é feito de água. Contudo, o próprio Stroll introduz uma contra-
objeção que parece de algum modo limitar o que ele está dizendo: é possível
dizer que o gelo é a mesma coisa que “água sob forma sólida” e que vapor
d’agua é a mesma coisa que “água sob a forma de vapor”. Assim, gelo e vapor
d’água são variantes de uma mesma coisa, qual seja, água.
Penso que a comparação das regras de caracterização desses termos gerais
explica essas coisas. Os núcleos populares fenomenais dos sentidos das palavras
‘água’, ‘gelo’ e ‘vapor d’água’ são bastante diversos: a água é líquida e
transparente, o gelo é sólido e opaco, o vapor d’água se dissipa no ar... As coisas
denotadas por esses termos só são semanticamente similares no que concerne ao
núcleo científico de sentido, especialmente Dp (ignorando diferenças na
organização das moléculas que compõem as amostras). Temos, pois, regras de
aplicação algo diversas, que são RC-‘água’, RC-‘gelo’ e RC-‘vapor d’água’, que
diferem apenas no que concerne a aspectos do sentido popular. Assim, a razão
1 Ver Avrum Stroll: Twentieth Century Analytic Philosophy, pp. 233-234.411
pela qual chamamos um objeto x de “gelo” e não “água” é que x satisfaz mais as
descrições de RC-‘gelo’ do que RC-‘água’, satisfazendo por isso a condição (iii)
de RC-‘gelo’, o mesmo sendo o caso quando chamamos um y de vapor d’água.
Com efeito, como RC-‘gelo’ é um pouco diferente de RC-‘água’, os sentidos das
palavras ‘gelo’ e ‘água’ são algo diferentes. Mesmo assim, esses sentidos são
semelhantes, pois a Dp do núcleo de significação científico é essencialmente a
mesma. Eis porque podemos dizer que o gelo e o vapor d’água são constituidos
de água, que o gelo é água solidificada e que o vapor d’água é água evaporada:
pelo fato de que a condição essencial de RI-‘água’, que é a disjunção (i), estar
sendo em cada caso suficientemente satisfeita, permitindo a aplicação da regra.
Sabemos também agora porque dizemos que a água é dita constituida de H2O:
porque RC-‘água’ contém a regra de aplicação para o hidróxido de hidrogênio
ou RC-‘H2O’ (se a segunda regra é aplicada, a primeira também é). E também
sabemos porque ao falarmos de água não estamos querendo propriamente nem
gelo nem vapor d’água: porque RC-‘água’, RC-‘gelo’ e RC-‘vapor d’água’
competem entre si pela satisfação da condição (iii).
Stroll também acha que uma coisa é falar do significado da palavra ‘água’ e
que outra coisa é falar daquilo que a água é. Contudo, essas parecem ser duas
faces da mesma moeda. Pois aquilo que consideramos em termos de sentido
pode ser materialmente parafraseado em termos daquilo que as coisas são. Isso
se demonstra no fato de que ao invés de falarmos das regras de aplicação em sua
ec-aplicabilidade, descrevendo assim o sentido, podemos falar dessas mesmas
regras de caracterização em sua efetiva aplicabilidade, descrevendo assim as
próprias coisas ou aspectos delas. Assim, dizer que a água é composta de H2O é
o mesmo que dizer que as propriedades descritas por RC-‘água’ enquanto
efetivamente aplicável compõem-se das propriedades microestruturais descritas
por RC-‘H2O’ enquanto efetivamente aplicável.
412
O sentido em que o termo geral ‘água’ é um designador rígido
Faz sentido notar que também aqui podemos utilizar instrumentos lógicos
derivados da teoria das descrições para formalizar a regra de aplicação do termo
geral. Uma maneira de fazermos isso é introduzindo os seguintes predicados: F
= ‘...satisfaz suficientemente as regras de caracterização expressas pelas <Ds +
Dsd> constitutivas do sentido do conceito de água’, G = ‘...satisfaz
suficientemente as regras de caracterização expressas pelas <Dps + /Dp/ + Dsp>
constitutivas do conceito de água’, P = ‘...satisfaz as regras de caracterização F
e/ou G mais do que qualquer outra regra classificadora de outra substância
química’, e A = ‘...é água’. Para dizermos então que se algo é água então esse
algo necessariamente satisfaz a regra de aplicação RC-‘água’, isso pode ser
formalizado como:
Ex(Ax) → □Ex ((Fx v Gx) & Px)
Parece que isso nos permite explicar em termos descritivistas de que maneira
os termos gerais podem ser entendidos como designadores rígidos. Entendendo
que o designatum próprio do termo geral é uma propriedade instanciada – um
tropo ou sistema de tropos – podemos dizer que um termo geral é um designador
rígido no sentido de que ele se aplica a mesma propriedade instanciada em
qualquer mundo possível no qual ela vier definidamente instanciada. Assim, o
termo geral ‘água’ é um designador rígido porque ele se aplica a amostras de
água em todos os mundos possíveis nos quais elas se encontram. Com efeito, em
qualquer mundo possível, se algo definidamente satisfaz as condições ((Fx v
Gx) & Px), esse algo será água. Isso se verifica também na observação de que
RC-‘água’ nos permite formar uma sentença analítico-conceitual necessária,
verdadeira em todos os mundos possíveis, qual seja:
413
O termo geral ‘água’ se refere ao líquido que puder (causalmente) nos fazer conscientes de que satisfaz de modo em seu todo suficientemente as condições <Ds + Dsp> e/ou <Dps + /Dp/ + Dsp> para água, sem competição com regras conceituais para outras substâncias químicas.
Regras semelhantes a essa poderiam da mesma forma ser válidas também
para ao menos alguns outros termos de espécie natural como, por exemplo, o
ouro, que tem as propriedades superficiais de ser um metal amarelado, solúvel
em água áurea etc. e que tem a propriedade microestrutural de ser o elemento de
número atômico 76.
Finalmente, o modo de ver que acabamos de expor faz jus a algumas idéias
familiares aos semanticistas. Primeiro, o sentido de um termo geral como água é
vago. Depois, ele tem se alterado. Como acontece com a maioria dos conceitos,
ele cresceu e se ramificou com o tempo. A maioria de nós fica conhecendo
apenas uma parte dele, fundamental ou não, mas suficiente para a comunicação.
Muitas vezes só os especialistas, os usuários privilegiados da palavra, conhecem
o significado completo de um termo geral. Há casos em que o especialista só
conhece o núcleo científico especializado do significado, ignorando outras
coisas por vezes até mais importantes. Há casos em que cada especialista
conhece completamente apenas parte do significado do termo. E deve haver
casos em que somente a memória de computadores ou documentos contém todas
as informações relevantes. Contudo, essas informações em si mesmas nada
significam. Elas demandam intérpretes capazes de inseri-las em uma forma de
vida. Elas só ganham realidade enquanto e na medida em que são interpretadas,
ao menos esquematicamente, por seres humanos capazes de participar da forma
de vida. Há, pois, na explicação de como os termos gerais referem, um elemento
cognitivista irredutível.
Comparando as duas análises
414
No que se segue quero demonstrar que a recém-sugerida análise meta-
descritivista-causal do conceito de água explica de forma mais convincente do
que a artificiosa teoria de Putnam as nossas intuições relativas à fantasia da
terra-gêmea.
Como já vimos é muito difícil duvidar que o significado de nossas expressões
lingüísticas seja convencionalmente fundado: ele deve constituir-se de regras ou
combinações de regras semanticamente relevantes por nós mesmos
estabelecidas. Quando elas constituem os significados dos termos gerais, elas
costumam poder ser expressas por descrições. Até mesmo a essência subjacente
da água pode ser apresentada por regras de caracterização expressas por
descrições, as quais são simbolicamente resumidas por Dp. Além disso, não há
como se livrar das descrições de superfície, uma vez que Dp só faz sentido por
ter sido inferido de Dsp e por conduzir inferencialmente a Dps. Ou seja: mesmo
que estejamos dispostos a conceder que a descrição fundamental seja a da
essência subjacente, ela acaba por depender de descrições de propriedades de
superfície, nem mais nem menos fenomenais do que as descrições dadas à água
pelo homem das cavernas, embora mais complexas e exigentes em seu recurso a
elementos funcionais.
A questão agora fica sendo: como a recém-exposta explicação do sentido ou
significado intralingüístico da palavra ‘água’ explica nossas intuições relativas a
Oscar-1 e Oscar-2 quando eles disseram “Isso é água” em 1750? A resposta é
pouco mais do que uma cansativa repetição do que já dissemos em nossa
resposta neo-descritivista a Putnam.
Consideremos primeiro o significado, o sentido. Em 1750 ele era para ambos
os Oscares o de um líquido transparente etc., ou seja: <Ds + Dsd>. A isso eles
podem ter acrescentado no máximo a hipótese da existência de alguma
microestrutura fundamental desconhecida x. Mas como não haviam sentidos
expressos pelas descrições ‘líquido de estrutura molecular H2O’ ou ‘líquido de 415
estrutura molecular XYZ’, não era esse x que eles podiam ter em mente. Assim,
se os estados psicológicos e cerebrais de Oscar-1 e Oscar-2 eram os mesmos,
isso não importa, pois os sentidos também eram os mesmos. Instanciados nas
cognições ou disposições cognitivas, em estados psicológicos e cerebrais, os
sentidos estavam nas cabeças dos Oscares.
Consideremos agora a referência e a extensão. Aqui, como já vimos, a
resposta pode variar! Ela depende de quem estamos considerando como o sujeito
que através do sentido identifica a referência e calcula a extensão. Esses sujeitos
podem ser os próprios Oscares em 1750. Mas eles também podem ser sujeitos
esclarecidos de uma época posterior, se reportando aos proferimentos dos
Oscares, mas na consciência da estrutura química dos líquidos apontados por
eles em 1750.
