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T R I B U N A L D E J U S T I Ç A RS ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ERM Nº 70036891877 2010/CÍVEL APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CLÁUSULA PENAL EM CONTRATOS DE AGÊNCIA DE TURISMO. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. I. LEGITIMIDADE ATIVA - A associação pode promover ação civil pública para a proteção de consumidores, desde que tenha sido constituída há mais de um ano e contenha a defesa dos interesses dos consumidores em seu objeto social. II. LIMITAÇÃO DA CLÁUSULA PENAL - Impossibilidade de redução genérica e abstrata da cláusula penal, sem atentar- se ao caso concreto. Hipótese em que o contrato prevê cláusulas penais adequadas à realidade da atividade exercida. DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. UNÂNIME. APELAÇÃO CÍVEL DÉCIMA SEXTA CÂMARA CÍVEL Nº 70036891877 COMARCA DE PORTO ALEGRE SOCALTUR TURISMO LTDA APELANTE ANADEC - ASSOCIACAO NACIONAL DE DEFESA DA CIDADANIA E DO CONSUMIDO APELADO ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. 1

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APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CLÁUSULA PENAL EM CONTRATOS DE AGÊNCIA DE TURISMO. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.I. LEGITIMIDADE ATIVA - A associação pode promover ação civil pública para a proteção de consumidores, desde que tenha sido constituída há mais de um ano e contenha a defesa dos interesses dos consumidores em seu objeto social.II. LIMITAÇÃO DA CLÁUSULA PENAL - Impossibilidade de redução genérica e abstrata da cláusula penal, sem atentar-se ao caso concreto. Hipótese em que o contrato prevê cláusulas penais adequadas à realidade da atividade exercida.DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. UNÂNIME.

APELAÇÃO CÍVEL DÉCIMA SEXTA CÂMARA CÍVEL

Nº 70036891877 COMARCA DE PORTO ALEGRE

SOCALTUR TURISMO LTDA APELANTE

ANADEC - ASSOCIACAO NACIONAL DE DEFESA DA CIDADANIA E DO CONSUMIDO

APELADO

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Décima Sexta

Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar

provimento ao apelo.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes

Senhores DES.ª ANA MARIA NEDEL SCALZILLI (PRESIDENTE) E DES.

PAULO SERGIO SCARPARO.

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Porto Alegre, 25 de agosto de 2011.

DES. ERGIO ROQUE MENINE, Relator.

R E L A T Ó R I O

DES. ERGIO ROQUE MENINE (RELATOR)

Trata-se de apelação interposta por SOCALTUR TURÍSMO

LTDA em face da sentença de fls. 147/160, que julgou procedente a ação

civil pública ajuizada por ANADEC – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE

DEFESA DA CIDADANIA E DO CONSUMO, extinguindo o processo com

resolução de mérito, para:

“a) declarar a nulidade da cláusula 4, limitando a multa contratual a ser imposta pela ré aos consumidores, em todas as contratações, no patamar máximo de 20% (vinte por cento);

b) condenar a ré ao ressarcimento, na forma simples, dos valores indevidamente cobrados dos consumidores em relação aos contratos findos e em andamento, desde que não atingidos pela prescrição, corrigidos monetariamente pelo IGP-M a contar de cada desembolso e acrescidos de juros de mora de 1% (um por cento) ao mês a contar da citação;

c) determinar que a ré junte aos autos, em CD-ROM, relação dos consumidores que firmaram contrato de turismo, de qualquer modalidade, desde que firmaram contrato de turismo, de qualquer modalidade, desde que não atingidos pela prescrição, no prazo de 90 (noventa) dias, sob pena de multa diária no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais);

d) determinar que a ré disponibilize, em cada uma de suas lojas, as informações necessárias aos consumidores para que tenham conhecimento dos valores a que tenham direito, relativos aos valores indevidamente retidos ou cobrados, no prazo de 90 (noventa) dias a contar da data em que não houver mais recurso dotado de efeito suspensivo, com

