Aposentadoria Marcelo Neri

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Julho de 2008 CONJUNTURA ECONÔMICA 40 TEMAS SOCIAIS A teoria do ciclo de vida de Franco Modigliani é fre- qüentemente invocada para explicar as motivações para comportamentos financeiros das pessoas físicas, à medida que envelhecem. De acordo com a teoria, a expectativa de queda da renda do trabalho na terceira idade induz as pessoas à acumulação prévia de ativos, a fim de financiar um padrão estável de consumo e de bem-estar durante os anos finais da vida. No Brasil, temos o hábito de questionar a validade de teorias globais, em prol de conjecturas locais, e perguntamos: será que a motivação de poupança de prazo tão longo, como proposta por Modigliani, sobreviveria ao conhecido hábito brasileiro de pensar e trabalhar somente no curto prazo? Mesmo que a hipótese central de suavização privada do bem-estar ao longo do tempo seja rejeitada no nosso contex- to, a teoria oferece um arcabouço interessante para analisar como a insuficiência de ações privadas é compensada pela ação pública, por meio de transferências de renda e aposen- tadorias, ou, alternativamente, para aferir os impactos da falta de proteção social que caracterizaria a população da terceira idade no Brasil. O nosso objetivo aqui é descrever alguns determinantes econômicos do nível de bem-estar da população que se en- contra na terceira idade, a partir dos resultados da pesquisa Idosos no Brasil feita pelo Serviço Social do Comércio (SESC) e pela Fundação Perseu Abramo (FPA), reunidas em livro publicado pelas mesmas instituições, que inclui tanto aspec- tos objetivos como subjetivos. Estes últimos constituem um diferencial relevante desse trabalho que complementam os analisados freqüentemente em economia. Outra inovação é analisar o comportamento financeiro dos idosos em relação a crédito consignado vinculado a pensões e aposentadorias. Fontes — A perspectiva de queda da renda do trabalho nas fases finais do ciclo da vida torna necessária a poupança, se o objetivo for sustentar um mesmo patamar de consumo na terceira idade. O paulatino aumento dos fluxos de rendimen- tos alternativos aos do trabalho gera uma perfeita suavização da renda de todas as fontes, e do consumo, nas idades mais avançadas, tal como sustenta Modigliani. Na análise da renda familiar per capita, a família funcionaria como uma unidade de tomada de decisões de consumo e poupança, e isso implica um processo de socialização da renda dentro dos domicílios. O gráfico elaborado a partir dos microdados do Censo Demográfico 2000/IBGE, apresenta as trajetórias de renda Marcelo Neri Centro de Políticas Sociais do IBRE e da EPGE ([email protected]) Aposentadoria: atitudes e percepções

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    T E M A S S O C I A I S

    A teoria do ciclo de vida de Franco Modigliani fre-qentemente invocada para explicar as motivaes para comportamentos financeiros das pessoas fsicas, medida que envelhecem. De acordo com a teoria, a expectativa de queda da renda do trabalho na terceira idade induz as pessoas acumulao prvia de ativos, a fim de financiar um padro estvel de consumo e de bem-estar durante os anos finais da vida. No Brasil, temos o hbito de questionar a validade de teorias globais, em prol de conjecturas locais, e perguntamos: ser que a motivao de poupana de prazo to longo, como proposta por Modigliani, sobreviveria ao conhecido hbito brasileiro de pensar e trabalhar somente no curto prazo?

    Mesmo que a hiptese central de suavizao privada do bem-estar ao longo do tempo seja rejeitada no nosso contex-to, a teoria oferece um arcabouo interessante para analisar como a insuficincia de aes privadas compensada pela ao pblica, por meio de transferncias de renda e aposen-tadorias, ou, alternativamente, para aferir os impactos da falta de proteo social que caracterizaria a populao da terceira idade no Brasil.

    O nosso objetivo aqui descrever alguns determinantes econmicos do nvel de bem-estar da populao que se en-

    contra na terceira idade, a partir dos resultados da pesquisa Idosos no Brasil feita pelo Servio Social do Comrcio (SESC) e pela Fundao Perseu Abramo (FPA), reunidas em livro publicado pelas mesmas instituies, que inclui tanto aspec-tos objetivos como subjetivos. Estes ltimos constituem um diferencial relevante desse trabalho que complementam os analisados freqentemente em economia. Outra inovao analisar o comportamento financeiro dos idosos em relao a crdito consignado vinculado a penses e aposentadorias.Fontes A perspectiva de queda da renda do trabalho nas fases finais do ciclo da vida torna necessria a poupana, se o objetivo for sustentar um mesmo patamar de consumo na terceira idade. O paulatino aumento dos fluxos de rendimen-tos alternativos aos do trabalho gera uma perfeita suavizao da renda de todas as fontes, e do consumo, nas idades mais avanadas, tal como sustenta Modigliani. Na anlise da renda familiar per capita, a famlia funcionaria como uma unidade de tomada de decises de consumo e poupana, e isso implica um processo de socializao da renda dentro dos domiclios.

    O grfico elaborado a partir dos microdados do Censo Demogrfico 2000/IBGE, apresenta as trajetrias de renda

    Marcelo NeriCentro de Polticas Sociais do IBRE e da EPGE

    ([email protected])

    Aposentadoria: atitudes e percepes

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    per capita provenientes do trabalho, de outras fontes e da soma de todas as fontes, ao longo da vida. Observe-se que a renda do trabalho nas idades representada por uma curva em formato de sino que atinge o pico absoluto de R$ 327 entre os 45 e os 49 anos de idade e que cai da para frente, at atingir um valor absoluto de R$ 168, entre aqueles acima de 60 anos. O aumento das rendas alternativas ao trabalho ao longo da vida pode ser interpretado como evidncia da tendncia de acumular recursos financeiros, com o objetivo de manter o nvel de bem-estar nas etapas finais do ciclo da vida, ocasio em que a renda do trabalho reduzida. Consi-derando os fluxos de renda per capita dos idosos com mais de 60 anos, observamos as seguintes participaes relativas: trabalho (39%), previdncia (49%), aluguis (7%) e outras rendas (6%) que incluiriam a renda financeira.

    J de acordo com a pesquisa Idosos no Brasil, a aposenta-doria por idade (28%), a aposentadoria por tempo de servio (26%), a penso por morte (16%), o trabalho (15%) e a aposentadoria por invalidez (10%) so as principais fontes de renda na velhice. Os idosos foram questionados sobre o conhecimento do Benefcio de Prestao Continuada (BPC), associado Lei Orgnica de Assistncia Social (LOAS), programas que transferem um salrio mnimo mensal para aqueles com deficincia e/ou com idade acima de 65 anos, extremamente pobres, ou seja, com renda familiar inferior a de salrio mnimo mensal. Trinta e sete por cento dos idosos afirmaram conhec-lo. Destes, apenas 1% de forma espontnea, ou seja, sem a necessidade de estimulao do entrevistador. Esse conhecimento foi menor nos grupos mais velhos, uma vez que, entre os de 80 anos ou mais, apenas 19% disseram conhecer o programa.