Vejamos o primeiro caso. Para Oscar-1 e Oscar-2 em 1750 fica muito claro
que a referência da palavra ‘água’ é apenas o líquido <Ds + Dsd> e no máximo
algum x desconhecido. E também fica claro que essas referências são do mesmo
tipo. Afinal, a referência é determinada pelo sentido, que é o mesmo (não há
razão para pensar que o x possa ser diferente na terra e na terra-gêmea ou para se
especular sobre isso). E a extensão também é a mesma; ela é em 1750 a mesma
do líquido transparente, insípido etc. que inclui tanto a água da terra quanto a da
Terra gêmea. Assim, se em 1750 Oscar-1 e Oscar-2 pudessem trocar
informações sobre o preenchimento de seus critérios de aplicação do termo geral
‘água’ em ambos os planetas, sem dúvida eles concluiriam que, sendo ambos
igualmente satisfeitos, a extensão da palavra ‘água’ é a mesma, pois ela era
estabelecida pelas propriedades de superfície. Eles concordariam inclusive que a
própria causa de suas percepções do líquido que ambos chamam ‘água’ é a
mesma, pois ela é o mesmo líquido transparente, inodoro e insípido. Afinal, isso
é tudo o que eles em 1750 podiam identificar como sendo a causa eficiente dos
seus proferimentos. No máximo eles poderiam identificar a causa com uma 416
estrutura subjacente x, mas pelo princípio de que ao mesmo efeito subjaz a
mesma causa, eles teriam tudo para supor que também a estrutura subjacente da
água é a mesma na terra e na terra-gêmea. 1
Consideremos agora como sujeitos cognitivos aqueles que sabem que a água
da terra tem a estrutura química H2O, enquanto que a água da terra-gêmea tem a
estrutura química XYZ. Digamos que nós em 2100 (após viagens espaciais até a
terra-gêmea etc.) saibamos disso. Nesse caso, ao considerarmos as afirmações
de Oscar-1 e Oscar-2 em 1750, nós poderemos dizer que em seus proferimentos
eles estavam se referindo a coisas diferentes: Oscar-1 se referia a H2O e Oscar-2
a XYZ. Mas ao dizermos isso o que estamos fazendo é identificar as referências
apontadas por Oscar-1 e Oscar-2 por meio de nossas próprias cognições, a
saber, por meio dos sentidos diversos que agora damos a palavra ‘água’, como
intérpretes do proferimento “Isso é água” aplicado ao líquido da nossa terra e ao
da terra-gêmea. Afinal, nosso sentido completo para a água da terra será alguma
coisa como (<Ds + Dsd> + <Dsp-H2O + /Dp-H2O/ + Dps-H2O>) enquanto o
nosso sentido completo para a água da terra-gêmea será, digamos (<Ds + Dsd>
+ <Dsp-XYZ + /Dp-XYZ/ + Dps-XYZ>). Nesse caso as referências serão
diversas porque os significados do termo geral – entendidos como sentidos
fregeanos determinadores da referência – são diversos, constituindo
pensamentos diversos verificados através de diferentes condições de verdade.
Esses pensamentos, por sua vez, são instanciados em estados psicológicosw e
correspondentemente também cerebrais de estrutura inevitavelmente diversa.
Quando as referências são diversas é, como já vimos, porque elas resultam de
uma espécie de projeção de nossos sentidos diversos na situação indexical em
que os Oscares fizeram as suas referências; os proferimentos dos Oscares são 1 Essa igualdade causal é particularmente clara quando pensamos nos Oscares neandertais, vivendo há 30.000 anos atrás: eles diriam que a causa de nossa percepção da água que molha é o próprio líquido transparente que cai das núvens, pois os seu sistema de explicação causal baseado no senso comum é mais simples e recorre a eventos de superfície como fatores causais.
417
interpretados como instrumentos indexicais para a referência de nossos próprios
pensamentos. Uma conseqüência disso é que o cálculo da extensão também se
torna diferente. Para nós a extensão da água apontada por Oscar-1 em 1750 é
apenas a do líquido de estrutura H2O, restringindo-se à terra, enquanto a
extensão da palavra água apontada por Oscar-2 se restringe ao líquido da terra-
gêmea.
O que torna possível a variação do que é apontado como a referência e a
extensão? Como também já notamos, é o fato de que ambas são extramentais e
extralingüísticas. Pois como tal elas dependem, para serem identificadas, dos
sujeitos cognitivos e dos sentidos fregeanos que esses sujeitos dão à palavra,
variando com a pessoa que o instancia. A mesma palavra que é identificada por
Oscar-1 e Oscar-2 como tendo uma mesma referência, pode ser identificada por
nós como tendo uma referência diferente, posto que a ela integramos núcleos
semânticos diversos. Assim, se astronautas visitam a terra-gêmea e descobrem
que o líquido que lá é denominado ‘água’ tem a estrutura XYZ, podemos
concluir que os habitantes da terra-gêmea sempre se referiram a XYZ e que a
extensão da palavra ‘água’ é diversa. Mas não podemos esquecer que somos nós
mesmos que estamos fazendo isso, com base em nosso conhecimento da
essência subjacente diversa, ou seja, com base em sentidos diversos – um
relativo a água-H2O e outro relativo a água-XYZ – instanciados em nossos
próprios estados psicológicos e cerebrais correspondentes.
Podemos imaginar que Oscar-1 e Oscar-2 sejam trazidos pela máquina do
tempo até nós e que façam um curso intensivo de química, aprendendo que a
estrutura molecular da água é H2O na Terra e XYZ na terra-gêmea. Por conta
desses diferentes núcleos científicos de significação da palavra, eles concordarão
que em 1750 eles estavam “querendo dizer” (meaning) coisas diferentes. Nesse
caso, porém, eles estarão apenas admitindo que aquilo que eles significavam
(meant) em 1750, a saber, as referências extralingüísticas, eram diferentes, e não 418
os significados (sentidos) que eles davam às palavras. E nesse caso eles se fiarão
em seus estados psicológicos e cerebrais atuais, que não serão menos diversos
do que os sentidos. A conclusão é, em qualquer dos casos, anti-putnamiana:
significados são sentidos; sentidos sempre determinam referências; sentidos
nunca estão fora das cabeças.
É possível conceber muitos casos semelhantes aos dos Oscares, que são
facilmente explicáveis usando a concepção neo-descritivista do significado da
palavra ‘água’ recém-exposta, tal como foi feito acima, mas cujas intuições
permanecem insuficientemente explicadas quando lhes aplicamos a teoria de
Putnam.
Suponhamos, por exemplo, que Lúcia tem dois gatos. Um deles é um felino
normal, enquanto o outro é um ser extra-terrestre que descobriu uma maneira de
viver bem adotando a forma de um gato doméstico. Mas Lúcia não sabe disso.
Contudo, se isso é um fato e no futuro ela vier a descobrir que isso é verdade,
então ela não concluirá que no passado, ao apontar para um dos gatos, ela estava
entendendo ou querendo dizer (mean) com isso a referência a um ser extra-
terrestre, nem que ela sempre colocou em consideração uma futura relação de
identidade-l com as propriedades de um ser extraterrestre, como a teoria de
Putnam pretende. Lúcia dirá que aquilo a que se referia como o seu gato
doméstico pode ser agora concebido por ela como tendo sido sempre uma
referência a um ser extraterrestre, ou até mesmo que ela sempre teria em
princípio tido por aceitável colocar em consideração alguma futura relação de
identidade-l, que ela não sabia qual poderia ser, mas que se revelou ser uma
identidade com as propriedades essenciais de um ser extra-terrestre. Ou seja:
como no caso com os gatos domésticos, os dois Oscares em 1750 se referiam à
estrutura molecular do composto químico que tinham diante de si tão pouco
quanto, digamos, Chapeuzinho Vermelho se referia ao lobo travestido de avó
quando ele lhe fez as conhecidas perguntas.419
O mesmo ponto pode ser também demonstrado com o auxílio de um exemplo
realista, o do ouro branco, que é uma mistura de 75% ouro de 24 quilates com
25% de níquel e paládio, o que lhe dá a cor branca. Se uma pessoa que não sabe
identificar ouro branco apontar para um anel de ouro branco e dizer de
brincadeira “Isso é de ouro”. Para Putnam, essa pessoa deveria estar realmente
querendo dizer (meaning) que é de ouro, mesmo que não tenha a menor
consciência disso. Afinal, a relação de identidade-l é a das propriedades
superficiais experienciadas com a propriedade de conter 75% do elemento
químico de número 79. Na verdade, tudo o que podemos dizer é que uma pessoa
que desconhec o ouro branco ao apontar para ele estava se referindo a algo cuja
estrutura subjacente é sistematicamente referida por nós como contendo o
elemento de número atômico 79 em maior proporção; nós podemos mesmo
dizer que a pessoa potencialmente se referia ao elemento 79 e usar o
proferimento da pessoa como um instrumento indexical para o que temos em
mente. Nós podemos até mesmo inventar um conceito de referência potencial,
sugerindo então que a pessoa fez uma referência potencial ao elemento 79, a
qual será resgatada por qualquer um que saiba identificar o ouro branco através
dessa extensão do sentido. Mas nada disso vem a dar no mesmo que dizer que a
pessoa enquanto falante de fato se referia à estrutura ou essência subjacente,
muito menos que ele a significava, queria dizer, entendia, pensava ou
intencionava.
Como se deixa entrever, a teoria de Putnam demanda que já sejamos capazes
de entender, no sentido amplo, o significado de certas palavras nos sentidos que
elas têm para outros, ou até mesmo nos sentidos que elas terão um dia, muito
depois de termos desaparecido. Contudo, se uma pessoa espera de antemão que
o mágico irá tirar algo do chapéu, mas não sabe o que é, e o mágico tira do
chapéu um coelho, é absurdo concluir que a pessoa estava o tempo todo
pensando (meant) ou mesmo se referindo a um coelho. Em contrapartida, em um 420
sentido estrito, a teoria de Putnam torna o nosso conhecimento do significado
meramente especulativo. Ela nos faz supor que só daqui a muitos anos, ou talvez
mesmo nunca, chegaremos a conhecer os significados que damos a termos que
usamos diariamente! Pois nunca poderemos saber que realmente chegamos a
conhecer o significado. Afinal, como podemos saber que a essência subjacente
foi realmente descoberta? Afinal, nenhum conhecimento científico é tão certo
quanto um saber derivado de convenções.1
Repetindo o que já antes dissemos: o principal equívoco inerente ao
argumento de Putnam é que ele passa sub-repticiamente do extensional para o
intensional, da conclusão de que a referência e a extensão eram diferentes
daquilo que os Oscares pensavam (o que é um lugar comum, posto que a
natureza da referência é extra-lingüística e extra-mental) para a conclusão de
que o significado e o entendimento sempre foram diferentes. Mas isso não pode
ser verdadeiro, pois a natureza do significado, assim como a natureza do que
entendemos com a palavra ‘água’, depende de convenções intralingüísticas de
instanciação intramental, que em 1750 eram iguais para ambos os Oscares. Os
nossos sentidos dependem de convenções lingüísticas. Já nossas referências e
extensões dizem respeito ao modo como o mundo é ou será ou foi, podendo ser
diversamente acessadas por linguagens ou sistemas de convenções diferentes.
Tudo o que Putnam realmente poderia concluir de sua experiência em
pensamento é que referência e extensão se encontram fora de nossas cabeças.
Mas com essa trivialidade todos concordam.
Revendo o conceito de identidade-l
Não obstante, o que dizer da explicação do significado extensional do termo por
meio da relação teorética a ser descoberta pela ciência de uma identidade-l entre
1 Para considerações semelhantes, ver Eddy Zemach: “Putnam’s Theory on the Reference of Substance Terms”, p. 66.
421
a estrutura essencial do exemplar apontado e a da maioria dos outros exemplares
encontrados? O problema é que uma identidade-l que seja resultado final da
pesquisa científica parece ser em última análise incoerente, posto que não
podemos ter certeza de que qualquer identidade que venhamos a alcançar seja
realmente o resultado final da pesquisa científica. A alternativa que sugiro é que
a noção de identidade-l seja entendida em um sentido puramente extensional,
extralingüístico e extramental: trata-se simplesmente da identidade de essência
que os exemplares da extensão de um termo devem em geral manter entre si
para constituirem a sua extensão. A identidade-l dos exemplares de quantidades
de água hoje, por exemplo, é estabelecida pelo compartilhamento da estrutura
química H2O. Com base nisso, quando consideramos os exemplares de água
apontados por Oscar-1 e Oscar-2 em 1750, diremos que a identidade-l apontada
por Oscar-1 era a existente entre volumes de H2O, enquanto a identidade-l
apontada por Oscar-2 era a existente entre volumes de XYZ, disso resultando
extensões diversas. Mas é preciso lembrar que usamos nossas próprias cabeças
para estabelecer essas extensões e não as cabeças de Oscar-1 e Oscar-2, que no
caso não contam. Pois o que estamos fazendo é, outra vez, usar os Oscares como
instrumentos indexicais, de modo a projetar o nosso sentido da expressão ‘a
extensão da aplicação da palavra ‘água’’ na determinação da substância
subjacente que cada um dos Oscares aponta e, usando-os como modelos,
estabelecer extensões. Se eles pudessem se comunicar, mantendo o insuficiente
conhecimento de química de sua época, eles poderiam concluir que a estrutura
subjacente alegadamente é a mesma, que os substratos X de porções de água da
terra e da terra-gêmea, com base no conhecimento tido na época, devem manter
identidade-l entre si, devendo a extensão ser a mesma. E quanto à identidade-l a
ser suposta pelos Oscares da idade da pedra lascada há 30.000 anos a.C.? A
resposta é que para os homens do período paleolítico não havia identidade-l a
vista. A palavra ‘água’ não poderia naquela época apontar mais para uma 422
essência microestrutural comum do que as palavras ‘ar’, ‘pó’, ‘óleo’ e ‘urina’,
que podem denotar estruturas subjacentes mistas e muito variadas.