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comprovação nos autos até o quinto dia útil após o referido prazo, sob pena de multa de 20% (vinte por cento) sobre o montante do valor devido aos consumidores. A disponibilização dos valores deverá ser comunicada por escrito aos consumidores, por correio, com base nos endereços de que a requerida disponha;

e) na hipótese de interposição de recurso, o prazo acima referido (e) será reduzido para 30 (trinta) dias a contar da data em que não houver mais recurso dotado de efeito suspensivo, mantida a multa, justificando-se a redução do prazo porquanto o julgamento do recurso demandará maior decurso de tempo;

f) determinar que os valores referentes aos consumidores não localizados ou que não procurarem a ré deverão ser depositados em juízo e posteriormente destinados ao Fundo de que trata a Lei nº 7.347/85, tudo com comprovação nos autos;

g) determinar que, para ciência da presente decisão aos interessados, deverá a demandada publicar às suas expensas, no prazo de 30 (trinta) dias a contar da data em que não houver mais recurso dotado de efeito suspensivo, o inteiro teor da parte dispositiva da presente decisão em três jornais de circulação estadual, na dimensão mínima de 20cm x 20 cm e em cinco dias intercalados, sem exclusão da edição de domingo;

h) para fins de fiscalização e execução da presente decisão, forte no art. 84, § 5º, do CDC, será nomeado perito para a fase de liquidação e cumprimento da sentença, o qual, em nome deste juízo, terá acesso a todos os dados e informações necessárias para o cumprimento e efetividade do aqui decidido, podendo requisitar documentos e acessar banco de dados mantidos pela empresa demandada, devendo ser oportunamente intimado para apresentar sua proposta de honorários, os quais serão suportados pela ré;

i) ao Sr. Escrivão, decorrido o prazo recursal contra esta sentença, deverá disponibilizar, através do sistema de informática a todos os cartórios cíveis e judiciais do Estado do Rio Grande do Sul, cópia da ementa da presente decisão, com certidão de interposição de recurso e dos efeitos em que recebido, ou do trânsito em julgado, se for o caso, para, se assim entender o titular da jurisdição, iniciar-se a

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liquidação provisória do julgamento, nos termos dos arts. 97 do CDC, c/c art. 475-A do CPC;

l) o cumprimento espontâneo da presente decisão ensejará liberação dos demandados das multas fixadas, desde que atendidos os prazos estabelecidos.

Os provimentos desta decisão poderão ser modificados, na forma do art. 461, §6º, do CPC, visando a efetividade da decisão.

Condeno a ré ao pagamento integral das custas processuais e honorários advocatícios ao procurador da autora, os quais fixo em R$ 3.000,00 (três mil reais), observada a natureza da causa, o trabalho desenvolvido pelo profissional e o local de sua prestação, nos termos do § 4º, observados os vetores do § 3º, ambos do art. 20 do diploma processual civil.”

Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação (fls. 163/177),

arguindo, preliminarmente, ilegitimidade ativa. No mérito, postula o

afastamento da limitação da cláusula penal e da condenação ao reembolso

relativo aos contratos findos. Requer, ainda, que a abrangência territorial da

decisão se restrinja a Porto Alegre e que seja reduzida a multa diária

arbitrada.

O recurso, tempestivo e preparado (fls. 178/179), foi recebido

pelo juízo a quo (fl. 180).

A autora apresentou contrarrazões ao recurso de apelação (fls.

182/220.

A Procuradora de Justiça apresentou parecer às fls. 222/230

opinando pelo acolhimento da preliminar de ilegitimidade ativa.

Vieram os autos conclusos.

É o relatório.

V O T O S

DES. ERGIO ROQUE MENINE (RELATOR)

Tenho que merece provimento o apelo.

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No tocante à legitimidade ativa, tenho que basta à associação

que esta exista há pelo menos um ano e inclua entre os seus fins

institucionais a proteção ao consumidor para que lhe seja lícito a propositura

de ações coletivas para a proteção de interesses dos consumidores.

Ocorre que o legislador expressamente expôs estes requisitos

para a legitimação da associação à propositura de ações coletivas (art. 5º, V

da Lei n.º 7.347/1985 e art. 82, IV do CDC), descabendo ao Judiciário impor

novos requisitos não previstos em lei. Neste sentido:

"APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. COMISSÃO DE PERMANÊNCIA CUMULADA COM OUTROS ENGARGOS MORATÓRIOS. ILEGITIMIDADE ATIVA. A associação autora, legalmente constituída há pelo menos um ano e que inclui entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor, possui legitimidade para propor ação civil pública, na defesa dos direitos dos consumidores(art. 5º, V, da lei n° 7.347/85 e art. 82, IV, do Código de Defesa do Consumidor). Legitimidade ativa caracterizada. Precedentes do STJ e desta Corte. INTERESSE DE AGIR. Possível o ajuizamento da ação coletiva para ver protegido direito individual homogêneo. Interesse social da demanda proposta." (Apelação Cível Nº 70039916218, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Walda Maria Melo Pierro, Julgado em 22/06/2011)

"NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO COLETIVA DE CONSUMO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE ATIVA. - As associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear, possuem legitimidade para propor ação civil pública, na defesa de

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direitos individuais homogêneos." (Apelação Cível Nº 70040833071, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Sérgio Scarparo, Julgado em 26/05/2011)

No caso dos autos, verifica-se que ambos os requisitos

encontram-se presentes, merecendo o reconhecimento da legitimidade ativa

da associação autora para a defesa dos interesses dos consumidores.