    O recebimento de aposentadoria atinge 64% dos idosos. bastante diferenciada por gnero: 80% dos homens contra 52% das mulheres so aposentados. As mulheres se aposen-tam mais por idade enquanto os homens se aposentam mais por tempo de servio. Entre aqueles que se aposentaram (64%), 83% obteve a aposentadoria por idade ou tempo de servio (53% dos idosos) e 67% dos que se aposentaram disseram ter desejado a aposentadoria (43% dos idosos), enquanto 11% no queriam se aposentar (7% dos idosos), dado importante a ser considerado pelos planejadores de polticas previdencirias.Adaptao Os dados da pesquisa revelam que, de modo geral, as pessoas no recebem preparao especfica para a aposentadoria 95% dos idosos aposentados declararam no ter tido essa oportunidade. Dentre os idosos que a tive-ram, 2% foram em empresas privadas em que trabalhavam e 3% do governo. Nenhuma mulher que trabalhava em em-presas privadas participou de programas de preparao para a aposentadoria e apenas 2% receberam alguma preparao para a aposentadoria por parte do governo. Possivelmente, esse dado afetado pela baixa participao das mulheres hoje idosas no mercado de trabalho. As prximas geraes devero apresentar uma configurao diferente, pois o traba-

    lho feminino fora de casa cresceu muito nas ltimas dcadas. Por faixa etria, no notamos grandes va-riaes quanto oferta de programas de preparao para a aposentadoria, a no ser para os homens e mulheres entre 75 e 79 anos, grupo no qual 9% afirmaram ter recebido algum tipo de preparao por parte do governo.

    As dificuldades de adaptao rotina de aposentado geralmente afetam mais o homem do que a mulher (25% contra 21%) 15% deles e 11% delas indicaram a falta de rotina ou da movimentao do dia-a-dia como as principais barreiras adaptao. Talvez a menor freqncia dessa queixa entre as mulheres se deva ao fato de a aposentadoria significar o retorno s rotinas domsticas, agora sem o peso adicional daquela associada ao trabalho fora de casa.

    Estrutura de consumo (%) Populao total e da terceira idade

    Popu-lao total

    Famlias com pelo menos 50% de idosos

    Fam-lias com

    idosos

    Fam-lias s com

    idososTotal

    idosos

    At 8 sal-rios

    mni-mos

    Acima de 8 sal-rios

    mni-mos

    Alimentao 27,49 30,23 35,34 24,90 30,43 30,05 Gneros alimentcios 24,75 27,96 33,33 22,45 28,20 27,61Habitao 31,84 33,00 35,25 30,84 32,97 35,79Vesturio 5,40 3,68 2,70 4,52 3,65 3,01 Roupas 3,46 2,39 1,68 3,01 2,41 1,94 Roupas masculinas 1,27 0,86 0,67 1,05 0,91 0,67 Roupas femininas 1,59 1,35 0,85 1,64 1,32 1,20Sade e cuidados pessoais 10,36 15,03 14,47 15,09 14,90 16,79 Servios de sade 3,70 6,81 5,09 8,46 6,74 8,27 Hospitais e laboratrios 0,15 0,59 0,92 0,30 0,59 0,79 Mdico, dentista e outros 3,55 6,22 4,17 8,16 6,15 7,48 Produtos mdico-odontolgicos 2,60 4,91 5,79 3,48 4,89 5,50 Medicamentos em geral 2,20 4,48 5,47 2,99 4,41 5,22 Cuidados pessoais 4,06 3,31 3,59 3,15 3,28 3,02Educao, leitura e recreao 8,74 4,43 1,81 7,63 4,47 2,84 Educao 5,76 1,86 0,52 3,91 1,99 0,44 Leitura 0,43 0,57 0,42 0,76 0,55 0,59 Recreao 2,56 1,99 0,88 2,96 1,93 1,80Transportes 11,72 7,85 6,24 9,06 7,87 6,33 Transporte pblico 5,01 3,03 3,36 2,41 3,04 2,16 Transporte pblico urbano 4,76 2,91 3,25 2,28 2,94 2,06 Transporte pblico interurbano 0,25 0,12 0,10 0,13 0,11 0,10Despesas diversas 4,44 5,79 4,19 7,97 5,71 5,19

    Fonte: DGD/IBRE/FGV.Obs: grupo, subgrupo e item.

    Aposentados, os

    idosos acham

    importante

    continuar

    exercendo

    atividades,

    como forma de

    adaptao mais

    fcil nova rotina

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    Dificuldades financei-ras foram relatadas por 5% dos homens e por 2% das mulheres. As baixas freqncias desse tipo de resposta talvez se devam presena de reservas acu-muladas durante os anos produtivos, exatamente para suavizar o impacto da queda de renda na velhice. As queixas mais freqentes entre os ho-mens talvez derivem do fato de que, na maioria das famlias, cabe a eles

    o papel provedor. Com a queda de renda depois da apo-sentadoria, parte dos homens experimenta problemas em manter o mesmo padro de vida.

    De modo geral, uma vez aposentados, os idosos acham importante continuar exercendo atividades, como forma de adaptao mais fcil nova rotina. Apontam vrias alternativas para dar vazo a essa necessidade: 16% res-saltam o trabalho como opo, e no como obrigao; 13% falam da importncia de ter qualquer atividade para ocupar o tempo e a mente; 10% afirmam que bom ter um trabalho mais leve e adequado idade; 8% afirmam que desejvel manter o salrio para garantir o mesmo padro de vida; e 8% dizem que gostariam de dedicar-se a cursos, projetos e afazeres voluntrios, trabalhando menos horas. Lazer (7%), atividade fsica (6%) e descanso (5%) gozam de menor importncia entre as sugestes dos aposentados. Ou seja, os valores associados ao trabalho permanecem mais presentes entre os idosos do que a idia de recolhimento a atividades mais ldicas. No entanto, importante mencionar que 7% dos idosos disseram que no fazem nada e 30% responderam que no sabiam o que fazer para manter a atividade depois da aposentado-ria, o que sugere a oportunidade de ofertar programas de preparao para a aposentadoria que ofeream orientao quanto a esse aspecto.Emprstimo O governo federal tem possibilitado aos aposentados tomar emprstimos com desconto direto na folha de pagamentos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), at o limite de 30% dos benefcios. Questionados de forma estimulada sobre o conhecimento e a utilizao do em-prstimo consignado, 23% dos idosos da pesquisa SESC/FPA disseram nunca ter ouvido falar. A proporo daqueles que jamais fizeram o emprstimo decai com a idade, passando de 60% daqueles entre 60 e 64 anos para 42% entre os com 80 anos de idade ou mais. O uso deste canal de crdito muito mais por necessidade prpria do que para repassar aos parentes. Para aqueles entre 65 e 69 anos, por exemplo,

    25% utilizaram o emprstimo por necessidade prpria contra 4% que o repassaram aos parentes.Gastos Perguntados pela pesquisa SESC/FPA sobre os trs itens em que mais gastam individualmente, a alimentao ficou em primeiro lugar, sendo mencionada por 93% dos idosos (95% homens e 91% mulheres). Contas (luz, gua e telefone) ocupam a segunda posio com 79% das mltiplas respostas entre os homens (83%) e as mulheres (76%). E na terceira colocao, os gastos com remdios (59%) esto menos presentes entre os homens (54%, contra 62% das mulheres).