Podemos agora comparar a concepção da relação de identidade-l de Putnam
com a nossa. Eis como seria o esquema proposto por Putnam da evolução do
significado da palavra ‘água’, limitando-o a estereótipos e à relação de
identidade-l:
Significado: 1. 30.000 a.C.: água = (<Ds>...) + identidade-l com referências de Dp.2. 1750: água = (<Ds+ Dsd...>) + identidade-l com referências de Dp.3. 1850: água = (<Ds+ Dsd...>) + identidade-l com referências de Dp.
Enquanto o nosso esquema é:
Significado:1. 30.000 a.C.: água = <Ds>.2. 1750: água = <Ds + Dsd> + X>.3. 1850: água = <Ds + Dsd> + <Dsp + Dps + /Dp/>.
Temos aqui o contraste entre um primeiro esquema implausível e um
segundo esquema naturalmente convincente e razoavelmente aceitável. Só o
segundo esquema permite explicar satisfatoriamente a duplicidade de nossas
intuições semânticas sobre a referência e a extensão daquilo que é apontado
pelos Oscares em 1750. É só ele que explica nossa intuição de que sempre
tivemos conhecimento do significado da palavra ‘água’ e que esse significado se
desenvolveu com o tempo, que ele foi e é real, que ele não é uma mera hipótese
que acreditamos que a ciência já tenha resgatado, mas que talvez não, e que
talvez permaneça para todo o sempre desconhecido...
O resultado para o qual nossas considerações apontam é, por conseguinte, o
de que o esclarecimento do significado dos termos de espécie natural de nosso
423
descritivista refinado se ajusta muito melhor aos fatos lingüísticos do que aquele
que Putnam tem a oferecer, devendo por isso ser preferido.
Descritivismo e o dilema de aplicação do conceito de água
A explicação basicamente neo-descritivista do significado de termos de espécie
natural recém-sugerida também nos permite resolver um conhecido dilema
concernente à aplicação do conceito de água – um conflito conceitual que nem a
teoria descritivista tradicional nem a teoria causal de Putnam/Kripke têm
condições de resolver.
A questão que gera o dilema nasce de uma separação entre propriedades
superficiais e estrutura subjacente, envolvendo duas suposições:
(a) Imagine que em algum lugar do mundo se descubra um líquido inodoro, transparente etc. que possui todas as propriedades superficiais da água (serve para beber, apaga o fogo etc.), mas cuja estrutura subjacente é completamente diferente, digamos XYZ. Podemos ou não dizer que esse líquido é água?(b) Imagine agora que em algum outro lugar do mundo sejam encontradas rochas sólidas, escuras como carvão, que não possuem nenhuma propriedade superficial da água (não servem para beber, não apagam o fogo...), mas que, acreditem ou não, são constituídos de H2O. Podemos dizer que essas rochas são feitas de água?
Descritivistas e causalistas responderão opostamente a essas questões.
Vejamos primeiro a resposta de filósofos defensores da concepção causal da
referência de termos de espécie natural, como Kripke e Putnam.1 Para esses
filósofos a microestrutura essencial da água, descrita por Dp, tem predominância
sobre todo o resto. Por isso eles responderam negativamente à questão (a): se
encontrarmos um líquido com todas as propriedades superficiais da água, mas
que não tem a estrutura molecular H2O, esse líquido não pode ser água. E
1 Kripke: Meaning and Necessity, pp. 128-9.424
quanto à questão (b), a resposta precisa ser afirmativa: mesmo que a substância
não apresente nenhuma das propriedades superficiais da água, como essa
substância é feita de H2O, ela precisa ser feita de água.
Filósofos descritivistas, como A.J. Ayer e outros críticos de Putnam,
privilegiaram as estruturas de superfície e se apegaram às intuições opostas: o
que vale são as propriedades fenomenais e não a estrutura química subjacente.1
Por isso eles responderam afirmativamente à questão (a): se em algum lugar da
Terra encontrarmos um líquido com a estrutura superficial da água, mas com
estrutura química XYZ, nós não deixaremos de classificá-lo como sendo água;
nós diremos apenas que é água de um outro tipo. Quanto à questão (b), eles a
responderam negativamente, dizendo que mesmo que as rochas tenham a
estrutura molecular H2O, elas não podem ser água, pois em nada se aparentam
com o líquido transparente, insípido e inodoro com o qual estamos acostumados.
Quem estará certo? O causalista ou o descritivista? Há aqui um choque de
intuições. Se pensarmos como o descritivista, as respostas parecem umas; se não
as respostas parecem outras. Ora, a versão mais complexa de descritivismo que
propomos permite predizer e explicar o choque de intuições. Esse choque resulta
tão somente do fato de a palavra ‘água’ ter dois núcleos diferentes de
significado, parcialmente distinguíveis entre si, que são <Ds + Dsd>, o núcleo
popular, e <Dsp + /Dp/ + Dps>, o núcleo científico. As situações imaginadas são
aquelas nas quais são encontradas entidades que satisfazem apenas um dos
núcleos semânticos, sendo o outro satisfeito por núcleos semânticos de outros
termos (por exemplo ‘carvão’ ou ‘XYZ’). Assumindo que cada núcleo
semântico tem um mesmo peso, ficamos divididos e sem critérios para saber que
termo devemos aplicar.
1 A.J. Ayer: Philosophy in the Twentieth Century, p. 270. Ver John Dupré: “Natural Kinds”, p. 318. Ver também Eddy Zemach, “Putnam’s Theory on the Reference of Substance Terms”, ibid, pp. 61-62, e D.H. Mellor: “Natural Kinds”, p. 72.
425
Essa é uma possibilidade. Mas na prática não precisa ser assim. Parece-me
claro que o peso de cada núcleo semântico é capaz de sofrer variações de acordo
com o que poderíamos chamar de contexto de interesses associado ao
proferimento. Chamo de contexto de interesse de um termo o contexto que eleva
o valor de aspectos do significado que as pessoas estão pragmaticamente
valorizando ao usá-lo. Imagine que se trate de um contexto de interesses
científico, envolvendo falantes versados em química, que se encontram em um
laboratório e objetivam fazer um experimento separando os gases que compõem
amostras de água. Nesse caso, o núcleo semântico científico é privilegiado. A
palavra ‘água’ está sendo usada no lugar de expressões como ‘hidróxido de
hidrogênio’ ou ‘monóxido de di-hidrogênio’, termos científicos que têm como
função semântica exclusiva exprimir o núcleo semântico <Dsp-H2O + /Dp-H2O/
+ Dps-H2O> na referência a amostras de líquidos com estrutura química H2O.
Nesse caso se preferirá dizer que o líquido transparente etc. de estrutura química
XYZ decididamente não é água e, no esforço de tirar água (H2O) das pedras, os
químicos dirão que as rochas com aparência de carvão são rochas d’água.
Considere agora, para contrastar, um contexto de interesses da vida ordinária.
Digamos que o falante pertença a uma comunidade de pescadores que tem como
objetivo cavar um poço para obter água para beber, lavar, tomar banho. Para ele
tanto faz se a estrutura química efetiva do composto é H2O ou XYZ, conquanto
ela sirva aos devidos fins. Nesse caso, o velho núcleo semântico da linguagem
popular pode ser considerado o mais importante, pois mesmo que informados de
que a estrutura química do que eles estão usando não é H2O, eles não deixarão
de aplicar o termo no sentido considerado.1 Já se as propriedades fenomenais se
alterassem, deixando a substância de cumprir com as suas funções usuais, como 1 Algo semelhante realmente ocorreu na China com a palavra ‘jade’. O jade antigo (nefrite) acabou sendo em sua maior parte substituído por uma pedra aparentemente idêntica, mas com estrutura química muito diferente (jadeíte). Ainda assim o mesmo nome permaneceu sendo aplicado também a segunda pedra. Ver Joseph Laporte: Natural Names and Conceptual Change, p. 96.
426
no caso das pedras com estrutura química H2O, a tendência será concluir que
elas não tem nada a ver com água por não ter nada a ver com o que eles esperam
do conceito.
O mesmo se daria com uma ‘água’ como a encontrada na Terra-gêmea. Se o
contexto de interesses for o de uma discussão entre cientistas, pode ser vantajoso
que se privilegie <Dsp-H2O + /Dp-H2O/ + Dps-H2O>, entendendo-se por ‘água’
o mesmo que ‘hidróxido de hidrogênio’ e concluindo-se que XYZ não é água,
tal como Putnam sugeriu. Já no contexto de nossos interesses ordinários pode
valer mais a pena privilegiar <Ds + Dsd>, concluindo daí que se trata apenas de
uma outra espécie de água, tal como sugeriram os críticos de Putnam. A melhor
resposta para o dilema, pois, é que a semântica da palavra ‘água’ é
suficientemente flexível para nos permitir escolher o corno do dilema que
preferirmos segurar. E o corno preferido é sempre a descrição, o sentido
fregeano que o contexto de situação nos leva a pragmaticamente valorizar.
Podemos terminar observando que o equívoco semântico produzido pela
fantasia da terra-gêmea envolve uma falácia genética. É claro que se o mundo
não possuísse elementos que nos permitissem chegar ao conceito de água, não
teríamos acesso ao sentido do termo. Nesse sentido trivial, o significado está na
dependência da constituição externa das coisas, sendo causalmente determinado
por elas. Mas nesse caso o mundo é apenas um elemento causal externo, que
mais ou menos indiretamente determina a formação de nossas convenções
semânticas e suas instanciações mentais. Mas o mundo não é determinador do
significado, nem de nosso pensamento e entendimento das coisas como
constituintes dele mesmo. O externalismo semântico se alimenta dessa falácia
genética, que consiste em confundir as causas últimas de nossas intuições
semânticas (que costumam ser externas) com os seus efeitos (que são estados
mentais representacionais internos, instanciadores de um conteúdo semântico
psicológico diversamente distribuído entre os falantes). Se o efeito é uma 427
representação, essa representação não depende necessariamente, para a sua
existência, da existência daquilo que ela representa. Pois a representação pode
resultar de uma combinação de elementos causais os mais diversos, como
demonstram os produtos de nossa imaginação. Devido à imensa flexibilidade
dos mecanismos representacionais refletidos pela linguagem, nossas
representações freqüentemente apresentam uma relação muito remota com as
suas causas.
