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  • Da Imperfeio: um marco nos estudossemiticos

    LUCIA TEIXEIRA

    Da imperfeio de Algirdas Julien Greimas (traduo de Ana Claudia de Oli-veira). So Paulo: Hacker, 2002.

    Resenha A resenha apresenta a traduo brasileira que Ana Cludia de Oliveira realizou do

    livro Da Imperfeio de A.J. Greimas. Alm de conter uma sntese dos contedos dos

    captulos, prope refletir sobre o impacto da obra nos estudos semiticos. Analisa o

    projeto terico do autor, identificando suas principais questes e propostas, e avalia a

    repercusso da introduo do campo do sensvel nas investigaes da semitica, sempre

    voltadas para o sentido dos textos e do percurso do homem no mundo.

    Palavras-chave semitica, sentido, texto.

    Abstract This review presents us the Brazilian translation that Ana Cludia de Oliveira did

    from the book De limperfection (Da imperfeio) by A. J. Greimas. Besides a synthesis

    of the ideas of the chapters, it also aims to discuss the impact of the work in the semiotic

    studies. It analyzes as well the authors theoretical project, identifying its main questions

    and purposes. The review, in adition examines the reactions to the introduction in the

    field of the sensitive in the semiotic investigations, always turned to the meaning of

    the texts and to the human beings journey in this world.

    Key words Semiotics, sense, text.

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    Quem passou pelas salas de aula das universidades brasileiras na dcada de 70,por qualquer faculdade da rea de Humanas, certamente fez alguma anlise estru-tural da narrativa e conheceu Greimas. Tendo-o conhecido, ou abraou suas idias,com a certeza de ter encontrado a frmula precisa para ler um texto, ou as rejeitouenfaticamente, assustado com o peso da nomenclatura e a ortodoxia da proposta.Em qualquer dos dois casos, ficaria inteiramente tomado de desconfiana e surpre-sa ao abrir ao acaso qualquer pgina de Da imperfeio, livro publicado na Franaem 1987, e que Ana Claudia de Oliveira acaba de traduzir para o portugus.

    O livro surpreendente mesmo para os que, no tendo abandonado Greimasou tendo-o descoberto j na dcada de 90, 20 anos depois do auge da moda estru-turalista, dele conheciam apenas os textos mais duros e dotados de um certo car-ter doutrinrio. Em Da imperfeio, continuam a marcar presena o rigor, a no-menclatura, a complexidade do pensamento. Mas tudo isso vem diludo numGreimas amante da literatura, que se deixa tomar pela beleza dos textos e pelagrandiosidade do fenmeno literrio, de modo a absorver a fratura e o deslumbra-mento produzidos pela experincia esttica e com isso fundar um sentido tico paraa cincia e para a vida.

    Desenvolve-se no livro a reflexo acerca dos mecanismos de produo do sen-tido, mas no do sentido de um texto, nem mesmo dos textos estudados. O quequer o terico relacionar teoria e vida, literatura, acontecimento esttico e aven-tura humana. Dividido em duas partes, Fraturas e Escapatrias, o livro, em si,representa tanto uma fratura na continuidade dos estudos semiticos, pela sua qua-lidade de instituir novos parmetros de reflexo e novos lugares tericos de ondedivisar modos de se apropriar da investigao sobre a produo do sentido, quantouma escapatria em relao aos estudos ortodoxos que se satisfazem em reprodu-zir um modelo de anlise ou at se arriscam em ampliar seus parmetros estrita-mente intradiscursivos, mas sem discutir a possibilidade de deles duvidar ou a elesconceder limites mais largos.

    Na primeira parte do livro, a das fraturas, o autor comenta, em 5 captulos,cinco diferentes obras literrias, buscando nelas as descontinuidades que irrompemno contnuo da existncia para fratur-la e produzir sentido: Sexta-feira ou A vidaselvagem, de Michel Tournier (recentemente publicado pela Bertrand Brasil, em novaedio), os contos Le guizzo, de Calvino, e A continuidade dos parques, de Cortzar,um poema de Rilke, o Elogio da sombra, de Junichiro Tanizaki . Em cada um dosfragmentos analisados, Greimas vai apontar a ruptura da dimenso cotidiana comoa quebra que instaura o acontecimento esttico. Isso se d pela observao de umcorpo sensvel, de um corpo que tocado por vises, odores, sensaes tteis e au-

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    ditivas. A luz que fere ou cerra os olhos, o odor do jasmim que traz de volta osexcessos do mundo, a sonoridade da gua interrompida pelo silncio surpreenden-te, tais so algumas das manifestaes do mundo sensvel que atravessam a experi-ncia humana, para preench-la do sentido esttico que a redimensiona.

    A entrada do sujeito nessa experincia s possvel pelo arrebatamento dapaixo que os confunde, provocando a fuso entre sujeito e objeto. Entendida comoefeito da linguagem em discurso, a paixo no apenas o xtase dos sentidos, tre-mor incontrolvel do corpo, enlevo da alma, mas a perturbao da narrativa, a fra-tura do sentido, o rumor que atravessa a coerncia e a linearidade, desfazendo-as.

    Greimas vai chamar a isso deslumbramento: uma espcie de relmpago passa-geiro que perturba a viso, permitindo ver de outro modo o que sempre l esteve,no mesmo lugar que agora outro. O retorno ordem no se dar facilmente, nose retorna intocado. A luz esteve l, ofuscou a viso por um momento e ficou retidanum certo modo de olhar o mundo que no mais se descola do sujeito. Essa aambio tica da literatura, das artes: fazer ver o mundo de outro modo, preenchera espera tensa do sujeito com o susto do deslumbramento e faz-lo retornar daexperincia inquieto, tocado pela possibilidade de tudo ressignificar.