    Elas so as que mais gastam com prestao de lojas (9%, contra 6% entre os homens), e nos itens moradia (8% entre as mulheres contra 6% entre os homens), lazer (4%, contra 3% entre os homens) e auxlio domstico, como empregada, enfermeira, faxineira (4%, contra 1% deles). As despesas com alimentao diminuem com o passar da idade (94% dos que tm 60 a 64 anos contra 90% dos que tm mais de 80 anos). O mesmo ocorre com contas de luz, gua, gs e telefone (82% contra 72%). E a pesquisa revela ainda que 85% dos idosos tm o controle sobre as suas prprias despesas. Ao contrrio do que se poderia esperar, os mais velhos entre os idosos no perdem mais controle das despesas.

    De maneira geral os dados sugerem que os indivduos buscam formas de suavizao do bem-estar ao longo do tempo, preparando-se para a queda da renda do trabalho nos anos finais do ciclo de vida. De forma consistente com a teoria, os idosos revelaram notvel capacidade de suavi-zao de renda. A reduo da renda do trabalho observada nesta fase da vida consistente com a teoria de Modigliani. Entretanto, isto se deve mais atuao do Estado como provedor de benefcios previdencirios contributivos e no-contributivos, do que de comportamentos privados propriamente ditos. Ou seja, um pseudoagente hbrido formado por indivduos e pelo Estado atua como agente suavizador de variveis econmicas associadas ao bem-estar individual. Embora na sua forma pura a teoria seja rejeitada, ela oferece um arcabouo interessante para analisar como a insuficincia de aes privadas compensada pela ao pblica e, igualmente, para aferir os impactos sociais da insuficincia de renda e da desproteo social da populao na terceira idade no pas.

    A pesquisa Idosos no Brasil complementa a anlise quanti-tativa revelando uma srie de comportamentos, percepes e atitudes da populao da terceira idade que podem ser bastante teis ao delineamento de polticas pblicas. A grande maioria dos idosos tem controle de sua prpria despesa, o que denota autonomia, dado interessante que contrasta com o senso comum, segundo o qual os idosos so dependentes.

    Referncias: NERI, M. C. Renda, Consumo e Aposentadoria: Evidncias, Ati-

    tudes e Percepes In: Idosos no Brasil. Vivncias, Desafios e Expectativas

    na terceira idade.1 ed. So Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, 2007.

    Segundo a

    pesquisa SESC/

    FPA, os trs itens

    em que os idosos

    mais gastam

    individualmente

    so alimentao,

    contas e

    remdios

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    O Barmetro de Confiana nas instituies brasileiras per-guntou aos brasileiros em quem eles, hoje, confiam mais. Foram listadas 17 instituies: de governos estaduais, municipais e federal , mdia, Polcia Federal e igrejas, a partidos polticos, Cmara, Senado e outros. Atualmente, o brasileiro confia, sobre-tudo, nas Foras Armadas, que detm expressivo apoio de 79% da populao. A vinculao das Foras Armadas com o regime autoritrio se diluiu, desapareceu da percepo dos brasileiros. E isso, talvez, em razo do prprio passar do tempo, das novas geraes que tm outra experincia com as Foras Armadas. Parodiando: a vinculao saiu da vida e ficou na histria.

    O Poder Judicirio, foco principal da pesquisa, vem em sexto lugar, com 56% de confiana. Antes dele vm a Igreja Catlica (72%), a Polcia Federal (70%), o Ministrio Pblico (60%) e a Imprensa (58%). Tal estudo iniciativa de Mozart Valladares, presidente da Associao dos Magistrados Brasileiros.

    So muitos os dados a exigir ateno. Mas um dos mais rele-vantes est na resposta seguinte pergunta: o senhor ou algum parente prximo utilizou ou no os servios da Justia nestes ltimos 12 meses? Cerca de 10% dos entrevistados responderam que sim. Trata-se de cerca de 13 milhes de brasileiros que, apenas no perodo de 12 meses, se relacionaram, de alguma forma, com a Justia. Este nmero , com certeza, maior se considerarmos os processos em curso que no exigiram um relacionamento direto do entrevistado.

    Mesmo na ausncia de srie histrica que nos indique a ten-dncia, parece evidente que estamos diante de uma sociedade razoavelmente judicializada. Justia tender a ser, mais e mais, gnero de primeira necessidade. Sobretudo para as classes da populao de menor renda. No por menos que o brasileiro conhece a Justia do Trabalho e os Juizados Especiais mais e melhor do que conhece o prprio Supremo Tribunal Federal. A contrapartida poltica lquida deste fato a crescente impor-tncia do Judicirio no quotidiano do brasileiro.

    E como tem sido este relacionamento? A imensa maioria afirma que foi tratada de forma respeitosa (82%) pelo Poder

    Judicirio. Da mesma maneira positiva, com respostas um pouco acima da mdia (5.0), o brasileiro diz que a atuao do Poder Judicirio foi independente (5.7) e com honestidade (5.9). O nico item que fica abaixo da mdia , justamente, a agilidade da prestao, o que evidencia a lentido da Justia (4.9). Problema crnico.

    Na verdade, estes dados positivos no surpreendem. Afinal, temos mais de 12 mil juzes na ativa. O quotidiano da Justia feito pela primeira instncia. E, como opina o brasileiro, feito de independncia e honestidade, ou seja, de atitudes no corporativas, sem nepotismo, ou corrupo como regra. O que est tambm comprovado em outras pesquisas com os prprios juzes.

    Mas fato que o quotidiano dificilmente merece a ateno da mdia, que prefere focar sua ateno e natural que as-sim seja na exceo. O quotidiano quase midiaticamente invisvel. Torn-lo visvel, em toda a sua extenso, seria uma das tarefas das associaes de classe.

    Quando a independncia do juiz mais de perto focalizada e se pergunta por quem os juzes se deixam influenciar, a resposta tambm no surpreende. Em primeiro lugar, o Legislativo quem, segundo os brasileiros, mais influencia o Judicirio. natural que assim seja, pois de l que partem as leis que os juzes aplicam. influncia originria, gentica. Mas, em se-guida, apontam-se os empresrios e o Poder Executivo como influncias na deciso dos juzes.

