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“O contato e o hábito deTlöndesintegraramestemundo. Encantada com seu rigor, ahumanidadeesqueceetornaaesquecerqueéumrigordeenxadristas,nãodeanjos.Jápenetrounasescolaso(conjetural) ‘idiomaprimitivo’deTlön;oestudodesuahistóriaharmoniosa (e cheia de episódios comoventes) já obliterou a que presidiu minhainfância; nas memórias um passado ictício já ocupa o lugar de outro, do qual nadasabemos com certeza − nemmesmo que é falso. Foram reformadas a numismática, afarmacologiaeaarqueologia.Entendoqueabiologiaeamatemáticaaguardamtambémseuavatar.”

(“Tlön,UqbareOrbisTertius”,Ficções,JORGELUISBORGES)

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Prefácio

ESTE É O PRIMEIRO LIVRO de história geral da matemática propriamentebrasileiroeresultadodepesquisaoriginal.Atéomomento,aspublicaçõesemusonoBrasil sobreo tema têmsido traduçõesdeobras lançadasnosEstadosUnidos,emgeralreediçõesdetítulosdedécadasatrásqueseguempadrõesatualmenteconsideradosultrapassadospelahistoriografia.

Resultado de pesquisas e experiências em sala de aula realizadas porTatianaRoque,esteHistóriadamatemática jáexprimebemoseuobjetivono subtítulo:Uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. Isso signi icadistanciar-se do enfoque historiográ ico tradicional, que se restringe àexposição das ideias dos matemáticos célebres como se elas levassemdiretamente àmatemática de hoje. Enfoque que se caracteriza ainda porumadescontextualizaçãoqueporvezessefazacompanhardeanedotasdecaráter duvidoso, como uma tentativa de dizer que os gênios damatemáticapodematéagircomopessoasmortais.

Apartirdasre lexõesedosprogressospermitidospelametodologiadepesquisa na área desenvolvida nas últimas décadas, este livro apresentauma história da matemática profundamente contextualizada naspráticasquecaracterizamo fazermatemático.Focalizandonessanovaabordagem,partedetaispráticaspararevelarosigni icadodosconceitosmatemáticosapresentados e consegue desconstruir diversos mitos e lendastradicionalmentedivulgadospelahistoriografia.

Nessa empreitada, abrange os períodos-chave do desenvolvimento damatemática,desdeaMesopotâmiaeoantigoEgito,aAntiguidadeclássica,aIdadeMédia,comascontribuiçõesdosárabes,eaRevoluçãoCientí icaatéoestabelecimentodo rigornasmatemáticasnos séculosXVII eXVIII enamatemáticapuranoséculoXIX.

Além do próprio objetivo de reescrever a história tradicional damatemática, este estudo distingue-se como convite para uma leituraenriquecedora devido ao estilo vivo adotado pela autora, que explica otema proposto em cada capítulo de modo agradável e inteligível, semtrivializá-los nem torná-los mais complexos do que são. Explicaçõescuidadosamente elaboradas e sustentadas em exemplos facilitam o

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entendimento.Hádeservircomovaliosorecursodidáticoparaprofessoreseestudantesdoensinomédio,emparticular,atingindotambémumpúblicomaisamplo.

GERTSCHUBRING

GERTSCHUBRING,doutoremmatemáticacomlivre-docênciaemhistóriadamatemática,épesquisadorno Institut für Didaktik der Mathematik, Universidade de Bielefeld, Alemanha. Autor de várioslivros,entreosquaisCon lictsbetweenGeneralization,RigorandIntuition:NumberConceptsUnderlyingthe Development of Analysis in 17th-19th Century France and Germany (Springer, 2005), é editor-chefe da revista International Journal for the History of Mathematics Education e membro doAdvisoryBoardof the InternationalStudyGroup for theRelationsbetweenPedagogyandHistoryofMathematics.

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Apresentação

ESTE LIVRO SE DIRIGE aos leitores que desejam conhecer um pouco mais ahistória da matemática, mas também a todos aqueles que têm, ou játiveram, vontade de aprender matemática. Muitas vezes, o contato comseus conceitos e ferramentas torna-se di ícil, pois a imagem que se temdessadisciplinaémarcadaporseucarátermecânico,abstratoe formal,oque produz uma sensação de distância na maioria das pessoas. Um denossos principais objetivos aqui é mostrar que o modo tradicional decontarahistóriadamatemáticaajudoua construir estavisão: adequeamatemáticaseriaumsaberuni icadoenvolvendoquantidades,númerosougrandezasgeométricas.

Quasetodososlivrosdisponíveisemportuguêsquenarramsuahistóriaseguemumaabordagemretrospectiva, quepartedos conceitos tais comoosconhecemoshojeparainvestigarsuaorigem.Assim,surgema irmaçõescomo “o primeiro a descobrir esta fórmula foi omatemático X”; ou “esteresultadojáestavapresentenaobradeY,ounaépocadeZ”.Essetipodeinformação,alémdeterpoucarelevância,ofereceumaimagemdeturpadadamatemática,comoseelafosseumaciênciadeconceitosprontos,dadosapriori,queospovosantigos“ainda”nãotinhamdescobertoounãotinhampossibilidade de conhecer. Seus resultados e ferramentas possuiriam,assim, antecedentes e precursores, personagens visionários, capazes devislumbrarideiasquesóseriamentendidasdemodoprecisomuitodepoisdeseutempo.

Pode-se fazerhistóriadamatemática,essencialmente,porduasrazões:paramostrar como ela se tornou o que é; ou para indicar que ela não éapenas o que nos fazem crer que é. No primeiro caso, deseja-se contarcomo foi construído o que se acredita ser o edi ício ordenado e rigorosoquehojechamamosde“matemática”.Nosegundo,aocontrário,pretende-seexibirumconjuntodepráticas,muitasvezesdesordenadas,que,apesarde distintas das atuais, também podem ser ditas “matemáticas”. Quandoencarado como uma prática múltipla e diversa, esse conhecimento seapresentacompostopor ferramentas, técnicase resultadosdesenvolvidospor pessoas em momentos e contextos especí icos, com suas próprias

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razões para fazer matemática e com ideias singulares sobre o que issosignifica.

Neste livro analisamos, de ummodo novo, alguns temas tratados pelahistóriadamatemáticatradicionalque,emboratenhamajudadoacompora visão dominante sobre essa disciplina, são questionados peloshistoriadores atuais. Listamos e criticamos, a seguir, três aspectos-chavedessavisãotradicional,indicandocomoforamcriadosourati icados,aindaquedemodofragmentadoeinconsciente,pelosrelatoshistóricosusuais:

Amatemáticaéumsaberoperacional,de tipoalgébrico, e temcomoumdeseus principais objetivos a aplicação de fórmulas prontas a problemas(muitasvezesenumeradoscomoumalistadeproblemasparecidos).Desde tempos muito antigos, povos como os babilônicosjá saberiamresolver equações de segundo grau. Em seguida, cada época teriaacrescentadoumapequenacontribuição,atéque,porvoltadoséculoXVI,aálgebra começaria a se desenvolver na Europa, tendo adquirido oscontornosdefinitivosdadisciplinaquechamamosporestenome.

Amatemáticaéumadisciplinaformaleabstrata,pornatureza,queajudaadesenvolver o raciocínio, mas é destinada a poucos gênios, a quemagradecemospornosteremlegadoumsaberunificadoerigoroso.A sistematização da matemática em teoremas e demonstrações teria seiniciadonaGréciaantiga.Desdeentão,destaca-seaimportânciadométodológico-dedutivo,queseriadesconhecidodeoutrospovosantigoserelegadoasegundoplanoporpensadoresmedievaisemesmorenascentistas.Esseidealteriasidoretomado,aindaquedemodoinsu iciente,nosséculosXVIIe XVIII, porém, recolocadono centro da atividadematemática a partir doséculo XIX. Só então, com a explicitação de seus fundamentos, o edi íciomatemáticoteriaadquiridoumaconsistênciainterna.

Ainda que possua aplicações a problemas concretos, a matemática é umsaber eminentemente teórico. Parte-se, algumas vezes, de dados daexperiência, mas para elaborar enunciados que os puri iquem e traduzamsuaessência.Em contraposição aos tempos áureos da Grécia, o saber teórico teriacomeçado a decair desde a Antiguidade tardia, atingindo seu nível maisbaixo na IdadeMédia, quando amatemática teria sido exercida somentepara ins práticos. Seu caráter teórico voltaria a ser valorizado com o

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Renascimentoe,apesardealgunspercalços,teriatriunfadoemdiferentesépocas, segundo uma narrativa que destaca seu antagonismo em relaçãoaoconhecimentoprático.

Nosso objetivo não é discutir até que ponto são falsos ou verdadeiros ostrêsaspectosqueacabamosdelistarequemoldamaimagemcorrentedamatemática. Pretendemosmostrar, todavia, que os relatos históricos quecontribuíramparaaconstituiçãodessaimagemsãobastanteaproximativosedevemserdiscutidoscombaseemnovaspesquisaseemummodomaisatualdefazerhistória.

Abordaremos, portanto, épocas, personagens e localidades já tratadospelanarrativatradicional.Masnãoparareproduzi-la,esimparamostraroquesepodedizerhojequepermitadesconstruiressanarrativaecomeçara construir uma nova. Muitos relatos que caíram no senso comum,reproduzindo anedotas sobre a vida dos matemáticos, além de mitos elendas, vêm sendo desmentidos, desconstruídos ou problematizados pordiversoshistoriadoresnasúltimasdécadas.Bastaumexemplo,tomadodamatemática grega: o “horror” que os gregos supostamente teriam peloin inito, demonstrado pelo escândalo que a descoberta dos númerosirracionais teria gerado no seio dos pitagóricos, levando um de seusintegrantes a ser perseguido e assassinado. Um livro popular no Brasil,Introduçãoàhistóriadamatemática ,deHowardEves,endossaalenda:“Adescoberta da irracionalidade de provocou alguma consternação nosmeiospitagóricos….

Tão grande foi o ‘escândalo lógico’ que por algum tempo se izeramesforços para manter a questão em sigilo.” 1 Tal mito, apesar dedesmentido, ainda é amplamente reproduzido, entre outras razões, pelaescassezdebibliogra ianoBrasilqueleveemcontaostrabalhosrecentessobrehistóriadamatemáticagrega, 2queanalisamdepertoopensamentodospitagóricosesuasupostarelaçãocommatemática.

Nossa proposta é, justamente, desfazer clichês desse tipo. Para tanto,escolhemos momentos de evidente miti icação relativa a certas áreas ouconceitoseosexibimosdemodocronológico.Aideianãoéreconstruirumavisão global, sintética, do desenvolvimento damatemática, vista como umsaber unitário composto pela acumulação de resultados que iriam seencaixando para constituir uma arquitetura ordenada e sistemática. Ouseja, nosso objetivo principal é, partindo dos modos como a história da

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matemática foiescrita, recontaressahistória.Por issocadacapítulodestelivroseiniciacomaapresentaçãodeumRelatoTradicionalquereproduzavisãoconvencionalsobretalperíodooutalconceito,sendoseguidodeumacontextualização mais ampla que leve em conta fatores culturais ouilosó icos.Investigarocontextonãosigni ica,porém,traçarumpanoramahistóricodecarátergeralquefuncionariacomoumpanode fundoparaodesenvolvimento da matemática.3 Ao contrário, na medida do possível,serão explicitadas aqui as relações intrínsecas entre as práticasmatemáticaseseucontexto.

Alguns capítulos abordam conceitos matemáticos conhecidos, como osnúmerosnaMesopotâmia,ageometrianaGrécia,aálgebranaIdadeMédiaenoRenascimento.Emparticular,quandosefalaem“álgebra”hojetem-seem mente uma subdisciplina da matemática que lida com equações esímbolos. Mas essa não era a maneira como os árabes, por exemplo,tratavam problemas que podem ser, atualmente, escritos em forma deequação. Como eles enunciavam seusmétodos?Emque ambiente eles seinseriam? Que visão tinham sobre a própria prática matemática?Perguntas desse tipo nos guiarão, situando as realizações dos atores emsuacultura.

Talabordagemevidenciaadi iculdadedesefalarem“evolução”deumconceito, comoodenúmero,oudeumdomínio, comoaálgebra,pois issoimplicapercorrerdiferentesmomentosnosquais essasnoçõesmudaramdesentido.Logo,convémnoslivrarmosdeclassi icaçõesmuitoarraigadasemnossa cultura, caso da divisão damatemática em subdisciplinas comoálgebra, geometria etc. Esses nomes designampráticas distintas ao longodahistória.

Estudaramatemáticadopassadoapenascomamatemáticadehojeemmente é uma postura que os historiadores atuais têm tido o cuidado deevitar. Para vencer os anacronismos, deve-se tentar mergulhar nosproblemasquecaracterizavamopensamentodecertaépocaemtodaasuacomplexidade, considerando os fatores cientí icos,mas também culturais,sociais e ilosó icos. Só assim será possível vislumbrar os problemas e,portanto,oambienteemquesede iniramobjetos,seinventarammétodoseseestabeleceramresultados.

Desejamos contribuir para transformar o modo transcendente de seabordar amatemática, o que pode ser útil não apenas para professores,mas para qualquer umque se interesse pelo assunto. Procuramos exporosconteúdosdomodomaisclaropossível,eoconhecimentodematemática

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que se requer para acompanhar a exposição é, em sua maior parte, ocorrespondente à grade curricular do ensino básico. Os capítulos podemser lidos de duas maneiras: examinando-se com atenção cadadesenvolvimento matemático, de modo linear; ou concentrando-se nasanálises históricas – nesse caso, as explicações matemáticas seriamdeixadasparaumaeventualsegundaleitura.

Convém observar que este livro se dedica muito pouco à matemáticarecente. Interrompemos nossa análise no inal do século XIX, com asdiscussões sobreos fundamentosdamatemática e a consistênciade seusconceitosbásicos,comoosdenúmeroedefunção.Aprioridadeserádadaà investigação da história das ideias elementares, ainda que sejanecessário, algumas vezes, analisar outros aspectos da matemática queexplicamamaneiracomoessesconceitossãodefinidoshoje.

Apostamos na possibilidade de que um novo olhar ajude a fazer comqueaspessoasnãosesintampertencentesaummundodistantedaqueleque os matemáticos produziram. O intuito é tornar disponível, para osleitoresbrasileiros,umapartedasdiscussõessobreumnovomododeveramatemáticadopassado,desfazendoaimagemromantizadaeheroicaquea envolve e que tem sido reproduzida pela miti icação de sua história.Talvez assim se possam romper certas barreiras psicológicas, tornandopossívelatémesmoqueumpúblicomaisamplovenhaagostarmaisdessadisciplina.

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Introdução

A formação de um mito: matemática grega –nossamatemática1

De acordo com as narrativas convencionais, a matemática europeia,considerada a matemáticatoutcourt , originou-se comos gregos entre asépocasdeTalesedeEuclides, foipreservadaetraduzidapelosárabesnoiníciodaIdadeMédiaedepoislevadadevoltaparaseulugardeorigem,aEuropa, entre os séculos XIII e XV, quando chegou à Itália pelasmãos defugitivosvindosdeConstantinopla.Esserelatopartedoprincípiodequeamatemáticaéumsaberúnico,quetevenosmesopotâmicoseegípciosseuslongínquosprecursores,masqueseoriginoucomosgregos.Ora,combasenasevidências,nãoépossívelsequerestabelecerumacontinuidadeentreasmatemáticasmesopotâmicaegrega.Comrarasexceções,amatemáticamesopotâmica parece ter desaparecido por volta da mesma época dosprimeiros registrosdamatemáticagregaquechegaramaténós, logo,nãopodemos relacionar essas duas tradições. Isso indica que talvez nãopossamosfalardeevoluçãodeumaúnicamatemáticaaolongodahistória,mas da presença de diferentes práticas que podemos chamar de“matemáticas”segundocritériosquetambémvariam.

ApartirdoséculoXVI,ahistóriafoiescrita,muitasvezes,comointuitodemostrar que os europeus são herdeiros de uma tradição já europeia,desde a Antiguidade. Nesse momento, construiu-se o mito da herançagrega, que serviu também para responder a demandas identitárias doseuropeus. Entender o como e o porquê de sua construção nos ajuda acompreenderqueopapeldahistórianãoéacessórionaformaçãodeumaimagemdamatemática:suafunçãoétambémsocialepolítica.

O mito de que somos herdeiros dos gregos, reforçado por inúmerashistórias da matemática escritas até hoje, teve sua origem noRenascimento.Talideiajáexistiaumpoucoantes,noséculoXIV,noseiodomovimentodoshumanistas italianos, inspiradonoenaltecimentodosaberdosantigos.Petrarca,poeta italiano,umdospaisdomovimento, escreveu

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biogra ias de Arquimedes, apesar de compreender muito pouco oconteúdodeseustrabalhos,a imdeincentivarareverênciaaosheróisdaAntiguidade.Amatemáticafoi incorporada,então,comoumelementovitaldaculturahumanista.

Um humanista com vasto conhecimento matemático foi, por exemplo,Regiomontanus. Para ele, essa disciplina se dividia em dois ramos: ageometria e a aritmética.Oprincipalnome relacionadoà geometria eraode Euclides,mas Arquimedes e Apolônio também erammencionados. Noque tange à aritmética, o papel de Euclides era igualmente sublinhadocomo responsável por uma abordagemmais legítima que a de Pitágoras.Regiomontanus reconhecia que outros autores brilhantes escreveramsobre esses assuntos “em diversas línguas”, mas seus nomes não sãocitadospor“faltadetempo”.Elechegaalembraracontribuiçãoárabeparaa álgebra,mas a precedência do gregoDiofanto é rapidamente invocada.Emdomíniosmaispráticos–comoaastronomia,amúsicaouaperspectiva–, os trabalhos árabes eram reconhecidos, mas a matemática, segundoRegiomontanus, só teria sido cultivadademodo adequadopelos gregos elatinos.

OHumanismoeraummovimentoconectadocomodesenvolvimentodeuma cultura urbana. Logo, tratava de dar valor à utilidade doconhecimento para a vida comum, embora a legitimidade do saberestivesse associada a argumentos teóricos. Alguns escritos demeados doséculoXVI reconhecema proximidadeda álgebra coma cultura islâmica.Outrosdomínios,comoaópticaeaastronomia,tambémerampraticadosapartir de contribuições islâmicas, e ainda não era possível falar dematemáticaeuropeia,umavezque,foradaItáliaedepartesdaAlemanha,salvorarasexceções,elanãoestavadesenvolvida.Portanto,nãopodemoslocalizar nesse momento a construção do mito sobre a origem greco-ocidental da matemática, e sim na segunda metade do século XVI, porrazõesqueultrapassamotrabalhomatemático.

Em primeiro lugar, cabe lembrar que o século XVI é o período daexpansão colonial, obviamente associada ao desejo de se construir umaidentidade europeia, com características intelectuais que pudessem serdemarcadas dos “outros” povos com os quais os europeus estavamentrando em contato.Mas essa não é a única razão. Na segundametadedesse século, à depreciação colonialista do que não é europeu veio sesomaranecessidadedecontrolaredomesticarasclassespopulares.

No iníciodo séculoXVI, a culturaeuropeianãodistinguiaumsaberde

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alto nível da cultura popular. As manifestações culturais eram híbridas,com in luências recíprocas entre as diferentes classes sociais. Anecessidade de demarcar um saber de alto nível teve início com asameaças impostas pelo clima de revolta que se seguiu à Reformaprotestante.Oprincípiodeautoridadepassouaserquestionado, tantonoâmbito religioso quanto no político e no social. Surgiram, então, algunsmovimentos mais radicais, como o dos anabatistas, que pregavam asimplicidadedapalavradeDeus.Elesa irmavamquetodososhomenssãoiguais,poisoespíritodeDeusestáemtodosenemmesmoobatismoserianecessário para diferenciar os indivíduos. Negavam-se, assim, as pompasda Igreja, as cerimônias e as imagens sacras. A percepção de que ospadres enriqueciam e a Igreja se construía a partir da exploração dospobrestornavaaépocapropíciaareações.

Auma fase inicialde tolerância seguiu-sea repressão,de cunho ísico,mas também ideológico. A perseguição a grupos marginais, como osciganos,fazpartedessesesforços,bemcomoaevangelizaçãojesuíticadoscamponeses. Na segunda metade do século XVI, as diferenças sociais seintensi icaram e era preciso reconquistar culturalmente as classespopulares,queameaçavamromper como controleexercidopelas classesdominantes. Depois de um período de trocas entre cultura superior epopular,eraprecisosepararfortementeessesdoismodosdepensamento.2Umapartedapopulaçãoconverteu-se,assim,emaltaburguesia,aopassoque o artesanato foi relegado às classes trabalhadoras, sem autonomiacultural. Nesse contexto, era útil desabonar não somente a matemáticaestrangeira,masaindaausadaemproblemaspráticos,tidoscomoum immenor da ciência. Nessa época, tentou-se transformar a álgebra em umsaber nosmoldes gregos.Mas, apósDescartes, com a união da álgebra àgeometria, as consequências dessa mudança serão ainda mais fortes,culminando na constituição de uma matemática europeia. A partir daí, omito, preparado pelos humanistas com outro objetivo, icavaconvenientemente à disposição, tendo sido adotado praticamente até osdiasdehoje.

A imagemdamatemática comoumsaber superior, acessível a poucos,ainda é usada para distinguir as classes dominantes das subalternas, osaber teórico do prático.a Os europeus foram erigidos em herdeirosprivilegiadosdosmilagresgregoseaciênciapassouaservistacomoumacriação especí ica do mundo greco-ocidental. Essa reconstrução tem doiscomponentes:aexaltaçãodocaráterteóricodamatemáticagrega,cujaface

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perfeita é expressa pelométodo axiomático empregado por Euclides; e adepreciação das matemáticas da Antiguidade tardia e da Idade Média,associadasaproblemasmenores, ligadosademandasdavidacomumdoshomens.NosCapítulos2e3mostraremosqueamatemáticagrega,porém,eramuitodiferentedanossa,mesmoemseuaspectoformal.EnoCapítulo4 veremos que a matemática da Idade Média, período consideradoobscuro,eraumamanifestaçãosingular,dentrodaqualaseparaçãoentreteoria e prática não se aplica sem a mutilação de suas característicaspeculiares.

E mScience Awakening (Despertar da ciência) – livro sobre asmatemáticasegípcia,babilônicaegregapublicadonosanos1950masquepermanece servindo de referência em diversos textos históricos –, omatemáticoBartel Leendert van derWaerden inclui um capítulo sobre adecadência da matemática grega. Essa fase teria começado depois deApolônio,naviradadoséculoIIIa.E.C.bparaoséculoIIa.E.C.eseestendidopeloimpérioromanoatéo imdaIdadeMédia.Aotentarexplicaroporquêdessa decadência, o autor levanta a hipótese de que, por não veremutilidadenamatemáticapura,osromanosteriamrelegadoosmatemáticosasegundoplano.Mas talargumentonãoésu iciente,pois,emboraaseusolhos, esse motivo explique a estagnação, não dá conta do “verdadeiroretrocesso”damatemática,evidenciadopelo fatodeosárabesevitaremaerudiçãogrega,almejandosomenteescreverobrasdematemáticaprática.

O mito da ciência como um saber tipicamente greco-ocidental serve,nesse caso, para exaltar a matemática pura, com seu caráter teórico eformal, eparadesmereceros trabalhosda IdadeMédia, emparticularosdos árabes. Depois de elogiar Newton, B.L. van der Waerden resumequase 2 mil anos de história em uma única frase: “Em suma, todos osdesenvolvimentos que convergem no trabalho de Newton, os damatemática, da mecânica e da astronomia, começam na Grécia.” 3 Vemos,assim, que a separação entre teoria e prática pode ser uma projeção, nahistória, das crenças modernas sobre o que é – e o que deve ser –matemática.

Éclaroquedesconstruirahistória,idealizada,sobreaorigemgregadenossa matemática não se impõe somente como uma obrigação moral,movidapelodeverdesubstituirumaverdadeporoutra,mais“verdadeira”historicamente.Anecessidadededesconstruiromitonascedeincômodosmais profundos, como demonstra J. Høyrup, um dos principaishistoriadores damatemática da atualidade, ao investigar a especi icidade

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damatemáticaislâmica:

Em temposmais serenos que os nossos, esses pontos podem parecer imateriais. Se a Europaquer descender da Grécia antiga, e ser sua herdeira por excelência, por que não deixá-laacreditar nisso?Nossos tempos, contudo, não são serenos. A particularidade “Greco-Ocidental”sempreserviu(eservemaisumavezemdiversoslugares)comoumajusti icativamoralparaocomportamentoefetivodo“Ocidente”emrelaçãoaorestodomundo,caminhando juntocomoantissemitismo, o imperialismo e a diplomacia das canhoneiras. … Não é inútil lembrar aobservação de Sartre de que a “prática intelectual terrorista” de liquidar “na teoria” podeacabar,facilmente,exprimindo-secomoumaliquidação ísicadaquelesquenãoseencaixamnateoria.4

A maçã de Newton: as transformações nahistóriadaciência

A lenda de que Newton descobriu a lei da gravidade quando umamaçãcaiuemsuacabeçaébastanteconhecida,e,apesardaevidentecaricaturaque representa, não é uma invenção recente. Traduz a visão de que aciência é uma produção individual de gênios que, num rompante deiluminação, têm ideias inovadoras,di íceisde seremcompreendidaspeloshomens comuns. O historiador R. Martins mostrou as origens, os usos eabusosdessalenda.5

FIGURA1“DescobertadaleidegravidadeporIsaacNewton”:caricaturafeitaporJohnLeechepublicadaemmeadosdoséculoXIX.

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Ahistóriadaciênciafoimarcadaporpreconceitossemelhantesaosquemoldaram a história da matemática, sobretudo no que concerne aodesprezo pela Idade Média. Esse período foi visto como uma épocaestacionária,a“idadedastrevas”,marcadapelodogmatismoreligioso,pelomisticismoepeloabandonodo raciocínio ísico.Nãose tratade saberemque medida isso é verdade, mas os adjetivos escolhidos indicam que oRenascimento inventou o mito das trevas para se autode inir, porcontraste,comoa“idadedarazão”.Cadaépocaacabaelaborando,sobreopassado,ashistóriasqueseadaptam,dealgumaforma,àvisãoquepossuisobresimesma.Emseguida,comaRevoluçãoCientí ica,aciênciateriasedesenvolvido até atingir seus mais altos patamares com a descriçãonewtonianadoUniverso.A ideiadequehouveumaRevoluçãoCientí icaéquestionada, hoje, justamenteporpressuporuma concepçãomodernadeciência,comomostraremosnoCapítulo5.

Durante o Segundo Congresso Internacional de História da Ciência,realizado em Londres em 1931, o ísico russo Boris Hessen defendeu atese de que as ideias cientí icas de Newton, a respeito damecânica e dagravitaçãouniversal,decorreramdasnecessidadesdasociedademercantilinglesa. Logo, o conteúdo da ciência seria determinado por estruturassociaiseeconômicas,enãopelagenialidadedeseusatores.OtrabalhodeHessen foi bem-recebido na época, sobretudo pelos marxistas ingleses,masnãochegouatergranderepercussãonomododepraticarhistóriadaciência. Ainda nos anos 1930, Robert K. Merton, sociólogo americano,escreveuumatesefamosasobrearelaçãoentreareligiãoprotestanteeoadventodaciênciaexperimental. Seu livroScience,TechnologyandSocietyin17th-CenturyEngland (Ciência, tecnologia e sociedade na Inglaterra doséculoXVII)levantouquestõesquesetornaramcruciaisparaosurgimentoda sociologia da ciência. Os dois exemplos não chegam a constituir,contudo,ummovimentocoordenadodere lexãosobrecomofazerhistóriada ciência. A iniciativa de Merton procurava, inclusive, se dissociar dosprincípios materialistas defendidos por Hessen. Para sermos breves, ahistóriadaciênciacomeçouasedesenvolvernessaépoca,massomenteapartirdosanos1960 iniciaram-seasdiscussõessobrea identidadedessadisciplina, que ganharam um novo impulso com as questões suscitadaspelolivroAestruturadasrevoluçõescientíficas,deThomasKuhn,publicadoem 1962.6 Já estava claro, nessa ocasião, que havia opiniões divergentessobre a relação entre ciência e sociedade, mas um debate inovador foiintroduzidoporKuhn,questionandoopressuposto“continuísta”. 7Ou seja:os desenvolvimentos cientí icos possuem uma continuidade ou são

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marcadosporrupturas?Omitodaorigemgreco-ocidentaldaciênciarefleteomodelocontinuísta,

como se os avanços cientí icos viessem completar lacunas existentes naconcepção predominante da fase precedente. Essa visão começou a sercriticada nos anos da Segunda Guerra Mundial, quando já se fazia umadistinção entre uma história dita “internalista”, que descreve os avançoscientí icosapartirdenecessidadesinternas,eoutra“externalista”,quesefortaleceunessemomentoenfatizandoos aspectos sociais e culturaisquemotivam o desenvolvimento da ciência. No entanto, a ruptura de initivacoma tesecontinuístaveiocoma ideiadequeaciênciaavançapassandopormúltiplasrevoluçõescientíficas,defendidaporKuhn.

Parajusti icarsuaconcepçãodequeahistóriadeumdomíniocientí icopassa por diferentes mudanças de paradigmas, Kuhn se apoiou naevolução das ciências ísicas, porém sua crítica logo se expandiu para aanálise de outras áreas da ciência. Em busca do equilíbrio, com o im derealizar uma análise não continuísta sem cair na armadilha de estudarperíodos longos por meio de concepções descontinuístas, a história daciência passou a se concentrar em análisesmais locais, como estudos decasos, de personagens e de documentos, para só depois investigar suasrelações com o contexto mais amplo. Uma consequência dessastransformações é que os pesquisadores puderam se livrar da busca deprecursores. Tal busca é, por si só, arti icial, pois quando um autor criaprecursores de uma determinada ideia ele não só modi ica nossaconcepção sobre o passado, como também aponta uma direção que ahistóriateriaseguido,demodoevolutivo.

A partir dos anos 1970, a história da ciência inicia uma nova fase.8Percebe-se,cadavezmais,aciênciacomocon iguradapordadosculturais,vinculada a agentes especí icos e práticas locais. Encerra-se, assim, operíododasgrandesnarrativashistóricas.Oabandonodoeurocentrismoedo continuísmo diminuiu o interesse pelas histórias que pretendiamabarcar imensosperíodosde tempoe enormes regiões geográ icas, comoera o caso do clássico de René Taton,Histoire générale des sciences(História geral das ciências), obra emquatro volumes, commaisde3milpáginas,publicadaentre1957e1964.

Depois da metade do século XX, traumatizados por duas guerrasmundiais,muitospensadores começaramaquestionaropapelda ciência,mostrando-se céticos em relação à crença, que parecia inabalável, nodesenvolvimento técnicoecientí icocomoumelemento fundamentalpara

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oprogressoeobem-estardahumanidade.AstesesdeKuhn,bemcomoatransformação dos propósitos da história da ciência, podem ser vistascomo uma tentativa de reconquistar alguma credibilidade para a ciência.Os relatos históricos que tendem a enxergar uma evolução da ciência, apartirdosseusresultados,eramdesqualificadoscomohistória“whig”.Essetermo foi cunhadopelohistoriadorbritânicoHerbertButter ield,9 em suaanálisedahistóriapolíticadoReinoUnido,que,no séculoXVIII, assistiuàvitóriadoswhigscontraostories,maisconservadores.Otermofoiaplicadopara caracterizar as histórias que celebravam o progresso, a partir dotriunfo das instituições representativas e das liberdades constitucionais.Tais histórias eram criticadas por seu anacronismo, ou seja, por assumiruma continuidade na tradição inglesa, que teria culminado com a formaatual de governo parlamentar. Narrativas desse tipo costumam seconcentrarnassemelhanças,maisdoquenasdiferenças,entreopassadoe o presente, o que as leva a não dar a devida importância ao trabalhohistórico sobre as fontes. Por estemotivo, a alcunha de “whig” foi usadaparaalémdesse contexto,nahistóriada ciência, como imdedesignarahistória escrita pelos vencedores, ou seja, as tentativas de apresentar opresente como uma progressão inevitável que culmina com as formascontemporâneas de se fazer ciência. No campo da história da ciência, a“história whig” vem sendo intensamente questionada desde asreformulaçõesdosanos1960e70.

Asabordagensmais“externalistas”semultiplicaramapartirdadécadade 1970, radicalizando-se em meados dos anos 1990. Nesse momento,diversos cientistas ligados às ciências naturais desencadearam ummovimento público de contestação à história internalista da ciência efundarama sociologia da ciência, questionando atémesmo a objetividadedos objetos cientí icos. Obviamente, essa reformulação acabou por gerarcertos exageros no sentido oposto. Atualmente foi alcançado um maiorequilíbrio. Os pressupostos de objetividade continuam em franco declínionomeiodoshistoriadoresdaciênciae, cadavezmais, reconhece-secomorelevante a investigação do que as pessoas pensavam que estavaacontecendo, e dequemodo suaspercepções e narrativas sobre os fatosin luenciaramouforamin luenciadospelarealidadequeviviam.Demodogeral, a perspectiva histórica permite reconhecer que qualquerinterpretaçãoéprovisóriaepodetomarporobjetodere lexãoosprópriosatos interpretativos pormeio dos quais as tradições se constituíram e ossentidosforamproduzidos.

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Tornou-se também importante diferenciar a história da historiogra ia,que é a produção dos historiadores. Diferente da história, que pode serde inida como o conjunto do acontecer humano, objeto de estudo doshistoriadores, a historiogra ia é a escrita sobre esse acontecer, que podeincluirumaatividadecrítica,procurandomostrarasbasesepistemológicasepolíticassobreasquaisosdiscursoshistóricossãoconstruídos,exibindosuas pressuposições tácitas. Um dos principais objetivos deste livro éjustamente incorporar algumas mudanças historiográ icas recentes àhistóriatradicionaldamatemática.

As transformações por que passou a história da ciência nas últimasdécadas não foram sentidas do mesmo modo, nem com a mesmacronologia,nahistóriadamatemática.Os livrosdehistóriadamatemáticamais conhecidos noBrasil, comoHistóriadamatemática , de Carl Boyer, eIntrodução à história da matemática , de Howard Eves, apresentam umavisão ultrapassada, contendo relatos já questionados pela pesquisa naárea. Quando, aqui, mencionarmos, sem maiores precisões, “história damatemática tradicional” ou “historiogra ia tradicional”, estaremos nosreferindo a obras como essas. Propomos, no Anexo: A história damatemática e sua própria história , um panorama das transformaçõesrecentesnomododepraticarhistóriadamatemática.

Históriadamatemáticaeensino

Omodo de escrever o encadeamento das de inições, dos teoremas e dasdemonstraçõesé,desdemuitosséculos,umapreocupaçãofundamentaldamatemática. No entanto, não podemos deixar de perceber uma diferençacrucial entre a ordem lógica da exposição, o modo como um textomatemático é organizado para ser apresentado, e a ordem da invenção,que diz respeito ao modo como os resultados matemáticos sedesenvolveram. O ilósofo francês Léon Brunschvicg mencionava essadiferençaeanecessidadedereverteraordemdaexposição,sequisermoscompreenderosentidoamplodasnoçõesmatemáticas.10

Aoanalisaraestruturadasrevoluçõescientí icas,T.Kuhnsinalizouqueos cientistas, em seu trabalho sistemático, estão continuamentereescrevendo(eescondendo)ahistóriarealdoqueoslevouatéali.11Issoénatural, pois o objetivo desses pesquisadores é fazer a ciência avançar enãore letirsobreseusresultados.Adiferençaentreomododefazerede

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escrever está também muito presente na matemática, que parece serescrita de trás para a frente. As de inições que precedem as conclusõessobre os objetos de que se está tratando explicitam, na verdade, osrequisitos para que um enunciado seja verdadeiro, requisitos que foramdescobertosporúltimo,emgeral,notrabalhoefetivodomatemático.Eesseencadeamento lógiconaapresentaçãodosenunciadostornaamatemáticatranscendenteedesconectadadeseucontextodedescoberta.

Um dos fatores que contribuem para que a matemática sejaconsiderada abstrata reside na forma como a disciplina é ensinada,fazendo-seuso,muitasvezes,damesmaordemdeexposiçãopresentenostextos matemáticos. Ou seja, em vez de partirmos do modo como umconceitomatemáticofoidesenvolvido,mostrandoasperguntasàsquaiseleresponde, tomamos esse conceito como algo pronto. Vejamos como aordemlógicasugereapresentaroteoremadePitágoras.

Definição1:Umtriânguloéretângulosecontémumânguloreto.De inição 2: Em um triângulo retângulo o maior lado é chamado

“hipotenusa”eosoutrosdoissãochamados“catetos”.Teorema: Em todo triângulo retângulo o quadrado da medida da

hipotenusaéigualàsomadosquadradosdasmedidasdoscatetos.Problema:Desenhoum triângulo retângulode catetos3 e4 eperguntoo

valordahipotenusa.

Temosprimeiroasde inições,depoisosteoremaseasdemonstraçõesqueusamessasde iniçõese, inalmente, asaplicaçõesdos teoremasaalgumasituação particular, considerada um problema. A partir dessaapresentação, podemos demonstrar e aplicar o teorema de modo

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convincente. Ainda assim, diversas perguntas permanecem sem resposta,como:porqueumtriânguloretângulomereceumade iniçãoespecial?Porqueessesnomes?Oqueémedir?Porqueéinteressantemedirosladosdeumtriângulo?Porquedevemosconhecera relaçãoentreasmedidasdoslados de um triângulo retângulo? As respostas a essas perguntaspermanecem escondidas por trás domodo coerente como enunciamos oteorema e, sobretudo, do modo como utilizamos operacionalmente oresultadoqueeleexprime.

Amatemática que lemos nos livros já foi produzida hámuito tempo ereorganizadainúmerasvezes.Entretanto,nãosetratadeumsaberprontoe acabado. Fala-se muito, hoje, em inserir o ensino de um conceitomatemático em um contexto. E justamente porque amaioria das pessoasachaqueamatemáticaémuitoabstrata,ouvem-sepedidosparaqueelasetornemais “concreta”, ligada ao “cotidiano”.Mas amatemática também évistacomoumsaberabstratoporexcelência.Comotorná-lamaisconcreta?Essas questões aparecem frequentemente na experiência de ensinarmatemática,bemcomonasdiscussõessobreasdi iculdadesdeseuensinoedesuaaprendizagem.

Costuma-se dizer que o aprendizado de matemática é importanteporque ajuda a desenvolver a capacidade de raciocínio e, portanto, opensamento lógico coerente, que é um tipo de pensamento abstrato. Éverdade que a matemática lida com conceitos que não parecemcorresponder à experiência sensível, caso dos números negativos,irracionais ou complexos. Mesmo os conceitos geométricos básicos deponto e reta são abstratos, uma vez que não existem, no mundo real,grandezassemdimensão,oucomsomenteumadimensão.Todososobjetosdequetemosexperiênciasãotridimensionais.ComoseveránoCapítulo1,mesmo o conceito denúmero, apesar de ter sido de inido a partir denecessidades concretas, pode ser encarado como abstrato. Sendo assim,parece que estamos diante de um paradoxo: como tornar a matemáticamais “concreta” sem abdicar da capacidade de abstração que o seuaprendizadoproporciona?Talperguntanosparecemalfeita.

Possivelmente, quando as pessoas pedem que a matemática se tornemais “concreta”, elas podemnãoquerer dizer, somente, que desejamveresse conhecimento aplicado às necessidades práticas, mas também quealmejam compreender seus conceitos em relação a algo que lhes dêsentido. E amatemática pode ser ensinada dessemodo,mais “concreto”,desdequeseusconceitossejamtratadosapartirdeumcontexto.Issonão

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signi ica necessariamente partir de um problema cotidiano, e sim sabercom o que esses conceitos se relacionam, ou seja, como podem serinseridosemumaredederelações.

Amatemática sedesenvolveu, e continuaa sedesenvolver, apartirdeproblemas.Opapeldahistóriadamatemáticapodeser justamenteexibiresses problemas, muitas vezes ocultos no modo como os resultados seformalizaram. Para além da reprodução estéril de anedotas visando“motivar” o interesse dos estudantes, é possível reinventar o ambiente“problemático”noqualosconceitosforamcriados.Anoçãode“problema”usada aqui, bem como de “problemático”, não remete a um sentidonegativo,ligadoaumafaltadeconhecimentoquedevesersuplantadapelosaber.Talvocábulonãotemomesmosentidodostradicionais“problemas”que passamos aos alunos após a exposição de uma teoria (como noexemplo dado anteriormente acerca do teorema de Pitágoras) e queequivalemaexercíciosdefixação.

Os problemas que motivaram os matemáticos podem ter sido denatureza cotidiana (contar, fazer contas); relativos à descrição dosfenômenos naturais (por que um corpo cai?; por que as estrelas semovem?); ilosó icos (o que é conhecer?; como a matemática ajuda aalcançar o conhecimento verdadeiro?); ou, ainda, matemáticos (comolegitimar certa técnica ou certo conceito?). No desenvolvimento damatemática, encontramos motivações que misturam todos esses tipos deproblemas. Até o século XIX, situações ísicas e/ou de engenharia, bemcomo questões ilosó icas, possuíam um papel muito mais importante nodesenvolvimentodamatemáticadoquehoje. JáentreosséculosXIXeXX,discussões relativas à formalização e à sistematização da matemáticatornaram-sepreponderantes.

Entender os problemas que alimentam a matemática de hoje épraticamente impossível, tendo em vista a sua complexidade e aespeci icidade da linguagem e do simbolismo por meio do qual seexprimem.Masosconteúdosqueensinamos,desdeoensino fundamentalatéosuperior, já foramdesenvolvidoshámuitosséculos.Podemos,então,analisar o momento no qual os conceitos foram criados e como osresultados, que hoje consideramos clássicos, foram demonstrados,contrabalançandoaconcepçãotradicionalquesetemdamatemáticacomoumsaberoperacional, técnicoouabstrato.Ahistóriadamatemáticapodeperfeitamente tirardoesconderijoosproblemasque constituemo campodeexperiênciadomatemático,ouseja,o ladoconcretodoseu fazer,a im

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dequepossamosentendermelhorosentidodeseusconceitos.

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RELATOTRADICIONAL

AMATEMÁTICAANTIGA, emparticularamesopotâmicaea egípcia, sempre foitratada como parte da tradição ocidental, como se tivesse evoluído demodolineardesdequatromilanosantesdaEraComumatéamatemáticagrega do século III a.E.C. Ou seja, haveria somente uma matemática e,consequentemente,umaúnicahistóriadesuaevoluçãoatéosnossosdias.Essaevolução teria sidomarcadapela transformaçãodeumamatemáticaconcretaemumaoutra,maisabstrata,daqualseríamosherdeiros.

Essepontodevistafoiexpressoemnarrativasdosmaisvariadostipos,muitas in luenciadas pela citação de Heródoto (século V a.E.C.), quecreditou aos egípcios a invenção da geometria. Suas construçõesso isticadas, como pirâmides e templos, favoreceram a imagem do Egitocomo o ancestral da cultura moderna. Assim, durante a maior parte doséculo XX, a Mesopotâmia e o Egito foram vistos como o berço damatemática,com lugargarantidonosprimeiroscapítulosdos livrosgeraissobre a história desse saber. Esses capítulos tentavam enumerar raízesesparsas de conceitos pertencentes ao domínio da matemática, como otratamentodeequações,naálgebra,eoconhecimentodonúmeroπparaocálculodeáreas,nageometria.

Emtrabalhos renomados, comoosdeO.Neugebauer,nosanos1930e40,edeB.L.vanderWaerden,nasdécadasde1950a1980,chegou-seapostular que as receitas aritméticas usadas pelos mesopotâmicos eramuma álgebra e podiam ser facilmente traduzidas por equações. Talinterpretação se baseia em uma tradução anacrônica de seusprocedimentos, anacronismo que também se veri ica em relação aosegípcios. A exaltação dessas técnicas “avançadas” contrasta com adepreciaçãodeoutraspartesdamatemáticadessespovosantigos,comoarepresentaçãoegípciadefrações.Seguindoessesmesmoshistoriadores,aaritméticabaseadaemfraçõesunitárias(comnumerador1)teriatidoumain luência negativa no desenvolvimento da matemática dos egípcios,impedindo-os de evoluir em direção a resultados mais avançados, o quetambémteriaocorridocomaastronomiadosmesopotâmicos.

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aEssaseparaçãocorrespondeaumadivisãosocialdotrabalhoquetemporfunçãodesquali icarosaberpráticoemproldosaberteórico.Os ilósofosG.DeleuzeeF.Guattarimostram,emMilplatôs,queaconstituiçãodeumaciênciadeEstadoquesecontrapõeàsciênciasnômadesestabeleceumadicotomiaentreteoriaepráticacomoformadedistinguirsocialmenteseuspraticantes.b Atualmente, tem-se usado “antes da Era Comum” no lugar de “antes de Cristo” com o im deneutralizarconotaçõesreligiosas.

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1.MatemáticasnaMesopotâmiaenoantigoEgito

EMUMAHISTÓRIADOSNÚMEROS,édi ícilescolherumpontodepartida.Porondecomeçar?Emqueépoca?Emquelocal?Emquecivilizaçãoespecí ica?Nãoé di ícil imaginar que as sociedades muito antigas tenham tido noção dequantidade. Normalmente, associa-se a história dos números ànecessidade de contagem, relacionada a problemas de subsistência, e oexemplomais frequente é odepastoresdeovelhasque teriam sentido anecessidadedecontrolarorebanhopormeiodaassociaçãodecadaanimalaumapedra.Emseguida,emvezdepedras,teriasetornadomaispráticoassociarmarcasescritasnaargila,eessasmarcasestariamnaorigemdosnúmeros. Usamos aqui o futuro do pretérito – “teria”, “estariam” – paraindicar que essa versão não é comprovada. As fontes para o estudo dascivilizações antigas são escassas e fragmentadas. Historiadores eantropólogosdiscutem,hátempos,comoconstruirumconhecimentosobreessasculturascombasenasevidênciasdisponíveis.

Obviamente, seriamuito di ícil estudar culturas cuja prática numéricafosse somente oral. Como nosso objetivo é relacionar a história dosnúmeroscomahistóriadeseusregistros,éprecisoabordaronascimentoda escrita, que data aproximadamente do quarto milênio antes da EraComum. Os primeiros registros que podem ser concebidos como um tipode escrita são provenientes da Baixa Mesopotâmia, onde atualmente sesitua o Iraque. O surgimento da escrita e o da matemática nessa regiãoestão intimamente relacionados. As primeiras formas de escritadecorreram da necessidade de se registrar quantidades, não apenas derebanhos, mas também de insumos relacionados à sobrevivência e,sobretudo,àorganizaçãodasociedade.

Nessa época, houve um crescimento populacional considerável,particularmente no sul do Iraque, o que levou ao desenvolvimento decidades e ao aperfeiçoamento das técnicas de administração da vidacomum.Oaparecimentoderegistrosdequantidadesno inaldessemilênio

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associadosàsprimeirasformasdeescritaéumaconsequênciadessanovaconjuntura.

Apalavra“Mesopotâmia”,queemgregoquerdizer“entrerios”,designamais uma extensão geográ ica do que um povo ou uma unidade política.Entre os rios Tigre e Eufrates, destacavam-se várias cidades que seconstituíamempequenoscentrosdepoder,mastambémpassavamporalipovos nômades, que, devido à proximidade dos rios, acabavam por seestabelecer.DentreosquehabitaramaMesopotâmiaestãoossumérioseosacadianos,hegemônicosatéosegundomilênioantesdaEraComum.Asprimeiras evidências de escrita são do período sumério, por volta doquarto milênio a.E.C. Em seguida, a região foi dominada por um impériocujo centro administrativo era a cidade da Babilônia, habitada pelossemitas, que criaram o Primeiro Império Babilônico. Os semitas sãoconhecidos como “antigos babilônios”, e não se confundem com osfundadoresdoSegundoImpérioBabilônico,denominados“neobabilônios”.Data do período babilônico antigo (2000-1600 a.E.C.) a maioria dostabletesdeargilamencionadosnahistóriadamatemática.

Outro momento importante é o Selêucida, nome do império que seestabeleceu na Babilônia por volta de 312 a.E.C., depois da morte deAlexandre, o Grande, que incluía grande parte da região oriental. Algunstraços das práticas matemáticas desde o terceiro milênio até o períodoselêucida guardam muitas semelhanças entre si. Assim, quandomencionarmos os tabletes e a matemática do período babilônico antigo,estaremos nos referindo aos “tabletes babilônicos” e à “matemáticababilônica”, e quando quisermos enfatizar uma certa estabilidade daspráticas matemáticas na região da Mesopotâmia, usaremos o adjetivo“mesopotâmico”.

Os tabletes que nos permitem conhecer a matemática mesopotâmicaencontram-se em museus e universidades de todo o mundo. Eles sãodesignadosporseunúmerodecatálogoemumadeterminadacoleção.Porexemplo, o tablete YBC 7289 diz respeito ao tablete catalogado sob onúmero7289dacoleçãodaUniversidadeYale(YaleBabilonianCollection).Outras coleções são:AO (AntiquitésOrientales,doMuseudoLouvre);BM(BritishMuseum);NBC (NiesBabylonian Collection); Plimpton (GeorgeA.Plimpton Collection, Universidade Columbia); VAT (VorderasiatischeAbteilung,Tontafeln,StaatlicheMuseen,Berlim).1

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FIGURA1MapadaMesopotâmia.

Nossaanáliseserestringiráàsduascivilizaçõesantigasmaisconhecidasquepossuíamregistrosescritos:adaMesopotâmiaeadoantigoEgito.Porvolta do inal do quartomilênio a.E.C., os egípcios registravam nomes depessoas, de lugares, de bensmateriais e de quantidades. Provavelmente,nesse momento, havia algum contato entre as duas culturas, o que nãoquerdizerqueosurgimentodaescritaedosistemadenumeraçãoegípcio,jáusadoentão,nãotenhasidoumfatooriginal.Osregistrosdisponíveissãomaisnumerosospara amatemáticamesopotâmicadoquepara a egípcia,provavelmente devido àmaior facilidade na preservação da argila usadapelosmesopotâmicosdoquedopapiro,usadopelosegípcios.

Asfontesindicamquequandoamatemáticacomeçouaserpraticadanoantigo Egito, ela estava associada sobretudo a necessidadesadministrativas. A quanti icação e o registro de bens levaram aodesenvolvimento de sistemas de medida, empregados e aperfeiçoadospelos escribas, ou seja, pelos responsáveis pela administração do Egito.Esses pro issionais eram importantes para assegurar a coleta e adistribuiçãodosinsumos,mastambémparagarantiraformaçãodenovosescribas.Ospapirosmatemáticos se inseremnessa tradiçãopedagógicaecontêm problemas e soluções preparados por eles para antecipar assituaçõesqueosmaisjovenspoderiamencontrarnofuturo.

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A escrita, no período faraônico, tinha dois formatos: hieroglí ico ehierático. O primeiro era mais utilizado nas inscrições monumentais empedra; o segundo era uma forma cursiva de escrita, empregada nospapiros e vasos relacionados a funções do dia a dia, como documentosadministrativos, cartas e literatura. Os textos matemáticos eram escritosemhieráticoedatamdaprimeirametadedosegundomilênioantesdaEraComum,apesardehaverregistrosnuméricosanteriores.

Temosnotíciadamatemática egípciapormeiodeumnúmero limitadodepapiros,entreelesodeRhind,escritoemhieráticoedatadodecercade1650a.E.C.,emboranotextosejaditoqueseuconteúdofoicopiadodeummanuscrito mais antigo ainda. O nome do papiro homenageia o escocêsAlexanderHenryRhind,queocomprou,porvoltade1850,emLuxor,noEgito. Esse documento também é designado papiro de Ahmes, o escribaegípcioqueocopiou,eencontra-senoBritishMuseum.

Os tabletes e papiros indicam que o modo como os cálculos eramrealizados em cada cultura dependia intimamente da natureza dossistemas de numeração utilizados. Por isso, cálculos considerados di íceisemumsistemapodemserconsideradosmaisfáceisemoutro.Issomostraque as noções de “fácil” e de “di ícil” não são absolutas e dependem dastécnicasempregadas.Logo,areferênciaàsnecessidadespráticasdecadaumdessespovosnãobastaparaexplicaracriaçãodediferentessistemasde numeração, com regras próprias. É preciso relativizar, portanto, ainterpretação frequente de que a matemática nessa época se constituíasomente de procedimentos de cálculos voltados para a resolução deproblemascotidianos.

O desenvolvimento do conceito de número, apesar de ter sidoimpulsionado por necessidades concretas, implica um tipo de abstração.Quandodizemos“abstrato”énecessáriotornarprecisoosigni icadodessetermo,poisadicotomiaentreconcretoeabstrato,evocadafrequentementeem relação à ideia de número, di iculta a compreensão do que está emjogo. Contar é concreto, mas usar um mesmo número para expressarquantidades iguais de coisas distintas é um procedimento abstrato. Amatemática antiga não era puramente empírica nem envolvia somenteproblemaspráticos.Elaevoluiupeloaprimoramentodesuastécnicas,quepermitem ou não que certos problemas sejam expressos. A inal, umasociedade só se põe as questões que ela temmeios para resolver, ou aomenos enunciar. As técnicas, no entanto, estão intimamente relacionadasao desenvolvimento da matemática e não podem ser consideradas nem

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concretasnemabstratas.Pode-se falar de “matemática” babilônica ou egípcia tendo em mente

quese tratadeumapráticamuitodistintadaquelaatualmentedesignadaporessenome.Houveumperíodonoqualtalatividadeenvolviasobretudoo registro de quantidades e operações. Em seguida, aomesmo tempo emque uma parcela da sociedade começou a se dedicar especi icamente àmatemática, aspráticasquepodemserdesignadasporessenome teriampassado a incluir também procedimentos para resolução de problemasnuméricos, tratadoscomo“algébricos”pelahistoriogra ia tradicional.Essaversão começou a ser desconstruída pelo historiador da matemática J.Høyrup, nos anos 1990, com base em novas traduções dos termos queaparecem nos registros. Ele mostrou que a “álgebra” dos babilônicosestavaintimamenterelacionadaaumprocedimentogeométricode“cortare colar”. Logo, tal prática não poderia ser descrita como álgebra, sendomaisadequadofalarde“cálculoscomgrandezas”.Tantoosmesopotâmicosquanto os egípcios realizavam uma espécie de cálculo de grandezas, ouseja, efetuavam procedimentos de cálculo sobre coisas que podem sermedidas (grandezas). E essa é uma das principais características de suamatemática.

Escritaenúmeros

A invenção da escrita não seguiu um percurso linear. Além disso,diferentementedoquesecostumaacreditar,nãofoicriadaparaaprimorarou substituir a comunicação oral nem para representar a linguagem emum meio durável. Essa crença pressupõe, de certa forma, que a escritatenha emergido como uma decisão racional de um grupo de indivíduosiluminados que teriam entrado em acordo, de forma consciente, sobrecomo produzir registros inteligíveis para seus contemporâneos esucessores.Contudo,assimcomooutras invençõeshumanas,aescritanãosurgiudonada.

As primeiras formas de que temos registro são oriundas daMesopotâmia e datamdo inal do quartomilênio a.E.C. A versão históricatradicional,desdeo Iluminismo,eraadequesuapráticase inicioucomoregistrodefigurasquebuscavamrepresentarobjetosdocotidiano,ouseja,sua origem estaria em uma fase pictográ ica, e a escrita cuneiformemesopotâmica teria sido desenvolvida a partir daí. Contudo, em alguns

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tabletes mesopotâmicos já eram notadas discrepâncias entre asrepresentações e os objetos simbolizados, mas elas eram atribuídas àslimitaçõesda culturaprimitiva.Ahistóriapraticadaatéosanos1980nãousava tais discrepâncias como evidência para questionar a tesehegemônica sobre a evolução da escrita. Quando os estudiosos se viamdiante da impossibilidade de distinguir, na imagem desenhada, o queestava sendo representado, essa di iculdade era atribuída a falhashumanas:cadaindivíduoteriafeitoasimagensdeseujeito,incorrendoemerros.

Por volta dos anos 1930, descobriram-se novos tabletes, provenientesda região de Uruk, no Iraque, com datas próximas ao ano 3000 a.E.C.Centenasdetabletesarcaicos indicavamqueaescrita jáexistianoquartomilênio,poiscontinhamsinaistraçadosouimpressoscomumdeterminadotipo de estilete.Omaterial contradizia a tese pictográ ica, pois nessa faseinicial da escrita as iguras que representavam algum objeto concretoeram exceção. Diversos tabletes traziam sinais comuns que eramabstratos, isto é, não procuravam representar um objeto. Assim, o sinalpara designar uma ovelha não era o desenho de uma ovelha, mas umcírculocomumacruz.

Acontinuaçãodasescavações revelou tabletesaindamaisenigmáticos,mostrando que essa forma arcaica de escrita consistia de iguras comocunhas, círculos, ovais e triângulos impressos em argila. Além disso, ospesquisadores constataram que os primeiros tabletes de Uruk surgirambem depois da formação das cidades-Estado, e que funcionavam, dealguma forma, sem a necessidade de registros. Nos anos 1990, apesquisadora Denise Schmandt-Besserat, especialista em arte earqueologiadoantigoOrientePróximo,propôsa tese inovadoradequeaformamaisantigadeescritateriaorigememumdispositivodecontagem.Elaobservouqueasescavaçõestraziamàtona,demodoregular,pequenostokens – objetos de argila que apresentavam diversos formatos: cones,esferas, discos, cilindros etc. (Figura 2). Esses objetos serviam àsnecessidades da economia, pois permitiam manter o controle sobreprodutos da agricultura, e foram expandidos, na fase urbana, paracontrolartambémosbensmanufaturados.

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FIGURA2Cones,esferasediscosrepresentandomedidas.

Com o desenvolvimento da sociedade, aperfeiçoaram-semétodos paraarmazenar essestokens. Um deles empregava invólucros de argila, comouma bola vazada, dentro dos quais eles eram guardados e fechados. Osinvólucros escondiam ostokens e, por isso, em sua super ície, eramimpressas as formas contidas em seu interior (Figura 3). O número deunidades de um produto era expresso pelo número correspondente demarcas na super ície. Uma bola contendo sete ovoides, por exemplo,possuíasetemarcasovaisnasuper ície,àsvezesproduzidaspormeiodapressãodosprópriostokenscontraaargilaaindamolhada.

FIGURA3Ostokenscomeçamaserinseridosnosinvólucrosemarcadosnasuperfície.

A substituição detokens por sinais foi oprimeiropassopara a escrita.Os contadores do quarto milênio a.E.C. devem ter percebido que oconteúdo dos invólucros se tornava desnecessário em vista das marcassuper iciais,eessasmarcaspassaramaincluirsinaistraçadoscomestilete.Ambos os tipos de sinais eram derivados dostokens e não consistiam de

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figurasrepresentandoosprodutosemsi,masostokensusadosparacontá-los.

Trata-se de umamaneira de contar bem diferente da nossa. Eles nãorepresentavam números, como 1 ou 10, mas eram instrumentosparticularesque serviampara contar cada tipode insumo: jarrasdeóleoeramcontadascomovoides;pequenasquantidadesdegrãos,comesferas.Ostokenseramusadosemcorrespondênciaumaumcomoquecontavam:uma jarradeóleoera representadaporumovoide;duas jarras,pordoisovoides;eassimpordiante.

Schmandt-Besserat a irmaqueesseprocedimento traduzummododecontar concreto, anterior à invenção dos números abstratos. Isso querdizerqueofatodeassociarmosummesmosímbolo,nocaso1,ouumcone,aobjetosdetiposdistintos,comoovelhasejarrasdeóleo,consisteemumaabstração que não estava presente no processo de contagem descritoanteriormente.Apesquisadoraacrescentaque,aospoucos,formasdearte,como a fabricação de potes e pinturas, também se transformaram paraincluir narrativas, constituindo um terreno fértil para a emancipação daescritaemrelaçãoàcontagem.Aassociaçãodaescritacomaartepermitiuqueela caminhassedeumdispositivodeadministraçãoparaummeiodecomunicação. A evolução dessa prática, no entanto, não será investigadaaqui porque nosso interesse é mostrar como esse sistema deu origem àrepresentaçãocuneiformedosnúmeros.

Já vimos que as marcas impressas nos invólucros passaram a incluirimpressões com estiletes que, aos poucos, foram sendo transpostas paratabletes. Uma vez que o registro na super ície tornava desnecessária amanipulação dostokens, os invólucros não precisavam ser usadosenquantotaiseasimpressõespassaramaserfeitassobretabletesplanosdeargila(Figura4).

Os primeiros numerais não eram símbolos criados para representarnúmerosabstratos,massinais impressosindicandomedidasdegrãos.Emumsegundomomento,asmarcasrepresentandoasquantidadespassarama ser acompanhadas de ideogramas que se referiam aos objetos queestavamsendocontados.Essefoiumpassoemdireçãoàabstração,poisoregistro das quantidades podia servir para coisas de naturezas distintas,tantoquesurgiuanecessidadedese indicaroqueestavasendocontado.Na verdade, há registros de que essas sociedades possuíam uma vidaeconômica ativa e a variedade de objetos com os quais tinham de lidarpodia ser muito grande. Nesse caso, o modo de representação que

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empregasímbolosdistintosparaquantidades (iguais)deobjetosdistintospodesetornarmuitorestritivo.

FIGURA4Impressõesemtabletesdeargilaplanos,contendo,nestecaso,adescriçãodaquantidadedeovelhas.

A descoberta dos tabletes de Uruk levou ao desenvolvimento de umprojeto dedicado à sua interpretação, que começou por volta dos anos1960, em Berlim. A iniciativa foi fundamental para a compreensão dossímbolos encontrados e deu origem à obra que esclareceu o contextodesses registros:Archaic Bookkeeping: Early Writing and Techniques ofEconomic Administration in the Ancient Near East (Contabilidade arcaica:escrita antiga e técnicas de administração econômica no antigo OrientePróximo),deH.J.Nissen,P.DameroweR.K.Englund.Ficou claro, apartirdaí,queos registros serviamparadocumentaratividadesadministrativaseexibiamumsistemacomplexoparacontrolarasriquezas,apresentandobalançosdeprodutosecontas.

Os tabletes mostram que eram utilizados diferentes sistemas demedidas e bases, em função do assunto tratado nos balanços. Havia, porexemplo,maisdeseissistemasdecapacidadeusadosparadiferentestiposde grãos e de líquidos2 (as Figuras 5a e 5b fornecemdois exemplos). Aopassoqueosobjetosdiscretoseramcontadosembase60,acontagemdeoutros produtos empregava a base 120. Além disso, havia métodos

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distintosparacontartempoeáreas.Marcas em forma de cunha e iguras circulares eram unidades que

serviam especi icamente para contar grãos. Uma cunha pequenarepresentava uma unidade de grãos, a unidade básica do sistema demedidasdossumérios.Umaquantidadeseisvezesmaiorerarepresentadapela marca circular, e outra dez vezes maior que esta última, por umcírculomaior (Figura5a). Esses sinaispodem ter se originadodos tokensem forma de cones e esferas, pois o cone pequeno representava,provavelmente, uma unidade de grãos, e a esfera, uma segunda medidabásica,detamanhomaior.

Os sistemas de numeração dependiam do contexto, logo, era possívelusar sinais visualmente idênticos em relações numéricas diferentes. Umamarcacircularpequenapodiarepresentar10marcascônicaspequenasnosistema sexagesimal discreto, ou apenas 6 no sistema de capacidade decevada(diferençaexibidanasFiguras5ae5b).

FIGURA5aSistemausadoparamedircapacidadedegrãos,emparticularcevada.

FIGURA5bSistemausadoparacontaramaiorpartedosobjetosdiscretos:homens,animais,coisasfeitasdepedraetc.

Os símbolos não eram números absolutos, no sentido abstrato, massigni icavam diferentes relações numéricas dependentes do que estavasendo contado. O tipo de registro que vemos na Figura 5 é chamado“protocuneiforme”, pois antecedeu a escrita cuneiforme, “em forma decunha”,quesedesenvolveuaolongodoterceiromilênio.Presume-sequeosistema de contagem que agrupava animais, ou outros objetos discretos,emgruposde10,60,600,3.600ou36.000foioprimeiroaser traduzidoparaarepresentaçãocuneiforme.

Os estudos sobre a matemática mesopotâmica sugerem que essamudança se deu gradualmente. O estágio inicial, ainda protocuneiforme,contavacomosseguintessinais:

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Sinais com os mesmos valores apareceram em meados do terceiromilênio, já dentrodo sistema cuneiforme,mas guardando alguma relaçãovisualcomossinaisiniciais:

Finalmente, o sistema teria se estabilizado no im do terceiro milênio.Nesse momento, duas mudanças importantes ocorreram. Em primeirolugar, a funçãode contagemdeobjetosdiscretosqueos sinais tinhamnosistema protocuneiforme foi transformada e eles passaram a ser usadospara fazer cálculos.A segundamudança équeummesmo sinal passou aserusadopararepresentarvaloresdiferentes.

Apesar de as evidências não permitirem um conhecimento linear dosregistros numéricos, pode-se conjecturar que o sistema evoluiu de umestágionoqualumúnicocontadoreraimpressováriasvezesatéumafasemaiseconômica,emqueerapossíveldiminuiraquantidadedeimpressõesdos contadores de tamanhos e formas diferentes. Esta é a essência dosistemaposicional: ummesmosímbolo servepara representardiferentesnúmeros, dependendo da posição que ocupa na escrita. Esse é o caso dosímbolo em forma de cunha, que serve para 1, 60 e 3.600. O mesmoacontece em nosso sistema com o símbolo 1, que pode representartambémosnúmeros10e100.

Osistemasexagesimalposicionalusadonoperíodobabilônico,devetersurgidodapadronizaçãodessesistemanumérico,antesdofinaldoterceiromilênio a.E.C. Ainda que a representação numérica continuasse a serdependente do contexto e a usar diferentes bases aomesmo tempo, aospoucoscomeçaramaserregistradaslistasqueresumiamasrelaçõesentre

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diferentes sistemas de medida. Nesses procedimentos de conversão,realizadosemumâmbitoadministrativoenãomatemático, foi introduzidoosistemasexagesimalposicional.

Conforme a metrologia foi sendo racionalizada pelo poderadministrativo, também foram se multiplicando as funções darepresentaçãodosnúmeros,quepassaramaincluirobjetivospedagógicos.Háevidênciasdeque,maisoumenosemmeadosdoterceiromilênioa.E.C.,as propriedades dos números começaram a ser investigadas por simesmas, transformação que pode ser associada ao início de umamatemáticamais abstrata, ou seja, praticada semrelaçãodireta comumafinalidadedecontagem.