O elemento social do externalismo de Putnam
Antes de terminarmos, precisamos ainda considerar rapidamente os dois outros
exemplos de Putnam.
No primeiro ele supõe que alumínio e molibdênio só sejam distinguíveis
entre si por metalúrgicos e que a terra-gêmea esteja cheia de molibdênio, metal
raro na terra. Além disso, ele imagina que os habitantes da terra-gêmea chamem
o molibdênio de alumínio e vice-versa. Nesse caso, certamente, a palavra
‘alumínio’ dita por Oscar-1 terá uma extensão diferente da palavra ‘alumínio’
dita por Oscar-2, de modo que eles querem dizer (mean) coisas diferentes com a
palavra. Mas como eles não são metalúrgicos, eles têm os mesmos estados
psicológicos. Logo, o significado é externo ao que acontece em suas cabeças.
No segundo exemplo, Putnam considera a diferença entre olmos e faias. A
maioria de nós não sabe distinguir olmos de faias em uma floresta. Contudo,
mesmo assim somos capazes de usar essas palavras sem que as suas extensões
deixem de ser diferentes: olmos são olmos e faias são faias. Assim, o que
queremos dizer com essas palavras, os significados que a elas atribuímos, são
diferentes, mesmo que essa diferença não esteja em nossas mentes.
Putnam tira uma conclusão surpreendente desses casos imaginários: assim
como no caso da água da terra-gêmea, o significado está no mundo físico
externo, nos casos recém-expostos ele está na sociedade. Para isso ele introduz a 428
importante idéia da divisão de trabalho da linguagem. As palavras requerem a
atividade cooperativa de um número de pessoas para poderem ser efetivamente
usadas. Não sabemos distinguir alumínio de molibdênio, nem olmos de faias.
Mas isso não importa, pois o meio social é capaz de distingui-los por nós. Há em
nossa comunidade lingüística especialistas e outros falantes com a habilidade de
reconhecer por nós as espécies naturais pelas suas características essenciais.
Pelo simples fato de pertencermos a essa comunidade, mesmo não sabendo
quais são as propriedades distintivas da maioria das espécies naturais, somos
capazes de usar palavras como ‘alumínio’ e ‘molibdênio’, ‘olmo’ e ‘faia’ no
sentido que elas têm e referir-nos às suas extensões, mesmo que não saibamos
reconhecer as suas essências causais. Como Putnam corretamente conclui:
O estado psicológico do indivíduo não fixa a extensão; somente o estado sociolingüístico do corpo lingüístico coletivo ao qual o falante pertence é que fixa a extensão.1
Essa sugestão de Putnam é importante. Errônea é apenas a interpretação
externista que ele lhe sugere. Como já consideramos ao discutirmos a divisão de
trabalho da linguagem com respeito ao nosso conhecimento do conteúdo de
nomes próprios, Putnam não foi o primeiro a apontar para a existência de uma
divisão de trabalho da linguagem; isso já foi feito por C.S. Peirce e antes dele
pelo próprio Locke, dentro do contexto de sua teoria descritivista e internalista
do significado como idéia mental. E a razão disso é, como já notamos, que a
hipótese da divisão do trabalho linguístico é perfeitamente compatível com uma
perspectiva cognitivista-descritivista ou neofregeana.2 É verdade que podemos
usar palavras como ‘molibdênio, ‘olmo’ e ‘faia’, sem saber o que elas
significam, sem a habilidade de reconhecer as suas referências. Também é 1 H. Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’”, p. 14.2 Ver Michael Dummett: Frege: Philosophy of Language, pp. 138-9. D.H. Mellor: “Natural Kinds”, p. 73.
429
verdade que nos fiamos nos especialistas (metalúrgicos, botânicos...), a saber,
nos usuários privilegiados dessas palavras na comunidade lingüística para uma
identificação suficiente, definitoriamente garantida. Mas o fato é que sempre
sabemos alguma coisa mais ou menos genérica sobre os significados dessas
palavras, por exemplo, quando apenas conhecemos os seus marcadores
sintáticos ou semânticos. Por isso precisamos distinguir entre o conhecimento
suficiente e o conhecimento insuficiente do significado; o primeiro é o que faz
possível a referência identificadora no seu sentido próprio, dizendo respeito ao
conteúdo representacional ou cognitivo que Frege tinha predominantemente em
mente quando usou a palavra Sinn, enquanto o segundo possibilita apenas uma
inserção adequada da palavra em um dado contexto discursivo. Com exceção de
palavras muito usuais, nosso conhecimento do significado costuma ser
insuficiente. Há muitas palavras com relação as quais todos nós temos
conhecimento suficiente do que elas querem dizer; todos sabemos, por exemplo,
que ‘cadeira’ significa o mesmo que ‘banco com encosto’. Mas esse não
costuma ser o caso de termos científicos e técnicos. Eu tenho conhecimento
insuficiente do significado das palavras ‘molibdênio’ e ‘olmo’ – às quais sou
capaz apenas de associar respectivamente as descrições ‘um metal’ e ‘um tipo de
árvore’. Putnam nota corretamente que a representação mental que nos fazemos
ao pensar em olmos e em faias não difere, pois tudo o que pensamos do olmo é
que ele é uma árvore diferente da faia e da faia que ela é uma árvore diferente do
olmo, mas que, sendo simétricas, essas representações não se distinguem entre
si.1 Em certa medida é verdade. Por isso não ficaría sequer muito surpreendido
se fosse informado que olmos são a mesma coisa que faias. Contudo, meu
conhecimento insuficiente da referência já me permite, por exemplo, saber
1 H. Putnam: Representation and Reality, p. 29. Na verdade elas se distinguem quanto à palavra a que se associam: a representação de uma árvore associada à palavra ‘olmo’ e a palavra ‘faia’, de modo que a descrição “uma árvore de nome ‘faia’” só se aplica seguramente a faias e não a olmos, sob a suposição bem plausível de que não são sinônimos.
430
outras coisas, como que olmos e faias não são feitas de molibdênio e que uma
panela de metal não pertence à classe dos olmos. Com isso já posso entender
proferimentos com essas palavras e mesmo empregá-las corretamente na
linguagem em contextos bem pouco exigentes. E posso fazer isso porque tenho
consciência da insuficiência de meu conhecimento e porque muitas vezes o que
os ouvintes precisam e esperam é apenas a informação vaga e incompleta e
porque nos fiamos no conhecimento suficiente do sentido dessas palavras, que
geralmente se encontra nas mentes dos seus usuários privilegiados, como é o
caso do metalúrgico e do botânico.
O que Putnam falha em considerar aqui (movido pelo seu compromisso
externista) é apenas o fato de que uma sociedade lingüística não seria capaz de
fazer referência a espécies de coisas se em algum momento não emergisse um
elemento cognitivo capaz de aplicar os critérios de identificação necessários.
Assim, embora o que determina a referência não precise ser um adequado estado
psicológico do falante, para que a referência seja determinada ela precisará
depender de estados psicológicos de membros autorizados do corpo lingüístico
coletivo; e tais estados psicológicos instanciam sentidos descritivos, que por sua
vez determinam as extensões.1 Pode mesmo ser que o conteúdo informativo
esteja dividido entre os membros da sociedade, mas nesse caso eles se
complementarão permitindo a caracterização. Podemos até imaginar que certos
termos tenham o seu conteúdo armazenado em computadores, ou que autômatos
sejam capazes de aplicá-los para nós e que as regras de identificação sejam
automaticamente geradas por eles, de modo que nenhum ser humano precise
conhecê-las. Mas nesse caso já admitimos que essas regras potencialmente
existem, pois ao virem inscritas em computadores e autômatos identificadores,
torna-se possível para nós resgatá-las cognitivamente. Podemos dizer que uma 1 De resto, como notou Searle, “a tese de que o sentido determina a referência dificilmente pode ser refutada pela consideração de casos de falantes que sequer conhecem o significado ou que o conhecem só imperfeitamente”. Intentionality, p. 201.
431
palavra cuja regra de aplicação tenha sido gerada em seu conteúdo expressivo
por um computador, ou que seja aplicável por um robot caracterizador-
identificador seria em sua significatividade e referencialidade sempre
dependente, em última análise, de intérpretes humanos, ao únicos capazes delhes
doar significado, sendo por isso apenas potencialmente significativa. Ou seja:
mesmo nesses limites extremos significação e referência são fenômenos
antropomórficos que em algum momento demandam ou pressupõem cognição.
Imagine, por exemplo, que uma guerra atômica fizesse desaparecer todos os
cientistas e os meios de acesso à ciência, restando apenas algumas poucas
pessoas sem qualquer conhecimento de ciência, que conseguem sobreviver em
uma comunidade. Nesse caso, termos de física como ‘neutrino’, ‘força forte’ e
‘supercorda’ não seriam mais capazes de denotar mais coisa alguma, mesmo que
elas ainda pudessem ser lembradas ou lidas em algum lugar. Pois dizer que
leigos – sem a possível orientação de especialistas – se referem a algo com essas
palavras é pouco mais do que um simples modo de falar. De fato, dizer que
pessoas sem conhecimento profundo de física sabem o que essas palavras
significam (no sentido fregeano de conteúdo informativo) também não passa de
um grande exagero. Nosso conhecimento de seus sentidos é profundamente
genérico e insuficiente.
O problema é que Putnam hipostasia o uso correto que fazemos das palavras,
mesmo com conhecimento insuficiente do significado e da referência, como se
nele já significássemos e pessoalmente referíssemos plenamente, como se por
um efeito mágico das cadeias causais externas que se combinam na divisão do
trabalho da linguagem. Mas o falante que conhece insuficientemente o
significado de uma palavra que usa não designa sozinho; as suas palavras têm
apenas o que poderíamos chamar de uma referência potencial, na medida em
que ele (sob a condição e ser consciente da extensão de sua ignorância) é capaz
de inseri-las corretamente no discurso. Pois ao fazer isso ele comunica as 432
esperadas vaguidades semânticas que permeiam nossa compreensão cotidiana
das palavras sob o suposto de que existem falantes mais competentes capazes de
lhes atribuir os sentidos adequados e torná-las referencialmente eficazes. Tais
palavras são como notas promissórias de seus sentidos e referências. Nós
confiamos que usuários com conhecimento suficiente dos seus sentidos sejam
capazes de resgatá-los.
O significado só existe enquanto está na mente das pessoas, pois mesmo que
a sua regra esteja, digamos, inscrita nos caracteres de um livro, ou guardada na
memória de computadores, ou mesmo que seja aplicada por um autômato, ela
não é enquanto tal significativa nem é uma regra no sentido que nos interessa da
palavra. Ela só se torna verdadeiramente uma regra semântica enquanto for
interpretada por um agente humano. Uma expressão de regra, como
Wittgenstein notou, pode ser sujeita a um número indeterminado de
interpretações; para que lhe seja dada uma interpretação apta a consenso e
portanto apta a ser socialmente usada e a pertencer à linguagem, ela precisa da
natureza humana que possa constituir a base homogênea sobre qual se pode
construir a forma de vida.