    Embora a pesquisa no detalhe, razovel acreditar que a percepo sobre influncia do Executivo diga respeito, so-bretudo, a questes fiscais e previdencirias. Neste sentido, haveria pelo menos um desconforto, uma ateno cautelosa, ou mesmo um receio de que o interesse econmico maior seja dos empresrios, seja do Executivo possa influenciar na independncia do prprio Judicirio.

    De todo modo, o importante que pesquisas dessa natureza tenham continuidade histrica para melhor podermos definir as polticas judiciais. Com os ps no cho.

    Joaquim FalcoDiretor da Escola de Direito Rio/FGV emembro do Conselho Nacional de Justia([email protected])

    O Barmetroda Confiana

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    O saldo da balana comercial deste ano dever cair na comparao com 2007. At junho ltimo, o supervit acumulado no ano era de US$ 11,370 bilhes, um pouco mais da metade do valor registrado no primeiro semes-tre de 2007 US$ 20,579 bilhes. A participao das exportaes de produtos manufaturados caiu de 53,5% para 48,5% na comparao do primeiro semestre dos anos de 2007 e 2008.

    A valorizao da moeda brasileira muitas vezes apontada como a vil dos resultados da balana. Em adio, contribuiria para a reprimarizao da pauta de exportaes. Responder a essa questo exige uma anlise mais detalhada do contedo das exportaes em termos de seus fatores (intensivas em capital, trabalho ou recursos naturais). Exporta-se soja em gro, mas espe-cialistas em agricultura explicam que esse um cultivo intensivo em capital e tecnologia. O mesmo pode ser dito sobre o petrleo, que no caso brasileiro exige tecnologia avanada para extrao em guas profundas.

    Aqui o objetivo apenas destacar alguns dados bsicos. Cai a participao das manufaturas, mas os dez principais produtos de exportao do pas no mudaram muito, desde 1998, e tendem a ser intensivos em capital. Crescimento Desde 2003, as exportaes brasileiras crescem a uma taxa superior s mundiais (tabela 1). No entanto, a diferena entre as duas taxas, que chegou a ser de 10,6% a favor do Brasil, em 2004, diminui nos ltimos anos. As importaes nacionais seguem uma trajetria inversa, pois aumenta a diferena entre a taxa brasileira e a mundial. Em 2007, as importaes brasi-leiras aumentaram 32% e as mundiais 15,5%.

    O crescimento dos uxos brasileiros acima das taxas mundiais mostra o dinamismo recente do comrcio ex-terior. O aumento das importaes estaria associado ao crescimento econmico e, parte, ao aumento de preos do petrleo. No primeiro semestre de 2008, por exem-plo, as importaes brasileiras aumentaram em 32%,

    Queda na participao dos manufaturados

    Lia Valls PereiraCoordenadora de Projetos do IBRE/FGV

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    sendo que a de combustveis e lubricantes registrou uma taxa de 124%.

    O aumento das exportaes totais tem sido acompa-nhado de um incremento em todos os grandes agregados exportados. No obstante, registrada uma queda da participao de 59% para 52,3% das manufaturas nas exportaes totais entre 2000 e 2007. No seria motivo para preocupao se essa queda apenas reetisse o gran-de aumento em valor dos produtos bsicos associados aos incrementos de preos das commodities. Dados ela-borados pela Fundao Centro de Estudos de Comrcio Exterior (www.funcex.com.br) mostram, entretanto, que no primeiro trimestre de 2008 registrada para quase todos os setores industriais uma queda na quantidade exportada. Logo, a diminuio mais acentuada na par-ticipao das manufaturas nas exportaes totais no apenas uma questo de preo.

    Os saldos comerciais por fator agregado apresentados no grco mostram que as manufaturas passam a contri-buir para a reduo do supervit comercial j em 2007. Novamente esperado que esse resultado se repita, em 2008. Observa-se que o dcit das manufaturas do ano passado (US$ 9,233 bilhes) ainda est longe dos valores registrados entre 1999/2001. Em 1998, esse dcit foi de US$ 19,253 bilhes, ano em que a moeda brasileira estava valorizada, mas no tanto quanto agora, e o cres-cimento econmico foi menor do que o de 2007. Logo, algum ganho nas exportaes, mesmo com o cmbio desfavorvel, est ocorrendo.

    Importncia Comparamos os principais produtos exportados pelo Brasil que so publicados pela Secretaria de Comrcio Exterior, referente ao acumulado do ano. Duzentos e quatorze so comuns aos anos que compre-endem o perodo de 1998 a 2007.

    Tab. 1 Crescimento anual dos fluxos de comrcio (%)Exportaes Importaes

    Brasil Mundo Brasil Mundo1996 2,7 5,3 5,6 5,11997 11,0 4,0 11,4 1,11998 -3,5 -2,4 -3,6 -1,21999 -6,1 3,7 -15,1 5,32000 14,7 13,7 14,1 13,72001 5,7 -4,3 -0,6 -2,62002 3,7 4,6 -14,9 4,62003 21,1 16,9 2,2 16,92004 32,0 21,4 30,0 21,42005 22,6 14,1 17,2 14,12006 16,2 15,5 24,2 15,52007 16,9 15,5 32,0 15,5Fonte: www.desenvolvimento.gov.br

    A diminuio mais acentuada na

    participao das manufaturas nas

    exportaes totais brasileiras no

    apenas uma questo de preo

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    Em 1998, quando a participao de manufaturados nas exportaes era de 57,5%, os 214 produtos expli-cavam 90,2% do total vendido desse grupo. Em 2007, cai a participao das manufaturas (52,3%) e do valor percentual dos 214 produtos para 85,7%. A tabela 3 mostra como a queda da participao de manufaturas acompanhada pelo declnio dos produtos selecionados.

    Que concluso pode-se chegar? Aqui, por enquanto, somente uma hiptese. A queda da participao dos 214 produtos, que seriam o ncleo das exportaes brasileiras de manufaturas, leva tambm a queda das exportaes de manufaturas.

    Nas importaes no ocorre o mesmo. Primeiro, o nmero de produtos comum menor (106) e a participa-o no total das importaes de manufaturas se mantm relativamente constante ao redor de 50%.

    Listamos, ento, os dez principais produtos expor-tados para perodos selecionados (tabela 3). A primeira comparao entre 1998 e 2007 mostra uma pequena queda no grau de concentrao da pauta. Em 1998, os dez produtos representavam 39,4% do total das expor-taes de manufaturas e, em 2007, 33,8%. Apenas dois produtos no constam da lista nos dois anos. Suco de laranja e bombas e compressores so substitudos por aparelhos receptores (celulares) e leos combustveis entre os principais produtos.

    A segunda comparao, entre janeiro e maio de 2007 e igual perodo para 2008, registra percentuais quase

    idnticos em relao aos dez principais produtos. Acar renado e suco de laranja so substitudos por motores eltricos e mquinas de terraplanagem.