Nesse contexto surgiram os escribas, que tinham funções ligadas àadministração e eram responsáveis pelos registros. O domínio da escritanão era universal, ou seja, nem todos manejavam suas técnicas, e aospoucos essa elite intelectual foi adquirindo outras atribuições ligadas aoensino.Naverdade,presume-sequemuitosdostabletesquenosfornecemum conhecimento sobre a matemática babilônica tinham funçõespedagógicas.Temsidoconsideradacommuitafrequêncianahistoriogra iaafunçãodostabletesmatemáticos,poisessestextos,emsuamaioria,eramescolares e nos dão informações valiosas sobre as práticas educacionaismesopotâmicas.3

Obter conclusões sobre a inalidade dos registros numéricos envolveinúmerosdesa ios,umavezqueoseucontextodeveserreconstruídocombaseemdiversos tiposde informação.As funçõespedagógicasdos textosmatemáticos podem ser inferidas a partir de seu conteúdo,mas tambémde suas características materiais. No artigo “Textos matemáticoscuneiformeseaquestãodamaterialidade”,C.H.B.Gonçalvesobservaque,cada vez mais, o estudo das características materiais e arqueológicas detabletes cuneiformes (formato, disposição do texto, lócus no sítioarqueológico)forneceindicaçõessobreoambienteemqueforamcriadosesua inalidade. Tradicionalmente, as investigações em história damatemática tendiam a ignorar essas informações, mas elas sãoimprescindíveis no caso da matemática mesopotâmica e egípcia, cujosregistros estão somente em tabletes de argila e papiros. A própriatraduçãodostextosmatemáticoscuneiformesenvolvediversasmediaçõesqueincluemostraçosmateriaisdessestextos.4

Para a irmar que certos tabletes matemáticos foram produzidos emlocaisdeensinoda tradiçãodeescribasdaMesopotâmiaéprecisoreunir

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um conjunto de informações de tipos muito distintos, inseridos em umarede de argumentos dependentes das mediações que nos permitemenunciá-los. Sendo assim, muitas das a irmações que faremos naspróximaspáginasnãopodemseraveriguadasdiretamente,poisdependemdemúltiplascamadasdeinterpretaçõesereconstruções.

CRÍTICAADOISLIVROS

G.Ifrah,Osnúmeros:Ahistóriadeumagrandeinvenção.RiodeJaneiro,Globo,1995.G.Ifrah,Históriauniversaldosalgarismos,vol.1:Ainteligênciadoshomenscontadapelonúmeroe

pelocálculo.RiodeJaneiro,NovaFronteira,1997.

As duas obras citadas acima, publicadas originalmente em francês, tornaram-se referênciasconstantes na história dos números nos últimos anos, e não apenas no Brasil. Talvez porque,como os títulos indicam, sobretudo no segundo caso, pretendam apresentar uma história“universal”dosnúmerosedoscálculosnuméricos.Em1995,logoapósteremsidovertidasparaoinglês, tornando-se populares, foram bastante criticadas por um grupo de historiadoresdedicados àmatemática daMesopotâmia, China, Índia eMeso-América devido ao fato de Ifrahrelacionar a emergência do sistema de numeração decimal posicional a tais civilizações.1 Essespesquisadores apontam a leviandade das a irmações que procuram dar a impressão de que oconhecimentosobreahistóriadosnúmerospermiteumanarrativauni icadoraeuniversal,oquecontradizafragmentaçãodomaterialdisponívelsobreoperíodo.

TaiscríticasforamrenovadasemumaresenhaescritapelohistoriadorJ.Dauben 2quemostraqueapretensãodoautornãocorrespondeaosresultadosapresentados,osquaismultiplicamasfalsas impressões sobre a evoluçãodosnúmeros.Umadas inconsistências concerne justamenteàs origens da base 60, usadapelosmesopotâmicos. Ifrah conjectura que ela teria decorrido deumacombinaçãoentreumsistemasumériodebase5eumoutro,criadoporoutropovo,debase12.Auniãodeambosossistemasteriadadoorigemàbase60porqueessenúmeroéomínimomúltiplocomumde5e12.Noentanto,essaa irmaçãonãopossuibasehistórica,jáquenoiníciodoterceiromilênioa.E.C.nãohaviaapenasumsistemanumérico(oqueIfrahobservaapenasderelance),mas vários. Eles foram convergindo no decorrer domilênio, conforme a centralizaçãoadministrativa foi exigindoumamaior racionalização euma simpli icaçãona representaçãodosnúmeros.

1. Os artigos desses estudiosos estão disponíveis na revista francesaBulletin de l’Association desProfesseursdeMathématiquesdel’EnseignementPublique,398,1995.2. J. Dauben, “Book Review:The Universal History of Numbers andThe Universal History ofComputing”,NoticesoftheAmericanMathematicalSociety,49(1),2002,p.32-8.

Osistemasexagesimalposicional

Amaioria dos tabletes cuneiformes de que temos notícia são do períodoem torno do ano 1700 a.E.C., quando a matemática já parecia bastantedesenvolvida. O sistema sexagesimal era usado de modo sistemático em

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textos matemáticos ou astronômicos, mas, ao se referirem a medidas devolumeoudeáreas,mesclavamváriossistemasdistintos.

O sinal usado para designar a unidade era . Esse sinal era repetidopara formarosnúmerosmaioresque1, como (2), (3), e assimpordiante, até chegar a 10, representado por um sinal diferente: . Emseguida, continuava-se a acrescentar a , até chegara20, representadoentão por Esse processo aditivo prosseguia apenas até o número 60,quandosevoltavaaempregarosinal ,omesmousadoparaonúmero1.Mostramos, a seguir, como os sinais cuneiformes representavam osnúmeros:

Vemosque,nessesistema,ummesmosinalpodeserusadoparaindicarquantidades diferentes, e dessa maneira os antigos babilôniosrepresentavamqualquer número usando apenas dois sinais. Como isso épossível? Esse sistema de numeração é posicional – cada algarismo valenãopeloseuvalorabsoluto,maspela“posição”queocupanaescritadeumnúmero,ouseja,peloseuvalorrelativo.Podemosconstatarqueonúmero

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60erarepresentadopelomesmosinalusadoparasimbolizaronúmero1.Sendoassim,pode-sedizerqueo sistemadosantigosbabilôniosusaumanotaçãoposicionaldebase60,istoé,umsistemasexagesimal,aopassoqueonossoédecimal.Naverdade,elesusavamumacombinaçãodebase60ede base 10, pois os sinais até 59 mudam de 10 em 10. O sistema queusamospararepresentarashoras,osminutoseossegundoséumsistemasexagesimal. Por exemplo, para chegar ao valor decimal de 1h4min23s,temosdecalcularoresultado(1×3.600+4×60+23=6.023s).

Nosso sistema de numeração de base 10 também é posicional. Hásímbolosdiferentesparaosnúmerosde1a9,eo10érepresentadopelopróprio1,masemumaposiçãodiferente.Porissosedizquenossosistemaé um sistema posicional de numeração de base 10, o que signi ica que aposição ocupada por cada algarismo em um número altera seu valor deumapotênciade10paracadacasaàesquerda.

Uma diferença entre o nosso sistema e o dos babilônios é que estesempregavam um sistema aditivo para formar combinações distintas desímbolosquerepresentamosnúmerosde1a59,enquantoonossoutilizasímbolosdiferentesparaosnúmerosde1a9e,emseguida,passaafazerusodeumsistemaposicional.Emnossosistemadenumeração,nonúmerodecimal 125 o algarismo 1 representa 100; o 2 representa 20; e o 5representa5mesmo.Assim,pode-seescreverque125=1×10 2+2×101+5×100.

O raciocínio é válidopara umnúmeroque, alémdeumaparte inteira,contenhatambémumapartefracionária.Porexemplo,nonúmero125,38,osalgarismos3e8representam3×10 −1+8×10−2.Seconsiderarmos125escritonabase60,estaremosrepresentando1×60 2+2×601+5×600,que é igual a 3.725nabase10.Generalizando, podemos representar umnúmeroNqualquernabase10escrevendo:

N=an10n+an−110n−1+…+a0100+a−110−1+…+a−m10−m+….Issosigni icaquean10n+an−110n−1+…+a0100éaparteinteiraea−110−1

+…+a−m10−m+…éapartefracionáriadessenúmero(asreticências inaisindicam que ele pode não ter representação inita, como em uma dízimaperiódica).

Suponhamosagoraque,emvezdeusarabase10,queiramosescreverumnúmeroemumsistemadenumeraçãoposicionalcujabasegenéricaéb.PararepresentarumnúmeroNqualquernessabaseb,escrevemos:

N=anbn+an−1bn−1+…+a0b0+a−1b−1+…+a−mb−m+….Issosigni icaqueanbn+an−1bn−1+…+a0b0éaparteinteiraetemosque

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a−1b−1+…+a−mb−m+…éapartefracionáriadessenúmero.Onúmeroseráescritocomaparte inteiraseparadadaparte fracionáriaporumavírgulacomo:anan−1…a0,a−1…a−m….

Como na base 60 podemos ter, em cada casa, algarismos de 1 a 59,empregaremos o símbolo “;” como separador de algarismos dentro daparteinteiraoudentrodapartefracionáriadeumnúmero.Parasepararaparte inteira da fracionária, utilizaremos a vírgula (“,”). a Por exemplo, nonúmero12;11,6;31aparte inteiraéconstituídapordoisalgarismos(12e11);eapartefracionáriaporoutrosdois(6e31).

Na notação posicional babilônica podemos observar que o símbolopodiaserlidodediferentesmaneiras,representandoosnúmerosdecimais1, 60, 3.600 (60 × 60) etc. Isso acontecia justamente porque o valor realrepresentadoporessesímboloeradadopelasua“posição”.

Quemecanismoutilizamosemnossosistemadenumeraçãoparaindicara posição de um símbolo? Por exemplo, como fazemos para que o “1” donúmero“1”tenhaumvalordistintodo“1”donúmero“10”?

Nocasobabilônico,osnúmeros1,60,3.600etodasaspotênciasde60eram representados pelo mesmo símbolo, escrito em colunas diferentes.Cadacolunamultiplicaonúmeroporumfator60.Algunsexemplos:

TABELA1

Observe-se na Tabela 1 que esse sistema dá margem a algumasambiguidades. Por exemplo, o símbolo pode ser lido como (1 + 1) oucomo (1;1), podendo ter o valor decimal 2 ou 61. No primeiro caso, oresultadoéobtidodemodoaditivo;nosegundo,épropriamenteposicional.Emnosso sistemadecimal, tal problemanãoocorrepelo fatodeusarmosalgarismosdiferentesparao1eo2,logo,11representao“11”,masnãoo“2”,queérepresentadopor2.Essaambiguidadesedeve,portanto,aofato

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deosistemababilônicosópossuirdoissímbolos.Masnarepresentaçãodonúmero2,oproblemaéresolvidounindo-seosdoissímbolosparaseobter.E comodiferenciar 1 de 60?Nesse caso, houve uma época emque se

usava o símbolo com tamanhos diferentes para representar o 60 e o 1,hábito que talvez esteja na origem do sistema posicional.Mas quando ossímbolos se tornaram padronizados para facilitar os registros, gerou-seoutraambiguidade.Semsímboloscomtamanhosdiferentesesemsímbolospararepresentarumacasavazia,nãopodemosdiferenciar1de60,anãoserpelocontextodosproblemasemqueessesnúmerosapareciam.

E como escrever os números decimais 3.601 e 7.200? No sistemababilônicoessesnúmerosseriamescritostambémcomo .Algumasvezesera deixado um espaço entre os dois símbolos para marcar uma colunavazia.Masessasoluçãonãoresolveoproblemadeexpressarumacolunavazianofimdonúmero,logo,nãopermitediferenciar7.200de2ede120.

OPERAÇÕESEMBASE60

Algunsexemplosdecálculosembase60,empregandoosalgarismosindo-arábicosaqueestamosacostumados:0,1,2,3,…,9.

(a)1;30,27;40+29,15;13

(b)1;59+1

Nesseexemplo,acontapassaaexigiroagrupamentodas60unidadesemuma“sessentena”amais,perfazendoduas“sessentenas”nototal.Essacontaseriaequivalente,embase10,a19+1,naqual,adicionandoo9ao1,obtemosumadezenaamais,perfazendoumtotaldeduasdezenas.

Oresultadoé2;00.Outroexemplodeadiçãocomreagrupamento,quechamamosemgeralde“vaium”,podeser

dadopor:

(c)1;30,27;50+0;29,38;13=2;00,06;03

Alémdassomas,podemosrealizarmultiplicações,subtraçõesedivisõesembase60:

(d)4×20=1;20(e)2;30,4;38−40,5;15=1;49,59;23

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(f)1,30÷3=0,30

Paramultiplicarpor60umnúmero sexagesimal, bastamudar aposiçãodavírgula: 60×a1,b1;b2;b3;…=a1;b1,b2;b3;….

Umadasvantagensdosistemasexagesimaléofatodequeonúmero60édivisívelportodosos inteiros entre 1 e 6, o que facilita a inversão dos números expressos nessa base. Adivisibilidade por inteiros pequenos é uma importante característica a ser levada em conta nomomentodaescolhadeumabasepararepresentarosnúmeros.Abase12estápresenteatéhojenocomércio,ondeusamosadúziajustamentepelofatodeonúmero12serdivisívelpor2,3e4ao mesmo tempo. Não podemos dizer, no entanto, que esse tenha sido o motivo do empregodessabasepelosmesopotâmicos.

Essasegundaambiguidadeerageradapelaausênciadeumsímbolopararepresentarozero,ouumacasavazia.

Os dois tipos de ambiguidadepodem sermais bem compreendidos naTabela2:

TABELA2

Sabe-se que o númerodecimal 3.601pode ser convertido na base 60,tomando-se os coe icientes de 1 × 3.600 (= 60 × 60) + 0 × 60 + 1, logo,teríamos1;0;1.Semozero,ouseja,semumsímboloespecialparamarcarumacolunavazia,nãohámeiosegurodediferenciarumacolunavaziadeduasvazias,enãoépossíveldiferenciar3.601(=1×60×60+0×60+1)de216.001(=1×60×60×60+0×60×60+0×60+1).Essadiferençasópoderiaseraveriguadapelocontextoemqueosproblemasapareciam.

Observemos que, na base 60, a diferença entre os contextos em queutilizamosnúmerosdaordemde ou ébemmaisnítidadoque,embase 10, a diferença entre e . Ou seja, nessa base, os zeros nãoaparecem com tanta frequência quanto emnosso sistemadecimal. Sendo

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assim, o contexto deveria ser su iciente para identi icar a ordem degrandeza de um número, não havendo ambiguidade na interpretação doregistronumérico.Podemosrelativizar,assim,atendênciadeenxergarnaausênciadozeroumalimitaçãodosistemababilônico.

No sistema posicional, podem-se usar os mesmos símbolos paraescrevernúmeros inteirosenúmeros fracionários,oquenãoacontecenosistema egípcio, como veremos adiante. A representação dos númerosfracionários não introduzia nenhum símbolo especial, sendo análoga àrepresentação que, em nosso sistema, chamamos de “decimal”.Distinguimos os números 345 e 3,45 apenas colocando uma vírgula nomeio do número, e, assim, as operações com números fracionários setornamequivalentesàsoperaçõescomnúmerosinteiros.

Tal equivalência também estava presente no sistema babilônico, aindaquenãoseusasseavírgula.Porexemplo,onúmero podiarepresentaronúmerodecimal5,onúmerodecimal5×60−1= ,ouonúmerodecimal

Issoaumentavaaocorrênciadoscasosemqueainexistênciadozeropoderialevaraumaambiguidade.Mas,comodissemos,podeserqueessaambiguidade não fosse sequer sentida, uma vez que o contexto permitiasaber, antecipadamente, se o número em questão era inteiro oufracionário.

Uma grande vantagem do sistema posicional é permitir a escrita denúmeros muito grandes com poucos símbolos. Efetivamente, mais tarde,quando os babilônios iniciaram seus estudos astronômicos, tornou-senecessárioescrevernúmerosmaiores, fazendocomqueascaracterísticasposicionaissetornassemmaisevidentes.

O segundo período babilônico de que temos evidências ocorreu porvoltadoano300a.E.C., épocado império selêucida,noqual a astronomiaestava bastante desenvolvida e empregava técnicas matemáticasso isticadas. Isso mostra que o conhecimento da matemática da antigaBabilônia não foi perdido desde o ano 1600 a.E.C. até perto do início danossaera.

Aobservaçãodoscorposcelestes,presentenosregistrosdamatemáticababilônica do primeiromilênio a.E.C., bem como a aritmética e o sistemaposicional sexagesimal usados nesse contexto, pode ter tido in luênciasobreatradiçãogregadeHiparcoePtolomeu.AastronomiadesenvolvidaporelesnoEgito,naviradadomilênio,indicaqueoscálculosastronômicose trigonométricos de então eram feitos pormeio do sistema sexagesimalposicional,aindaquecomumasimbologiadistinta,equeestepermaneceu

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sendo o principal sistema até a introdução do sistema decimal indo-arábico,muitos séculos depois. Apesar disso, a ideia de que teria havidouma continuidade entre as matemáticas mesopotâmica e grega foiconstruída com base em interpretações equivocadas e não há evidênciasnítidasdainfluênciadosmesopotâmicossobreatradiçãogrega.

Os astrônomos selêucidas, talvez pela necessidade de lidar comnúmerosgrandes,chegaramaintroduzirumsímboloparadesignarozero,oumelhor,umacolunavazia.Nocasode3.601,escrevia-se1;separador;1.Oseparadorerasimbolizadopordoistraçosinclinados:

O símbolo usado como separador pode ser considerado um tipo de“zero”, dada a sua função no sistema posicional. No entanto, ele não eraempregadoparadiferençar1,60e3.600,ouseja,nãopodiaserutilizadocomo último algarismo nem podia ser resultado de um cálculo. Esseseparadornãoera,portanto,exatamenteumzero,umavezquenãoserviaparadesignarausênciadequantidade.

Osastrônomosbabilônios,quelançavammãodosímboloseparador,nãochegavamautilizá-loparaexprimiroresultadodeoperações.Anoçãodezero como número só surgirá quando ele começar a ser associado aoperações, emparticular, ao resultadodeumaoperação, como1−1=0.Escreverumahistóriadozeroétarefabastantecomplexa,poisdevemserlevadosemconta,antesdetudo,osdiversoscontextosemqueeleaparecee o que essa noção pode signi icar em cada contexto. Como vimos aqui,antes de se tornar um número como qualquer outro, o zero intervinhacomoseparador(índicedeumacasavazia)emoperaçõesaritméticas.

Operaçõescomosistemasexagesimalposicional

Um dos mais famosos registros dos tabletes utilizados no períodobabilônico é a placa de argila Plimpton 322. Trata-se de uma placa dacoleçãoG.A.Plimpton,daUniversidadeColumbia,catalogadasobonúmero322,que foiescritanoperíodobabilônicoantigo(aproximadamenteentre1900 e 1600 a.E.C.). Há diversas hipóteses históricas sobre o signi icado

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dosnúmerosaíinscritos,comoserávistomaisadiante.

FIGURA6OtabletePlimpton322.

Entre os babilônios, havia também tabletes equivalentes às nossastabuadas. Amaioria das operações realizadas relacionava-se diretamentecom os tabletes, comomultiplicação, quadrados, raízes quadradas, cubos,raízes cúbicas etc. No caso da multiplicação, seu uso era fundamental.Basta observar que os cálculos elementares, ou seja, aqueles quecorrespondem à nossa tabuada, incluemmultiplicações até 59 × 59! Issopode indicar a necessidade de tabletes mesmo para os cálculos maiselementares.

Umexemplodetabletedemultiplicaçãopor25:

1(vezes25éiguala)252(vezes25éiguala)503(vezes25éiguala)1;154(vezes25éiguala)1;405(vezes25éiguala)2;056(vezes25éiguala)2;30

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7(vezes25éiguala)2;55etc.

Lembremosqueosímbolo“;”éusadocomoseparadordentrodaparteinteira ou dentro da parte fracionária. Usando os tabletes, os cálculostornavam-sebastantesimples.Umavezquenossoobjetivoécompreenderoalgoritmo,mostraremos,demododidático,comofazerumaoperaçãodemultiplicação empregando algarismos indo-arábicos no lugar doscuneiformes.Supondoquequeremoscalcularoprodutode37;28por19.Podemosdesenharquatrocolunasindicandoomultiplicandoeaordemdegrandezadoresultado:

Em seguida, procuramos no tablete de multiplicação por 19 ocorrespondente à multiplicação por 28 (8 sessentenas e 52 unidades) ereproduzimosovalorencontradonascolunasapropriadas:

Apagamoso28dacolunadomultiplicandoeprocuramosnovamentenotabletedemultiplicaçãopor19ovalorcorrespondentea37(11;43).Como37 é de uma ordem superior à utilizada até esse ponto, escrevo 11 nacolunadasordensde602e43nacolunadassessentenas:

Podemos, agora, apagar o 37, e só resta simpli icar cada coluna paraobteroresultado11;51;52:

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As divisões eram efetuadas com o auxílio dos tabletes de recíprocos.Trata-se de tabletes que contêm os recíprocos dos números N. Emlinguagematual,estamosfalandodasfraçõesdotipo1/N,mas,nocontextobabilônico, esse não era o inverso do númeroN, pois os recíprocos nãoestavam associados ao conceito de fração. A divisão deM porN eraefetuada pela multiplicação deM pelo recíproco deN, correspondente a1/N.Traduzindoemlinguagematual,estamosfalandodaequivalênciaM/N=M×1/N.

Esse procedimento faz surgir um problema com os números cujosinversos não possuem representação inita em base 60, como 7 ou 11.Essesnúmerosequivalem,emnossosistemadecimal,ao3,cujoinverso() não conta com representação inita em nossa base decimal (é umadízima). Contudo, ainda que não tenha representação inita, 6 ×possui, pois é igual a 2. Da mesma forma, o fato de não podermosrepresentardemodo initoosinversosde7e11embase60nãosigni icaquenãopodemos realizarmultiplicaçõesdo tipo22× (ou seja, dividir22por11).Poressarazão,essasdivisõeseramescritasemtabletes,assimcomo a solução dos problemas análogos que apareciam na extração deraízes.

O procedimento de divisão empregado pelos babilônios nos leva aconcluir que a utilização dos tabletes, nesse caso, não servia apenas àmemorização de tabuadas, o que seria um papel acessório. Para que atécnica adotada na divisão fosse rigorosa, devia haver uma necessidadeintrínseca de se representar em tabletes as divisões por números cujosinversos não possuem representação inita em base 60. Isso porque, nocaso de1/N nãopossuir representação inita, o resultadodadivisãodeMporN teria de estar registrado em um tablete. Se essa operação fosserealizada pelo procedimento usual, ou seja, multiplicando-seM por1/N, oresultadoobtidonãoseriacorreto,damesmaformaquenãoseriacorretofazer6×0,3333…(= )paradividir6por3.

REPRESENTAÇÃOFINITA

Vamos mostrar que os inversos de 7 e de 11 não têm representação inita em base 60. Umnúmero (entre 0 e 1) tem representação inita em base 60 se pode ser escrito como

. Multiplicando e dividindo todas as parcelas por 60n,

temos , onde o numerador é um inteiro. Decompondo o

denominador60nemnúmerosprimos,encontramososfatores2,3e5.Logo,paraqueoinverso

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de um número tenha representação inita em base 60 é preciso que esse número contenhaapenasessesfatoresprimos.Nocasodo7,seoseuinversotivesserepresentação initaembase60teríamosdeter ,ouseja,7a=60n.Masissonãopodeacontecer,umavezque7nãoéfatorde60.

Oraciocínioéanálogoparao11.

Além das operações de soma, subtração, multiplicação e divisão, osbabilônios tambémresolviampotênciase raízesquadradase registravamosresultadosemtabletes.Ométodousadonesseúltimocasoerabastanteinteressante,umavezquepermitiaobtervaloresaproximadospararaízesquehojesabemosseremirracionais.Escritoemnotaçãoatual,ocálculodaraiz de um número k se baseava, provavelmente, em um procedimentogeométrico.

NaIlustração1,seosegmentoABécortadoemumpontoC,oquadradoABEDéigualaoquadradoHGFD,maisoquadradoCBKG,maisduasvezeso retângulo ACGH. Fazendo ACmedira e CB medirb, trata-se da versãogeométrica da igualdade, que escrevemos hoje como (a +b)2 =a2+ b2 +2ab.

ILUSTRAÇÃO1

Calcular a raiz dek é achar o lado de um quadrado de área k. Logo,podemos tentar colocar, nesse quadrado, um outro quadrado com ladoconhecidoe,emseguida,usaroresultadogeométricodaIlustração1paraencontrar o resto.Ou seja, sea éo ladoconhecidodoquadrado,obtemosque a raiz dek éa + b. Para achar uma raiz melhor do quea, vamosprocurarumaboaaproximaçãopara b,oquepodeserfeitoobservandoaáreadaregiãopoligonalABEFGH.

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A área de ABEFGH é igual a k − a2. Por outro lado, ela pode serdecomposta em dois retângulos de ladosa eb e um quadrado de ladob.Logo,k−a2 =2ab+b2. Seb for bem pequeno (próximo de zero),b2 seráainda menor, de modo que podemos desprezá-lo e obter uma boaaproximaçãoparab:

Sendo assim, é uma aproximaçãopara a raiz de k melhor do quea. Presume-se que esse tenha sido oprocedimentoparaencontrarumaaproximaçãoparaa raizdonúmero2,comoregistradanotableteYBC7289(Figura7).

FIGURA7ImagensdotableteYBC7289.

Trata-se, provavelmente, de um exercício escolar que emprega umaaproximação de . Mas como esse valor teria sido encontrado? Algunshistoriadores, comoD. Fowler e E. Robson, 5 a irmamque o procedimentopodetersidoconformedescrevemosaseguir:

Como desejamos determinar , entãok = 2. Fazendo a escolha ,podemosobterumaprimeiraaproximação .Emnúmerossexagesimais, que eram os efetivamente usados pelos babilônios, essafraçãoéequivalentea1,25:

Essaprimeiraaproximaçãoéencontradaemalgunsregistros,masparachegarmosaovalorqueconstanotableteYBC7289precisamosfazerumasegundaaproximação.

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Partimosagoradovalorobtidonaprimeiraaproximação, =1,25,

e fazemos ,queéasomade0,42;30comoinversode1,25.Noentanto, essenúmeronãopossui inversocomrepresentação initaembase60,eportantoumaaproximaçãodessevalorerarepresentadaemumtablete como 0,42;21;10. Calculamos, assim,a'' = 0,42;30 + 0,42;21;10 =1,24;51;10, que é o valor aproximado da raiz de 2 encontrado sobre adiagonal do quadrado desenhado no tablete YBC 7289 em escritacuneiforme.

Expressandoa'' na forma decimal com 10 casas decimais, temos umaaproximaçãoconhecidapara :1,4142129629.

A“álgebra”babilônicaenovastraduções

Alémdostabletescontendooresultadodeoperações,osbabilôniostinhamumcertonúmerodetabletesdeprocedimentos,comosefossemexercíciosresolvidos.Correspondiamaproblemasquetrataríamoshojepormeiodeequações. Analisaremos alguns deles em detalhes, com a inalidade demostrar como seria anacrônico considerar que os babilônios soubessemresolverequações.

Eisalgumascontasqueserãoúteisnacompreensãodosprocedimentos.Resultadosaritméticosusados:(a)1÷2=0,30(b)0,30×0,30=0,15(c)0,40×0,20=0,13;20(d)0,10×0,10=0,1;40(e)1÷0,40=1,30(f)1,30×0,20=0,30

Os dois exemplos citados a seguir encontram-se na coleção do BritishMuseum, na placa BM 13901. O primeiro é o problema #1, traduzidousualmenteassim:

Exemplo1:Procedimento: “Adicionei a área e o lado de um quadrado: obtive 0,45.Qualolado?”

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Solução:(i)tome1(ii)fracione1tomandoametade(:0,30)(iii)multiplique0,30por0,30(:0,15)(iv)some0,15a0,45(:1)(v)1éaraizquadradade1(vi)subtraiaos0,30de1(vii)0,30éoladodoquadrado

Cada passo desse procedimento era executado com a ajuda de umtablete. Por exemplo, a etapa (iii) exigia a consulta a um tablete demultiplicaçãooudequadrado,eaetapa(v),evidentenessecasoparticular,eraresolvidapelaconsultaaumtabletederaízesquadradas.

O outro exemplo contido na placa BM 13901 é um problemasemelhante,o#3,traduzidoassim:

Exemplo2:Procedimento: “Subtraío terçodaáreaedepois someio terçodo ladodoquadradoàárearestante:0,20.”

Solução:(i)tome1;0(ii)subtraiaoterçode1;0,ouseja,0,20,obtendo0,40(iii)multiplique0,40por0,20,obtendo0,13;20(iv)encontreametadede0,20(:0,10)(v)multiplique0,10por0,10(:0,1;40)(vi)adicione0,1;40a0,13;20(:0,15)(vii)0,30éaraizquadrada(viii)subtraia0,10de0,30(:0,20)(ix)tomeorecíprocode0,40(1,30)(x)multiplique1,30por0,20(:0,30)(xi)0,30éoladodoquadrado

Observando osExemplos 1 e2, podemos constatar um tipo degeneralidade nos algoritmos usados na solução. Atualmente, resolvemosdoisproblemasdemesmanaturezapormeioderegrasgeraisquepodemserespeci icadasparaosexemplosparticulares,osquais sãovistos como“casos” de um problema genérico. A generalidade dos algoritmosbabilônicos é distinta, pois eles constroem uma lista de exemplos típicos,

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interpolando-os,emseguida,pararesolvernovosproblemas.Os algoritmos eram enunciados para casos particulares, mas isso não

signi icaquenãohouvesseumcertotipodegeneralidade.Ospassos(iv)a(viii) doExemplo 2 reproduzem exatamente o algoritmo doExemplo 1,enquantoospassos(i)a(iii),(ix)e(x)servemparaadaptaresseproblemaaosmoldesdoanterior.Podemosdizer,portanto, 8queosproblemaseramresolvidos pelo método de interpolação, incorporando-se subalgoritmosdadosporcertosexemplospreviamenteresolvidos.Haviaalgunsexemplosque serviam a uma vasta gama de problemas, resolvidos pela redução aum dos exemplos de base e posterior conversão do resultado para seadaptaraocasoespecífico.

Podemos tratar os dois problemas apresentados nos exemplosanteriorespelonossométododeresolverequações.SetemosumaequaçãodotipoAx2+Bx=C,oprocedimentoexpostoaseguirequivaleaumroteirobabilônicoparaencontrar:

1)multipliqueAporC(obtendoAC)2)encontremetadedeB(obtendo )3)multiplique por (obtendo )4)adicioneACa (obtendo +AC)5)araizquadradaé6)subtraia daraizacima7)tomeorecíprocodeA(obtendo1/A)8) multiplique1/A pelo resultado do passo (6) para obter o lado doquadrado9)oladodoquadradoé

EssemododeenunciaroprocedimentobabilônicoparaocasogeraldeumaequaçãodetipoAx2+Bx=C levouoshistoriadoresO.NeugebauereB.L.vanderWaerdenaconjecturaremqueamatemáticababilônicaseriadenaturezaalgébrica.6O.Neugebauer foiumdosprincipais responsáveispelas primeiras traduções dos textos matemáticos babilônicos, mas J.Høyrupmostrou,recentemente,queelaspressupunham,implicitamente,anatureza algébrica da matemática babilônica. A partir daí, foram feitasnovas traduções que podem nos levar a conclusões bastante distintas.

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Traduzimos para o português, com algumas simpli icações, a novatranscriçãopropostaporJ.HøyrupparaoExemplo1:7

NovatraduçãodoExemplo1:Procedimento:“Asuper ícieeaminhaconfrontaçãoacumulei:obtive0,45”(Estaria suposto que o objetivo era encontrar a confrontação: o lado dasuperfície,queéumquadrado.)

Solução:(i)1éaprojeção(ii)quebre1nametade(obtendo0,30)eretenha0,30,obtendo0,15(iii)agregue0,15a0,45(iv)1éoladoigual(v)retiredointeriorde1os0,30quevocêreteve(vi)0,30éaconfrontação

Essa versão motiva uma nova interpretação do procedimento, denatureza geométrica. Em primeiro lugar, faz-se uma projeção de 1, quepermite interpretar a medida do lado procurado, suponhamos l,concretamente como um retângulo de lados 1 e l. Os babilôniostransformavam, por meio de uma projeção, essa linha de comprimento lemumretângulocomumladodadoporleooutromedindo1.Ouseja,elesprojetavamolado lparaquesetornasseoladodeumretângulocomáreaigualal,comonaIlustração2.

ILUSTRAÇÃO2Passo(i):projeçãodoladol.

Na Ilustração 3, temos um retângulo de lados 1 e l e umquadrado deladol,cujasomadevedar0,45(valordadonoenunciado).Essa iguraserá“cortada e colada” com o im de se estabelecer uma equivalência entremedidasdeáreasqueresolvaoproblema.

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ILUSTRAÇÃO3Enunciado:“Asuperfícieeaminhaconfrontaçãoacumulei.”

Nopasso (ii), quebramos1nametade, oquedivideo retângulo inicialem duas partes. Rearrumando as duasmetades do retângulo, obtemos aseguintefigura(Ilustração4),cujaáreaéigualàdadainicialmente(0,45).

ILUSTRAÇÃO4Passo(ii):“Quebre1nametade.”

Os lados quebrados, na igura inal da Ilustração 4, delimitam umquadrado de lado 0,30 que “retenho”, ou seja,multiplico por elemesmo,obtendoaáreadeumnovoquadrado(0,15).Essaáreapodeseragregadaaoconjunto, completandooquadradoe formandoumquadradomaiordeárea1.

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ILUSTRAÇÃO5Passos(iii)e(iv):“Retenha0,30eagregueoresultadoa0,45.Oquadradomaiortemárea1elado1.”

Como1éoquadradode1,1éoladoigual.Desselado,retirooladodoquadradomenor(0,30).Obtenho,assim,oladoprocurado,queé1−0,30=0,30.

É importanteobservarqueesse ladoéchamadode“confrontação”,eoenunciado do problema pede que se acumule uma área e umaconfrontação.Ouseja,queremossomaraáreadeumquadradocomoseulado,queseriaaconfrontaçãodaárea.Paraefetuaressaoperação,vimosque os babilônios transformavam essa linha emum retângulo, por isso oladoéumaconfrontação(daárea).

Tal procedimento é interessante, pois, como comentaremos maisadiante,desdeaépocagrega,epelomenosatéoséculoXVII,ageometriatevederespeitarahomogeneidadedasgrandezas.Issoquerdizerquenãoera permitido somar uma área com um segmento de reta. A operaçãoutilizada pelos babilônios revela que eles não experimentavam nenhumadi iculdade nesse sentido, uma vez que possuíam um modo concreto detransformar um segmento de reta em um retângulo, operação traduzidaaquicomo“projeção”.Høyrupexplicaquehouveuma fasedamatemáticababilônica em que eram considerados segmentos com espessura,substituídosporretânguloscomoodaIlustração2emescritosposteriores,pertencentesaumatradiçãodeformaçãodeescribas.

Exemplos comoesse, envolvendooperaçõesde “cortar e colar” igurasgeométricasparecemtersidocomunsnaépoca.Høyrupcaracterizaessaspráticascomouma“geometriaingênua”.

Transcrevemos, a seguir, outro problema bastante comum damatemáticababilônica,queconstadotableteYBC6967.Oenunciadoseria

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equivalente a um exercício escolar atual típico, envolvendo uma equaçãodosegundograu.

Exemplo3:Problemadeigumeigibum:trata-sedeumpardenúmeroscujoprodutoé1(quepodemservistoscomorecíprocos).Veremosaquiumexemploemquesepedeovalordoigibumseesteexcedeo igumde7.Sãodadasduascondições:

(i)xy=1;0(=60)(ii)x−y=7Solução:(i)divida7por2eoresultadoé3,30(ii)multiplique3,30por3,30,obtendo12,15(iii)adicione1;0a12,15,obtendo1;12,15(iv)qualaraizquadradade1;12,15?Resposta:8,30(v)escreva8,30duasvezes(vi)deumsubtraia3,30eemoutroadicioneessamesmaquantidade(vii)oigibumé12eoigumé5

O procedimento doExemplo 3 também pode ser traduzido de outromodoeentendidopormeiodatécnicageométricade“copiarecolar”paraobter uma equivalência de áreas. Os números recíprocos seriam oscomprimentos desconhecidos dos lados de um retângulo de área 60 (ou1;0). Na Ilustração 6, vemos esse retângulo dividido em três partes. Aprimeiraéumquadradoeasegunda,cujocomprimentodabasemede7,foi dividida em dois retângulos, cada um com um ladomedindo 3½ (ou3,30).

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ILUSTRAÇÃO6Passo(i):dividir7por2,obtendo3,30.

Ométodoempregaumprocedimentogeométricopara rearrumaressafiguradaseguinteforma:

ILUSTRAÇÃO7Passos(ii),(iii)e(iv):multiplique3,30por3,30eadicioneoresultadoa1;0,obtendo1;12,15.Araizquadradade1;12,15é8,30.

A igura em forma de L (contendo o quadrado branco e os doisretânguloscinza-claroda Ilustração7)possuiamesmaáreadoretângulooriginal, ou seja, 1;0 (ou 60). Vemos que, para que este L se torne umquadrado, falta umquadradomenor, de área3,30× 3,30= 12,15 (passoii). Somandoaáreadoquadradopequeno (emcinza-escurona Ilustração7)comaáreadoL,obtemos1;0+12,15=1;12,15(passoiii).Essaéaáreade um novo quadrado. Encontramos, então, o lado desse novo quadradocalculandoaraizdessenúmeroeobtemos8,30(passoiv).Paraencontrar

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o lado do quadrado pequeno (cinza-escuro), basta subtrair 3,30 dessenúmero, obtendo 5. Esse é um dos lados do retângulo original, e como ooutroladoexcedeestede7,devemedir12.

Ahipótesemais convincente sobre o conteúdoda placa Plimpton3229

associa os resultados desse tablete ao procedimento de “cortar e colar”queacabamosdever.Essetableteconteria,naverdade,umalistadeparesdenúmerosrecíprocosusadosparaencontrartriplaspitagóricasbpormeiodométododecompletarquadrados.

Apesar de ser bastante plausível a hipótese de que as técnicas dosmesopotâmicos para resolver problemas aritméticos usassemprocedimentos geométricos de cortar e colar, seria precipitado concluirque, ao invés de uma álgebra, esses povos tivessem uma geometria. Osenunciadossobreequivalênciadeáreasdos livros Ie IIdos Elementos deEuclides, dos quais trataremos no Capítulo 3, são vistos por algunshistoriadores como tentativas de fundamentar os procedimentos antigos.Mas não sabemos se houve realmente uma continuidade entre amatemáticamesopotâmicaeageometriagregadaépocadeEuclides.

Atualmente,osproblemasdosExemplos1,2e3poderiamserresolvidosporumaequaçãodosegundograudotipoAx2+Bx+C=0.Contudo,essaassociação exige o uso de símbolos que não faziam parte damatemáticaantiga. Logo, não haveria sentido em falar de algo próximo do queconcebemos como “equação” se as quantidades desconhecidas não eramrepresentadasporletras,masdesignavamcomprimentos,larguraseáreasdadaspornúmeros.

Se de iníssemos álgebra como um conjunto de procedimentos quedevem ser aplicados a entidades matemáticas abstratas, poderíamos atéconcluir que os babilônios realizavam uma álgebra de comprimentos,larguras e áreas.Mas, nesse caso, deveríamos ter o cuidado de de inir aálgebra dos babilônios de um modo particular, e não por extensão donossoconceitomodernodeálgebra.NosCapítulos4e5seráabordadoumlongoperíododahistórianoqual,comaintroduçãodanotaçãosimbólica,oconceitodeálgebraganharáumadefiniçãoprecisa.

Além dos problemas com o objetivo de encontrar quantidadesdesconhecidas pelo método de completar quadrados geometricamente,outros problemas matemáticos que constam dos tabletes babilônicosenvolvem a investigação sobre formas, áreas e volumes. Esse grupo deproblemas, considerados geométricos, é exempli icado no tablete BM15285.10 Este parece ser um texto escolar, um livro-texto contendo

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diferentes iguras planas inseridas em um quadrado, como na Figura 8,comoobjetivodeensinaroalunoaencontrarasáreasdessas iguras,umavezqueaáreadoquadradoédada.

FIGURA8Quadradodeáreadeterminadacomoutrasfigurasemseuinterior.

NúmeroseoperaçõesnoantigoEgito

O sistema decimal egípcio já estava desenvolvido por volta do ano 3000a.E.C., ou seja, antes da uni icação do Egito sob o regime dos faraós. Onúmero 1 era representado por uma barra vertical, e os númerosconsecutivos de 2 a 9 eram obtidos pela soma de um númerocorrespondentedebarras.Emseguida,osnúmeroserammúltiplosde10,poressarazão,diz-sequetalsistemaédecimal.Onúmero10éumaalça;100,umaespiral;1mil,a lordelótus;10mil,umdedo;100mil,umsapo;e1milhão,umdeuscomasmãoslevantadas.

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A convenção para escrever e ler os números é simples: os númerosmaioresvêmescritosnafrentedosmenores,esehámaisdeumalinhadenúmeros, devemos começar de cima. Sendo assim, para escrever umnúmero,bastadispor todosos símbolos seguindo tal convenção,ea somadaráonúmerodesejado.Porexemplo:

Quenúmeroéesseemnossosistemadenumeração?Comoosistemaéaditivo, e os números são obtidos pela soma de todos os númerosrepresentadospelossímbolos,bastaescrever:

1.000+1.000+1.000+100+100+10+10+10+10+1+1+1+1=3.244

NÚMEROSGRANDES

Para escrever no sistema egípcio o número 1 × 10255, precisaríamos de 10249 deuses com as

mãos levantadas. Isso porque um deus é 106 e = 10249. Sendo assim, esse sistema não é

adequadopararepresentarnúmerosmuitograndes,umavezqueonúmero inaléobtidopelasoma de todos os valores registrados. Obviamente, cada cultura produz o sistema maisconvenienteparaatenderàs suasnecessidades, eousodo sistemaaditivopode indicarqueosegípciosnãoprecisavamlidarcomnúmerosmuitograndes.Cabenotarqueosromanoslidavamcomnúmerosgrandesusandoumsistemaaditivo,oquerelativizaestaafirmação.

No sistema egípcio, os números fracionários eram representados comsímbolos diferentes dos usados para os inteiros, o que não acontecia nosistema babilônico. Havia dois tipos de fração. As frações comuns eramrepresentadas por símbolos próprios, escritos em hierático e hieróglifo,

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como½(fraçãorepresentadapor ,emhieróglifo); (representadapor);alémde e¼.Asoutraseramescritascolocando-seummarcadorem

forma oval (em hieróglifo) em cima do que constituiria, hoje, odenominador.Ou seja, eramobtidas escrevendoosnúmeros inteiros comuma oval em cima. Por exemplo, seria escrito com a oval sobre setebarrasverticais: .Essetipodefraçãocorrespondeàsqueescreveríamoshojecomo1/n,ouseja,fraçõesquediríamoster“numerador1”.

Esse símbolo oval colocado acima do número não possui, porém, omesmo sentido daquilo que chamamos hoje de “numerador”. As fraçõesegípcias não tinhamnumerador. Nosso numerador indica quantas partesestamos tomando de uma subdivisão em umdado número de partes. Nadesignação egípcia, o símbolo oval não possui um sentido cardinal, masordinal. Ou seja, indica que, em uma distribuição emn partes iguais,tomamos an-ésimaparte, aquelaque conclui a subdivisão emn partes.Écomoseestivéssemosdistribuindoalgoporn pessoase1/n équantocadauma irá ganhar. Logo, con igura-se um certo abuso de linguagem dizerque, na representação egípcia, as frações possuem “numerador 1”. Seriamais adequadodizerque essas frações egípcias representamos inversosdosnúmeros.

Porqueosegípciospodemterrepresentadofraçõesdessemodo?Seráque seu sistema possui uma razão de ser que não seja encaradasimplesmente comouma limitação?Umdos sentidosdessa representaçãopode estar relacionado à maneira de se efetuar uma divisão. Paraentenderoprocedimentodoqualessarepresentaçãoderiva,vejamos:

Exemplo:Suponhamos que uma pessoa deseje repartir a quantidade de grãoscontida em cinco sacos de cevada por oito pessoas. Começamos porimaginarque, se tivéssemosquatro sacos, cadapessoadeveria receber ametadedecadasaco.Sendoassim,comosãocincosacos,cadapessoadevereceber, no mínimo, a metade de cada saco, ou seja, ½. Fazendo isso,sobrará um saco, que pode ser dividido pelas oito pessoas, cada umarecebendomais dessesaco,comonaIlustração8.Podemosdizer,então,que o resultado da divisão de 5 por 8 é ½ + . Logo, esse resultado,enunciadocomoumasomade fraçõesdenumerador1, expressaomodocomoadivisãofoirealizada.

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ILUSTRAÇÃO8

Na nossa representação, essa soma equivaleria a . Isso signi ica quecadameiosacodeveserdivididoemquatro,comoúnicoobjetivodequeaadição de frações seja homogênea, isto é, para que somemos frações demesmodenominador.Poderíamosperguntarseessadivisãodecadameiosacoporquatronãoéarti icial,eseelanãoserveapenasparajusti icaranossatécnicaparticulardesomarfrações.

A divisão egípcia consistia em um procedimento realizado em etapas.Porexemplo,sequisermosdistribuir58coisaspor87pessoasteremosdedividirprimeiramentecadacoisaemdois,obtendo116(=58×2)metades.Daremos,então,umametadeparacadapessoa,restando29(=116−87)metades.Emseguida,dividiremoscadametadeportrês,obtendo87(=29× 3)metades divididas por três, ou seja, 87 sextos. O resultado é quantocada um vai receber do todo, e esse raciocínio está expresso narepresentaçãoegípciade como .

A vantagem do sistema egípcio em relação ao nosso é que podemoscomparar fraçõesmais facilmente. Por exemplo, se quisermos saber, emnossa representação,qual amaiordeduas frações teremosde igualarosdenominadores. Na representação egípcia, uma inspeção direta permitedizer qual amaior das duas frações, uma vez que cada uma é dada porumasomadefraçõescomnumerador1.

CONVERTENDONOSSASFRAÇÕESPARAFRAÇÕESEGÍPCIAS

Vejamoscomoconverternossas fraçõesemfraçõesegípcias.Evidentemente,nãosetratadeumprocedimentoegípcio,umavezquenossasfraçõesnãoexistiamparaeles,eapalavra“converter”sequer teria sentido nesse caso. Queremos expressar como uma soma de frações com

numerador1.Emprimeiro lugar,éprecisosaberqualamaior fraçãocomnumerador1menorque .

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Vemos, assim, que é incorreto dizer que os egípcios não possuíamfrações, que, na notaçãomoderna, seriam escritas comom/n. Tais fraçõeseram criadas selecionando-se e justapondo-se frações que, somadas,perfaziam esse valor. Deve-se então concluir que essa representação erauma “limitação” da aritmética dos egípcios que teria impedido odesenvolvimento de sua matemática? As frações egípcias parecemconsistentes com o conjunto das técnicas que eles empregavam, o queficarámaisclaroapósadescriçãodomodocomorealizavamoperações.

Operaçõeseproblemas

A operação de adição era uma consequência direta do sistema denumeração,bastando,paraobterasoma,agrupardoisnúmerosefazerassimpli icações necessárias. Por exemplo, para somar , bastavareunir os pauzinhos, o que somaria , que seria substituído por umaalça.

Já a multiplicação era sempre efetuada como uma sequência demultiplicações por 2, podendo ser empregadas também, para acelerar oprocesso,algumasmultiplicaçõespor10.Observemosqueaduplicaçãoemumsistemaaditivoéumaoperaçãosimples,poisparaduplicarumnúmero

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é necessário apenas repetir sua escrita. Por exemplo, supondo que cadapessoatenhadireitoadozesacosdegrãos(convencionando-seumsacodetamanhofixo),aquantossacosumgrupodesetepessoasteriadireito?

Esteéosímboloegípciorepresentandoosdozesacosaquecadapessoatem direito: . O cálculo do número de sacos recebidos pelas setepessoasseria:

Aprimeiralinha(/ )representaonúmerodesacosaquecadapessoateria direito. Na linha seguinte (indicada por / ), essa quantidade éduplicada, e para isso basta escrever a mesma quantidade duas vezes,representando quantos sacos duas pessoas ganhariam.Na próxima linha(indicada por / ), essa quantidade é duplicada novamente, para seobterquantos sacosde grãosquatropessoas teriam.Emseguida, comoonúmero7éasomadosnúmeros1,2e4,cujasquantidadesforamobtidasnas linhas anteriores, basta somar as quantidades dessas linhas esimpli icar o resultado, substituindo as dez barras, envolvidas na igura,porumaalça.Oalgoritmofuncionaporque7×12=(1+2+4)×12=1×

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12+2×12+4×12.Podemosobservar,nesseprocedimento,duasfunçõesparaosnúmeros:

indicaraquantidadeobtidaemcada linha;e indicarporquantaspessoasestamos multiplicando os sacos ( / é multiplicação por 1, / émultiplicação por 2, e assimpor diante). O papel da barra / émarcar asparcelas que devem ser somadas para se obter o resultado damultiplicação. Suponhamos que agora queiramos multiplicar 12 por 27.Podemos aplicar o mesmo procedimento? Sim, duplicamos 12 até que asomadasduplicaçõesexceda

27. Usando nossos símbolos, o procedimento seria realizado como sesegue:

Total:

\1 12\2 244 48\8 96\16 192\27 324

Somandoos termosbarrados,obtemos1+2+8+16=27, logo,12×27=12+24+96+192=324.

Damesmaformaqueasmultiplicações,asdivisõeseramefetuadasporuma sucessão de duplicações. Para dividir, por exemplo, 184 por 8,começamospordobrarsucessivamenteodivisor8atéumpassoantesqueonúmerodeduplicaçõesexcedaodividendo184:

Total:

1 \82 \164 \328 6416 \12823 \184

Escolhemos, na coluna da direita, os termos que, somados, dão oresultado184=128+32+16+8.Tomamososvalorescorrespondentesnacolunadaesquerdaesomamos:1+2+4+16=23.Logo,oresultadodadivisãode184por8é23.Esefosse185?Oresultadoseria23e .Esefosse 189? Seria 23mais½mais . Ou seja, a representação egípcia defraçõesfazcomqueadivisãonãoexatasejabastantesimples.

Descreveremosagoraoproblema25dopapirodeRhind,quepertencia

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ao grupo de “problemas de aha”, assim designados devido ao termocaracterísticousadonotítulodecadaumdessesproblemas,representadopelosímboloaseguir:

A palavra “aha” é traduzida por “número” ou “quantidade”, e essesproblemas eram procedimentos para encontrar uma quantidadedesconhecidaquandoédadaumarelaçãocomumresultadoconhecido.Asolução seria obtida, atualmente, pela resolução de uma equação linear,masveremosqueatécnicaegípciaerabemdistintadanossa.

Problema 25: Uma quantidade e sua metade somadas fazem 16. Qual aquantidade?Solução:Admitimosqueaquantidadeé2(damosum“chute”inicial).

Total:\1 2\½ 1\1½ 3

Obtemos, nessa primeira etapa, que 2 somado com sua metade dá 3.Masqueremos,naverdade,umnúmeroque,somadocomsuametade,dê16. Logo, podemos procurar o número pelo qual 3 deve sermultiplicadoparadar16,eesteseráonúmeropeloqual2devesermultiplicadoparaobtermos o número procurado. Assim, tanto o “chute” inicial quanto oresultado errado, obtido por meio dele, são usados para se chegar àrespostacerta.

Total:

\1 32 6\4 12\ 1\5 16

O número pelo qual 3 deve ser multiplicado para dar 16 é 5 . Emseguida,multiplicoestenúmeropor2:

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Total:\1 5\2 10\3 16

A quantidade procurada é 10 (pois este número somado com suametadedá16).

O procedimento se baseia emum “chute” inicial que será corrigido aolongodoprocesso.Hoje, dizemos “métododa falsa-posição”, uma vez queelecomeçaporumpalpitefalsoparachegaraoresultadocorreto.Ouseja,sugere-se que a solução seja 2, o que daria a soma 2 + 1 = 3. Depois,investiga-seporquenúmerosedevemultiplicar3paraobter16,queé .Multiplica-se, então, a falsa solução 2 por esse número para se obter asoluçãoverdadeira: .

OMÉTODODAFALSAPOSIÇÃO

Ométododafalsaposiçãopodefornecerumamaneiraderesolverequaçõesaritmeticamente,ouseja, sem procedimentos algébricos, e foi usado em diversosmomentos da história. Daremos asolução,por falsa-posição,paraumaequaçãodadaemsimbolismoatualporax =b. Escolhemosum valor arbitráriox0 parax e calculamos o valor deax0, que chamaremos deb0. Na prática,procuraremos escolher esse valor inicial de um modo que facilite as contas. Em seguida,investigamos por que número devemos multiplicarb0 para obterb e chegamos a . Para

manterinalteradaaigualdadeax0=b,devemosmultiplicaressemesmonúmeroporx0.Obtemos,assim,que .Logo,asoluçãodeax=bdeveser .

Amaioriados relatoshistóricos sobreamatemática egípcia indicaquese tratava de uma matemática essencialmente prática, baseada emmétodosempíricosdetentativaeerro(comopodeserentendidoométododa falsa-posição).No entanto, essa acusação de falta de espírito cientí icopode revelar um tipo de anacronismo. A busca de generalidade euniversalidade que caracteriza a cienti icidade das nossas práticas podeser encontrada na matemática egípcia, mas de um modo distinto. Oproblema25dopapirodeRhind,queacabamosdeanalisar, integraumalista contendodiversosproblemasdomesmo tipo, resolvidospelamesmatécnica:

Problema 24: Uma quantidade e seu somados fazem 19. Qual aquantidade?Problema 26: Uma quantidade e seu ¼ somados fazem 15. Qual a

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quantidade?Problema 27: Uma quantidade e seu somados fazem 21. Qual aquantidade?

Ora, em nenhum desses problemas há referência a grandezas comovolumes, quantidade de grãos ou áreas. Todos envolvem númerosabstratos. Mas o mais importante é que o escriba parece ter desejadoindicar, pormeio de uma lista de problemas similares, um procedimentogeralderesolução.Usandonossalinguagemalgébrica,essageneralidadeéexpressa em um único enunciado: encontre o valor de x na equação

, ondec pode assumir um valor qualquer. O método deresoluçãousadopornóségeral,poisbastaresolveraequaçãoeencontrarum valor parax. Essageneralidadeépossibilitadapelousoda linguagemalgébrica. Não podemos negar, entretanto, que um outro tipo degeneralidade estivesse presente no modo como os problemas egípcioseramorganizados.

Nem todos os problemas de “aha” eram resolvidos pela técnica quechamamos hoje de “falsa posição”.No papiroRhind há diferentes gruposdeproblemas,cadaumcomumaestratégiaespecí icadesolução.Aordemdos problemas re lete a separação nesses grupos, dos quais apenas umusava o método da falsa-posição, que não pode ser visto como um traçodistintivodetodososproblemasde“aha”.

No antigo Egito, as operações de multiplicação e divisão envolvendofrações eram realizadas demodo análogo às operações correspondentescomnúmerosinteiros,ouseja,empregando-sesequênciasdeduplicaçõesedivisões por 2. Mas como duplicar uma fração, por exemplo ¼, se nãopodemos utilizar “numeradores” diferentes de 1? Nesse caso, é simples:bastadividir4por2etemosque¼×2=½.Omesmovaleparatodasasfrações que possuem o que chamamos hoje de “denominadores” pares,poismultiplicarumafraçãopor2equivaleadividirodenominadorpor2.O mesmo procedimento não é tão simples, porém, para frações comdenominadorímpar.Comoosegípcioslidavamcomesseproblema?

Essa e outras questões complexas da matemática egípcia eramsolucionadas com a ajuda de tabelas de cálculo. A representação egípciatornava particularmente di ícil a duplicação de frações comdenominadorímpar.Porexemplo, .Alémdeserumasomadefraçõescomnumerador1,esseresultadonãoéúnico.Oresultadodasoperações

eradispostoemuma tabela, eesse registroefetuavaumaescolha

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dentre aspossíveis representações.Dessa forma, aduplicaçãode fraçõesdedenominadorímpar,umcálculo“di ícil”,erarealizadaapenasumavez,e sempre que se necessitasse do resultado recorria-se às tabelas. Pelomesmomotivo,assomasdefraçõestambémtraziamdi iculdadeedeviamserrepresentadasemtabelas.

Umanacronismorecorrente

Lembrando que não é conveniente empregar de inições atuais paraconceitos e subdisciplinas usados na Antiguidade, analisaremos doisexemplos de exercícios – um egípcio e outro babilônico – que pedem ocálculo do volume, em grãos, de um recipiente de forma cilíndrica. Essesexemplos são citados em diversos livros, muitas vezes com o objetivo deindicarqueospovosbabilônicoseegípciospossuíamaproximaçõesparaovalordeπ.Nossoobjetivo é entender emque contexto tais problemas seinserem e em que medida podem ser ou não considerados instânciasprimitivas da utilizaçãodeπ. Para abreviar, evitamos entrar emdetalhessobreasunidadesdemedidautilizadas.

Exemplo egípcio (Problema 41 do papiro de Rhind) : “Fazer um celeiroredondode9por10.”

Oceleirotemoformatodeumcilindroeaprimeirapartedoproblemaconsiste em calcular a área da base, em forma de circunferência, cujodiâmetroé9.Asegundaparteconsisteemcalcularovolumeemgrãosseaaltura é 10.Oprocedimentopara resolver a primeira parte é o seguinte:“Subtraia( de9)de9:1.Resta:8.Multiplique8por8;obtendo64.”

A área da base, uma circunferência, seria, portanto, 64. Mas de ondeveioessasubtraçãode dodiâmetrodado?Essefatonãoserelacionaao9 mencionado no problema. O valor é uma constante que devia seraprendidaeutilizadapelosegípciossemprequequisessemcalcularaáreadeumacircunferência (multiplicandoessaconstantepelodiâmetro).Paracalcularaáreadessa igura,odiâmetrodeveriasermultiplicadopor , oresultado subtraído desse diâmetro c e o novo resultadomultiplicado porelemesmo.

Seusarmosa fórmuladaáreaqueconhecemosatualmentee izermos,emquedéodiâmetrodado,obteremos,

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aproximadamente, 3,16 para o valor de π. Daí a a irmação, apressada,contida em alguns livros de história, de que os egípcios já possuíamumaaproximaçãoparaπ.

Um tópico popular na matemática babilônica era o cálculo dacapacidade em grãos de um recipiente cilíndrico usado paraarmazenamento. Os primeiros seis problemas do tablete Haddad 104tratamdoassunto.

Exemplobabilônico(Haddad104):“Procedimentoparaumtronco.Sualinhadivisóriaé0,05.Quantoelepodearmazenar?”

“Linhadivisória” éodiâmetroda circunferênciadeterminadaporumaseção transversal. Em primeiro lugar, calculava-se a área de uma seçãotransversal,deformacircular:“Tripliquealinhadivisória0,05talque0,15aparecerá.A circunferênciado tronco é0,15. Combine (faça oquadrado)de0,15talque0,03;45aparecerá.Multiplique0,03;45por0,5(aconstantedeumacircunferência)talque0,00;18;45,aárea,aparecerá.”Emseguida,bastava multiplicar essa área da base circular pela altura. A altura eraconsideradaimplicitamentecomoigualaodiâmetro.

Nesse procedimento, devemos multiplicar o diâmetro dado (a linhadivisória) por 3 para obter a circunferência (ou o perímetro) da base dotronco.Lembramosquea fórmulausadaatualmenteparaoperímetrodacircunferência é2π r=πd (onded é odiâmetro). Poderíamosdizerqueométododosbabilôniosnãoestámuitolongedonosso,usando3comovaloraproximadodeπ.

Mas o objetivo não é calcular o perímetro e sim a área dacircunferência,que,emseguida,deverásermultiplicadapelaaltura.Paracalcular a área a partir do perímetro, temos de elevar ao quadrado edepoisdividiro resultadopor4π(bastaveri icarnanossa fórmulaqueaárea ). Mas, considerando que os babilônios usavam 3 comoconstante, embase 60, dividir por 4π é equivalente amultiplicar por 0,5(pois é o mesmo que 0,5 em base 60). Isso explica amultiplicaçãoporessaconstantenofinaldoprocedimento.

Aqui, o cálculo da área da circunferência também faz intervir umaconstante,nocaso,osexagesimal0,5,utilizadonaúltimaetapa.Essaéumaconstante relativa ao círculo empregada em qualquer procedimento decálculo de área de circunferência. No entanto, o 3 pelo qual devemosmultiplicar o diâmetro não é exatamente uma constante e sim uma

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operação,indicadapeloverbo“triplique”.Seria um tremendo anacronismo dizer que os povosmesopotâmicos e

egípcios já possuíam uma estimativa para π, pois esses valores estavamimplícitos em operações que funcionavam, ao invés de serem expressospor números considerados constantes universais, como em nossaconcepção atual sobre π. O valor de dos egípcios era uma constantemultiplicativaquedeviaseroperadacomodiâmetro,enãoumnúmero.Ocasobabilônicoéaindamais lagrante,poisoverbo“triplique”indicaumaoperação.

Os procedimentos descritos não caracterizam a existência de umageometria no sentido da que nos foi legada pelos gregos. Chamar de“geometria” tais operações pressupõe esclarecer que ela é bastantedistinta daquela que se desenvolveu posteriormente. Essas questõesvoltarão a ser debatidas no Capítulo 2, dedicado ao início da geometriagrega.

Oconceitodenúmeroéconcretoouabstrato?

Daremos aqui um exemplo de como a história pode auxiliar noaprendizado de matemática. Uma das noções mais importantes dessadisciplina,adenúmero,implica,jáemsuasorigens,umarelaçãocomplexaentrepensamentoconcretoeabstrato.Tomemosporexemplo:umpardecarneiros; um casal constituído por um homem e uma mulher; e osrecipientes utilizados por esse homem e essa mulher em uma refeição(casoelesnãodesejemcompartilharomesmorecipiente).Oqueosserespresentes em cada um desses exemplos possuem em comum? Dito emoutras palavras: o que um carneiro, um homem e um prato teriam emcomum?Nada,seconsiderarmoscadaser individualmente.Noentanto,selevarmosemcontaas reuniõesde seresdamesmanatureza,poderíamosresponder, com base em nossos conhecimentos atuais, que o que essesgrupostêmemcomuméofatodeseremconstituídospelomesmonúmerodeseres,nocaso,2.Mas,umavezquenossoobjetivoéinvestigaroqueéonúmero“2”,talrespostanãopareceadequada.

O procedimento utilizado desde as sociedades antigas, e que está naorigemdoconceitodenúmero,éa correspondênciaentredoisgruposdecoisas, ou duas coleções. No exemplo citado, temos duas coleçõescompostasdeseresvivos–coleçãodecarneirosecoleçãodehomens–e

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podemos associar um carneiro ao homem e um carneiro à mulher. Damesma forma, épossível associar cada recipiente aumserhumano,ouaumcarneiro.

Tal correspondência é exatamente do mesmo tipo daquela queempregamos ao “contar nos dedos”. Pode-se associar, por exemplo, cadacarneiro a um dedo da mão e concluir que em uma dada coleção decarneirosháamesmaquantidadedecarneirosdoquedededosnasmãos.Em seguida, podemos chamar essa quantidade de “10” e dizer que umapropriedadecomumàcoleçãodecarneiroseàcoleçãodededosdasmãosé a de que ambas possuem 10 seres. É lícito fazer a mesma coisaassociando qualquer coleção de seres a uma outra coleção de seresdeterminada que possua uma quantidade ixa de elementos (como osdedosdasmãos).Efetuarumacorrespondênciaentreessasduascoleçõesdeseresé“contar”.

Oprocedimentodecontagemdáorigemaum“número”quedesignaaquantidade de seres em uma determinada coleção. Assim, a noção denúmero traduzo fatodeque,dadasduas coleções comomesmonúmerodeseres,podesechamaraquantidadedeelementosemcadaumadessascoleções pelo mesmo nome: 2, 10 etc. A de inição de número implica,portanto,uma“abstração”emrelaçãoàqualidadedosseresqueestãoemcadacoleção,paraqueapenasasuaquantidadesejaconsiderada.

Talde iniçãodenúmero,baseadanaideiadecorrespondênciaumaumentreobjetosdiferentes,foipropostaduranteodesenvolvimentodateoriados conjuntos, no século XIX.11 Mas isso não quer dizer que a noção denúmero praticada pelos mesopotâmicos fosse concreta, e que tenhamostidoqueesperarquaseseismilanosparaqueumaformalizaçãoabstratadessanoçãofosseproposta.Oexemplohistóriconosajudaacompreenderemquesentidoonúmeropodeserentendidocomoumaabstração.

Apalavra“abstrair”designajustamentequecertaspropriedadesforamisoladas, separadas dos exemplos concretos em que estão presentes. Épossível pensar em uma abstração também quando associamos cores aobjetos,poisabstraímostodasasoutrascaracterísticasdoobjetoparanosfixarmossomenteemsuacor.Noentanto,onúmeroéumconceitoabstratodiferente da cor, já que não é uma das propriedades do objeto e sim deuma coleção de objetos. Essa propriedade só pode ser identi icada pelaassociaçãodessacoleçãoaoutras.

O conceito de número é abstrato, mas não porque pode serrepresentadoporumsímbolo,esimporquepressupõeabstrairanatureza

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particular dos seres em uma coleção. A abstração torna possível umconceito de número que poderá, então, receber um nome e serrepresentado por um símbolo. Assim, em diferentes processos decontagem, ainda que o estabelecimento de correspondências sejaequivalente,osnomesdosnúmerospodemdiferir.

Conforme dito no início deste capítulo, antes do im do quartomilênioa.E.C., os povos da Mesopotâmia desenhavam símbolos em argila. Noentanto, inicialmente, estes eram distintos para coisas distintas; e, pararepresentar uma quantidade, bastava repeti-los um certo número devezes. Sendo assim, cinco recipientes contendo grãos podiam serrepresentados por cinco marcas para grãos; e cinco jarros de água, porcinco marcas para jarros de água. Em resumo: os números escritosdependiamdosobjetoscontados.

Masseestamos interessadosemdeterminaraquantidadedealgo,nãoé preciso indicar, necessariamente, a natureza desse objeto. Quando sefala, hoje, em cinco jarros de água, signi ica que se tem a mesmaquantidadede jarros do que a quantidadede dedos de umadasmãos, eque essa propriedade comum é o número 5, representado em nossosistema de numeração pelo símbolo “5”. O conceito de número está,portanto,ligadoaessapossibilidadederepresentarumacertaquantidadedejarrospelomesmonomeusadoparaaquantidadedededos.

Na virada do quarto para o terceiromilênio a.E.C., foram introduzidossímbolos para designar quantidades de coisas de naturezas diferentes.Esses sinais numéricos traduziam o conceito de “unidade”, “doisidade”,“tresidade”,abstraídosdequalquerobjetoparticular. “Dois”nãoexistenanatureza, mas somente conjuntos com dois objetos concretos, como doisdedos, duas pessoas, duas ovelhas, ou mesmo conjuntos compostos deelementosheterogêneos,como1fruta+1animal. “Dois”éaabstraçãodaqualidade de “doisidade” compartilhada por esses conjuntos. Logo, osnumerais escritos nos tabletes desse período são o primeiro indício dautilizaçãodeumsistemadenumeraçãoabstrato.

Antesdisso, jáeramempregadossímbolosparadesignaraquantidadede coisas em uma coleção determinada,mas o número não era abstrato.Contar,eregistrarquantidades,podeserditaumaatividadeconcreta,poisimplicaumcorpoacorpocomosobjetoscontados.Quandoostokenserammanipuladosnacontagem,emesmoquandoeramimpressosnasuper íciedos invólucros, essa concretude estava em jogo. A abstração tem lugar apartirdomomentoemqueoconteúdodosinvólucrospodiaseresquecido,

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levando a um registro independente do que estava sendo contado,impressoemtabletes.Onúmeroassimobtidoéabstratoporqueexpressauma propriedade que foi abstraída, que foi separada da natureza dosobjetoscontados.