A conclusão de toda essa discussão é que em momento algum o significado
existe fora das cabeças, mesmo que ele venha diversamente distribuído nas
cabeças dos membros da comunidade lingüística. Divida-se o bolo como se
quiser, o significado não está nem na natureza externa nem no corpo lingüístico
coletivo externamente observável; ele há de estar sempre em cabeças
particulares, sejam elas a do falante ou a do intérprete, a do leigo ou a do
especialista, mesmo que desigualmente dividido entre os componentes
formadores da comunidade lingüística e mesmo que parcialmente guardado na
memória artificial de computadores. Devidamente qualificado, o descritivismo é
ubíquo.
433
Tyler Burge e o externalismo do pensamento
Há uma experiência em pensamento complementar à de Putnam, que foi
imaginada por Tyler Burge com respeito ao conceito de artrite. O que Burge
pretendeu foi, para além de Putnam, mostrar que não só o significado deve ser
entendido de maneira extensional, mas que os próprios conteúdos de
pensamento têm determinação externa. Quero resumir o argumento de Burge e
em seguida mostrar que há uma explicação internalista muito mais plausível
para o que acontece.
Embora Burge exponha o seu argumento imaginando uma situação contra-
factual, podemos torná-lo mais claro imaginando que uma pessoa de nome
Oscar sinta dor na coxa e procure um médico dizendo
Acho que tenho artrite na coxa.
Como artrite é entendida como uma inflamação dolorosa e deformante das
juntas, o médico lhe explica que a sua crença é falsa, que ele não pode ter artrite
na coxa. Imagine agora que Oscar viaje para uma região do país na qual seja
costume usar a palavra ‘artrite’ de um modo muito mais amplo, para se referir a
toda e qualquer inflamação. Chamemos a comunidade lingüística dessa última
região de B, e chamemos a comunidade lingüística da primeira região de A.
Suponha que, uma vez tendo chegado à região da comunidade lingüística B,
Oscar procure um médico com a mesma queixa “Acho que tenho artrite na
coxa”. Nesse lugar, como seria de se esperar, o médico irá confirmar a suspeita,
concordando com a verdade de sua crença.
Com base nesse exemplo, o raciocínio de Burge é o seguinte. Sem dúvida os
estados psicológicos de Oscar ao dizer que acredita ter artrite na coxa na
primeira e na segunda vez são exatamente os mesmos, assim como o seu
comportamento. Mas os conteúdos de crença, os pensamentos expressos nos 434
proferimentos, são diferentes, posto que o pensamento expresso pelo primeiro
proferimento é falso, enquanto o pensamento expresso pelo segundo é
verdadeiro. Podemos até marcar o significado diverso da palavra ‘artrite’ no
segundo proferimento com uma nova palavra, ‘cotrite’ (thartritis). A conclusão
do argumento é que o conteúdo de pensamento não pode ser algo meramente
psicológico. Esse conteúdo deve pertencer também ao mundo externo, às
relações sociais da comunidade que envolve o falante.
Contra essa conclusão é possível encontrar uma explicação internalista e
descritivista para o que acontece. Para o internalismo a palavra ‘artrite’ deve
exprimir um conjunto de regras-descrições constitutivas de seu significado. Uma
delas, ‘uma inflamação que ocorre na coxa’, faz parte do sentido da palavra para
a comunidade lingüística da região B, mas não para a comunidade lingüística da
região A. Assim, embora o conteúdo de pensamento expresso na frase “Acho
que tenho artrite na coxa”, dito por Oscar nas regiões A e B possa ser
considerado exatamente o mesmo, há uma diferença que foi justamente
lembrada por John Searle em uma crítica que vai ao cerne da questão:
É uma pressuposição de pano-de-fundo por trás do nosso uso social das palavras que nós compartilhamos significados comuns com outras pessoas em nossa comunidade.1
Ou seja: quando Oscar diz ao primeiro médico “Creio que tenho artrite na
coxa”, ele está pressupondo que a regra de aplicação do predicado ‘artrite na
coxa’ pertence à linguagem que ele está usando, ou seja, que os outros falantes
competentes da linguagem a consideram convencionalmente aplicável. O que
ele tem em mente ao proferir a sua frase diante do primeiro médico poderia ser
reapresentado como
1 J.R. Searle: Mind: A Brief Introduction, p. 184.435
(1) Tenho artrite na coxa e a regra de aplicação do predicado ‘artrite na coxa’ é aceita como correta pelos falantes da comunidade lingüística A, a qual pertence o meu interlocutor.
Essa é uma frase falsa porque a segunda sentença da conjunção é falsa.
Vejamos agora como fica a explicitação daquilo que Oscar tem em mente
quando diz ao segundo médico que acha que está com artrite na coxa:
(2) Tenho artrite na coxa e a assunção de que a regra de aplicação do predicado ‘artrite na coxa’ é aceita como correta pelos falantes da comunidade lingüística B, à qual pertence o meu interlocutor.
A frase (2) é verdadeira porque exprime uma conjunção verdadeira. E a
diferenca de sentido entre (1) e (2) é evidente, pois enquanto uma está
indexicalmente associada à comunidade linguística A, a outra está
indexicalmente associada à comunidade linguística B. Pode ser verdade que se
nos restringirmos ao conteúdo expresso, os pensamentos de Oscar ao proferir a
mesma frase nas regiões A e B sejam idênticos. Mas o que eles têm em mente
(atualmente e disposicionalmente) com os proferimentos – o conteúdo completo
de seus pensamentos – é mais do que isso, pois há uma assunção disposicional
que envolve a situação indexical do falante, cujo valor-verdade varia com a
comunidade linguística envolvida, sendo diferente para cada proferimento.
Trata-se do pressuposto discursivo indispensável de que as regras de verificação
constitutivas do pensamento devam estar em conformidade com as convenções
da comunidade linguística na qual ele é expresso. Esse pressuposto é
transgredido por Oscar quando ele fala com o médico da comunidade A, mas
não é transgredido quando ele fala com o médico da comunidade B. É isso o que
explica porque o pensamento de Oscar em A é falso, enquanto o pensamento de
Oscar em B é verdadeiro. O pressuposto de que o pensamento expresso deve
estar em conformidade com as regras da linguagem não é, porém, externo ao 436
falante. Ele é um elemento psicológico de ordem disposicional, que completa o
conteúdo de pensamento e que pode ser explicitado por Oscar sempre que isso
for requerido.
Burge chamou-nos atenção para alguma coisa importante: que a verdade ou a
falsidade do pensamento completo, incluindo o que ele pressupõe, depende da
comunidade lingüística que envolve o falante. Mas diversamente do que ele
pensam, essa dependência não é externa no sentido de o pensamento não ser
psicológico, encontrando-se como que disperso no meio social. A dependência
social reside exclusivamente em a comunidade lingüística satisfazer ou não uma
condição de verdade interna ao pensamento no sentido amplo, nomeadamente, a
condição de que a regra de aplicação do termo ‘artrite’ usada pelo falante seja
uma regra fundamentada nas convenções lingüísticas da comunidade lingüística
com a qual ele se comunica.
Finalmente, a explicação dada nos permite parafrasear em termos
internalistas a distinção entre conteúdo estreito (narrow content) e conteúdo
amplo (wide content), ao menos para o caso em questão. Para o externalista, o
conteúdo estreito é aquele que está na mente do falante, enquanto o conteúdo
amplo é aquele que está lá fora, no mundo ou na sociedade. A análise
internalista do exemplo de Burge nos permite sugerir que o conteúdo estreito de
pensamento é a própria ocorrência cognitivo-linguística do pensamento
(expresso pela frase “Acho que tenho artrite na coxa”), enquanto o conteúdo
amplo do pensamento nada mais é do que aquilo que está sendo efetivamente
assumido no que é pensado, existindo na mente do falante como uma disposição
cuja existência é certa, dado que uma vez considerada será indiscutivelmente
aceita.
Identidade de espécies naturais
437
Uma questão que pode agora ser colocada é como se comportam identidades de
espécies naturais como “Água é H2O”. Para causalistas-essencialistas como
Kripke e Putnam termos como ‘água’ e ‘H2O” são designadores rígidos. Eles se
referem ao mesmo tipo de coisa em qualquer mundo possível, daí resultando que
“Água = H2O”, embora sendo um enunciado a posteriori (posto que a sua
verdade é derivada da experiência), é necessário (pois designa a mesma essência
H2O em qualquer mundo possível). Já para descritivistas tradicionais, essa seria
uma proposição a posteriori, posto que sua verdade é derivada da experiência, e
também contingente, posto que a água (descrita como ‘líquido transparente,
inodoro etc.’) poderia não ter a composição química H2O, mas alguma outra.
Avrum Stroll sugere que “Água é H2O” não é realmente uma sentença de
identidade, pois o ‘é’ não é o da identidade, mas o de constituição. Assim,
“Água é H2O” não quer dizer “Água = H2O”, mas “Água é constituída de H2O”,
pois se realmente “Água = H2O”, então também “Gelo = H2O” e “Vapor d’água
= H2O”, do que resulta, por transitividade, que “Água = gelo” e “gelo = vapor
d’água”! Esse resultado é suportado pelas nossas análises da regra de aplicação
da palavra ‘água’ e ‘H2O’. Mas mesmo que Stroll esteja certo, as diferenças
persistem, pois os causalistas-essencialistas poderão dizer que “A água é
constituída de H2O” é uma proposição a posteriori, mas necessária, pois H2O é
a essência constitutiva da água em qualquer mundo possível, o que será por sua
vez rejeitado por descritivistas adeptos da contingência da relação de
constituição. Mas quem, no final das contas, estaria certo?
Ao menos no caso desse exemplo (e receio que também em outros) a resposta
neo-descritivista me parece mais adequada. A relação que existe é de
pertinência, a frase é contingente e a posteriori. Para evidenciá-lo, basta
comparar as regras de classificação dos conceitos de água e H2O. A regra de
aplicação para ‘água’, RC-‘água’, pode ser explicitada pela seguinte frase
analítica:438
Usamos o termo geral ‘água’ para nos referirmos a exemplares de uma substância química contida em x see ela pode nos fazer conscientes de que (i) ela satisfaz as regras de caracterização expressas pelo núcleo semântico popular <Ds + Dsp> e/ou pelo núcleo semântico científico <Dps + /Dp/ + Dsp> associado à palavra (ii) em medida no todo suficiente e (iii) sem competição com regras conceituais de outros termos de substâncias químicas.
Enquanto a regra de aplicação para o termo geral ‘H2O’, RC-‘H2O’, é mais
restrita:
Usamos o termo geral ‘H2O’ para nos referirmos a exemplares de uma substância química contida em x see pode nos fazer conscientes de que (i) x satisfaz as regras de caracterização expressas pelo núcleo semântico científico <Dps + /Dp/ + Dsp> associado à palavra (ii) em medida no todo suficiente e (iii) sem competição com regras conceituais de outros termos de substâncias químicas.
A frase “Água é H2O” quer dizer que se acredita que a tudo o que aplicamos
a segunda regra aplicamos também a primeira. A experiência nos mostra que de
fato é assim. Mas essa é uma verdade contingente, baseada na experiência e em
princípio falseável através dela.
Outras alternativas são aquelas em que o entendimento do termo ‘água’ sofre
modificações devidas ao contexto de interesse. Esse pode bem ser o caso do
entendimento de Kripke e Putnam, que é científico. Dentro do contexto
científico o termo ‘água’ passa a significar a mesma coisa que o termo ‘H2O’.