    Exceto o acar renado, o suco de laranja, calados, laminados de ferro e leo combustvel, todos os outros produtos no so pautados em recursos naturais. Re-gistra-se ainda que as exportaes de janeiro a maio de 2008, comparadas igual perodo de 2007, seriam mais intensivas em bens no pautados em recursos naturais.

    Essa uma amostra das exportaes de manufatu-ras, embora 30% no sejam um percentual pequeno. O que se destaca aqui a necessidade de anlises mais detalhadas da composio da pauta de exportaes brasileiras, para se afirmar que a de manufaturas est se reprimarizando.

    Tab. 3 Participao dos produtos no total das exportaes de manufaturas (%)

    Ano de 1998 Ano de 2007Automveis 5,5 Avies 5,6

    Partes e peas para veculos 4,9 Automveis 5,6Calados, partes e componentes 4,7 Partes e peas para veculos 3,8

    Suco de laranja congelado 4,3 Motores para veculos 3,0Avies 4,0 Laminados planos de ferro

    e ao3,0

    Motores para veculos 3,8 Aparelhos receptores e transmissores

    2,8

    Veculos de carga 3,5 leos combustveis 2,7Laminados planos de ferro e ao 3,4 Veculos de carga 2,4

    Acar renado 2,9 Calados, partes e componentes

    2,4

    Bombas, compressores, ventiladores

    2,5 Acar renado 2,4

    Total dos 10 39,4 Total dos 10 33,8

    Janeiro a maio de 2007 Janeiro a maio de 2008Automveis 5,3 Avies 5,3Laminados planos de ferro e ao 4,0 Automveis 5,2Avies 3,9 Partes e peas para veculos 4,0Partes e peas para veculos 3,9 leos combustveis 3,9Aparelhos receptores e transmissores

    3,2 Aparelhos receptores e transmissores

    2,8

    Acar renado 2,5 Laminados planos de ferro e ao

    2,5

    Veculos de carga 2,5 Veculos de carga 2,4Calados, partes e componentes 2,4 Motores, geradores eltricos 2,2

    leos combustveis 2,4 Calados, partes e componentes

    2,2

    Suco de laranja congelado 2,2 Mquinas para terraplanagem

    2,1

    Total dos 10 32,3 Total dos 10 32,5

    Fonte: www.desenvolvimento.gov.br

    Tab. 2

    AnoExportaes

    Part.das manufaturas no total das exportaes

    Part. dos 214 produtos no total das export. de manufaturas

    1998 57,5 90,21999 56,9 88,22000 59,1 91,52001 56,5 87,12002 54,7 84,92003 54,3 81,42004 54,9 82,42005 55,1 84,32006 54,3 82,82007 52,3 77,9

    AnoImportaes

    Part.das manufaturas no total das importaes

    Part dos 106 produtos no total das import. de manufaturas

    1998 84,3 53,11999 84,5 55,72000 83,2 57,12001 84,4 54,12002 81,8 52,22003 79,2 51,82004 76,9 51,12005 78,9 47,82006 76,5 49,92007 77,3 50,0Fonte: www.desenvolvimento.gov. Elaborao: IBRE/FGV.

  • 47 J u l h o d e 2 0 0 8 C O N J U N T U R A E C O N M I C A

    C O M R C I O E X T E R I O R

    No estou aqui a fazer propaganda do chefe da Diretoria Geral (DG)-Comrcio, da Comisso Europia, em Bruxelas. No s ele e o seu cargo disso no necessitam, como tal gesto no se enquadra nos propsitos dessa coluna. Uso o nome, em expandida sindo-que, para, mais do que o cargo, designar uma linha de pensamento e atitudes dentre as em con ito atualmente na Europa, no que toca a sua poltica externa.

    Preocupa-me o futuro do belo projeto europeu. No passado ms de maio con-sagrado como de aniversrio da fundao do projeto , expressei em diversas palestras, de So Paulo China, as minhas vises quanto ao seu desenvolvimento (Which Future for the European Union?, disponvel no site da EPGE). Dentre as contradies que uma Europa a 27 membros porta, est a questo crucial de uma poltica e representao externa uni cadas. Ora, a poltica comercial um dos aspectos da externa e, poder-se-ia pensar, talvez o mais simples.

    Entretanto, h quase dois anos vimos presenciando re-sistncias a uma viso mais esclarecida, que procura criar uma Europa no s mais moderna, como mais simptica e aberta ao inevitvel dilogo com seus parceiros comerciais, da sia Amrica Latina. Viso que, em geral, vem sendo perseguida pela DG-Comrcio, enquanto um ressurgimento de velhas posies protecionistas e de um desejo (ultrapas-sado?) por campees nacionais vem a ela se opondo, principalmente, embora de forma no exclusiva, da parte da Frana e, pasmem, a Alemanha.

    Dois exemplos so significativos. No ano passado, preocupada com a escalada do contencioso comercial da Unio Europia (UE) com a China, a DG de Mandelson encomendou uma anlise sobre a questo a um grupo isento de especialistas. No s havia a idia de simpli car e focalizar, inteligente e positivamente, os contenciosos, como de redesenhar a abordagem comercial entre as duas economias, sob uma perspectiva que, claro, defendendo os interesses europeus, aceitasse tanto a inelutvel presena internacional do Imprio do Meio, como a parte ben ca por ela trazida. Tal aceitao implicaria, forosamente, na reduo ou desaparecimento de determinados setores pro-dutivos. Cuidadoso e bem elaborado trabalho foi submetido ao Conselho Europeu, onde, apesar de bem acolhido pela

    maioria, foi rechaado, basicamente, pelos dois pases acima mencionados, preocu-pados que estavam com os seus campees nacionais!

    Recentemente, no mbito da difcil Ro-dada Doha, a mesma DG-Comrcio fez um gesto mais do que necessrio na rea agrco-la, visando auxiliar o destravamento das ne-gociaes. Medida novamente mal recebida por frao signi cativa dos membros, tendo o presidente francs indiretamente responsa-bilizado essa e outras polticas de Mandelson

    pela recente recusa irlandesa ao Tratado de Lisboa. a Frana do miditico Nicolas Sarkozy que, note-se, assumir a presidncia da UE em julho agora. As recentes resolues sobre imigrao, onde o mesmo desempenhou papel relevan-te, j do uma triste idia do que se pode esperar.

    No endosso a totalidade da poltica da DG-Comrcio, especialmente a em curso de transformar os acordos Co-tonou com as antigas colnias europias em acordos bila-terais de reas de livre-comrcio. Tanto o sabor colonialista disfarado em paternalismo, como as distores por eles provocadas no comrcio internacional permanecem. Nem cabe aqui julgar se o recente gesto em Doha ou no ade-quado s nossas aspiraes e pleitos, por exemplo. O ponto que desejo ressaltar, tendo sempre sido um entusiasta das relaes comerciais mais estreitas com a UE, e particular-mente do Acordo de Livre Comrcio Unio EuropiaMer-cosul que continuaremos a esperar cada vez mais como o Godot da pea de Beckett que a UE se encontra mais diferenada e dividida, e as nossas relaes bilaterais com ela devero se tornar ainda mais complexas.