Problemas matemáticos não são fáceis nemdifíceisemsimesmos…

Vimosqueas técnicasparaefetuarumamesmaoperação,porexemploamultiplicação,eramdiferentesnaMesopotâmiaenoEgito.Imaginamos,noentanto, que as necessidades práticas quemotivaram o desenvolvimentodosnúmerosearealizaçãodecálculoseramsemelhantes.Aopassoqueosmesopotâmicos empregavam tabelas de produtos, de inversos, de raízesetc., os egípcios usavam sequências de duplicações, ou divisões por 2, einversões. Em ambos os casos, as tabelas estavampresentes, não apenasparafacilitarememorizaroscálculos,massobretudoporquealgunsdeles,mais di íceis, demandavam intrinsecamente o uso de tabelas. Namatemáticababilônica,umdoscálculosdi íceiseraadivisãopornúmeroscujos inversos não possuem representação inita em base 60, problemaintimamenterelacionadoaomodocomorepresentavamosnúmeros. Jánocaso egípcio, era di ícil a duplicação e a soma de frações, problemasrelacionados ao modo como representavam frações. Sendo assim, essascontasnão são fáceisoudi íceis emsimesmas.Oque é considerado fáciloudi ícildependedoquepodeedoquenãopodeser realizadoporumacerta técnica. Dito de outro modo, a di iculdade de uma operaçãomatemáticaérelativaaosmétodosdequedispomosparaexecutá-la.

O contexto prático, ligado à administração de bens, foi uma dasmotivaçõesparaainvençãodamatemática,masossistemasdenumeração,bem como as técnicas para realizar operações, se transformaram deacordo com questões diversas. Mesmo nas culturas antigas haviamotivações técnicas para o desenvolvimento da matemática e cuidadoscom a exposição, a im de que exprimisse certa regularidade egeneralidade dos procedimentos usados. Aliás, é justamente por teremorganizadosuaspráticasdemodosistemático,de formaapossibilitar suatransmissão, que sepode considerarqueosmesopotâmicos e os egípcioscriaramumamatemática,oumelhor,duasmatemáticas.

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Se as necessidades cotidianas que levaramà investigaçãodas técnicasde cálculo e das propriedades dos números eram semelhantes nos doiscontextos, por que métodos distintos foram criados? Vimos que umamesmacontaerarealizadademodosdiferentes,podendoserconsideradadi ícilemumcasosemquenooutroofosse.Ousodetabelasdecorreudecaracterísticas inerentes a cada uma dessasmatemáticas,mas amaneiracomoelasforamutilizadasdeterminou,efoideterminada,portécnicasqueconstituemmatemáticasdistintas.

As ferramentas, as técnicas e os métodos desenvolvidos por aquelesque fazemmatemáticapodemcorresponderanecessidadescotidianasouinerentes às próprias práticas matemáticas. A separação entre aneutralidadedastécnicaseaimportânciadocontexto,tidocomomotivaçãoexterna para o seu desenvolvimento, é um dos traços que permeiam atéhoje nossa visão da matemática. Mas tal dicotomia é baseada em umacompreensãosuper icialdoquesejaumpensamentoconcretoouabstrato,emqueoconcretocorrespondeaocontextoexterno,eoabstratoaocamposimbólico,internoàmatemática.

O exemplo damatemática antiga pode nos ajudar a ultrapassar essespreconceitos. O caminho que vai dos problemas ditos “concretos” àmatemática “abstrata” não é linear. Os mesmos problemas podem gerartécnicas distintas e sugerir diversas direções a serem exploradas, o quelevará a matemáticas distintas. Separar o pensamento abstrato doconcreto, ou seja, da experiência, parece ser um vício herdado do modogregodeenxergaramatemática.ComodiziaAristóteles,

foi apenas quando todas essas invenções [das artes práticas] já estavam estabelecidas queforamdescobertasasciênciasquenãovisamàobtençãodoprazerouàsnecessidadesdavida;eissoaconteceuemlugaresondeohomemtinhatempolivre.Porissoasartesmatemáticasforaminventadas primeiramente no Egito; lá, às castas abastadas era permitido o gozo do tempolivre.12

Veremos, nos próximos capítulos, que essa divisão entre as artespráticaseoconhecimentosuperior,desenvolvidocomotendoum imemsimesmo, foi incorporada como um traço grego damatemática. Talvez poressa in luência nos preocupemos em classi icar a matemática de outrasculturas a partir de sua proximidade ou distância em relação anecessidadesutilitárias.

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RELATOTRADICIONAL

ÉMUITOCOMUMLERMOSqueageometriasurgiuàsmargensdoNilo,devidoànecessidade de medir a área das terras a serem redistribuídas, após asenchentes, entre os que haviam sofrido prejuízos. Essa hipótese tem suaorigemnosescritosdeHeródoto,datadosdo séculoVa.E.C.: “Quandodasinundações do Nilo, o rei Sesóstris enviava pessoas para inspecionar oterreno emedir a diminuição dosmesmos para atribuir ao homem umareduçãoproporcionaldeimpostos.Aíestá,creioeu,aorigemdageometria,quemigrou,maistarde,paraaGrécia”,afirmaohistoriador.1

A história tradicional relata ainda que um dos primeiros matemáticosgregosfoiTalesdeMileto,queteriavividonosséculosVIIeVIa.E.C.esidoin luenciadopelosmesopotâmicoseegípcios.Umdeseus feitos teriasido,justamente,ocálculodaalturadeumadaspirâmidesdoEgito,apartirdasemelhançaentre,porum lado,arelaçãodaalturadestaesuasombrae,por outro, a relação da própria altura e a própria sombra. Amatemáticapitagórica,desenvolvidanaprimeirametadedoséculoVa.E.C.,teriafeitoatransição entre as épocas de Tales e Euclides. Também in luenciado pelamatemática egípcia, Pitágoras teria introduzido um tipo de matemáticaabstratanaGrécia.

Essas narrativas enfatizam a passagem damatemática realizada pelosbabilônios e egípcios, marcada por cálculos e algoritmos, para amatemática teórica, praticadapelos gregos, fundada emargumentações edemonstrações consistentes.Alémdisso, quase todos os livros de históriadamatemáticaaque temosacessoemportuguês reproduzema lendadequeadescobertadosirracionaisprovocouumacrisenosfundamentosdamatemática grega. Alguns chegama a irmar que tal crise só foi resolvidacom a de inição rigorosa dos números reais, proposta por Cantor eDedekindnoséculoXIX (ou seja,maisdevinte séculosdepois).Essemitoapontoudireçõesimportantesnomodocomoahistóriadageometriagregafoiestruturada.

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a Muitos historiadores fazem o contrário, ou seja, usam o ponto e vírgula para separar a parteinteira da fracionária, e a vírgula para separar os algarismos dentro da parte inteira ou dafracionária. Decidimos inverter essa representação, uma vez que no Brasil a vírgula é usadanormalmenteparasepararaparteinteiradafracionária,ejáestamoshabituadosaessautilizaçãodosímbolo“,”.b As triplas pitagóricas são triplas de números inteiros que podem ser obtidas pela regra dePitágoras,ouseja,contêmdoisnúmerosquadradoseumterceiroqueéasomadosdoisprimeiros.Apesardeestarempresentesnamatemáticababilônica,deixaremosadiscussãosobreseuusoparaoCapítulo2,quetratarádamatemáticadita“pitagórica”.cPode-seimaginarquantoaconsideraçãodeumdadodiferentede9complicariaoscálculos.

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2. Lendassobreo iníciodamatemáticanaGrécia

COMOVISTONOCAPÍTULO 1, osmesopotâmicos e egípcios realizavamcálculoscom medidas de comprimentos, áreas e volumes, e alguns de seusprocedimentos aritméticos devem ter sido obtidos por métodosgeométricos, envolvendo transformações de áreas. Isso não quer dizer,contudo,quepossuíssemumageometria.O testemunhodeHeródoto,queviveuno séculoVa.E.C., apresentadono segundodosnove livrosde suasHistórias, se insere emuma descrição dos costumes e das instituições depovos diversos e é parte das investigações sobre as causas das guerrasentre gregos e bárbaros (pertencentes ao império persa). Esse segundolivro é inteiramente consagrado ao Egito e nele se encontra a menção àpalavra grega “geometria”. Os egípcios teriam revelado que seu reipartilhavaaterraigualmenteentretodos,contantoquelhefosseatribuídoum impostonabasedessa repartição.ComooNilo, àsvezes, cobriapartede um lote, era preciso medir que pedaço de terra o proprietário tinhaperdido,como imderecalcularopagamentodevido.ConformeHeródoto,essa prática de agrimensura teria dado origem à invenção da geometria,umconhecimentoqueteriasidoimportadopelosgregos.

A palavra “geometria” pode ser traduzida, portanto, como “medida daterra”.Vemdaía ideiadeque seu surgimentoestá ligadoàagrimensura.“Acorrelaçãoentrematemática,números,equilíbrioejustiça,entredireitoecálculo,eralugar-comumnassociedadesantigas”,afirmaohistoriadordamatemática grega Bernard Vitrac. 2 Mas que gregos teriam levado ageometria para a Grécia? Heródoto não diz nada sobre o assunto eestudiosospostularam,posteriormente,queteriasidoTales.Paratornarorelatomaisconsistente,a irmou-sequeessematemáticoteriacalculadoatémesmoaalturadeumadaspirâmidesdoEgito.Talanedota,queEudemoeProclusajudaramaconstruir,combinaaideiadequeageometriaprática,deorigemegípcia,teriaevoluídoparaadeterminaçãoindiretademedidasinacessíveis, casodaalturadeumapirâmide.Enfatiza-se, assim, aorigem

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empíricadageometria,bemcomosuautilidadenotratamentodequestõesmaisespeculativas.

Nas práticas demedida, os problemas geométricos são transformadosemproblemasnuméricos.Aescolhadeumaunidadedemedidabastaparaconverterumcomprimento,umaáreaouumvolumeemumnúmero.Semdúvida, os primeiros matemáticos gregos praticavam uma geometriabaseada em cálculos de medidas, como outros povos antigos. Não há,contudo, uma documentação con iável que possa estabelecer a transiçãodamatemáticamesopotâmica e egípcia para a grega. Essa é, na verdade,umaetapanaconstruçãodomitodequeexistiriaumamatemáticageraldahumanidade. A escassez de fontes que permitiriam unir as diferentespráticasdessasdisciplinasnaAntiguidadenosforçaaoptarpelapresençadeváriasmanifestaçõesmatemáticas.

Há algumas semelhanças entre as culturas mesopotâmica e grega,sobretudonoperíodoselêucida,quecoincidecomaépocadasconquistasdeAlexandre,oGrande,quepropiciaramalgumainteraçãoentreospovosorientaiseocidentais.Háevidênciasdissonagestãodospaláciosetemplos,que pode ter se re letido na atividade dos escribas. No campo damatemática, entretanto, não há indicações consistentes sobre a in luênciarecíproca entre mesopotâmicos e gregos. Apesar de a ciência grega nãoparecertersidoumfenômenoindependentedeoutrasculturasanteriores,nãosabemosexatamentecomopodetersedadoesseintercâmbio.

É verdade que, com Euclides, a matemática na Grécia parece teradquirido uma con iguraçãoparticular, passando a empregar enunciadosgeométricosgeraisquenãoenvolvemsomenteprocedimentosdemedida.Nosso objetivo aqui será entender o que aconteceu antes dessatransformação. Como veremos, é precipitado a irmar que as práticas dequetemosnotíciafaziampartedeumesforçoglobalpararecon igurarumcorpounificadodeconhecimentoschamado“matemáticagrega”.

PorvoltadoséculoVIIa.E.C.,registram-setraçosdaculturaorientalnaGrécia,principalmentenoqueconcerneaostiposdecultivo,àstecnologiasparaaproduçãodebenseaosregistrosdasatividadesadministrativas.Ocrescimento populacional e a dispersão dos gregos pela bacia doMediterrâneo deram então origem à mais importante instituição dessepovo, que foi determinante para a organização política, administrativa,religiosa e militar da Grécia durante os séculos V e IV a.E.C.: a polis – acidade grega. Nessa época, desenvolveu-se uma oligarquia urbana, e aausência de um poder centralizado contribuiu para o surgimento das

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cidades. A palavrapolis relaciona-se àpolítica (aquilo que concerne aocidadão, aosnegóciospúblicos).Apolis surgiuaomesmo tempoemqueocidadão passou a ter direito de reger sua cidade. Para isso, eramnecessários parâmetros, o que alimentava o gosto pela discussão. Acontrovérsia movimentava apolis e a capacidade de persuasão, quecontribuíaparavencerodebate,tornou-sevalorizada.

Em seus estudos sobre as origens históricas do ideal de razão grega,Jean-Pierre Vernant 3 mostra que esse universo é marcado pela ligaçãoíntimaentrerazãoeatividadepolítica.Tratamosdeumperíodonoqualavida pública adquiriu muita importância, o que se re letiu no debatepolítico na ágora, nas trocas comerciais, na laicização, na expansão dasformas de religiosidade ao espaço externo (até então assunto privado,restrito ao interior do templo) e na organização racional e geométrica doterritório. O pensamento racional ganhou impulso nesse novo tipo deorganização. Os ilósofos da Escola de Mileto e, posteriormente, ospitagóricos e os so istas, formularam pensamentos para explicar aformação do Universo – não mais com base em mitos, nos quais osobrenatural,odivinoeahierarquizaçãoentrehomensedeusesde iniamo mundo, mas a partir de elementos passíveis de racionalidade, como aágua, o ar, o número. Ganharam relevância ainda as formas do discursocomo instrumento de disputa política nas assembleias. A partir domomentoemque,navidacomum,odebateeaargumentaçãosetornaramfundamentais,astécnicasdepersuasãoeare lexãosobreaargumentaçãocomeçaram a despertar interesse. Dentre as técnicas de persuasão, asregras da demonstração e o apelo a uma lógica que busca o verdadeiro,própria do saber teórico, passaram a ter especial destaque, e quemsoubessepersuadir semprepoderia convencerosoutrosdequesua teseeraverdadeira.

Emsentidooposto,noentanto,essatentaçãoaoceticismodeuorigemaum esforço para mostrar que verdade e verossimilhança são coisasdiversas.Apartirdo inaldoséculoVa.E.C.,PlatãoeAristótelesbuscarampropor maneiras de selecionar os tipos de a irmação possíveis,distinguindoosraciocíniosfalsosdoscorretoseestabelecendocritériosdeverdade. Em um mundo no qual as opiniões se multiplicavam, eranecessário distinguir os argumentos, estabelecer critérios para decidirquemtinharazão.Apartirdaí,forjou-seumtipodediscurso,oudediálogo,quefoiaprimeiraformadoquesepassouachamarde iloso ia.Essenovotipodepensamento,paraPlatão,deviasefundaremde iniçõesclarasque

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distinguem os seres inteligíveis de suas cópias no mundo sensível. NosdiscursosdeSócratesestápresenteessemododeargumentação,chamado“dialética”, que se serve das Ideias para ultrapassar as opiniões. Adistinção entre retórica e dialética marcará a educação do cidadão livre.Mais tarde, Aristóteles desenvolverá uma lógica na qual os critérios deverdadeestarãomais ligadosàpuracoerência,aorigordademonstração.Em outras palavras, em uma cadeia de conclusões tudo deve decorrerdaquiloquefoiditoanteriormente,semquehajacontradiçãonointeriordoraciocínio. Platão e Aristóteles se serviram damatemática para constituiressenovoidealdepensamento.Masquematemáticaeraessa?

Nosso objetivo inal é reconstituir o contexto em que, na Grécia, amatemática se tornou um saber teórico, que lida com entes abstratos. Adesignaçãode“abstrato”ganha,agora,umsentidodiferentedoexpostonoCapítulo1, já que aqui a expressão está associada àprática geométrica enãonumérica.O registro grego é fragmentário e a escassezde fontes fazcom que o trabalho do historiador pareça especulativo. Existem algunstratadosmatemáticosconcluídos,outrosparcialmente inalizadoseoutros,ainda, com apenas trechos aleatórios preservados acidentalmente emobrasderivadas,alémdealguma literaturasobreamatemáticaemtextosilosó icos.Épreciso lembrar tambémquegrandepartedo conhecimentode que dispomos é indireto, proveniente de escritos como os de Platão,Aristóteles,EuclideseProclus.Alémdessasobras,háoutrasevidênciasemalguns poucos fragmentos atribuídos a Eudemo de Rodes, pupilo deAristóteles que viveuno século IV a.E.C. Proclus escreveuum comentáriosobre o primeiro livro dos Elementos de Euclides que continha um“Catálogodosgeômetras”.Presume-sequeessecatálogosejaderivadodosescritos de Eudemo, que mencionava proposições e construções queteriamsidorealizadasporTales.

No inaldoséculoVIIa.E.C.,diversasrealizaçõestecnológicaspodemtercontribuído para o desenvolvimento da matemática. Alguns termos degeometria jáapareciam,porexemplo,naarquitetura.Háescritos técnicosdo século VI a.E.C. abordando problemas relacionados à astronomia e aocalendário.Neles intervinhamalgunsconceitosgeométricos,comocírculoseângulos.Aomenosumdesseslivrosaindaestavaemcirculaçãonaépocade Eudemo, e os enunciados geométricos aí contidos podem ter sidoatribuídosaTales.

Umexemplodeinstrumentotécnicoqueparecetersidocomumapartirdo século V a.E.C. é ognomon, dispositivo do relógio solar destinado a

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produzir sombras no chão. A variação de tamanho da sombra nos diasmais curtos e mais longos do ano sugeria o estudo de solstícios eequinócios. Ognomon pode ter tido um importante papel no início dageometriagrega,designando,demodomaisgeral, odispositivoem formadeesquadroquepermitepassardaobservaçãodassombrasàexplicaçãodos fenômenos astronômicos. Presume-se que ele pode ter servidotambém,maistarde,paraoestudodasemelhançadefigurasgeométricas.

Segundo Proclus, Tales conhecia um teorema sobre congruência detriângulosquedeviaserusadoparacalcularadistânciadebarcosnomar.Mas é di ícil estabelecer as bases factuais desta e de outras a irmaçõessobreTalesatribuídasporProclusaEudemo.Naverdade,opapeldeTalesfoi objeto de algumas controvérsias históricas. Segundo W. Burkert, 4pareceserfatoque,porvoltadoséculoVa.E.C.,seunomeeraempregadoemconexãocomresultadosgeométricos.Alémdisso,AristótelesmencionaTales naMetafísica como o fundador da iloso ia. Essa honra, somada auma vaga circulação da referência a seu nome como geômetra, pode terlevado a que se creditasse ao ilósofo deMileto importantes descobertasgeométricas.

A historiogra ia da matemática costuma analisar, entre as épocas deTalesedeEuclides,ascontribuiçõesdaescolapitagóricadoséculoVa.E.C.Os ensinamentos dessa escola teriam in luenciado um outro matemáticoimportante desse século, Hipócrates de Quios. Além disso, é frequenteencontrarmosreferênciasaPitágorascomoumdosprimeirosmatemáticosgregos.Masambasasa irmaçõessãohoje largamentequestionadaspeloshistoriadores.

Oestudocríticosobreamatemáticadospitagóricosdeixouumalacunanahistóriadamatemáticadesseperíodo.Seomatemáticomaisconhecidodo séculoVa.E.C.,HipócratesdeQuios,nãoeraherdeirodePitágoras,deonde veio sua matemática? As evidências mostram que havia umamatemática grega antes dos pitagóricos. Em meados desse século, talprática parecia estar no centrodos interesses dos principais pensadores,pois muitos deles se conectavam com questões matemáticas, caso deAnaxágoras, Hípias e Antifonte. Parece que era comum a construção desoluções para problemas geométricos e a comparação de grandezasgeométricas por meio de razões. Em Atenas, a geometria era ensinada,apesar de não sabermos exatamente como. Nos diálogos de Platão, háalgumas evidências da existência de um ambiente de discussão sobre osproblemas geométricos que data de uma época anterior à sua obra. Um

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exemplosãoosdiálogosentreSócrateseTeodoro,queeracontemporâneode Hipócrates e de quem Teeteto, importante personagem dos textos dePlatão, deve ter sido aluno. Devia tratar-se, contudo, de um ensino emcírculosprivadosenãoinstitucional.

Os escritos de Platão são iccionais, mas podemos deduzir, também apartir de outras fontes, uma intensa prática geométrica na primeirametadedoséculoIVa.E.C.Diversosateniensesparecemterparticipadodeum debate sobre o papel da matemática na formação geral dos gregos,bem como em contextos mais especí icos, nos quais podemos falar depraticantes da geometria. Nesse sentido, não sabemos exatamente se aAcademia de Platãoa contribuiu para o desenvolvimento efetivo damatemática,fornecendonovastécnicaseferramentas,ouseteveumpapelmais re lexivo, de cunho ilosó ico, investigando os fundamentos e ametodologia da matemática já existente. Os membros da Academiadebatiamomododedescreverasdisciplinasmatemáticas,oquepodetertidoumpapelnalegitimaçãodessesaberemsuaformaabstrata, ixando-ocomoumadisciplinadopensamentopuro.

No século V a.E.C., o pensamento geométrico e técnico já estavadesenvolvido,porém,nãotemoscomosaberseospitagóricoscontribuírampara isso. A geometria grega começou antes deles e continuou depois;como mostra W. Burkert, essa escola não parece ter tido um papelsigni icativonatransformaçãodamatemáticadeseutempo.Aconvicçãodequeopitagorismoestána fontedamatemáticagregadecorreda tradiçãoeducacionaldosneopitagóricoseneoplatônicosdaAntiguidade,duranteosprimeiros séculos da Era Comum. Além disso, a maior parte de nossoconhecimento sobre as contribuições da escola pitagórica vem deAristóteles. Se analisarmos de perto a iloso ia atribuída a essa escola,veremos que não é tão simples identi icar aí as raízes do ideal platônicoobtidopormeiodaabstração.

Neste capítulo e no próximo mostraremos que a visão de que amatemáticaabstrata,quefazusodedemonstrações, foiumainvençãodosgregos toma por base osElementos de Euclides. Logo, seria anacrônicoanalisar o desenvolvimento da matemática antes de Euclides a partir deinferências lógicas.Nãoécertoque,nosprimórdiosdamatemáticagrega,os argumentos respeitassem as pressuposições e derivassem suasconclusõesapartirdealgumtipoderegra.Começaremospordescreveraconcepção particular de número da escola pitagórica, bem como algunsprincípiosbásicosdesua iloso ia.Nossoobjetivoémostrarque,seexistiu

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uma“matemáticapitagórica”,tratava-sedeumapráticabastanteconcreta,em um sentido que será precisado ao longo deste capítulo, e não deveestar relacionada ao pensamento abstrato que costumamos associar àmatemáticagrega.

Mesmo o famoso teorema “de Pitágoras”, em sua compreensãogeométrica como relação entre medidas dos lados de um triânguloretângulo, não parece ter sido particularmente estudado por Pitágoras esua escola. Veremos, ainda, que a descoberta das grandezasincomensuráveis, frequentementeatribuídaaumpitagórico,deve ter tidooutras origens. Tal descoberta contribuiu para a separação entre ageometria e a aritmética, a primeira devendo se dedicar às grandezasgeométricas e a segunda, aos números – separação que é um dos traçosmarcantes da geometria grega, ao menos na maneira como ela sedisseminoucomEuclides.

HojedizemosqueduasgrandezasAeBsãocomensuráveissearazãoentre elas pode ser expressa por um número racional, pois isso signi icaqueexisteumaterceiragrandezaCquecabeemAeBumnúmerointeirode vezes. Caso contrário, se a razão entre as grandezas não puder serexpressa por um número racional, dizemos que são incomensuráveis. Oproblema, no entanto, não era proposto desse modo na época e nãoenvolvia números racionais. Um de nossos principais objetivos, aqui, édesconstruirosmitosenvolvidosnachamada“crisedosincomensuráveis”.Essa tese tem origem em obras já ultrapassadas que constituem umexemploparadigmáticodeummododefazerhistóriadamatemática–hojecontestado–baseadoempressupostosmodernossobreanaturezadessadisciplina. As narrativas sobre o suposto escândalo provocado peladescoberta dos incomensuráveis citam também os paradoxos de Zenão,por isso descreveremos brevemente seus enunciados, mostrando queestestinhamumfimfilosóficoenãomatemático.

Apesar de questionarmos a validade da tese historiográ ica a respeitoda crise dos incomensuráveis, é inegável que a descoberta de que duasgrandezas podem não possuir uma medida comum teve consequênciasimportantes. Uma delas ajuda a explicar o caráter formal e abstrato dageometria – tal como exposta nosElementos de Euclides –, pois o fato deque duas grandezas possam ser incomensuráveis desa ia o testemunhodos sentidos, o que talvez tenha motivado um novo modo de fazergeometria.Ao inal,apartirdeumdiálogodePlatão,oMênon, tentaremosentendercomoapossibilidadedeexistirem incomensuráveis se relaciona

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ànecessidadedesetrabalharsobreumespaçoabstratoemgeometria.O principal problema posto pela possibilidade de haver segmentos

incomensuráveis é a contradição da ideia intuitiva de que dois delessemprepossuemumaunidadedemedidacomum(esseproblemapodesermaisbemcompreendidocomaleituradoquadroaseguir).Ouseja,aindaquecadasegmentoadmita serdivididoempartesmuitopequenas,o fatodedois segmentosnão seremcomensuráveis signi icaquenão épossívelencontrar uma parte que caiba um número inteiro de vezes em ambos.Essadescobertacontradizosensocomum,comoindicaAristóteles:“Sobrea incomensurabilidade do diâmetro em relação à circunferência, nosparece admirável que uma coisa não sejamensurável pormeio de outraqueédivisívelempartesmuitopequenas.”5

PROCEDIMENTOSDEMEDIDAEAINCOMENSURABILIDADE

Amedida é um procedimento que permite reduzir grandezas a números. Dado um segmento,podemosmedirseucomprimento.Dadaumasuper íciebidimensionalnoplano,podemosobteramedida de sua área. Para medir, o primeiro passo é escolher uma unidade de medida. Duasmedidasdamesmanaturezadevempossuirumaunidadedemedidacomum.Cadagrandezaéidenti icada, assim,aonúmero inteirodeunidadesdemedidaquea compõem.Amedida tornapossível, portanto, a correspondência entre qualquer grandeza e um número inteiro, ou umarelaçãoentreinteiros.

Como “medir” signi ica, essencialmente, “comparar”, precisamos, na maioria das vezes,subdividirumadasgrandezasparaobterumaunidadedemedidaquecaibaumnúmerointeirodevezesemambasasgrandezasaseremcomparadas.SuponhamosquequeiramoscompararossegmentosAeB.ComoBnãocabeumnúmerointeirodevezesemA,podemosdividirBem3etomaraunidadecomosendoumterçodeB.Comoessaunidadecabe4vezesemA,acomparaçãode A com B nos fornece a razão 4:3. É desse tipo de comparação que surgem as medidasexpressaspor relaçõesentrenúmeros inteiros,quechamamos,hoje,de “racionais” (justamenteporseremassociadosaumarazão).

Mas será que é sempre possível expressar a relação entre grandezas por uma razão entreinteiros?Talproblemaéequivalenteàseguintequestão:dadosdoissegmentosAeB,ésemprepossívelsubdividirumdeles,porexemploB,emumnúmero initodepartes,demodoqueumadessas partes caiba um número inteiro de vezes em A? Intuitivamente, se pensamos emgrandezas ísicas,é lícitosuporquesim.Ouseja,seaspartesdeBpuderemsertornadasmuitopequenas, parece ser sempre possível encontrar um segmento que caiba em A um númerointeiro de vezes, ainda que este seja um número muito grande. A descoberta das grandezasincomensuráveis mostra que isso não é verdade; logo, nossos sentidos nos enganam quandoadmitemessapossibilidade.

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Ospitagóricoslidavamcomnúmeros?

A Antiguidade tardia nos legou dois textos de pensadores neoplatônicosnosquaisos feitosdamatemáticagrega foramavaliados:umde Jâmblico,De communi mathematica scientia (Sobre o conhecimento matemáticocomum),eoutrodeProclus,oprimeiroprólogoaoseu Comentáriosobreoprimeirolivrodos ElementosdeEuclides.JâmblicoviveuentreosséculosIIIe IV da Era Comum, quando o elogio era uma prática corrente entre osestudiosos. Sua obra não apresenta somente o que era o conhecimentomatemático de então, visa também elogiar o tema e os pensadoresabordados.Decommunimathematica scientia éo terceirovolumedeumaobra maior, dedicada ao pitagorismo, De vita pytaghorica (Sobre a vidapitagórica), na qual a matemática contribui para o elogio do homemPitágoras. O texto de Proclus contém passagens inteiras extraídas dessaobra de Jâmblico. O testemunho mais citado sobre a existência de ummatemático chamado Pitágoras é o “Catálogo dos geômetras”, de Proclus.A irma-se aí que Pitágoras transformou sua iloso ia em uma forma deeducaçãoliberal,procurandoderivarseusprincípiosdefontessuperiores,de modo teórico. Esse catálogo, como vimos, pode ter sido inspirado emEudemo, mas sobretudo em Jâmblico, uma vez que contém transcriçõesliteraisdaobradesteúltimo.

É interessante observar que Eudemo não menciona Pitágoras, massomente os “pitagóricos”. Ou seja, Proclus pode ter sido responsável porumasíntesequemisturaasideiasdeEudemosobreapurezadosmétodospitagóricos com a atribuição desses feitos a um homem, Pitágoras. Eraconveniente, para Proclus, reconhecer aí os fundamentos de seu próprioplatonismo.Aescassezdasfontes,somadaàconvergênciainteressadadosúnicostextosdisponíveis,nospermiteduvidaratémesmodaexistênciadeummatemáticodenomePitágoras.

Há passagens de Aristóteles falando dos pitagóricos. NaMetafísica,atribui-se a eles o estudo da matemática a partir de seus princípios: amatemáticanãotinharelaçãocoma iloso iaeospitagóricosteriamsidoosprimeiros a fazer essa conexão.Aristóteles eEudemoestãonaorigemdacrença de que o caráter teórico é a marca que distingue a matemáticagregadas receitasdos antigos.Alémdisso,Aristóteles tambémdefende atesedequeateoriapitagóricadosnúmeroséprodutodesuamatemática,

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oque,comoveremos,pareceser falso.Essamesmaobracontémdiversasassociações nãomatemáticas na formação da cosmologia numérica dessaescola,quenãopressupõeumamatemática.

A matemática atribuída a Pitágoras é a aritmética de pontinhos, queserádetalhadaadiante,masnãosesabeaocertoseelaéumacriaçãodeummatemático chamado Pitágoras, de integrantes de uma escola antigachamada pitagórica (mas não de Pitágoras), ou dos neoplatônicos eneopitagóricosdaAntiguidade,comoJâmblicoeNicômaco.Aconcepçãodospitagóricos sobre a natureza parte da ideia de que há uma explicaçãoglobalquepermite simbolizara totalidadedo cosmos, e essaexplicaçãoédada pelos números. O mundo é determinado, antes de tudo, por umarranjobem-ordenadoe talordemsebaseiano fatodequeascoisassãodelimitadasepodemserdistinguidasumasdasoutras.Quandosedizqueas coisas podem ser distinguidas não signi ica que elas não possam serdiferentes, e sim separadas umas das outras, logo, as coisas do mundopodemsercontadas.

Pensandonasgotasdeáguanomar,oqueéprecisoparaquepossamsercontadas?Quepermitamserdelimitadas,distinguidasumasdasoutras.Seissoforviável,aindaquesejamuitodi ícilcontá-las,asgotasdeáguadomarserãopassíveisdeseremcontadas.Paraospitagóricostodasascoisasque compõem o cosmos gozam dessa propriedade, o que os levou aconsiderar que as coisas consistem de números. Como uma dascaracterísticas principais das coisas reside no fato de poderem serorganizadas e distinguidas, as propriedades aritméticas das coisas, paraeles,constituemoseuserpropriamentedito,eoserdetodasascoisaséonúmero.

Os pitagóricos, contudo, embora sejam vistos como os primeiros aconsideraronúmerodopontodevista teórico, enãoapenasprático,nãopossuíam,de fato,umanoçãodenúmeropuro.DiferentementedePlatão,os pitagóricos não admitiam nenhuma separação entre número ecorporeidade,entreserescorpóreoseincorpóreos.Logo,nãoélícitodizerque o conceito pitagórico de número fosse abstrato. De certo ponto devista, dado seu caráter espacial e concreto, poderíamos a irmar que osnúmeros pitagóricos não eram os objetos matemáticos que conhecemoshoje, isto é, entes abstratos. Os números igurados dos pitagóricos eramconstituídosdeumamultiplicidadedepontosquenãoerammatemáticosequeremetiamaelementosdiscretos:pedrinhasorganizadassegundoumadeterminadaconfiguração.

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O ímpar e o par representavam o limitado e o ilimitado. A união doímpar e do par, análoga a um casamento, teria sido responsável pelaorigem do mundo. O limitado, princípio positivo, macho, e o ilimitado,fêmea, existiamantesdequalquer coisa.De seu casamento, surgiu oUm,que não é um número. O Um é ao mesmo tempo par e ímpar, serbissexuadoapartirdoqualosoutrosnúmerossedesenvolveram.Opareoímparsãoelementosdosnúmerosenaconjugaçãolimitado-ilimitadoestáaoposiçãocósmicaprimordialportrásdomundo,expressoemnúmeros.

Todos os números, ou seres, teriam evoluído a partir do Um. Osnúmeroseramdivididosemtiposassociadosaosdiferentestiposdecoisas.Para cada tipo, havia um primeiro, ou menor número, considerado sua“raiz”. As relações entre os números não representavam, portanto, umacadeia linear na qual todas as relações internas eram semelhantes. Cadaarranjodesignavaumaordemdistinta, com ligaçõespróprias.Daíopapeldosnúmeros igurados namatemáticapitagórica.Essesnúmeroseram,defato, igurasformadasporpontos,comoasqueencontramosemumdado.Não é uma cifra, como 3, que serve de representação pictórica para umnúmero,masadelimitaçãodeumaáreaconstituídadepontos, comoumaconstelação.

O primeiro exemplo de número igurado é dado pelos númerostriangulares, nos quais os pontos formam iguras triangulares que sãocoleçõesdebolinhasindicandopedrinhas:

FIGURA1

Os números triangulares representados na Figura 1 podem serassociados aos nossos números 1, 3, 6, 10, 15 e 21, que possuem,respectivamente,ordemn=1,2,3,4,5e6.Emlinguagematual,onúmerotriangular de ordemn é dado pela soma da progressão aritmética

. Em seguida, temos os números quadrados,que,emnossosimbolismo,podemserescritoscomon2:

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FIGURA2

AsconfiguraçõesdaFigura2podemserassociadasaosnossosnúmerosquadrados 1, 4, 9, 16 = 12, 22, 32, 42. Para inalizar, segue o exemplo dosnúmerospentagonais:

FIGURA3

NaFigura3,osarranjoscorresponderiam,respectivamente,aosnossosnúmeros 1, 5, 12 e 22. É possível enxergar em tais exemplos a primeiraocorrência do estudodas sequências numéricas.No entanto, a concepçãode sequências dos matemáticos pitagóricos partia da observação visual,sendoumtipoparticulardearitmética igurada,distintadapraticadahoje.Osnúmeroseramconsideradosumacoleçãodiscretadeunidades.Dessascon igurações numéricas, os pitagóricos podiam obter, de forma visual,diversasconclusõesaritméticas,como:

a) todo número quadrado é a soma de dois números triangularessucessivos:

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FIGURA4

b) é possível passar de um número quadrado a um número quadradoimediatamente maior adicionando-se a sequência dos númerosímpares.NaFigura5, osnúmeros ímpares sãodadospelos contornosemformadeL,osgnomonsdospitagóricos:

x

FIGURA5

Apesar de os pitagóricos não atribuírem esse signi icado a taisconclusões, poderíamos traduzir os enunciados das Figuras 4 e 5 para alinguagematual,eteríamos,respectivamente,asregras:

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Até aqui, descrevemos como a matemática pitagórica concebia osnúmeros. É possível distinguir pelo menos três funções diferentes paraessasentidades,sobreasquaisasdoutrinaspitagóricasforamconstruídas:designavam posição ou ordem; determinavam uma forma espacial(números igurados); e, inalmente, exprimiam razões que permitiamcompreenderasleisnaturais.Trata-sedenoçõesdistintas,quepodemserassociadasamatemáticasdiferentesqueconviviamnoseiodaescola.

Comovimos,paraospitagóricos,todasaspropriedadesdascoisas,bemcomo seus modos e seus comportamentos, podiam ser reduzidas apropriedades que as coisas têm em virtude de serem contáveis. Emseguida, essas coisas eram comparadas por meio da razão ( logos) entreseus números. O emprego do termo logos em seu sentido matemático,significandorazão,éatribuídoaPitágorasedeviadesignaracomunicaçãode algo essencial sobre alguma coisa – por exemplo, a relação 3:4:5determinava a forma do triângulo retângulo. Mas não apenas os seresmatemáticos eram de inidos por razões. A razão exprimia uma relaçãoentrenúmerosque seencontravaescondidaemalgumacoisaepormeiodessarelaçãotalcoisapodiaserdescrita.

Matemáticaefilosofiapitagórica

Temosnotíciadequeaciênciamatemáticaeradividida,primeiramente,emduas partes: uma que tratava dos números; outra, das grandezas. Cadauma era subdividida em duas outras partes: a aritmética estudava asquantidades em si mesmas; a música, as relações entre quantidades; ageometria, as grandezas em repouso; e a astronomia, as grandezas emmovimento inerente. O conhecimento sobre esse aspecto da doutrina

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pitagórica vem daMetafísica de Aristóteles, que viveu aproximadamentedois séculos depois dos pitagóricos e pretendia usar suas teses paracriticarPlatão. ParaAristóteles, a iloso iapitagórica, que teriapontos emcomumcomoplatonismo,partedeumasemelhançaestruturalvagaentrecoisasenúmerosparaafirmarqueascoisasimitamosnúmeros.

Paracompreenderaverdadeiranaturezadascoisasexistentes,explicaAristóteles, os pitagóricos se voltavam para os números e as razões dasquaistodasascoisassãofeitas.Nadapodiaserconhecidosemosnúmeros.Tantoasquantidadesquantoasgrandezasdeviamser initaselimitadasaim de servirem de objeto para a ciência, uma vez que o in inito e oilimitado,segundoospitagóricos,nãoconvinhamaopensamento.

Ainda segundo Aristóteles,6 deve-se a algum membro da escolapitagóricaadoutrinadasduascolunas,listadasaseguir:

Limitado – IlimitadoÍmpar – ParUm – MuitosEsquerda – DireitaMacho – FêmeaRepouso – MovimentoReto – CurvoLuz – EscuridãoBom – MauQuadrado – Oblongo

A coluna da esquerda deve ser entendida como a do “melhor”. AinclusãodoMovimentonacolunadadireita,aquesereferea tudoqueéilimitado,deve-seao fatodequeosprincípiosnessacolunasãonegativos,ou inde inidos. Esse aspecto da iloso ia pitagórica era destacado porAristóteles para fundamentar sua conclusão de que há uma linha decontinuidadeentrepitagóricoseplatônicos.De fato, eleusavaessa tabeladeopostospara criticara separaçãobináriaplatônica segundoaqual, deumlado,temosoigual,imóveleharmônicoe,deoutro,odesigual,moventeedesarmônico.

Os tipos de ângulo formados pelo encontro de duas retas podem serclassi icadosconformeosmesmosprincípiosenumeradosnadoutrinadasduas colunas. Os pitagóricos separavam as três espécies de ângulo (reto,

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agudoeobtuso),eoprimeiro tipoerasuperioraosdemais,poisoânguloretoécaracterizadopela igualdadeesemelhança,aopassoqueosoutrosdois são identi icados de acordo com critérios de grandeza e pequenezrelativos ao ângulo reto, de inindo-se, portanto, por sua desigualdade ediferença. Tudo aquilo que pode ser de inido a partir de limites claros ésuperior ao que depende de critérios relativos demais e demenos, umavezqueolimiteéafontedaautoidentidadeedade inibilidadedetodasascoisas,aomenosnainterpretaçãodeAristótelesdadoutrinapitagórica.

O Ilimitado produz a progressão ao in inito, o crescimento e adiminuição,adesigualdadeetodaasortedediferençasentreascoisasquegera. Apenas o ângulo reto é produto do limite, uma vez que é reguladopelaigualdadeepelasimilitudecomqualqueroutroânguloreto,enquantoos outros dois tipos de ângulo podem diferir dentro de uma mesmacategoria(jáquedoisângulosagudosnemsempresãoiguaisentresi,bemcomo dois ângulos obtusos). A perpendicular é também um símbolo depureza e direção, pois pormeio delamedimos a altura das iguras e é apartirdelaquedefinimosoânguloreto.

A crermos em Aristóteles poderemos conjecturar que os triângulosretângulosmereciamlugardedestaquenadoutrinapitagórica, jáquesãoos únicos a conter um ângulo reto. Mas existiam práticas matemáticasindependentes da iloso ia que usavam triângulos retângulos na somadeáreas,oqueforneceriaumaexplicaçãomaisempíricaparaoestudodessasformas geométricas. Com o im de aproximá-los da iloso ia platônica,Aristótelescitaospitagóricoscomoosprimeirosaconsideraramatemáticaa partir de princípios, ou seja, os primeiros a relacionar matemática eiloso ia.Ateoriadosnúmerosdessaescolaseriaprodutodeseusestudosmatemáticos. No entanto, admite-se atualmente que essa teoria dosnúmeros tinhaumgrandecomponentenãomatemáticoenãoseguiaumaestruturadedutiva.

SegundoW.Burkert,essaaproximaçãoentrepitagóricoseplatônicosfoiuma construção de Aristóteles. A im de contestar essa tese, Burkertexplica que o núcleo da sabedoria para os pitagóricos derivava dotetractys, constituídopelosnúmeros iguradosquepodemseassociaraosnossos 1, 2, 3 e 4, que somam 10, número representado pelo triânguloperfeito.

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FIGURA6

Para Aristóteles, isso indicaria a presença de seres abstratos. Porexemplo, a partir dotetractys os pitagóricos teriam obtido as entidadesabstratas: ponto, reta, plano e sólido (como na Figura 6). No entanto,Burkert nota que essa tese está em franca contradição com outraa irmação do próprio Aristóteles, a saber, que não havia entre ospitagóricosanoçãodeponto,nosentidogeométricodotermo.Asunidades,desenhadascomopontosnosnúmeros igurados,possuemespessura(sãopedrinhas!).

Os pitagóricos não separavam os números domundo ísico, como faráPlatão. Os números são a natureza profunda de tudo o que pode serpercebido e mostram o poder de tornar compreensível a ordem e aharmoniadomundoempírico.Osnúmeros,paraospitagóricos,apareciammais no contexto de jogos, acompanhados de interpretação e reverência,doquenodeumapurateoria,denaturezaabstrata,caracterizadaporumtratamentodedutivo.

Aindaquediversos resultados geométricos encontradosnosElementosde Euclides sejam atribuídos a Pitágoras, deve-se ter cuidado ao inferirque o conhecimento geométrico da escola pitagórica é semelhante aodescritoporEuclides.Aoqueparece,amatemáticapitagóricapossuíaumcaráterbemmaisconcreto.Apesardeserinseparáveldoideal ilosó icodeexplicaromundopormeiodenúmeros,osnúmerospitagóricosnãoeramentidadesabstratas.

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Nãoháumteorema“dePitágoras”,esimtriplaspitagóricas

OenunciadomaisfamosoassociadoaonomedePitágoraséoteoremaqueestabelece uma relação entre as medidas dos lados de um triânguloretângulo: “Oquadradodahipotenusa é igual à somadosquadradosdoscatetos.”Hoje se sabequeessa relaçãoera conhecidapordiversospovosmaisantigosdoqueosgregosepodetersidoumsabercomumnaépocadePitágoras.Noentanto,nãoénossoobjetivomostrarqueospitagóricosnão foramos primeiros na história a estabelecer tal relação.O objetivo éinvestigar de que modo esse resultado podia intervir na matemáticapraticadapelospitagóricos,comascaracterísticasanteriormentedescritas.Ademonstraçãodesseteorema,encontradanos ElementosdeEuclides,fazusode resultadosque eramdesconhecidosna épocada escolapitagórica(ver Capítulo 3). Não se conhece nenhuma prova do teorema geométricoque tenha sido fornecidaporumpitagórico eparecepoucoprovávelqueelaexista.

Burkert a irma que o teorema “de Pitágoras” era um resultado maisaritméticoquegeométrico.Quandofalamosdearitméticanosreferimosaoestudo de padrões numéricos que estavam no cerne da matemáticapitagórica e que dizem respeito aos números igurados. Não deve terhavido um teorema geométrico sobre o triângulo retângulo demonstradopelos pitagóricos, e sim um estudo das chamadas triplas pitagóricas. Oproblema das triplas pitagóricas é fornecer triplas constando de doisnúmerosquadradoseumterceironúmeroquadradoquesejaasomadosdois primeiros.b Essas triplas são constituídas por números inteiros quepodemserassociadosàsmedidasdosladosdeumtriânguloretângulo.

FIGURA7

Provavelmente, os pitagóricos chegaram a essas triplas por meio do

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gnomon,queerasinônimodenúmerosímpares,formadospelasdiferençasentre números quadrados sucessivos. Os gnomons, que podem ser vistoscomo esquadros, forneciam uma técnica para a realização de cálculos.ObservandoaFigura7,podemoscalcularasequênciadosquadradoscomo deslocamento do esquadro, procedimento equivalente a somar asequênciadosnúmerosímpares.Porexemplo,paraobtero4apartirdo1,adicionamos ognomon de três pontos; para obter o 9 a partir do 4,adicionamos o próximognomon, que é o próximo número ímpar, 5.Seguindo esse procedimento, chega-se a uma igura na qual ognomontambémé umnúmero quadrado, constituído por nove pontinhos. Obtém-se, assim, a igualdade 16 + 9 = 25, que dá origem à primeira triplapitagórica:(3,4,5).

Esses seriam os procedimentos aritméticos usados para se obter astriplaspitagóricas.Ouseja,afórmuladePitágoraspertenceriaaocontextodosnúmeros igurados.Na tradição,poucas triplassãomencionadase (3,4,5)temumpapelespecial,pois3éomacho;4,afêmea;e5,ocasamentoque os une no triângulo pitagórico. Segundo Proclus, havia doismétodospara se obter triplas pitagóricas: um de Pitágoras, outro de Platão. Oprimeirocomeçapelosnúmerosímpares.Associandoumdadonúmeroaomenor dos lados do triângulo que formam o ângulo reto, tomamos o seuquadrado, subtraímosaunidadeedividimospor2, obtendoooutro lado,que forma o ângulo reto. Para obter o lado oposto, somamos a unidadenovamenteaoresultado.Seja3,porexemplo,omenordoslados.Toma-seoseuquadradoesubtrai-seaunidade,obtendo8,eextrai-seametadede8,que é 4. Adicionando a unidade novamente, obtemos 5, e o triânguloretânguloqueprocuramoséodelados3,4e5.

O método platônico começa por um número par, considerado um dosladosque formamoânguloreto.Primeirodividimosessenúmeropor2efazemos o quadrado de sua metade. Subtraindo 1 desse quadrado,obtemos o outro lado que forma o ângulo reto e, adicionando 1, o ladorestante. Por exemplo, seja 4 o lado. Dividimos por 2 e tomamos oquadradodametade,obtendo4.Subtraímos1eadicionamos1,obtendoosladosrestantes:3e5.

MÈTODOSPARAENCONTRARTRIPLAS

Em linguagem atual, sea é um número ímpar, podemos traduzir o método de Pitágoras naobtenção dos números , que satisfazem a relação . Já o

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métododePlatãoserefereàobtençãodosnúmeros2a,a2−1ea2+1,quesatisfazemarelação(2a)2+(a2−1)2=(a2+1)2.

Chegamos à estranha conclusão de que o famoso teorema “dePitágoras” era, para a escola pitagórica, um resultado aritmético e nãogeométrico,cujosigni icadoiaalémdoestritamentematemático.Ométodousadoparaencontrartriplaspitagóricasnãoésu icienteparaasseguraravalidade geométrica do teorema “de Pitágoras” em todos os casos. Talmétodo permite gerar algumas triplas, como (3, 4, 5), mas não todas astriplasdenúmerosquepodemmediros ladosdeumtriânguloretângulo,sobretudo porque essas medidas não são necessariamente dadas pornúmerosnaturais.Aoqueparece,ospitagóricosestavam interessadosnarelação“aritmética”expressapelastriplasemumsentidoparticular.Logo,pelocontextoemqueesse resultado intervém,nãoépossíveldizerqueoconhecimento aritmético das triplas pitagóricas seja o exato correlato doteorema geométrico atribuído a Pitágoras, daí as aspas empregadas aquiaofalarmosdoteorema“dePitágoras”.

Não se sabe, contudo, se no meio grego da época de Pitágoras eramconhecidasoutrasprovasapartirdeuma teoriadasrazõeseproporçõessimples.Ostriângulosretângulospodiamserusadosparasomaráreaseoresultado expresso pelo teorema “de Pitágoras” podia ser útil porpossibilitar encontrar um quadrado cuja área fosse a soma das áreas dedoisquadrados(comoveremosnoCapítulo3).

AnoçãoderazãonamatemáticagregaantesdeEuclides

Grande parte do que se conhece sobre a matemática na Grécia antigaparte de conclusões extraídas de um exameminucioso, por um lado, dosescritosdePlatãoeAristóteles, e, poroutro,dosElementosdeEuclides.Aversão mais popular é a de que esse livro de Euclides resulta de umacompilação de conhecimentosmatemáticos anteriores, ainda que a formadaexposiçãodevasercaracterísticadotempoedomeioemqueeleviveu.Não é possível con irmar essa tese, mas é fato que uma boa parte damatemática contida nessa obra associa-se a outros trabalhos gregos.Euclides apresenta dois tipos de teoria das razões e proporções.Há umaversãonolivroVIIquepodeseraplicadasomenteàrazãoentreinteirose

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é atribuída aos pitagóricos. A de inição contida aí é usada para razõesentre grandezas comensuráveis. A segunda versão, presumidamenteposterioràprimeira,estánolivroVeéatribuídaaomatemáticoplatônicoEudoxo.Essaúltimateoriadasrazõeseproporçõesébastanteso isticadaeseaplicaigualmenteagrandezascomensuráveiseincomensuráveis.

O historiador americano W. Knorr contesta a tese de que a primeiraversão da teoria das razões e proporções deva ser atribuída aospitagóricos, aomenos nomodo formal como ela é exposta nosElementos.Segundo o autor, o desenvolvimento formal da matemática deve ter seiniciadocomostrabalhosdeTeeteto,noiníciodoséculoIVa.E.C.Oconceitoderazãoencerraa ideiadecomparaçãode tamanhos.Portanto,qualquertipode comparaçãoentregrandezaspode ser encarada comouma teoriasobre razões. Há diversos exemplos pré-euclidianos envolvendo acomparação de grandezas. Alguns relatos históricos, escritos porAristóteles e seus seguidores, atestam a emergência, na segundametadedo século V a.E.C., de especialistas, como os geômetras. Ao contráriodaquelesque são considerados, por essesmesmos comentadores, ospaisfundadores da iloso ia, como Tales e Pitágoras, surgem, nessemomento,pensadoresquesededicamasaberesmaisespecí icosenãosão ilósofosuniversais.SeriaocasodeHipócratesdeQuios.

Ospoucosregistrosquetemosdaobradesse“geômetra”(talvezaquijápossamos designá-lo desse modo) trazem exemplos envolvendo razõesentre medidas de iguras geométricas. Acredita-se que Hipócrates tenhasidooautordaprimeiraobraescritaemumlivrode“elementos”,ouseja,com a apresentação sistemática da geometria. Infelizmente, poucosfragmentos sobreviveram. Seu trabalho mais conhecido é o estudo daslúnulas, que são porções de círculo compreendidas entre duascircunferências, incluindo a investigação de quadraturas. Os escritos deHipócrates constituemoúnicodocumentodo séculoVa.E.C. contendoumestudode razõeseproporçõesentre igurasgeométricas.Ele sabiaquearazão entre as áreas de dois segmentos de círculo semelhantes é igual àrazãoentreosquadradosdeseusdiâmetros.Essademonstração,deumaépoca bem anterior à de Eudoxo, exigia um conhecimento profundo derazõeseproporções.

SOBRESEGMENTOSDECÍRCULOSSEMELHANTES

Denomina-sesegmentodecírculoa regiãoplana limitadaporumacorda (c)eporumarco (s),cujoângulocorrespondenteθdevesermenorque180°.

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ILUSTRAÇÃO1

Utilizandoalinguagematual,aáreaAdeumsegmentodecírculoderaioR,cordac eânguloθpodeserobtidapormeiodadiferençaentreaáreadosetorcircularPOQeaáreado triânguloPOQ:

Dois segmentos de círculo, de inidos em círculos diferentes, são ditos “semelhantes” sepossuem o mesmo ângulo correspondente. Consideremos, então, dois segmentos de círculosemelhantes,comraiosRerediâmetrosD=2Red=2r,entãoarazãoentresuasáreasA1eA2 éigualàrazãoentreseusdiâmetros:

A noção de razão usada na época não equivalia a uma fração entrenúmeros.Oresultadoconsistiaemmostrarque“aáreadoprimeirocírculoestá para a área do segundo assim como o quadrado construído sobre odiâmetro do primeiro está para o quadrado construído sobre o diâmetrodosegundo”,ao invésdea irmarque .Nãosetratasomentedeuma diferença de linguagem, pois os métodos empregados eramgeométricos e lidavam com as grandezas envolvidas no problema, e nãocomsuasmedidasexpressasporletras.

Esses resultados, expostos em linguagem geométrica, apareceram noestudodeHipócratessobreaslúnulas.

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ILUSTRAÇÃO2

NaIlustração2,ABCéummeioquadrado, inscritonosemicírculoABC.SobreBCconstrói-seumsegmentodecírculo S,semelhanteaossegmentosdecírculoS1eS2descritossobreABeAC.Hipócratesusavaoprincípiodequedois segmentosde círculo equivalentespossuemamesma razãoqueosquadradosdescritossobresuasbases.Usandoo teoremadePitágoras,eleconcluiuqueS=S1+S2.7

Esse exemplo é o primeiro passo para o estudo mais geral sobre aquadraturadeoutrostiposdelúnulas,quepareceestaremrelaçãocomosesforços para encontrar uma solução para o problema da quadratura docírculo.Podeestaremjogo,aqui,ométodode“reduçãodeumproblema”,descritoporAristótelescomooprocedimentoquepermiteseaproximardasoluçãodeumproblemaque,todavia,nãosesaberesolver.

Voltando às duas teorias das razões presentes na geometria grega, ade inição apresentada nosElementos é abrangente o su iciente para quepossaenquadrar-seemambas:“Umarazãoéumtipoderelaçãoreferenteao tamanhoentreduas grandezasdemesmo tipo.” 8 Comparando as duasteorias das razões expostas por Euclides, há motivos históricos para seacreditarquea inadequaçãodateorianuméricaparatratarasgrandezasincomensuráveis tenha levado à busca de uma técnica que pudesse seraplicadaaelasdemodocon iável.Existiaumatécnica,chamadaantifairese,que já erausadaparanúmeros.Osmatemáticosdaépoca teriam tentadoestender,pormeiodesseprocedimento,a teoriadasrazõespara incluiracomparação entre duas grandezas incomensuráveis. Nesse contexto,surgiram questões técnicas di íceis com as quais osmatemáticos tiveramdelidar,oqueosterialevadoaexpressarateoriadasrazõesdeummodomaismeticulosoeformal,deformaaevitaroserroseenganosoriundosdeummodointuitivodecomparargrandezas.

Uma das hipóteses mais con iáveis, defendida por historiadores como

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Freudenthal,KnorreFowler,éadequeométododa antifaireseestavanabase de uma teoria das razões que era praticada, pelomenos, durante oséculo IV a.E.C. e que teria sido desenvolvida por Teeteto, matemáticocontemporâneodePlatãoepertencenteaoseucírculo. 9Fowlerargumentaque, antes de Euclides, era corrente uma teoria tratando somente derazões, baseada naantifairese, sem a investigação de proporções. UmaprovadissoseriaousonaturalqueEuclidesfazdapalavra“razão”( logos),sem de inir essa noção, em contextos que não envolvem a de inição dolivroVdosElementos.

Ométododaantifairese

A palavraantifairese vem do grego e signi ica, literalmente, “subtraçãorecíproca”. Na álgebra moderna, o procedimento é semelhante aoconhecidocomo“algoritmodeEuclides”esua funçãoéencontraromaiordivisor comum entre dois números. O procedimento das “subtraçõesmútuas”,ou“subtraçõesrecíprocas”,consisteem:dadosdoisnúmeros(ouduas grandezas), em cada passo subtrai-se, do maior, um múltiplo domenor,demodoqueorestosejamenordoqueomenordosdoisnúmerosconsiderados.Ométododaantifairesedescreveumasériedecomparações.Por exemplo, podemos pedir a um aluno que compare duas pilhas depedras.Seaprimeiratem60easegunda,26,concluímosque:

1)daprimeirapilhacom60pedrasépossívelsubtrair duasvezesapilhacom26pedras,eaindarestaumapilhacom8pedras;

2) da pilha com 26 pedras é possível subtrair três vezes a pilha com 8pedras,eaindarestaumapilhacom2pedras;

3) por im,apilhacom2pedrascabe,exatamente,quatrovezesnapilhacom8pedras.

A sequência “duas vezes, três vezes e quatro vezes exatamente”representa o número de subtrações que se pode fazer em cada passo.Podemoschamá-laderazãoeusaranotaçãoAnt(60,26)=[2,3,4]pararepresentar a razão antifairética 60:26. A escolha de grandezas quepermitem uma representação inita por números inteiros nem sempre épossível.

ParaFowler,osgregosentendiamarazão22:6,porexemplo,baseados

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no fato de que é possível subtrair 6 de 22 três vezes, restando 4; emseguida, subtrai-se 4 de 6, restando 2; inalmente, subtrai-se 2 de 4exatamente duas vezes. Logo, a razão 22:6 seria de inida pela sequência“três vezes, uma vez, duas vezes”. Podemos estender a técnica para acomparaçãodedoissegmentosdereta,porexemplo,AeB,sendoA>B.SeB não cabe um número inteiro de vezes em A, quando B é retiradocontinuamente de A sobra algum resto menor que B. Na Ilustração 3,retiramosduasvezesBdeA,obtendoR 1.Emseguida,retiramosumavezorestoR1deB,obtendoR2.Edepois,R2deR1,eassimpordiante.

ILUSTRAÇÃO3

EssaantifaireseequivaleafazerA=n0B+R1,emseguida,B=n1R1+R2,depois, R2 =n1R2 + R3, e assim por diante. O procedimento pode ou nãochegar ao im.Quando ele termina, amedida comum aos dois segmentosica associada a um terceiro segmento, R, que é o último resto não nuloencontradoequemedeossegmentosAeB. Issopermiteacharamedidacomum a dois segmentos e, assim, é possível reduzir a geometria àaritmética, pois cada segmento será representadopor suamedida.Nessecaso, a veri icação da semelhança entre iguras pode ser reduzida àveri icaçãodeumaproporçãoaritmética;eaproporçãopodeserde inidacomoumaigualdadederazõesentrenúmeros.

Masquandoaantifairesenãotermina,tem-seumcasoincomensurável.Nessa situação, as de inições de proporção pela igualdade de razões nãoserão mais aceitáveis e passarão a ser válidas apenas para o casoparticulardegrandezascomensuráveis.

Diz-se que duas grandezas estão namesma razão quando possuem amesmaantifairese. Se tentarmos encontrar a razão entre a diagonal e oladodoquadradopor talprocedimento,obteremos “umavez,duasvezes,duasvezes,duasvezes…”(comoserávistomaisà frente).Essasequência

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continua inde inidamente, o que atesta a incomensurabilidade das duasgrandezascomparadas.

Não se sabe, ao certo, em que exemplo a incomensurabilidade entreduasgrandezasfoiveri icadapelaprimeiravezepareceimprovávelqueométodo daantifairese tenha sido o responsável por essa descoberta.Proclusafirmaque:

A teoria das grandezas comensuráveis foi desenvolvida, primeiramente, pela aritmética e,depois, por imitação, pela geometria. Por essa razão, ambas as ciências de inem grandezascomensuráveis como aquelas que estão uma para outra na razão de um número para outronúmero,oqueimplicaqueacomensurabilidadeexistiuprimeiroentreosnúmeros.10

Isso indica que os matemáticos já possuíam uma noção decomensurabilidadeparanúmeros,tendoaunidadecomomedidadetodosos números. Em seguida, eles teriam estendido tal noção para asgrandezas, mas não puderam encontrar umamedida comum para todaselas.Apossibilidadedeexistiremduasgrandezasincomensuráveistornounecessárioousodatécnicadaantifaireseparaquesefundasseumanovateoria das razões, independente da igualdade entre os números. Comoa irmaFowler, essa técnica teria sidousadaparadesenvolveruma teoriaderazãoindependentedanoçãodeproporção.Segundoohistoriador,trêsnoçõesdistintasderazãoestariampresentesnatradiçãogrega:umavindadateoriamusical;outra,daastronomia(queteriaservidodebaseparaasde inições do livro V dosElementos); e uma terceira, baseada naantifairese.

A possibilidade de existirem grandezas incomensuráveis não teriarepresentado,assim,nenhumtipodeescândalooucrisenosfundamentosdamatemáticagrega.Aocontrário,suaexistênciaseriaumacircunstânciapositiva, pois teria sido responsável pelo desenvolvimento de novastécnicasmatemáticasparalidarcomrazõeseproporções.Noperíodopré-euclidiano, conforme algumas fontes indicam, as grandezas eramclassi icadas como comensuráveis em comprimentoou empotência (maisespeci icamente, em quadrado). Isso queria dizer que duas grandezasincomensuráveis, como o lado e a diagonal do quadrado, apesar de nãoserem comensuráveis em comprimento, são comensuráveis em potência,pois seus quadrados são comensuráveis. Se temos, por exemplo, umquadradodelado1,esseladonãoécomensurávelemcomprimentocomadiagonal (que sabemos medir ). No entanto, seu quadrado 1 écomensurável com o quadrado da diagonal, que é 2. É lícito dizer, então,queessasgrandezassãocomensuráveisempotência.c

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Essa distinção permite reduzir uma situação em que aparecem duasgrandezas incomensuráveis a uma outra na qual exista umacomensurabilidade potencial. Ou seja, para lidar com exemplos em queeram consideradas razões particulares, como aqueles tratados porHipócrates,nãoeranecessáriodesenvolverumateoriageraldasrazõeseproporções.Masoproblemadeconstruireclassi icaros incomensuráveisadquiriu importância durante o século IV a.E.C.11 Teeteto teria re inado aclassi icação das grandezas comensuráveis para incluir outras potências,alémdosquadrados.Esseestudo,queconstano livroXdosElementos deEuclides, incluía um tratamento mais detalhado dos incomensuráveis eteriademandadoumanovatécnicaparacomparargrandezasdessetipo.Atécnica daantifairese, que já era conhecida para números, servia a essepropósito e pode ter fornecido um meio para a constituição de umaprimeirateoriageraldasrazões.

A partir da descoberta dos incomensuráveis, a identi icação entregrandezasenúmeros,demodogeral,se tornouproblemática.Noentanto,as teses atuais sugerem que houve um desenvolvimento contínuo damatemática, e não uma ruptura, antes e depois do momento em que sepercebeu apossibilidadededuas grandezas serem incomensuráveis. Poroutro lado, a irmarmosquenãohouveuma crisenão signi ica diminuir aimportância da descoberta. Nesse caso, duas consequências relevantesmerecem ser investigadas. A primeira é que isso talvez tenha produzidoum divórcio entre o universo das grandezas e o universo dos números.ConformeAristóteles:

Paraprovaralgumacoisanãosepodepassardeumgêneroaoutro, istoé,nãosepodeprovarumaproposiçãogeométricapelaaritmética….Seogêneroédiferente,comonaaritméticaenageometria,nãoépossívelaplicardemonstraçõesaritméticasapropriedadesdegrandezas.12

Trataremos dessa primeira consequência no Capítulo 3, pois osElementosdeEuclidesseparamotratamentodasgrandezasdotratamentodos números. A segunda consequência relaciona-se à necessidade dedemonstração e ao desenvolvimento do método axiomático – no sentidogrego do termo –, o que será discutido nas seções inais deste capítulo.Antes de nos debruçarmos sobre tais consequências, resumiremos aconstruçãohistóricadomitodosincomensuráveis.

Hipóteses sobre a descoberta da

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incomensurabilidade

Reza a lenda que a descoberta dos irracionais causou tanto escândaloentreosgregosqueopitagóricoresponsávelporela,Hípaso,foiexpulsodaescola e condenadoàmorte.Não se sabedeondeveio essahistória,masparecepoucoprovávelquesejaverídica.Emumartigopublicadoem1945,“The discovery of incommensurability by Hippasos of Metapontum” (Adescoberta da incomensurabilidade por Hípaso deMetaponto), Von Fritzconjectura que a incomensurabilidade tenha sido descoberta durante oestudodoproblemadasdiagonaisdopentágonoregular,queconstituemofamosopentagrama.A lendadadescobertados irracionaisporHípaso foierigidaapartirdesseexemplo.Entretanto,oshistoriadoresqueseguimosaqui contestam tal reconstrução, uma vez que ela implica o uso de fatosgeométricos elaborados que só se tornaram conhecidos depois dosElementosdeEuclides.

Burkert desconstruiu uma série de lendas sobre a matemáticapitagórica.13 Já vimos que a aritmética dos pitagóricos não era abstrata,baseando-se em números igurados descritos por uma con iguraçãoespacial de pedrinhas, consideradas unidades com magnitude emanuseadasearrumadasempadrõesvisíveis.Essetipodearitméticaeosnúmeros irracionais são mutuamente exclusivos e seria mais plausívelconsiderarqueaincomensurabilidadetenhasidodescobertanocampodageometria. Em tal contexto, o problema diz respeito à existência degrandezas incomensuráveis e à possibilidade, ou não, de expressar arelaçãoentreelasporumarazãoentrenúmerosinteiros.

Não sabemos exatamente qual a importância da geometria na escolapitagórica, mas acredita-se que não tenha sido tão relevante quanto aaritmética. Para os pitagóricos, que praticavam aritmética com númerosrepresentadosporpedrinhaseestavampreocupadoscomteoriassobreocosmos, resumidas pelo enunciado “tudo é número”, a descoberta daincomensurabilidadenãodevetertidonenhumaimportância.Ateoriadosnúmeros desenvolvida por eles e a matemática abstrata, associada àgeometria, estavam em dois planos distintos: “tudo é número” nãosigni icava“todasasgrandezassãocomensuráveis”.Atesedeque“tudoénúmero” não se traduz na crença de que todas as grandezas podem sercomparadaspormeiodenúmeros,umavezqueoproblemageométricodacomparação de grandezas parecia não fazer parte do pensamentopitagórico.

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Burkert elenca diversos argumentos em favor da tese de que adescobertadosincomensuráveisnãotenharepresentadoumescândalonomeio pitagórico. Ninguém su icientemente instruído em matemáticapoderia icar impressionado com a existência da incomensurabilidade.Além disso, a conexão entre esse problema e a iloso ia pitagórica éduvidosa. Não se tem certeza nemmesmo da relação entre a descobertados incomensuráveis e a aplicação do teorema “de Pitágoras” (que nospermitiriaconcluirqueháumladodeumtriânguloretângulocujamedidaé ), uma vez que os chineses já conheciam o teorema e nem por issoconcluírampelairracionalidadedolado.