Nesse caso a regra RC-água será a mesma que RC-H2O, donde resulta que “H2O
é água” se torna uma frase analítica e necessária. Mas essa frase necessária é
obviamente a priori, posto que a sua verdade pode ser sabida independentemente
da experiência. Igualmente, se substituirmos a palavra ‘água’ por hidróxido de
hidrogênio, que é o que ela significa aqui, a frase “hidróxido de hidrogênio =
H2O” é necessária e a priori, pois a regra de aplicação é a mesma. É com pesar, 439
contudo, que devo informar que nenhum traço de necessário a posteriori foi
visto por essas paragens.
Resumindo o meu argumento. Que o enunciado “Água é H2O” possa parecer
metafisicamente necessário, pois necessário a posteriori, resulta de uma
ambiguidade no que podemos entender com a palavra ‘água’. Em seu
significado mais genérico, estabelecido por RC-‘água’, dizer que água é H2O é
contingente e a posteriori, pois nem toda a água precisa ser constituída de H2O.
Em seu sentido mais popular, nomeadamente, no contexto das necessidades
cotidianas, a palavra ‘água’ remete a um líquido transparente, insípido e
inodoro, que aplaca a sede e apaga o fogo. Nesse sentido a frase “Água é H2O” é
contingente e a posteriori, ou seja, sintética, pois o predicado, usando o linguajar
kantiano, adiciona algo ao sujeito. Todavia, em seu entendimento científico, que
se estabeleceu na primeira metade do século XIX, em contexto de interesses
científicos, a água é uma substância com estrutura molecular H2O,
cientificamente chamada de hidróxido de hidrogênio, óxido de hidrogênio ou
monóxido de dihidrogênio. Se tivermos em mente esse sentido, a frase “Água é
H2O” é a priori, mas é necessária, ou seja, analítica, pois o predicado não
adiciona nada ao sujeito, uma vez que ela quer dizer o mesmo que “Hidróxido
de hidrogênio é H2O”. Um crítico de Kripke dirá que ele confunde esses dois
sentidos da palavra ‘água’ ao analisar a frase “Água é H2O”, usando o
entendimento popular da palavra ‘água’ para dizer que essa é uma verdade a
posteriori e usando o entendimento científico da mesma palavra para dizer que
essa é uma verdade necessária. Mas “Àgua é H2O” é uma frase ambígua. Ela
pode ser interpretada como a posteriori e sintética ou como analítica a priori. O
que ela não pode é ser interpretada como sendo metafisicamente necessária, pois
falta base suficiente para tal.
440
12. AS IRREGULARIDADES DO TERRENO
CONCEITUAL
Como vimos no capítulo anterior, as teorias descritivistas tradicionais dos
termos gerais eram demasiadamente rudimentares. Foi em parte devido a esse
caráter simplista das teorias descritivistas que se abriu um espaço para a teoria
causal da referência dos termos gerais e o externalismo semântico, sugerindo
que as palavras precisam significar mais do que são convencionadas a significar,
posto que em sua dimensão relevante, que é a da determinação da referência, os
441
significados são externos às nossas mentes. Já vimos, porém, que em seu sentido
próprio o externalismo semântico é insustentável. Embora não queiramos negar
a influência de um elemento causal externo na fixação da referência, ela é aqui
ainda mais elusiva do que no caso dos nomes próprios.
Nosso objetivo deveria ser agora o de desenvolver uma mais adequada teoria
descritivista dos termos gerais, seguindo um modelo paralelo ao proposto para
os termos singulares. Contudo, o terreno que se encontra a nossa frente parece
bem mais acidentado. Não há uma única classificação coerente para os termos
gerais e parece claro que não há um princípio único determinando as suas regras
de aplicação. Por isso e porque a questão demanda investigações mais
particularizadas, não pretendo fazer mais do que esboçar algumas breves
sugestões, admitindo a necessidade de um exame muito mais detalhado.
Uma classificação para os termos gerais
Na tentativa de estabelecer uma classificação geral dos termos gerais, quero
começar propondo uma tricotomia que retém certa analogia com aquela que
divide os termos singulares em indexicais, descrições e nomes próprios. Por isso
divido os termos gerais respectivamente de indexicadores, descritivadores e
nominadores.
Os termos gerais indexicadores são os que só se definem em contextos
indexicais. Exemplo de termos gerais indexicadores seriam palavras como
‘vermelho’, ‘redondo’, ‘quente’. Característico desses termos é que eles não se
deixam analisar na forma de descrições, ao menos quando entendidos como
designações de aparências fenomenais ou seus correlatos. Em contextos
perceptuais eles podem ser usados junto a indexicais de modo a determinar a
referência sem a intermediação de descrições. Não há como analisarmos
fenomenalmente os termos gerais em proferimentos como “Vermelho ali”,
“Redondo lá” ou “Eu sinto calor”. Não há como aprendermos o significado 442
fenomenal das palavras ‘vermelho’ ou ‘redondo’ ou ‘quente’ sem sermos
apresentados a coisas vermelhas ou redondas ou quentes, ou seja, sem
recorrermos ao uso dessas palavras em proferimentos indexicais. Nesse sentido
eles são análogos aos indexicais.
Não é difícil encontrarmos também termos gerais descritivadores, análogos
às descrições definidas, mas com função classificadora ao invés de
individuadora. Esses predicados são complexos e podem sem muita dificuldade
ser traduzidos na forma de descrições indefinidas, como é o caso de ‘...um
filósofo apreciador do belo sexo’, que pode ser aplicada tanto a Abelardo quanto
a Rousseau ou a Russell. Um imenso número de predicados se caracteriza de
forma descritiva.
Há, finalmente, termos gerais nominadores, nomes gerais cuja forma
simbólica é não-descritiva, mas que são analisáveis de modo em certa medida
análogo ao dos nomes próprios, dado que abreviam descrições ou conjuntos de
descrições. Esses são termos de espécies naturais como ‘tigre’, termos de massa
como ‘água’, termos de artefatos como ‘cadeira’, termos sociais como
‘professor’ e ainda termos sócio-culturais como ‘religião’. Eles podem ter maior
flexibilidade do que os termos descritivadores e podem ser em certos casos,
como veremos, entendidos como abreviações de feixes de descrições cujas
combinações efetivamente aplicáveis são selecionadas por meio de regras meta-
caracterizadoras, analogamente ao caso dos nomes próprios.
Diante disso é possível propor para os termos gerais uma hipótese genético-
estrutural também em alguma medida análoga a que já foi proposta para os
termos singulares. Os termos gerais indexicadores são estruturalmente os mais
originários, podendo a cognição das propriedades por eles designadas ser
tomada como elemento na construção de conceitos mais complexos. Os termos
gerais descritivadores podem originar-se de combinações de termos
indexicadores na produção de termos mais complexos. Por fim, por razões de 443
economia e flexibilidade, são instituídas palavras únicas que abreviam
predicados descritivadores segundo regras, como acontece com os termos de
espécies naturais e os termos de massa. Assim, ao invés de dizer ‘líquido
transparente, insípido e inodoro’, ou então ‘hidróxido de hidrogênio’ pode ser
mais vantajoso, pela abrangência dos critérios a disposição, resumir tudo na
palavrinha ‘água’. Finalmente, tanto esses termos gerais nominadores quanto os
termos gerais indexicadores comparecem como constituintes de termos gerais
predicativos descritivadores como é o caso do termo nominador ‘animal’ e do
termo indexicador ‘branco’ na formação do predicado ‘...um animal de focinho
branco’, o que permite a formação de predicados mistos sem limitações de
complexidade.
Essa analogia classificatória entre termos singulares e gerais nos leva a
perguntar se não existiriam situações originárias nas quais essas distinções não
se tivessem diferenciado. Podemos imaginar a existência de um termo
referencial originário, que chamarei de “da”, o qual funcionaria
simultaneamente como um termo singular indexical e como um termo geral
indexicador. O “da” poderia servir, pois, simultaneamente, tanto na delimitação
de uma região espaço-temporal quanto na designação de uma propriedade
singularizada ou de uma espécie natural. Com o “da” acompanhado de um gesto
de apontar se poderia querer dizer compactamente “Isso água”, “Eu zangado”,
“Lá animal feroz”, “Aquilo tigre”. Essa hipótese genético-estrutural pode ser
resumida no seguinte esquema:
Termos singulares Descrições nomes indexicais definidas próprios Termos Referenciais Originários (“da”...) Termos gerais Termos gerais Termos gerais indexicadores descritivadores nominadores
444
Nesse esquema as linhas cheias mostram o natural evolver genético-estrutural
das expressões, enquanto as linhas tracejadas mostram o caminho inverso,
através do qual novas e mais complexas descrições definidas e termos gerais
descritivadores podem ser geradas tendo nomes próprios e termos gerais
nominadores como constituintes.
Neo-descritivismo aplicado a termos gerais
Não faria sentido defender uma teoria descritivista dos termos gerais para os
termos gerais indexicadores, posto que eles são simples. Também não faria
muito sentido tentar desenvolver semelhante teoria para o caso dos termos gerais
descritivadores, posto que eles mesmos, quando funcionam propriamente, são já
descrições a exprimirem regras de classificação de predicados. Mas podemos
desenvolver explicações descritivistas para a aplicação de termos gerais
nominadores.
Os termos de artefatos exemplificam de forma transparente o último caso.
Considere alguns exemplos de definições descritivistas de tais termos:
Cadeira = objeto que serve para sentar e que é provido de encosto.Lápis = objeto manuseável, geralmente de madeira, com ponta de material sólido e que serve para escrever.Carro = objeto que se movimenta, geralmente sobre rodas, sendo feito para transportar seres vivos ou objetos.Catedral = igreja que tem um trono de bispo e congrega as outras igrejas da diocese.
Essas definições são funcionais e, diversamente do caso de espécies naturais,
não fazem menção a essências subjacentes, posto que artefatos não as possuem.
Diversamente dos termos de espécies naturais, cujo significado é expresso por
todo um entrelaçado inferencial de descrições de propriedades aparentes e
445
subjacentes, termos de artefatos costumam ter o seu sentido completamente
determinado por regras-descrições dos tipos que formam o conjunto <Ds +
Dsd>.
Não há nada de errado em definições descritivas como as recém
apresentadas. É verdade que elas podem admitir e até requerer detalhamentos e
que elas não têm fronteiras precisas. Mas isso não as desabona. A vaguidade,
como temos sempre recordado, é uma característica inexpugnável da grande
maioria dos nossos conceitos. Pode-se tentar objetar contra as definições acima
apresentadas apontando para casos limítrofes ou exceções aparentes. Um tronco
de árvore com a forma de uma cadeira, que é trazido para casa e usado como
cadeira, é um caso limítrofe. E um lápis eletrônico, desses usados para desenhar
em telas de computador, pode ser parecido com um lápis, mas não é; trata-se de
um uso extendido da palavra por analogia funcional.