    Um bom exemplo a questo dos biocombustveis. Apesar das boas intenes do prprio Comissrio Barroso cujo pensamento, acredito, prximo ao de Mandelson , e de atitudes muito favorveis por parte dos membros escandinavos, pouco, ou nada, tem andado a nosso favor. Nosso etanol continua a pagar uma tarifa que torna com-petitivo o produzido localmente, de modo nada e ciente, a partir do acar de beterraba...

    Em um tal contexto, devemos redobrar nossa ateno e escolher com inteligncia os melhores e mais e cazes aliados internos. nesse momento que Peter Mandelson surge como representativo de uma corrente com a qual o dilogo pode ser travado de modo inteligente e construtivo.

    Renato G. Flres Jr.Professor da Escola de Ps-Graduao

    em Economia da FGV

    Apoiemos Peter Mandelson

  • J u l h o d e 2 0 0 8 C O N J U N T U R A E C O N M I C A 4 8

    L I V R O S

    Imagine um mundo no qual a desigualdade de renda entre naes no apresente precedentes histri-cos; no qual as desigualdades entre pases sejam bem mais relevantes, na explicao da desigualdade total entre indivduos vivendo no planeta, do que as desigualdades que se en-contram dentro de cada pas tomado em separado.

    Mas, da mesma forma, um mundo no qual, num intervalo de 40 anos, al-gumas economias possam apresentar mobilidade vertical de renda per ca-pita tambm sem paralelos histricos; desta forma deixando de figurar entre as mais pobres para alcanar padres de renda substancialmente mais elevados (a exemplo do que fizeram Coria do Sul, Cingapura, Hong Kong e Taiwan no perodo que vai do incio dos anos de 1970 at os dias atuais).

    Este o retrato do mundo atual. Neste contexto, Er-nesto Lozardo toma para si, no seu livro Globalizao: a certeza imprevisvel das naes (Editora do Autor), uma tarefa herclea: explicar de que forma as naes emergentes determinam e tm suas trajetrias determinadas pelo pro-cesso de globalizao. E como as naes prsperas, ricas e globais, chegaram a este ponto.

    Uma explicao muito comum para a atual desigual-dade de renda entre naes d-se em termos da forma diferenciada e assimtrica como a Revoluo Industrial afetou cada economia a partir do incio do sculo XIX. preciso observar que isto se deu no apenas em termos de crescimento do produto, mas tambm em termos demogr-ficos. Dados histricos mostram que os Estados Unidos e a Inglaterra descolaram substancialmente suas rendas per capita do resto do mundo a partir da segunda metade do sculo XIX, deixando para trs, com nfases decrescentes, o Japo, o noroeste da Europa, os demais pases da Europa, Amrica Latina e sia.

    Lozardo no se detm diretamen-te na defesa ou negao desta tese. Mas, com riqueza de detalhes, d ao leitor uma certeza: para entender em pormenores os motivos de possveis assimetrias na coleta dos frutos das revolues tecnolgicas necessrio mergulhar com determinao e von-tade nos processos histricos e cultu-rais que determinam a evoluo das instituies e do processo decisrio em cada nao. a partir da que se forma o quadro geral no qual se deter-minam a produtividade, a formao de capital fsico e de capital humano.

    Para atender a este fim, o livro propicia uma prazerosa lei-tura dos casos da China, ndia, Japo, do Sudeste Asitico, da Europa e dos Estados Unidos.

    Economistas, treinados a desenhar linhas de chegada, mas no o roteiro de cada corrida (que o que realmente interessa), costumam desprezar esta etapa anterior de anlise, tomando, perigosa e pobremente, o ambiente ins-titucional como dado. O livro no segue este caminho de menor esforo. Neste ponto reside uma das suas maiores qualidades.Escolhas O segundo fato que caracteriza o mundo atual, exemplificado pelo crescimento acelerado de algumas eco-nomias asiticas aps a segunda Guerra Mundial, costuma ser explicado pelas diferentes polticas econmicas seguidas por cada nao. Tm sido particularmente bem-sucedidas aquelas voltadas para a educao e abertura comercial.

    O alto crescimento de algumas economias pode tambm ser entendido no contexto da revoluo das tcnicas de pro-duo que se deu a partir do final do sculo XIX, ainda que numa verso mais tardia (latecomers). As difuses tecnol-gicas teriam sido particularmente melhor absorvidas nestes pases pela escolha de polticas internas adequadas (acom-panhada, diga-se de passagem, tambm por um processo de transio demogrfica). Isto leva Lozardo a deter-se sobre

    Certeza imprevisvelRubens Penha Cysne

    Professor da Escola de Ps-Graduao em Economia da FGV

  • 49 J u l h o d e 2 0 0 8 C O N J U N T U R A E C O N M I C A

    L I V R O S

    outro aspecto do crescimento: o das reformas de origem macro e microeconmica que uma nao deve trilhar se deseja colher com xito os frutos da globalizao.

    Trata-se de ponto particularmente importante para o Brasil, no momento, a observao do autor sobre a im-portncia da composio de demanda na determinao dos aportes de produtividade. Em um pas com cmbio flexvel operando com elevada mobilidade de capitais, a exemplo do que tem ocorrido em nosso pas, elevaes dos gastos pblicos (ainda quando cobertos com receitas equivalentes de impostos), tendem a afetar tal composio na direo de bens no-transacionveis, perdendo espao os bens transacionveis com o exterior. Como costuma ser nas exportaes e nas substituies de importao que se materializam pesquisas e novos produtos, perde o pas em potencial de crescimento de longo prazo.

    Outro ponto que fica claro na exposio que estrat-gias de desenvolvimento baseadas unicamente em polticas de substituio de importaes no tm boas chances de contribuir positivamente para o crescimento sustentado. O mesmo se poderia dizer das polticas industriais nas quais se concede ao Estado o poder de decidir, de forma centralizada, os setores ou ramos de atividades a serem privilegiados com os favores pblicos.

    O livro nota tambm com argcia que, se democracia ple-na no necessria para o crescimento, pode ser importante para dividir de forma mais eqitativa os frutos deste. China e Rssia, por exemplo (com diferentes graus de democracia), esto em processo crescente de concentrao de renda, desta forma caracterizando a ocupao de um ponto no ciclo do crescimento distinto daquele atualmente ocupado pelo Brasil (onde a nfase distributiva tem sido forte).

    Lozardo argumenta que a elevao da desigualdade que hoje se verifica entre as naes do mundo no tem expli-cao, como costumam sugerir alguns, na globalizao. O livro apresenta dados que sugerem que os pases menos desenvolvidos tm-se beneficiado mais da integrao dos mercados do que os mais desenvolvidos. Evidentemente, o divisor de guas aqui se materializa em funo das polticas internas seguidas por cada pas.