Aa irmaçãodequeadescobertadaincomensurabilidadeproduziuumacrisenos fundamentosdamatemáticagrega foiconsolidadaportrabalhosde historiadores da primeira metade do século XX. P. Tannery já haviaa irmado que tal descoberta signi icou um escândalo lógico na escolapitagórica do século V a.E.C., sendomantida em segredo inicialmente, atéque, ao se tornar conhecida, teve como efeito desacreditar o uso dasproporções na geometria. Um dos artigos mais in luentes a propalar aocorrência de uma crise foi “Die Grundlagenkrisis der griechischenMathematik” (A crisedos fundamentosdamatemáticagrega), deHasseeScholz,publicadoem1928,quefaziareferênciasomenteàpossibilidadedeterhavidoumacrisedosfundamentosdamatemáticagrega.Essesautorestambém são responsáveis por associar esse problema aos paradoxos deZenão,relaçãodesmentidahátempos.

O problema da incomensurabilidade parece ter surgido no seio daprópria matemática, mais precisamente da geometria, sem a relevânciailosó ica que lhe é atribuída. Ao contrário da célebre lenda, oshistoriadores citados, como Burkert e Knorr, contestam até mesmo queessa descoberta tenha representado uma crise nos fundamentos damatemática grega. Não se encontra alusão a escândalo em nenhumapassagem dos escritos a que temos acesso e que citam o problema dosincomensuráveis, como os de Platão ou Aristóteles. Aristóteles, aliás, nãocita o problema dos incomensuráveis nem mesmo em sua crítica aospitagóricos.

Na verdade, a descoberta da incomensurabilidade representou umanovasituaçãoquemotivounovosdesenvolvimentosmatemáticos–apenasisso. Logo, não seriam exatamente as lacunas nos fundamentos damatemática que teriam sido resolvidas com a de inição dos númerosirracionais, comosedizmuitasvezes.Essemododeveras coisasé típico

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doséculoXIXebemdiferentedoquemoviaomundogrego.Em “Impact ofmodernmathematics on ancientmathematics” (Impacto

damatemáticamoderna sobre amatemática antiga), Knorr interpreta asdiferentes versões da crise dos incomensuráveis que dominaram ahistoriogra ia em meados do século XX como um sinal da in luência depressupostos ilosó icos. Os estudos metamatemáticos do período forammarcados pelo questionamento em relação aos fundamentos damatemática, associado aos trabalhos de Dedekind, Cantor e Hilbert. Atentaçãodevernosgregosumacriseanálogaeraummododevalorizarostrabalhos do início do século XX, encarados como soluções para dilemasnãoresolvidospor2500anos.

Mas, ainda que não seja con iável a tese de que um pitagórico tenhadescobertoos incomensuráveis,edeque issotenhaprovocadoumacrise,tal problema existiu. Os matemáticos gregos que trabalhavam comaritmética no inal do século V a.E.C. conheciam o procedimento daantifairese, bem como o modo de empregá-lo no tratamento de algunssegmentos incomensuráveis. No entanto, esses resultados não erampercebidos como uma prova da incomensurabilidade desses segmentos,umavezqueoobjetivodaantifairesepoderiasersomenteodeaproximarrazõesentresegmentosincomensuráveis.

Uma opinião bastante difundida é a de que a incomensurabilidadetenhasidodescobertapelageometriagregaantiganasegundametadedosanos400a.E.C,maisprecisamenteentre430e410, e tenha sedifundidocom os trabalhos de Teeteto. Um dos primeiros exemplos a apresentar apossibilidadededuasgrandezasincomensuráveisteriasidooproblemadese usar o lado para medir a diagonal de um quadrado, o que exigeconhecimentos simples de geometria. Autores do século IV a.E.C., comoPlatão e Aristóteles, tratam da incomensurabilidade no contexto dacomparaçãoentreo ladoeadiagonaldeumquadrado,ecitamTeodoroeTeeteto. Apesar de terem sido os primeiros matemáticos de que temosconhecimento a realizarumestudo sobreos incomensuráveis, éprovávelque já se pudesse conceber a possibilidade de duas grandezas seremincomensuráveisanteriormente.

Oprocedimentodescritoaseguir,comalgumasadaptaçõesàlinguagematual, emprega a técnica daantifairese para mostrar que o lado e adiagonaldoquadradonãosãocomensuráveis.14

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Aantifaireseentreadiagonaleoladodeumquadrado

SejaoquadradoABCDdeladoABediagonalAC.SuponhamosqueABeACsejamcomensuráveis, logo,existeumsegmento,AP,aunidadedemedida,quemedeABeAC.Emprimeiro lugar,queremosconstruirumquadradomenor que ABCD cujo lado esteja sobre a diagonal AC e cuja diagonalestejasobreoladoAB.

SejaB1umpontoemACtalqueB1C=AB.MarcandoumpontoC1sobreAB (com B1C1 perpendicular a AC), podemos construir um quadradoAB1C1D1 de lados AB1 = B1C1 e diagonal AC1 sobre AB. Isso é possívelporqueCÂB=B1ÂC1 é ametadedeumângulo reto; eA 1C1 é umânguloreto.Logo,AĈ1B1é½reto;eotriânguloAB1C1éisósceles,comAB1=B1C1.

ILUSTRAÇÃO4

Mas como, por construção, BC = B1C, o triângulo BCB1 é isósceles etemos que (pois são retos).Isso signi icaqueo triânguloB1C1B também é isósceles e concluímos queBC1=B1C1.Podemos,assim,exprimiroladoeadiagonaldonovoquadrado,AB1eAC1,emfunçãodoladoedadiagonaldoquadradoinicial,ABeAC:

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AB1=AC−B1C=AC−ABAC1=AB−BC1=AB−B1C1=AB−AB1=AB−AC+AB=2AB−AC

Pela igualdade exposta acima, se AB e AC forem comensuráveis comrelaçãoàunidadedemedidaAP,o ladoeadiagonaldoquadradomenor,AB1 e AC1, também serão. Para concluir a demonstração, precisamosevidenciarque,domesmomodoqueconstruímosAB1C1D1sobreoladoeadiagonal de ABCD, podem-se construir novos quadrados,menores, dessavezsobreoladoeadiagonaldoquadradopequenoAB1C1D1.

Supondo que o lado e a diagonal do novo quadrado são,respectivamente, AB2 e AC2, como na Ilustração 5, temos demostrar queesses segmentos podem ser tornados menores do que qualquerquantidadedada. Isto é, repetimosoprocedimento anterior até obterumquadradodeladoABnediagonalACncujoscomprimentossãomenoresdoqueaunidadeAP(aquantidadedada),aindaqueestasejamuitopequena.

ILUSTRAÇÃO5

Feito isso, continuandooprocesso inde inidamente,paraqualquerqueseja a escolha inicial do segmentoAP, poderemos obter umquadrado deladoABnediagonalACn,comensuráveisemrelaçãoaAP,talquesechegueaABn<ACn<AP,oqueseráumacontradição,umavezqueAPéunidadedemedida. Se escolhermosAPmenor do que a escolha inicial, teremos omesmo resultado, logo, não será possível encontrar umamedida comumentreoladoeadiagonal:elessãoincomensuráveis.

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ACONTRADIÇÃOOBTIDANOPROCEDIMENTODAANTIFAIRESE

Acontradiçãonoprocedimentodaantifairesepodeserinterpretadaemlinguagematualdomodocomosesegue.CasoescrevêssemosAB=pAPeAC=qAP,poderíamosa irmarqueAB 1=qAP−pAP = (q − p)AP e AC1 = pAP − (q − p)AP = (2p − q) AP. A conclusão da demonstraçãoequivaleriaadizerqueentre0ep(medidadeAB),ouentre0eq(medidadeAC),poderíamosencontrar in initos inteirosquecorrespondemàsmedidasdossegmentosABieACi, oquenãoépossível.

Demonstraçãodequeo ladoeadiagonaldosquadradosconstruídospodemsertornadosmenoresdoquequalquerquantidadedadaEstaconclusãodecorredochamadolemadeEuclides,queserádescritonoCapítulo3,masdevetersidoconhecidoantesdeEuclides.Olemagaranteque, se duas quantidades são sempre menores do que a metade daquantidade inicial, elas podem ser tornadas menores do que qualquerquantidade dada. Nesse caso, será possível garantir a conclusão que nosinteressa semostrarmos queAB 1 eAC1 podem ser tornadosmenores doqueametadedo ladoedadiagonaldoquadradooriginal,ABeAC.Logo,restamostrarque(i)AB1<½ABe(ii)AC1<½AC.

Para obter a desigualdade (i), basta observar que AC1> AB1, uma vezqueAC1 éadiagonaldoquadradocom ladoAB1.AdicionandoosegmentoBC1a ambos, temos que AC1+ BC1 > AB1+ BC1. Mas BC1= AB1 (lados doquadrado)eAC1+BC1=AB,logo,AB>2AB1.

A desigualdade (ii) pode ser obtida traçando-se uma perpendicular aABporC1 eumacircunferência comcentroemA,passandoporM,pontomédio de AC, como na Ilustração 6. Essa circunferência intercepta aperpendicularemumpontoNe,porconstrução,AM=AN=½AC.MasANéahipotenusadotriânguloretânguloAC1N,logo,temosAC1<AN=½AC.

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ILUSTRAÇÃO6

OsegmentoAB1éorestoquepermanecequandoretiramosABdeAC.Podemos continuar esse procedimento subtraindo sempre o menor domaioronúmerodevezesqueforpossível,erepetindoaoperaçãocomosrestos obtidos.Ou seja, retiramosAB (uma vez) deAC e obtemos o restoAB1,quepodeserretiradoduasvezesdeAB,deixandoumrestoquepodeserretiradoduasvezesdeAB 1,eassimpordiante.Esseprocedimentonãotermina e permite concluir que aantifairese entre o lado e a diagonal doquadradoé(1,2,2,2…).Naconcepçãodaépoca,o inconvenienteresidianofato de o procedimento não terminar, o que caracterizaria uma “máantifairese”.

Emtermosmodernos,poderíamosperguntar: “Comoeles sabemqueoprocedimento não termina?” Ainda que não saibamos responder comprecisão, é importante notar que tal pergunta é característica damatemáticaatual,naqualosresultadosdeimpossibilidadenecessitamserdemonstrados. Faz mais sentido, no contexto da época, observar que oargumento empregadonão faz uso de umademonstraçãopor absurdo, oque indica sua anterioridade em relação a resultados geométricos queempregamessatécnica.

Na reconstruçãoqueapresentamos foram feitasalgumasadaptaçõesàlinguagemmatemáticamoderna.ÉprovávelqueaantifaireseentreoladoeadiagonaldoquadradofosseconhecidademodogeométriconosséculosVe IV a.E.C. sem que se atribuísse ao procedimento o valor de umademonstraçãodaincomensurabilidade.Outrahipótesesobreadescobertada incomensurabilidade, dessa vez no contexto da aritmética, tem sua

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origememumresultadoatribuídoaEuclides.No inaldo século IVa.E.C.,Aristóteles se refere à prova da incomensurabilidade em sua exposiçãosobre a técnica de raciocínio por absurdo, dizendo que: se o lado e odiâmetrosãoconsideradoscomensuráveisumemrelaçãoaooutro,pode-sededuzirqueosnúmerosímparessãoiguaisaospares;essacontradiçãoafirma,portanto,aincomensurabilidadedasduasgrandezas.15

Essaa irmaçãoéinterpretada,frequentemente,comoumaevidênciadeque os gregos conheciam uma demonstração de que a suposição dacomensurabilidade entre o lado e a diagonal do quadrado leva àcontradição de que um número deve ser par e ímpar ao mesmo tempo.Mas a demonstração desse fato faz uso de uma linguagem algébrica quenãopoderiatersidousadapelosgregosantigos.

Em um apêndice ao livro X dosElementos de Euclides, provavelmenteinterpoladoemumaépocaposterior, encontramosumaprovageométricalevandoàcontradiçãodequeumnúmeroímparseriaigualaumpar.Mastal demonstração possui características marcantes do estilo euclidiano,comoadistinçãoentregrandezaenúmero.Namatemáticagregaanteriora Euclides, os problemas geométricos eram tratados como se fossemcálculos com números. Foi justamente a descoberta dos incomensuráveisque provocou uma separação entre os universos das grandezas e dosnúmeros. A demonstração pré-euclidiana da incomensurabilidade nãopode ter se servido, portanto, dessa separação. Logo, a prova encontradanesseapêndicedevesertardiaecomcertezanãofoipormeiodelaquesedescobriuaincomensurabilidade.

Do momento em que os gregos perceberam a possibilidade de duasgrandezas serem incomensuráveis até a reestruturação da matemáticaoperada pelosElementos de Euclides muitos anos se passaram. A teoriadasproporçõesdeEudoxoapresentouumasoluçãoparaadi iculdadedesede iniremrazõesentregrandezasincomensuráveis.Talteoria,contudo,se desenvolveu por volta do ano 350 a.E.C., e, antes disso a geometriagregapermaneceuematividade,empregandotécnicasentãoconsideradaslegítimas.

Nãohá sinaisdeque amatemáticadesenvolvidanaGréciaduranteosséculos V e IV a.E.C. tivesse qualquer precaução quanto ao uso deprocedimentos heurísticos e informais.Há evidências, todavia, de que, nomeio dos ilósofos, os métodos usados pelos matemáticos eramquestionados.Porvoltadoano375a.E.C.,Platãocriticouosgeômetraspornão empregarem critérios de rigor desejáveis para as práticas

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matemáticas.Nãoporacasoo trabalhodeEudoxosedesenvolveunoseiodaacademiaplatônica.Sendoassim,aindaquenãopossamosdizerqueatransformação dos fundamentos da matemática grega é devida a Platão,esteexpressaodescontentamentodos ilósofoscomosmétodosadotadospelamatemáticaearticulaotrabalhodospensadoresàsuavoltaparaquesedediquemaformalizarastécnicasutilizadasindiscriminadamente.

OsElementosdeEuclidesrepresentam,nessecontexto,oresultadodosesforços de formalização da matemática para apresentar uma geometriaconsistente e uni icada que se aplique a grandezas quaisquer,comensuráveis ou incomensuráveis. Ainda assim, não podemos a irmarquesuamotivaçãosejaplatônica,comoveremosadiante.

OseleataseosparadoxosdeZenão

TemosnotíciadosparadoxosdeZenãopor fontes indiretas, comoa Físicade Aristóteles, e seus objetivos estão expostos no diálogoParmênides,escrito por Platão. Tais paradoxos são mencionados algumas vezes emconexãocomoproblemadosincomensuráveis.Noentanto,osargumentosde Zenão se voltam contra pressupostos ilosó icos. Além disso, adescoberta da incomensurabilidadedeve ter se dadodepois da época deZenão,oquenoslevaaconcluirqueseusparadoxosnadatêmavercomaquestão.Emlivrosdehistóriadamatemática,écomumtambémrelacionaressesparadoxosaodesenvolvimentodocálculo in initesimaledoconceitodelimite.Trata-se,noentanto,deumainterpretaçãoaposteriori.É incertoa irmar que houvesse qualquer procedimento in initesimal na época deZenãoepodemosquestionaratémesmoseseusparadoxos,paraalémdeseupapel ilosó ico,tiveramalgumarelevânciaparaodesenvolvimentodamatemáticapropriamentedita.

ZenãodeEleiaintegravaaescoladoseleatas,quetinhaemParmênidesum de seus expoentes. A iloso ia de Parmênides é conhecida por terinspiradoPlatão e, sobretudo, por conceber omundo como imutável: nãohá movimento, não há mudança, não há nascimento nem morte, não háespaço nem tempo.Os eleatas defendiam, portanto, a unidade do espaço,que deveria ser indivisível, e a permanência do ser no tempo, quecorresponde à ausência de mudança. Um dos procedimentos maisimportantes que a matemática atual pode ter herdado dos eleatas é ademonstração indireta, ou raciocínio por absurdo. Platão foi bastante

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in luenciado por esses pensadores e teria disseminado esse tipo deprocedimentoemseusesforçospara fundaramatemáticasobreasbasessólidasdademonstração.

Encontramos em alguns escritos a tese de que os pitagóricos foramferrenhosopositoresdeParmênides,eporissoZenãoteriaenunciadoseusparadoxos,paraexporaoridículoadoutrinapitagórica.Aindaquetaltesesejacontestadaporalgunshistoriadores,comoA.Szabó,anoçãopitagóricadenúmeroadmitia, comovimos,umaunidade indivisível, concebidacomoum ponto, mas com espessura. As coisas do mundo seriam constituídas,portanto, como pluralidades. Além disso, para Pitágoras, as sériesnuméricastestemunhamjustamenteaalteração,ouseja,amudança,oquefornece um caráter “generativo” àmatemática pitagórica: de um númeroobtemosoutroeoutro…

O pensamento dos eleatas busca ultrapassar a percepção efundamentar a iloso ia em bases não empíricas. A iloso ia do Uno negaveementementeapossibilidadedequeascoisaspossamsersubdivididas,jáqueessadivisãoimplicaaconstituiçãodeumapluralidade.Zenãoqueriamostrar, com seus paradoxos, que é absurdo considerar não apenas queas coisas são in initamente divisíveis,mas tambémque são compostas dein initos indivisíveis. Os paradoxos dizem respeito à impossibilidade domovimento,nocasodeadmitirmosquaisquerdessashipóteses.

Esses paradoxos contra o movimento só são conhecidos na formaexposta porAristóteles, como objetivo de refutá-los.Nenhum argumentomatemático é usado em sua contestação. O que impressionava os antigosnesses paradoxos é que um movimento não possa passar por umainfinidadedeetapasemumtempofinito.

Os dois primeiros paradoxos de Zenão mostram os impasses a quechegamos se consideramos que o espaço pode ser subdivididoin initamente. Os dois seguintes levam também a impasses, no caso deadmitirmosahipótesecontrária,ouseja,adequeasubdivisãodoespaçotermina em elementos indivisíveis. Mesmo que não seja verdadeira ahipótese de que Zenão seria um opositor dos pitagóricos, podemosobservarque,aomenosnessesúltimoscasos,seusparadoxoscontestamateoria pitagórica segundo a qual as coisas são números, pluralidades depontoscomespessura.

Aquileseatartaruga

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Suponhamos que Aquiles e uma tartaruga precisem realizar o percursoquevaideumpontoAatéumpontoB.A tartarugapartedopontoAemdireçãoaopontoBe,quandoelapassapelopontoP1,pontomédioentreAeB,Aquilesparteemdireçãoaesseponto.

MasquandoAquileschegaemP1, a tartaruga jáestápassandoporumponto P2, entre P1 e B. Aquiles caminhará, em seguida, em direção a P 2.Entretanto,quandopassarporP2, a tartaruga já estarápassandoporumponto P3 entre P2 e B. E assim por diante… Ou seja, se o espaço éin initamente divisível, o percurso realizado pela tartaruga pode serin initamentedividido.Sendoassim,seAquilesrealizaromesmopercursoda tartaruga subdividindo o percurso realizado por ela, ele jamaisconseguiráalcançá-la.

Esse paradoxo de Zenão indica a di iculdade de se somar umain inidade de quantidades cada vez menores e de se conceber que essasoma possa ser uma grandeza inita. Na matemática atual, temos umproblema análogo ao somar séries. Um exemplo simples para indicar adi iculdade de conceber que a soma de in initas parcelas pode ser umagrandeza initaémostrarque0,999999…éiguala1.Asériequepodeserusada para traduzir o problema de Zenão é½ + (½) 2 + (½)3 cuja somadeveseriguala1.

SOMADESÉRIESGEOMÉTRICAS

Uma série geométricaa +ar +ar2 +ar3 + … cuja razão satisfaz |r | < 1 é convergente e

Dicotomia

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ParaquepossamospercorrerumadadadistânciaABentreospontosAeB, é preciso percorrer primeiro a metade de AB, ou seja, AP 1. Mas parapercorrerAP 1 énecessáriopercorrerprimeiroametadedessesegmento,ou seja, AP2. Sendo assim, o paradoxo consiste em concluir que, se adistância AB pode ser in initamente subdividida, para iniciar ummovimento é preciso, em tempo inito, começar por percorrer in initassubdivisões menores do espaço, o que é impossível. Esse exemplo é ocontrário do anterior, pois teríamos demostrar que o espaço que sobra,apósessassubdivisõesinfinitas,ézero.

Flecha

Supõe-sequeoespaçoeotemposãocompostosdepartesindivisíveisquepodemos chamar, respectivamente, de “pontos” e “instantes”. Uma lechavoandoocupa,emumdadoinstantedovoo,umpontonoespaço.Opontoé,nessecaso,oespaçoocupadopelaprópria lecha.Noinstanteemquestão,a lecha ocupa, portanto, um espaço que é igual a ela mesma. Mas tudoaquiloqueocupaum lugarnoespaçoqueé iguala simesmonaverdadenãosemove,poisavelocidadeéavariaçãodoespaçocomotempo.Logo,temosumparadoxo,poisa lechaestáemrepousoacada instantedeseuvoo,nãopodendo,assim,estaremmovimento.

Emtermosatuais,podemosdizerqueaquiestáemquestãoanoçãodevelocidadeinstantânea.Qualovalordarelaçãoentreoespaçopercorridoeo intervalo de tempo gasto para percorrê-lo quando esse intervalo detempotorna-sepróximodezero?Comoé impossível imaginarummínimonãonulo,avelocidadedeveserzero,eomovimento,impossível.

Estádio

Obtemos aqui mais um paradoxo supondo que o tempo pode sersubdivididoatéumelementoindivisívelchamado“instante”.DadosA i,BieCi, comi podendo ser igual a 1, 2 ou 3, como na con iguração a seguir,supomosquecadaBchegueaoA(maispróximo)emuminstantequeéomenor intervalo de tempo possível; e que cada C chegue ao A (maispróximo) em um instante que é o menor intervalo de tempo possível.

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SejamAi,BieCicorposdemesmotamanho,dispostoscomosesegue:

Os Bi e os Ci movem-se de modo que, após um instante, ocupam asposiçõesabaixo:

Mas, para chegar a essas posições, cada C i passou por dois Bi e,portanto, o instante, considerado como o intervalo de tempo que cada Blevou para chegar a umA, não era omenor possível nem era indivisível.Issoporque,apartirdaposiçãoqueeraocupadaporB3,C1passouporB2echegouaB1nessemesmointervalodetempo,logo,poderíamosconsideraroinstantecomosendootempoqueC1 levaparachegaraB2,queémenordoqueointervaloconsideradoinicialmente,supostoomenor.

Cálculosedemonstrações,númerosegrandezas

Pitágorasélembrado,usualmente,comoopaidamatemáticagrega.Vimos,contudo, que sua teoria dos números era concreta, baseada emmanipulações de números igurados; sua aritmética era indutiva e nãocontinhaprovas. Pormeio de sua teoria era possível obter, gra icamente,generalizações sobre séries de números, mas as regras para a obtençãodessasséries,comoassériesdequadrados,eramdesenvolvidasdemodoconcreto. A abstração icava por conta da reverência que os pitagóricoscultivavam pelos números, empregados não apenas para ins práticos.Associadas a forças cósmicas, as propriedades dos números não podiamser consequências lógicas de sua estrutura, o que banalizaria suaspropriedades.

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Os pitagóricos sabiam que ímpar com ímpar dá par, e que ímpar compardá ímpar,mascadaumadessaspropriedadeseraobtidaapartirdosdiagramas igurados e não deduzidas umas das outras, como nos livrosaritméticos dosElementos de Euclides. No meio pré-euclidiano opensamento geométrico era so isticado, mas ainda não contava com ocaráter dedutivo expresso nosElementos. Com Euclides, a matemáticagregapassouasedistinguirporsuaestruturateórica.Lembremosqueosmesopotâmicos e egípcios também possuíam técnicas de cálculoelaboradas, entretanto seus métodos eram apresentados na forma desoluções para problemas especí icos, ainda que válidas para casos maisgerais.

Há diversas teses sobre o desenvolvimento, no meio grego, damatemática formal,axiomática, característicadosElementosdeEuclides.Amais difundida é a de que a geometria grega adquiriu esse estilo nocontextodaAcademia,quandoPlatãopassouaatribuirumvalorelevadoàmatemática como uma disciplina de pensamento puro, para além daexperiência sensível. Os eleatas, como Parmênides, já faziam uso dométodo de demonstração por absurdo e aplicavam formas lógicas naorganização de suas críticas a outros ilósofos. Encontramos emParmênides as primeiras tentativas de introduzir uma argumentaçãológica,naqualospensamentosprogridemsistematicamentedeumaoutro.Os eleatas, contudo, estavampreocupados comquestões ilosó icas, e nãohá motivos su icientes para acreditar que essa lógica da argumentação,tambémpresenteemPlatão,tenhain luenciadoosmatemáticosapontodeprovocarumareformulaçãonomododeexporseuconhecimento.Porqueentão o método dedutivo teria sido empregado na matemática grega equaisascausasdaadoçãodanoçãodeprova?

Problemas matemáticos complexos começaram a surgir por volta doquinto e quarto séculos a.E.C., como o de expressar o comprimento dadiagonal em termos do lado de um quadrado. Esse não era somente umproblema ainda não resolvido, era um problema que desa iava apercepção,alémdenãopoderserabordadosomentepormeiodecálculos.A lógica matemática e a prova dedutiva podem ir além do que éperceptível.Éverdadequeoseleatasjápropunhama irmaçõesemfrancacontradição com as evidências apresentadas pelos sentidos,mas a tarefademostrar que o pensamentodeve transcender a percepção sensível foiconcluídaporPlatão.

Noentanto,podehaverrazõesmenos ilosó icasparaentendermospor

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queamatemáticanoperíodopassoua serorganizadae sistematizadademodo formal. Por um lado, os matemáticos tinham de lidar com acomplexidadeeocaráterabstratodealgunsproblemasquecontradiziama intuição e não eram acessíveis por meio de cálculos. Por outro, aorganização em escolas, cujo objetivo era transmitir o conhecimentomatemático da época, pode ter gerado uma demanda pela compilação esistematizaçãodesseconhecimento.Anecessidadedecolocaremordemaaritméticaeageometriaherdadasdastradiçõesmaisantigas,bemcomoasdescobertasrecentes,deveterlevado,naturalmente,aumquestionamentosobre a forma de expor o conteúdomatemático. Tudo isso, somado a umambiente culturalmarcadopeloespírito crítico, comoodo séculoVa.E.C.,incentivava a expressão e a busca de critérios claros para arbitrar eescolher emmeio a opiniões con litantes. Essanecessidade encorajava ospensadoresare letirsobreacoerênciadeseuspressupostosbásicoscombaseemperguntascomo:Oqueéaverdade?Comodistinguiroverdadeirodofalso?Comocomunicaropensamento?

Háregistrosdeque,muitoantesdeEuclides,existiramdiversasoutrasobras organizadas como “elementos” de algum tipo de matemática, queprocuravam apresentar um extenso conhecimento de modo coerente. OpróprioHipócratesescreveu“elementos”dematemática.DuranteoséculoIV a.E.C., no contexto da Academia, os avanços da pesquisa matemáticamotivaramPlatãoeseusdiscípulosaproporqueopensamentoéfundadoementidadesabstratas,independentesdapercepçãosensível.Osesforçosformalistasdesseperíodopodemserprodutodeumaconjunçãoentre,porumlado,asistematizaçãojápraticadapelosmatemáticos,e,poroutro,umalegitimação ilosó icaquepodeterin luenciadoomododeexpor,apesardenão alterar, necessariamente, o modo de fazer matemática. Dessaconvergênciadeinteressessurgiram,porvoltadoséculoIIIa.E.C.,sistemasaxiomatizados de iloso ia e geometria, como as obras de Aristóteles eEuclides, que procuravam estabelecer critérios rígidos para a expressãodo conhecimento. É provável que essa rigidez tenha sido até mesmoprejudicial para o desenvolvimento matemático subsequente, conformeseráabordadonoCapítulo3.

Presume-se que a possibilidade de dois segmentos seremincomensuráveisestejarelacionadaaofatodeageometriapassaratratarde formas abstratas, o que remete à necessidade de demonstração. Adescobertadosincomensuráveislevouaquesedescon iassedossentidos,uma vez que estes não permitem “enxergar” que dois segmentos podem

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não ser comensuráveis. É necessário, portanto, mostrar que isso podeocorrer, ou seja, praticar geometria sobre bases mais sólidas do que asfornecidassomentepelaintuição.Nãoépossívelprecisar,noentanto,comoe quando se deu tal associação entre a incomensurabilidade e anecessidadededemonstração.

Uma das primeiras evidências diretas e extensas sobre a geometriagrega no período aqui considerado, para além de fragmentos oureconstruçõestardias,éodiálogoplatônicointituladoMênon,quesesupõetenha sido escrito por volta do ano 385 a.E.C. Após investigar com oescravo de Mênon o que é um quadrado e quais suas principaiscaracterísticas, Sócrates propôs o problema de encontrar o lado de umquadradocujaáreafosseodobrodaáreadeumquadradodelado2,comoodaimagemaseguir.

Sabemos que esse quadrado tem área quatro. Sócrates começa porperguntar ao escravo qual é a área da igura de área dupla; e eleresponde:oito.16

SÓCRATES – Bem, experimenta agora responder ao seguinte: quecomprimentoterácadaladodanova igura?Repara:oladodestemededoispés,quantomedirá,então,cadaladodoquadradodeáreadupla?

Oescravopensaqueconhecearespostaea irmaque,paraqueaáreasejaduplicada,oladodoquadradotambémdeveserduplicado.

SÓCRATES–Tudizesqueumalinhadupladáorigemaumasuper ícieduasvezesmaior?Compreende-mebem:nãofalodeumasuper ícielongadeum lado e curta do outro. O que procuro é uma super ície como esta[um quadrado], igual em todos os sentidos, mas que possua umaextensão dupla ou, mais exatamente, uma área de oito pés. Reparaagoraseelaresultarádaduplicaçãodeumalinha.

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ESCRAVO–Creioquesim.SÓCRATES–Será,pois,sobreestalinhaqueseconstruiráasuper íciedeoito

pés,setraçarmosquatrolinhassemelhantes?

ESCRAVO–Sim.SÓCRATES –Desenhemos,então,osquatro lados.Essaéasuper íciedeoito

pés?

ESCRAVO–É.SÓCRATES – E agora? Não se encontram, porventura, dentro dela essas

quatro super ícies, das quais cada umamede quatro pés [o quadradoescuro]?

ESCRAVO–Éverdade!SÓCRATES–Masentão?Qualéessaárea?Nãoéoquádruplo?

Sócrates mostra ao escravo que a área do quadrado cujo lado medequatro pés tem, na verdade, dezesseis pés e não oito (como pedidoinicialmente). O escravo percebe que o lado deve ter umamedida entredoisequatro,edáopalpitedequeoladodoquadradodeáreadupladevemedirtrêspés.

SÓCRATES – Pois bem: se devemedir três pés devemos acrescentar a essalinhaametade.Nãotemostrêsagora?Doispésaqui,emaisumaqui.Eo mesmo faremos nesse lado. Vê! Agora temos o quadrado de que

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falaste.

ESCRAVO–Elemesmo.SÓCRATES – Repara, entretanto: medindo este lado três pés e o outro

tambémtrêspés,nãoseseguequeaáreadevesertrêspésvezestrêspés?

ESCRAVO–Assimpenso.SÓCRATES–Equantoétrêsvezestrês?ESCRAVO–Nove.SÓCRATES–Equantospésdeveriamediraáreadupla?ESCRAVO–Oito.SÓCRATES–Logo,a linhade trêspésnãoéo ladodoquadradodeoitopés,

nãoé?ESCRAVO–Não,nãopodeser.SÓCRATES–Eentão?A inal,qualéoladodoquadradosobreoqualestamos

discutindo? Vê se podes responder a isso de modo correto! Se nãoqueres fazê-lo por meio de contas, traça pelo menos na areia a sualinha.

ESCRAVO–Mas,porZeus,Sócrates,nãosei!SÓCRATES – (Voltando-se para Mênon ) – Reparaste, caro Mênon, os

progressosqueatuarecordaçãofez?Ele,defato,nemsabiaenemsabequaléocomprimentodo ladodeumquadradodeoitopésquadrados.Entretanto, no início da palestra, acreditava saber, e tratou deresponder categoricamente, como se o soubesse; mas agora está emdúvida,etemapenasaconvicçãodequenãosabe!

MÊNON–Tensrazão.SÓCRATES – E agora não se encontra ele, não obstante, em melhores

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condiçõesrelativamenteaoassunto?MÊNON–Semdúvida!SÓCRATES – Despertando-lhe dúvidas e paralisando-o como a tremelga, d

acasolhecausamosalgumprejuízo?MÊNON–Denenhummodo!SÓCRATES–Sim,parece-mequefizemosumacoisaqueoajudaráadescobrir

a verdade!Agora ele sentirá prazer emestudar esse assuntoquenãoconhece, ao passo que há pouco tal não faria, pois estava irmementeconvencidodequetinhatodaarazãodedizererepetirdiantedetodosqueaáreadupladeveteroladoduplo!

MÊNON–Éissomesmo.SÓCRATES–Crêsqueanteriormenteaissoeleprocurouestudaredescobrir

oquenãosabia,emborapensassequeosabia?Agora,porém,estáemdúvida, sabequenão sabe e desejamuito saber! [Fica claro aqui que,paraSócrates,oaprendizadopressupõequeoaprendiz“saibaquenãosabe”.Aquelequepensaquesabe,nadaaprende.]

MÊNON–Comefeito.SÓCRATES–Diremos,então,quelhefoivantajosaaparalisação?MÊNON–Comonão!SÓCRATES – Examina, agora, o que em seguida a estas dúvidas ele irá

descobrir,procurandocomigo.Sólhefareiperguntas;nãolheensinareinada!Observabemseoquefaçoéensinaretransmitirconhecimentos,ouapenasperguntar-lheoquesabe.(E,aoescravo:)Responda-me:nãoé esta a igura de nosso quadrado cuja área mede quatro pésquadrados?Vês?

ESCRAVO–É.SÓCRATES–Aestequadradonãopoderemosacrescentaresteoutro,igual?

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ESCRAVO–Podemos.SÓCRATES–Eesteterceiro,igualaosdois?

ESCRAVO–Podemos.SÓCRATES–Enãopoderemospreencheroângulocomoutroquadrado,igual

aessestrêsprimeiros?ESCRAVO–Podemos.SÓCRATES–Enãotemosagoraquatroáreasiguais?ESCRAVO–Temos.SÓCRATES–Quemúltiplodoprimeiroquadradoéagrandefigurainteira?ESCRAVO–Oquádruplo.SÓCRATES–Edevíamosobterodobro,recordaste?ESCRAVO–Sim.SÓCRATES – E essa linha traçada de um vértice a outro de cada um dos

quadradosinterioresnãodivideaomeioaáreadecadaumdeles?

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ESCRAVO–Divide.SÓCRATES – E não temos, assim, quatro linhas que constituem uma igura

interior?ESCRAVO–Exatamente.SÓCRATES–Repara,agora:qualéaáreadestafigura?ESCRAVO–Nãosei.SÓCRATES – Vê: dissemos que cada linha nesses quatro quadrados dividia

cadaumpelametade,nãodissemos?ESCRAVO–Sim,dissemos.SÓCRATES–Bem;então,quantasmetadestemosaqui[nafiguraanterior]?ESCRAVO–Quatro.SÓCRATES–Eaqui?

ESCRAVO–Duas.SÓCRATES–Eemquerelaçãoaquelasquatroestãoparaestasduas?ESCRAVO–Odobro.SÓCRATES–Logo,quantospésquadradosmedeessasuperfície?

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ESCRAVO–Oito.SÓCRATES–Equaléoseulado?ESCRAVO–Estalinha[apontandoalinhacinzadafiguraacima].SÓCRATES – A linha traçada no quadrado de quatro pés quadrados, de um

vérticeaoutro?ESCRAVO–Sim.SÓCRATES – Os so istas dão a essa linha o nome de diagonal, e, por isso,

usando esse nome podemos dizer que a diagonal é o lado de umquadrado de área dupla, exatamente como tu, ó escravo deMênon, oafirmaste.

ESCRAVO–Exatamente,Sócrates!

Observamos, em primeiro lugar, que o escravo sabe realizar cálculos,uma vez que responde, prontamente, a todas as perguntas sobre oresultadodemultiplicações,alémdeconhecerosquadradosde3e4.Mas,paraSócrates,conhecerarespostademodosatisfatórionãoésaberfazeroscálculos,esimsabermostrarsobrequelinhadeveserconstruídooladodo quadrado que duplica a área do primeiro. Passo a passo, é precisoascenderaumnovotipodesaberquenãoécalculatórionemalgorítmico.É preciso mostrar a diagonal, e não importa nem mesmo que não sejapossívelcalcularquantoelamede.

Inicialmente, Sócrates havia perguntadoquanto mede o lado do novoquadrado; oque importava era, ainda, umaquantidade.De repente, essaquestãodesaparece.Aperguntasobrequantomedeadiagonalnãocheganemmesmoaserevocada, talvezporqueSócratessaibaqueessamedidanão pode ser encontrada no universo dos números admitidos até então.Mas,alémdisso,talvezelequisesseapresentaraoescravoumnovotipode

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conhecimento,noqualbasta exibir a linha sobreaqualoquadradodeveserconstruído.

Ageometriagregadaépocanãoeraaritmetizada,eessapropostapodeser um re lexo do pensamento corrente, que Platão pretende expor esistematizar, expandindo o universo da matemática para incluir nele oespaçoabstrato.Oqueosnúmerosnãopermitemconhecer–otamanhodalinha sobre a qual construir um quadrado de área dupla – pode serexplicadopor iguras:mostrara linha.Pormeiodamedida, as grandezaseramassociadasanúmeros, logo,entendidasporcálculos.Masouniversodos números e dos cálculos já não dará conta das grandezas e o sergeométricoseráconsiderado,daíemdiante,partedeumespaçoabstrato.

Servimo-nosdesseexemploparaenfatizarqueumadasconsequênciasmais importantes da descoberta dos incomensuráveis é a separação douniverso das grandezas do universo dos números. Se não sabemoscalcular,resta-nosmostrar.

Formasgeométricaseespaçoabstrato

Ageometria,talcomoaconhecemosatualmente,lidacomformasabstratas.Umquadradonão é oquadradoquedesenhamosnopapel; é uma formaabstrata, a forma “quadrado”. Os objetos geométricos de base – como oponto, a reta e o plano – tambémnão são concretos. O ponto é algo semdimensão, que não existe na realidade. Logo, esses objetos só podem serconcebidospormeiodeumaabstração.

Descreveremosbrevemente,paraencerrarestecapítulo,odestaquedanoçãodeespaçoabstratonopensamentodePlatão.Navisãoplatônica,osseres estão divididos entre o mundo inteligível, habitado pelas Ideias,transcendentes, e omundo sensível, onde estão os seres que podem serapreendidos pelos sentidos, cópias das Ideias. Para que possamos ver osobjetos domundo sensível precisamos da luz do Sol. O Sol reina sobre omundo sensível, assim como o Bem reina sobre o mundo inteligível. Osmundos inteligível,esensívelvariamnograude iluminação:sejapeloSol,sejapeloBem.NolivroVIdaRepública,Platãoosorganizaemumalinha:osensível,contendoascópiaseossimulacros;eointeligível,omodelo.

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O inteligível é dividido entre as ciênciasmatemáticas (juntamente comas ciências hipotéticas) e a dialética. A matemática parte sempre deprimeiros princípios: um conjunto de hipóteses a partir das quais sepoderá descer até as conclusões, que constituirão o conhecimentocientí ico.Nesseprocesso,objetos sensíveis se fazemnecessários,oqueémuitoclaronamatemática:raciocinarsobreumquadradohipotéticoexigeo emprego do desenho de um quadrado no quadro-negro, ainda quesaibamosque essequadradodesenhadonão é o verdadeiroquadrado.Adialética é um conhecimento de tipo distinto, que usa as hipóteses comopontodepartidaparaummundoacimadelas,noqualnãoháhipóteses.

Nomundo sensível, os seres são divididos segundo a luminosidade doSol, que pode aproximá-los dos objetos ideais que residem no inteligível.Mais próximas das Ideias estarão as cópias iéis, aquelas que podem serdistinguidasperfeitamentesobaluzdoSol,ouseja,oscorposcujoslimitesede iniçãosepercebemcomclareza.Mal-iluminadosemaisdistantesdasIdeias estão os simulacros, seres ilimitados como as imagens e sombrasque se formam na água e nos corpos brilhantes. Podem ser imagens,objetosda imaginação.Estesúltimos serãoapenas cópiasdos corpos,quejásãocópiasdeIdeias.

Entre as ciências hipotéticas, a geometria é o principal exemplo usadopor Platão. Essa ciência utiliza hipóteses e dados sensíveis para chegar aconclusõesdemodoconsistente.Umdeseus traçosdistintivoséo fatodeutilizar formas visíveis com o im, somente, de investigar o absoluto queencerram. Quando um geômetra pesquisa as propriedades de umquadrado desenhado no quadro-negro – cópia do quadrado ideal –, é overdadeiro quadrado que ele pretende simular e não meramente a suacópia. As verdades da Ideia só podem ser vistas com os olhos dopensamento, e em sua busca a alma é obrigada a usar os primeirosprincípios,descendendodestessuasconsequências.

Hoje, quando dizemos que um desenho não pode fornecer umademonstração matemática, estamos empregando exatamente o mesmoprincípio. A prova de uma verdade geométrica pode fazer uso de formas

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sensíveis, como desenhos, mas somente como auxiliares. O objetivo dageometriaéenunciarverdadessobreseresabstratos.Nocapítuloaseguirserá visto até que ponto osElementos de Euclides podem sercompreendidoscomoaencarnaçãodesseideal.

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RELATOTRADICIONAL

A OBRA Elementos, de Euclides, é vista como o ápice do esforço deorganizaçãodageometriagregadesenvolvidaatéoséculoIIIa.E.C.Porumlado, a irma-se que seria somente uma compilação de resultados jáexistentesproduzidosporoutros,oquetornaoseuautorummeroeditor.Por outro, celebra-se que esses trabalhos tenham sido expostos de ummodonovo,oquerevelariaapredominâncianaGrécia,nessaépoca,deumpensamento lógico e dedutivo. A transição para o pensamento dedutivo,que teria sua expressão na sistematização operada por essa obra, éfrequentementeassociadaànecessidadedefundarageometriapráticaembasesmais sólidas.Tal transformaçãoseriamotivada,entreoutrascoisas,pela percepção de algumas inconsistências no modo precedente de sefazergeometria,comooproblemadosincomensuráveisindica.

Também é comum nos livros de história da matemática ver oempreendimento de Euclides como uma resposta às exigências doplatonismo.Umavezqueamatemáticaabstrataeuniversaleravalorizadapelos ilósofosligadosaPlatão,eraprecisoestruturarageometriasegundotais padrões, o que teria motivado a construção do método axiomático-dedutivo dosElementos. Desse ponto de vista, a reestruturação dageometria grega decorreria de motivos de cunho ilosó ico, externos àmatemática.Namesma linhadepensamento, considera-se que as igurasgeométricas aceitáveis, a partir de Euclides, deviam ser construídas comréguaecompasso.

AsnarrativassobreosElementosreproduzem,assim,doismitos,ambosdeinspiraçãoplatônica:anecessidadedeexporamatemáticacombasenométodo axiomático-dedutivo e a restriçãodas construções geométricas àsquepodemserrealizadascomréguaecompasso.Oprimeiroteveorigem,principalmente, com Proclus; e o segundo, com Pappus. Proclus era umilósofoneoplatônicodoséculoVE.C.;Pappus,queviveunoséculo IIIE.C.,foi um importante comentador dos trabalhos gregos. Ambos estãoseparadosdeEuclidesporpelomenosquinhentosanos.

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a Segundoa lenda,naentradadaAcademiadePlatãoestava inscritaa seguinte frase: “Nãodeixeentrar quem não for versado em geometria.” Apesar de haver evidências arqueológicas dessainscrição,nãosepodedizerquetenhasidoescritaporPlatãonempornenhumdeseusdiscípulos.EmTheMathematicsofPlato’sAcademy:ANewReconstruction,D.FowlermostraqueessaassociaçãofoifeitaporautoresdistantesdaépocadaAcademia.bAlgunshistoriadoresdamatemáticadefendemquenaplacaPlimpton322háumindíciodequeos babilônios já estudavam as triplas pitagóricas, o que mostraria que a relação atribuída aPitágorasseriaconhecidanaBabilôniapelomenosmilanosantesdele.EssateseéquestionadaporE.Robson em “Neither SherlockHolmesnorBabylon: a reassessment of Plimpton322” e “Wordsandpictures:newlightonPlimpton322”.cOmesmoprocedimentoerarepetidoparapotênciassuperiores,como imdedriblaroproblemadosincomensuráveis.dTipodepeixequeemanadescargaselétricascapazesdeparalisarapresa.Emgrego,narkê,raizdapalavra“narcótico”.

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3.Problemas,teoremasedemonstraçõesnageometriagrega

SABE-SE MUITO POUCO sobre a vida de Euclides; nemmesmo é comprovadoque tenha nascido em Alexandria, como se a irma com frequência. Háevidências, contudo, de que seja autor, além dosElementos, de outrasobrasdematemática,sobrelugaresgeométricos,cônicasetc.Os Elementosde Euclides são um conjunto de treze livros publicados por volta do ano300 a.E.C., mas não temos registros da obra original, somente versões etraduçõestardias.Umdosfragmentosmaisantigosdeumadessasversões,encontrado entre diversos papiros gregos em Oxyrhynque, cidade àsmargensdoNilo,data,provavelmente,dosanos100daEraComum.

FIGURA1FragmentodosElementosdeEuclidesencontradoemOxyrhynque,noEgito.

NosElementos são expostos resultados de tipos diversos, organizados

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de modo particular. Do ponto de vista histórico, cabe perguntar até queponto o padrão que esse livro exprime era realmente preponderante namatemáticaque sedesenvolveuantes edepoisdeEuclides.Alémdisso, éfato,asconstruçõespropostasnessaobrasãoefetuadaspormeiodaréguae do compasso.Mas seria essa restrição decorrente de umaproibição deoutros métodos de construção? Teria essa determinação afetado toda ageometriadepoisdeEuclides?Dizerquearestriçãoàréguaeaocompassovale para toda a geometria grega signi ica a irmar que o conjunto daspráticasgregassegueumpadrãoderigorequetalpadrãofoiestabelecidopor Euclides. Mas, nesse caso, por que um matemático do porte deArquimedes, que viveu logo depois de Euclides, não seguiu a regra eempregoumétodosdeconstruçãonãoeuclidianos?

Um dos objetivos deste capítulo é relativizar a tese da in luênciaplatônica na reorganização da geometria, bem como o papel das técnicasdeconstruçãopropostasnosElementosnocontextodaspráticasgregasderesolução de problemas.Nas últimas décadas, diversos historiadores têmanalisado as origens das crenças sobre asmotivações de Euclides, e nosserviremosdealgunsdessesestudos.Naverdade,osrelatosdiretossobrea matemática grega no período euclidiano são bastante escassos. Dasfontes utilizadas, as mais antigas datam de uma época bem distante deEuclides, casodasobrasdeProclusePappus.Alémdisso,os comentáriosdo primeiro sobre osElementos de Euclides tinham a claramotivação dedefenderalgunsprincípiosdopensamentodePlatão.

Proclusa irma,porexemplo,asuperioridadedos teoremasemrelaçãoaosproblemas.Estesdiferemdaquelesporque lidamcomconstruções,aopassoqueos teoremasprocuramdemonstrarpropriedades inerentesaosseres geométricos. Segundo Proclus, os teoremas enunciam a parte idealdesses seres que pertence ao mundo das Ideias, e os problemasconstituem apenas um modo pedagógico de se chegar aos teoremas. Sedissermos que os ângulos internos de um triângulo são iguais a doisângulos retos, teremosumteorema,poisessapropriedadevalepara todotriângulo(nouniversodageometriaeuclidiana).

Todo enunciado universal sobre um objeto geométrico é um teoremageométrico. Os problemas são um primeiro passo para passarmos domundo prático à geometria. Para Proclus, seguidor de Platão, quando ageometria toca o mundo prático opera por problemas e só ascende aosabersuperiorpormeiodosteoremas.GrandepartedacrençaquetemosnamotivaçãoplatônicadeEuclidesdecorredautilizaçãodosComentários

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deProclus.AColeçãomatemática dePappuséoutradasprincipais fontesde conhecimento dos trabalhos matemáticos gregos, cujos registrosoriginais se perderam. Pappus classi icava os problemas geométricos doseguintemodo:

Osantigosconsideravamtrêsclassesdeproblemasgeométricos,chamados“planos”,“sólidos”e“lineares”.Aquelesquepodemserresolvidospormeioderetasecircunferênciasdecírculossãochamados “problemasplanos”,umavezqueas retase curvasqueos resolvemtêmorigemnoplano.Masproblemas cujas soluções sãoobtidaspormeiodeumaoumais seções cônicas sãodenominados “problemas sólidos”, já que super ícies de iguras sólidas (super ícies cônicas)precisam ser utilizadas. Resta uma terceira classe, que é chamada “linear” porque outras“linhas”, envolvendoorigensdiversas, alémdaquelasque acabei dedescrever, são requeridasparaasuaconstrução.Taislinhassãoasespirais,aquadratriz,oconchoide,ocissoide,todascommuitaspropriedadesimportantes.1

Aresoluçãodeproblemasgeométricosenvolvesempreumaconstrução,e o critério usado nessa classi icação baseia-se nos tipos de linhasnecessárias para efetuá-la. Além da régua e do compasso, são listadosmétodos que usam cônicas e curvas mecânicas, como a quadratriz, aespiraleoconchoidedeNicomedes,conhecidosantesdo imdoséculoIIIa.E.C.Asconstruçõescomréguaecompassonãopermitemresolver todosos problemas propostos pelos matemáticos gregos antes e depois deEuclides, que não se furtavam, por isso, a utilizar outros métodos.Recorrendo-se a cônicas e curvasmecânicas foram resolvidos algunsdosproblemas clássicos da geometria grega, como a quadratura do círculo, aduplicaçãodocuboe tambéma trissecçãodoângulo,estaumpoucomaistardiamente.

Isso mostra que a limitação a construções com régua e compassoveri icadanosElementosdeEuclidesnãoéumdadodageometriagregaesuas razões precisam ser compreendidas. A explicaçãode que se tratavadeumarestriçãoimpostapela iloso iaplatônica jánãoésatisfatória,umavezqueamatemáticaantiganãoparecetersidopartedeumexercíciodeiloso ia. A visão de que os matemáticos gregos se aferravam aosfundamentos e a padrões rígidos tem origem na história da matemáticadesenvolvida na virada dos séculos XIX e XX, período marcado porpesquisas sobre o rigor da matemática dessa época. O objetivo dostrabalhos de Hilbert, por exemplo, era justamente fundamentar ageometria euclidiana.Mas será que osmatemáticos daAntiguidade eramtãopreocupadosassimcomquestõesdefundamentoquantoosdo inaldoséculoXIX?

As concepções formalistas sobre as motivações da matemática grega,

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mesmo que parcialmente verdadeiras, não devem, no entanto, desviar aatenção de um ponto primordial: a geometria tem suas bases em umaatividade essencialmente prática – ainda que abstrata – de resolverproblemas. Veremos, neste capítulo, que problemas de construçãoenvolvendométodosdiversi icadosatravessaramaépocadapublicaçãodaobramaiordeEuclides.Discutiremos,alémdisso,algumashipótesessobrea restrição às construções com régua e compasso. E para entender asrazões do tipo de exposição encontrado nosElementos, assim como oobjetivo do encadeamento dedutivo de suas proposições, analisaremosseusenunciadosiniciais.Umadasexplicaçõespossíveisparaaorganizaçãodidática dessa obra é seu provável cunho pedagógico: transmitir osprincipais resultados da geometria da época de uma forma simples ecompreensível.Daíademonstraçãodosváriosresultados,aexplicitaçãodetodos os pressupostos usados nas demonstrações e a preferência peloencadeamento lógico – era necessário convencer os leitores de suavalidade.

Nos primeiros livros dosElementos, muitos resultados parecempertenceraumatradiçãoquepodemoschamarde“cálculodeáreas”,queinclui a transformação de uma área em outra equivalente, bem como asoma de áreas. Veremos que as proposições dos livros I e II podem serentendidas a partir dessas práticas, incluindo o teorema sobre ahipotenusa do triângulo retângulo, dito “de Pitágoras”. Evidentemente,quandosefalaaquideoperaçõescomáreas,éprecisoentendê-lasàluzdaconcepção euclidiana, na qual as grandezas não são expressas pornúmeros obtidos a partir de medidas. Avançando pelos livrossubsequentes dosElementos, descreveremos a singular teoria dosnúmerosaípropostaeomodocomosãodefinidasasrazõeseproporções.

Ao inal,utilizandoocasodeArquimedes,abordaremosalgunsmétodosquemarcaramageometriagregaequesedistinguemdosprocedimentoseuclidianos. Arquimedes nasceu mais ou menos no momento em queEuclidesmorreu, em torno da segunda década do século III a.E.C. Era deesperar, portanto, que o trabalho de Euclides tivesse uma in luênciamarcanteemsuaobra.Masnão foibemassim.ArquimedesnãopodeservistocomosucessordeEuclides;eseutrabalhonãoseinscreve,porassimdizer, em uma tradição euclidiana. Um exemplo disso é a utilização demétodos mecânicos de construção, caso da espiral de Arquimedes. Paratanto, discutiremos a tese de W. Knorr 2 de que Arquimedes exprimiriauma tradição alternativa aosElementos de Euclides, ligada aos trabalhos

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desenvolvidosporEudoxo.

ProblemasclássicosantesdeEuclides

Entre os diversos problemas matemáticos clássicos difundidos antes deEuclides estão o da duplicação do cubo e o da quadratura do círculo. Ofamoso problema da trissecção do ângulo será tratado por nós maisadiante,umavezquedevetersetornadoumproblemamaistardiamenteque os outros no contexto das re lexões sobre as técnicas de construção.Com relação à duplicação do cubo, existe uma lenda segundo a qual em427 a.E.C. Péricles teriamorrido de peste juntamente com um quarto dapopulação de Atenas. Consternados, os atenienses consultaram o oráculode Apolo, em Delos, para saber como enfrentar a doença. A resposta foique o altar de Apolo, que possuía o formato de um cubo, deveria serduplicado.Prontamente,asdimensõesdoaltar forammultiplicadaspor2,masissonãoafastouapeste.Ovolumehaviasidomultiplicadopor8,enãopor2.Apartirdessalenda,oproblemaqueconsisteem,dadaaarestadeumcubo,construirsócomréguaecompassoaarestadeumsegundocubotendo o dobro do volume do primeiro, icou conhecido comoproblemadeliano.

CombasenotestemunhodeEratóstenesdeCirene,queviveunoséculoIIIa.E.C.,eemescritosdematemáticosligadosaPlatãopode-seconjecturarque essa história deve ter sido fabricada no contexto da Academia dePlatão,porvoltadoséculoIVa.E.C.Nessaépoca,oproblemadaduplicaçãodo cubo já tinha ganhado notoriedade com os avanços efetuados porHipócrates.Naverdade,essegeômetratinhamostrado,noséculoanterior,queoproblemapoderiaserreduzidoaodasmeiasproporcionais.

Na época, alguns comentadores da obra matemática grega, comoEratóstenes,parecemnãoterapreciadoasoluçãodeHipócrates,umavezqueseumétodonãofornecedefatoumasoluçãoparaoproblemaoriginal,reduzindo-o a outro. Mas as meias proporcionais permitiam aplicar umavastagamadetécnicaspertencentesàteoriadasrazõeseproporções,que,supõe-se, era bastante desenvolvida então. A redução de um problemageométricoaoutro,mais fácil ouemmaior conformidade comas técnicasdisponíveis, parecia ser um recurso usado pela geometria grega. Naverdade, esse é um método comum na matemática de hoje: dado umproblema que não sabemos resolver, tentamos reduzi-lo a outro que

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sabemosresolver.Há diversas construções para as meias proporcionais que datam de

períodos posteriores e podem ser encontradas emTrês excursões pelahistóriadamatemática , de J.B. Pitombeira. Entre elas está a deMenecmo,que viveu por volta de 350 a.E.C. e foi aluno de Eudoxo. O seuconhecimento da teoria das razões e proporções permitia concluir, semusar equações, que o ponto que satisfaz o problema das meiasproporcionais é a interseção de duas cônicas, uma parábola e umahipérbole,queatualmenteseriamdadas,respectivamente,pelasequaçõesy2=bxexy=ab(obtidasdiretamentedaproporçãoa:x::x:y::y:b).

Assimcomoaduplicaçãodocubo,oproblemadaquadraturadocírculoprovavelmente também era conhecido por volta do século V a.E.C.Aristóteles a irma que Hipócrates teria fornecido uma prova falsa doproblemaemseu tratadosobreas lúnulas.ComomencionadonoCapítulo2,Hipócrateshaviademonstradoqueasáreasdedoiscírculosestãoumapara a outra assim como os quadrados de seus diâmetros. Os métodospresentes nesse trabalho incluem o daneusis (ou intercalação), que serádescritomais à frente, e oda aproximaçãode círculosporpolígonos comnúmerodeladoscadavezmaior.Essaaproximaçãoéencontradanotextodo ilósofoAntifonte,masdeveseratribuídaaHipócrates,comoargumentaKnorr.3

MEIASPROPORCIONAISEDUPLICAÇÃODOCUBO1

Escritoemnotaçãoatual,oproblemadasmeiasproporcionaisconsisteem,dadosossegmentosaeb, encontrarx ey, tais que . No caso particular em queb = 2a, a primeira dasduasmeiasproporcionaisxresolveoproblemadaduplicaçãodocubo,poisxéoladodeumcubocujo volume é o dobro do volume de um cubo de ladoa (x3 =2a3). Logo, o problema daduplicaçãodocubopodeserreduzidoaodasmeiasproporcionais.

Emumalinguagemgeométricasemelhanteàdaépoca,podemosdescreverassimoproblemada duplicação do cubo: na Ilustração 1, AK é o cubo descrito sobre o segmentoAB, que possuidiagonalAK.Damesmaforma,suponhamosqueBDsejaocubodescritosobreosegmentoCD.Épossíveldesenharosparalelepípedos retângulos comdiagonaisKPePN,demodoqueAK :BDsejaarazãotriplicadadarazãoAB:CD.Emnotaçãomoderna,teríamos .

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ILUSTRAÇÃO1

Feito isso, inserindoduasmeiasproporcionaisCDeEFentreo segmentoABe seudobro,ouseja, construindo esses segmentos de modo que , seria possível deduzirqueocubodescritosobreCDéodobrodocubosobreAB.

Não apresentamos a solução devido à sua complexidade e porque nossa intenção aqui ésomenteressaltaroaspectogeométricodoproblema.

1.B.Vitrac,“Dossier:lesgéomètresdelaGrèceantique”.

A di iculdade da extensão desse método quando o número de ladosaumenta inde inidamente só teria sido percebida por Eudoxo. ComoHipócrates acreditava no princípio da continuidade, não deve ter achadoinconveniente utilizar ométodo de aproximação de áreas de círculos poráreasdepolígonoscomumnúmerodeladoscrescendoindefinidamente.

COMOAPROXIMARAÁREADOCÍRCULOPORPOLÍGONOS

A área de um círculo pode ser aproximada pelas áreas de polígonos regulares inscritos (oucircunscritos)aumentando-seindefinidamenteonúmerodeseuslados.

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ILUSTRAÇÃO2

Veremosqueométododaneusis éuma técnicadeconstruçãoquenãopodeserclassi icadacomoconstruçãocomréguaecompasso,umavezqueemprega uma régua graduada. Em seu tratado sobre as lúnulas,Hipócrates usa construções porneusis que podem ser reduzidas aconstruçõescomréguaecompasso.Logo,oobjetivodeseutrabalhonãoéfornecer construções com régua e compasso para os problemasgeométricos, e sim encontrar qualquer construção possível, ou seja,resolveressesproblemas.

O papel de Hipócrates foi central na história dos problemas clássicos.Nos fragmentos que restaram de sua obra observamos que, apesar degrande parte dos casos por ele apresentados poder ser resolvida comrégua e compasso, ele optavaporoutrosmétodos. Conclui-seque, apesarde esses instrumentos serem populares, e de ser vasta a extensão dosproblemas que eles permitiam construir, outros métodos eramamplamente utilizados, antes e depois de Euclides. Durante o século IVa.E.C. foram introduzidas novas técnicas, em particular as queempregavam curvas especiais geradas por seções de sólidos (como ascônicas)oupormovimentosmecânicos(comoaespiral).Assoluçõesparaa duplicação do cubo exploravam uma vasta gama de métodosgeométricos, característicos da prática de resolução de problemas nesseséculo. Arquitas, por exemplo, chegou a usar a curva formada pelainterseçãodeumtorocomumcilindroparaduplicarocubo,bemcomoalinha curva de Eudoxo e a quadratriz, para trissectar o ângulo. Outrométodo muito utilizado era o da aplicação de áreas, já conhecido noperíodopré-euclidiano.

Alguns dos matemáticos que aperfeiçoaram essas diferentes técnicas

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eram próximos de Platão, como Eudoxo, e integravam a Academia. Essaconvergência entre interesses ilosó icos e geométricos levou muitosintérpretes a postular posições inapropriadas sobre a motivação dosgeômetras gregos pré-Euclides, como a de que Eudoxo teria sidoimpulsionado pelo desejo de resolver os paradoxos colocados por Zenãoemrelaçãoaoinfinito.

O objetivo desses trabalhos pode não ter tido, contudo, uma naturezaformal. Foi a busca de técnicas de resolução para os problemasgeométricos que manteve o campo matemático em movimento, gerandonovas pesquisas. A tarefa de resolver problemas não deve ter sidoconstrangida pela imposição da régua e do compasso, aomenos em suasetapas mais remotas. O objetivo principal dos geômetras era encontrarconstruções por qualquer método disponível. A restrição a um certométododeconstruçãoéuma limitação formal,advindadanecessidadededividireclassi icarocorpoderesultadosexistentes.Masatéqueocampoda geometria tivesse alcançado um tamanho considerável, com umagrande diversidade de resultados, não haveria necessidade de classi icarseguindocritériosformais.Cabeperguntar,portanto,seesseníveljátinhasidoatingidonotempodeEuclides.

A riqueza da investigação de problemas geométricos de construçãolevou a uma concepção mais clara sobre a natureza geral da arte deresolvê-los. Tal clareza, por sua vez, pode ter levado às primeirasdemandas de sistematização e ordenação da geometria, expressas nosElementos. Veremos, a seguir, algumas hipóteses sobre as razões dessaformalização, discutindo por que suas proposições são encadeadas demododedutivo e por que apenas construções com régua e compasso sãoempregadas.

Porquearéguaeocompasso?

O fato de nosElementos deEuclides as construções serem realizadaspormeiodaréguaedocompassodeuorigemàcrençadequeessaseriaumarestriçãodageometriaimpostapeloscânonesdaépoca.Comojádito,paraexplicaromotivodessarestriçãoécomumapelarparaa iloso iaplatônica.Porvalorizaramatemáticateórica,Platãoteriadesprezopelasconstruçõesmecânicas,realizadascomferramentasdeverdade.Aréguaeocompasso,apesar de serem instrumentos de construção, podem ser representados,

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respectivamente, pela linha reta e pelo círculo, iguras geométricas comalto grau de perfeição. Na realidade, nosElementos, as construçõesrealizáveis com régua e compasso são executadas por meio de retas ecírculosdefinidosdemodoabstrato.

Essas explicações são atravessadas, no entanto, por diversospressupostos implícitos. Euclides não a irma explicitamente, em lugarnenhum de sua obra, que as construções tenham de ser efetuadas comretasecírculos.Simplesmenteelassão,defato,realizadasdessemodo.NocasodePlatão,écoerentedizerquesuafilosofiaencaravaaretaeocírculocomo iguras geométricas superiores, mas também não há, em seusescritos, indicaçõesexplícitasdeimposiçãodessas igurascomoprotótiposparatodaageometria,nemdeproibiçãodousodeoutrasconstruções.

OresponsávelporcreditaraPlatãoarestriçãoàréguaeaocompassoéomatemáticoalemãoHermannHankel, queatuouna segundametadedoséculo XIX e trabalhou commatemáticos comoWeierstrass e Kronecker,conhecidos pela preocupação com os fundamentos da matemática. Em1874, Hankel publicou um texto histórico sobre a geometria euclidiana –Zur Geschichte der Mathematik in Alterthum und Mittelalter (Sobre ahistória da matemática na Idade Média e na Antiguidade) – contendoextrapolações com base em trechos da obra de Platão. Em uma tesemeticulosa4 sobre o papel da restrição à régua e ao compasso escrita em1936,masquecontinuaumareferênciasobreonascimentodessemito,oalemão A.D. Steele analisa por que a tese de Hankel é falsa e fornecealgumas hipóteses sobre as razões do uso exclusivo desses instrumentosnosElementos de Euclides. Referimo-nos especi icamente aosElementos,pois a restrição à régua e ao compasso não parece ser importante nemmesmo em outros escritos de Euclides. Essas regras de construção sãoenunciadas nos postulados do livro I dosElementos – que tratam dasconstruçõespermitidas–econstituemumaparticularidadedessaobra.Emoutros escritos importantes da geometria grega, como os de Apolônio ouArquimedes,alémdeseremusadosoutrosmeiosdeconstrução,aréguaeocompassonãosãoenunciadosexplicitamentenospreâmbulos.

Veremos que, apesar do destaque desses postulados na organizaçãodosElementos,seusentidoseriadeordemprática,maisdoquemeta ísicaouformalista.Comojádito,umadasexplicaçõesparaousodaréguaedocompassonessaobrapode ter sidodeordempedagógica.As construçõesfeitasdessemodosãomaissimplesenãoexigemnenhumateoriaadicional(comoseriao casodas construçõespormeiode cônicas).Dessepontode

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vista, a restrição não seria consequência de uma proibição, mas de umaotimização:deve-seusara réguaeo compassosemprequepossívelparasimplificarasoluçãodosproblemasdeconstrução.

Tal “simplicidade” pode ser esclarecida por meio do exemplo doprocedimento para construir um ângulo igual a outro ângulo dado. Aproposição I-23a dosElementos pede que se copie um ângulo (DCE, naIlustração 3) sobre uma reta dada a partir de um ponto dado (A, naIlustração 3). Para resolver o problema, Euclides forma o triângulo DCE,que será copiado sobre a reta. Logo, o problema de copiar um ângulo éreduzidoaoproblemadecopiarumtriângulo,oquejátinhasidoabordadonaproposiçãoanterior,I-22.

Emresumo,ométodoparacopiarângulospodeserobtidopelotraçadode duas circunferências, isto é, com o auxílio do compasso: seja o ânguloDCEdado. SobreumsegmentoFH,marcamosAG igual aCE eGH igual aDE. Estendemos então AH até F de modo que AF seja igual a CD. Emseguida,traçamosduascircunferências:umacomcentroAeraioAF;outracomcentroGe raioGH.MarcamosK,umdeseuspontosde interseção,eobtemosotriânguloKAG,igualaDCE.Sendoassim,oânguloKAGéigualaoânguloDCE.