Psicólogos experimentais falam de tipicalidade, da aproximação de um
estereótipo; assim, o estereótipo de lápis não é o lápis de cera, mas o velho lápis
de madeira com ponta de grafite. O estereótipo de cadeira é a da sala de jantar,
não a cadeira de balanço ou de praia. Nós reconhecemos os estereótipos mais
prontamente, já que eles apresentam um maior número de propriedades típicas.1
Daí eles concluem que as maneiras tradicinais pelas quais os filósofos tratam
conceitos, buscando condições essenciais de aplicação, é incorreta. Parece,
contudo, que há aqui uma confusão categorial separando filósofos de psicólogos
experimentais: uma coisa são as maneiras empíricas pelas quais reconhecemos
um artefato é através de múltiplas e variadas constelações criteriais que nos
permitem caracterizá-lo, em uma maior ou menor variedade de casos; contudo,
nada impede que as constelações criteriais diversas formem variações
semânticas contextualmente condicionadas, que de um modo ou de outro se
subordinam a um único conceito explicitado por uma descrição definicional
1 Eleanor Rosh: “On the Internal Structure of Perceptual and Semantic Categories”.446
mais genérica. Uma cadeira de balanço, por exemplo, não possui o típico critério
caracterizador de ter quatro pés; mesmo assim, ela continua sendo um objeto
com encosto, feito para sentar. E o mesmo vale para a cadeira de rodas. Não é
necessário, pois, que haja um contradição entre uma definição filosófica mais
tradicional (em alguns casos mesmo apresentável em termos de condições
necessárias e/ou suficientes) realizada em um nível mais abstrato e a
investigação de critérios identificadores mais particulares em sua relação com
processos de reconhecimento perceptual, como os que são feitos pelos
psicólogos experimentais.
No capítulo anterior vimos que no caso de termos de espécies naturais como
água e ouro precisamos distinguir ao menos dois núcleos descritivos na
constituição do sentido do termo: um núcleo popular, relacionado à nossa vida
cotidiana, e um núcleo científico, relacionado à estrutura essencial subjacente.
Mas não podemos generalizar. Considere o termo contável de espécie natural
‘tigre’. Podemos considerar a descrição de superfície (o estereótipo) como sendo
Ds(t) = grande e feroz felino carnívoro e quadrúpede com pelo amarelo, listas
escuras transversais e focinho branco. Com isso o importante para a
identificação de um tigre é que ele pertença à espécie dos tigres, ou seja, que
satisfaça a descrição de superfície disposicional para tigres, que sugiro ser a
seguinte:
Dsd(t): ser capaz de se entrecruzar de modo a produzir descendentes férteis, ocorrendo esse entrecruzamento com outros animais que satisfazem suficientemente Ds(t) e que pertencem à população que causalmente originou o estabelecimento convencional da aplicação da palavra ‘tigre’ aos seus membros, ou que então são descendentes dessa mesma população que ainda são capazes de se entrecruzar com membros dessa população.
Essa caracterização é útil por associar a característica do entrecruzamento com
as características da descrição de superfície historicamente associadas à 447
população a que foi originariamente aplicada a palavra ‘tigre’, que é um animal
originário da Ásia e que já era conhecido na Europa desde a antiguidade. Além
disso, a exigência de que os descendentes da população que originou o nome
sejam entrecruzáveis com os membros dessa população é importante, posto que
a evolução poderia produzir descendentes não mais entrecruzáveis, o que daria
lugar a uma outra espécie. Ainda uma vantagem dessa caracterização é que ela
satisfaz condições contrafactuais: se um animal vindo de um outro planeta fosse
capaz de se entrecruzar com os descendentes dos nossos tigres asiáticos ele
seria, segundo essa definição, um tigre, o que é intuitivamente aceitável).
Admitindo-se Dsd(t) chegamos à seguinte regra de aplicação para tigres:
RC-‘tigre’:Usamos o termo geral tigre para nos referirmos (propriamente) a uma propriedade de um animal xseea propriedade de x está na origem (causal, inferencial) de nossa consciência de que(i) A propriedade de x satisfaz a regra de aplicação expressa por Dsd(t),(ii) em medida suficiente,(iii) sem competição com regras caracterizadoras de outra espécie animal.
Aqui cabe a pergunta: tigres são também animais que possuem um certo
layout genético característico, exprimível através de uma certa descrição, que
podemos abreviar como Dp(t); qual o papel desse layout genético na
caracterização de um animal como sendo um tigre? A resposta, se
considerarmos a regra acima é que esse papel deve ser aqui secundário. Ao
menos para a zoologia atual o termo de espécie natural ‘tigre’ funciona de modo
diferente do termo ‘água’. Enquanto a descrição da microestrutura é importante
para a caracterização de massas d’água, o layout genético não é importante para
a identificação de tigres, diversamente da constatação de sua pertinência a uma
dada espécie. Pode ser que o conceito de tigre seja alterado, de modo que o 448
layout genético passe a ter um papel mais relevante, mas essa é uma questão
subseqüente.
Ainda outro caso é o de termos gerais que parecem ser de espécie natural,
mas que não possuem nenhuma estrutura subjacente. Considere conceitos
geográficos, como os de rio e lagoa. Um rio é um fluxo d’água que corre sobre
um leito naturalmente escavado na terra em certa direção, partindo de uma
nascente etc. (diversamente de canais, rios de lava etc.) Esse conceito se
distingue tão somente pela propriedade superficial de ser uma extensão fechada
e suficientemente grande de água doce (diversamente de lagos, lagunas, poças
d’água etc.).1
Diversamente do caso dos nomes próprios, não faz muito sentido exigir dos
termos gerais que eles satisfaçam descrições do grupo A, de localização espaço-
temporal, posto que eles não se aplicam a um único objeto. Já vimos como isso
se dá com um termo de espécie natural como ‘água’. Mas no caso de espécies
zoológicas como a dos tigres, a relação com o grupo historicamente e
regionalmente localizado que deu origem ao nome é importante.
Há ainda casos em que os critérios caracterizadores do tipo de entidade além
de serem múltiplos, estão fracamente conectados entre si. Nesses casos podemos
ser levados a recorrer a uma regra meta-caracterizadora para o termo geral capaz
de estabelecer o que e o quanto da multiplicidade de condições precisa ser
satisfeito. Assim, podemos eventualmente precisar de
(i) um conjunto de regras-descrições de primeira ordem que constituem um paradigma (o assim chamado feixe de descrições), e(ii) uma regra-descrição de ordem superior, RC – a regra de aplicação do conceito – estabelecendo o quanto do paradigma precisa ser satisfeito para que o termo geral possa ser aplicado.
1 Uma alternativa seria definir a espécie natural pelo compartilhamento de uma essência subjacente, o que com boas razões excluiria esses termos.
449
Quero me restringir aqui a um único exemplo desse tipo, o conceito de
religião. Baseando-me em P.W. Alston, eis o paradigma de regras-descrições
criteriais relevantes para a aplicação referencial da palavra ‘religião’:
1. Crenças em seres sobrenaturais (deuses).2. Sentimentos caracteristicamente religiosos (reverência, adoração, senso
de mistério, sentimento de culpa, etc. associados ao divino).3. Um código moral que se acredita sancionado pelos deuses.4. Rezas e outras formas de comunicação com os deuses.5. Uma distinção entre objetos sagrados e profanos; atos rituais concentrados
em torno de objetos sagrados.6. Uma ampla organização da vida individual e social baseada em
características anteriormente descritas. 1
7. Uma cosmovisão, a saber, uma explicação do significado do mundo e do lugar do homem nele.
Como o próprio Alston notou, há religiões como o catolicismo, o judaísmo e
o islamismo, que satisfazem todas as regras-descrições que constituem o próprio
paradigma. Elas constituem casos prototípicos, derivando-se a aplicação da
palavra para casos que satisfazem apenas partes do paradigma. Cumpre notar
que talvez nenhuma das condições incluídas no paradigma seja necessária, não
existindo nesse caso uma essência geral da religião. No protestantismo, nota
Alston, os rituais relativos a objetos sagrados são bastante atenuados; e no caso
dos Quakers eles são até mesmo repudiados, tornando-se fundamental apenas a
experiência mística. Mesmo a crença em seres sobrenaturais pode estar ausente;
há religiões como o budismo hinayana, nas quais os seres sobrenaturais são
ignorados, incidindo a ênfase no cultivo de uma disciplina moral e meditativa
que busque um estado espiritual em que todos os desejos parem de existir. E há
religiões laicas em que a crença em um Deus pessoal sobrenatural é
simplesmente excluída, como é o caso da religião da humanidade fundada por
Auguste Comte, que diviniza a sociedade humana. A religião sequer precisa ser 1 Ver P.W. Alston: Philosophy of Language, cap. 6.
450
uma prática social, como acontece com religiões pessoais, como a do filósofo
Spinoza, que se baseava na calma e jubilosa aceitação de tudo o que acontecia
como decorrente das leis impessoais do universo, ou a do físico Albert Einstein,
que via nessas leis uma fonte de reverência e de encantamento.
Podemos com isso estabelecer uma regra de regras aplicável às regras-
descrições constitutivas do paradigma formador do sentido do termo geral
‘religião’. Podemos chamá-la simplesmente de regra de aplicação constitutiva
do conceito de religião ou:
RC-‘religião’:Usamos a palavra ‘religião’ para nos referir (propriamente) a uma prática sócio-cultural que é característica do objeto x
seea característica do objeto x está na origem (causal ou inferencial) de nossa consciência de que (i) x satisfaz suficientemente ao menos uma ou duas das regras-descrições constitutitivas do paradigma para o termo geral ‘religião’.(ii) x satisfaz mais a condição (i) do que a de qualquer outra regra caracterizadora de outras práticas sócio-culturais.
Essa regra nos permite chamar de religião não só o catolicismo e o judaismo,
que exemplificam o paradigma, mas também o budismo hinayana e a religião da
humanidade. Uma característica dessa regra de aplicação é que ela é
propositadamente vaga. Ela é vaga de maneira a fazer corresponder à vaguidade
de nosso próprio conceito de religião, que por sua vez deve corresponder à
vaguidade intrínseca ao fenômeno considerado. Há casos de religiões pessoais
(como as de Spinoza e Einstein), que são fronteiriços no sentido de que não mais
sabemos se o conceito realmente se aplica. E há ainda casos que eventualmente
satisfazem a condição (i) da regra de aplicação, mas que não satisfazem a
condição (ii). Considere, por exemplo, organizações secretas como a dos
Rosacruzes, grupos políticos radicais como o dos comunistas ortodoxos, ou
451
ainda, o misticismo matemático dos filósofos pitagóricos. Como as regras de
classificação dos conceitos de organização secreta, grupos políticos radicais e
filosofia se aplicam a essas coisas mais propriamente, o conceito de religião
passa a aplicar-se a elas apenas em um sentido estendido.
Termos gerais e designação rígida
Diante dessa variedade de regras de aplicação podemos nos perguntar se os
termos gerais são designadores rígidos. Tanto Kripke quanto Putnam
responderiam afirmativamente a essa pergunta, ao menos no que concerne aos
termos de espécie natural, pois eles se referem a uma mesma essência
microestrutural em qualquer mundo no qual essa mesma essência existe.1
Mas a rigidez dos termos gerais é diferente do caso relativamente não-
problemático da rigidez dos nomes próprios. Enquanto o nome próprio designa
apenas um único objeto em qualquer mundo possível no qual esse objeto existe,
precisando-se apenas identificá-lo, o termo geral designa a mesma propriedade,
que se instancia em um número de objetos que varia para cada mundo possível
(há mundos possíveis nos quais os tigres podem ser animais muito raros e outros
populados por bilhões de tigres). Por isso mesmo, para quem defende a rigidez
dos termos de espécie natural, a sua referência não deve poder ser a extensão.