No mérito, tenho que merece reforma a sentença proferida pelo

juízo a quo.

Compulsando os autos, verifica-se no item "4" de fl. 27/28 os

termos do contrato ora objeto de debate.

O item "4" do contrato prevê, de forma clara, a incidência de

cláusula penal para a hipótese de desistência do consumidor que assim

pode ser resumida:

1. Viagens internacionais

a. até 30 dias de antecedência - sem cláusula penal;

b. entre 29 e 15 dias de antecedência - cláusula penal de 50%;

c. entre 14 e 7 dias de antecedência - cláusula penal de 75%;

d. menos de 7 dias de antecedência - cláusula penal de 100%.

2. Viagens nacionais

a. até 15 dias de antecedência - sem cláusula penal;

b. entre 14 e 9 dias de antecedência - 20% de cláusula penal;

c. menos de 9 dias de antecedência - 50% de cláusula penal.

3. Não comparecimento (no show)

a. cláusula penal de 100%.

4. Passagens aéreas

a. aplica-se a cláusula penal imposta por cada companhia aérea.

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Como se observa, a empresa ré apresenta cláusulas penais

em percentuais razoáveis e compatíveis com o exercício de sua atividade.

Mesmo em casos em que o consumidor desiste com

antecedência pequena em relação à viagem, a empresa ré inclusive deixa

de cobrar quaisquer valores à título de cláusula penal.

A sentença determinou a limitação da cláusula penal em 20%

para todas as hipóteses sob dois fundamentos: (a) ausência de clareza e (b)

existência de abuso.

Tenho que o contrato apresenta clareza às fls. 27/28 em

relação ao tratamento aplicável às desistências dos passageiros. Ainda,

embora o contrato seja extenso, tais condições apresentam-se

imediatamente na primeira folha do contrato.

No tocante à existência de abuso, tenho que tal não pode ser

verificado em abstrato.

A cláusula penal encontra-se prevista no Código Civil nos arts.

408/416 e tem como sua natureza o pré-arbitramento de perdas e danos.

Embora esteja prevista no art. 413 a redução da cláusula penal

quando se verifique excesso, não há como fazê-lo sem descer aos fatos de

cada caso concreto. Se em alguns casos pode ocorrer abuso, não significa

que a cláusula penal não se apresente adequada em outros feitos.

A empresa ré é uma agência de turismo que vende serviços

que podem ou poderiam ser adquiridos diretamente pelo consumidor

(passagens de avião, estadias em hotéis, etc.).

Trata-se de relação de consumo e deve ser protegida. Por

outro lado, não significa que qualquer hipótese de margem de lucro da

empresa ré deva ser perseguida como se fosse um mal à sociedade.

Arnold Wald, ao analisar a função social e a boa-fé contratual

como reguladoras de obrigações aponta que "a função social do contrato e a

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aplicação do princípio da boa-fé não devem, pois, ser interpretadas

exclusivamente ou principalmente como proteção especial da parte

economicamente mais fraca. Significam a manutenção do equilíbrio

contratual e o atendimento dos interesses superiores da sociedade que, em

determinados casos, podem coincidir ou não com os interesses individuais

do sujeito que aderiu ao acordo e que não exerceu plenamente a sua

liberdade contratual."1

Assim não deve ser simplesmente modificada a obrigação em

proteção exclusiva ao polo economicamente mais fraco da relação, ainda

mais sem atentar às peculiaridades de cada caso.

Deve-se atentar que existe a cláusula penal moratória - em

razão do atraso do adimplemento da obrigação - e a cláusula penal

compensatória - em razão da extinção do contrato.

No caso dos autos, o que se verifica é a existência de uma

cláusula penal compensatória pela extinção da relação contratual. Assim, a

cláusula penal mencionada pretende compensar a ré pela desistência feita

pelo consumidor.

Supondo uma desistência feita com 30 dias de antecedência, o

contrato sequer prevê cláusula penal (mesmo em viagens internacionais).

Para viagens nacionais canceladas com menos de 09 dias de antecedência,

aplica-se cláusula penal de 50%, supondo que provavelmente não se

conseguirá revender a estadia em hotel ou outro serviço já contratado para

outro cliente. Em passagens aéreas, a cláusula penal será idêntica à

cobrada pela companhia aérea.