ILUSTRAÇÃO3

Opapeldospostulados1,2e3dolivroIdosElementos–queconsistemna proposição das construções realizadas com régua e compasso –decorreria da praticidade que esses meios permitem obter. Na verdade,essasnãosãoasconstruçõespermitidas,masasrealmenteutilizadas,querdizer, as que bastam para fazer funcionar as outras construçõesnecessárias.

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Umasegundaexplicaçãoparaousoexclusivoda réguaedocompassoseria a necessidade de uma ordenação e de uma sistematização dageometria comvistas aumamelhorarquiteturadamatemática.Naépocade Euclides, o conjunto dos conhecimentos dos geômetras já estavabastante desenvolvido e era necessário ordená-lo. Essa ordem implicariauma gradação da matemática, do nível mais elementar em direção aosuperior.EEuclidesseteriaproposto,nosElementos,aexporamatemáticaelementardaépoca,aquelaquedemandasomenteoempregodaréguaedo compasso. Quer optemos pela motivação pedagógica ou por essasegundarazão,decunhoepistemológico,parecemaisadequadoentenderaexclusividadedaréguaedocompassonosElementoscomoumarestriçãopragmática cujo objetivo poderia ser apresentar um uso ótimo dosinstrumentos mais simples possíveis. Nesse caso, a mensagem implícitanessa obra seria: eis tudo o que se pode fazer em geometria com o usosomentedaréguaedocompasso.

Organização dos livros que compõem osElementos

OsElementosdeEuclidessecompõemdosseguinteslivros:

• Livro I: primeiros princípios e geometria plana de iguras retilíneas:construção e propriedades de triângulos, paralelismo, equivalência deáreaseteorema“dePitágoras”.

•LivroII:contémachamada“álgebrageométrica”,tratadeigualdadesdeáreasderetângulosequadrados.

• Livros III e IV: propriedades de círculos e adição de iguras, comoinscreverecircunscreverpolígonosemcírculos.

• LivroV: teoria das proporções de Eudoxo, razões entre grandezas demesmanatureza.

• Livro VI: aplicações do livro V à geometria, semelhança de igurasplanas,aplicaçãodeáreas.

• LivrosVII a IX: estudo dos números inteiros – proporções numéricas,númerosprimos,maiordivisorcomumeprogressõesgeométricas.

•LivroX:propriedadeseclassificaçãodaslinhasincomensuráveis.

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•LivrosXIaXIII:geometriasólidaemtrêsdimensões,cálculodevolumeseapresentaçãodoscincopoliedrosregulares.

Além de expor uma parte da matemática contida em alguns desseslivros, é nosso objetivo analisar historicamente suas proposições. É di ícilidenti icar teoremas dosElementos que tenham sido descobertos pelopróprio Euclides. Como já dito, discute-se mesmo até que ponto asdemonstraçõessãodesuaautoria.Oteorema“dePitágoras”,porexemplo,eraconhecidoantesdeEuclides,eseuconteúdoéobjetodaproposição I-47. Proclus atribui a demonstração dessa proposição a Euclides, mas elapodeservistacomoumamodificaçãodademonstraçãoencontradanolivroVI-31,atribuídaaHipócrates,poiséusadanaquadraturadaslúnulas.

O tipo de organização dosElementos também é objeto de extensaspesquisas,poisosresultadosdosprimeiroslivrosnãosãonecessariamenteos mais antigos, ou seja, a obra não é organizada de modo cronológico.Acredita-se que os livros VII a IX – os livros aritméticos dos Elementos,atribuídosaospitagóricos–sejamosmaisantigos.OslivrosII, IIIeIVnãoapresentamumaordemsequencialtãonítidaquantoadoslivrosI,VeVI,oquepode indicarqueaquelessejamanterioresaesses.Alémdisso,noslivros I a IV, as construções e provas são realizadas por métodos decongruênciaepelocálculodeáreasenãoempregamrazõeseproporções,que já eram conhecidas muito antes de Euclides. Isso poderia ser umindício de que eles teriam sido escritos depois da descoberta dosincomensuráveis,quedemandouumanovateoriadasrazõeseproporções.A partir desse momento, parece ter havido uma reorganização doconhecimento geométrico. A exposição de resultados envolvendosemelhança de iguras, por exemplo, que já eram bastante antigos, foiadiada para depois do livro V, uma vez que necessitava de uma teoriageral das razões e proporções para grandezas (incluindo asincomensuráveis).

Veremos na seção dedicada à teoria euclidiana dos números que ocritério para a proporcionalidade de dois números é muito similar aousado atualmente. Na proposição VII-19 a irma-se explicitamente (semempregar nossa notação simbólica) a condição de que a relação deproporcionalidadea está para b assim como c está para d é equivalente àigualdadea.d = b.c. Na proposição 16 do livro VI esse mesmo critério éenunciadoparagrandezas:quatrosegmentosderetasãoproporcionaisseo retângulo formadopelosextremos for igualao retângulo formadopelosmeios. Poderíamos deduzir, assim, que a noção de proporcionalidade

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apresentada nosElementos é equivalente à nossa. Mas o livro V propõeuma de inição muito mais complexa. Qual seria a motivação dessadefinição?

Um traço particular dosElementos é que as grandezas são tratadasenquanto taise jamais sãoassociadasanúmeros (aocontrário,nos livrossobre números, eles são tratados como segmentos de reta). Se tivermosduasgrandezasincomensuráveis,nãopoderemosexpressararazãoentreelascomoumarazãoentrenúmeros.Logo,asde iniçõesdeproporçãopelaigualdadederazõesentrenúmerosnãopodemseraceitáveisemtodososcasos. Daí a necessidade de uma de inição geral de proporção que valhaparagrandezasquaisquer,comoadolivroV.Comojávisto,apossibilidadedeexistiremduasgrandezasincomensuráveistornounecessáriaumanovateoriadas razõeseproporçõeseumnovo conceitodeproporcionalidade,independente da igualdade entre números. Alguns pesquisadores, comoFowler, a irmamqueo livroVdos Elementos, que contémuma teoriadasrazões e proporções, trata de resultadosmais recentes do que os outroslivros.

Resumindo,podemostraçaraseguintecronologia:oslivrosVIIaIX,queseriam os mais antigos, empregam uma linguagem ingênua de razões eproporções que estaria presente desde épocas muito remotas, antes dadescoberta dos incomensuráveis; os livros I a IV tratam de resultadossobre equivalência de áreas também antigos, mas as demonstraçõesevitam o uso de razões e proporções; no livro V é apresentada a novateoria das razões e proporções, servindo de base para o estudo deequivalênciadeáreasesemelhançade igurasdeumnovomodo,oqueéfeito no livro VI. Além disso, o livro I teria sido escrito com o intuito deapresentar os princípios, por isso exibiria um cuidado especial com oencadeamentodasproposições.

O encadeamento das proposições e o métododedutivo

Desdeo início dosElementos deEuclides,osenunciados sãodivididosemprimeiros princípios (de inições, postulados e noções comuns) e suasconsequências (problemas e teoremas). b Os primeiros princípiosencontram-senolivroI.Proclusenfatizaopapeldessesprincípioseexplica

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a distinção entre eles pormeio dos diferentes tipos de transmissão. Umade inição é um tipo de hipótese da qual o aprendiz não tem uma noçãoevidente, mas faz uma concessão àquele que as ensina e aceita-a semdemonstração. As de inições que iniciam osElementos5 fazem referênciaaos objetos matemáticos que serão utilizados ao longo da obra e quepossuemumconteúdointuitivo.Algunsexemplos:

LivroI–Definições1.Pontoéaquilodequenadaéparte2.Elinhaécomprimentosemlargura3.Eextremidadesdeumalinhasãopontos4.Elinharetaéaqueestápostaporigualcomospontossobresimesma5.Esuperfícieéaquiloquetemsomentecomprimentoelargura6.Eextremidadesdeumasuperfíciesãoretas…10.Equandoumareta,tendosidoalteadasobreumareta,façaosângulos

adjacentesiguais,cadaumdosânguloséreto,earetaquesealteouéchamadaumaperpendicularàquelasobreaqualsealteou

…15. Círculo é uma igura plana contida por uma linha (que é chamada

circunferência),emrelaçãoàqualtodasasretasqueaencontram(atéa circunferência do círculo), a partir de um ponto dos postos nointeriordafigura,sãoiguaisentresi

Na de inição 4, o termo “linha reta” designa o que hoje chamamos de“segmentode reta”.ÀmaneiradeEuclides,usaremosaquio termo“reta”comessesentido.Ade inição2forneceumsentidomaisgeralparaobjetoscomdimensão1(quepodemnãoserretas).Ade inição15estánaorigemda distinção entre círculo e circunferência encontrada em alguns livros-textoatuais.Apósasde inições,sãoenunciadosospostuladoseasnoçõescomuns.Umanoçãocomum,segundoProclus,éumenunciadodeconteúdoóbvio, tido facilmente como válido pelo aprendiz. Se alémde o enunciadoser desconhecido ele é proposto como verdadeiro por meio de algumaargumentação temos um postulado. Nesse caso, é necessário que aquelequeensinaconvençaoaprendizdesuavalidade.

LivroI–Postulados

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1.Fiquepostuladotraçarumaretaapartirdetodopontoatétodoponto2.Tambémprolongarumaretalimitada,continuamente,sobreumareta3.E,comtodocentroedistância,descreverumcírculo4.Eseremiguaisentresitodososângulosretos5. E,casoumareta,caindosobreduasretas,façaosângulosinteriorese

domesmoladomenoresdoquedoisretos,sendoprolongadasasduasretas, ilimitadamente, encontrarem-se no lado no qual estão osmenoresdoquedoisretos

LivroI–Noçõescomuns1.Ascoisasiguaisàmesmacoisasãotambémiguaisentresi2. E, caso sejam adicionadas coisas iguais a coisas iguais, os todos são

iguais3.E,casodeiguaissejamsubtraídasiguais,asrestantessãoiguais4.E,casoiguaissejamadicionadasadesiguais,ostodossãodesiguais…8.Eotodoémaiordoqueaparte9.Eduasretasnãocontêmumaárea

Hoje, a distinção dos tipos de pressupostos não é utilizada, mas éimprescindível lembrar que a matemática se faz sempre a partir deprimeiros princípios, admitidos como válidos sem demonstração. Osenunciados da matemática seguem-se, por demonstração, dos primeirosprincípios.Essaéade iniçãodométodoaxiomático-dedutivo.MasporqueEuclides usou esse método? Qual o objetivo dessa sistematização dageometria?

A tese mais reveladora a respeito do encadeamento das proposiçõesnosElementos, partindodeprimeirosprincípios, éadequeos resultadosforam enunciados de trás para a frente. Entre os primeiros princípios,alguns teriampor função construir osobjetos efetivamenteutilizadosnasdemonstrações. Depois de ter estabelecido as proposições que queriademonstrar,ouasconstruçõesquequeriaefetuar,Euclidesterialistadoosprincípios que permitiam deduzir essas proposições ou construir osobjetos nela utilizados. Para I. Mueller, 6 os princípios e os resultadosenunciados no livro I teriam como objetivo primordial permitir aconstruçãoabaixo:

ProposiçãoI-45

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Construir, no ângulo retilíneo dado, um paralelogramo igual à [ igura]retilíneadada.

ILUSTRAÇÃO4

A iguraretilíneadadaéumpolígono,massuaáreaétransformadanaáreadeumquadrilátero.cAideiaprincipalexibidanaIlustração5édividiropolígonoemtriângulos,T1,T2,T3,econstruirparalelogramos,P 1,P2,P3, talqueaáreadecadaPisejaigualàáreadecadaTi.Alémdisso,cadaânguloGi+1GiHi (i = 1, 2, 3) deve ser igual ao ângulo dado. As ferramentas pararealizar esse procedimento são fornecidas pelas proposições anteriores,comoa I-42,quemostra comoconstruirumparalelogramocomamesmaáreadeumtriângulo,quandoumângulodoparalelogramoéprefixado.

ILUSTRAÇÃO5

Como vimos, o objetivo da proposição I-45 é mostrar como se podeconstruirumparalelogramo,comângulodado,cujaáreasejaigualàdeumpolígono qualquer. Observemos que essa construção torna possívelrepresentaraáreadequalquerpolígonocomoumretângulo,umavezque

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o retângulo é um caso particular de paralelogramo, com ângulos retos.Paraentenderaimportânciadessaconstrução,éprecisosabercomoeramrealizadososcálculosdeáreasnageometriagrega.

Atualmente, medir é associar uma grandeza a um número. Sequisermossomarasáreasdedoispolígonos,teremosdecalcularaáreadecada um, por meio de uma fórmula, e somar os resultados (que sãonúmeros).Masnessemomentoasgrandezasnãoeramtratadaspormeiode associação a números. E como operar com grandezas, comocomprimentos e áreas, a não ser por meio de suas medidas? Esseproblema era resolvido pela busca de áreas equivalentes. Por exemplo,para “medir” a área de uma igura qualquer, deveríamos encontrar umaigura simples cuja área fosse igual à da iguradada. Essa igura simplesera um quadrado. Logo, o problema de encontrar a quadratura de umaigura qualquer era equivalente ao problema de construir um quadradocujaáreafosseigualàdafiguradada.

A proposição I-45 fornece uma construção clássica que é parte dosmétodosdeaplicaçãodeáreas.Ospassosparadescobriraquadraturadeum polígono qualquer eram os seguintes: usar a proposição I-45 paraencontrarumretângulocomamesmaáreadopolígonoe,emseguida,usara proposição II-14 para determinar o quadrado com a mesma área doretângulo (no livro II são fornecidos alguns procedimentos paratransformarumretânguloemumquadrado).Feitoisso,erapossívelsomarasáreasdosquadradospormeiodaproposiçãoI-47,enunciadalogoapósaconstruçãoobtidaemI-45,equeequivaleaoresultadoqueconhecemoscomo teorema “dePitágoras”.Omodo comoesse teoremaédemonstradon o sElementos será descrito na próxima seção, mas destacamos, deimediato,asuautilidadeparasomaráreasnocontextodageometriagrega.

SOMARQUADRADOSCOMPITÁGORAS

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ILUSTRAÇÃO6

Na Ilustração 6, temos a área do quadrado grande igual à soma das áreas dos quadradospequenos.Trata-sedafamosaigualdadea2=b2+c2.

ÉpossívelremontarretroativamentedaproposiçãoI-45àsconstruçõesdos postulados 1 e 2. Os procedimentos necessários para a construçãodemandadaemI-45são:ligarpontosaretasdadas,estenderretas,cortarsegmentos em partes iguais a segmentos dados, bissetar retas, erigirperpendiculares e, inalmente, copiar ângulos. Isso nos permite a irmarque muitas das proposições enunciadas antes da I-45 têm o papel defornecer as ferramentas necessárias à construção pedida em seuenunciado.

O objetivo de diversos outros resultados do livro I seria, portanto,permitiraconstruçãorequeridaemI-45pormeiodeoutrasmaissimples,oquecaracterizaumprocedimentotípicodosElementos.Seumpostuladofoiusadoparademonstrarumteorema(ouparaefetuarumaconstrução),esseteorema(ouessaconstrução)setornaumaverdadedisponívelparaademonstração de novos teoremas (ou para a realização de novasconstruções).Cadaresultadoconstituiabaseparaoaprendizadodenovosresultados.Osprimeirosprincípios servem,portanto, àdemonstraçãodosprimeiros resultados, que, em seguida, efetuarão o papel de premissaspara novas demonstrações. O encadeamento dedutivo das proposiçõespodesercompreendido,assim,comoabuscadeumaespéciedeeconomianaargumentação.

Demonstraçãoepapeldoteorema“dePitágoras”

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Daremos mais um exemplo de como as proposições do livro I sãoencadeadasparachegaraumademonstraçãodoteoremaqueconhecemoscomo sendo de Pitágoras. Euclides jamais emprega essa nomenclatura,nematribuioteoremaaPitágorasouaquemquerqueseja.SefoiEuclidesou não o autor da prova que transcreveremos aqui, também é umaquestãocontroversa.Proclusa irmaqueessademonstraçãoseriaaúnicacontribuição do próprio Euclides aos primeiros livros dos Elementos. Mastal a irmação é discutível, pois a prova que encontramos aqui se encaixaperfeitamente na tradição geométrica que marcou o período anterior aEuclides e que continha o chamado “cálculo de áreas”, ou seja, práticasgeométricasqueenvolviamaplicaçãodeáreas,buscadeequivalênciasdeáreaseoperaçõescomáreas.

Seguiremos o encadeamento de Euclides enumerando as proposiçõesque serão usadas na demonstração da proposição I-47. Essa proposição,cujo conteúdo é exatamente o do teorema que chamamos “de Pitágoras”,juntamente com sua recíproca, encerra o livro I dos Elementos. As outrasproposições desse livro podem ser vistas como etapas para ademonstração da I-47. Sendo assim, temosmais uma evidência de que oobjetivodoencadeamentodedutivodasproposiçõeseraenunciar,demodoordenado,osresultadosnecessáriosàdemonstraçãodeoutrosenunciadosimportantes. As proposições já demonstradas servem como verdadesintermediárias para a demonstração das posteriores, sem que sejanecessáriorecorreraosprimeirosprincípios.

Vamoscomeçarporumaproposiçãoqueenunciaocasodecongruênciade triângulos conhecido como LAL (lado-ângulo-lado). Ou seja, se doistriângulos têm dois lados iguais e os ângulos formados por eles tambémiguais,entãoostriângulossãocongruentes.Ousodotermo“congruente”ébemmais recentee temcomoobjetivo resolveruma inconsistência lógicacolocadapela formalizaçãoposteriordageometriaeuclidiana.Na lógica, oprincípio da identidade a irma que uma coisa só é igual a si mesma.Portanto, dois triângulos ou duas iguras geométricas quaisquer nãopodem ser iguais. Daí o emprego do termo “congruente”, que signi ica,intuitivamente, que duas iguras podem ser colocadas uma em cima daoutra.UsaremosalinguagemdeEuclides, logo,diremostambémqueduasiguras geométricas são iguais quando são congruentes ou quandopossuemsomenteáreasiguais.

ProposiçãoI-4

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Sedoistriângulostiverem,respectivamente,doisladosiguaisadoisladosese os ângulos compreendidos por esses lados forem também iguais, asbasesserãoiguais,ostriângulosserãoiguaiseosdemaisângulosquesãoopostosaladosiguaisserãotambémiguais.

Traduzindo:seAB=DE,BC=EFe = ,entãoABCéigualaDEF,comovemosnaIlustração7.

ILUSTRAÇÃO7

ProposiçãoI-38Os triângulos que estão sobre bases iguais e nas mesmas paralelas sãoiguaisentresi.

ILUSTRAÇÃO8

Traduzindo: sedois triângulosABCeDBCpossuemamesmabase e oterceiro vértice em uma paralela à base, então eles têm áreas iguais.Atualmente, dizemos que dois triângulos têm áreas iguais se possuem amesma base e a mesma altura, uma vez que a área é calculada pela

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fórmula (base × altura) / 2.Como tratamos aqui de uma tradiçãogeométricaquenãoassociavagrandezasanúmeros,nãosemediamabasee a altura para calcular a área. A proposição I-38 procura dizer em quecasosduasáreassãoequivalentessemquesejaprecisocalculá-las.Ora,seo terceiro vértice de dois triângulos está em uma paralela à base, elespossuemasmesmasalturas.Comoédadoqueasbasessãoiguais,elestêmtambém a mesma área. As duas últimas proposições do livro I sãojustamente o resultado conhecido como teorema “de Pitágoras” e o seurecíproco.

ProposiçãoI-47Nos triângulos retângulos, oquadrado sobreo ladoque se estende soboânguloretoéigualaosquadradossobreosladosquecontêmoânguloreto.

ILUSTRAÇÃO9

Demonstração: Seja o triângulo retângulo ABC, com ângulo reto BAC.Queremosmostrarqueaáreadoquadradoconstruído sobreo ladoBCéigualàsomadasáreasdosquadradosconstruídossobreosladosABeAC,que formam o ângulo reto BAC. Vamos ilustrar a demonstração com

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igurasquenãoforamusadasporEuclides,masmanteremosoespíritodesua prova. Descrevemos sobre cada lado um quadrado e vamosmostrarqueaáreadoquadradoconstruídosobreo ladoBCpodeserobtidapelasoma de dois retângulos, um deles com área igual à do quadradoconstruídosobreAB(emcorbrancanaIlustração10)eooutrocomáreaigualàdoquadradoconstruídosobreAC(decorcinza).

ILUSTRAÇÃO10

OquadradoBDECéconstruídosobreBCeosquadradosABFGeACIH,respectivamente,sobreABeAC.Emseguida,traçamosapartirdopontoAuma reta AL, paralela a BD, e traçamos também duas retas AD e CF,formandonovostriângulosABDeCBF,comonaIlustração11.

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ILUSTRAÇÃO11

Queremosmostrarqueessestriângulos(emcinza-escuronaIlustração

ILUSTRAÇÃO12

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OladoABdeABDéigualaoladoFBdeCBF,porconstrução.Omesmovale para os lados BD e BC. Logo, para os triângulos serem congruentes,bastamostrarqueosângulosABDeCBFsãoiguais,poispelaproposiçãoI-4bastaostriângulosteremdoisladoseoânguloformadoporessesladosiguais.Os ângulosDBC e FBA, por serem retos, são iguais. Adicionandoomesmo ângulo ABC a ambos, o total ABD será igual ao total CBF. Então,temosqueotriânguloABDéigualaotriânguloCBF.

QueremosmostrarqueaáreadoquadradoABFGéigualàdoretânguloBDLK. Os próximos passos para concluir essa demonstração são osseguintes:

1. Mostrar que a área do triângulo ABF, que é metade do quadradoABFG,é igualàáreadotriânguloDBK,queémetadedadoretânguloBDLK(comovemosnaIlustração13).

2. Para isso,mostraremosquea áreadeABFé igual àdeCBFequeaáreadeDBKéigualàdeABD.

3. Como já mostramos que a área de ABD e de CBF são iguais,concluiremosqueaáreadeABFé igualàáreadeDBK,assim,aáreadoquadradoABFGseráigualàdoretânguloBDLK.

ILUSTRAÇÃO13

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Como os ângulos BAC e BAG são retos, os segmentos CA e AG estãosobreumamesmareta.ComoessaretaéparalelaaBF, temosqueCBFeABFsãotriângulosdemesmabasecomoterceirovérticeemumaparalelaa essa base. Logo, pela proposição I-38, eles possuem amesma área. Demodoanálogo,comoALfoiconstruídaparalelamenteaBD,temosqueABDeDBKsãotriângulosdemesmabasecomterceirovérticeemumaparalelaà base, sendo assim, possuemamesma área. Esse parágrafo, juntamentecomoanterior,concluiaetapa2.

Utilizando um raciocínio análogo, poderíamos demonstrar que oretânguloCKLEéigualaoquadradoACIH.Dessaforma,oquadradointeiroBDEC construído sobre o lado BC, oposto ao ângulo reto BAC, é igual àsoma dos dois quadrados ABFG e ACIH, construídos, respectivamente,sobre os lados AB e AC, que formam o ângulo reto. Isso conclui ademonstração. Notamos, em primeiro lugar, que não foi usado aquinenhum resultado de razões e proporções. Hoje, é comum encontrarmosdemonstrações do teorema “de Pitágoras” que usam semelhanças detriângulos expressas por meio de proporções. Por que Euclides nãoempregouumaargumentaçãodessetipo?Poderíamosresponder:

(i)Porquenãoconheciaosresultadossobresemelhançadetriângulosenãopossuíaasnoçõesderazãoeproporção.Essaexplicaçãoéhistoricamente inadequada,poisháregistrosanterioresaEuclidesemqueessasnoçõessãousadas.

(ii) Porque quis evitar esse uso, uma vez que as antigas noções de razão eproporção tinham sido colocadas em questão com a descoberta dosincomensuráveis.Essaéumarespostaplausível,maspoderíamosperguntarporque,nessecaso, Euclides não adiou a demonstração do teorema “de Pitágoras” paradepoisdolivroV,quandoéexpostaumateoriaderazõeseproporçõesquevale para quaisquer grandezas. Na verdade, encontramos uma novademonstração,pormeioderazõeseproporções,naproposição31dolivroVI.

(iii) No contexto da geometria que Euclides quis expor nos primeiros livrosdosElementos,o teoremaquechamamos “dePitágoras” faziapartedeumacultura matemática que tinha como prática o que podemos nomear de“cálculo de áreas”. Isso envolve resultados sobre aplicação de áreas,

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equivalênciadeáreasesomadeáreas.A demonstração que acabamos de fornecer interpreta o teorema “dePitágoras” comouma relação entre propriedades dos quadrados erigidossobreosladosdeumtriânguloretângulo,enãocomoumarelaçãométricaentre esses lados. Sendo assim, a demonstração usa somente resultadosenvolvendoaequivalênciadeáreasesuassomas.

As operações com áreas na geometria grega datam do período pré-euclidiano.Osmétodosdeaplicaçãodeáreas,porexemplo,jáeramusadosmuito antes de Euclides e lembram os métodos babilônicos de cortar ecolar áreas. Não podemos dizer, contudo, que tenha havido umatransmissão dessas técnicas da matemática mesopotâmica para a grega.Exporemos,brevemente,algunsoutrosresultadosenvolvendoocálculodeáreasqueconstamdolivroIIedolivroVIdosElementos.

Cálculodeáreaseproblemasde“quadratura”

Nosso objetivo agora é dar uma ideia dos procedimentos envolvendoequivalências de áreas, que já eram empregados antes de Euclides.Acredita-sequealgunsresultadosdolivroIIsejammaisantigosqueosdolivro I, e essas técnicas participavam da mesma tradição do método daaplicação de áreas e do teorema “de Pitágoras”. Apesar de expostosomente no livro VI, sabemos que o método da aplicação de áreas erabastanteusadonoséculoIVa.E.C.NosElementos,otemafoideixadoparaolivro VI provavelmente pelo interesse de usar a teoria das razões eproporçõesdeEudoxo.Mas,antesdisso,essemétodopodetersidousadocom uma teoria simples das razões e proporções. A proposição a seguirforneceumexemplodomodoeuclidianoderealizaraplicaçõesdeáreas:

ProposiçãoVI-29À reta dada aplicar, igual à [ igura] retilínea dada, um paralelogramoexcedenteporumafiguraparalelogrâmicasemelhanteàdada.

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ILUSTRAÇÃO14

SãodadasaretaAB,uma iguraC(comdeterminadaárea)euma iguraD (comdeterminada forma).O problema consiste em aplicar à retaAB aiguraAEFHda Ilustração15, comárea igualàdeCe comumexcedentedado pela igura BEFG, similar à D. Ou seja, queremos construir umparalelogramocomáreaigualàdeumaoutrafigura(C,noexemplo),masaconstruçãodeveserfeitacomalgosobrandoemrelaçãoaosegmentodadoinicialmente(AB).

ILUSTRAÇÃO15

Não exibiremos a construção da solução, mas veremos que essaproposiçãoestárelacionadaaresultadosdolivroII.

ProposiçãoII-5Caso uma linha reta seja cortada em [segmentos] iguais e desiguais, oretângulocontidopelossegmentosdesiguaisdaretatoda,comoquadrado

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sobrea[reta]entreasseções,éigualaoquadradosobreametade.

A reta AB é cortada em segmentos iguais por C (AC e CB) e emsegmentosdesiguaisporD(ADeDB),comonafiguraabaixo:

Demonstração:QueremosmostrarqueoretângulodeladosADeDB,maiso quadrado de lado CD, é igual ao quadrado de lado CB. Descrevemos oquadrado CEFB sobre CB como na Ilustração 16. Traçamos DG por DparaleloaCEeBF.SobreopontoD,abrimosumcompassoatéopontoBe,mantendo essa abertura,marcamosumpontoH sobreDG. Traçamosumsegmento KM por H que seja paralelo a AB e EF. Traçamos, agora, umsegmentoAKporAparaleloaCLeBM.

Na Ilustração 16, queremos mostrar que 1 + 2 + 4 = 2 + 3 + 4 + 5.Vamosdividirnossademonstraçãonasseguintesetapas:

ILUSTRAÇÃO16

i)OretânguloCDHLéigualaoretânguloHMFG(nafigura,2=5):Por construção, CB é igual a BF e DB é igual a DH, que é igual a BM.Portanto, CDé igual aCB−DB, que é igual aBF−BM,que é igual aMF(retiramospartes iguaisdequantidades iguais, logo,os restossão iguais).Como DH é igual a HM por construção (pois DBMH é um quadrado), osretângulos CDHL e HMFG são iguais, uma vez que suas bases e suasalturassãoiguais.

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ii)OretânguloCBMLéigualaoretânguloDBFG(2+3=3+5):Adicionamos,então,oquadradoDBMHacadaumdosretângulosCDHLeHMFG. Fazendo isso, temos que o retângulo CBML é igual ao retânguloDBFG.

iii)OretânguloACLKéigualaoretânguloDBFG(1=3+5):OretânguloCBMLéigualaoretânguloACLK,umavezqueACéigualaCB,e CL é igual a BM. Logo, o retângulo ACLK é também igual ao retânguloDBFG(issoequivaleadizerque1=3+5,na Ilustração16, então, resta-nos adicionar 2 e 4 a ambos os lados, o que será feito nos passosseguintes).

iv)OretânguloADHKéigualaognomonCBFGHL(1+2=2+3+5):Seguindo a demonstração de Euclides, adicionamos o retângulo CDHL acadaumdosretângulosACLKeDBFG.Fazendo isso,o retânguloADHKéigualaognomonCBFGHL(ouseja,1+2=2+3+5).

v)SomandooquadradoLHGE(1+2+4=2+3+4+5):ADHK é o retângulo AD por DB, uma vez que DH é igual a DB e faltaapenas acrescentar à igura CBFGHL (área 2 + 3 + 5) o quadrado LHGE(área4)paraobteroquadradoCBFEdoenunciadodaproposição(2+3+4+5).ComoLHGEéigualaumquadradoconstruídosobreCD,temosqueo retângulo AD por DB (área 1 + 2)mais o quadrado em CD (área 4) éigualaoquadradoemCB(área2+3+4+5).

Concluídaademonstração,veremosparaqueserviaessaproposição.

ProposiçãoII-14Construirumquadradoigualà[figura]retilíneadada.

Construção(naverdade,vamosconstruirumquadradodeáreaigualàdeum retângulo dado):O retânguloBEDC é a igura retilínea dada. SeBE éigualaED, temosoquadradoproposto.Senão,umdossegmentos,BEouED,émaior.SuponhamosquesejaBE,eprolongamosessesegmentoatéF,demodoqueEFsejaigualaED,comonaIlustração17.BissetamosBFemGedescrevemosumacircunferênciaBFHcomcentroG,tendocomoraioosegmentoGB(ouGF).ProlongamosEDatéH(umpontonacircunferênciaabaixodeD).Oquadradoprocuradoéode ladoEH.Vamosmostrar isso

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usandoaproposiçãoII-5.

ILUSTRAÇÃO17

Demonstraçãodequeaconstruçãoéválida:ComoaretaBFfoicortadaemsegmentosiguaisemGeemsegmentosdesiguaisemE,oretânguloBEporEF,maisoquadradoemGE,é igualaoquadradoemGF (pelaproposiçãoII-5).MasGFéigualaGH,logo,oretângulodeladosBEeEF(queéBEDC),mais o quadrado de lado GE, é igual ao quadrado de lado GH. PorPitágoras,asomadosquadradosdeladosEHeGEéigualaoquadradodeladoGH(em linguagematual,GH2 =GE2 +EH2), então, o retânguloBEDC,maisoquadradode ladoGE,é igualàsomadosquadradosde ladosGEeEH. Subtraindo o quadrado de lado GE de cada, resta que a área doretânguloBEDCéigualàdoquadradodeladoEH.

Aproposição II-14permiteobteraquadraturadeuma igura retilíneadada, ou seja, um quadrado com a mesma área de um retângulo dado.Encontrar a “quadratura” signi icava, no contexto grego, achar a área deuma igura dada. Usando essa proposição, como seria possível, portanto,comparar as áreasdedois retângulos semcalculá-las?Basta construirosquadradoscomáreasiguaisàsdosretângulosecompararoslados.Ecomopodemossomarasáreasdedoisretângulos?Bastaconstruirosquadradoscomáreasiguaisàsdosretângulosesomarasáreasdessesquadradospormeiodoteorema“dePitágoras”.

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Esperamos termostrado, assim, que grandeparte dos enunciadosdosprimeiros livros dosElementos traduzia uma prática que pode serdenominada “cálculo de áreas”, uma vez que consistia em comparar eoperar diretamente com áreas de iguras geométricas sem associá-las anúmeros.Na verdade,mencionamos resultadosde livrosdiferentes comopertencendoaumamesmatradiçãodeoperaçõescomáreas:I-45,I-47,II-5, II-14 e VI-29, só para icar em alguns exemplos. Se essas proposiçõesparticipavam de ummesmo grupo de procedimentos, por que não estãoencadeadas no texto de Euclides? A resposta a essa pergunta envolvelongas discussões históricas e lógicas, mas, a partir do que foimostrado,pode-se dizer que a sistematização efetuada nosElementos tinha oencadeamentodedutivocomoumadesuasprincipaispreocupações,oquedeve ter levado a um reordenamento arti icial de enunciados quepertenciamaumamesmaculturaprática.Aodizer“arti icial”,destaca-seofatodeessasproposições teremsidoorganizadasem funçãodas técnicasde demonstração usadas para atestar sua validade, e não a partir dosproblemasefetivosaosquaisseaplicavam.

Dando um último exemplo, observamos que a proposição VI-29 deviaintegrar,antesdeEuclides,amesmatradiçãodaI-45:adosprocedimentosdeaplicaçãodeáreas.LembramosquenaproposiçãoVI-29 sepediaqueseconstruísseumparalelogramosemelhanteaumadada iguracomáreaigual a uma outra e que a construção era feita com algo sobrando emrelação ao segmento dado inicialmente. Em grego, a palavra “hipérbole”refere-se ao fato de que a base do paralelogramo resultante excede osegmentodado, ou seja, a igura construídapossui comoexcesso a igurasemelhante ao paralelogramo dado. “Hiperbólico” remete a excessivo.Quando,inversamente,ficafaltandoumafiguraparacompletarosegmentodado, tem-seumasituaçãoassociadaa “elipse”.Oparalelogramopedidoéconstruído de modo que ique faltando uma igura semelhante à iguradada, e a palavra “elíptico” quer dizer que algo está faltando (essaconstruçãofoiexecutadanaproposiçãoVI-28).

OcasoexpressopelaproposiçãoI-45ésimilaraoda“parábola”,noqualsedeveconstruir,comumângulodado,umparalelogramocomáreaigualà de uma igura dada, ou seja, de modo exato, sem que nada estejasobrando nem faltando. Nesse caso, em que não há nenhuma iguraexcedendoaconstruçãopedida,oparalelogramoéconstruídoexatamentesobre o segmento. A origem da palavra “parábola”, em grego, remete aofatodea iguraserconstruídademodoexato.Ascônicasqueconhecemos

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como parábola, hipérbole e elipse ganharam tais nomes no trabalho deApolônio,justamenteporquesãousadosmétodosdeaplicaçãodeáreasemsuasconstruções.

Asupostaálgebrageométricadosgregos

Vimos que enunciados dosElementos de Euclides possuem um estilogeométrico. Seus problemas e teoremas têm um caráter essencialmentegeométrico e devem ser demonstrados para as iguras empregadasconsideradas do modo mais geral possível, ou seja, sem associar suasdimensões a medidas precisas. Apesar dessa evidência, entre o inal doséculoXIXemeadosdoXX,matemáticosehistoriadores,comoH.Zeuthene B.L. van der Waerden, postularam que as proposições do livro II dosElementos seriam, na verdade, propriedades algébricas enunciadas sobuma roupagem geométrica. Por essa razão, os resultados desse livro sãofrequentemente denominados “álgebra geométrica”. Esses pesquisadoressebaseavamnahipótesedequeasproposiçõesdolivroIIsãoformulaçõesgeométricas de regras algébricas, como as que permitem resolver umaequaçãodosegundograu.

É verdade que alguns dos enunciados analisados aqui podem serfacilmentetraduzidosemregrasalgébricasconhecidas.Masasgrandezas,na matemática grega, têm autonomia em relação aos números. Seigualdades algébricas fossem deduzidas e demonstradas a partir deconstruções geométricas, poderíamos concluir que as regras algébricasseriam consequência das verdades geométricas. Contudo, isso está longede comprovar que as razões de Euclides tenham sido algébricas aoformular as proposições citadas. A hipótese expressa por Van derWaerden7 eraadequeasprimeirasproposiçõesdo livro IInãoparecemteroutrarazãoanãoserenunciarumaequivalênciaalgébrica.Elechegaadizerqueesselivroseriaocomeçodeumlivro-textodeálgebraescritoemforma geométrica e que nenhum problema geométrico interessantepoderiatermotivadoumaproposiçãocomoaseguinte:

ProposiçãoII-4Casoumalinharetasejacortada,aoacaso,oquadradosobrearetatodaéigualaosquadradossobreossegmentosetambémduasvezesoretângulo

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contidopelossegmentos.

Na Ilustração18, isso quer dizer que, se o segmentoAB é cortado emum ponto C, o quadrado em AB (ABED) é igual ao quadrado em AC(HGFD), mais o quadrado em CB (CBKG), mais duas vezes o retânguloformadoporACeCB(ACGHeGKEF).

ILUSTRAÇÃO18

SeACmedeaeCBmedeb, tem-seaíaversãogeométricadaigualdade(a+b)2=a2+b2+2ab.Masa irmarqueeraessaamotivaçãodeEuclidesé, no mínimo, uma conclusão apressada. De nosso ponto de vista, não édi ícil entenderamotivaçãodaproposição II-4, edos teoremasdo livro IIemgeral,emumcontextonoqualoestudodaequivalênciadeáreaseradefundamental importância. Na verdade, diversas proposições do livro IIpossuem uma interpretação algébrica. Mas será que isso indica que setrataderesultadosalgébricossobumaroupagemgeométrica?Essaseria,semdúvida,umaconclusãobastanteanacrônica.

Em 1975, o romeno Sabetai Unguru escreveu um artigo 8 atacando osdefensoresdateseda“álgebrageométrica”eressaltandoquelerostextosgregoscomamatemáticamodernaemmentepodenosfazeresquecerqueaquelessebaseavamempressupostospróprios.Apartirdaí, instaurou-seuma querela acirrada em torno da álgebra geométrica e da natureza damatemática euclidiana. Matemáticos historiadores, como André Weil e

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Hans Freudenthal, uniram-se contra os argumentos de Unguru, quepassou a ser marginalizado pelas revistas mais importantes da época. Adiscussão9 teve consequênciasmetodológicas importantes, ainda que nãoimediatamente,poisoshistoriadoresseconscientizaramdequepodenãoser conveniente traduzir os textos geométricos gregos em linguagemalgébrica, como T. Heath havia feito com osElementos de Euclides e O.Neugebauer com asCônicas de Apolônio. Por essa razão, S. Unguru éreconhecidoatualmentecomoumdospioneirosnastransformaçõespelasquaisahistoriografiadamatemáticavempassando.

O ponto de vista algébrico mascara, por exemplo, uma singularidadeessencialdotipodeargumentaçãousadonageometriagrega:seucarátersintético. Ou seja, a exposição analítica e algébrica que usamos hojepermite enunciar situações gerais, tratando os exemplos como casosparticulares, no entanto, a geometria euclidiana não lidava com ageneralidadedeseusenunciadosdomesmomodo.E,sobretudo,partiadepremissas dadas e ia deduzindo os resultados passo a passo, a partir deconsequênciasdedutíveisdessesprimeirosprincípios.

Quandosemencionaocarátersintéticodageometriagrega, tem-seemmente o método sintético, que consiste em construir as soluções de umdeterminadoproblema, comonaproposição II-14. Esseprocedimento eradominantenageometriagregaeédiferentedoquefazemoshoje,quandoatribuímosumaletraaumaquantidadedesconhecidaeoperamoscomelacomosefosseconhecidaatéchegaràsolução.EssasegundaabordagemédenominadamétodoanalíticoeserávistaemdetalhesnoCapítulo5.

Aabordagemalgébricasecaracterizapelaabstraçãodecaracterísticascomuns a objetos de diferentes naturezas, o que possibilita que suaestruturacomumsejarepresentadaporsímbolos.Umsupostopensamentoalgébrico grego não poderia expressar o que há de comum entre asgrandezas geométricas e algébricas, pois, para os gregos, não havia nadaem comum entre grandezas contínuas (in initamente divisíveis) egrandezas discretas (constituídas de unidades indivisíveis). Afora isso, astransformaçõesdeáreasoperadasnos Elementospodemserassociadasàsoperaçõesdeadição,multiplicaçãoeextraçãoderaizquadrada,masnadaindica que tais operações pudessem ser abstraídas das formasgeométricas propriamente ditas. Já as operações algébricas enunciamrelaçõesentrecoisasfuncionalmenteabstratas.

Ainda que as proposições do livro II dosElementos possam serinterpretadas algebricamente, suas demonstrações são essencialmente

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geométricas e utilizam as propriedades geométricas particulares dasiguras emquestão.Nada sinalizaqueEuclides estivesseusando relaçõesabstratas entre quantidades, além disso suas demonstrações nãoutilizavamnenhumadaspropriedadesdasoperaçõesalgébricas.Logo,nãohá evidências, e parece improvável, que um “pensamento algébrico”estivesseemjogonosargumentosapresentadosporele.

Otratamentodosnúmeros

NosElementos, o tratamento dos números (arithmos) é separado dotratamento das grandezas (mégéthos). Tanto as grandezas quanto osnúmerossãosimbolizadosporsegmentosdereta.Noentanto,osnúmerossão agrupamentos de unidades que não são divisíveis; já as grandezasgeométricas são divisíveis em partes da mesma natureza (uma linha édividida em linhas; uma super ície, em super ícies etc.). A medida estápresente nos dois casos, mas mesmo quando uma proposição sobremedida possui enunciados semelhantes para números e grandezas, ela édemonstrada de modos distintos. As primeiras de inições do livro VIIapresentamanoçãodenúmeroeopapeldamedida:

DefiniçãoVII-1Unidade é aquilo segundo o qual cada uma das coisas existentes é ditauma.

DefiniçãoVII-2Enúmeroéaquantidadecompostadeunidades.

DefiniçãoVII-3Umnúmeroéumapartedeumnúmero,omenor,domaior,quandomeçaexatamenteomaior.

Essa última de inição postula que um númeromenor é uma parte deoutro número maior quando pode medi-lo, ou seja, os números sãoconsiderados segmentos de reta com medida inteira. Por exemplo, umsegmento de tamanho 2 não seria parte de um segmento de tamanho 3,massimdeumsegmentodetamanho6.Osnúmerosservemparacontar,

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masantesdecontaréprecisosaberqualaunidadedecontagem.Nocasodas grandezas, a unidade de medida deve ser também uma grandeza.Aqui,aunidadenãoénúmeronemgrandeza.A“unidade”,nade iniçãodeEuclides,éoquepossibilitaamedida,masnãoéumnúmero.Sendoassim,é inconcebível que a unidade possa ser subdividida. Esse ponto de vista,queafirmamosserodeEuclides,foiexplicitadoporAristóteles:

OUnonãotemoutrocaráterdoqueservirdemedidaaalgumamultiplicidade,eonúmeronãotemoutrocaráterdoqueodeserumamultiplicidademedidaeumamultiplicidadedemedidas.ÉtambémcomrazãoqueoUnonãoéconsideradoumnúmero,poisaunidadedemedidanãoéumapluralidadedemedidas.10

Vemos, assim, que o Um não é um número, pois o número pressupõeumamultiplicidade, ou seja, uma diversidade que o Um não possui, umavez que é caracterizado por sua identidade em relação a si mesmo. Astécnicas de medida que ocupam um lugar preponderante nas práticaseuclidianassobreosnúmeroseramrealizadaspelométododa antifairese,razãopelaqualesseprocedimento,nocasodosnúmeros,éconhecidohojecomo “algoritmo de Euclides”. Veremos como esse método era utilizadopara encontrar a medida comum a dois números (ou seja, omdc entreeles):

ProposiçãoVII-1Sendoexpostosdoisnúmerosdesiguais,esendosempresubtraídodenovoomenordomaior,casooquerestoununcameçaexatamenteoantesdelemesmo,atéqueresteumaunidade,osnúmerosdoprincípioserãoprimosentresi.

ProposiçãoVII-2Sendo dados dois números não primos entre si, achar a maior medidacomumdeles.

A proposição VII-1 fornece um critério para decidir quando doisnúmeros A e B são primos entre si. Supondo B < A, retira-se B de Aobtendo-seumresto,R1.SeR1nãoforigualaB,retira-seR 1deB,obtendo-seoutroresto,R 2.Oprocedimento continua enquantonenhumdos restossucessivosR1,R2,…forigualaoanteriorenemiguala1.Quandoumrestocoincidircomoanterior,apróximasubtraçãoresultaráem0eosnúmerosAeB terãoumamedida comum.EntãoaproposiçãoVII-2 seaplica.Caso

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contrário,orestoseráiguala1emalgumaiteraçãoepoderemosdizerqueAeB sãoprimos entre si.Na verdade, ao enunciar essaproposição2dolivroVII,Euclidesempregaumalinguagemdegrandezas.Osdoisnúmerosdados são os segmentos A e B dos quais queremos encontrar a maiormedida comum. Constrói-se geometricamente as diferenças entre restossucessivos,comonaIlustração3doCapítulo2.

Exemplo:Comoencontrarporestemétodoomdcde119e85.

Solução:Começopor retirar 85uma vez de119, obtendoR 1 = 34 como resto. Emseguida, retiro 34 duas vezes de 85, obtendo o segundo resto, R 2 = 17.Agoraretiro17duasvezesde34,obtendo0.Logo,17éomaiordivisorde119e85.Noteque,sefossemprimos,esseprocedimentochegariaaoresto1,enãoa0.

Se os dois números não são primos entre si, o mesmo procedimentodará um resto diferente da unidade, que mede o precedente (logo, seretiramos esse resto do número precedente um certo número de vezes,obtemos 0, como ocorreu no exemplo anterior). Esse resto é a maiormedida(divisor)comumentreosdoisnúmeros.Assim,seumrestomedeoprecedente,oalgoritmoterminaeobtemosomdcdosdoisnúmeros.

Um número é primo quando não é medido por nenhum número,somente por 1, que não é considerado número. Quando omdc de doisnúmeros é1, elenão é consideradoummdc “verdadeiro” (oque faz comqueosprimospossuamnaturezadistintados outrosnúmeros).Usandoométododaantifairese(oualgoritmodeEuclides),pode-sedizerqueocasodos números que não são primos entre si é análogo ao dos segmentoscomensuráveis,poisépossívelobterumamaiormedidacomumentreeles.Mas, no caso de grandezas, para encontrar uma grandezamenor do quetodasasoutrasdevemostomarumagrandezaesubdividi-lain initamente,e tal procedimento não tem im. Dessa forma, não existe uma grandezamenordoquetodasasoutrasepodeserqueoalgoritmodeEuclidesnãotermine.Nessecaso,asgrandezassãoincomensuráveis,oqueéobjetodolivroXdosElementos.

MuitasoutrasproposiçõesdolivroVIIenvolvendoaantifairesepossuemcorrespondentes no livro X. Podemos observar, através dessas

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proposições, o paralelismo entre números que não são primos entre si egrandezas comensuráveis e, consequentemente, entre números primosentre si e grandezas incomensuráveis. É o caso, por exemplo, daproposição X-2, versão para grandezas da proposição VII-1, citadaanteriormente:

ProposiçãoX-2Se quando a menor de duas grandezas é continuamente subtraída damaior a que resta nunca mede a precedente, as grandezas sãoincomensuráveis.

Há, portanto, uma analogia entre grandezas incomensuráveis enúmerosprimosentresi.Sóqueaantifaireseparanúmerosterminadando1,aopassoqueomesmoprocedimentoaplicadoagrandezasnãoterminano caso incomensurável, conforme visto no Capítulo 2 ao mostrarmos aincomensurabilidadeentreoladoeadiagonaldoquadrado.

TeoriadasproporçõesdeEudoxo

NosElementos de Euclides não há uma de inição precisa de razão, aindaqueapalavra logossejausadacomfrequência.Ade inição3,propostanolivro V, diz apenas que: “Uma razão ( logos) é um tipo de relação que dizrespeito ao tamanho de duas grandezas do mesmo tipo (doiscomprimentos, duas áreas, dois volumes).” O sentido dessa de inição sóserácompreendidocoma leituradade inição5,queveremosadiante,naqual é considerada a relação entre duas razões. O livro V dos Elementosestudaaproporcionalidadeentregrandezas,quesabemosserdistintadanoção de razão. Dito de outro modo, os enunciados desse livro nãofornecem nenhum signi icado às razõesa:b ec:d separadamente, masapenasao fatodeestarememumarelaçãodeproporcionalidade a:b ::c:d(aestáparabassimcomocestáparad).

Hoje,anoçãoderazãoatribuiumsignificadoindependenteparaa:bquepode ser relacionado a uma fração, uma vez que as grandezas sãoassociadas a números pela medida. Essa identi icação é problemática nocontexto dosElementos, já que nem toda grandeza pode ser associada aum número. A noção de razão aritmética também não é de inidaexplicitamente no livro VII, apesar de aparecer frequentemente do livro

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VII ao livro IX. A terminologia mais empregada é a de que duas coisas“estão uma para a outra assim como”. Temos um exemplo disso naproposição 1 do livro VI: “Triângulos, e paralelogramos, com a mesmaalturaestãoumparaooutroassimcomosuasbases.”

A teoria das proporções entre quatro grandezas, exposta no livro V, écreditada ao matemático grego Eudoxo, discípulo de Platão, nascido emtorno de 400 a.E.C. Esse livro trata da teoria abstrata das razões eproporções, que servirá para o estudo das proposições geométricas dolivro VI. Uma das motivações de Eudoxo pode ter sido aprimorar osprocedimentosinfinitosusadosporHipócratesemsuamedidadocírculo.Ouso de processos que tendem ao in inito será efetuado por Arquimedes,usando sequências de aproximações initas da área do círculo porpolígonos.AteoriadasproporçõesdeEudoxoteriacomoobjetivoenunciarteoremasgerais sobreproporçõesquevalessem tambémparagrandezasincomensuráveis, ou seja, que generalizassem os resultados obtidos pormatemáticos mais antigos, como Hipócrates, Arquitas e Teeteto. Logo noiníciodolivroV,constamasseguintesdefinições:

DefiniçãoV-3Uma razão é a relação de certo tipo concernente ao tamanho de duasmagnitudesdemesmogênero.

DefiniçãoV-4Magnitudes são ditas ter uma razão entre si, aquelas que multiplicadaspodemexcederumaàoutra.

DefiniçãoV-5Magnitudes são ditas estar na mesma razão, uma primeira para umasegundaeumaterceiraparaumaquarta,quandoosmesmosmúltiplosdaprimeiraedaterceiraou,aomesmotempo,excedam,ou,aomesmotempo,sejamiguais,ou,aomesmotempo,sejam inferioresaosmesmosmúltiplosda segunda e da quarta, relativamente a qualquer tipo que seja demultiplicação,cadaumdecadaum,tendosidotomadoscorrespondentes.

DefiniçãoV-6Easmagnitudes,tendoamesmarazão,sejamditasemproporção.

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Ade inição3deixaclaroqueoconceitoderazãoéaplicadoagrandezashomogêneas. Assim, importa observar a natureza da grandeza, nãopodendo haver razão entre um comprimento e uma área. Ainda que arazãodigarespeitoàquantidade,elanãoserásemprecalculávelcomoumnúmero.

A de inição 4 fornece um critério operatório para determinar se duasgrandezas possuem uma razão: para que duas grandezas a eb possuamumarazãoentreelas,éprecisoquehajaaomenosumpardeinteiros, men, tal quema > b enb >a. Isso signi ica que as grandezas podem sercomparadas seuma se tornarmaiorque a outra, ao sermultiplicadaporumnúmerointeiro.Talsituaçãosóocorrequandoelassãohomogêneas,ouseja,demesmotipo.Semultiplicarmos,porexemplo,umsegmentoderetaporumnúmero,nuncaobteremosumaárea,esimoutrosegmentodereta.Concluímos daí que não é possível estabelecer razões entre essasgrandezas,umavezqueelasnãosãodomesmotipo.

Em seguida, será necessário comparar duas razões distintas entregrandezas de mesmo tipo. O método atual para comparar duas razõesidenti icacadarazãoaumafração,eaproporçãoaumacomparaçãoentrenúmeros.Mas,paraosgregos, nãoeraumnúmero.Sendoassim,nossométodonãopodeserusado.Emoutraspalavras,paracompararnãoépossívelusaroargumentodeque sesomentesead=bc.Ade inição5fornecerájustamenteocritériodecomparaçãodeduasrazõesentregrandezas,quetentamostraduziremumalinguagemmaisfamiliar:

AdaptaçãodadefiniçãoV-5paraanossalinguagemConcluímos quea:b ::c:d se e somente se para todo par de inteirospositivosmentivermosumdoscasosabaixo:(i)sema<nbentãomc<nd(ii)sema=nbentãomc=nd(iii)sema>nbentãomc>nd

O segundo caso só é possível sea eb, por um lado, ec ed, por outro,forem comensuráveis. Vamos tentar entender todos os casos dessade iniçãopormeiodeexemplos–quenão foramdadosnemporEuclidesnemporEudoxo,esiminventadospornóscomobjetivopedagógico.

Queremos saber quando quatro segmentos de reta podem ser ditosproporcionais.Tomemosa,b,cednaIlustração19:

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ILUSTRAÇÃO19

Suponhamos,emumprimeiromomento,quea:b ::c:d::2:3.Nessecaso,multiplicandoa por 3 eb por 2 temos dois segmentos iguais, e omesmovaleparaced,comomostraaIlustração20.

ILUSTRAÇÃO20

Sabemosqueseossegmentosa ebsãocomensuráveissuarazãopodeser identi icada a uma razão entre inteiros. Logo, sempre conseguiremosmultiplicar cada um desses segmentos por um número, de modo a queseusmúltiplossetornemiguais.Nade iniçãoatual,ossegmentosa,b,c edsão proporcionais se a razão entre a eb é igual à razão entre c ed. Issosigni icaque,multiplicandoaeb,respectivamente,pelosmesmosnúmerosinteirosquemultiplicarem ced,obteremostambémdoissegmentosiguais(entresi),comonaIlustração20.

Eomesmovaleparadois segmentosde retaquaisquer?Vamos suporagora quea, b, c ed meçam, respectivamente, . Isso éimportanteparaentenderopapeldos inteirosm en na de inição, apesarde sabermos que os gregos não associavam, nessa época, grandezas anúmeros.Começaremossupondo,comoanteriormente,quem=3en=2.Masnãoobteremosomesmoresultado,pois3ae2bnãoserãoiguais.Essefatoéilustradoemseguida.

Comomultiplicamosa ecpor3eb edpor2,osquatrosegmentosma,nb, mc, end medirão, respectivamente:

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ILUSTRAÇÃO21

Obtemos, assim, que 3a > 2b e 3c > 2d. Podemos estimar que adiferença3a−2b=3−2,82…=0,17…sejaodobrodadiferença3 c−2d=1,5−1,41…=0,08….

Vamosmudar agora os valores dem en, supondo quem = 7 en = 5.Dessa forma, obtemos quatro segmentos medindo, respectivamente,

.Temosagoraque7a <5be7c<5d.Adiferençaentreosdoisúltimosémetadedadiferençaentreosdoisprimeiros.

ILUSTRAÇÃO22

ObservemosadiferençaentreasIlustrações21e22.NaIlustração21,param = 3 en = 2, tivemos quema >nb emc >nd. No exemplo daIlustração22,param=7en=5, tivemosma <nb emc <nd.A ideiaportrásdaa irmaçãodequeosquatrosegmentosa,b,cedsãoproporcionaisé a de que expandindo (ou contraindo) os dois primeiros de certaquantidade, os dois outros também serão expandidos (ou contraídos) damesma quantidade. Ou seja, tudo que acontecer com os dois primeiros

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deveacontecer comosoutrosdois. Semultiplicooprimeiro,a, porm, e osegundo,b, porn, tudo pode acontecer (os segmentos obtidos podem seriguais,mapodesermaioroumenorquenb).Oqueimportaéqueomesmoaconteçaparamcend.Eissoparaquaisquernúmerosinteirosmen.

Esse é o sentido da de inição 5 do livro V, utilizada na resolução dediversos problemasnamatemática grega, dos quais osmais célebres sãoosrelativosaocálculodecomprimentoseáreasdefigurascurvilíneas.Comessade inição,acomparaçãoderazõesadquireumcarátergeométrico.Osobjetos matemáticos, na época, podiam ser números, grandezas, razõesentrenúmeroserazõesentregrandezas.Ahomogeneidadedessesobjetossó existirá quando a razão entre duas grandezas quaisquer puder seridenti icada a um número, o que só será possível muitos séculos maistarde,comadefiniçãodosnúmerosreais,abordadanoCapítulo7.

Arquimedes,outrosmétodos

Arquimedes é um dos matemáticos mais conhecidos do período pós-euclidiano. Seus livros possuem uma estrutura bastante distinta daquelaquecaracterizaosElementosdeEuclideseseusmétodosnãoreproduzemopadrãoeuclidiano.Nãosepercebeemseus trabalhosumapreocupaçãonememusarnememdefenderummétodode tipoaxiomático, ea formacomoexpõeseusresultadosnãoparecetersofridoin luênciadoestilodosElementos. Sem se restringir a nenhuma determinaçãoa priori,Arquimedes usamétodos não euclidianos, como aneusis, mesmo quandouma construção com régua e compasso é viável. Conforme sugereKnorr,aoinvésdeestenderougeneralizaraestruturaaxiomáticadamatemática,Arquimedes parecia estar mais preocupado em comunicar novasdescobertas relativas à resolução de problemas geométricos. Em algunsprefácios,eletomaocuidadodedistinguirosprocedimentosheurísticosdedescobertadosprocedimentosdedemonstração.

NoiníciodesuaobraintituladaQuadraturadaparábola,emumacartaaDositheus,Arquimedesa irmaquepretendecomunicar“umcertoteoremageométrico que não foi investigado antes e que foi agora investigado pormim e que eu descobri, primeiramente, pormeio damecânica, e que foiexibido, em seguida, por meio da geometria”. Esse tipo de procedimentoficaaindamaisclaronolivroOmétododosteoremasmecânicos,encontradoapenasem1899eescritoparaEratóstenes,emqueArquimedesexplica:

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Penseiqueseriaapropriadoescrever-lheneste livrosobreumcertométodopormeiodoqualvocê poderá reconhecer certas questões matemáticas com a ajuda da mecânica. Estouconvencido de que ele não é menos útil para encontrar provas para os mesmos teoremas.Algumas coisas, que se tornaram claras paramim, em primeiro lugar, pelométodomecânico,foramprovadasgeometricamenteemseguida,umavezqueainvestigaçãopeloreferidométodonão fornece, de fato, uma demonstração. No entanto, é mais fácil encontrar a prova quandoadquirimos previamente, pelométodo, algum conhecimento das questões do que encontrá-lasemnenhumconhecimentoprévio.11

Arquimedes empregava uma balança abstrata que deveria equilibrarigurasgeométricasequivalentes.Oobjetivoeradefenderummétodoquepermitisseentendercertasrealidadesmatemáticaspormeiodamecânica,aindaqueessemétodopossibilitasseapenasadescobertadepropriedadesquedeveriamser, emseguida,demonstradasgeometricamente. Sabemos,hoje, que alguns dos resultados demonstrados geometricamente porArquimedes eram obtidos de modo puramente mecânico. Haveria,portanto, uma distinção entre métodos de descoberta, que poderiam sermecânicos, e métodos de demonstração, que deveriam serpuramentegeométricos.12 Observamos, no entanto, no trecho acima transcrito, umgesto defensivo que parecia ter como objetivo proteger-se de possíveiscríticasporpartedomeiogeométricodaépoca.

Em seus estudos sobre os trabalhos de Arquimedes, Knorr aventa ahipótesedeque,nolugardecontribuirparaoprogressodamatemática,aênfase no formalismo parecia distrair os geômetras do que realmenteimportava.Acomunidadedospensadoresalexandrinos,queseformounoperíodo pós-euclidiano, estava mais interessada em criticar detalhes dasdemonstraçõesdoqueemfornecernovosresultados,oqueseráabordadonoCapítulo4.Emdiversasocasiões,Arquimedesmanifestou,demodosutil,sua impaciência com esses formalistas que in luenciaram a história dageometria grega. Analisaremos, agora, alguns resultados de Arquimedestendoemvistaexporamultiplicidadedemétodospararesolverproblemasgeométricospresentesemsuaobra.

AneusiseaespiraldeArquimedes

Uma das soluções para o problema da trissecção do ângulo emprega ométodo da “intercalação”, ou neusis, que, literalmente, quer dizer“inclinação”. Esse procedimento, amplamente usado por Arquimedes, nãose encaixava nos padrões euclidianos, pois necessitava de uma reta

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graduada. O exemplo a seguir encontra-se na Coleção matemática dePappus:13

ILUSTRAÇÃO23

Seja um ângulo PÔQ. Traçamos por Q uma paralela a OP e umaperpendicularquecortaOPemS. Intercalamosemseguida, entreosdoissegmentosque formamoânguloPÔQ,umsegmentoquevaideOatéumpontonaparalelatraçada,demodoqueadistânciaentresuainterseçãoAcomaperpendicularesuainterseçãoBcomaparalelasejaodobrodeOQ(ou seja, AB = 2OQ). O ângulo PÔA divide o ângulo PÔQ em três. NaIlustração23,ossegmentosdemesmacortêmomesmocomprimento;eosângulosdemesmacortêmamesmamedida.

Demonstração: Unimos Q ao ponto médio C de AB. Observamos que otriânguloBQAéretânguloe,comoCdivideABemduaspartesiguais,QCéamedianaemrelaçãoàhipotenusaABdeumtriânguloretângulo.Logo,QCéigualaAC.TemosassimqueotriânguloOQCéisósceleseosângulosQÔAeQ Asãoiguais.MasotriânguloQCBtambéméisóscelese,comooânguloQ B=2retos−A Q=2retos−Q C−C B=2retos−2Q C,umavezqueQ CeC B são iguais. Podemos concluir, então, queQÔA = A Q = 2Q C.Como o ângulo Q C é igual ao ângulo SÔA, temos que .Conseguimos,dessemodo,encontraroânguloquedivideemtrêsoângulooriginalPÔQ.

O procedimento deneusis usado nessa construção permite intercalarumsegmentodecertocomprimento,nocaso,AB,entreduasretas(ou,demodo geral, entre duas curvas), ajustando-o empiricamente às condiçõesdoproblema.Aúnica exigência éque essa construção “funcione”.Nãohá

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evidências de que os matemáticos que empregavam esse métodoencarassem seus resultados como incorretos. Ao contrário, há mesmoalguns casos emque a soluçãopode ser feita com réguanão graduada ecompasso e o procedimento de intercalação é escolhido por tornar asolução mais simples. Foram muitas as tentativas de resolução queempregavamnovosmétodosnaconstruçãodesoluçõesparaosproblemasclássicos e que usavam aneusis, cônicas ou outras curvas e instrumentosmecânicosinventadosespecificamenteparaessefim.

Veremos,agora,asoluçãopormeioda“espiraldeArquimedes”:

De iniçãodeespiralpropostaporArquimedes :Seumalinharetatraçadaemum plano se move uniformemente em torno de uma extremidade ixa eretornaà suaposiçãodepartida, e seaomesmo tempoemquea reta semove (uniformemente) um ponto, partindo da origem, se move(uniformemente) sobre a reta, esse ponto irá descrever uma espiral noplano.

A partir dessa de inição, temos que a espiral é uma curva gerada porum ponto que se move sobre um segmento de reta com velocidadeconstante ao mesmo tempo em que esse segmento de reta se move,também com velocidade constante, circularmente, com uma extremidadefixaeaoutrasobreumacircunferência.

Aprincipalpropriedadedaespiral,queébastanteútilparaproblemasde construção, reside em associar uma razão entre arcos (ou ângulos) auma razão entre segmentos. A espiral estabelece uma proporcionalidadeentre uma distância em linha reta e umamedida angular, o que permitereduziroproblemadeseccionarumânguloaoproblemamaissimplesdeseccionar um segmento de reta. A distância entre a origem e um pontosobre a espiral é proporcional ao ângulo formado pela reta inicial e pelaretaquecompõeesseângulo.Essaéexatamenteapropriedadeexpressa,emlinguagematual,pelaequaçãopolardaespiral,quepodeserescritanaformar=aθ,θ≥0.

Depois da de inição mecânica, Arquimedes de ine a propriedadefundamentaldaespiral, considerandoaespiralcomextremidadesemOeR e o círculo correspondente de raio OR (ver Ilustração 24). Se doissegmentosdereta,OO2eOO1,sãotraçadosdaorigemOatédoispontosnaespiral, e se esses segmentos, prolongados, cortam o círculo,respectivamente, em R2 e R1, tem-se, segundo Arquimedes, que essessegmentosestarãoentreelesnamesmarazãodosarcosdecircunferência

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correspondentes.

ILUSTRAÇÃO24

Ouseja,na Ilustração24,OO2 :OO1 :: arcoRR2 : arcoRR1 (medidos nosentidoanti-horário).Issoporque,quandoaretaORgiraemtornodeO,ospontosR1eR2semovemuniformementesobreacircunferência,enquantoospontosO1eO2semovemuniformementesobreosegmentoderetaOR.Sendoassim,sequandoRchegaemR1 opontoOchegaemO1, quandoRchegaemR2opontoOchegaemO2.

Comomencionado,dividirumânguloemtrêspartes iguaiseraumdosproblemas mais importantes da geometria grega. Sabemos dividir umânguloemduaspartesiguaiscomréguaecompasso,masmuitasforamastentativas frustradas de encontrar um procedimento análogo para atrissecção do ângulo. Uma das motivações da espiral de Arquimedes éjustamenteapresentarumasoluçãoparaesteproblema:

Seja o ângulo PÔQ que desejamos dividir em três. Na Ilustração 25,marcoospontosQ1 eQ2 demodoque cortemOQ em três partes iguais etraço a espiral geradaporumponto emOT 0. Traçamos, então, dois arcosdecircunferênciacomcentroemOecomraiosOQ 1 eOQ2 que cortarão otrechodeespiralquevaideOaQemdoispontos,O 1eO2.AsretasOO1 eOO2trissectamoânguloPÔQ.

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ILUSTRAÇÃO25

Demonstração: Traçamos uma circunferência de raio OT 0, que de ine aespiral, e marcamos os pontos T 1 e T2 sobre essa circunferênciaprolongando OO1 e OO2. Marcamos, ainda, os pontos T0 e T comoprolongamentosdeOPeOQ,respectivamente.Pelapropriedadedaespiral,oarcodecircunferênciaT 0T1estáparaoarcoT 0TassimcomoosegmentoOO1 está para o segmento OQ, mas por construção , oquedemonstraqueosegmentoOO1trissectaoânguloPÔQ.Ouseja,oarcoT0T1divideT0Temtrês.OmesmoraciocíniopodeserfeitoparaosegmentoOO2.

Essa solução serveparadividir umângulo emumnúmeron qualquerde partes, bastando dividir também o segmento inicial emn partes. Noentanto, essa solução é mecânica, uma vez que é gerada por doismovimentos combinados, e leva em consideração a velocidade. Portanto,não seria aceita como uma solução geometricamente satisfatória pelospadrões euclidianos. Tal limitação, no entanto, não impediu que osmatemáticosdaépocaexplorassemconstruçõesdesse tipoemproblemasnãoelementares.