    Para compreender todos estes processos de forma mais ampla, preciso lembrar a evoluo histrica das teorias de crescimento. Ao contrrio da teoria clssica baseada em Ricardo e Malthus, feita para explicar um crescimento com renda per capita praticamente estagnada (ainda que com crescimento do produto), a teoria que surge a partir de Solow toma como dada a fertilidade. Tal hiptese, aliada ao princpio da produtividade decrescente do capital, torna o crescimento sustentado impossvel, a menos da introduo de postulados ad hoc sobre crescimento de produtividade. Na ausncia de tal expediente, no h crescimento sustent-vel por habitante. Evolues da renda per capita nada mais fazem do que refletir transitoriedades na convergncia para o estado estacionrio, onde isto no mais ocorre.

    Difuso Uma soluo transitria para o problema veio com Lucas e Romer, atravs da introduo de progressos tcnicos ou tecnologias endogenamente determinadas nos modelos de crescimento. Uma nova fronteira da teoria do crescimento, entretanto, considera com muito mais nfase os processos de difuso tecnolgica entre naes. No mais se toma, como nos modelos descritos acima, a for-mao de capital como independente do que fazem outras naes. Esta hiptese, sabe-se hoje, no compatvel com a evidncia emprica disponvel nos ltimos 200 anos (em particular, aquela que divide os pases em earlycomers e latecomers).

    Na questo especfica da globalizao, Lozardo prov uma taxonomia interessante, baseada na eterna noo econmica da oferta e da demanda: no mundo atual, os investimentos diretos estrangeiros, o comrcio e as multina-cionais proveriam a oferta de globalizao. Por outro lado, a demanda pela mesma se daria em funo da necessidade de crescimento e desenvolvimento que caracterizaria as economias emergentes. Em particular, tal necessidade de-correria do desejo de acesso de consumidores de economias emergentes ao padro de consumo dos mais ricos (fruto da queda do custo de informao).

    Um ponto importante do livro o alerta quanto ao papel de co-responsabilidade que devem assumir as naes mais prsperas, se desejam prover maiores chances de sucesso de longo prazo opo pelo capitalismo. Assim como dentro de cada pas a desigualdade de renda acaba por dificultar o cres-cimento, o mesmo pode se dar para o mundo capitalista como um todo. Como coloca Lozardo com propriedade, o maior perigo para a riqueza de poucos a pobreza de muitos.

    Polticas inteligentes para as economias mais ricas e glo-balizadas deveriam desta forma incluir em seus propsitos apoio a economias emergentes na consecuo de justia, da reduo de pobreza, da proteo ambiental, do respeito a valores individuais e sociais e da segurana global. Obter dos pases prsperos esta viso pragmtica da necessidade de co-responsabilidade mundial ser o grande desafio do capitalismo neste sculo, conclui Lozardo. Longe de qualquer rano assistencialista, trata-se este de um desa-fio capacidade de percepo e execuo dos lderes das economias mais prsperas.

    Enfim, como comum a qualquer livro que se detenha sobre um tema to amplo e controverso, haver partes do livro com as quais o leitor tender a concordar com maior ou menor veemncia. O importante, entretanto, que o convite reflexo que o livro proporciona estar muito bem alicerado. De fato, Lozardo oferece gentilmente, ao longo de todo o texto, os trs ingredientes que requerem o rigor acadmico e que costumam caracterizar os clssicos em qualquer assun-to: dados, fatos e teorias. Como dizia o saudoso piauiense Petrnio Portela, com os fatos no se briga. Caber ao leitor pinar suas prprias concluses. A acuidade na escrita e o prazer na leitura so assegurados.

  • Conglomerados financeiros

    Julho de 2008 CONJUNTURA ECONMICA 50

    No ltimo dia 18 de junho, foram conhecidos os Me-lhores e Maiores Conglomerados Financeiros do pas, em cerimnia realizada em So Paulo, com a presena de cerca de 130 executivos do setor nanceiro. Os principais premiados, por segmento de atividades, foram: Atacado e Negcios UBS Pactual, eleito pela segunda vez consecu-tiva pela revista Conjuntura Econmica como o melhor nesse segmento. O BMG, pela oitava vez consecutiva, foi o melhor no Financiamento ao Consumo; o Daycoval foi o melhor em Middle Market. J o Banrisul venceu como o melhor banco pblico do pas. E no segmento Varejo, o grande vencedor foi o grupo Ita.

    Entre os conglomerados que mais se destacaram em 2007 e nos trs ltimos anos, foram premiados o Banco do Brasil, como o maior do pas em ativo total, por operaes de crdito e por depsitos totais. O Bradesco recebeu o prmio por ter sido o maior em receitas de intermediao nanceira no ano passado, enquanto o Unibanco foi o que mais cresceu por ativo total entre os grandes conglome-rados em 2007.

    O Votorantim se destacou como o que mais cresceu em operaes de crdito no ano passado e o que teve o menor custo operacional, entre os grandes grupos nanceiros,

    tanto em 2007 como na comparao dos trs ltimos anos. J o Citibank foi o que mais cresceu em rentabilidade sobre o patrimnio em 2007 e o que teve o maior crescimento em receitas nos trs ltimos exerccios.

    Entre os pequenos e mdios conglomerados, o BM&F foi o que mais cresceu em ativo total no ano passado, enquanto o Dresdner recebeu o prmio como o que mais cresceu em operaes de crdito em 2007. O Barclays ven-ceu por ter apresentado o maior crescimento em depsitos totais e o BBM por ter tido o maior crescimento no item rentabilidade operacional no ano passado. O Clssico foi quem apresentou o menor custo operacional em 2007 e nos trs ltimos anos. J o VR foi o que mais cresceu em receitas nos trs ltimos anos. E o Cruzeiro do Sul recebeu o prmio por ter o maior crescimento do patrimnio lquido nos ltimos trs anos.

    A cerimnia de premiao foi conduzida pelo Embai-xador Sebastio Rego Barros, presidente do Conselho do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE), pelo diretor do IBRE, professor Luiz Guilherme Schymura, pelo vice-di-retor do Instituto, Vagner Ardeo e pelo professor Yoshiaki Nakano, diretor da Escola de Economia de So Paulo da FGV.

    Melhores do pas

    A solenidade foi conduzida pelo professor Yoshiaki Nakano; pelo professor Luiz Guilherme Schymura; pelo Embaixador Sebastio Rego Barros; e pelo vice-diretor do IBRE, Vagner Ardeo.