Efetivamente, excetuada a hipótese de passagens aéreas, a

cláusula penal poderá indicar uma vantagem ora do consumidor, ora da

1 WALD, Arnoldo. O interesse social no Direito privado. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, n.º 10. Porto Alegre: Magister, jan/fev 2006, p. 45.

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empresa ré. Contudo, nada que justifique uma revisão geral da cláusula

penal convencionada.

Imagine-se um consumidor que adquira passagens para voo

internacional e hotel no local de destino. Imagine-se que o consumidor tenha

desistido da viagem 8 dias antes de seu início. O valor pago pelas

passagens será restituído, retendo-se exclusivamente o que a companhia

aérea cobrou à título de cláusula penal. Nada mais justo. Sobre o valor pago

por hotel, será restituído o montante com retenção de 75%.

Por outro lado, os hotéis reservados podem ser dos mais

diversos padrões e localizados nos mais diversos países de diversos

continentes. Dependendo das regras do hotel, e conforme as regras vigentes

em seu país, pode ocorrer que seja restituído à agência 50% do valor (e

representaria um pequeno lucro à ré) e também pode ocorrer que nada seja

restituído (o que seria até um locupletamento do consumidor).

Aqueles que conhecem minimamente o turismo nacional e

internacional sabem que a alocação dos serviços turísticos são escassos em

diversos lugares, o que força regras específicas para reger o mercado.

Viagens destinadas ao turismo, como regra, são planejadas

com razoável antecedência. Assim, uma viagem cancelada com 8 dias de

antecedência provavelmente não será vendida a outro consumidor em

tempo hábil. Com grande possibilidade, os valores de hotéis não serão

restituídos. Com o hotel não se faria justiça exigir-lhe que imponha cláusula

penal pequena, mesmo sabendo que provavelmente deixou de hospedar

outras pessoas em razão de sua lotação e que, com pouca antecedência,

agora terá um quarto vago. Com a agência de turismo não se faria justiça

exigir-lhe que pague a cláusula penal e pouco cobre do consumidor.

Clóvis do Couto e Silva ensina em seu livro A obrigação como

processo que a regulação de obrigações e o controle de abusividade possui

ínsita ligação com a essencialidade do bem jurídico pretendido. Considera-

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se, assim, que a agência ré muito provavelmente pagaria por prestar um

serviço não essencial ao consumidor. Anote-se que mesmo no caso de uma

desistência, houve a prestação (parcial) de um serviço e seria razoável que

a empresa até auferisse lucro.

Em síntese, o consumidor deve ser responsável pelos seus

atos, não havendo qualquer razão jurídica para transferir ao mercado o ônus

que lhe caberia.

Não se conhece o porte econômico da empresa ré e a

suportabilidade da sentença proferida pelo juízo a quo. Contudo, mesmo que

não implique na inviabilidade das atividades, o ônus do consumidor

desistente seria transferido aos demais usuários do sistema.

Em relevante acórdão do TJ-SP (Apelação Cível n.º 0220165-

03.2008.8.26.0100) questão semelhante foi decidida. Transcrevo as lúcidas

e precisas palavras do ilustre Des. Roberto Mac Cracken:

"A Anadec, como defensora dos direitos dos consumidores, analisando contrato padrão da requerida, ora apelada, observou que esta estipulava perda de valores em patamares de 25%, 40% e 100%) do valor pago, em caso de desistência ou cancelamento do contrato de viagem ocorrido, respectivamente, de 29 a 15 dias do embarque, de 14 a 04 dias do embarque e a menos de 04 dias do embarque. Com o devido respeito, não prospera a pretensão da apelante em estabelecer o parâmetro máximo perseguido em 10%, para. perda de valores, em caso de desistência de pacotes de turismo. [omissis]Como bem observado no r. decisum a quo, conforme o ramo de atividade de cada empresa que coloque serviços à disposição do mercado, o prejuízo associado à inadimplência do consumidor pode variar consideravelmente de acordo com o objeto social de cada empresa, podendo ocorrer desde simples problemas de fluxo de caixa, até perdas irremediáveis.