Processosinfinitoseáreadocírculo

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Os métodos usados por Arquimedes no estudo de áreas de igurascurvilíneas indicam uma in luência de Eudoxo, como sugere Knorr. 14 Talestudo girava em tornodoproblemadaquadraturado círculo.Ométodode Eudoxo, do século V a.E.C., consistia em inscrever polígonos regularesem uma igura curvilínea, como um círculo, e ir dobrando o número deladosatéqueadiferençaentreaáreada iguraeadopolígonoinscritosetornassemenordoquequalquerquantidadedada.Arquimedespropôsumre inamentodessemétodo, comprimindoa iguraentreduasoutras cujasáreas mudam e tendem para a da igura inicial, uma crescendo e outradecrescendo. A área de um círculo, por exemplo, era envolvida porpolígonosinscritosecircunscritos,demodoque,aumentando-seonúmerodelados,suasáreasseaproximavamdaáreadacircunferência.Ouseja,adiferençaentreasáreasdosdoispolígonosdevepodersertornadamenordo que qualquer quantidade dada quando o número de lados aumenta.Poressarazãoa irma-sequeArquimedesusavaummétodoindiretoparaamedidadaáreadefigurascurvilíneas.

No século XVII, esse tipo de procedimento icou conhecido como“método da exaustão”. Essa nomenclatura, no entanto, não é a maisadequada, uma vez que ométodo se baseia justamente no fato de que oin initonãopode ser levadoàexaustão, istoé,nãoadmite ser exaurido–pois por mais que nos aproximemos, nunca chegamos até ele.Analisaremos,emseguida,omodocomoArquimedes“calculava”aáreadeum círculo na primeira proposição de um de seus livros mais antigos:Medida do círculo. “Calcular” está entre aspas porque essa proposição éuma maneira de determinar a área do círculo encontrando uma iguraretilínea,umtriângulo,nocaso,cujaáreasejaigualàáreadocírculo.Essefoi um dos resultadosmais populares de Arquimedes em sua época, e oprocedimentoéanálogoaoempregadonaproposiçãoXII-2dos ElementosdeEuclides,atribuídaaEudoxo.

A demonstração usa um princípio fundamental conhecido como “lemade Euclides”, enunciado na proposição 1 do livro X. Esse princípio já erautilizado por Eudoxo e talvez tenha sido usado sem demonstração nosprimeiros estágios de sua geometria. Discípulos posteriores podem terprocurado prová-lo seguindo os padrões da época e dando origem àversãoqueenunciaremosaqui.d

ProposiçãoX-1(lemadeEuclides)Sendo expostas duasmagnitudes desiguais, caso damaior seja subtraída

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uma maior do que a metade e, da que é deixada, uma maior do que ametade, e isso aconteça sempre, algumamagnitude será deixada, a qualserámenordoqueamenormagnitudeexposta.

Emoutraspalavras,dadasduasgrandezasAeB(vamossuporqueA>B), se subtrairmos uma terceira grandeza C 1 deA, sendoC1maior que ametadedeA, obteremosR1. Continuandooprocesso, se subtrairmosumaoutragrandezaC2deR1,sendoC2maiorqueametadedeR1,obteremosR2.Procedendo assim, paran su icientemente grande, obteremos umagrandeza Rn menor que a grandeza B dada inicialmente. A proposiçãogarante,então,quepodemostornaradiferençaR nmenordoquequalquergrandeza dada. A Ilustração 26 representa esse processo, considerandosegmentosderetascomograndezasparaumasituaçãoemqueoresultadoéatingidoemduasetapas.

ILUSTRAÇÃO26

Veremoscomoesselemaéusadoparasedeterminaraáreadocírculo.

Proposição1(Arquimedes)Aáreadeumcírculoéigualàdotriânguloretângulonoqualumdosladosqueformamoânguloretoéigualaoraioeooutroladoqueformaoânguloretoéacircunferênciadestecírculo.

ILUSTRAÇÃO27

Demonstração: A ideia principal da demonstração é aproximar a área do

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círculo pelas áreas de polígonos regulares inscritos e circunscritos, cujoslados são sucessivamente duplicados. Cada polígono é uma união detriângulos, logo, a área do polígono é igual à área de um triângulo cujaalturaéoapótemaecujabaseéoperímetro.Assim,seoapótemaéoraiodo círculo e se o perímetro do polígono é o perímetro da circunferência,temosoteorema.

SejamCeTas áreasdo círculo edo triânguloe I n eCn polígonos denlados,respectivamenteinscritosecircunscritosnacircunferência,comonaIlustração28.

ILUSTRAÇÃO28

VamossuporC>TeC<Teobtercontradições,oquemostraqueC=T.SupomosinicialmenteC>T.Nessecaso,podemosobterumaquantidaded= C − T > 0. Sabemos, ainda, que In tem a mesma área do triânguloretângulo no qual os lados que formam o ângulo reto são iguais,respectivamente, ao apótema e ao perímetro do polígono regular de nladosinscritonocírculo(área=perímetro×apótema).Comoosapótemaseosperímetrosdospolígonosinscritossãosucessivamentemenoresqueoraio e a circunferência do círculo, isto é, menores do que os ladoscorrespondentesdotriângulodeáreaT,épossívelconcluirqueá rea(In )<Tparatodon.Logo,área(In)<T<C.

Como área(In) < C, existe uma quantidadekn = C − área(In). Veremosadiante,usandoolemadeEuclides,quequandoaumentamosonúmerodelados do polígono essa quantidade pode ser tornada menor do quequalquerquantidadedada.Logo,paransuficientementegrande,épossívelobterkn<d.Masaárea(In)<T<C,logo,d=C−T<C−área(In)=kn,oquelevaàcontradição.

Resta mostrar que as condições da proposiçãoX-1 de Euclides sãosatisfeitas. Em outras palavras, para concluir que kn pode ser tornada

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menorquequalquerquantidadedada, temosdemostrarque,aoduplicaronúmerode ladosdopolígono,estamosretirandodessaquantidademaisqueasuametade.

ILUSTRAÇÃO29

Issosigni icamostrarqueoexcessoentreaáreadacircunferênciaedopolígonode2nladosémenordoqueametadedoexcessoentreaáreadacircunferência edopolígonoden lados, ou seja, .Masquandoumarcodecírculoésubdividido,oexcessoédiminuídodeumfatormaiorque2. IssoédemonstradoporEuclidesnaproposiçãoXII-2,domodocomosesegue:

ILUSTRAÇÃO30

Seja M o ponto médio do arco de circunferência AMB (como naIlustração30)e sejao triânguloAMB formadopordois ladosdopolígonoinscrito na circunferência. SeRS é o ladodopolígono circunscrito, a áreado triângulo AMB émetade da área do retângulo ARSB, logo, émaior doqueametadedaáreadosegmentocircularAMB,umavezqueoretânguloé formado por um pedaço do lado do polígono circunscrito à

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circunferência. Sendo assim, subtraindo do segmento circular AMB otriânguloAMB,retiramosuma iguracomáreamaiordoqueametadedaáreadosegmentocircular.

Repetindo o procedimento, por exemplo, para um triângulo ANM,formado por dois lados (na Ilustração 30) de umpolígono inscrito com odobro do número de lados do polígono precedente, podemos sempreretirardaáreaquerestaumaquantidademaiordoqueametadedaáreadosegmentocircularoriginal.Sendoassim,adiferença kn entreaáreadocírculo e a do polígono pode ser tornada menor do que qualquerquantidadedada.Issomostraquequandodobramosonúmerodeladosdopolígonooexcessoentreaáreadocírculoeadopolígonoédiminuídoporumfatormaiorque2.

Voltandoàdemonstraçãodaproposição1deArquimedes, isso implicaque podemos tomarkn< d no argumento anterior. Para inalizar ademonstração, supomos agora que C < T e vamos encontrar novamenteuma contradição. Se C < T, temosd = T − C > 0. O argumento é análogo,usandopolígonoscircunscritos,oquedemonstraaproposição.

NaobradeArquimedes,umprocessoin initoanálogoaesseéutilizadopara estabelecer limites para a razão entre a circunferência e o raio docírculo,ouseja,paraaquantidadequechamamoshojedeπ.

PanoramadatransiçãodoséculoIIIa.E.C.paraoséculoIIa.E.C.

O inal do século III a.E.C. foi o período de maior popularidade dos trêsproblemas clássicos (quadratura do círculo, duplicação do cubo etrissecção do ângulo). Esses problemas constituem o ponto comum dostrabalhosdediversos geômetrasda época, comoEratóstenes,Nicomedes,Hípias, Diocles, Dionysodorus, Perseus e Zenodorus. Apesar de amaioriadas fontes que continham esses trabalhos não ter sido preservada, háevidênciasdeaplicaçõesdageometriaaproblemasdeastronomia,óptica,geogra ia e mecânica. Além disso, esses geômetras parecem ter sofridoin luência direta de Arquimedes, o que pode ser constatado pelo uso demétodos mecânicos, como a espiral (e outras curvas geradas pormovimentos mecânicos), e de diversos tipos deneusis. Contudo, nota-setambémqueelessedistanciaramumpoucodoestilodeArquimedes,uma

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vez que se dedicaram à procura de métodos alternativos em suasconstruções, indicando uma possível necessidade de ir além dosprocedimentosdisponíveisnaépoca.

OsescritosdeEuclidesofereciamumaalternativa,mas suaexploraçãodemandavatécnicasdenaturezamuitodistinta,oquetalvezultrapassasseas possibilidades dessa geração imediatamente posterior a Arquimedes.Na verdade, a busca de novos métodos de construção inspirados noparadigma euclidiano serviu demotivação para os trabalhos de ApolôniodesenvolvidosnaviradadoséculoIIIa.E.C.paraoséculoIIa.E.C.Acredita-sequeeletenhacomeçadoaredigirsuaobramaisconhecida,Cônicas,porvoltadoano200a.E.C.15

Nessa obra, Apolônio de ine as seções cônicas do modo mais geralpossível, comoseçõesdecones,usandométodosmuitocaracterísticosdosElementos de Euclides. Em particular, aqueles que dizem respeito àaplicação de áreas, que deramorigem aos nomes dos diferentes tipos decônica: parábola, hipérbole e elipse. Apolônio segue o estilo formal dosElementos até nos detalhes do enunciado de certas proposições. Seusresultadosparecemexprimiratentativadeestenderetornarrigorosososmétodos antigos empregados no estudo de cônicas, desenvolvidos porEuclides (em sua obra sobre as cônicas) e Arquimedes. Uma daspreocupações de Apolônio era apresentar soluções por meio de cônicasparaosproblemasclássicos, comoaduplicaçãodocuboea trissecçãodoângulo, a im de eliminar as soluções porneuses e por curvas especiaisusadasporArquimedeseoutros.

A diversidade de métodos utilizados na resolução de problemasgeométricos até o século III a.E.C. revela que, até esse estágio dodesenvolvimento damatemática, o importante era resolver os problemasporqualquertécnicadisponível.EsseLeitmotivmarcouatradiçãogregaderesolução de problemas geométricos. Com Apolônio, esse panoramacomeçou a se transformar.Mesmo que tenha fornecido, elemesmo, umaconstrução da duplicação do cubo por meio daneusis, Apolônio preferiaclaramente soluções usando cônicas, iguras de inidas a partir deproposições de estilo euclidiano que dependiam de resultados centraisexpostos nosElementos.Porexemplo:assoluçõesda trissecçãodoângulopor meio da espiral de Arquimedes e daneusis não eram consideradassatisfatórias,eApolôniopropôsumaconstruçãocomahipérbole.

OstrabalhosdeArquimedesapresentamumadiversidadedeaplicaçõesdo método daneusis em construções que também podiam ser realizadas

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com régua e compasso. A popularidade dessasneuses demonstra a vastapresença de métodos de construção não euclidianos nos trabalhos deArquimedes e seus seguidores. Além dessas técnicas, a ênfase deArquimedesnainvestigaçãodosprocedimentosdeEudoxocontrastacomotipo de pesquisa característico de Euclides e Apolônio, marcado peloestudo de lugares geométricos e pelo uso de cônicas. Os métodos deresolução de problemas utilizados por Euclides foram consolidados porApolônio no período seguinte, ao passo que os procedimentos deArquimedes só encontrariam seguidores bem mais tarde, por volta dosséculosXVIeXVII.

PodedatardoperíododetransiçãoentreosséculosIIIa.E.C.eIIa.E.C.atentativa de regularização dos métodos de construção para problemasgeométricos, quando os matemáticos teriam buscado construir somentepormétodosplanos(usandoaréguaeocompasso)oupormétodossólidos(usandoseçõescônicas)soluçõesjáconhecidasporoutrosmeios.Naépocade Apolônio, o campo da geometria estava desenvolvido a tal ponto quepode ter se tornado interessante regularizar osmétodos de resoluçãodeproblemas para tornar as técnicas de construção mais formais. Aconsideração de classes distintas de problemas – como a dos planos,sólidose lineares–ajudavaacompreenderoescopodosmétodosusadospara abordá-los. Isso explicaria o esforço para reduzir outros tipos deconstruçãoaumdessestrês.Sendoassim,descreverostiposdeproblemaexistentespodiaserconvenienteparaorganizarapesquisa.Noentanto,adivisão dos problemas em três tipos só foi explicitada no Comentário dePappus,noterceiroséculodaEraComum,epodiaserdeordemdescritiva,maisdoquenormativa.

Osescritosdaépocahelenística,comoosdeArquimedes,Fílon,DiocleseApolônio,sãoprecedidosporprefáciosesclarecedoresparaahistóriadamatemática.O textopropriamentedito tendea serordenadopormeiodede inições e axiomas, a partir dos quais os teoremas se encadeiamdedutivamente. Esse tipo de exposição não dá lugar a comentáriosheurísticossobrecomoeparaqueaquelesresultadosforamobtidos.Essasconsiderações,muitasvezes,sãoexpressasnosprefácios.

O início do século II a.E.C. foimarcadopor umdeclínio na atençãodosmatemáticos aos problemas geométricos avançados, o que nãorepresentou uma decadência do campo matemático e sim umdeslocamento de interesse em direção a outras áreas, como atrigonometriaeosmétodosnuméricos.Devidoàin luênciadessesmétodos

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nos trabalhos desenvolvidos pelos árabes durante a Idade Média, elesserãoabordadosnoCapítulo4,quandotrataremosdesseperíodohistórico.

W.Knorr16tachaaescoladeAlexandria,nostemposdeArquimedes,de“academicista”.Mesmo a composição dos Elementos de Euclides, para ele,se relaciona aos ideais da época e, sobretudo, aos seus objetivospedagógicos. Essa abordagem privilegiava uma exposição sintética,tornando inacessível o procedimento heurístico da descoberta emenosprezando toda consideração concreta ou prática. Knorr contrastaessa tendência com outras obras alexandrinas mais tardias, como asMétricas, deHeron, oAlmagesto, de Ptolomeu, e aAritmética, deDiofanto.EmMétricas, Heron fornece regras aritméticas para computar áreas dediferentes tipos de iguras planas. Ao contrário dessa orientaçãopedagógica, a exposição de Euclides não dá nenhuma pista sobre aaplicaçãodeseusteoremasaproblemaspráticos.Aabordagemteórica,deinspiraçãoeuclidiana,seriacaracterísticadoensinonasescolas ilosó icas,poisoestudantedeveriaaprendermatemáticapormeiodacontemplaçãoenãopelaprática.

Knorr chega a atribuir a paralisação do trabalho produtivo dageometria grega aos efeitos esclerosantes dessa pedagogia, típica daorientaçãoescolásticadospensadoresdaAlexandriaantesdoiníciodaEraComum. Logo, a divisão, proposta por Pappus, entre problemas planos(construídos com régua e compasso) e outros, sólidos oumecânicos, nãoprovém do tempo de Euclides. A resolução de problemas era a parteessencial da atividade geométrica na época de Euclides, Arquimedes eApolônio,ea compilaçãodosaberna formadeumconjuntode teoremas,uma atividade auxiliar. A visão de que os teoremas são superiores aosproblemas tem origem em uma tradição bem posterior, conhecidaatualmentepormeiodosComentáriosdeProclus, quedatamdo séculoVdanossaera.

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RELATOTRADICIONAL

NOS LIVROS DE HISTÓRIA DA MATEMÁTICA é comum encontrarmos, depois daexplanação das mais importantes contribuições gregas, referências aautores isolados, como Heron, Ptolomeu ou Diofanto. Em seguida, faz-seuma breve descrição da prática matemática em “outras culturas”, comoChina e Índia, passando super icialmente pelos estudos dos árabes. Emlivrosmaisantigos,areferênciaaoperíodochegaaserdepreciativa,comoemThe Development ofMathematics (O desenvolvimento damatemática),deE.T.Bell,dosanos1940.Aocapítulosobreageometriagrega,dedicadoà época na qual a matemática foi “ irmemente estabelecida”, seguem-sedoiscurtoscapítulos:“ADepressãoeuropeia”e“DesviopelaÍndia,Arábiae Espanha”. Em tempos recentes, não é comum cometer esses exageros,ainda assim as matemáticas chinesa, indiana e árabe são tratadas comoexceções,emumalinhanãodiretamenterelacionadaàmatemáticateóricaquenosfoilegadapelosgregos.

Precariedade e excepcionalidade caracterizam a prática matemáticaentre Euclides e os renascentistas. Os árabes, por exemplo, sãoreconhecidos sobretudo como tradutores da matemática grega etransmissores dessa tradição na Europa, possibilitando que as obrasgregas chegassemaoOcidente e fossemvertidas para o latimno inal daIdadeMédia. O período doRenascimento teria podido, assim, desfrutar ain luênciagregaedarosprimeirospassosemdireçãoaodesenvolvimentodamatemáticacomoaconhecemoshoje.

Ahistóriadesseperíododetransiçãoentreamatemáticagrega,detipoaxiomático, e o desenvolvimento da álgebra na Europa, entre os séculosXIV e XVI, é uma peça-chave na construção da tese de que nossamatemáticaéa legítimaherdeiradospadrõesgregos.Asuperioridadedocaráter dedutivo dosElementos de Euclides é reforçada pelo discursosobreasupostanaurezapráticadamatemáticanaAntiguidadetardiaenaIdadeMédia.

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a Referimo-nos às proposições dosElementos de Euclides pelo número do livro em algarismosromanos,nesteexemplo,“I”,seguidodonúmerodaproposiçãoemalgarismosindo-arábicos,nesteexemplo,“23”.bNãosetemcertezadequeasde iniçõescontidasnasversõesqueconhecemosdessaobratenhamsido fornecidas por Euclides. Algumas podem ter sido interpoladas em publicações posteriores.Alémdisso,aorigemdaenumeraçãoqueutilizamosaquitambémpodeserquestionada.c Não mostraremos aqui como obter a construção pedida, que pode ser encontrada em J.B.Pitombeira,Trêsexcursõespelahistóriadamatemática.dSeuconteúdotambémpodesercomparadoao“axiomadeArquimedes”,quetratadegrandezascontínuas.

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4. Revisitando a separação entre teoria eprática:AntiguidadeeIdadeMédia

COMOVISTONOCAPÍTULO3, amatemáticagregaeramarcadapelapráticaderesolução de problemas, e o caráter teórico dos Elementos de Euclidespode não caracterizar um padrão da época. Nos relatos tradicionais,contudo, enfatiza-se que a cultura grega era marcada por uma divisãoentre saber teóricoe saberprático, eopensamentodePlatãoé invocadofrequentemente como prova de que o homem grego enxergava amatemáticacomoumconhecimentosuperioraodosensocomum.

Talvezessaseparaçãotenhasidootraçomaisatraentedosabergregoparaospensadoresocidentaisquereconstruíramahistóriadamatemáticaprivilegiando seu caráter teórico. Como já mencionado, a matemática daatualidadeseria,paraeles,alegítimacontinuaçãodopensamentoabstratopresente na geometria euclidiana, e entre as práticas transmitidas pelosárabesasmaisvalorizadasporesseshistoriadoressãojustamenteaquelasquetraduzemo idealgrego.Asartespráticaseamecânica têmumpapelinferior.

À luz dos recentes questionamentos historiográ icos, não podemosdeixar de achar estranho o gigantesco salto, recorrente nos livros dehistória damatemática, registrado entre o século III a.E.C., quando viveuEuclides, e o século XV, quando amatemática voltou a se desenvolver naEuropa.Aideiaaquiécontribuirparaadesconstruçãodealgunsmitosemtorno do pensamento medieval, sobretudo aqueles que levaram à suadesignaçãocomo“idadedastrevas”.

Dentreosmatemáticosárabes,omaisfamosoéAl-Khwarizmi,doséculoIX, importantepersonagemnodesenvolvimentodaálgebra.Tala irmaçãopode soar estranha, pois se o papel dos árabes foi essencialmentetransmitiramatemáticagrega,conformenosensinaahistória tradicional,eseestaeramarcadapelageometria,comoelespodiamterconhecimentosalgébricossignificativos?

Os escritos árabes foram, de fato, in luenciados por suas traduções de

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obrasgregas.Noentanto,nãodevemserreconhecidossomenteporteremdisseminado a matemática praticada na Grécia antiga. Dentre suascontribuições destacam-se pontos importantes que vão além do que hojechamamosdeálgebra,abrangendotambémageometria,aastronomiaeatrigonometria.1 Contrapondo-se à tendência eurocentrista da visãotradicional,algunshistoriadoresmaisrecentesacabaramexagerandoparao outro lado, ao defenderem que a matemática medieval do períodoislâmicojáapresentavaumdesenvolvimentocomparávelaodamatemáticamoderna. Em suma, a questão é complexa e controvertida. Não sabemossequerseélegítimofalarde“matemáticaárabe”,ouseémelhordesignaras contribuições desse período como “islâmicas”, uma vez quenem todosos países dominados pelo islã eram árabes. Sendo assim, para evitarconfusão, quando empregarmos aqui o termo “matemática árabe”estaremosnosreferindoàmatemáticaescritaemárabe.

De acordo com nossa abordagem, o mais importante na história damatemática árabe é o fato de ela ser exemplar para mostrar que aseparação entre teoria e prática não é produtiva quando se desejacompreenderastransformaçõesocorridasnamatemáticamedieval.Nestecapítulo mostraremos que a relação entre teoria e prática, ao longo dahistória da matemática, é muito mais complexa do que tem sidoconsiderada.Operíodo islâmico, por exemplo, foimarcadopela evidênciade que práticas sociais e técnicas levaram a investigações teóricas e, emcontrapartida, de que o pensamento cientí ico podia e devia ser aplicadonaprática.Anecessidadedeabordaradivisãoentreteoriaepráticaedeanalisaropapeldessacisãonodesenvolvimentodamatemáticaexigequenos debrucemos mais sobre o contexto social e político da época. Sendoassim, considerações sobre história geral estarão mais presentes nestecapítulodoquenosoutros.

Começaremos descrevendo brevemente o período alexandrino, com oobjetivodediscutir a divisão entre teoria e práticanosprimeiros séculosdenossa era, ou seja, naAntiguidade tardia e na IdadeMédia. A históriadesseperíodoémarcadaporváriastransferênciasdedomíniopolíticoemum mesmo território. Primeiro, houve as transformações ocorridas nomundo grego. Em seguida, veio o império romano, quando Alexandriasofreu derrotas. O início da Idade Média tem sido tradicionalmentedelimitadopeladesintegraçãodoimpérioromanonoOcidente,noano476.Ahistóriadesseseventossemisturacomaquestãodaféreligiosa,comosea racionalidade fosse uma conquista dos tempos posteriores ao

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Renascimento,conhecidoscomoaIdadedaRazão.Masqueracionalidadesexistiram na Idade Média? Em vez de responder diretamente a essapergunta, daremos alguns exemplos que mostram a singularidade desseperíodonahistóriadamatemática.

Aconcepçãodequeasartespráticaseamecânicaeramo“patinhofeio”daciênciagregacontradizas lendasqueexaltamas invençõesdeumdosmaiores matemáticos gregos, Arquimedes, a relacionando-o a descobertasmecânicas. Essa faceta deArquimedes foi conjurada por aqueles a queminteressavadefenderahegemoniadoaspectoteóricodosabergrego,comoé atestado por uma famosa citação do ilósofo e historiador Plutarco, doperíodo greco-romano. Comparando as invenções de Arquimedes aosengenhos de artilharia usados pelo general romano Marcelo, ao invadirSiracusa,Plutarcoa irmaqueoprimeironãosededicouàs construçõeseàsmáquinas

demodoalgumcomoumtrabalhoquevalesseumesforçosério,masamaioriatinhaumpapelmeramenteacessóriodeumageometriapraticadapeloprazer,umavezqueemtempos idosorei Hieron desejou e acabou por persuadi-lo a distanciar um pouco sua arte das noçõesabstratasemdireçãoàscoisasmateriais.2

Plutarco prossegue, citando as origens da mecânica, com Eudoxo eArquitas, e mostrando que Platão investiu contra eles acusando-os decorruptoresedestruidoresdapuraexcelênciadageometria,quedeveriase ocupar somente de coisas abstratas. E inaliza, defendendo aimportância da separação entremecânica e geometria: “Por essa razão amecânica foi tornada inteiramente distinta da geometria, e tendo sidoduranteumlongotempoignoradapelos ilósofos,acabousendovistacomoumadasartesmilitares.”

É frequente encontrarmos referência a Arquimedes como um grandemecânico,masessaimagemfoiconstruídaaposteriori,enãosabemosbemo que Arquimedes pensava da mecânica, nem se via as próprias obrascomo voltadas para amecânica. O fato é que, a partir do século I, váriosautores de mecânica, ligados às instituições alexandrinas, citamArquimedescomoumdosmaioresmecânicosgregos.Issomostraquenãopodemos traçar um panorama do pensamento do século I usando otestemunho de uma só fonte, por exemplo, Plutarco, nem tampoucoidentificarsuascorrenteshegemônicas.

A complexidade da relação entre teoria e prática no século I pode serexempli icada tambémpelasmenções aos trabalhosdeHeronnahistóriadamatemática, que revelam os preconceitos dos historiadores, visto que

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estesproduziramumacaricaturadessepensadorgregocomoumartesão,ou compilador. NoDictionary of Scienti ic Biography (Dicionário debiogra ias cientí icas), organizado por C.C. Gillispie, lemos que Heron eraumhomemeducado eummatemático aplicado, engenhoso.No entanto, éreconhecido somente por suas preocupações pedagógicas e pela ligaçãoque estabeleceu entre as práticas matemáticas dos babilônios e asdesenvolvidaspelosárabesepelosrenascentistaseuropeus.

C.Boyera irmaqueexistiamdoisníveisdematemáticanaAntiguidade,umadetipoclássico,eminentementeracional,conhecidacomogeometria,eoutramaisprática,melhordescritacomogeodésia,herdadadosbabilôniosemencionadanosescritosdeHeron.Essesníveis sãoapresentadoscomoumtestemunhodaoposiçãoentreteoriaeprática,sendoasegundamenosvalorizada que a primeira. Evidentemente essa oposição recobre umaoutra, presente no texto de Proclus, entre povos menos evoluídos, ditosbárbaros, e mais evoluídos, que seriam os de tradição grega.DescreveremosaindaopapeldePappus,quepodedarumaideiadopapelda matemática e dos matemáticos no início do século IV E.C., quando aorganização social incluía privilégios ligados ao saber, especialmente aosabergregomaisantigo.Passaremosemseguidaàhistóriadaálgebra,cujaorigem é frequentemente associada aosmétodos propostos por Diofanto,por volta do século III E.C. Sua contribuição é vista, no entanto, comoexceção no contexto decadente da matemática alexandrina, já sob odomínioromano.

Éprecisoexplicarporquenosrestringiremosaabordaraálgebranestecapítulo. Preferiríamos, semdúvida, falarde todas aspráticasdoperíodoquepodemserchamadasde“matemáticas”.Noentanto,paraatingirnossoobjetivo de relativizar a separação entre teoria e prática, escolhemos asmanifestações que foram designadas como “algébricas” pela históriatradicional, uma vez que nos relatos desse tipo elas foram associadas acontextos“práticos”.Essesdesenvolvimentosestãoemíntimarelaçãocoma formulação do mito da matemática greco-europeia. Em 1569, PetrusRamusformulouclaramenteomitoemumacartaparaCatarinadeMédici,buscando persuadi-la a incentivar o trabalho dos matemáticos. Ele serefereàEuropacomoumatotalidade,acrescentandoqueaFrançaseriaamaior bene iciária do programa. Para muitos pensadores da época,somente os gregos e os europeus teriam dado contribuições valiosas àmatemática,forjadacomoumsabereminentementeeuropeu.

AobramatemáticadeRamusnãocontinhanadaalémdoconhecimento

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dos árabes. Contudo, a imagem da matemática expressa por ele foireforçada, em seguida, por outras contribuições que produziram, de fato,novas abordagens e formalismos para erigir um conhecimento inspiradonos ideais gregos. Para se demarcar em relação a seus predecessores,FrançoisViète,consideradoumdosinventoresdaálgebramoderna,afirmater fundado uma nova arte: a arte analítica. Uma vez que as práticasanteriores estavam “tão velhas e tão contaminadas e poluídas pelosbárbaros”, era necessário “colocá-las em, e inventar, uma formacompletamentenova”.3

Diofantotambéméconhecidocomoopaidaálgebra.Masparafalardahistória de uma disciplina matemática como a álgebra precisamoscaracterizar o que entendemos por “álgebra”. Os procedimentosassociados a esse tipo de conhecimento não podem ter como base suade inição atual, tida como válida desde sempre. O passo decisivo para aconstituiçãodaálgebracomodisciplinapodeservistocomoaorganizaçãode técnicas em torno da classi icação e da resolução de equações, o queteve lugar no século IX, com os trabalhos de Al-Khwarizmi e de outrosmatemáticos ligados a ele. Falaremos, portanto, do papel dos árabes naconstituiçãodeumateoriadasequações.

Antes disso, é preciso citar os matemáticos indianos, em particularBhaskara,paramostrarqueelenãoéoinventordaconhecidafórmulaqueganhou seu nome no Brasil.b Apesar de possuírem regras para resolverproblemas que seriam hoje traduzidos por equações do segundo grau eusaremalgunssímbolospararepresentarasquantidadesdesconhecidaseasoperações,nãosepodedizerqueos indianospossuíssemumafórmulade resolução de equações de segundo grau. Usaremos esses argumentospara mostrar quão inadequada é a pergunta: “Quem foi o real inventordessafórmula?”

A singularidade da dominação islâmica teve umpapel fundamental nomodo como o saber antigo se renovou a partir do século IX. Proporemosque uma espécie de síntese entre teoria e prática propiciou odesenvolvimento de uma matemática de tipo novo, que in luenciou osprocedimentos algébricos realizados pelos árabes. Depois de analisar asingularidade da matemática islâmica, daremos alguns exemplos paramostraremqueconsistiaaálgebrapraticadaporAl-Khwarizmiecomoosprocedimentosgeométricoseramusadosparaexplicarsuasrazões.

Osmétodospararesolverproblemasdeterceirograutiveramumpapelimportante na história da álgebra, passando por Omar Khayam, pelos

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matemáticositalianosechegandoaFrançoisViète.Nessecaso,aorigemdaálgebra também pode ser associada à introdução do simbolismo. HáexemplosbastanteexpressivosdeseuusonoMagreb(regiãodonortedaÁfricaque abrangeMarrocos, SaaraOcidental,Argélia eTunísia) a partirdo séculoXII.Naparte doMagrebpróximadaAndaluzia, naEspanha, aspráticascientí icassãoconhecidasporsua importâncianatransmissãodaculturaantiga.ApartirdoséculoXIII,ostratadosgregoscomeçaramasertraduzidos na Europa ocidental. No que tange ao uso de símbolos emproblemas algébricos, citaremos exemplos das escolas de ábaco, que sedesenvolveramnaItáliaentreosséculosXIIIeXIV.FoisomentenoséculoXV,porém,quepareceterhavidoumempregomaissistemáticodanotaçãoalgébrica.Apartirdo tratamentodasequaçõesempreendidopelo italianoGirolamoCardano,veremosqueépossívelde inir,emumnovosentido,oqueentendemosporálgebra.

Chegaremos, assim, a uma conclusão de initiva sobre quem é ofundador da álgebra? Não. Pretendemos mostrar que, se quiséssemosaplicar a alcunha de “o pai da álgebra” a algummatemático do período,obteríamos múltiplas respostas: Diofanto, se usarmos a de inição A paraálgebra;Al-Khwarizmi,seusarmosade iniçãoB;Cardano,seusarmosaC;e, inalmente, Viète, se usarmos a D. Ou seja, podemos concluir quealcunhasdessetiposãoinúteisparaahistóriadamatemática.

MatemáticaemecânicanaAntiguidadetardia

AlexandriafoiumadascidadesmaisimportantesdaAntiguidade.Fundadaem331a.E.C.porAlexandre,oGrande,permaneceucomocapitaldoEgitodurante mil anos, até a conquista muçulmana. Temos notícia de que oMuseudeAlexandria,construídopeloreiPtolomeuIporvoltadoano290a.E.C., incluía uma grande biblioteca que reunia todo o saber da época.Inicialmente, seus pensadores mais conhecidos teriam sido Euclides eArquimedes.Como,emseguida,acivilizaçãogregasedisseminouporumavastaárea,queiadomarMediterrâneoorientalatéaÁsiaCentral,passoua incluir Alexandria. O período que chamamos de “helenístico” secaracterizou pelo ideal de Alexandre de difundir a cultura grega aosterritórios conquistadose se estendeu,de suamorte, em323a.E.C., até aanexaçãodaGréciaporRoma,em146a.E.C.

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FIGURA1Oimpérioalexandrino.

Alexandria se tornou o centro da cultura grega na época helenística eseus habitantes eram, em sua maioria, gregos de todas as procedências,mashaviatambémumacolôniajudaicaeumbairroegípcionacidade.Emseguida, passou a fazer parte do império romano, que se desenvolveu apartir da Itália e chegou a dominar terras da atual Inglaterra, França,Portugal,Espanha,Itália,partesdaAlemanha,Bélgica,penínsulaBalcânica,Grécia, Turquia, Armênia, Mesopotâmia, Palestina, Egito, Síria, Etiópia etodo o norte da África. Muitas datas são comumente propostas paramarcaroiníciodoimpérioromano,entreelasadaindicaçãodeJúlioCésarcomoditadorperpétuo,em44a.E.C.

Deacordocomahistóriatradicional,quandoosromanoschegaramemAlexandria, a antiga biblioteca continha livros vindos de Atenas e erafrequentadapordiversosmatemáticos.Aliás,pensadoresdetodoomundovinhamvisitá-la,poisAlexandria,atéachegadadoscristãos,viviaumclimade tolerância. Na segunda década do século IV, o cristianismo deixou deserproibidoefoiinstituídacomoumadasreligiõeso iciaisdoimpério,atésetornaraúnicapermitida.Essadecisãonãofoiaceitauniformementeemtodo o império, pois o paganismo ainda contava com um númerosigni icativo de adeptos, o que levou à perseguição de seus opositores.Estimase que o derradeiro incêndio da antiga biblioteca de Alexandriatenha se dado nesse contexto. Na lista dos pensadores que afrequentavam,depoisdaépocadeEuclideseArquimedes,figuram:Galeno,médicodoséculoII;Ptolomeu,astrônomodomesmoséculo,conhecidopor

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seuAlmagesto;TeondeAlexandria,matemáticoqueviveuno século IV; eHipátia,filhadeTeon,astrônoma,matemáticaefilósofadoséculoIV,quesesupõe ter sido assassinada durante um motim de cristãos no início doséculo V e cuja morte simboliza o im da época de ouro da ciênciaalexandrina.

Não sabemos até que ponto tais fatos podem ser con irmados,mas asevidências não permitem estabelecer com irmeza a existência de umaescolamatemáticaemAlexandriaentendidacomoumestabelecimentodepesquisa. Teon de Alexandria é, na verdade, o único dos matemáticoscitados sobre o qual se pode assegurar que foi membro do Museu deAlexandria.O que se pode a irmar com certeza é que existe uma relaçãoentreaconservaçãodasobrascientí icasredigidasentreoséculoIIIa.E.C.eoséculoIIIE.C.eaconexãodeseuautoràcidadedeAlexandria.Ouseja,a in luênciadaBibliotecaoudoMuseudeAlexandria se exerceu sobre aconservação e a transmissão do conhecimento matemático, bem comosobreaseleçãoeareproduçãodostextosconsideradosrelevantes.

Noperíodohelenístico,comapolíticaexpansionista,osgregosentraramemcontatocomterritóriosemqueasmatemáticasmesopotâmicaeegípciapodem ter se disseminado. Como visto no Capítulo 1, naMesopotâmia sepraticava uma geometria métrica e procedimentos de tipo análogo sãoencontradosnamatemáticahelenística.Na astronomia, comonos indicaoAlmagesto,osistemasexagesimalposicionalpassouaserempregadoparadenotar a parte fracionária dos números. Além dessas evidências, existe,namatemáticagrega,umasériedequestõesque,porsuaforma,lembramomodocomooscálculosbabilônicoseegípcioseramenunciados.Comonostextos escolares mais antigos, o leitor é interpelado a realizar os passos“façaisso,coloqueaquilo”.Taisprescrições,queaparecemnosescritosdeHeron,invocamoqueVitrac4designacomo“umapedagogiapeloexemplo”.Apesardeevidênciasdessetipo,aausênciadefontesdocumentaisnãonospermite atestar com segurança a in luência oriental sobre a matemáticagrega.

Um traço particular da escola de Alexandria é o enciclopedismo. Ospensadores do período produziram numerosas enciclopédias, coleções,sínteses e todo tipo de iniciativas visando à organização do saber. Essesdocumentos não são especi icamente matemáticos, estando ligados àorientação geral do governo da época, que incentivava a fundação deinstituições para guardar e difundir o saber. O pensamento dos antigosmerecia lugardedestaque, edevidoàmultiplicidadee ao acúmulodesse

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conhecimento era necessário organizar, selecionar, ou mesmo corrigir ecompletar,osautoresestudados.Ointelectualsecon igurava,assim,comoumhistoriador do saber, pois precisava se situar em relação aos antigos,tratadoscomrespeitoeadmiração.

Temos diversos testemunhos atestando o lugar inferior ocupado pelamecânicaemrelaçãoàgeometrianaAntiguidade.Umdosmaisfamososéodo já citado Plutarco, que busca atribuir ao próprio Arquimedes umdesdémpelaatividademecânica,bemcomoporqualquerartedirecionadaaousoeàsnecessidadescomunsdavida.Plutarco,noentanto,nasceuem45E.C.,épocanaqualadominaçãoromanajápersistiaporpoucomaisdedois séculos na Grécia, logo, não é surpreendente que ele tivesse aintenção de preservar elementos culturais caros à cultura grega, ou seja,de a irmar sua identidade grega no império. Já outros pensadores, comoHeron e Pappus, defenderam a importância da relação recíproca entregeometria emecânica. Antes da constituição daColeçãomatemática , obracélebredesteúltimo,olivroVIIIjáhaviacirculadodeformaautônomacomo título deIntroduçõesmecânicas. Assim ele foi traduzido em árabemaistarde,diferentementedosoutroslivrosdacoleção.

Os compêndios escritos a partir do século I, que continuaram aproliferar até a conquista islâmica, revelam um grande esforço de seusautores para avaliar a produção matemática dos antecessores econtemporâneos. Os pensadores da época não tinham o per il depesquisadores, mas uma formação mais erudita, marcada por um vastoconhecimento das obras disponíveis. Esse traço caracteriza o períodoalexandrino, sobretudo a partir do século III. No caso da matemática,comentários como os de Pappus, Teon e Hipátia explicam a importânciaatribuídaaEuclides,Apolônio,PtolomeueDiofanto.

O saber por acumulação, enciclopédias, coleções e sínteses traduz oobjetivo de ordenar o conhecimento queparece advir de umaorientaçãoexterna. Esse tipo de abordagem já era praticado nos Elementos deEuclides,comovimosnoCapítulo3,etudoindicaqueganhouimpulsocoma política cultural da dinastia dos Ptolomeus, que governaram a regiãodepois da morte de Alexandre. A sistematização e a formalização doconhecimento matemático parece não terem sido, assim, uma demandainterna à matemática. É fato, porém, que moldaram as condições dotrabalhointelectual,incluindoaredaçãodeobrasmatemáticas.Oautor,aoselecionar, corrigir e completar seus antecessores, sobretudo os antigos,eralevadoaescreverahistóriadamatériaabordada.

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Na época imperial, a atividade principal dos pensadores continuavasendoadecomentarosclássicosdoperíodohelenista.MasnessemomentodaAntiguidadetardia,amatemáticafoiabsorvidapelasescolas ilosó icas,sobretudoasdeinspiraçãoneoplatônica.Essatradição,naqualProclusseencaixa,usavaconceitos ilosó icosparadescrever,interpretarecriticarostrabalhos dos geômetras antigos. Os objetivos e métodos heurísticos dosantigos matemáticos podem ter sido então obscurecidos pela tendênciaformalista dos comentadores. Por seu papel na compreensão da divisãoentre saber teórico e conhecimento prático, trataremos, aqui, de doismatemáticosexemplares:HerondeAlexandria,queteriavividonocomeçodaEraComum(séculoI);ePappusdeAlexandria,queviveunatransiçãodoséculoIIIparaoséculoIVdamesmaera.A inalidadeémostrarqueopapel atribuído àmatemática teórica eramais ambíguo do que aparenta,assim como a importância da separação entre teoria e prática. Asemelhança entre a abordagem de ambos os autores não é umacoincidência,umavezqueosegundofoiinfluenciadopeloprimeiro.

No iníciodaEraComum,oscomentários sobreageometriadoperíodoalexandrino procuravam classi icar os problemas geométricos e avaliar oestatuto dos diferentes procedimentos de construção e dos métodos emgeral. Esse é o caso daColeção matemática de Pappus. Como visto noCapítulo3,essaobraéusadafrequentementeparadescreverageometriadoperíododeEuclides,porém,comofoiescritamuitosséculosmaistarde,parece sermaisútil para entendero tipode geometriapraticada em suaprópriaépoca.

Alémdoenciclopedismo,oshistoriadoresda ciência reconhecemoutracaracterística alexandrina: a tentativa de matematização. Heron é umexemplodesse esforço, pois eraumsábio letradoatuantena geometria enamecânica.Osprefáciosdesuasobrasrevelamapreçopelautilidadedatécnica – dado o bene ício que podemos tirar das máquinas e dosinstrumentos – e das ciênciasmatemáticas. Talvez essa defesa visasse secontrapor àqueles que então invocavam a autoridade de Platão parareproduzir o ideal de uma ciência desinteressada da prática. B. Vitracapontaquedeveterexistidoumapolêmicaentreosqueexaltavamovalorinstrumental da geometria, como Heron, e os que sustentavam que elaprovinhadafilosofiaenãodenecessidadespráticaseutilitárias.

OstextosatribuídosaHeronpodemserreconhecidos,emgeral,porseucaráterpedagógico,massãodeumnívelbastanteelevadosecomparadosaos textos práticos que se ocupavam do cálculo, das operações com

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frações, das medidas e de outros problemas de inspiração comercial.Segundo Heron, era importante enriquecer a matemática prática,associando-a a resultadosmais elaborados da tradição geométrica grega.Por isso seus escritos também levavam em conta as obras de Euclides eArquimedes. Essa mistura entre teoria e prática corresponde a umaevolução na formação dos técnicos, cuja elite devia conhecer osprocedimentos clássicos da demonstração. Sendo assim, como a irmaVitrac, os textos de Heron não indicam uma decadência da matemáticapuraesimaelevaçãodamatemáticaaplicadaaumnívelsuperior.

A história da matemática antiga escrita por Van der Waerden, muitoin luente nos anos 1960-70, apresenta asMétricas, de Heron, como umacoleção de exemplos numéricos e sem provas, idêntica a um textobabilônico. Esse historiador chega a a irmar que, ao contrário das obrasdosgrandesmatemáticos,o livrodeHeronpodeserdesconsiderado,umavez que consiste somente de um texto aritmético de popularização. Noentanto, todos os problemas dasMétricas possuem uma demonstração. Éverdade que muitas obras de Heron só foram descobertas no inal doséculo XIX e início do XX, como é o caso, além desta, de seu comentáriosobre osElementos deEuclides. Esses textos, porém,não são compatíveiscomaideiadequeHeronfosseumsimplesartesão.

É fato que existia uma certa divisão entre geometria e geodésia,contudo, essa separação, atestada desde a Grécia antiga, tinhamotivaçãoilosó icae,provavelmente,inspiraçãoplatônica.Mesmoemalgunstrechosde Aristóteles ica claro que não havia duas ciências que se distinguiampelanaturezadeseusobjetos,esimdiferentesusosdoconhecimento.Porexemplo, parece ter existido uma clivagem entre textos didáticos, quevisavamaumainiciaçãoàgeometriapormeiodeproblemas,etextoscomo objetivo de expor umcorpusmatemático, contendo demonstrações combasenométodoaxiomático-dedutivo.

Os resultados contidos nasMétricas não se encaixam, todavia, emnenhum dos dois casos, pois Heron articulava procedimentos de medidacom resultados de geometria demonstrativa, buscando validar osprimeiros pormeio dos segundos.Daí a frequentemenção a proposiçõescontidasnosElementosdeEuclides.

Exemplo(problema2doLivroIdasMétricas):SejaumtriânguloretânguloABC,comânguloretoemB,talqueABtenha3unidadeseBC,4.Acharaáreadotriânguloeahipotenusa.

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Aresoluçãoédescritaempassos:i.Queoparalelogramo retânguloABCD seja completado, perfazendoumaárea de 12 unidades (ele remete a um resultado obtido em proposiçãoanterior).

ii.OtriânguloABCéametadedoparalelogramoABCD.iii.Aáreadessetriânguloserá,então,6unidades.iv. Uma vez que o ângulo em B é reto, os quadrados sobre AB e BC sãoiguaisaoquadradosobreAC.

v.OsquadradossobreABeBCdando25unidades,oquadradosobreACserátambémde25unidades.

vi.Logo,ACseráde5unidades.vii.Eométodoéoseguinte:fazendo3por4,tomarametadedoresultado;resulta6;essaéaáreadotriângulo.

viii. E ahipotenusa: fazendo3por elemesmoe, analogamente, fazendo4porelemesmo, juntamos;resulta25; tomandoumladodestequadrado,obterahipotenusadotriângulo.

Os cálculos são efetuados sobre números particulares, porém,pretendem exibir um modo de resolver problemas mais gerais. Vitracobserva, contudo, que a solução se apresenta de duas formas distintas:umaexpressanosprimeirospassos(iavi);eoutra,nosúltimos(viieviii).A primeira exposição utiliza a terminologia geométrica e encadeia asa irmações de modo dedutivo, usando referências a enunciadosgeométricosdatradiçãoeuclidiana.Oencadeamentodasconclusõesrevelaa preocupação de derivar a conclusão numérica de um resultadogeométrico:opassoiia irmaqueaáreadotriânguloémetadedaáreadoquadrado, mas a conclusão de que ela vale 6 é obtida em uma etapaposterior. Logo, o passo ii é teórico e faz uso da proposição I-34 dos

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Elementossobreáreasdeparalelogramos,que,divididospeladiagonal,dãoorigemaduasáreas triangulares iguais.Omesmopodeserditodopassoiv, que se refere ao teorema da hipotenusa, que dizemos “de Pitágoras”,conteúdodaproposiçãoI-47deEuclides.

Jáospassosvii eviii têmumaspectodiferente,poismostramo intuitoderesumirométodo,exibindoasoperaçõesquedevemserefetuadasnaresolução de um problema qualquer do mesmo tipo, como umprocedimento padrão para calcular a área. Nesse caso, a referênciageométricaseveri icasomentepelonomedasgrandezasenvolvidas,comoadesignaçãode“lado”paraindicararaizquadradadaquantidade25.

Vemos,assim,queotextodeHeronnãoéodeumpráticoesimodeumerudito, engenheiro e geômetra que procura produzir sínteses das obrasclássicas correspondendo às demandas de sua época. Trata-se de umainiciativacaracterísticadaatmosferaemqueviviamos intelectuaisgregosnoperíodoromano,dosquaisHeronéexemplar.

Paraescaparmosdadicotomiaentreteoriaeprática,éprecisoentendero que os antigos chamavam de “mecânica”, nomenclatura que podedesignar dois tipos de atividade. A primeira concerne à descrição, àconstrução e ao uso de máquinas, tendo um importante componentemilitar, particularmente impulsionado na época dos reis alexandrinos,quandoaengenhariaconheceugrandesprogressos.Há,contudo,umoutrotipo,queseinteressapelascausasquepermitemexplicarofuncionamentoeaeventualeficáciadasmáquinas.Alémdessasvertentes,nota-setambémuma tentativadereduçãodamecânicaaprincípiosmatemáticosoriundosda geometria. Por exemplo, métodos para resolver o problema daduplicaçãodocubo,eoutroscorrelatos,eramvistoscomomecânicos.

Nãopodemoscompreender,portanto,oestatutodamecânicademodounilateral, associando-a ao domínio prático, como observamosfrequentemente. Para pensadores como Heron e Pappus, a articulaçãoentre geometria e mecânica era central e não se limitava ao usoinstrumental da geometria em problemas aplicados. Ambos defendiam aimportância tanto ilosó ica quanto política da mecânica, em comentáriosque parecem se contrapor a outras opiniões desfavoráveis a ela. TantoparaHeronquantoparaPappus,amecânicanãoeraumsaberpráticoqueseopunhaàteoria.

Édi ícilestabeleceraclivagementreconhecimentoteóricoeprático,ouciência pura e aplicada, entre os séculos I e IV da nossa era. Depois doimpério romano, amatemática passou a ser vista comoum tipo de saber

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quepodia proporcionar resultadospráticosmelhores e tambémumgraumais elevado de conhecimento. As atividades associadas a esse saberproporcionavam visibilidade e eram um índice de so isticação intelectual.Agrimensores, arquitetosemecânicos sobressaíamnasociedadeealgunsper is pro issionais se destacavam, justamente por combinaremhabilidades teóricas e práticas. No caso dos agrimensores, por exemplo,nãosetratavasomentedepro issionaiscapazesdemedirumterreno,masde pessoas com habilidade para resolver controvérsias, restaurando aracionalidadedaorganizaçãodoespaçopormeiodesuageometrização.

Emumestudosobreo trabalhodePappusemseucontexto,S.Cuomo 5

lembraqueapartirdoséculoI,eatéporvoltadoséculoIII,aindaquenãose saiba ao certo em que condições teria sobrevivido o Museu deAlexandria,eraoferecidoumtítulodemembrodomuseuaciviseo iciaismilitares.Essadistinção,alémdeisentarosagraciadosdealgunsimpostos,eraumsignodestatus.

Temos notícia, normalmente, de que no período romano o ensino damatemáticaerasubordinadoaoda iloso iaoudasartesaplicadas,comoaarquitetura, e consistia de ensinamentos simples, incluindo, no máximo,algunsresultadosdosElementosdeEuclidesoudoAlmagestodePtolomeu.Entretanto, se era assim, como explicar que aColeção matemática dePappus, que claramente é direcionada para o grande público, contenharesultadosdematemáticatãoavançada?NoCapítulo3,vimoscomoPappususava a intercalação na trissecção do ângulo, e esse é um pequenoexemplo,poisaColeçãomatemática investigadiversosresultadossobreascônicasdeApolônio,chegandoaavançarteoremasoriginais.

S. Cuomo responde a essa pergunta com base no livro V de Pappus,mostrando que ele não foi escrito somente com o objetivo de informar ograndepúblicosobreamatemática,massobretudocomo imdepromoveressesaberaumaformaparticulardeconhecimentoe,consequentemente,de eleger osmatemáticos seus legítimos representantes. A introdução dolivro toca em temas bem conhecidos pelas pessoas comuns e delimita adiferençaessencialentredoistiposdesabermatemático,ougeométrico:odas abelhas eodosmatemáticos.As abelhas sabem intuitivamenteoquelheséútil,comoofatodequeaáreadoshexágonos,usadosnafabricaçãodas colmeias, é maior do que a área dos quadrados dos triângulos.Contudo,sóosmatemáticospodematingirconhecimentosmaiselaborados.

Seguir uma escola ilosó ica na Antiguidade tardia era sinônimo depertencimento a um grupo ou tradição. Muitos dos integrantes dessas

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escolaseramdetendênciaplatônicae tinhamconhecimentoselementaresdematemática.Estesconstituíamopúblico-alvodotextodePappus,a irmaCuomo. Em numerosas atividades, mostrar alguma conexão com amatemáticaouageometriaera fundamentalparaa identidadepúblicadeseus praticantes. A matemática não era vista como algo inacessível,associadoaumsabersuperiorquedeveriapermanecercon inadoemumatorredemarfim.Aocontrário,elaexerciaumpapelpúblico.

Ocontrasteentrehomenseabelhas,nessecontexto,exprimiaadivisãoentredoistiposdeconhecimento.Umque,apesardeverdadeiro,nãopodeserjusti icadoporumaargumentaçãorigorosa;eoutroquesatisfaznossasmais altas aspirações intelectuais. A menção a heróis matemáticos, comoEuclides e Arquimedes, servia para colocar o pensamento no caminhocerto, e Pappus se oferecia como uma via de acesso ao conhecimentoherdadodessessábios.

Emrelaçãoàmecânica,Pappusexaltaotipodeconhecimentoquepodeproporcionar, mencionando grandes exemplos, como Arquimedes. Essaciência estuda as causas dos fenômenos da natureza, embora tambémpossa engendrar ações que vão contra a natureza. A mecânica éexcessivamente vasta para que umúnico indivíduopossa tratar de todososseusaspectos,oquenãosignificaqueexistaumapartepráticaquedevaserrelegadaaartesãos.Acomplementaridadeentregeometriaemecânicapode ser exempli icada pelo uso de problemas equivalentes ao daduplicaçãodocubonaarquitetura,queenxergavasuautilidadepráticaaopermitir modi icar um sólido de acordo com uma razão dada.Normalmente, o problema da duplicação do cubo devia ser resolvido pormeiodasseçõescônicas,contudo,comoédi ícildesenharcônicasnoplano,outrassoluçõespodiamserobtidascomprocedimentosmecânicos.Quandonão era possível resolver problemas por meios geométricos, era lícitorecorrer a instrumentos mecânicos. Reciprocamente, admitiam-seargumentos geométricos para determinar a possibilidade e ofuncionamento de mecanismos. Havia teoremas da mecânica úteis paradelimitarquandoumproblemapodiaserresolvidoporumcertométodo,oque quer dizer que não eram úteis necessariamente para inalidadespráticas.

Aindaqueaimportânciadautilidadeparaavidacomumfosseumvalorpromovido pelo poder, o modo como esse princípio era apropriado empequenoscírculospodiavariar.ParaPappus, cujaobraeraendereçadaaum público amplo, culto, porém não obrigatoriamente matemático, era

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importante enfatizar a complementaridade entre geometria e mecânica.Isso tinha como efeito uma ampliação da fonte de legitimidade damatemática. A geometria era reconhecida não somente por suasqualidadesescolareseculturais,mastambémporqueserviaaoarquitetoeaoengenheiro.Eessesdoisaspectosnãopodiamserseparados.

AAritméticadeDiofanto

No Capítulo 1, vimos que seria anacrônico associar os algoritmos usadospelos povos antigos a qualquer tipo de álgebra. De modo análogo, seriainadequado considerar que os livros sobre números dos Elementos deEuclides contivessem uma álgebra. Em ambos os casos, uma das maisfortesrazõesparanão tirarconclusõesapressadaséo fatodequeaínãoera usado nenhum tipo de notação algébrica, que implica empregar ummesmosímboloparadesignarcoisasdiferentes.

Emgeral, considera-sequeaprimeiraocorrênciadanotaçãosimbólicaque caracteriza nossa álgebra remonta ao livro Aritmética, escrito emgrego porDiofanto. Acredita-se que esse autor tenha vivido no século IIIE.C.,aindaquetaldatasejacontestada.Alémdisso,emborasetenhanotíciade que Diofanto viveu em Alexandria, não se pode assegurar que fossegrego, apesar de seu texto ser escrito nessa língua. O fato de sua obraparecerdistintadatradiçãogrega levouatéalgunshistoriadores,comoH.Hankel,aconjecturarqueelefosseárabe.Nãoinvestigaremososdetalhessobresuaorigem.Interessa-nosaquiabordaraseguintequestão:pode-seconcluir que o livro de Diofanto é o primeiro tratado de álgebrapropriamente dito? Já houve muita discussão a esse respeito entre oshistoriadores, e forneceremos alguns argumentos contra e a favor dessatese.

AcontribuiçãomaisconhecidadeDiofantoéterintroduzidoumaformaderepresentarovalordesconhecidoemumproblema,designando-ocomoarithmos,deondevemonome“aritmética”.Olivro Aritméticacontémumacoleçãodeproblemasqueintegravaatradiçãomatemáticadaépoca.Jánolivro I, ele introduz símbolos, aos quais chama “designações abreviadas”,para representar os diversos tipos de quantidade que aparecem nosproblemas. O método de abreviação representava a palavra usada paradesignar essas quantidades por sua primeira ou última letra de acordocomoalfabetogrego.

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ς(últimaletradapalavraarithmos,aquantidadedesconhecida)ΔY(primeiraletradedynamis,oquadradodaquantidadedesconhecida)KY(primeiraletradekybos,ocubo)ΔYΔ(oquadrado-quadrado)[quartapotência]ΔKY(oquadrado-cubo)[quintapotência]KYK(ocubo-cubo)[sextapotência]

Para dar um exemplo de como a quantidade desconhecida intervinhanaresolução,descreveremoscomoeraresolvidooproblema27dolivroI:

ProblemaI-27Encontrardoisnúmeroscomsomaeprodutodados.

Descrição da solução: Ele considera que a soma é 20 e o produto, 96.Supondo que a diferença entre os dois números seja 2 arithmoi,começamos por dividir a soma desses números (que é 20) em dois(obtendo10).Apartirdesseresultado,consideramosumarithmossomadoaesubtraídode,respectivamente,cadaumadasmetades.Comoametadeda somaé10, tomandoametade subtraídade1arithmosmais ametadeacrescentadade1arithmosobtemos20,queéasomadesejada.Paraqueoprodutoseja96,multiplicamosessasmesmasquantidades,obtendo100subtraído do quadrado doarithmos (umdynamis). Chegamos, assim, àconclusão de que odynamis deve ser 4, logo, o valor doarithmos é 2. Osvaloresprocuradosserão,portanto,10mais2e10menos2,ouseja,12e8.

Explicação misturando as abreviações de Diofanto com os símbolos atuaispara as operações : Queremos encontrar dois números com soma 20 eproduto 96. Se esses números fossem iguais, cada um deles seria 10.Supomos que a diferença entre eles seja 2ς, ou seja, os dois númerosprocurados são obtidos retirando ς de um destes 10 e adicionando ς aooutro.Comoasomanãomudaapósessasoperações,temos10−ς+10+ς= 20. Mas sabemos também que o produto desses números é 96, logo,podemosescrever(10−ς)(10+ς)=96.Observamos,então,que102−ΔY

=102−ς2=96,econcluímosqueovalordeςdeveser2.Logo,osnúmerosprocurados10−ςe10+ςsão,respectivamente,8e12.

Podemos perceber que o método não recorre a nenhuma construçãogeométricapararesolveroproblema.Alémdisso,emsuaresolução,opera-

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se com quantidades desconhecidas do mesmo modo como se lida comquantidades conhecidas. Para Diofanto, oarithmos é uma quantidadeindeterminada de unidades diferente dos números, que são formados deuma certa quantidade, determinada, de unidades. No entanto, ambos sãosujeitosaomesmotipodetratamento.Porexemplo,assimcomooperamoscomnúmeros, obtendo um terço ou umquarto, podemos obter as partesdosarithmoi. A natureza das quantidades desconhecidas e as operaçõesquepodemosrealizarcomelassebaseiamnaspropriedadesdosnúmeros.Ou seja, na resolução de um problema as quantidades conhecidas edesconhecidas têm o mesmo estatuto. Somente por essa razão serápossívelintroduzirumsímboloparaumaquantidadedesconhecida.

Na visão de alguns historiadores, o fato de se assumir umarepresentação para quantidades desconhecidas constitui um passoimportanteemdireçãoàabstração.Logo,chegou-seaconsiderarDiofantoo “pai da álgebra”, uma vez que tal representação seria a principalcaracterísticadeumpensamentoalgébrico.cDemodomaiscuidadoso,essaparticularidade levou G.H.F. Nesselman 6 a designar o procedimento deDiofanto como uma “álgebra sincopada” que faria a transição entre aálgebra retórica e a álgebra simbólica moderna. Mesmo Viète, segundoNesselman,aindapraticavaumaálgebrasincopada.

Essa classi icação é reproduzida com frequência nos tratamentoshistóricos sobre o simbolismo algébrico, apesar de diversos estudosmaisatuaisdemonstraremqueelanãosesustentadiantedasnovasevidênciassobre a história da álgebra. 7 Como vimos, no texto de Diofanto asquantidades desconhecidas são abreviadas, e não simbolizadas, o que jáhavia sidoobservadopor J.Klein.8 Símbolosnãosão somenteabreviaçõesou notações empregadas para facilitar a prática de procedimentos decálculo e resolução de problemas; o simbolismo algébrico é um tipo derepresentação que conduz a abstrações que não estavam presentes naAritmética de Diofanto. Para caracterizar o pensamento algébrico nãobastaassociá-loaousodesímbolos,emenosaindaaousodeabreviações.

J. Christianidis9 também se distancia da interpretação algebrizantesobreDiofantoaomostrarqueumaparteessencialdeseumétodoconsistena tradução dos termos numéricos, que constam no enunciado doproblema,emdesignaçõesabreviadas,quepodemservistascomotermostécnicospertencentesaumateoriaaritmética.Presume-sequeessateoriajáexistisseantesdeDiofantoepossuísseuma linguagemprópria,distintadaqueéadotadanoenunciadodoproblema.

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Os números procurados, que iguram no enunciado do problema,possuem uma natureza distinta dos termos técnicos que intervêm naresolução quando as quantidades desconhecidas e suas potências sãoescritas de forma abreviada. Termos comoarithmos, dynamis ekybos,representadospelasrespectivasabreviações,sãoempregadoscomopartede uma técnica para resolver problemas precedida por uma explicaçãometódicadasoperaçõescomessestermos.

Depoisdessa tradução,oproblemadá lugaraumaequação,ou seja, aumaigualdade.Pararesolvê-lo,osdiversostiposdenúmerosãoagrupadose mespécies que correspondem aos nossos monômios, isto é, polinômiosalgébricos com somente um termo, comoAxm. Mas esse modo derepresentação, emDiofanto,nãoé simbólico.As soluções sãodescritasdemodo discursivo, como no exemplo anterior, e tal descrição é abreviadacomousodesímbolos.EssanovalinguagemajudaDiofantoasedistanciardocontextonumérico,noqualoproblemaéenunciado,paradesenvolverumcálculoqueseconcentrasobreasoperaçõesrealizadascomas espécies.Em um segundo momento, empregam-se regras para lidar com essaigualdadeentreespécieseencontrarasolução.No inaldoprocedimento,deve-seobterumaigualdadedaforma:

“umaoualgumasespécies=umaespécie”

A partir daí, a quantidade desconhecida pode ser facilmentedeterminada. Em notação atual, isso signi ica obter uma equação do tipoAxm=B.

Osproblemasnãosereferemaumasituaçãoreal,ligadaaocomércio,àagricultura ou a qualquer outra situação concreta. No enunciado, não sefaz sequer referência a números particulares dados, como vimos noenunciadogeraldoproblemaI-27.Noentanto,paracadaproblemaháumatécnicadesoluçãoqueédescritausando-sevaloresnuméricos.Ficaclaroque a técnica continuaria a funcionar, caso esses números fossemsubstituídos por outros, mas isso não chega a ser feito. Diofanto forneceuma enorme variedade de soluções que funcionam para exemplosparticulares, enumerados à exaustão. Porém, não existem métodos desoluçãocomoosnossos,descritos,demodogeral,comoauxíliodesímbolospararepresentaroscoeficientesepodendoseraplicadosaosexemplos.

Uma questão interessante é investigar, portanto, se os métodos desolução enumerados por Diofanto visam a algum tipo de generalidade.Alguns historiadores, como T. Heath, identi icam procedimentos comuns

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queseprestamaaplicaçõesmaisgerais.Éocasoderegras,enunciadasdemodoretórico,dqueequivalemaonosso“passarparaoutrolado”eservemparareduzirumaigualdadeaoutraequivalente,maissimples(estaúltimaanálogaà igualdadeescritaemnotaçãoatualna formaAxm =B).Veremos,adiante, que essas regras icaram conhecidas como al-jabr eal-muqabala,emárabe.

AabordagemdeHeathélimitada,contudo,pelofatodeterproposto,em1910, uma tradução de Diofanto que substitui os termos técnicos pornossossímbolosparadesignarasincógnitas(xesuaspotências),alémdasoperaçõeseigualdades.Secaracterizarmosaálgebracomoumateoriadasequações, concluiremos que não existia álgebra antes dos árabes, pois oobjetivodaAritméticanãoeraresolverequações.

Diofanto é um importante personagemdo relato tradicional, ocupandoum lugar intermediário entre Euclides e os renascentistas europeus. Noentanto, sua “álgebra rudimentar” não poderia representar umrenascimento da cultura grega, uma vez que o espírito grego estava“cansadodemais”pararetomaro impulsodeorigem. 10Emsuma,diversostraços damatemática de Diofanto foram analisados a partir do ponto devista da álgebra atual, o que levou a uma interpretação de seu lugar nahistória da álgebra como uma antecipação imperfeita de técnicas,simbolismosegeneralizaçõestípicasdapráticaalgébricanosnossosdias.

Ao contrário dessa leitura, Christianidis procura analisar ascaracterísticasalgébricaseabuscadegeneralidadetalcomoaparecemnotrabalhodeDiofanto,mostrandoqueelaspodemserassociadasaofatodea Aritmética propor um cânone na base do qual diversos problemasaritméticospodiamsertratados,mostrandocomoessecânonefuncionanaprática.Textoscomoesse,quecontêmumasériedeexercíciosesoluções,podem não ter como objetivo apresentar problemas particulares e simexibirmétodos gerais de resolução. Vimos que esse era o caso de váriosprocedimentos babilônicos e egípcios. O objetivo daAritmética não eraresolver efetivamente os problemas, mas indicar como se podem aplicarprocedimentosmetódicospararesolvê-losemetapas.

Essa característica aproxima Diofanto de Viète. Com este último, icaclaro que a introdução de um novo simbolismo é fundamental para odesenvolvimento da álgebra, e a tradução daAritmética de Diofanto teráum papel importante nesse processo. Antes de abordar essa época,precisamos, no entanto, analisar o desenvolvimento da álgebra pelosárabes e suas práticas de resolução de equações. Como houve in luência

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dos matemáticos indianos sobre os árabes, descreveremos brevementeseusmétodos.

Bhaskaraeosproblemasdesegundograu

Amaior parte damatemática que conhecemos como “indiana” foi escritaem sânscrito e se originou na região do sul da Ásia (que compreendetambémoPaquistão, oNepal, Bangladesh e Sri Lanka).Os registrosmaisantigos de que temos notícia datam da primeira metade do primeiromilênioantesdaEraComum,massetornarammaisfrequentesdepoisdaconquistadeAlexandre,oGrande,noséculoIVa.E.C.Nãoconhecemosbemas interaçõesdamatemática indiana comas tradiçõesantigas, entretanto,algunsdeseusproblemasparecemtersidoinspiradospelocontatocomaastronomiababilônicaegrega.