    Na anlise do conto de Cortzar, Greimas mostra, em primeiro lugar, no setratar apenas de uma histria, mas da revelao do modo de ser literrio, pondo emfoco um sujeito errante. Ao penetrar na histria, vivenciando-a, interferindo emseu desenlace, o sujeito permite que a narrativa se faa sob a promessa de desfa-zer-se, sob o aviso de que simulacro. O inusitado, o inesperado, o surpreendente,eis as matrias da literatura. A gota dgua que pra de cair em Sexta-feira, o seioque perturba a viso em O guizzo: a parada, a interrupo do ritmo, o silncio quesignifica, a luz que ofusca.

    Essas figuras que falam do tema da ruptura, em si, j apontam para caminhosdesbravados pela semitica ps-Imperfeio. A parada do tempo, o retorno ao rit-mo, a alternncia entre rudo e silncio so questes hoje tratadas pela semiticatensiva, preocupada com o efeito de sobressaltos de intensidade sobre a linha con-tnua da extensidade. A partir dos elementos que, para Greimas, representavam aruptura, a semitica avanou em busca da gradao e da intensidade, mostrandonovas formas de produo do sentido. J no se pode pensar que o sentido se pro-duza apenas pela inciso de descontinuidades no caos da continuidade do mundo,ou no fluxo permanente do discurso. O sentido se produz tambm pela intensifica-o de procedimentos, pela mudana de ritmo, pela vibrao produzida na linea-ridade da linguagem.

    Os sobressaltos de intensidade ou as fraturas na continuidade so modos de

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    relacionar-se com o mundo, de dar-lhe forma, gestos de posse, afirmao do poderde superao da indistino. O sujeito atrado pela figuratividade que o engloba eesse mais um modo de produo de sentidos. A partir da semitica plstica, queGreimas mobiliza, ao trazer cena a luz que aparentemente tudo revela, mas tam-bm a obscuridade que contm em si a possibilidade das cores, novos campos deteorizao se abrem, apontando para a concretude do mundo e as articulaes dosensvel e do inteligvel. Pode-se ento pensar na materialidade da linguagem, noplano da expresso integrando-se ao plano do contedo, em busca da ultrapassa-gem de um modelo binrio.

    tambm com Da imperfeio que o campo do sensvel retorna fortemente spreocupaes dos semioticistas, no s como busca metaterica de fontes feno-menolgicas, mas tambm como apelo entrada do corpo sensvel no universo daproduo do sentido. s estendendo a anlise ao conjunto dos canais sensoriaispelos quais o sujeito vivencia o acontecimento esttico que a literatura e a artepassam a ser compreendidas e podem tornar-se modos de existir no mundo. Estamosagora no terreno das escapatrias, do que constitui a segunda parte do livro, esp-cie de testamento terico de um legado que os semioticistas hoje procuram alargar.

    No se trata de pensar em escapatria como fuga, mas como escape e retorno,como um ir-e-vir, um modo novo de relacionar-se com o outro e o mundo. H auma proposta de transformao fundamental da relao sujeito/objeto, o que re-presenta, talvez, a mais extraordinria demonstrao de adeso a uma teoria.Como se perguntasse, afinal, de que serviu o percurso de investigao em torno dasquestes da significao, seria preciso que o pesquisador encontrasse uma respostaque fosse alm da produo intelectual de explicaes. Seria preciso, como no con-to de Cortzar, penetrar no escrito e viv-lo como figura de papel, misturando avida e a representao da vida, para compreender que tudo linguagem, tudo construo humana. E ento se poderia encontrar sentido na singeleza dos peque-nos acontecimentos, examinar a possibilidade de a experincia esttica ser produ-zida, tambm, por arranjos e re-arranjos das coisas simples do mundo que fazemparte de nosso viver cotidiano, como afirma Ana Claudia de Oliveira em seuprefcio.

    So, alis, os prefcios da edio brasileira e mais os de Ral Dorra para aedio espanhola, de Paolo Fabbri para a italiana e ainda o texto de Eric Landowskide apresentao de um encontro em que se discutiu o livro outro mrito da pu-blicao. So esses textos no apenas um enriquecimento da edio brasileira, mastambm uma indicao de caminhos tomados pelos semioticistas, que vo interes-sar a todos os que se dedicam a estudar a linguagem e a significao. Na interpre-

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    tao que fazem da obra, esto traados percursos investigativos que afirmam afora da disciplina e comprovam o talento de um pensamento vigoroso e instigante,promessa de muitos sentidos ainda por vir, sempre imperfeitos, porque assim quese faz semitica, aceitando o desafio da grandiosidade do prprio projeto, para ex-pandir-se num movimento de reconcepo permanente, que reconhece suas lacu-nas e sua necessria incompletude.

    Aprendemos com Greimas que todo parecer imperfeito. E o que a imperfei-o seno a promessa do querer ser, do dever ser? Da imperfeio, em boa horatraduzido no Brasil com a competncia de uma semioticista que tem feito muitopelo avano da teoria, exacerba a inquietao em torno dos mistrios da lingua-gem, que se entreabrem para mostrar a intangibilidade da vida. Ou da morte, pou-co importa, como desafiava Greimas.

    LUCIA TEIXEIRA professora da Universidade Federal Flumi-

    nense (UFF-RJ), pesquisadora do CNPq e do Centro de Pesquisas

    Sociossemiticas (PUCSP-USP-CNRS). Publicou, entre outros, As co-

    res do discurso. Anlise do discurso da crtica de arte (Editora da

    UFF, Niteri-RJ, 1996).

    [email protected]

    Artigo recebido e aprovado em junho de 2002.