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Consigne-se que a MM a Juíza de Primeiro Grau, ao prolatar a r. sentença recorrida, não deixou de levar em consideração as peculiaridades do presente caso, ou seja, a natureza da atividade da apelada - ramo de turismo - , fundamentado sua decisão na provável inviabilidade de colocação de lugares, em transportes ou hotéis, à disposição de outros consumidores, em caso de desistência, [omissis].Por outro lado, o Ilustre Promotor de Justiça do Consumidor, em sua r. manifestação, justifica, ainda, seu parecer pela improcedência do pedido da autora, da seguinte forma: "O sistema de proteção do consumidor não pode ser interpretado e aplicado deforma a causar iniqüidade em prejuízo dos fornecedores. E é possível antever que, caso acatada a pretensão da autora, um reajuste geral dos preços dos pacotes turísticos surja para todos os consumidores afim de compensar os prejuízos causados por apenas alguns deles" (fls. 429 / 430). Assim, mesmo havendo, em princípio, uma falsa idéia de que a improcedência da ação seria contraria aos interesses dos consumidores, na realidade, como bem justificado pelo Nobre Promotor de Justiça, no trecho do r. Parecer, acima transcrito, em interpretação muito mais abrangente, com o resultado da r. sentença, que ora se mantém, resguardada está a grande/maioria dos consumidores que, de forma efetiva, contratam e utilizam/os serviços prestados pela agência de turismo, ora apelada.Ainda nesta linha de raciocínio, outro ponto que merece destaque, caso seja provido o presente recurso, é o efetivo prejuízo causado aos consumidores, no que tange, especificamente, ao transporte aéreo, cuja situação caótica em nosso País é de notório conhecimento. Não bastassem os acontecimentos denominados pela mídia como "apagões aéreos", "crise na aviação", bem como de situações de extravio de bagagem, de atraso e cancelamento de vôos, de erros na emissão de bilhetes, de perda de

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conexões, de restrições alfandegárias, problemas metereológicos, mecânicos, entre muitos outros, uma questão particular que merece mais atenção do Judiciário é a prática do conhecido "Overbooking". Registre-se, por oportuno, que não se está aqui a julgar a legalidade ou não de tal prática. O overbooking permite que a companhia opere seus vôos com o máximo da capacidade ocupada possível, pois, é sabido que determinado percentual dos passageiros não se apresentará no balcão de check-in. Conhecendo tal situação, e na pretensão de voar com o avião o mais cheio possível, tais companhias vendem mais bilhetes que o número total de assentos para, assim, evitar prejuízos com lugares vagos.Neste contexto, a prática do mencionado "overbooking" provavelmente existe, também, porque, estatisticamente, é comprovada a desistência de número razoável de passageiros, ao ponto de poder/causar consideráveis prejuízos às empresas aéreas. Assim, limitar a retenção dos valores pagos, em patamar de 10%, da forma como pretende a ANADEC em caso de desistência de pacotes de turismo, com a devida vênia, só ira agravar, ainda, mais, a já delicada situação em que se encontra a aviação nacional e internacional, pois, por um lado, ao permitir que o consumidor arque com uma perda ínfima pela sua desistência, por outro vértice, de forma efetiva, estaria a estimular maior número de desistências, acarretando, em conseqüência, provavelmente em aumento desenfreado, inaceitável e impróprio, na aludida prática do "overbooking". Consigne-se que, na situação acima retratada, o passageiro que compra o bilhete de passagem aérea e, de forma efetiva, comparece no aeroporto no dia e horário da viagem marcada, é injustamente prejudicado, pelo denominado "overbooking", efetuado pela companhias aéreas provavelmente devido ao grande número de desistências.

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Por outro lado, com o devido respeito, não se mostra justo que o efetivo causador de tal situação, ou seja, o desistente da viagem, seja beneficiado com retenção em patamar de apenas 10% do valor pago pelo pacote de turismo, da forma como pretende a apelante. Assim, a princípio, quem assume a responsabilidade de contratar uma viagem deve, efetivamente, honrá-la, só podendo se escusar nas permissibilidades contidas em lei. Não se escusando adequadamente deve arcar com as conseqüências da contratação efetuada e que, no caso, são razoáveis e proporcionais em face da situação enfrentada."

Desta forma, impositiva a improcedência da ação.

Com a improcedência da demanda, os demais pedidos

formulados pelo apelante perdem o seu objeto.

Descabe a condenação a associação autora ao pagamento dos

ônus sucumbenciais em razão do constante no art. 18 da Lei n.º 7.347/1985.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso de apelação

para o efeito de julgar improcedente a demanda.

DES. PAULO SERGIO SCARPARO (REVISOR)

Acompanho no caso concreto.

DES.ª ANA MARIA NEDEL SCALZILLI (PRESIDENTE) - De acordo com

o(a) Relator(a).

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DES.ª ANA MARIA NEDEL SCALZILLI - Presidente - Apelação Cível nº

70036891877, Comarca de Porto Alegre: "DERAM PROVIMENTO AO

RECURSO. UNÂNIME."

Julgador(a) de 1º Grau: REGIS DE OLIVEIRA MONTENEGRO BARBOSA

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