É sabido que o sistema de numeração decimal posicional que usamoshoje é de origem indiana, tendo sido transmitido para o Ocidente pelospovos islâmicos na IdadeMédia. E os documentos indianosmostram queesse sistema estava bem estabelecido nos primeiros séculos da EraComum. Antes disso, usavam-se diferentes sistemas de numeração,aditivos e multiplicativos, embora não posicionais. Alguns textosastronômicos e astrológicos do século III E.C. já empregavam um sistemaposicional decimal, incluindo um símbolo para o zero. No entanto, asevidências sobre a astronomia escrita em sânscrito só se tornarammaissigni icativas a partir de meados do primeiro milênio. Elas mostram quehavia, nesse período, uma intensa atividade matemática expressasobretudo pela elaboração de tratados astronômicos que também foramin luenciadosporobrasgregas,devidoao contato como império romano.Os autores integravam elementos de sua tradição matemática – comoconceitos sobre a astronomia e o calendário, bem como o sistemaposicionaldecimal–aoutroscomponentes,adaptadosdasobrasgregas–como a trigonometria plana, osmodelos cosmológicos geocêntricos (comoosdePtolomeu)eaastrologia.

Dos tratados desse tipo omais antigo que conhecemos foi escrito porAryabhata,quenasceunoano476.Poucosesabesobresuavida,masessaobrapermaneceumadasfontesmaisimportantessobreamatemáticaeaastronomia indianas. Ela foi toda escrita em versos, o que se tornou umatradição indiana, e apresenta conhecimentos matemáticos variados,

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principalmente em relação às regras de cálculo. Há procedimentosaritméticos e geométricos, como os usados para encontrar raízesquadradas e cúbicas, assim como o cômputo de áreas, além de incluirregrastrigonométricasúteisparaaastronomia.Oaspectomaisinovadoréa sistematização das técnicas de cálculo, que constituem uma práticachamada “ganita”, concebida como o estudo dos métodos de cálculo emgeralevoltadosnãosomenteparaaastronomia.

Como a exposição em versos era de di ícil compreensão, as obrasindianas eram complementadas por comentários redigidos por outrosmatemáticos tendoemvistaelucidaro seusigni icado.Ocomentáriomaisantigo sobre o livro de Aryabhata foi escrito por um autor de nomeBhaskaraem629.Masessepersonagemécompletamentedesconhecidoechamado, frequentemente, de Bhaskara I, para distingui-lo do outroBhaskaramaisfamoso,queviveunoséculoXII.OcomentáriodeBhaskaraI indica que a matemática documentada em sânscrito era bastante rica,poiseleserefereaumatradiçãoquepareciaestarbemestabelecida.Essatradiçãodizrespeitoaumapráticadistintadaqueconcebemoshojecomomatemática, pois seu principal objetivo era garantir que os leitorescompreendessem e interpretassem corretamente as regras contidas nosversos, que pareciam propositadamente criptográ icos. Sua decodi icaçãoincluía, ainda, uma análise gramatical, considerada parte da práticamatemática.

Um tratado astronômico contemporâneo do comentário de Bhaskara Ifoi escrito pelo astrônomo Brahmagupta, em 628. Um dos capítulosmatemáticos de seu tratado é dedicado completamente à “ganita”,contendo o estudo de operações aritméticas, razões e proporções, juros,bemcomofórmulasparaacharcomprimentos,áreasevolumesde igurasgeométricas.Contudo,haviatambémumcapítulodedicadoaumoutrotipodematemáticaquecompreendiaanálisesenvolvendoozero,osnegativosepositivos,asquantidadesdesconhecidas,eaindaosmétodosdeeliminaçãodotermomédioedereduçãoaumavariável.Tratava-sedetécnicasparalidarcomproblemasenvolvendoquantidadesdesconhecidas.

Nósnosconcentraremosaquinessesmétodos,poisqueremosinvestigaras técnicas usadas em problemas que exprimiríamos, hoje, como umaequação do segundo grau.Os procedimentos utilizados porBrahmaguptaforamcitados,maistarde,porBhaskaraII,autordoslivrosmaispopularesde aritmética e álgebrano séculoXII, que, presume-se, foram livros-textovoltadosparaoensino.Asevidênciasabundantessobreostrabalhosdesse

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astrônomo,quenasceuem1114,indicamqueerambastantein luentesnaépoca.Seuslivrosmaisconhecidos,oLilavatieoBijaGanita,mostramcomoa prática da “ganita”, já presente nos escritos de Aryabhata eBrahmagupta,amadureceuaolongodosséculos.ComoressaltaPlo ker, 11aorganização desses livros apresenta o sistema posicional decimal e asoperaçõesdemodopadronizado,incluindooperaçõescomfraçõesezeros.N oBija Ganita, que quer dizer “semente do cálculo”, tais regras sãosucedidas por algoritmos para resolver problemas envolvendoquantidades desconhecidas. As regras são expressas em versos,mas sãoilustradas por exemplos e contêm um comentário do próprio autor,visando explicá-las. Tais comentários fornecem enunciados numéricos emétodos retóricos de solução de modo padronizado para os problemasdados nos exemplos. Ummétodo geral era enunciado para um problemaescritonaformapadrão:

(I) “Deumaquantidade retiramosouadicionamosa sua raizmultiplicadaporumcoeficienteeasomaouadiferençaéigualaumnúmerodado.”

A quantidade citada é um quadrado e a raiz desse quadrado é aincógnita.Esseéumenunciadoretóricoque, traduzidoemnossanotação,seriaumaequaçãogeralcomox2±bx=c.Ométododeresoluçãoconsistiaem reduzir oproblemaauma igualdade, ou seja, semo termoquadrado.Issoerafeitopormeiodatécnicade“eliminaçãodotermomédio”:

(II) “Seja uma igualdade contendo a quantidade desconhecida, seuquadrado etc. Se temos os quadrados da quantidade desconhecida etc.,em um dos membros multiplicamos os dois membros por um fatorconveniente e somamos o que é necessário para que o membro dasquantidadesdesconhecidas tenhaumaraiz; igualando,emseguida,essaraiz à do membro das quantidades conhecidas, obtemos o valor daquantidadedesconhecida.”

Observamos que se concebia, de modo retórico, uma igualdade entredois membros, sem utilização do sinal de igual: a igualdade entre ummembrocontendoaquantidadedesconhecida(eoseuquadrado)eoutromembro contendo as quantidades conhecidas. O primeiro membro deveser escrito demodo a possuir uma raiz, ou seja, deve ser reescrito comoumquadrado,oqueseobtémpelasseguintesespecificações:

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(III) “Éporunidades iguaisaquatrovezesonúmerodequadradosqueéprecisomultiplicarosdoismembros;eéaquantidadeigualaoquadradodo número primitivo de quantidades desconhecidas simples que éprecisoadicionar.”

Temos, assim, a condição requerida em (II) de que o membro dasquantidades desconhecidas tenha uma raiz. Trata-se do método queconhecemoshojecomo“completaroquadrado”.

TraduçãodométododeBhaskaraemnossanotação

Pararesolveraequaçãoax2+bx=c:Multiplicamosambososladospor4a,obtendo4a2x2+4abx=4ac.Emseguida,adicionamosb2aambososlados,4a2x2+4abx+b2=4ac+b2.Agora podemos reescrever essa igualdade como (2 ax + b)2= 4ac + b2 e omembro contendo as quantidades desconhecidas possui uma raiz.Tomamos, então, a raiz quadrada para obter:

.

Veremos, emdetalhes, comoessemétodo é aplicado a umexemplodoBijaGanita:

Deumenxamedeabelhas,tomeametade,depoisaraiz.Essegrupoextraiopólendeumcampodejasmins.Oitononosdotodo lutuampelocéu.Umaabelhasolitáriaescutaseumachozumbirsobreuma lorde lótus.Atraídopela fragrância,ele tinhasedeixadoaprisionarnanoiteanterior.Quantasabelhashavianoenxame?

Para resolver o problema, deve-se, em primeiro lugar, escrever aequação, que, no caso, era uma igualdade retórica. Bhaskara a irma que,pelapergunta,parecequeametadeda soma temuma raiz, logo,deve-sesupor o quadrado da quantidade desconhecida (2x2). Em função dele,escrevemos a quantidadedesconhecida como a raiz dametade (x). Comorestam duas abelhas, uma quantidade desconhecida e de doisquadrados da quantidade desconhecida (ou seja, de um quadrado,

) mais duas unidades é igual a 2 quadrados da quantidade

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desconhecida,istoé, .Pelo procedimento descrito em (II), obtém-se uma igualdade

equivalenteàequação2x2−9x =18,quedeve ser resolvidapelométododeeliminaçãodotermomédio(III),que,traduzidoemnotaçãoatual,seria:multiplicarosdoismembrospor8esomar81,obtendo16x2−72x+81=225; como os dois membros são quadrados, deve-se extrair as raízes eigualá-laspara chegar à igualdade4x − 9=15, deonde se conclui queovalordaquantidadedesconhecidaé6;logo,onúmerodeabelhas,2x2,é72.

De forma geral, o método de resolução consiste em: completar oquadrado no primeiro membro para tornar o termo contendo aquantidadedesconhecidaeseuquadradoumquadradoperfeito;diminuirograudaequaçãoextraindoaraizquadradadosdoismembros;resolveraequaçãodeprimeirograuquedaíresulta.

Namatemática indiana erammuito comuns as equações commais deuma incógnita, equações indeterminadas que escreveríamos, hoje, assim:xy = ax + by + c ouy2 = ax² + 1. Esses casos eram resolvidos porprocedimentos semelhantes ao método descrito acima, podendo seempregarsímbolospararepresentarasincógnitas.OmétododeBhaskarafuncionaperfeitamentepararesolveroquechamamos,hoje,de“equaçõesde segundo grau”,mas ainda assim não podemos atribuir-lhe a invençãodafórmulausadaatualmente.Porquê?

Mesmo que pudessem ser empregados símbolos para representar asincógnitas e algumas operações, não havia símbolos para expressarcoe icientesgenéricosa,bec,…deumaequaçãocomoax2+bx+c=0.Setraduzirmos o método indiano para a notação algébrica atual e oaplicarmosaessaequaçãogeral,obteremosoequivalentedafórmulapararesolução de equações do segundo grau. Isso quer dizer que havia ummétodogeralpara resoluçãodeequações, expressodemodoretórico.Noentanto, não podemos dizer que já existisse uma “fórmula” para aresolução de equações, no sentido que a entendemos hoje, uma vez quenãohavia simbolismopara os coe icientes, o que serápropostoporViètesomentenoséculoXVI.

ApredominânciadostextosdeBhaskaraIIfazcomquepensemosqueamatemáticaindianadecaiudepoisdoséculoXII,masháevidênciasdequeela continuou a se desenvolver, embora de forma isolada em relação àEuropa. Transmissões diretas da matemática indiana para o Ocidenteforam frequentes durante a expansão islâmica, que controlou parte daÍndia a partir do século VIII. Os tratados astronômicos da escola de

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Brahmagupta chegaram a Bagdá nessa época e foram rapidamentetraduzidos.Outrastraduçõesdosânscritoinspiraramtrabalhosárabesemastronomia e astrologia, alguns imitando a escrita em versos. A maioriadesses textos se perdeu. Contudo, ainda assim podemos a irmar que aastronomia emergente na matemática árabe adotou diversos métodosindianos, embora de modo não uniforme, como a representação decimalposicional e as técnicas de cálculo. No entanto, a in luência indiana doperíodo inicial logo foiultrapassadapela invasãode textosmatemáticos eastronômicos gregos, traduzidos em seguida. A astronomia indiana foi,então, submetidaàspráticasgreco-islâmicas, tendopermanecidosomenteumaaritméticadecimalposicional,designadade“computaçãoindiana”.

Singularidadeárabe

O islã nasceu emMeca e se estendeu,muito rapidamente, emdireção aoEgito e a territórios que constituíram a antigaMesopotâmia. Seu domínioincluía, por exemplo,Alexandria, que continuava a possuir uma atividadeintelectual considerável.As ciênciasbabilônica e egípciadeixarampoucosregistros, mas é razoável pensar que os conhecimentos práticos foramtransmitidosdegeraçãoemgeraçãopeloshabitantesdolugar.

Jens Høyrupe cunhou o termo “cultura subcientí ica” para valorizar aexistênciadeumsubstratoanônimoqueincluíaprocedimentos, técnicasepráticas usados no dia a dia e que se estendia por toda a região na faseimediatamente anterior ao advento do islã. Apesar de existirem rarasevidências textuais, alguns problemas e técnicas comuns na épocamantinham parentesco com a matemática dos babilônios e dos egípcios,como as frações unitárias. Além disso, alguns problemas recreativos,propondo desa ios, parecem ter atravessado os séculos. Seria o caso, porexemplo, do jogo do tabuleiro de xadrez, que consiste em perguntarquantos grãos de arroz obteremos se colocarmos um grão na primeiracasa do tabuleiro e duplicarmos sucessivamente o número de grãos atéchegaràúltimacasa.

Podemos conjecturar a existência de uma matemática prática erecreativa, em continuidade com as culturas babilônica e egípcia, que seespalhava pelo Oriente e pelos territórios do império romano durante aAntiguidade tardia e que provavelmente estava bem estabelecida nascomunidades comerciaisdas regiões cobertaspela expansão islâmica.Em

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textos árabes, há evidências de que essa cultura possuía um prestígiosocial inferior ao nível do conhecimento propriamente dito, mas erafrequente osmatemáticos retomarem problemas do senso comum com oimdedar-lhesumtratamentomaissistemático.Adiferençaseestabeleciaentreaquelesquesecontentavamemreproduziraspráticascomunseosquerefletiamsobretaisprocedimentos.

Essa tradição subcientí ica podia ser dividida em técnicas de cálculo,usadas no comércio, e geometria prática, empregada por arquitetos eartesãos. Juntamente com a cultura cientí ica grega, essas diferentestradiçõesteriamconvividonoperíodopré-islâmico,porémsemalcançarograu de desenvolvimento e criatividade que marcou os primórdios daépocadeourodoislã,iniciadanoséculoIX.Podemoschamar,portanto,desíntese islâmica a conscientização sobre a relevância e as potencialidadesda matemática prática e da matemática teórica quando aplicadas aproblemas,métodoseresultadosumadaoutra.

Umaprimeiraexplicaçãoparaessasínteseécultural–residenofatodeconviverem,sobodomíniodo islã,povosdistintos,oriundosdediferentestradições e de diferentes estratos sociais. Essa convivência, bem como acirculação de saberes e sábios pelo território, pode ter quebrado oisolamento em que viviam essas culturas no estágio precedente e criadoum ambiente propício ao aprendizado, logo, ao pensamento. Houve umaprimeirafasebastantetolerantedoislã,emquesepermitiaaconvivênciados muçulmanos com os judeus e os cristãos. Do ponto de vista dopensamento,essatolerânciatambémerasentida,pois,aoladodasciênciassagradas, constituídas pela teologia e pela jurisprudência, estavam aschamadas ciências estrangeiras, recebidas dos gregos. Estas eramconstituídasporramosdoconhecimentotidoscomoauxiliaresquepodiamserviràciênciatradicional,incluindoamatemáticaeaastronomia.

Alguns problemas práticos exigiam o desenvolvimento damatemática,caso das heranças. Toda a família tinha direito a uma parte da herança,masnãodemodoigualitário.Eramusadosmétodosaritméticosso isticadosquepassavamporcálculoscomfrações,eaindaométododafalsa-posição,para encontrar uma quantidade desconhecida. f Teriam surgido daí osprimeiros problemas, enunciados demodo retórico, que são equivalentesaoquedesignamoshojepormeiodeumaequaçãodosegundograu.

No século IX, o fundamentalismo islâmico confrontou-se com umasociedade em transformação na qual a autoridade religiosa não eraexercidaporumaigreja.Asdecisõeseramtomadasporpessoasengajadas

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na vida prática, favorecendo uma integração entre ciência e religião. Issoacontecia de ummodo singular, pois a legitimação do interesse cientí icopassava pela conexão dessa religião com as preocupações práticaspresentes na vida social, impedindo a segregação entre a ciência e asnecessidades diárias. O matemático não se satisfazia em permanecer nonível do pragmatismo; ele devia ir além, para produzir um conhecimentomais so isticado. Mas não o fazia por considerar que a teoria estivesseacimadas aplicações, ouque amatemáticapura e abstratapudesse icarpoluídapelocontatocomasopiniõeseascarênciasdodiaadia.Mesmooscientistas mais re inados se preocupavam com a aplicação de seusconhecimentos e enxergavam a teoria e a prática como indissociáveis.Como a irma Høyrup, a elaboração teórica sistemática do conhecimentoaplicadofoiumacriaçãoespecí icadomundoislâmico.Essetraço,quenãoera compartilhado pelasmatemáticasmais antigas, também foimarcantenosprincípiosdeciênciamoderna.

Um outro fator de desenvolvimento da matemática árabe, maisconhecido,sãoastraduçõesdasobrasgregas,quecomeçaramaserfeitaspor volta do século VIII. Essas iniciativas são atribuídas a indivíduos ougruposdeestudiososquese interessavamvoluntariamentepelosescritosencontradosnosterritóriosconquistados.Asinstituiçõesdeensinoeramasmadraças,dedicadasàdifusãodoconhecimento,masnãoàsuaprodução.Tais escolas erammantidas por fundações piedosas e deviam ensinar ostextoscanônicos,mantendoatradiçãodosabersagrado.Noentanto,nesseprimeiro momento, várias delas apoiavam também as ciênciasestrangeiras.Noperíodoracionalista,entreosséculosIXeXI,houveaindauma instituição o icial importante, fundada pelo califa em Bagdá econhecida como Casa do Saber. Aí existia uma biblioteca na qual secolecionavame traduziammanuscritosgregos.Alémdesta,haviaalgumasoutrasbibliotecaseobservatóriosemquetambémerapossívelestudarasciênciasestrangeiras.

Nessaprimeirafasedoimpériomuçulmano,a iloso ia,amatemáticaeaastronomia adquiriram um lugar privilegiado. Elas eram praticadas porhomens cultos que já viviam nesses locais e falavam várias línguas. Aatividade intelectual eramais intensa emalguns centrosque já possuíamuma tradição, como Alexandria, mas também em outros lugares. Muitosdessespensadoresconheciamos textosantigos,quepodiam lerna línguaoriginalouemumatraduçãoanteriorparaumadaslínguaslocais,comoasiríaca e a persa. A instituição do podermuçulmano, uni icando diversos

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territóriosantesfragmentados,criounovasdemandasealterouadinâmicadecirculaçãodessessaberes.

Ahmed Djebbar12 mostra que o fenômeno de tradução não foiinstantâneo,nemseguiuumaordemracional.Nãohavianenhumapolíticacentral relativa ao saber e ninguém decidiu impetrar um programa detradução das obras cientí icas antigas e con iá-las a uma equipe detradutores. As traduções seguiram uma dinâmica complexa edescoordenada. Os primeiros tradutores encontravam obras antigas epropunham um texto em árabe contendo vários erros, pois não existiamcorrespondentes em árabe para os termos cientí icos que constavamdessasobras.Muitoseramoscasos,portanto,deretraduçõesoumesmodereconstruçõesdos textosantigos,oquepode terpropiciadoaemergênciadasprimeirascontribuiçõesoriginaisdospensadoresárabes.

Emumprimeiromomento,asobrasdemedicinae iloso iadespertaramum grande interesse, mas os árabes traduziam praticamente tudo o queencontravam, sem critério de seleção rígido. Aos poucos, os trabalhos deAristóteles se destacaram e sua obra dominou as discussões ilosó icasentre os séculos IX e XIII. Essa in luência, no entanto, não foinecessariamente positiva para amatemática árabe, pois impunha limites,por exemplo: o “um” não devia ser considerado número; o movimentodevia ser banido das demonstrações geométricas; devia ser respeitada ahomogeneidadedasgrandezas.Ouseja,ain luência ilosó icaimpunhaumpadrão geométrico à álgebra, ainda que essa restrição não fossesigni icativa. As práticas se desenvolviam sem muita preocupação comcânones de ordem normativa. Não é di ícil imaginar que a tradução dasprimeiras obras de astronomia e matemática, bem como dos primeirosescritos originais, tenhamotivado, automaticamente, a tradução de novasobras, dando origem a uma prática importante de tradução até aconstituiçãodeumcorporazoáveldeobrascientíficas.

Entre os séculos VIII e XII, a cidade de Bagdá era um dos maiorescentros cientí icos do mundo, e seus matemáticos tinham conhecimentotanto das obras gregas quanto das orientais. A partir do século IX, essacultura evoluiu para uma produção matemática original que tinha naálgebraumdeseuspontos fortes.Agrande in luênciadasobrasclássicasnão impediuo surgimentodeumamatemáticanova,eomatemáticomaisilustre desse século foi Al-Khwarizmi. No século XI houve umadogmatizaçãodoislãeosracionalistasforamvencidos.Oapoioàsciênciasestrangeiras,nasmadraças,deixoudeexistireaciênciacomeçouadecair.

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AreconquistadeToledo,CórdobaeSevilha,noséculoXII, fezcomqueosnúcleos cientí icos dessas cidades andaluzas migrassem para um espaçomuçulmanomaisacolhedorparaasuacultura.Talmudançaimpulsionouodesenvolvimento da matemática e da astronomia no Magreb entre osséculosXIIeXIV.

Fala-semuito namatemática produzida na região de Bagdá ou no Irã,masdesdeosanos1980ahistóriadamatemáticatemsededicadotambémàspráticasmatemáticas desenvolvidas no chamadoOcidentemuçulmano,que inclui a Andaluzia e oMagreb. Esses pesquisadores, dentre os quaisAhmed Djebbar se destaca, procurammostrar que a recuperação dessahistória esquecida pode ter uma função política – a de favorecer oreconhecimentodeumacidadaniamediterrâneaquepermitapaci icaroscon litosexistentesnaregião.EntreosséculosXIIeXV,Marrakecheraumpolo de desenvolvimento cientí ico, uni icando as culturas africanas eeuropeias localizadas em torno do Mediterrâneo, sem distinção entremuçulmanos, judeus e cristãos. Além de enfatizar contribuiçõesmatemáticas antes desconhecidas, como a introdução do simbolismoalgébrico, essas pesquisas recentes analisam o papel dessas regiões nofenômeno de circulação da produçãomatemática em direção ao restantedaEuropa,pormeiode traduçõesparao latimeohebraico.Essadireçãodepesquisabuscadesconstruir o viés eurocentristado relato tradicional,explícitonosescritosdosprimeiroshistoriadoresdamatemática,queerammatemáticosdeprofissãoeviamcompreconceitoacontribuiçãoárabe:

As artes e as ciências já se fragilizavamquando o Egito foi conquistado pelos árabes, e que oincêndio da famosa biblioteca … sinalizou a barbárie e as longas trevas que envolveram oespíritohumano.Contudo, essesmesmosárabes, depoisdeumoudois séculos, reconheceramsua ignorância e iniciaram, eles próprios, a restauração das ciências. Foram eles que nostransmitiramsejaotexto,ouatraduçãoemsualíngua,dosmanuscritosqueescaparamaofurorfanático.Masessaé,aproximadamente,aúnicaobrigaçãoquetemosparacomeles.13

Sentenças como esta nos esclarecemmais sobre o pensamentode seuautordoquesobreos trabalhosárabes.Aseguir,nosconcentraremosnaálgebra, mas é importante lembrar que, no mundo árabe, a astronomialevou aumgrandedesenvolvimentoda trigonometria, bemcomodeumageometriateórica.

AálgebradeAl-Khwarizmi

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Pode-sedizerqueaálgebratemorigemnoestudosistemáticodosmétodospara classi icar e resolver equações, o que teve lugar com os trabalhosárabes iniciados por Al-Khwarizmi. Segundo Vitrac, 14 a maioria dosingredientesparaodesenvolvimentodessa teoriadas equações já existianos trabalhos gregos e indianos,mas sua explicitação só abriu uma novaperspectiva com os árabes. Como vimos, os procedimentos algébricos namatemática árabe ligavam-se às práticas situadas em um nível maiscorriqueirodoqueodamatemática,divididaemaritméticaegeometria.

Após se apropriarem das obras gregas, os árabes expandiram seuconhecimento e desenvolver a álgebra foi um fator que permitiu essaemancipação. Primeiramente, porque permitiu romper com apredominânciadoconhecimentogrego.Porexemplo,aálgebradosárabesultrapassou a divisão entre número e grandeza, que era constituinte damatemática euclidiana. Além da teoria das equações, eles criaram umcálculoalgébricosobreexpressõespolinomiaiseestenderamasoperaçõesaritméticas a essas expressões, bem como a quantidades que os antigosnãoconsideravamnúmeros,casodosirracionais.

O termo “álgebra” tem origem em um dos livros árabes maisimportantes da Idade Média:Tratado sobre o cálculo de al-jabr e al-muqabala, escrito por Al-Khwarizmi. A palavraal-jabr, ou “álgebra”, emárabe, era utilizada para designar “restauração”, uma das operaçõesusadasnaresoluçãodeequações.Jáaal-muqabalaqueriadizeralgocomo“balanceamento”. Trata-se, de fato, de duas etapas do método pararesolver equações. Vimos que procedimentos análogos eramempregadosporDiofanto,masnãodeveterhavidoin luênciadiretadesteúltimosobreAl-Khwarizmi. A tradução dos sete primeiros livros da Aritmética para oárabe data dos anos 70 do século IX, e parece só ter tido impacto namatemática islâmica um pouco mais tarde. Os trabalhos gregos maisimportantes,aomenosnaprimeira fasedamatemáticaárabe,eramosdeEuclides, Arquimedes, Apolônio e Ptolomeu. A semelhança entre algunsprocedimentos usados na manipulação de equações por Diofanto e Al-Khwarizmi pode ser explicada por sua permanência na culturasubcientí ica,quedeveterperduradoentreaAntiguidadetardiaeaIdadeMédia.

Al-Khwarizmi não empregava nenhum simbolismo; ao contrário deDiofanto, sua linguagem era exclusivamente retórica. Apesar disso, haviaum vocabulário padrão para designar os objetos que surgiam nosproblemas,sobretudoparaostrêsmodossobosquaisonúmeroaparecia

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no cálculo da álgebra: a raiz, o quadrado e o número simples. A palavraMal exprimia o quadrado da quantidade desconhecida. Na linguagemcorrente, esse termo signi icava “possessão”, ou “tesouro”, mas, como osoutros,erausadoporAl-Khwarizmicomumsentidotécnico,nocontextodaresoluçãodeequações.Nãosetratavatampoucodoquadradogeométrico,designadopelapalavramurabba’a.CitandoAl-Khwarizmi:

Araizéqualquercoisaqueserámultiplicadaporelamesma…

Oquadradoéoqueobtemosquandomultiplicamosaraizporelamesma.

O número simples é um número que expressamos sem que estejarelacionadonemaumaraiz,nemaumquadrado.15

A “raiz” é o termo essencial, designada pela palavra Jidhr e tambémchamadade“coisa”(shay).Asduaspalavraseramusadasparaexprimiroqueatualmentechamamosde“incógnita”.Oempregodotermo“raiz”paraexpressaraquantidadedesconhecidaestáestreitamenteligadoaofatodeque o quadrado dessa quantidade era também uma incógnita, comnomenclaturaprópria(Mal). Já oAdad eraumnúmerodadoqualquer,ouseja,aquantidadeconhecida.

TABELA1

Vale destacar que a palavra “coisa” era utilizada para enfatizar acondição de incógnita, pois, em árabe, o vocábulo está associado a uma“inde inição”ou“indeterminação”.UmavezqueocálculodeAl-Khwarizmiera formal e a incógnita designava objetos de uma natureza qualquer, aescolhadapalavra“coisa”poderevelarumapreocupaçãoemelaborarumcálculoquepudesseseraplicado tantoaosnúmerosquantoàsgrandezas

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geométricas. Esse relaxamento da distância entre grandeza e número foifundamental para a criação de um novo domínio (a álgebra), que nãoestava contido nemna geometria nem na aritmética. Justamente por issopodemosdizerque,emcertosentido,aálgebraéumainvençãoárabe.

O uso atual do termo “raiz” para a solução de uma equação vem datradução para o latim do árabe Jidhr. Antes disso, e desde a Grécia, apalavra“raiz”erautilizadaparadesignararaizdeumnúmero,associadaaoselementosdequeumnúmeroéformadoporpotenciação.Porexemplo,2 é raiz de 4, pois 4 pode ser obtido multiplicando-se 2 por 2. Mas 2poderiasertambémraizde8,umavezque2×2×2=8.

Depoisdemostrarcomoefetuarasquatrooperaçõessobreexpressõescontendo quantidades desconhecidas e radicais, Al-Khwarizmi passa àenumeração dos seis problemas possíveis, enunciados de modo retórico(comtraduçãoemnotaçãoatualentreparênteses):

quadradosiguaisaraízes(ax2=bx)quadradosiguaisaumnúmero(ax2=c)raízesiguaisaumnúmero(bx=c)quadradoseraízesiguaisaumnúmero(ax2+bx=c)quadradoseumnúmeroiguaisaraízes(ax2+c=bx)raízeseumnúmeroiguaisaquadrados(bx+c=ax2)

Emtodososcasos,oscoe icienteseramsempreconsideradospositivos,pois falava-se de uma quantidade de quadrados, ou de raízes. Para cadaum dos tipos enumerados, Al-Khwarizmi enunciava regras de solução ejusti icativasgeométricasextraídasdosElementosdeEuclides.Aresoluçãoempregava uma combinação demétodos algébricos e geométricos. Todasas quantidades são interpretadas também como grandezas, o que davaorigemàseparaçãodoscasos.Ouseja,osseis tiposnãoeramvistoscomocasos particulares de uma equação genérica comoax2 + bx + c = 0,conforme a entendemos hoje, que admite implicitamente quea,b ec sãoquantidadesarbitrárias.

Cadacasoeratratadoapartirdeexemplos,masométododeviaservirparadadosnuméricosquaisquerdentrodaquelecaso.Paraoquartocaso,Al-Khwarizmi considera o exemplo “umMal e dezJidhr igualam 39dinares”, que em nossa notação algébrica seria representado como x2 +10x=39.Oalgoritmoderesoluçãoeradescritoassim:

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TomeametadedaquantidadedeJidhr(quenesteexemploé5)Multipliqueessaquantidadeporsimesma(obtendo25)SomenoresultadoosAdad(fazemos39+25=64)Extraiaaraizquadradadoresultado(quedá8)Subtraiadesse resultadoametadedos Jidhr, encontrandoa solução (essasoluçãoé8−5=3)

Traduzindoesseprocedimento em linguagemalgébrica atual, teríamosqueasoluçãodeumaequaçãodotipox2+bx=cédadapor .Apresentamosessasoluçãoorganizadaemumatabela,a imdecomparararesoluçãodeAl-Khwarizmicomaqueéefetuadaatualmente:

TABELA2

Observandoaterceiracolunadatabela,percebemosqueoalgoritmoderesolução é uma sequência de operações equivalentes à fórmula deresolução de equação do segundo grau usada atualmente. Mesmo quefosse exposto para um exemplo particular, o método descrito por Al-Khwarizmi permitia tratar qualquer exemplo dentro de um casodeterminado,logo,essemétodogozavadecertageneralidade.Emseguida,Al-Khwarizmiacrescenta:“A iguraparaexplicaristoéumquadradocujosladossãodesconhecidos.”Deve-seconstruirumquadradodediagonalABquerepresenteoMal,ouoquadradodaraizprocurada,edoisretângulos

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iguais,GeD,cujos ladossãoaraizprocuradae5,metadede10.A iguraobtida é umgnomon de área 39. Completando essa igura com umquadradode lado5 (área25),obtemosumquadradodeárea64(=39+25).Oladodessequadradomede8.Daíobtém-sequearaizprocuradaé3(=8−5).

ILUSTRAÇÃO1

Essa construção geométrica reproduz exatamente o procedimento deresoluçãoedemonstraanecessidadedecompletaroquadradonasoluçãoalgébrica.Al-Khwarizmi identi icavao ladodoquadradogeométricoàraizdoquadradoalgébricocomoobjetivodeexplicaradivisãodonúmerodeJidhr em duas metades. Essa justi icativa geométrica não servia paragarantir a verdade do algoritmo e sim para explicar sua causa: anecessidadedecompletaroquadrado.Essepapelparaumaargumentaçãogeométricaeratotalmentenovonamatemática.

É curioso observar que a equivalência de áreas, suposta noprocedimentoexposto,éexplicitadapelaproposiçãoII-4dosElementosdeEuclides.Contudo,apesardeessaobra jáestar traduzidanaépocadeAl-Khwarizmi, ele nunca amenciona explicitamente, o que pode indicar umdesejodesedistanciardessatradição.

Qualquer problema devia se encaixar em uma das seis categoriasde inidas inicialmente. Identi icado o seu tipo, o problema seria resolvidopeloprocedimentoadequadoà suacategoria. Sendoassim,paraaplicarométodo algébrico a situações concretas, era necessário reduzir umproblemaqualqueraumdoscasos.Esseéopapeldosprocedimentosde“restauração”(al-jabr)e“balanceamento”(al-muqabala). Suponhamos, emnotaçãoatual,aequação:

2x2+100−20x=58

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Como todos os coe icientes devem ser positivos, para que possamosconceberuma igualdadeentreosdoismembrosdessa equação, devemosimaginar que o primeiro possui um excedente de 20x em relação aosegundo. Sendo assim, a igualdade nessa equação deve ser “restaurada”peloprocedimentodeal-jabr,ouseja,devemos“enriquecer”2x2+ 100 dodé icitquelhecausouaretiradade20x.Na linguagematual, issoequivaleadizerqueotermosubtraídonoprimeiromembrodeveseradicionadoaosegundomembro,deformaaseobterumaigualdadecomtodosostermospositivos:

2x2+100=20x+58

Observemos que esse modo de “passar para o outro lado” não sejusti ica pela concepção que temos de que a soma e a subtração sãooperações inversas. Omodo de operar dos árabes estámais próximo dacrença de que realmente retiramos uma quantidade de um lado para“passarparaooutrolado”,forçadapelarestriçãoaouniversodosnúmerospositivos.Emseguida,asespéciesdomesmotipoeiguaissãosubtraídasdeambosos lados,oqueseriaequivalentearetirar58deambosos lados.Éprecisoequilibrarosdoislados,ouseja,balanceá-lospeloprocedimentodeal-muqabala, reduzindo os dois números a um só. Chegamos, assim, àequação:

2x2+42=20x

Dividindoessaequaçãopor2,obtemosumaequaçãodoquinto tiponalista dos casos enumerados por Al-Khwarizmi e podemos resolvê-la pelométodofornecidoparaaequaçãox2+21=10x.

Podem-se identi icar, no conjunto desses procedimentos, diversastécnicaspresentesemoutrosmomentoshistóricos.Operaçõesequivalentesàs deal-jabr eal-muqabala já eram conhecidas na época de Diofanto; aresoluçãodeproblemasde segundograu jáerapraticadapelos indianos;e,comovimosnoCapítulo1,ométododecompletarquadradoseracomumna matemática mesopotâmica. Nenhuma dessas in luências pode serveri icadadiretamentenosprimeirostratadosdeálgebraárabe,oquenãoquerdizerquetaisescritossejamabsolutamenteoriginais.

Segundo Høyrup,16 as técnicas para manipulação de equações faziampartedaculturamatemática subcientí icapraticadaporcalculadores,queresolviam equações, ou por pro issionais, como arquitetos e artesãos

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quali icadosquerealizavamumageometriaprática.Osmétodosdeal-jabreram usados por grupos de indivíduos conhecidos como “seguidores daálgebra”. A técnica era retórica e seu objetivo consistia em resolverproblemas quadráticos em situações concretas. As provas geométricasfornecidas por Al-Kwharizmi e por outrosmatemáticos árabes, como IbnTurk, tambémpodem ter sidoderivadasdepráticasgeométricas comuns,comtradiçãoemoperarcomfiguras.

Nessaspráticas subcientí icaspode ser sentidauma in luência indianaindireta. Um dos principais exemplos é o uso dos algarismos quedesignamos como “indo-arábicos”. Essa representação dos números,presente também em nossa matemática, já era empregada por Al-Kwharizmi e é atribuída por ele aos indianos. No entanto, esta deve tersido uma herança de praticantes que usavam o sistema, não sendotransmitidapor tratadosaritméticosdenaturezacientí ica.Aindaassim,édiscutível se o sistema posicional decimal, adotado pelos indianos, foidivulgado pelos árabes, pois estes usavam majoritariamente o sistemagregosexagesimal.

As práticas algébricas dos árabes possuem conexão com os métodosbabilônicos e indianos, porém é di ícil encontrar evidências quetestemunheminfluênciasdiretasdessasculturas.Antesmesmodostemposislâmicos, tais tradições jáhaviamsemisturadoe, apartirdo século IX, asíntese islâmica foi responsável pela sistematização das práticas. Aospoucos, aal-jabr e aal-muqabala foram se tornando uma ciência. Paraempregar os algoritmos de resolução de equações, a partir do século XIImatemáticos árabes passaram a abreviá-los por símbolos, sobretudo noMagreb. Foi se estabelecendo, assim, uma forma aproximadamentesimbólicaparaexprimiressatécnica.

Para resumir, Diofanto já empregava técnicas de manipulação deigualdades e abreviações. As matemáticas indiana e árabe possuíam emcomum o fato de enunciarem métodos de resolução que, traduzidossimbolicamente,equivalemànossafórmulapararesoluçãodeequaçõesdosegundograu.Osindianostambémusavamabreviaçõesesímbolosparaasoperações.Al-Khwarizmiforneceualgoritmosderesoluçãojusti icadosporprocedimentos geométricos semelhantes aos babilônicos. Quandotraduzidas em notação simbólica atual, essas técnicas são equivalentes àfórmula para resolução de equações do segundo grau. Todavia, sópodemosdizerqueexisterealmenteuma“fórmula”quando:

1. representarmos simbolicamente as incógnitas e as operações

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contidasemumaequação;e2. a equação do segundo grau passar a ser considerada de modo

genérico, ou seja, com todas as parcelas possíveis e com os coe icientesindeterminados.

As etapas 1 e 2 foram obtidas depois de muitos séculos de pesquisa,que vão desde Diofanto, passando por indianos e árabes, até chegar aostrabalhos de Viète, no século XVI. O método árabe é bem diferente danossa fórmula, em particular por tratar cada um dos seis casosseparadamente, demodo retórico, e por associar sua solução a exemplosjusti icados geometricamente. Ainda que os indianos já usassem algunssímbolos, a fórmula geral que utilizamos hoje também não pode ter sidoproposta por Bhaskara, uma vez que eles não dispunham de umsimbolismoparaoscoeficientes.

Fica a pergunta: quem foi, a inal, o real inventor da fórmula deresolução das equações do segundo grau, atribuída erroneamente aBhaskara? Tal pergunta é bastante frutífera para desconstruirmosalgumasconcepçõesequivocadassobreahistóriadamatemática.Àsvezespensamos, erradamente, que a matemática evoluiu de modo linear: osmatemáticos, em certo momento, teriam disponível uma obra inacabadacujas lacunas deveriam ir preenchendo. Não aconteceu assim, sobretudono passado, quando os meios de comunicação eram muito distintos dosatuais.Comoosmatemáticosárabesteriamtidocontatocomamatemáticaindiana? Que parte dessa matemática eles conheceram? Matemáticaoriundadequeépoca?

Os árabes citam trabalhos astronômicos indianos, mas a álgebraislâmica, pelo menos na época de Al-Khwarizmi, parece não ter sidoin luenciada pelos indianos, que usavam simbolismo, ao passo que osárabes permaneceram operando de modo retórico. Além disso, algunsindianos operavam com quantidades negativas, o que os árabes, nessaépoca,nãofaziam.NemBhaskara,nemoutromatemáticoindiano,nemAl-Khwarizmi,nemoutroárabequalquerinventouafórmulaparaaresoluçãoda equação de segundo grau, apesar de todos eles saberem resolver oanálogo a uma equação desse tipo nos termos da matemática de seutempo. É certo que a fórmula só pôde ser escrita depois que Vièteintroduziuumsimbolismoparaoscoe icientes,comoveremosadiante,masnemmesmoelepodeserconsideradooinventordafórmula,umavezqueseu método de resolução já era amplamente conhecido pelos indianos eárabes.

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OmarKhayameosproblemasdeterceirograu

No século XI, in luenciado por Al-Khwarizmi, o poeta ematemático árabeOmarKhayam, ouAl-Khayam, publicou um livro intituladoDemonstraçõesde problemas de al-jabr de al-muqabala, no qual encontramos soluçõesgeométricasparadiversostiposdeequaçõesdoterceirograu.Otratadofoiescrito como parte de uma tradição de comentários aosElementos deEuclides, embora possamos notar também uma grande in luência deApolônio.

No Capítulo 3, descrevemos os problemas clássicos da matemáticagrega, entre os quais o de encontrar duas meias proporcionais e o datrissecção do ângulo. Muitos dos problemas de terceiro grau partem dabuscade soluçõespara esses casos, tratadospormeiode seções cônicas.No caso de situações envolvendo quantidades elevadas ao cubo, Al-Khayam reconhece não ter sido possível encontrar um algoritmo análogoao que tinha sido utilizado para equações quadráticas, por esse motivosuassoluçõessãogeométricaseempregamcônicas.

OtratadodeAl-Khayamapresentaumaclassi icaçãode25espéciesdeproblemasquepodemser traduzidos,emnotaçãoatual, comoequaçõeseexplica o que era preciso para resolver cada uma delas. A Tabela 3enuncia alguns desses tipos e a respectiva tradução em símbolosmodernos:

TABELA3

LinguagemutilizadaporAl-Khayam Notaçãomoderna

1Umnúmeroéigualaumaraiz a=x

2Umnúmeroéigualaumquadrado a=x2

3Umnúmeroéigualaumcubo a=x3

4Algumasraízessãoiguaisaumquadrado bx=x2

5Algunsquadradossãoiguaisaumcubo cx2=x3

6Algumasraízessãoiguaisaumcubo bx=x3

7Umquadradoealgumasraízessãoiguaisaumnúmero x2+bx=a

9Algumasraízeseumnúmerosãoiguaisaumquadrado bx+a=x2

12Algumasraízesealgunsquadradossãoiguaisaumcubo bx+cx2=x3

18Umnúmeroealgunsquadradossãoiguaisaum

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cubo a+cx2=x3

20Umcubo,algunsquadradoseumnúmerosãoiguaisaalgumasraízes x3+cx2+a=bx

21Umcubo,algumasraízeseumnúmerosãoiguaisaalgunsquadrados x3+bx+a=cx2

Al-Khayam procurava determinar a “raiz”, ou o “lado”, satisfazendocertas condições. Em sua linguagem, cadaumadasquantidadespode seraritméticaougeométrica,comonaTabela4:

TABELA4

Termo Sentidoaritmético Sentidogeométrico

Númerodado Número Quantidadegeométrica

Raiz,quantidadedesconhecida Número Segmento

Quadrado Segundapotênciadaraiz Quadradogeométricoque

temaraizcomolado

Cubo Terceirapotênciadaraiz Cuboquetemaraizcomo

aresta

Se a quantidade desconhecida, ou a raiz, era tida como um número,então a expressão “algumas raízes” designava outros números obtidos apartir do primeiro (se a raiz é x, “algumas raízes” é o equivalente aax).Contudo, se a raiz fosseumsegmento, o sentidodessas expressõespodiavariar.Seoproblemaenvolviaumcubo,entãoelenuncamencionariaumquadrado ou uma raiz, mas sempre “alguns quadrados” e/ou “algumasraízes”. O termo “alguns quadrados” era usado para denotar umparalelepípedocujabaseéoquadradoconstruídocomaraizecujaalturaeraobtidatomando-seumsegmentounitárioumcertonúmerodevezes.Já“algumasraízes”erao termousadoparadenotarumparalelepípedocujaaltura era a raiz e cuja base era obtida tomando-se um certo número devezesumquadrado construído sobreo segmentounitário.Analogamente,seoproblemanãoenvolviaumcuboesimumquadrado,entãoelenuncamencionariaumaraiz,mas sempre “algumas raízes”. Isso signi icaqueosenunciados respeitavam a lei de homogeneidade das grandezas, ou seja,todosostermosdeviamserconsideradoscomotendoamesmadimensão:umsegmentodeviasersomadoaoutrossegmentos,umretânguloaoutrosretângulos (incluindo quadrados) e um paralelepípedo a outros

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paralelepípedos(incluindocubos).Por exemplo, o problema 21 (“um cubo, algumas raízes e um número

são iguais a alguns quadrados”), traduzido em linguagem atual,corresponde à equaçãox3 +bx +a =cx2. Pela lei de homogeneidade dasgrandezas, todos os seus termos são considerados volumes, ou seja, degrau 3. Isso quer dizer que um cubo deve ser somado a cubos ouparalelepípedos. Logo, a expressão “algumas raízes” do enunciado(traduzida comobx) era usada para designar um paralelepípedo cujaalturaéaraizecujabaseéobtidatomando-seumcertonúmerodevezesumquadradounitário.Poressarazão,atualmente,muitasvezessetraduzoenunciadoretóricopelaexpressão x3+b2x+a3=cx2,considerandoqueaexpressão“algumasraízes”equivale,naverdade,ab2x.

AlinguagemusadaporAl-Khayampodeservistacomoumalinguagemcomum à aritmética e à geometria, pois designava um procedimentopadrão para tratar um problema de qualquer espécie. Usando essalinguagem,eleconseguiaexpressarosproblemascomocasosparticularesdeumaformacomum,fossemelesaritméticosougeométricos.Mas,apesarde usar amesma linguagem para representar quantidades de naturezasdistintas, ao resolvê-los Al-Khayam precisava fazer uma escolha. Oenunciado proporcionava uma dupla interpretação – numérica ougeométrica –, o que não acontecia com sua estratégia de resolução: nasolução, era preciso escolher entre ummétodo aritmético ou geométrico.Além disso, no caso de uma interpretação geométrica, Al-Khayamconseguia resolver problemas de umamaneira geral. Entretanto, ele nãoconseguia exibir uma solução geral para aqueles interpretados pelaaritmética, uma vez que não resolvia numericamente as equações doterceirograu.

O método empregado por Al-Khayam era puramente geométrico,diferentedocasodaequaçãodosegundograu,queenvolveaextraçãodeuma raiz quadrada, por isso icou conhecido como “método de resoluçãoporradicais”.Serádevidoàbuscadeummétododeresoluçãoporradicaispara as equações cúbicas que grande parte da álgebra se desenvolveránosséculosXVeXVI.NaépocadeAl-Khayamestanãoeraumaquestão.

Difusão da álgebra no Ocidente e uso dosimbolismo

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Umúltimomitoque tentaremosdesconstruirnestecapítulodiz respeitoàdifusão da álgebra árabe e dos tratados dos povos antigos na Europa.Ouvimosdizer,normalmente,queamatemáticasedesenvolveunaItáliaapartir do século XIII, sobretudo com as obras de Leonardo de Pisa. Essematemático,conhecidocomoFibonacci,fezviagensaonortedaÁfrica,ondeentrou em contato com os conhecimentos dos árabes. Se consultarmos oartigo sobre ele noDictionary of Scienti ic Biography, aprenderemos queFibonacci

incontestavelmente, temopapel depioneirono renascimentodamatemática no oeste cristão.Como nenhum outro antes dele, considerou de modo novo o conhecimento antigo edesenvolveu-o demaneira independente. Em aritmética,mostrou habilidade superior para oscálculos.Alémdisso, ofereceuaos seus leitoresummaterial organizadode forma sistemática eordenou seus exemplos do mais fácil para o mais di ícil…. Em geometria demonstrou,diferentementedosagrimensores,umdomíniocompletodeEuclides,cujorigormatemáticoelefoicapazderecapturar.17

Esse relato é comum em livros de história da matemática. Umaradicalizaçãodessalendasobreo“renascimento”damatemáticaantiganaEuropaapontaque, comaquedadeConstantinopla, em1453, refugiadosque escaparam para a Itália teriam levado preciosos tratados gregosantigosparaomundoeuropeuocidental.AverdadeéquealgunstratadosgregosjáhaviamaparecidonaEuropanoséculoXIII,quandoascruzadas,ao invésde sedirigiremàTerraSanta, invadiramoutro território cristão,Constantinopla,ondehaviamanuscritosconservadosdesdeaAntiguidade,quandoaregiãoaindaeragregaesechamavaBizâncio.

É fato que Fibonacci frequentou Bugia, cidade da Argélia, seguindo odesejo de seu pai, que era comerciante. Depois dessa primeira formaçãoemmatemática,FibonacciviajoupeloEgito,pelaSíria,pelosuldaFrançaepela Sicília, na Itália. Ou seja, teve contato com o mundo mediterrâneo,onde se aperfeiçoou em domínios como a álgebra, prática até entãodesconhecida dos europeus. No entanto, a versão simpli icadora sobre adifusão da álgebra na Itália teve de ser reformulada nos últimos anosdevido a dois complicadores: as descobertas que exibem odesenvolvimento de uma álgebra simbólica no Magreb e na Andaluziaentre os séculos XI e XIV, bem como sua transmissãopara os cristãos naEspanha; e as pesquisas em tornodas escolas de ábaco, que loresceramnaItáliaapartirdoséculoXIII.

Essas escolas, que treinavam jovens comerciantes desde os onze oudoze anos emmatemática prática, e se difundiram em várias regiões daItália, sobretudo Florença, estão relacionadas ao desenvolvimento do

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capitalismo no im da Idade Média. Para tratar problemas ligados aocomércio,ensinava-seocálculocomnumeraisindianos(osalgarismosquechamamos hoje de “indo-arábicos”), a regra de três, os juros simples ecompostos,osmétodosdafalsa-posição,entreoutrasferramentasvoltadaspara problemas práticos. Ainda que fossem designadas como escolas deábaco,apartirdoséculoXIIIelassededicavama técnicasdecálculosemábaco.

Em conexão com essas escolas, sobretudo as do centro e do norte daItália, foram publicados diversos “livros de ábaco”, que podem sertraduzidos também como “livros de cálculo”. Além dos tópicos já citados,eles podiam conter seções de álgebra, principalmente a partir do séculoXIV. É di ícil saber exatamente quem os escreveu, pois, emmuitos casos,tratava-se de adaptações e cópias de materiais já existentes, além de amaioria ser de autoria anônima. O livro mais conhecido de Fibonacci sechamaLiber Abaci, ou seja, “livro de ábaco”, o que levou algunshistoriadoresaa irmaremque,emgeral,osescritosassociadosàsescolasde ábaco eram, de fato, resumos e adaptações dessa obra de Fibonacci.Esses textos de matemática prática, escritos em língua vernácula,receberampouca atençãodoshistoriadores até as transcrições feitasporGinoArrighieseuscolegasitalianos,nosanos1960e1970.Ointeressefoiintensi icado pelos estudos que levaram à publicação, por Warren vanEgmond, em1980, de um catálogo intituladoPracticalMathematics in theItalian Renaissance: A Catalog of Italian Abbacus Manuscripts and PrintedBooksto1600(MatemáticapráticanaRenascençaitaliana:umcatálogodosmanuscritosdeábacoelivrosimpressosaté1600)quereuniataistextos.

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FIGURA2Páginatípicademanuscritodeábacocomdoisproblemasaritméticosilustrados.

Com base nessas novas evidências, a in luência de Fibonacci sobre oslivrosdeábacopôdesercontestada,sobretudoporJ.Høyrup,18quepropõeuma inversão: Fibonacci não seria um herói solitário na origem de umanova matemática, e sim o produto de práticas associadas às escolas deábaco. De fato, um livro de ábaco anônimo, escrito provavelmente entre1288e1290,éumdosprimeirosexemplaresdogêneroaserencontrado,

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e seu autor a irma seguir Fibonacci. Entretanto, como mostra Høyrup, olivro consiste de duas partes: uma que corresponde ao currículo básicodasescolasdeábacoequenãotemnadaavercomFibonacci;eoutraquecontém assuntos mais avançados, traduzidos doLiber Abaci, mas querevelam pouca compreensão da matéria exposta. Esse texto aponta quealgumas notaçõesmagrebinas, usadas por Fibonacci, não tiveramdifusãonaItálianesseperíodoinicial.Tudoindica,portanto,queotextofoiescritopor um compilador familiarizado com as práticas de cálculo, poucoversado,contudo,namatemáticaefetivamenteusadaporFibonacci,apesarde querer se apresentar como seu herdeiro devido, talvez, à fama queaquelepossuíanaépoca.

OprimeirolivrodeábacoaproporumaálgebrafoiescritoporumcertoJacopodaFirenze,provavelmenteemMontpellier,noanode1307.Høyrupfaz uma análise minuciosa desse tratado, cujo conteúdo é totalmenteretórico. O autor parece estar se dirigindo a um leitor leigo, semconhecimento prévio damatéria, e o livro não contémnenhum traço quecon irme a in luência de Fibonacci, nem tampouco dos clássicos árabes,entre eles Al-Khwarizmi. A partir de múltiplas evidências históricas,Høyrup conclui que a álgebra de Jacopo da Firenze pode ter suas raízesempráticasque estavampresentesna áreaque se estendedapenínsulaIbéricaatéaregiãodaProvença,naFrança,ambascomancestraiscomunsnaAndaluziaenoMagreb.

Umdos indíciosmais fortesparatalconclusãoresidenofatodeo livronão oferecer provas geométricas, mas somente regras, além de secaracterizar por umamistura dematemática comercial e algébrica, típicada cultura matemática da Andaluzia e do Magreb. Uma análise daterminologia e das técnicas empregadas permite a irmar que a álgebraapresentada era in luenciada pela álgebra árabe, porém nãonecessariamente pelos clássicos, como os livros de Al-Khwarizmi e Abu-Kamil.gAausênciadesimbolismopode tersidomotivadapela tradiçãodeusodalinguagemretóricapelaspessoasdaregiãoàqualsedestinava.Nãoanalisaremosemdetalhesahistóriadaálgebradesseperíodo, resumindoapenasalgumasdesuasetapasatéqueosimbolismoalgébricotenhasidodifundido. Isso porque nosso objetivo é mostrar, mais uma vez, que odesenvolvimentoalgébriconessaépocanãoéherançadeumautor–nemdealgunsautoresescolhidos–esimoprodutodepráticascompartilhadasemumcontextodeterminado.

No inal do século XII, os matemáticos do Magreb usavam, em suas

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manipulações algébricas, símbolos para a incógnita, para as potências daincógnita,bemcomoparaasoperaçõeseparaaigualdade.Essessímbolos,derivados das iniciais das palavras correspondentes, eram capazes deproduzir expressões compostas, usadas para escrever o análogo aosnossos polinômios.19 Não se encontra nenhum traço dessa in luência naEuropa em nenhuma das introduções à álgebra dos séculos XII e XIII. Aobra de Fibonacci é umdos raros exemplos no qual se destaca o uso dealgum simbolismo herdado dos árabes, como a notação para frações. OLiberAbaci é conhecidopeladefesadanotação indo-arábica e do sistemaposicional.

No século XII, foi feita uma tradução do livro de Al-Khwarizmi porRobertChester.UmaoutratraduçãotemorigemnaAndaluzia,atribuídaaGerardodeCremona,masemambososcasospartesdolivrooriginalestãotruncadas, como mostra M. Moyon.20 Essa segunda versão é usada porFibonacci. A in luência dos tratados árabes, em particular do livro de Al-Khwarizmi, levou a que os métodos árabes icassem conhecidos como“álgebra”.

As traduções latinas dos tratados árabes usavam o termo “coisa”, ou“raiz”, para designar a quantidade desconhecida. O seu quadrado sechamava “censo” e o termo constante, “número”. Gradualmente, algunssimbolismos começaram a aparecer no século XIV, mas não eramdifundidossistematicamentenaspráticasalgébricasitalianas.Porexemplo,podemosencontrar,naprimeirametadedo séculoXIV, abreviações como“R” para “raiz” (radice, em italiano); “p” para “mais” (più); “m” para“menos”(meno);“c”paraa“coisa”(cosa),queeraaincógnita;e“ç”parao“quadradodacoisa” (censo);aquartapotência tambémera representadacomo“çdeç”,o“quadradodoquadrado”(censodecenso).Taisabreviaçõeseesquemas,comooqueapresentamosnaFigura3,encontram-seemumlivrodeDardidePisaescritoem1344edeviamsercomunsnaépoca.Naverdade, esse autor usa o “R” cortado e o “m” com um til em cima. Oexemploaseguir,extraídodessaobra,erausadoparacalcularoproduto

FIGURA3

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NoiníciodoséculoXIV,portanto,parecetersidoherdadadosimbolismomagrebino a ideia de representar radice, cosa ecenso por abreviações,usando-se a primeira letra de cada palavra. Em alguns manuscritos doséculoXV, já se encontram,mais frequentemente, abreviações simbólicas.A álgebra do período mostrava-se familiar em relação à notação, mas osimbolismo consistia em um conjunto de abreviações facultativas e nãohaviaumesforçodeliberadoparadesenvolvernovasnotaçõeseaplicá-lasa situações gerais. Luca Pacioli e alguns de seus contemporâneoscomeçaram a se interessar por uma exposição enciclopédica dossimbolismos usados na época, entretanto, não chegaram a propor umsistemacoerente.

Nos séculos XIV e XV, desenvolveu-se na Itália ummovimento culturalque icouconhecidocomoHumanismo,corrente ilosó icaeliteráriaqueseinteressava pela antiga cultura greco-latina e se dedicava aos autoresclássicos. As inovações aritméticas e algébricas do período, herdadas daspráticas do Magreb, não se associavam a essa tendência, portanto nãoforam particularmente estimuladas. Somente no inal do século XVcomeçaram a surgir indícios de um uso mais consciente da notaçãosimbólica. Nesse sentido, o exemplo mais importante é aSummaArithmeticadePacioli,publicadaem1494.

Na Europa do século XVI, desenvolveram-se pesquisas dedicadas àresolução de equações que empregavam uma grande quantidade desímbolosequeestãonaorigemdealgunsdosqueconhecemosatéhoje.Ossímbolosde+(mais)e−(menos)jáeramusadosnaAlemanha.Osímbolopararaizquadrada,porexemplo,foiintroduzidoem1525pelomatemáticoalemão Christoff Rudolff. Seu aspecto vem de uma abreviação da letra r,inicial de “raiz”. Em 1557, o inglês Robert Recorde publicou um livro deálgebranoqual introduziuosímbolo“=”,usadopornósparaa igualdade:umparderetasparalelas,pois “nãopodehaverduascoisasmais iguais”.Os símbolos para o quadrado e o cubo da quantidade desconhecidaprovinhamdeabreviaçõesdaspalavraslatinas.

SupondoqueocubofosseexpressoporC,oquadradoporQearaizporR,reunindotodososavançossimbólicosdaépoca,aequaçãoexpressahojec o m oNão havia, porém, um padrão comum na notação algébrica, comoatualmente.O símbolo “=”,porexemplo, erausadona InglaterramasnãonorestodaEuropa,ondeeramutilizadasabreviaçõesdapalavra“igual”.Apadronizaçãodossímbolosmatemáticossedeumuitomais tarde,apartir

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do inaldoséculoXVII,sobretudodevidoàpopularidadedostrabalhosdeDescartes,LeibnizeNewton,conformeserávistonoscapítulosseguintes.

AálgebradoséculoXVedo iníciodoXVIeraessencialmenteamesmadadosárabes,comorecursodeumsimbolismo(nãouni icado)tantoparaas incógnitas quanto para as operações. A tradução para o alemão dapalavra “coisa” (incógnita) deu origem ao termo “coss”, e a prática deresolverequações icouconhecidacomoarte“cossista”.AolongodoséculoXVI, difundiram-se diversos textos “cossistas”, que, além do simbolismo,nãotraziamgrandesinovaçõesemrelaçãoàstécnicasárabes.Essestextoscomeçavampor introduzirasquatrooperaçõesaritméticasparanúmerosinteiros, podendo incluir algum tratamentode frações, potências e raízes.Depois, o autor de inia a notação que ia usar para as quantidadesdesconhecidas e suas potências e indicava como realizar operações comessasquantidades, exatamentecomonaaritmética.Emseguida,mostravao que é uma equação e como esta pode ser simpli icada (por métodosanálogos aos de Al-Khwarizmi). A técnica principal era a “regra daálgebra”, ou da “coisa”: se a incógnita é representada por R, escreve-seumaequaçãoquetraduzascondiçõesdoproblemaeasoluçãodaequaçãoéaquantidadeprocurada.

A transição entre a quantidade procurada concreta e o símbolo –juntamentecomoprocedimentoinverso–eratidacomoaregraprincipal.Ou seja, a palavra “álgebra” era associada ao processo de abstração quetem lugar quando se passa um problema para a linguagem algébrica. Apartir daí, não importa se a quantidade ísica é uma medida decomprimento,umaquantidadededinheiro,umpesoousimplesmenteumnúmero, pois, em todos esses casos, a regra é amesma. Foi nessa épocaque essa regra começou a ser designada também como a regra da“equação”,comosugeriuRecordeem1557:

Essa regra é chamada regra da “álgebra”, devido ao nome do seu inventor …Mas seu uso écorretamente chamado de regra da “equação”: pois é pela “equação” de números que eladissolvequestõesduvidosas….Quandoqualquerquestãopropostarequeressaregra,deve-seimaginar um nome para o número que é procurado, como foi ensinado na regra da falsa-posição. Com esse número deve-se proceder, de acordo com a questão, até se encontrar umnúmero “cossista” [a incógnita] igual a essenúmeroque a questão expressa e o qual deve sereduziraindamaisatéomínimodenúmeros.21

A arte cossista continuou a existir no século XVI até o século XVII,interagindocomospraticantesdaálgebra,masconsistiasobretudodeumalista de abreviações incapazes de serem generalizadas e que não seprestavam à manipulação simbólica. Os cossistas enxergavam as regras

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para manipular símbolos como exatos análogos das regrascorrespondentes para manipular números. Houve tentativas degeneralização, limitadas, contudo, pelo modo como essas práticascirculavam. Além das razões externas, as técnicas não eram estendidaspara cúbicas e a notação não era simples de ser generalizada paraequações de grau superior. Ainda assim, pode-se identi icar em seustrabalhosoiníciodeumaaritméticasimbólicageneralizada.

OsalgebristasdosséculosXIVeXV,oumesmoosdoséculoXVI,tinhamalguma razão para desenvolver uma abordagem simbólica coerente?Parece que não. O tipo de matemática no qual estavam engajados nãotornava essa necessidade urgente. Mesmo os mestres de ábaco comambições enciclopédicas, como Pacioli, e mais tarde Tartaglia, nãoencontravamestímuloparatalsistematizaçãonamatemáticapraticadanasuniversidades ou no meio dos pensadores humanistas. Ao contrário, aaspiraçãode conectar suamatemática ao ideal euclidianoos fez reinserirprovas geométricas na tradição algébrica, que já tinha se livrado dessain luência, retardando a compreensão de que uma argumentaçãopuramentearitmética,oualgébrica,poderia ser considerada legítimasemoauxíliodageometria.

Antes de Viète, a álgebra europeia se aplicava a problemas cujaresolução não era auxiliada pelo uso de simbolismo. Somente quando ain luência de Arquimedes e Apolônio trouxe novos problemas à cenamatemática seus praticantes perceberam que o simbolismo era um fatorcapazdeauxiliarnaresoluçãodeproblemasedegeneralizarosmétodosempregados. Exceto pela notação, a álgebra desse período é muitoparecida com a que nos é ensinada nas escolas, porém há uma grandedistânciaentreessaarteeadisciplinamatemáticachamadaatualmentedeálgebra. Veremos, na próxima seção, por que o trabalho de Cardano,dedicado à “grande arte”, é considerado, frequentemente, um dosprimeirostratadosdeálgebra.

A“grandearte”

Os livrosdeábacomostramqueabuscademétodosgeraispararesolverequações cúbicas não começou somente no século XV, com a SummaArithmetica, de Luca Pacioli. Sua origem remonta ao início do século XIV.Assim,osdesenvolvimentosalgébricosmais importantesdosséculosXVe

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XVIsãotributáriosdosesforçosparaencontrarumasoluçãodacúbicaporradicais. Hoje, pensamos em equações cúbicas como sendo todasessencialmente de um mesmo tipo e podendo ser resolvidas por ummesmo método. Contudo, naquela época, quando os coe icientes eramnuméricos e os coe icientes negativos aindanão eramutilizados, existiamdiferentes tipos de equações cúbicas. É o caso das enumeradas por Al-Khayam, que dependiam da posição dos termos “quadrático”, “linear” e“numérico”.

Logo no início do século XVI, Scipione del Ferro obteve uma fórmulausandoradicaisparaasoluçãodeumcertotipodeequação,queconstituiuuma novidade em relação aos trabalhos árabes. Mas essa fórmula foimantida secreta, comoera costume.Alguns anosmais tarde, por volta de1535, Tartaglia resolveu diversas equações cúbicas, em particular as dotipoqueescrevemoshojecomox3+mx2 =n,consideradacomcoe icientesexclusivamentenuméricos.

Um terceiro matemático italiano, Girolamo Cardano, que parece terobtido a fórmuladeTartagliaprometendomantê-la em sigilo, acabouporpublicá-laem1545nolivroArsmagna(Grandearte),ondetrataasoluçãode cadaumdos treze tipos de equação cúbica em capítulos separados.OcapítuloXI,porexemplo,édestinadoàresoluçãodacúbicadotipo“cuboecoisas igual a número”. A demonstração é feita tendo como base umexemploparticular,numérico,deumacúbica.Posteriormente, estabelece-se, retoricamente, uma regra de resolução para esse tipo de cúbica.Exibiremos a seguir ométodode Cardano, que não utilizava a linguagemalgébricaatualeincluíaumajustificativageométrica.

OcapítuloXIdaArsmagnaforneceummétodopararesolveraequaçãox3+6x=20,queeraescritacomo:cubp;6resæqlis20 (cuboeseiscoisasiguala20).Cardanocomeçaapresentandoumademonstraçãogeométricae só depois enuncia uma regra para resolver tal equação. Procuraremosmanter-nos iéisaoraciocíniodeCardano,aindaque,algumasvezes,parafacilitar o entendimento, tenhamos de comentar sua solução, traduzindoalgunstrechosparaanotaçãoatual.

SoluçãogeométricafornecidaporCardanoProcuramosumcubode ladoGH tal queo cubodeGHmais seis vezes oladoGHsejaiguala20.Sejamdoiscubos,designadospelassuasdiagonaisAEeCL,cujadiferençaé20.Cardanoexibearepresentaçãoplanadessescubos, como na Ilustração 2. Para facilitar o entendimento, mostramos

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também a representação espacial do cubo AE com a divisão indicada narepresentaçãoplana,massemadicionarmosocuboCL.

ILUSTRAÇÃO2

MarcandoBdemodoqueBCsejaigualaCK,obtêm-sequeABéigualaGH, ou seja, o valor da “coisa”. Isso quer dizer que AB é o valor de xprocurado. A argumentação de Cardano era geométrica e consistia emencontrarumcubodeladoABquesatis izesseamesmacondiçãodocubode ladoGH,ouseja,AB3+6AB=20, supondoqueAC3 −CK³=20 temos,AC×CK=2eBC=CK.Parafacilitaroentendimento,chamaremosACdeueBC=CKdev,sendoassim,AB=u−v.

A im de mostrar que o segmento AB da Ilustração 2 é a soluçãoprocurada, Cardano usa duas propriedades da decomposição do cubo,demonstradasnocapítuloVIdeseulivro.Aprimeiradelasdizoseguinte:seumaquantidadeédivididaemduaspartes(AB=u−veBC=v),ocubodotodoé igualaoscubosdasduaspartesmais trêsvezesosprodutosdecadaumadaspartespeloquadradodaoutra.Essa regranadamais édoquenossaregraparaocubodasoma.