Também é inadequado pensarmos que o termo geral é rigido por ter como
referência uma espécie.2 Pois se fizermos isso parece que, ou recaimos no
mesmo problema recém-descrito, ou então nós o circundamos pensando na
espécie como uma propriedade abstrata, mas ao preço de termos de aceitar
alguma forma de platonismo de propriedades, que além de ser escassamente
inteligível é incapaz de ser assimilada a uma semântica de mundos possíveis.
1 Kripke: Meaning and Necessity, p. 134 ss. e Hilary Putnam: “The Meaning of ‘Meaning’”, sec. 6.2 Jean LaPorte: “Rigidity and Kind”. Ver também Stephen P. Schwartz: “Kinds, General Terms, and Rigidity: a Reply to LaPorte”.
452
A solução mais viável parece-me ser propor que termos gerais designam
primariamente propriedades singularizadas, tropos. Sob esse ponto de vista um
termo geral é rígido na medida em que ele designa uma mesma propriedade
singularizada, um mesmo tropo ou conjunto ou sistema de tropos em qualquer
mundo possível no qual ele existe. Uma conseqüência importante disso é que o
tropo precisa ser identificado por sua relação com o termo singular na frase
singular. Considere, por exemplo, o termo indexicador ‘branco’. Quando
usamos a frase predicativa singular “A Lua é branca”, estamos nos referindo ao
tropo (ou tropos) de brancura da Lua, de modo que o termo geral indexicador
‘branco’ pode ser considerado rígido por aplicar-se ao mesmo tropo de brancura
em qualquer mundo possível no qual esse tropo exista, a saber, em qualquer
mundo possível no qual não só exista a nossa Lua mas que ela também seja
branca. Note-se, porém, que isso só é possível quando o termo geral se aplica ao
objeto referido por algum termo singular, o qual é ele próprio rígido, tornando a
rigidez do termo geral uma rigidez secundária, diversa da rigidez de um termo
singular como ‘Lua’, que é rígido na independência de seu comparecimento em
frases singulares.1
Um outro caso é o de termos gerais nominadores como ‘água’. Se exigirmos,
para a caracterização do que chamamos de água, a satisfação da descrição “<Ds
+ Dsp> e <Dps + /Dp/ + Dsp>”, então na frase “Isso é água” usada por mim
agora para me referir a um copo de água que tenho a mão, parece aceitável que
eu use o predicado como designador rígido, aplicando-se ele ao mesmo conjunto
de propriedades em qualquer mundo possível no qual esse conjunto de
propriedades seja identificado pelo indexical ‘isso’ usado por mim nas mesmas
circunstâncias.
1 Com isso espero estar levando adiante a proposta de Devitt e Sterelny de que termos gerais são “aplicadores rígidos” que se aplicam a um objeto no mundo atual e que, se esse objeto existe em um mundo possível, então ele se aplica a esse objeto nesse mundo possível. Devitt & Sterelny: Language and Reality, p. 85.
453
Finalmente, para o caso dos termos gerais descritivadores, considere a frase
“Russell tinha senso de humor”. O termo geral ‘senso de humor’ é aqui um
designador rígido secundário porque a propriedade em questão de ter senso de
humor é individualizada por Russell em qualquer mundo possível no qual ele
compareça com o seu senso de humor.
Essa sugestão também explica porque termos gerais nominadores podem ser
rígidos enquanto as descrições constitutivas desses termos não são rígidas.
Assim, ‘água’ é um termo rígido por contraste com a descrição ‘serve para
beber’, pois se aponto para esse copo D’água e digo ‘Essa água serve para
beber” no mundo atual, isso é verdadeiro, mas pode ser que em algum outro
mundo possível eu aponte para esse mesmo copo d’água e para essa mesma
água e esteja dizendo algo falso, pois embora sendo a mesma água, contêm
algumas miligramas de arsênico e não serve para beber. A explicação é aqui a
mesma: o termo geral descritivador é no caso semanticamente dependente da
aplicação do termo geral nominador, o que explica a sua flacidez relativa.
Essas respostas podem ser vistas como algo trivializadoras da noção de
designador rígido. Mas a meu ver essa trivialização já estava presente em nossa
análise da rigidez no caso paradigmático dos nomes próprios, sendo a
trivialidade do caso presente uma simples consequência.
A questão da essência
Chegamos com isso à velha questão da essência: aplicamos termos gerais com
base em essências comuns aos seus exemplares? Pelo que vimos a questão não
pode ser respondida com um simples sim ou não. Se entendermos por
propriedade essencial aquela que é necessária e suficiente para a aplicação do
termo geral que a caracteriza, podemos comparativamente classificar uma
variedade de tipos de termos gerais de acordo com o grau de necessidade com
que propriedades precisam satisfazer suas condições caracterizadoras para que 454
eles sejam aplicados. No que diz respeito a esse grau de necessidade, os termos
gerais podem incluir os seguintes casos:
(a) o termo geral que designa uma propriedade essencial, definida como
sendo necessária e suficiente. Esse seria o caso de termos indexicadores como
vermelho e redondo. Esse também seria o caso de termos propriamente
descritivadores, como ‘terno branco’ e ‘uma bola de fogo’, os quais demandam a
satisfação de um conteúdo descritivo específico. Nesse caso parece que
podemos postular essências reais (de re).
(b) Termos nominadores de espécie natural que possuem propriedade
microestrutural essencial, como ‘ouro’ (se não é o elemento de número atômico
76, não é propriamente ouro). Como isso foi convencionalmente estabelecido
trata-se de uma essência nominal.
(c) Termos nominadores de espécie natural como ‘tigre’, cuja propriedade
essencial está no nível superficial de pertinência a uma dada espécie (também
uma essência nominal).
(d) Termos nominadores de espécie natural como ‘água’ que, como vimos,
possuem propriedades fundamentadoras nucleares que podem ser suficientes,
mas que não são necessárias, não podendo por isso serem consideradas
essenciais. Contudo, elas são essenciais quando distintivas de subconceitos,
como o expresso pelo termo ‘hidróxido de hidrogênio’.
(e) Termos gerais nominadores como ‘religião’, ‘jogo’, ‘número’, ‘arte’,
‘conhecimento’, ‘consciência’... Esses termos correspondem ao que
Wittgenstein a meu ver equivocadamente analisou como possuindo o que ele
chamava de “semelhanças de família” entre as suas aplicações.1 Nesses casos
1 Ver Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, sec. 68. O problema com o conceito de semelhanças de família é que ele só exige que entre duas diferentes aplicações de um predicado seja preservada alguma semelhança, sem estabelecer seus limites. O resultado é que, como qualquer coisa tem semelhança com qualquer outra coisa sob algum ponto de vista, não há como estabelecer os limites de aplicação de um termo com semelhanças de família, o que me parece uma dificuldade insuperável. O recurso a um paradigma e a uma regra meta-
455
certamente não há nenhuma essência comum, mas aglomerados diversos de
propriedades. Contudo, eles podem ser freqüentemente analisados em
subconceitos que por sua vez possuem alguma essência comum. Assim, pode ser
bem possível que exista uma essência comum ao catolicismo, ao jogo de xadrez,
ao número natural, à arte própria, ao conhecimento proposicional ou à
consciência representacional, apesar do descrédito de alguns.
A admissão das possibilidades que vão de (a) e (e) nos provê de uma chave
para abordar o dilema vigente entre essencialismo e anti-essencialismo, pois
sugere que ambos os casos possam ser encontrados. Admite-se a essência, que
ou é nominal (e nesse sentido de dicto) ou é postulada como real (e nesse
sentido de re). Mas essa resposta já seria suficiente para fazer a balança pender
para o lado do essencialismo, posto que basta admitirmos alguma essência para
nos tornarmos de algum modo essencialistas.
Conclusão
Quero terminar retornando às considerações metafilosóficas do início desse
livro. “Tudo é um”, pensavam os pré-socráticos. A abrangência de escopo tem
sido um traço constitutivo da filosofia em toda a sua história. Mas essa
abrangência tem sido desafiada pela filosofia contemporânea, voltada como ela
se encontra para investigações cada vez mais específicas, em geral como
resposta ao progresso da ciência. Um resultado disso é que, no imenso tear da
filosofia da linguagem contemporânea, a visão abrangente parece quase perder-
se de vista, dando-nos a impressão de que ela esteja fora do alcance, se não for
de todo impossível.1 Quis aqui seguir o caminho inverso. Meu intento foi o de
proceder de modo sistematizador e não-redutivo, ou seja, não me atendo
caracterizadora que vige sobre os elementos do paradigma permite superar essa dificuldade.1 Scott Soames, por exemplo, chama atenção para o fato de que a filosofia contemporânea tem produzido teorias cada vez mais especializadas, que se desdobram expansivamente em novas subteorias, sem nenhuma expectativa de síntese. Ver “The Era of Especialization”, epílogo de sua obra de The Philosophical Analysis in the Twentieth Century, vol. 2.
456
excessivamente ao modelo logicista que se estabeleceu de forma unilateral como
modelar em filosofia da linguagem1, mas também a elementos lingüísticos,
psicológicos, sociais e biológicos, partindo sempre de nosso entendimento
lingüístico comum (que por sedimentar a milenar herança conceitual do senso
comum é essencialmente não-redutivo, apesar de pré-científico), no intento de
mostrar que é possível uma explicação cognitivista e internalista para os
mecanismos de referência de cada espécie de expressão referencial.
Para quem me seguiu até aqui espero ter ficado claro que, pela coerência com
que as peças do quebra-cabeça parecem se encaixar, um resultado flagrante da
discussão é um remapeamento mais consistente e plausível de nossas idéias
acerca dos mecanismos de referência. Da reconfiguração de valores resultante
da forma de cognitivismo semântico defendida no presente texto emerge um
quadro mais complexo, no qual pontos de vista que pareciam ultrapassados
voltaram a ocupar o centro do palco, enquanto que concepções geralmente
admitidas como centrais tiveram de ter seu papel reescrito como o de figuras
secundárias cuja principal função foi a de serem curiosos e dialeticamente
instigantes desafios cuja resposta nos permitiu dar um passo adiante. O que mais
importa fazer agora, porém, não é dar prosseguimento a esse trabalho crítico,
mas encetar um desenvolvimento mais detalhado e sistemático das teorias
positivas que foram aqui apenas esboçadas.
1 John Searle sugere que pelo fato acidental dos iniciadores da filosofia analítica – Frege, Russell, o primeiro Wittgenstein – serem lógicos, a filosofia analítica ficou excessivamente carregada de logicismo, contra o qual ele opõe a sua perspectiva biológico-naturalista (ver “What is Language: Some Preliminary Remarks”, pp. 15-17). Eu atribuiria isso mais ao cientismo logicista (à mimetização da ciência pela filosofia) reforçado pela acidental emigração dos positivistas lógicos para os Estados Unidos, que teve um efeito o efeito de fazer renascer a tradição da filosofia da linguagem ideal através de filósofos como Quine, Davidson, Kripke, Kaplan e outros, enquanto os métodos da filosofia da linguagem ordinária ficaram desnecessariamente restringidos à pragmática.
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