  • 5 1 J u l h o d e 2 0 0 8 C O N J U N T U R A E C O N M I C A

    Conglomerados financeiros

    1 Luiz Felippe Indio da Costa, presidente (Banco Cruzeiro do Sul)

    9 Geraldo Travaglia, vice-presidente corporativo (Unibanco)

    2 Marcio Del Nero, diretor-executivo (VR)

    10 Moacyr Nachbar Junior, diretor de contabilidade (Bradesco)

    3 Joo Carlos Pinho, diretor de captao e relacionamento institucional (BBM)

    11 Marco Geovanne Tobias da Silva, gerente geral de relaes com os investidores (Banco do Brasil)

    4 Edson Sarti, diretor-executivo (Barclays)

    12 Juerg Haller, COO (Chief Operations Officer) para a Amrica Latina (UBS Pactual)

    5 Gleen Peebles, diretor-executivo e Sandro Amorim, gerente de vendas (Dresdner Bank Brasil)

    13 Ricardo Gelbaum, diretor-executivo nanceiro (BMG)

    6 Gilberto Mifano, presidente do conselho de administrao (BM&F Bovespa)

    14 Sasson Dayan, presidente (Daycoval)

    7 Henrique Jos Szapiro, superintendente-executivo de RH e assuntos corporativos (Citibank)

    15 Fernando Guerreiro, presidente (Banrisul)

    8 Milton Roberto Pereira, vice-presidente (Votorantim)

    16 Ronald Anton de Jongh, vice-presidente executivo (Ita)

    1 2 3 4

    5 6 7 8

    9 10 11 12

    13 14 15 16

  • J u l h o d e 2 0 0 8 C O N J U N T U R A E C O N M I C A 82

    P O N T O D E V I S T A

    Este artigo analisa se as metas fiscais na forma de supervits primrios so mesmo o ajuste fiscal que precisamos. O Brasil vem experimentando uma poltica fiscal associada gerao de supervits primrios, que , na verdade, uma meta fiscal de, atualmente, 3,8% do PIB. Ou seja, entre arrecadao e despesas, o setor pblico consolidado, que envolve estados, municpios, empresas estatais e governo central, deve econo-mizar pelo menos 3,8% em relao ao PIB gerado no ano. No primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC 1), entre 1995 e 1998, esta economia do setor pblico era pra-ticamente nula, chegando despoupana de quase 1% do PIB, em 1997. J a partir do FHC 2, reverte-se radicalmente a postura fiscal e passa-se a realizar importantes economias que, na mdia do perodo 1999 a 2002, era de 3,3% do PIB. Afinal, inaugurava-se ali a poltica de gerao de supervits primrios. O governo de Luiz Incio Lula da Silva deu continuidade a tal poltica. De 2003 a 2007, vem gerando uma economia mdia anual da ordem de 4,1% do PIB. Ressalta-se que todas estas contas j esto em relao ao novo PIB.

    Mas, que tipo de ajuste fiscal compreende tal poltica de gerao de supervits primrios? Note que a necessidade de financiamento do setor pblico na era FHC (1995-2002) beirava a 7% do PIB, quando a economia do setor pblico no passava de 1,7% do PIB, e que, na era Lula (2003-2007), tal necessidade se reduziu substancialmente para a casa dos 2,7% do PIB. Note, tambm, que a razo dvida/PIB subia consistentemente na era FHC, atingindo 51% do PIB (2002), e, na era Lula, caiu para 42,5% do PIB (2008). Isso significa que o governo Lula tem mais responsabilidade fiscal do que o governo FHC, ou que no governo Lula tem-se um ajuste fiscal adequado? A resposta para ambas as perguntas um sonoro no.

    O fato que h dois tipos bsicos de ajuste fiscal. O tipo I, baseado no corte de despesas relacionadas com benefcios de seguridade social e despesas com pessoal; e o tipo II, baseado na elevao da arrecadao e corte de gastos com investimento. Pois bem, o ajuste fiscal da era Lula, assim como o do FHC 2, a do tipo II. Essa a concluso de uma pesquisa realizada por Ulysses de Moraes em sua dissertao de mestrado O perfil e a composio do ajuste fiscal brasileiro (1997/2007), defendida na Escola de Economia de So Paulo da FGV-SP, em julho deste ano. Ou seja, quando se precisa gerar supervits primrios rapidamente corta-se a despesa mais discricionria de todas, as chamadas OCCs (Outras Despesas de Custeio e Capital), com expanso das despesas de benefcios de seguri-dade social e despesas de pessoal, somada a um aumento nas

    arrecadaes. Esse ajuste fiscal bem-sucedido na medida em que gera economias para reduzir a relao dvida/PIB, mas no necessariamente o ajuste que a economia brasileira precisa.

    O grande benefcio gerado por essa poltica fiscal se deve a dois de quatro atributos indispensveis de um ajuste fiscal de fato: persistncia, dado que se iniciou no FHC 2 e foi mantido pelo governo atual; e sua contribuio para a trajetria da dvida no tempo. Contudo, seu grande desafio ainda estar por vir: o seu tamanho associado sua composio. O ajuste do tipo II no o desejvel para o Brasil. Temos que migrar logo para um ajuste fiscal do tipo I. Mas, porque, se a relao dvida/PIB vem caindo?

    A resposta a esta pergunta se divide em duas partes. Na primeira, quando se faz economias com aumento de despesas, espera-se mais tributao na frente e isso inibe hoje o investi-mento privado. Com corte de investimentos pblicos, dada a sua discricionariedade, tem-se um ajuste fiscal inadequado. De outro modo, o ajuste fiscal do tipo I parece gerar resultados mais satisfatrios para o mdio prazo e deixa a economia menos vulnervel aos ciclos de liquidez, de carter curto pra-zistas. Da a segunda parte da resposta, que est diretamente associada com o que estar por vir. Com a retomada de altas de juros pelo Copom, e menor crescimento econmico, muito provavelmente a economia gerada com os supervits primrios ser consumida por maiores encargos financeiros da dvida.

    Visto de outra forma, temos o chamado supervit prim-rio requerido para manter a relao dvida/PIB constante no tempo. Pois bem, esse supervit deve ser maior de agora em diante, dadas as recentes e futuras elevaes na taxa bsica de juros. A previso de mercado, logo no final de junho de 2008, para o final do ano, j atinge os 14,54% ao ano para a taxa Selic, com crescimento do PIB em 4,8%. Em outras palavras, economias para alm dos atuais 3,8% do PIB no resultaro em reduo da relao dvida/PIB.

    Ao cenrio de taxa de juros e de menor crescimento econmico, adiciona-se a frentica expanso das despesas com pessoal para este e os prximos anos, alm daquelas j conhecidas altas contnuas das despesas previdencirias. O que se espera so duas decises: reduo novamente das OCCs e/ou aumento na arrecadao, com novas contribuies (ICS), congelamento de alquotas de imposto de renda, e elevao nas alquotas de outras tantas contribuies vigentes (CSLL, Confins), entre outros. Ou seja, geram-se despesas e corre-se atrs de mais receitas para cumprir a meta fiscal. Metas fiscais assim obtidas no contituem o ajuste fiscal desejado para o pas para os prximos anos.

    Mrcio HollandProfessor da EESP/FGV e pesquisador CNPq

    Metas fiscais e o ajuste fiscal