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ILUSTRAÇÃO3Ilustraçãogeométricadaigualdade(u−v+v)3=(u−v)3+3(u−v)2v+3(u−v)v2+v3

Cardano considera, então, a decomposição do cubo AE nos “corpos”(paralelepípedos) da Ilustração 3: BC 3 (cubo em branco), AB3 (cubo empreto),3(BC×AB2)(paralelepípedosemcinza-claro–osdoisvisíveismaisumquenãovemos,abaixodocubopreto)e3(AB×BC 2)(paralelepípedosemcinza-escuro).Emseguida,ashipótesesdequeAC3−CK3 =20eAC×CK = 2 são utilizadas para concluir, argumentando de forma geométrica,queocuboconstruídosobreosegmentoABmaisseisvezesosegmentoABseráiguala20,ouseja,AB3+6AB=20.

Nocasoparticulardaequação “cuboeseis coisas iguala20”,Cardanodeduz daí a seguinte regra de resolução: eleve 2 ao cubo, que é a terçapartede6,oquedá8;multiplique10,metadedotermonumérico,porelemesmo, resultando 100; some 100 e 8, fazendo 108. Extraia a raizquadrada,queé ,eautilizeemumprimeiromomentosomando10,eem um segundo momento subtraindo a mesma quantidade, e teremos

. Extraia a raiz cúbica desses valores, subtraia umada outra, e teremos o valor da coisa: . Esseresultadoeraescrito,emsuanotação,comoR.v.cu.R.108.p.10.m.R.v.cu.R.108.m.10.

Utilizando a notação atual, poderíamos reescrever, como segue, o

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desenvolvimentoea regradeCardanoparaa resoluçãodeumaequaçãocúbicadotipox3+mx=n.Escrevemososcoeficientesmendaequaçãoemtermos de valoresa eb, observando uma identidade do tipo (a −b)3 +3ab(a−b)=a3−b3.Tomandom=3aben=a3−b3naequação,obtemosx=a−b.Dessaforma,épossívelobterxapartirdosvaloresdea eb,porém,para isso devemos resolver as equações dea eb em termos dem en.Fazendoa =m/3b en =a3 −b3 chegaremosà equação27b6 +27nb3 =m3,que pode ser resolvida parab por meio de uma equação quadrática.Resolvendoosistemaparaaeb,obtemos:

Tomando as respectivas raízes cúbicas positivas e subtraindo umresultadodooutro,Cardanoobtémovalordex=a−b.Lembramosqueelenão usava esse simbolismo algébrico e não empregava um raciocíniopuramente algébrico na dedução da fórmula. O papel da geometria nademonstraçãoerajusti icarométodoalgébrico.CardanoseorgulhadeterfornecidoummétodosuperioràregradeTartaglia,umavezqueseguiuocaminhogeométrico.Seuobjetivonãoera,portanto,disputaraprioridadedo método com Tartaglia, que ele reconhecia como o primeiro a terproposto uma técnica para resolver a equação, e sim apresentar umajustificativamaislegítima.

Analisandoafórmulaescritaemnossanotação,vê-sequequandotemosq u e(n/2)2 + (m/3)3 é negativo, encontram-se duas raízes de númerosnegativosdurantea solução.ComoserávistonoCapítulo7,mesmonessecaso pode existir uma raiz válida para a equação, que seria obtida pelafórmulaquandoasraízesdenúmerosnegativossecancelamaofazermos x=a−b.

É o caso da equaçãox3 = 15x + 4, dita “irredutível”. Se aplicamos afórmula a esta equação, obtemos que .Logo, a equação não pode ser resolvida, mas, ainda assim, por meio deprocedimentos de tentativa e erro, é possível descobrir que x = 4 é umaraizválidadaequação.Areduçãodeequaçõeseraummétodousadoparatransformar equações em outrasmais fáceis de resolver, que podem terum grau menor. Quando conhecemos uma raiz real, é possível, muitasvezes, reduzirumaequação cúbica aumaequaçãoquadrática, oquenãoocorrenocasoexposto,umavezqueasoutrasraízessãoimaginárias.Por

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isso,essaequaçãoeradita“irredutível”.Para resolver esse tipo de equação pelo método disponível e obter

raízes válidas, era preciso manipular expressões contendo raízes denúmeros negativos, que não eram considerados números. Quantidadesnegativas já tinham aparecido em problemas mais simples, envolvendoequações do segundo grau.Nesse caso, no entanto, quando a quantidadenegativa aparecia no resultado, era fácil driblar a di iculdade – bastavadizer que a equação não tinha solução. A aplicação da fórmula pararesolverequaçõesdo terceirograu fazcomquenãosejapossíveldesviarda questão com facilidade. As equações irredutíveis serão tratadas porRafaelBombelli,matemáticoitalianodoséculoXVIassociadoàhistóriadosnúmeroscomplexosdequemfalaremosnoCapítulo7.

UmadascontribuiçõesmaisimportantesdeCardanoemsuaArsmagnaé a elaboração de um método para a transformação, ou redução, deequações. Por exemplo, reduzia-se uma equação cúbica em outra sem otermodesegundograu,oque,em linguagematual, signi ica reescreveraequaçãox3+ax2+bx+c=0emumanovavariável.Fazendoasubstituição

, obtém-se uma equação com coe icientes arbitrários onde otermo emy2 ica ausente. Com essa nova variável, a equação adquire aformay3 +py =q, que tambémé conhecida comouma forma reduzidadaequação cúbica. Desse modo, Cardano consegue reduzir uma equaçãoqualqueraumaoutraqueelesabiaresolver.

Em muitos casos, ele estudava o efeito que a transformação de umaequaçãoemoutrapodeternaalteraçãodaraiz.Porexemplo,daequaçãoy3 + 8y = 64, que ele sabia resolver pelo método descrito, obtendo

, podia obter outra, comox3 =x2 + 8, bastando aplicar atransformaçãoquelevaxem .Logo,aplicandoessatransformação,

erapossívelresolvertambémasegundaequação,obtendo: .

Esse método permite transformar problemas desconhecidos emproblemas conhecidos e descobrir novas regras. Realmente, atransformação de equações e a solução pela adaptação das raízes foi ummétodo central para os matemáticos posteriores a Cardano, como Viète.Diferentemente dos cossistas, interessados em descrever métodos pararesolver equações de determinados tipos, Cardano se dedicava àinvestigação sobre a estrutura e a possibilidade de resolução dasequações, ponto de partida da álgebra moderna abstrata. Segundo J.Stedall,22 essa razão é su iciente para considerarmos a obra de Cardano

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umadasprincipaiscontribuiçõesdaálgebraeuropeiaeVièteseuherdeiro.Se acreditarmos nessa a irmação e lembrarmos que o trabalho de

Cardano continha muito pouca notação, seremos obrigados a relativizarnossa de inição usual de álgebra como o ramo da matemática que usaletras e símbolos, em geral, para representar números e quantidades. Ainovação de Cardano está nos métodos propostos, sobretudo os detransformaçãodeequações,descritospraticamentesemnotaçãosimbólica.No Capítulo 5 será visto que Viète mostrou como a álgebra permiteentender outros ramos da matemática, como a geometria, em contrastecomseuspredecessores,entreelesAl-KhwarizmieCardano,queusavamageometria para justi icar a álgebra. Entretanto, antes disso, para fechareste capítulo, descreveremos brevemente o novo simbolismo introduzidoporessematemáticofrancês.

Quem inventou a fórmula para resolverequações?

Nas regras retóricas para a resolução de equações de segundo grau,dizemos:“tomarametadedonúmerode Jidhr.”Oquemudaemtaisregrasquando introduzimos símbolos para as quantidades desconhecidas,considerando que as potências dessas quantidades eram expressas porsímbolosdistintos?SesubstituirmosJidhrporx teríamos:“tomarametadedo número dex.” Omesmopara oMal, quantidadedesconhecidaque é oquadradodexequeseria,dentrodessalógica,designadapory.

Reunindo a generalidade das regras indianas e árabes a todos ossimbolismos usados até então, poderíamos escrever a seguinte receitapararesolverumaequação:

SejaaequaçãoA+21=10B,ondeAéoquadradodeB.Paraquaisquernúmerosquesubstituirmospor21e10naequação,ovalordeB(queéaraizdaequação)poderáserobtidopeloprocedimento:tomarametadedonúmero de B’s (note que aqui não estamos falando de B ÷ 2 e sim dametadedonúmeroquemultiplicaB, que, nessa equação, é 10,maspodemudardeumaequaçãoparaoutra);multiplicaroresultadoporsimesmo;subtrair do resultado o número (que na equação é 21 e também podemudardeumaequaçãoparaoutra);…

O passo decisivo para que possamos transformar essa regra em uma

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fórmula, tal como a conhecemos hoje, será introduzindo um simbolismopara os coe icientes da equação, ou seja, para o número de B’s. Issopermitiria escrever algo como A+ m = nB. Com a introdução dessessímbolos,podemosentrever,diantesomentedosímbolo,arelaçãoentreAe B. Os três primeiros passos do procedimento descrito se resumiriam,então,àfórmula(n/2)2−m.

François Viète, que viveu entre os anos 1540 e 1603, introduziu umarepresentaçãopadrão:asincógnitasserãorepresentadaspelasvogaiseoscoe icientespelasconsoantesdoalfabeto,todasmaiúsculas,comoveremosnoCapítulo5.

É importanteobservarqueháumadiferençadenaturezafundamentalentre uma “incógnita” e um “coe iciente”. A incógnita é uma quantidadedesconhecida que será conhecida a partir das restrições representadaspela equação; já o coe iciente é uma quantidade conhecida genérica queestá, portanto, indeterminada na expressão de uma equação qualquer.Ambososcasospressupõemindeterminações,porémemníveisdistintos:adeterminação dos coe icientes é obtida pela escolha de uma equaçãoparticular (arbitrária); e a determinação do valor da incógnita, pelaresolução (não arbitrária) dessa equação. A determinação da incógnitadepende das restrições dadas por uma equação. De modo distinto, nouniversodasequações,aescolhaarbitráriadecoe icientesdeterminaumaequação.Porexemplo,naequaçãoax2+bx+c=0aescolhadosvaloresa=1 ,b = 3 ec = 100 determina um “caso”:x2 + 3x + 100 = 0. A notaçãointroduzida por Viète deveria ter representado, portanto, umageneralizaçãodosmétodosalgébricos.Podendotrabalharnouniversodasequações, usando coe icientes, seria possível classi icar as equações eencarar os exemplosparticulares como “casos”. Enunciandouma fórmulageral, a resolução dos casos particulares se reduziria a uma aplicaçãomecânica do procedimento. Mais uma vez, contudo, atestamos que ahistóriadamatemáticanãoé linearenão foibemassimqueaconteceu.Aclassi icação de equações e o enunciado de fórmulas gerais não era umaquestãonaépoca,poisaálgebranãoseconstituíacomoumadisciplinaeosmétodosalgébricoseramusadospara resolverumagrandevariedadedeproblemas.Sendoassim,nemmesmoViètepodeservistocomooinventordafórmuladeresoluçãodeequações.

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RELATOTRADICIONAL

A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA É COMPREENDIDA, comumente, como uma bruscamudança no modo de fazer ciência ocorrida nos séculos XVI e XVII, emespecial na astronomia, na ísica e na matemática. Copérnico teriainaugurado o questionamento da cosmologia aristotélica e ptolomaica;novasteoriasteriamsidoformuladasapartirdas leisdeKepler;eGalileuseriaoresponsávelpelodesenvolvimentodeumanova ísica,baseadaemuma visão mecânica da natureza que pode ser descrita em linguagemmatemática.EsseprocessoculminariacomNewton,que teria reunido taisavançosdemodocoerenteerepresentariaotriunfodaciênciamoderna.

O séculoXVII é visto comoa “alvoradadamatemáticamoderna”, títulodocapítuloqueH.EvesdedicaaoperíodoemsuaIntroduçãoàhistóriadamatemática. Na historiogra ia tradicional, o papel deDescartes e de suascontribuições à geometria aparece ora desconectado desse contextomaisamplo,oracomoumaconsequênciavaga,nomáximodenatureza ilosó ica.Noprimeirocaso,esquece-sequesuaGeometriafoipublicadacomoanexodeumlivro ilosó icoquetambémincluíaumtextodeóptica,alémdofatode ele ter abordado diferentes problemas de ísica. No segundo, suailoso ia é lembrada sob o rótulo de “mecanicista” ou “reducionista”,masnão são investigadas as evidências dessemodode pensar namatemáticadesenvolvida por ele. Em ambos os casos, o matemático francês éconsiderado moderno e suas principais contribuições, como o planocartesiano,sãoexplicadaspormeiodanotaçãoatual.Essaabordagemlevaa um dos inconvenientesmais graves na história damatemática a partirdesse período: a subdivisão desse saber em disciplinas. Descartes eFermat são mencionados como fazendo parte da história da “geometriaanalítica”,comoseessadesignação izessesentidoantesdeles.Noentanto,comofalardahistóriadecertodomíniomatemáticosequeremosanalisar,demodoamplo,osprocedimentosquesómaistardeforamselecionadosetraduzidoscomafinalidadedeintegraressedomínio?

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a Anedotas como a que relata que Arquimedes desvendou omistério da coroa do rei Hieron sãohojetidascomolendas,construídaspormeiodetestemunhosduvidososemescritosdeterceiros.bParecequesomentenoBrasilafórmulaéassociadaaonomedeBhaskara.c Temos um exemplo dessa quali icação na obra de H. Hankel, já citada no Capítulo 3, tambémresponsávelpelomitodaréguaedocompasso.d Lembramos que regras e procedimentos eram enunciados de modo retórico. Embora Diofantotenharepresentadoquantidadesdesconhecidascomsímbolos,nãoeramusadossímbolosnemparaasoperaçõesnemparaoscoeficientes.eGrandepartedestaseçãoseservedeseuartigo “The formationof Islamicmathematics.Sourcesandconditions”.fOmétododa falsa-posição foiabordadonoCapítulo1,naseção“NúmeroseoperaçõesnoantigoEgito”.gMatemáticoegípcioativoentreosséculosIXeX,comimportantescontribuiçõesparaaálgebraeageometria.Ficouconhecidoportersidoumdosprimeirosatratardeequaçõescomgraumaiorque2eaaceitarirracionaiscomosoluçãodeumaequação.

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5. A Revolução Cientí ica e a novageometriadoséculoXVII

O OBJETIVO AQUI É ANALISAR as transformações ocorridas na matemáticadurante o século XVII, em particular na geometria, com a intervenção demétodos algébricos. O nome de René Descartes e o de Pierre de Fermatestãonocentrodessasmudanças,queculminaramcomainvençãodoquehojeéchamadode“geometriaanalítica”.Entretanto,antesdeabordarmosaobradessesautoresvaledescrever,demodoabrangente,oqueocorreuna ciência do século XIII ao XVI. A noção de “ciência” ganhará uma novaconotação no inal desse período,mas a crença de que teria havido umaalteração radical na acepção desse termo é bastante questionada peloshistoriadoresatuais.1 Segundoa visão tradicional, por voltade1700 teriahavidoumarupturacompletacomopensamentodostemposanterioresaCopérnico: o cosmos aristotélico inito substituído pelo universo in initodescrito por Newton; a natureza perfeitamente explicada por meio damecânica e da matemática; e a experimentação fornecendo um meioessencial para justi icar as teorias cientí icas. Numerosos exemplosmostramqueahistóriadaciêncianessaépocanãoé tão triunfal comoseacredita, e que a historiogra ia tradicional construiu esse cânone parajusti icaraimagemmodernadaciência.Naverdade,arecepçãodasideiasinovadorasdeCopérnico,GalileueNewtonparecetersidobastante lenta;a convivência entre as novas e as antigas ideias gerou misturas nopensamento; e eles não escreveram com o intuito nítido de renovar ospadrõesqueosprecediam.

Oaspectomais importantedas críticasà tesedeque teriahavidoumaRevolução Cientí ica no século XVII é o fato de que essa tese sugere, demodotácito,queanoçãoquetemosde“ciência”jáestavapresentenaquelaépoca. Contudo, o termo “ciência” possui conotações modernasinadequadasparaentenderopensamentodaqueleperíodo.Algunsheróisda Revolução Cientí ica, como Kepler e Newton, tinham interesse, porexemplo, em questões esotéricas, como amística pitagórica e a alquimia,

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mastalinteresseévistocomomarginalpelahistóriadaciênciatradicional,que se dedica sobretudo à procura de traços que indiquem, nessescientistas,ideiasprecursorasdaciênciamoderna.Épreciso,noentanto,leros trabalhosoriginaisnocontextodesuasprópriaspreocupações,emvezde aplicar sobre eles ideias atuais acerca da de inição da ciência e dasdisciplinas cientí icas. Outro exemplo: o termo “ iloso ia natural”,empregadoatémesmoporNewton,tinhaumaconotaçãobemdiferentedaísica de agora, e os ilósofos naturais não separavam de modo claroquestões místicas – ou teológicas – do que consideramos preocupaçõescientí icas genuínas. Nosso objetivo, neste capítulo, não é explicar emdetalhes o amplo espectro das ideias sobre a ciência no período. 2Desejamos somente inserir as transformações da matemática do séculoXVII em um contexto mais amplo, relacionando os desenvolvimentosintelectuais com as mudanças por que passava a sociedade e, emparticular,comacrescentevalorizaçãodatécnica.

OdesenvolvimentodaciêncianaEuropafoiimpulsionadopelacriação,apartirdoséculoXII,dasprimeirasuniversidades,comoasdeParis,Oxforde Bolonha. Os currículos de ensino se baseavam nos antigostrivium(incluindológica,gramáticaeretórica)equadrivium(aritmética,geometria,música e astronomia), que, juntos, formavam as sete artes liberais. Ostrabalhos de Aristóteles, quase todos já traduzidos então, forneciam umsolo comum: os métodos lógicos que deviam estar na base de qualquerinvestigação ilosó icaoucientí ica.Amatemáticaeraestudadaparaajudarnacompreensãodasproposiçõesaristotélicassobrea lógicaeanatureza;a aritmética consistia em regras de cálculo; a geometria era tirada deEuclides e de outras geometrias práticas; a música era in luenciada porBoethius;eaastronomiaseguiaatradiçãodePtolomeuedastraduçõesdetrabalhosárabes.

A matemática não tinha um lugar proeminente, mas alguns estudosforam feitos, sobretudoemOxfordeParis, comoobjetivodeesclarecerafilosofianaturalaristotélica.NoséculoXIV,emparticular,foramelaboradasdiversasteoriasacercadomovimentoexpressaspormeiodamatemáticaeusando-se a linguagem de razões e proporções. Começaremos pordescreveratrajetóriadessas instituições,detalhandobrevementeateoriado movimento criada por um dos expoentes da Universidade de Paris,NicolasOresme.

AstransformaçõesdaciênciaentreosséculosXIeXVabriramcaminhoparaoRenascimento.Mencionamos,noCapítulo4,odesenvolvimentodas

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práticasalgébricasduranteosséculosXVeXVI,porémhaviamuitosoutrosinteressesnaordemdodia.Ageometriaaindaeraoprincipaldomíniodamatemática e qualquer pessoa que quisesse aprender ciência precisavacomeçarpelosElementosdeEuclides.Noentanto,aospoucos,foicrescendoa consciência de que grande parte do conhecimento geométrico deveriaserviraaplicações,desdeasmaispráticas,comoastécnicasparaconstruirmapas,atéasmaisabstratas,comoateoriadaperspectiva,napintura,eaastronomia. Datam desse período, por exemplo, os trabalhos de Viètesobre a arte analítica, que disseminou um novo modo de resolverproblemasgeométricospormeiodaálgebra.

Alémdopensamentomecanicista,aRevoluçãoCientí icadoséculoXVIIé particularmente associada à expansão da ciência experimental e àmatematizaçãodanatureza,atribuídasaGalileu.Investigaremos,portanto,o seu papel, que já foi objeto de inúmeras querelas e misti icações. Namatemática,ageometriacartesianaeocálculoinfinitesimalsãovistoscomoas duas manifestações mais importantes desse período. É naturalperguntar, assim, quais seriam as relações entre os dois eventos: oprogressodamatemáticapoderiaexplicaramatematizaçãodanaturezaouoidealmecanicistaexplicariaatransformaçãodamatemática?Preferimosacreditarqueambosfaziampartedeummesmomovimento,pois,paraumpensador da época, não se tratava mais de desvendar as causas dosfenômenos naturais e sim de compreender como estes se davam. Talcompreensãoadquiriucaracterísticaspróprias,passandoaserassociadaàquanti icação e à medida, e a evolução das técnicas teve um lugarimportantenessa transformação.Assim,os trabalhosdeDescartesdevemserinseridosnocontextodaciênciaentãopraticada.

Depois de traçar esse panorama, enfocaremos o tratamento algébricodeproblemasgeométricos.Osistemadecoordenadas,dito“cartesiano”,foiintroduzido naGeometria de Descartes, que analisaremos mais de pertoprocurandopermanecer iéisaostermoseaosargumentosdaépoca.Alémdessa obra, mencionaremos os trabalhos geométricos de Fermat e suasdiscussões com o colega francês. Ao inal do capítulo será analisada aaplicaçãodosmétodosdeambosaoproblemadastangentes.

UniversidadesentreosséculosXIeXV

Da queda do império romano, no século V, até o século XI, numerosas

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invasões, disputas e conquistas de territórios impediam a existência deuma unidade política na Europa, o que só viria a ocorrer sob o domínioislâmico. A primeira tentativa de um governo centralizado na Europaocidental teve lugar com Carlos Magno, no século VIII, cujo reino incluíaregiõesdamodernaAlemanha,amaiorpartedeFrança,BélgicaeHolandae,maistarde,tambémaSuíça,umpedaçodaÁustriaemaisdametadedaItália.ComopartedeumprogramadefortalecimentodaIgrejaedoEstado,incentivava-se a investigação. Carlos Magno empreendeu algumasreformaseducativas,implantandoescolasmonásticaseepiscopaisemtodoo reino, o que contribuiu para a difusão da educação, dirigida ao clero.Assim, algumas obras gregas eram conhecidas, mas usadas para osestudosdelógicaemetafísica,associadosaopensamentoreligioso.

NesseperíodohouvecertacomunicaçãocomasculturasdoOriente,nãoapenas porque Carlos Magno mandou importar sábios do exterior, mastambém porque pensadores oriundos das escolas monásticas faziamviagens para regiões em que podiam ter contato com obras árabes. Umbom exemplo é Gerberto de Aurillac, que viveu entre os séculos IX e X,estudou no norte da Espanha e se destacou na relação do cristianismolatinocomaciênciaislâmica.Gerbertofoiumimportantedifusordasartesliberais clássicas, especialmente da lógica aristotélica, pormeio de fonteslatinas.Tinhagrande interessepelamatemáticaárabee levouesse saberpara a escola episcopal deReims quando retornou à França. Em seguidafoiparaaItália,ondefoieleitopapa,em999,comotítulodeSilvestreII.

OnortedaEspanha,naépoca,parece ter sidoumcentroavançadodeestudos dematemática baseados em fontes árabes, enquanto nas outrasregiõesdaEuropaoenfoquereligiosoerapredominante.Porvoltadoano1000, grandes renovações tiveram lugar, devido ao estabelecimento deumaunidadepolítica,socialeeconômicanaEuropa.Aestabilidadepolítica,possibilitadapelacapacidadedeseadministrarasfronteirasediminuirasinvasões, levou ao crescimento econômico e ao desenvolvimento dascidades. A urbanização da Europa nos séculos XI e XII, por sua vez,estimulou a concentração da riqueza, a proliferação de escolas e aintensificaçãodaculturaintelectual.

A escola típica do período anterior era monástica e rural; agorainauguravam-se escolas urbanas de vários tipos, com objetivos amplos.Aindaqueoprogramapudessevariardeumaescolaparaoutra,segundoo interesse do professor que a dirigia, as escolas, de modo geral,reorientaramocurrículoparasatisfazeràsnecessidadespráticasdeuma

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clientela variada que ocuparia postos de direção na Igreja e no Estado.Com isso, o currículo passou a incluir, além da teologia, a lógica, oquadrivium matemático, a medicina e o direito. Na França haviaimportantesescolasnoséculoXIIligadasàscatedrais,masquetambémsedestacavam nas artes liberais. Um dos traços marcantes compartilhadosporessasescolaseraodesejoderecuperaredominarosclássicoslatinosegregos,disponíveisemtraduçõeslatinas.

Asobras lógicasdeAristóteles,bemcomooscomentários latinossobreesse ilósofo, sobressaíam. As fontes cristãs, que constituíam o núcleo daeducaçãomonástica, continuaram tendo sua importância,mas os escritosrecém-recuperadospassaramain luenciaratémesmoostextosreligiosos.O método ilosó ico se aplicava a todo o currículo, incluindo a teologia.Essas escolas urbanas trouxeram um estilo mais racionalista a seusintegrantes,quesecaracterizavamporumatentativadeaplicarointelectoe a razão a muitas áreas da atividade humana. A aplicação da lógica àteologia levoua iniciativas extremas, comoéo casodasprovas lógicasdaexistênciadeDeus.Aospoucos,noentanto,odesenvolvimentoda iloso iagerouumaconfrontaçãoentreaféearazão:searazãoconseguiaprovara irmações teológicas, também poderia refutá-las. A tradução sistemáticada literatura ilosó ica e cientí ica, grega e islâmica, só intensi icaria oproblema.

Antes do inal do século XII, uma grande atividade de tradução deoriginaisgregoseárabesfoipostaemmarcha,alterandoprofundamenteavida intelectual do Ocidente. Na verdade, a separação entre Ocidente eOriente nunca tinha sido total, sobretudo porque muitos comerciantes eviajantes falavam diversas línguas. Entretanto, no século XII icou claroque, para ampliar o conhecimento, era preciso entrar em contato comsaberes tidos como intelectualmente superiores, caso da ciência islâmica.Asprimeirastraduçõesdoárabetinhamsidofeitasno inaldoséculoX,eelas incentivaram os europeus do início do século XII a se lançarem natradução dos clássicos, tendo a Espanha como foco. Esse país tinha avantagemdepossuirumaculturaárabe,boamanutençãodas fontes(quecaíram em mãos cristãs com a reconquista), além de comunidades decristãos que haviam convivido com o islamismo e que podiam fazer umamediaçãoentreastradiçõesislâmicaecristã.

Estrangeirosquenão sabiamárabe chegavamàEspanha, procuravamumprofessorecomeçavamatraduzir;ouencontravamumnativobilínguee faziamversõesemparceria.Umexemplodessesegundo tipo foiRobert

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de Chester, de Gales, que propôs a primeira tradução da álgebra de Al-Khwarizmi, em1145.Uma segundaproposta teria sido feita porGerardodeCremona,aquechegouàEspanhaembuscadoAlmagesto dePtolomeu,aprendeu árabe e verteu diversas outras obras para o latim, como osElementos deEuclides, alémdosescritosdeAristóteles.A traduçãodiretado grego também se intensi icou, sobretudo na Itália. As traduções sedifundiram rapidamente e contribuírampara grandes transformações naeducação,oqueculminoucomafundaçãodasprimeirasuniversidades,noséculoXIII.

Oscentrosintelectuaismaisativosjácontavamcomumgrandenúmerode professores e estudantes. A expansão de oportunidades de formaçãoemnívelelementar levavaàdemandaporestudosmaisavançados,masaconstituição das universidades dizia respeito, sobretudo, às formas deorganizaçãodo saber.Até o séculoXIII, o ensino erade responsabilidadedemestres que se estabeleciam com o apoio de uma escola ou demodoautônomo. Com o crescimento dessas iniciativas, foi necessário organizá-las. Os mestres e estudantes começaram então a formar associaçõeschamadas “universidades”, palavra que vem de universitas e indica umgrupodepessoasque sededica aum imcomum.Essanomenclatura,noentanto, só era usada em Bolonha, onde os alunos se organizavam econtratavam os professores. As universidades não se caracterizavamporedi ícios ou estatutos; eram grupos de professores que podiam termobilidade. Um dos principais objetivos dessas corporações era oautogoverno e o monopólio, ou seja, o controle do ensino. Assim, elasacabaramobtendoodireitodeestabelecerosprópriospadrões,como ixaro currículo, conceder diplomas e determinar quem podia estudar eensinar.Tudoissocomoapoiodomecenatodepapas,imperadoresoureis.

Comrelaçãoaocurrículo,haviaumagrandeuniformidadeentreelas.Alógica teve um papel cada vez mais importante, ao contrário damatemática, ou seja, doquadrivium, que ocupava um lugar marginal. Aastronomiaaindaerarespeitada,aopassoqueaaritméticaeageometriamereciamumensinobreveesuper icial.Taismatériaseramdestinadasàformação de jovens dentro da faculdade de artes e tinham uma funçãopropedêutica para a entrada nas faculdades superiores, onde o saberenglobava somente a teologia, a jurisprudência e a medicina. A iloso ianaturalaristotélicaeraoelementocentraldocurrículo,noentanto,chegoua ser desenvolvida demodo autônomo por alguns pensadores, tornandocadavezmaisclaroquehaviapontosdi íceisdeseremconciliadoscomos

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ensinamentos da Bíblia. Por exemplo, para Aristóteles, os elementos docosmos sempre se comportaram e se comportarão de acordo com suanatureza. Logo, para ele, não houve um momento em que o Universonasceu,nemhaveráumoutroemquedeixarádeexistir.Ora,dopontodevista cristão, tal posição é indefensável, já que o Universo é uma criaçãodivina.

No início do século XIII, os ensinamentos aristotélicos começaram,portanto, a ser coibidos nas universidades. EmParis, entre 1210 e 1277,houvediversascondenaçõesàstesesdeAristóteles,sobretudoàsua ísica.No entanto, a atenção às causas naturais dos fenômenos já havia atraídodiversos pensadores, e a iloso ia natural continuou a se desenvolver noséculo XIV, ainda que prolongando as tentativas de conciliação com asdoutrinascristãs.Esseséculofoimarcadopelain luênciadesãoTomásdeAquino, que reconciliou o aristotelismo e a Igreja. Graças à sua síntese, anova educação se enquadrou na visão cristã e o aristotelismo ganhouconotaçõesortodoxasqueodesproviamdocaráterdediscursoaberto.

Omovimentoeraumdosassuntos-chavena iloso ianaturaldosséculosXIVeXV.Afísicaaristotélicadividiaomundo,ouocosmos,emduaspartes:sublunar, situada entre a Terra e a Lua, incluindo a mudança, omovimento,adegradação,ouseja,avidaeamorte;esupralunar,lugardosastros,commovimentoperfeito,circular,sempreigualasimesmoeeterno.O movimento era determinado pela qualidade, considerada umapropriedade essencial deum corpo.O “lugar” ocupadoporum corpo erade inidoporsuasqualidadesessenciais.Ouseja,aTerraocupaocentrodoUniverso porque é pesada; alguns corpos caem porque são pesados;outrossobemporquesão leves.Omovimentoseria,assim,a tendênciadeumcorpoparaocuparoseulugarporessência.

Um dos pontos fundamentais dos estudos escolásticos era justamenteessarelaçãoentreumcorpo,comsuasqualidades,eosacidentesqueelepodesofrer.AlgunspensadoresdoséculoXIVseopunham,decertomodo,aessaortodoxia,casodeNicolasOresme.Essepensadorfrancês,queviriaa se tornar bispo, estudou em uma escola para jovens que não podiampagar as despesas da Universidade de Paris e foi responsável portrabalhos ilosó icos que se tornaram conhecidos na França por volta de1350.Oresmecaracterizavaumaqualidadepeloseugrau,melhordizendo,por sua intensidade. Um corpo não é frio; ele pode é sermais oumenosfrio.Omesmovaleriaparaoutrasqualidades,comosercaridosoouveloz.Omodocomoumaqualidadecresceoudiminuideuminstanteaoutro,ou

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de um lugar a outro, pode ser representado por um grá ico de duasdimensõesnoqualalinhahorizontalrepresentaaextensão(otempoouoespaço) e a linha vertical, a intensidade da qualidade. A sucessão dasintensidadespodeservista,assim,comouma iguraplana:emcadapontodahorizontal,traçamosumaretaverticalquerepresentaaintensidadedaqualidadenesseinstante(ounesselugar).

Assim, uma qualidade uniforme pode ser interpretada como umretângulo. Denominava-se “qualidade uniformemente disforme” aquelaque evolui como em um triângulo, ou seja, crescendo sempre de modolinear emrelaçãoao tempo (ouaoespaço), comona iguradada.Oresmeutilizava esse diagrama para demonstrar uma lei que já havia sidoformulada pelos cientistas de Oxford e que versava sobre a quantidadetotal de uma qualidade. A irmava-se que: dada uma qualidadeuniformementedisformeemumintervalodetempo,asuaquantidadetotalé igualàquantidadetotaldaqualidadeuniformequeafetaocorpocomaintensidademédiadaqualidadeuniformementedisforme.

Para entender essa propriedade, basta observar a representaçãogeométrica.Aquantidadedeumaqualidadepodesercompreendidacomoa área da igura; e isso pode ser obtido se mostramos que a área dotriânguloda iguraéigualàáreadoretânguloconstruídocomalturaigualà do ponto médio da altura do triângulo. Oresme tratava assim,particularmente, o caso emqueaqualidadeé a velocidade, crescendooudiminuindodemaneira uniforme como tempo ou o espaço. A velocidadeerade inidacomoumaqualidaderelativaaoespaçoouaotempo,podendo

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sermedidaemfunçãodoespaçopercorridooudotempoempregadoparapercorrer esse espaço. A regra representada pelo diagrama permite,assim, obter uma equivalência entre a quantidade de um movimentoaceleradoeadeummovimentouniforme.Ouseja,quandosetemoquesechamahojede“movimentouniformementeacelerado”,avelocidademédiaéigualàmédiaentreavelocidadeinicialeavelocidadefinal.Masseambastêmlugaremummesmointervalodetempo,qualseriaessa“quantidade”comum a um movimento uniformemente acelerado e a um movimentouniforme com velocidade média igual à do movimento uniformementeacelerado? Para nós, seria o espaço (percorrido no mesmo intervalo detempo). No entanto, esse problema se colocava demodo distinto para ospensadores medievais, que não dissociavam a velocidade do movimento,umavezqueesta,paraeles,nãoeraumagrandezaesimumaqualidade.Galileuconceberáavelocidadecomoumagrandezaquepodeserde inidade modo independente do movimento do corpo. Para Oresme, aquantidade total do movimento representava a quantidade de umaqualidade,oquetinhaimplicaçõesemsua iloso iaenãoenvolviasomentegrandezasfísicasoumatemáticas.

A história tradicional damatemática enxerga no diagrama deOresme,umdosantecedentesdoplanocartesiano.Contudo,apesardeOresmeusarduas linhas para representar grandezas envolvidas no movimento, nãohavianenhumamençãoàsua interpretaçãoalgébrica,oquecaracterizaarepresentaçãocartesiana,conformeveremosadiante.Ográ icodeOresmeéinseparáveldeseuobjetivofilosófico.

AsíntesedoséculoXVI

OdesenvolvimentointelectualeculturaldaAltaIdadeMédia(doséculoXIaoXV)nãoé tributário somentedo surgimentodasuniversidades.Comoavançodeumaeconomiabaseadanodinheiroeconcentradanascidades,as tarefas da administração pública ganharam importância, requerendopessoas treinadas para desenvolver funções diversas. Essa demandacontribuiu para a ascensão do Humanismo, movimento cultural que serevelou mais forte na Itália, mas que se espalhou por outras regiões daEuropa.SuamarcaeraaveneraçãodaAntiguidadeclássica.

Omodocomooshumanistas seorganizavam levouaumamudançanofuncionamento das instituições voltadas para o conhecimento. Com o

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desenvolvimento do capitalismo, alguns indivíduos enriqueceram epassaram a operar comomecenas. Os humanistas eram, em suamaioria,autodidatas que trabalhavam fora das universidades, sob o regime demecenato,epor issonãoaderiramaoespíritoescolástico.Somenteno imdo século XV os soberanos os impuseram como professores em algumasuniversidades. Muitos humanistas eram matemáticos da corte ealternavamsuasatividadesdeensino,ouliterárias,comfunçõespolíticas.

Petrarca,quenasceunoiníciodoséculoXIV,éconsideradoumdospaisdo Humanismo, que eclodiu em Florença, na mesma região em quesurgiram as escolas de ábaco mencionadas no Capítulo 4. No início docapitalismo, as corporações de trabalhadores dessa cidade venceram osnobres e passaram a de inir o governo e compartilhar o andamento dastarefas públicas. O famoso domo de Florença, por exemplo, é ummonumento à vitória dessas corporações. Nessa época, já existia umnúmero considerável de trabalhos sobre a matemática antiga. Desde oséculo XIII eram traduzidos para o latim textos gregos, como os deEuclides, Arquimedes, Apolônio e Diofanto. No entanto, as traduções e asreferênciasaosclássicosnãoeramacompanhadasnecessariamentedeumesforçodecompreensãodoconteúdo.Tratava-semaisderelíquiasaseremcultuadas do que de fontes de inspiração para o trabalho cientí ico. Aospoucos,todavia,essepanoramafoimudando.

OHomemvitruviano,pintadoporLeonardodaVinciem1490,exprimea relação do Humanismo com os clássicos da Antiguidade. O quadro ébaseado na obra do arquiteto romano Vitrúvio, do século I a.E.C., que játentaraencaixarasproporçõesdocorpohumanodentroda iguradeumquadrado e um círculo, mas seus desenhos haviam icado imperfeitos.Leonardopintouesseencaixedentrodospadrõesmatemáticosesperados,ouseja,seguindoproporçõesharmônicasdocorpohumano.

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FIGURA1Homemvitruviano,deLeonardodaVinci.

Grande parte da matemática do Renascimento recebeu in luência domovimento humanista. As referências às obras matemáticas daAntiguidadeeramencontradasemtrabalhosvariadosduranteoséculoXV,comonosdoarquitetoLeonBattistaAlberti,queenxergavaorenascimentoda matemática como um renascimento da cultura antiga. Um arquiteto-matemático ligado ao Humanismo foi Luca Pacioli, cuja importância na

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históriadaálgebramencionamosnoCapítulo4.Pacioliadvogavaousodamatemática como fonte de certezas para todos aqueles que seinteressavam por iloso ia, perspectiva, pintura, escultura e arquitetura.Um dos mais eminentes humanistas do século XV, Regiomontanusconcordava que a matemática é útil em todos os tipos de conhecimento,mas como um tema sublime, ligado à Antiguidade. Ele reconhecia, porexemplo, a importânciadeArquimedes,porémo reverenciavamais comomatemático do que por sua contribuição à ciência da época. No caso daastronomia as coisas eram um pouco diferentes. Um exemplo típico domodo comooHumanismo transformou o conhecimento escolástico resideno trabalho de Nicolau Copérnico, tido como um marco da RevoluçãoCientífica.

Esseastrônomo,conhecidopeladefesadosistemaheliocêntrico,nasceunaatualregiãodaPolônia,porémestevenaItáliadurantealgunsanosporvoltade1500,onde se tornouassistentedoastrônomoDomenicoNovaradaFerrara,professordaUniversidadedeBolonha.Este,porsuavez,tinhasido educado em Florença, onde fora colega de Luca Pacioli. Seupensamento astronômico foi in luenciado por Regiomontanus, pupilo deGeorg von Peuerbach, personagem fundamental nas observaçõesastronômicas que acabaram por levar à contestação do modelo dePtolomeu. Peuerbach lecionava em Viena, conhecia perfeitamente oAlmagesto e aperfeiçoou as tábuas astronômicas de Ptolomeu usando osinstrumentos que inventava. Quando foi convidado para ir à Itália, levouRegiomontanus, que viria a completar seu trabalho depois de suamorte,em1461.AobradePeuerbachéumainiciativacaracterísticadoséculoXV,poistentavaconciliarosideaisaristotélicoscomaastronomiadePtolomeu.Seu livro principal,Theoricae novae planetarum (Novas teóricas dosplanetas),publicadoporRegiomontanus, exerceugrande in luência sobreCopérnico.

No sistema astronômico antigo, o movimento dos corpos celestes erarepresentadopormodelosmecânicos,usando-seesferasconcêntricasque,antesdePtolomeu,nãocorrespondiamàsobservações.Essesmodelosnãoelucidavam, por exemplo, por que os corpos celestes aparecem às vezesmais afastados e às vezesmais próximosno céu, fato incompatível comarepresentação por meio de esferas concêntricas. Daí o sistema propostoporPtolomeu,queexplicavaomovimentoaparentedosplanetasporumacombinaçãodeciclosdescentradosemtornodaTerra.

Ao contrário doAlmagesto, as ilustrações do livro de Peuerbach não

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eram diagramas geométricos, constituídos de linhas, como as igurastradicionais da geometria grega. Ele empregava representações comespessura das órbitas sólidas dos planetas dentro de duas super íciesconcêntricas, uma interior e outra exterior. Além disso, a órbita de cadacorpocelesteeradesenhadaseparadamenteea relaçãoentreo tamanhodo Sol e da Terra se torna relevante, diferente de quando eramrepresentadosporpontosgeométricos.NaFigura2,criadaporPeuerbach,vemos a órbita descentrada do Sol em torno da Terra. Seu objetivo eraobterumcompromissoentreasnecessidadesmatemáticasdaastronomiaobservacionaldePtolomeueasrestrições impostaspela ísicaaristotélica.Copérnico aprendeu astronomia nesse livro de Peuerbach 3 e, vendo assuas ilustrações, percebeu que era preciso procurar um mecanismoalternativo,comoSolnocentroemvezdaTerra(comopropõenaFigura3).

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FIGURA2ÓrbitadoSolemtornodaTerra.

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FIGURA3ModeloheliocêntriconomanuscritodeCopérnico.

Na época de Copérnico, a astronomia era uma ciência dedicada àconstrução de tabelas para calcular a posição dos corpos celestes. Ashipóteses astronômicas eram propostas, assim, com a inalidade dereconciliarasobservaçõesfeitasenãopararevelaraestruturadocosmos.Para corresponder às observações mantendo o sistema de Ptolomeu,seriam necessários ajustes que fariam com que os corpos se movessem

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sobrecírculosdemodonãouniformecomrelaçãoaoscentros.Umsistemadesse tipo não seria, segundo Copérnico, su icientemente absoluto nemsu icientemente agradável para a mente. Essa era uma razão para sepostular o sistema heliocêntrico, com as seguintes implicações: (i) osmovimentosqueenxergamosno irmamentonãosedevemaomovimentodo irmamentocomoseacreditava,masaomovimentoderotaçãodaTerraemtornodeseueixo;(ii)alémdisso,oquepareceseromovimentodoSolé,naverdade,consequênciadomovimentodaTerraemtornodoSol.

Tais conclusões implicavam a destruição do cosmos dos antigos e aperda da posição central e única atribuída à Terra, o que podia levar ohomem a abandonar o status privilegiado que havia ocupado no sistemageocêntrico. Esse drama, frequentemente designado como “revoluçãocopernicana”,chegouaseridentificadocomoaprimeiraferidanarcísicadahumanidade: o homem não é mais o centro do mundo. Ainda assim, ateoria de Copérnico não representou uma revolução na época; aocontrário,elademorouparaseraceita.Suaobra De revolutionibusorbiumcoelestium(Darevoluçãodasesferascelestes)foipublicadanoanodesuamorte, em 1543, embora sua teoria já fosse conhecida. Algumas tabelasastronômicasbaseadasemsuasobras começarama serusadasporvoltade 1550, e a atração que o trabalho de Copérnico exercia se devia,principalmente,ao fatodeoferecerummeiomaissimplesemaisacuradoparacalcularaposiçãodosastros.Ouseja,suaimportância,paraaépoca,nãoeraatribuídaaofatodeterfornecidoummodelo ísicomaisexatodosmovimentos celestes. O traço inovador da teoria de Copérnico entãoreconhecido era a defesa da autonomia dos modelos matemáticos parasalvarasaparênciasdosfenômenos.

Naverdade,antesde1580quasenenhumastrônomoacreditavaqueomodelodeCopérnicopudesserepresentaraestrutura ísicadocosmos.Aexplicação ísica no estilo ptolomaico/aristotélico, exempli icada pela obradePeuerbach,permaneceusendoaprincipalreferênciaparaaastronomiaaté os anos 1570, quando as observações realizadas por Tycho Braheabriram novas possibilidades. Somente por volta de 1600 os astrônomoseuropeus pareciam estar preparados para aceitar a realidade ísica dosistemaheliocêntrico.

NamatemáticadoséculoXVI,adiscussãocomosprincípiosescolásticosnãoeratãopresentequantonaastronomia.Normalmente,oRenascimentoé identi icado com o espírito platônico, pelo privilégio ocupado pelamatemática como ferramenta explicativa. Mas a in luência de Platão não

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parecetersidoespecialmentefortesecomparadaàdeoutrospensadoresgregos, como Arquimedes. A Europa ocidental conheceu os tratadosmecânicosdeArquimedes comas traduçõesdo séculoXIII, entretanto, sócomeçou realmente a se apropriar de seus trabalhos no século XVI. Esserenascimento da mecânica clássica não se deveu à atuação dasuniversidadesnemdoshumanistasesimdeengenheirosinteressadosemquestõesteóricas,comoNiccolòFontana,conhecidocomoTartaglia.

No inalda IdadeMédia,enquantosedesenvolviaumaculturaurbana,começavam a proliferar o icinas nas quais técnicos colaboravam entre sipara desenvolver uma tecnologia que atendesse às demandas dos novostempos. Desde o século XII, eram necessários estudos práticos para darconta das grandes transformações econômicas e sociais, como melhoriasagrícolaseconstruçãodecatedrais.Aospoucos,asecularizaçãodasformasde vida forçou o homem a se aproximar da esfera prática sem separá-lacompletamentedaatividadeintelectual.NosséculosXIVeXV,importantesinvenções ajudaram a transformar o papel da ciência, como o relógiomecânico,abússola, aartilharia, as lunetase, sobretudo,a imprensa,quefacilitouacirculaçãoeadivulgaçãodossaberes.

No século XV, essas o icinas já estavam em um estágio bastantedesenvolvidoeconciliavamconhecimentospráticoseteóricos.LeonardodaVinci éumexemplo típicodoperíodo.Conhecidopelo carátermúltiplodeseusconhecimentos–queuniamarte,engenhariaeciência–, frequentouumadaso icinasmaisconhecidasdeFlorença,coordenadaporAndreadelVerrochio. A formação ali obtida aliava o estudo teórico a ensinamentostécnicos, comodesenho, química,metalurgia, trabalho commetal e couro,mecânicaecarpintaria,ouaindatécnicasdepinturaeescultura.

Esse aspectoda cultura renascentistadeu lugar a umanovadinâmica,emquesemisturavamosabereruditoescolásticoeuma literaturamista,cientí icaetecnológica,baseadanaexperiênciadosartesãos,dospráticosedosviajantes.Ostextosqueexpressavamessenovosaberjáeramescritosem língua vernácula e nãomais em latim.Nauniversidade, amatemáticaainda era vista como parte da cultura antiga, a ser admirada, mas nãopraticada.O conhecimentomatemático não era autônomo e as disciplinasnão tradicionais, como a álgebra, não entravam no currículo. Isso nãoimpediuqueesseconhecimentosedesenvolvesseemoutrocontexto, foradas universidades. Já vimos o papel das escolas de ábaco em relação àálgebra. Essas escolas, surgidas inicialmente em Florença, forneceram abase para o conhecimento matemático dos comerciantes e artesãos

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superiores, cuja formação se desenvolvia fora do contexto universitário.IniciativassemelhanteshaviamsemultiplicadoaolongodoséculoXIV.

NoséculoXVe,principalmente,noXVI, intensi icou-seo interessepelamatemática porparte de artesãos e engenheiros quedesejavam resolverproblemasdinâmicos,levando-osafazerpesquisassobrebalística,bombasdeáguaeoutrosassuntosligadosàvidacomum.ComparadoaAristóteles,Arquimedes representava uma abordagembemmais convincente para acompreensão desse tipo de problema. A aplicação da matemática aquestõespráticasaindaeraconsideradainferiorpeloshumanistas,porémseus ensinamentos sobre a matemática antiga e suas referências aArquimedes tiveram in luência recíproca para que um conhecimentohíbrido se desenvolvesse na Itália. Um exemplo perfeito é Tartaglia, quepublicou suaNova scientia em um dialeto local em 1537. A nova ciênciamencionada nessa obra é a balística, que traduz as preocupações com oestudodaartilhariaemlongasdistânciasedemandaaanálisedatrajetóriadeprojéteis.

A primeira publicação latina de Arquimedes, na qual o editor pareciaentender o conteúdo da obra, foi feita justamente por Tartaglia em1543(na verdade, ele corrigiu uma versão latinado séculoXIII, pois não sabiagrego). Ele não era humanista e sim um matemático autodidata quetrabalhava com construtores de armas, arquitetos e comerciantes.TartagliatambémjátinhatraduzidoobrasdeApolônioeEuclideseaplicouosmétodosdeArquimedesaotratamentodeproblemastecnológicos.Seusescritos e traduções in luenciaram alguns pensadores da época voltadospara o estudo do movimento, como Galileu. Mesmo Cardano, apesar decriticar osmétodos usados por Tartaglia na resolução de equações, citouArquimedes comoumarquétipode sua visão sobre a natureza e o papeldamatemática.

Nas outras regiões da Europa, essa in luência de Arquimedes noHumanismofoimaistardia.ForadaItália,umdosprimeiroshumanistasaconhecer bem a matemática clássica e, ao mesmo tempo, apreciarArquimedes foi o francês Petrus Ramus. Para se contrapor à utilidadeilosó ica de Platão ou Euclides, Ramus defendia o tipo de utilidadeencontradanasobrasdeArquimedes.Segundoele,maisdoquemétodoseprovas, o uso público da matemática deveria ser valorizado, e, nessesentido, o mais elevado pensador antigo era Arquimedes. Apesar dainiciativadeRamus,foramVièteeDescartesquetornaramessain luênciamais frutífera. Como veremos adiante, esses estudiosos franceses

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sistematizaramousodaálgebranaresoluçãodeproblemasgeométricos,oquejáerafeitoantesdeles,masdemododesordenado.

ProblemasgeométricosnofinaldoséculoXVI

AColeçãomatemática dePappus foi traduzida em1588e fez ressurgir ointeresse pelas construções dos gregos, chamadas de problemas delugares geométricos (locus). Pappus os classi icava como: problemasplanos,construídoscomréguaecompasso;problemassólidos,construídospor cônicas; e problemas lineares, construídos por curvas mais gerais,comoaespiral.AlémdaobradePappusedos trabalhosalgébricosentãodisponíveis, em 1575 foi publicada uma tradução para o latim daAritméticadeDiofanto.AArteanalíticadeViètefoi in luenciadaporessestrabalhos.Noentanto,pararesolverproblemasgeométricos,elepropunhausarumaargumentaçãodenominada“análise”.AobrapublicadaporVièteem1591,queemlatimseintitulaInArtemAnalyticemIsagoge (Introduçãoà arte analítica), é o primeiro dos dez tratados que formam a suaOpusrestituta Mathematica Analyseos, seu, Algebra nova (Obra de análisematemática restaurada, ou Álgebra nova). Nesse título a palavra quechama a atenção érestitua, levando-nos a acreditar que Viète queria“restaurar” a análise dos antigos. Dando sequência à Isagoge, eleapresentouoLesZeteticorumlibriquinque (Cincolivrosdaszetéticas),nosquais aplica sua arte analítica a 82 problemas que são, em sua maioria,análogosaosestudadosporDiofantonaAritmética.AArteanalíticacomeçacomuma explicação do que é análise, retirada daColeçãomatemática dePappus:

Encontra-se na Matemática uma certa maneira de procurar a verdade, que se diz ter sidoprimeiramente inventada por Platão, que Theon chamou “Análise” e que, para ele, de ine asuposição daquilo que procuramos como se estivesse concedido para chegar a uma verdadeprocurada, pormeio das consequências; ao contrário, a “Síntese” é a suposição de uma coisaconcedidaparachegaraoconhecimentodaquiloqueprocuramospormeiodasconsequências.4

Osgregos játinhamusadoaanáliseemproblemasgeométricos,porémViète irá propor um modo novo de usar essa ferramenta, baseado naálgebra. Uma forte inspiração de sua obra foi Diofanto, pois VièteacreditavaqueousodequantidadesdesconhecidasnaAritmética indicavaque um método geral para praticar a análise seria conhecido dosmatemáticosgregos,masteriaseperdido.Seuobjetivoerarestauraresse

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método,ouseja, fundarumaferramentauniversal,naqualaanálisefosseidenti icadaàálgebra,pararesolverproblemas.Jávimoscomoosmétodosárabes propagaram-se pela Europa, logo, a álgebra era utilizada peloscontemporâneos de Viète. No entanto, esse uso era fragmentado e nãoseguiaumpadrãouni icado.Ostratadosalgébricos,apesardefornecerempoderosas ferramentas para a resolução de problemas variados, nãoseguiamoestiloaxiomáticodosgregos.

Com a divulgação da obra de Pappus, os matemáticos passaram abuscar o que era descrito nessa obra como sendo o cânone grego. Comométodosalgébricosnãoeramapresentadosna formaaxiomático-dedutivad o sElementos de Euclides, ainda que se impusessem como umaferramentade grande valia, as soluções obtidaspormeioda álgebranãopodiam ser consideradas “exatas”. A todo momento a questão dalegitimidadedessesprocedimentosalgébricosvinhaàtona,eaimportânciadeVièteresidejustamentenamaneiraqueencontrouparalegitimá-los.Osproblemas planos davam lugar a equações de segundo grau, e os outrospodiam fazer surgir equações de grau mais elevado. Por exemplo, oproblemada trissecçãodoângulo levavaaumaequaçãode terceirograuquepodia ser resolvidapeloprocedimentodaneusis,descritonoCapítulo3. Na classi icação de Pappus, esse método não consta na descrição dosproblemas sólidos, o que levou Viète a propor que aneusis pudesse serconsideradaumnovoaxiomadageometria,oquecon irmaain luênciadavisão de Arquimedes. Segundo ele, isso expandiria o universo dosinstrumentos de construção aceitos como legítimos, permitindo resolvertodososproblemassólidos(quediríamos,hoje,deterceirograu).

Vièteaceitavaocritériodeexatidãoassociadoàconstrução.Adiferençaestava no fato de inserir mais um postulado, que dava lugar a novasferramentasdeconstrução.Umavezqueaintroduçãodenovospostuladospermitia resolver mais problemas geométricos, eles deveriam seradmitidos como princípios da matemática. Uma expansão semelhante aestadeveriaserefetuadapara legitimarosmétodosalgébricos:buscandousaraferramentaanalíticapararesolverqualquertipodeproblema,Vièteprocuroufazerdaálgebraumaciêncianosmoldesgregos,apresentando-ade maneira axiomática. Resolver equações algébricas por métodosalgébricosserviacomoauxiliarnaconstruçãogeométricadesoluçõesparaosproblemasgeométricos.OobjetivodeViète eramostrarque a álgebrapodiaserútilaosproblemasdeconstruçãoquetinhamocupadoosgregos,umavezquepretendia fundarumanova álgebra comomesmoprestígio

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dageometria.Ageometriasintéticaéaquelanaqualconstruímosassoluções. Jápelo

métodoanalítico,supomosqueassoluçõesdesconhecidassãoconhecidaseoperamoscomelascomosefossemconhecidas,atéchegaraumresultadoconhecido que determina a solução. A simbolização algébrica permiterepresentar essas soluções desconhecidas por símbolos, manipuladossegundoasmesmasregrasqueosnúmerosconhecidos.

AlgunsenunciadosdosElementos,comoaproposiçãoII-5demonstradanoCapítulo3,permitemresolver,pormeiodeumaconstruçãogeométrica,o problema de encontrar dois segmentos com soma e produto dados. Ossegmentos obtidos como solução eram efetivamente construídos, dandolugaragrandezasqueaindanãotinhamaparecidonoproblema.Esseéumexemplodesíntese,diferentedométododaanálise.

Vejamos,nocasodeumaequaçãoalgébrica,comode inira“análise”.Aincógnita,ouox,éaquantidadedesconhecida.Quandoescrevemosx+2=3, tratamosoxcomosefosseconhecidoeoperamoscomessaquantidadeda mesma forma que fazemos com o 3 e o 2, que são, efetivamente,números conhecidos. Com essa manipulação, fazemosx = 3 − 2 = 1 eencontramos o valor da quantidade desconhecida. Operamos, nesseexemplo, com as quantidades procuradas como se elas já estivessemdadas.Sequiséssemosresolveroproblemadeencontrarduasgrandezascomsomaeprodutodadospelométodoanalítico, começaríamos supondoqueessasgrandezasqueprocuramossãodadasepodemserchamadasdexey.Emseguida,pormanipulaçõesalgébricas,encontraríamososvaloresreaisdexey.

O método da análise já era usado na geometria grega, embora sem oauxílio da álgebra. A análise consistia em um modelo típico deargumentaçãoquecomeçapelasuposição(hipotética)dequealgumacoisaque não é realmente dada – e que se deseja obter – seja, de fato, dada.Alguns matemáticos do século XVI, como Viète, e mesmo Descartes, noséculo XVII, acreditavam que os gregos omitiam, namaioria das vezes, apartereferenteàanálisedasresoluçõesdosproblemas.Paraosantigos,aanáliseseriaentãoummétododedescoberta,enãodedemonstração.

Ométodoanalíticodosgregosdeviaseracompanhadoporumasínteseque forneceria a verdadeirademonstração.Viète conheciabemométodode análise e síntese dos antigos e sabia que quantidades desconhecidaspodiam ser utilizadas na resolução de problemas, comoDiofanto já tinhafeitonaAritmética.Tambémtinhaconsciênciadapotênciadaálgebra,pois

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empregavaosmétodosalgébricosderesoluçãodeequações.Paraproporumauni icaçãodessessaberesefundarumnovopadrãoparaaresoluçãode problemas matemáticos, Viète nutria a ambição de apresentar ummétodo sistemático que pudesse resolver qualquer tipo de problema. NoinaldaIntroduçãoàarteanalítica ,eleenunciaamotivaçãodetomarparasi o maior de todos os problemas, em letras maiúsculas: NULLUM NONPROBLEMA SOLVERE (“nenhum problema sem resolver”). Foi para alcançaresse objetivo que inventou o que chamou delogistica speciosa, que sepropunha a ser uma ciência dentro dos padrões gregos. Tratava-se, naverdade, de uma nova maneira de calcular, apresentada na formaaxiomática.

Para Viète, a álgebra era ummétodo de cálculo simbólico envolvendograndezas abstratas. Isso quer dizer que, na sua arte analítica, elemanipulava as grandezas independentemente de sua natureza. Por essarazão,foiprecisocriarprocedimentossimbólicosdecálculoquepudessemser aplicados tanto a grandezas geométricas quanto a quantidadesnuméricas.Umúnicosímbolodeveriapoderrepresentartodosostiposdegrandeza.Aofundarumcálculoparatodosostiposdegrandeza(numéricaou geométrica; conhecida ou desconhecida), Viète poderia resolver todososproblemas.ConformeatestaH.J.M.Bos:

Viète não via a álgebra, que seria a ferramenta essencial da sua análise, como uma técnicaconcernindo números, mas como um cálculo simbólico concernindo grandezas abstratas. Aoelaborar essa concepção, ele criou procedimentos simbólicos de cálculo que se aplicavam agrandezasindependentementedesuanatureza(número,grandezageométricaououtra–notequeeleconsideravaonúmeroumtipodegrandeza).Comessepropósito,introduziuletrasparasimbolizar grandezas indeterminadas, bem como grandezas desconhecidas. … Na sua “novaálgebra”, entidades matemáticas como números, segmentos de reta, iguras etc., sejamconhecidas,desconhecidasouindeterminadas,eramconsideradassomentenoaspectodeseremgrandezas,abstraindo-seasuaverdadeiranatureza.Viètefalavadegrandezas“emespécie”,emformaouemtipo,chamandosuanovaálgebrade“cálculoarespeitodeformas”,ou“arespeitodeespécies”: tambémusouo termo“logistica speciosa”….Assim, a sualogistica speciosa lidavacomgrandezasabstratassimbolicamenterepresentadasporletras.5

A logisticaspeciosa trata de classes ou de “espécies” de equações e deproblemasnosquaisasgrandezasnãoprecisamsernuméricas.Ométodose opõe ao modo como os problemas eram tratados anteriormente pelalogistica numerosa, que dependia de números particulares. Na logisticaspeciosa, alguns fatos importantes que eram mascarados pelaparticularidade dos números tornavam-semais simples. Por exemplo, naAritméticadeDiofantoexibem-semétodosquepodemseraplicadossobrenúmeros, mas não sobre símbolos. Viète enunciou, então, axiomas

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envolvendo operações sobre símbolos, como adição, subtração,multiplicação,divisão,extraçãoderaizeformaçãoderazões.Asincógnitaseram representadas pelas vogais e os coe icientes pelas consoantes doalfabeto, todas maiúsculas. Mas a lei da homogeneidade das grandezasseguiaospadrõesaristotélicos,ou seja, grandezas lineares sópodiamsersomadas ou subtraídas de grandezas lineares, o mesmo valendo paragrandezasquadradasoudequalquergrau.

Viète simbolizava as potências usando uma mesma letra: seA é aincógnita,seuquadradoéditoAquadratum; o cubo,Acubum;eassimpordiante. Se chamarmosx deA, a equaçãox2 +b =cx (signi icando área +área = área) seria escrita, na notação de Viète, comoA quadratum + Baequatur C in A (aequatur quer dizer “igual”). Na verdade, essa equaçãoeraescritaadicionando-seapalavraplanodepoisdeB,umavezquetodasas parcelas devem possuir as mesmas dimensões, o que daria:Aquadratum+BplanoaequaturCinA (observandoqueCinA jáeraplano,uma vez que resulta da multiplicação de dois segmentos). De modoanálogo,umnúmeroaserigualadoaumcuboeraditosólido.

Omodo comoViète designava as potências trazia amarca geométrica,pois as incógnitas eram escritas comoA,A quadratum eA cubum e nãoeramencaradascomotendoamesmanatureza.Apesardessaligaçãocomageometria,aArteanalíticatraziaumaferramentauniversalpararesolverproblemas por meio da álgebra e era tida como um método de cálculosimbólico envolvendo grandezas abstratas. Mais do que uma coleção deresultados,aArteanalíticapodeservistacomoumprogramadepesquisado inal do século XVI e início do XVII. Diversos outros trabalhosprocuravamampliaraaplicaçãodesuastécnicasàresoluçãodeproblemasvariados, dentre os quais destacavam-se os textos analíticos gregos,estudadosporPappusno livroXVIIdaColeçãomatemática . Para abordaresses problemas, era preciso, antes de tudo, restaurar esses escritos.Muitos deles tinham se perdido, porém a descrição de Pappus permitiarecuperá-losemsua formageométricaoriginal.Emseguida, tratava-sedetraduzirosproblemas, estudadospormeiodaanálisedosantigos,paraalinguagemsimbólicapropostanaArteanalítica.

Asprimeirastentativasdetraduçãodageometriacontidanessasupostaprática analítica dos gregos foram levadas a cabo por Ramus e Viète.Contudo,ostrabalhosdeDescarteseFermat,conhecidosporrenovaremageometria, também se inserem nessa tradição da arte analítica. Antes depassarmosaeles,investigaremosocontextomaisamplodesuaépoca.

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Galileueanovaciência

OlugardeGalileunatransformaçãodaciêncianoséculoXVIIfoiobjetodeintensascontrovérsias.Umadaspolêmicasmais famosasenvolveas tesesdo historiador e ilósofo da ciência Alexandre Koyré. Segundo Koyré, aspráticas empíricas em áreas como balística, forti icação e hidráulicaajudaramaderrubarofeudalismoeopodermedieval,masnãopoderiamser su icientes para transformar a ciência do movimento. Em diversosartigos, escritos em torno dos anos 1940, Koyré ressalta a relação deGalileu com o platonismo, expressa pela importância dada à razão e aopapeldamatemática.

A elaboração de uma teoria ísica seria anterior à experimentação e,paraKoyré,afunçãodosexperimentosnaelaboraçãodateoriadeGalileuseria sobretudo retórica. Artefatos fundamentais na “demonstração” desuas teses sobre o movimento acelerado, como o plano inclinado, teriamsomente a inalidade de justi icá-las, auxiliando na idealização dofenômeno. Experimentos como esses, bem como as famosas quedas deobjetosdatorredePisa,nuncateriamsidorealizadosconcretamente.

Para substituir a ideia de “gênio” disseminada pela historiogra iatradicional,cujoprincipal legadoteriasidoatraduçãomatemáticadas leisdanatureza,foierigida,recentemente,umaimagemdeGalileumaisligadaàsartespráticas. Seubiógrafo, StillmanDrake, escreveuvários artigos aolongo dos anos 19706 nos quais argumentou que os instrumentos deGalileunãoeramapenasabstrações,masaparatosreaisqueserviamtantopara testarquantoparamotivar suas teorias.Essaa irmaçãodiz respeitoao uso de artefatos construídos para estudar certos fenômenos, caso doplano inclinado (já as experiências na torre de Pisa continuam sendoconsideradaslendárias).

Galileu foi um fabricante de instrumentos. Entretanto, apesar de suascontribuições ao aprimoramento do telescópio serem reconhecidas, essafaceta tinha sidomarginalizadanahistóriaquevigorouatéoprincípiodasegundametadedoséculoXX.Naverdade,a imagemdeGalileucomoumcientista teórico, com semblantemoderno, foi questionadanos anos1940nos trabalhos de Edgar Zilsel, pensador austríaco que emigrou para osEstadosUnidosfugindodaperseguiçãonazista.Segundoessehistoriadoreilósofodaciência,de inspiraçãomarxista,osmesmosavançossociaisquetiveramlugarnaEuropaentreosséculosXIIeXVIocorreramtambémnodomíniotecnológico.Asartespráticasteriamsidoestimuladaspelasnovas

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necessidades e inspirado uma con iança na continuidade dos avanços datecnologia.OpoderqueosteóricosdosséculosXVeXVIexperimentavam,umavezquetinhamseapropriadodaliteraturadossábiosdaAntiguidade,era semelhante à sensação que os artesãos tinham diante dasmelhoriasquehaviamconseguidoempreenderpormeiodeferramentasimportantesparaaorganizaçãodavidaemsociedade.

Segundoateoriaque icouconhecidacomo“tesedeZilsel”,entre1300e 1600 distinguem-se ao menos dois estratos da organização social:intelectuaisacadêmicoseartesãosquali icados.Aestesvemsesomar,emmuitas regiões, um terceiro grupo: o dos pensadores humanistas. Osprofessores e humanistas tinham certo desprezopelas artesmecânicas epelos trabalhos manuais. Por outro lado, os artesãos quali icados, queincluíamartistas-engenheiros,agrimensores,construtoresdeinstrumentosmusicais, náuticos e de guerra, eram mestres na prática daexperimentação. Tratava-se de dois mundos separados: os últimos, tidoscomoplebeus,nãotinhamtreinamentointelectualteórico;eaosprimeiros,integrantes das classes mais altas, faltava um contato com a experiênciaprática e com as possibilidades dos instrumentos. A atividade intelectualera derivada da estrutura hierárquica da sociedade. Logo, os doiscomponentes do método cientí ico estavam separados por uma barreirasocial. Somente quando os preconceitos começaram a ruir, por volta de1600,elespuderamunirseusconhecimentoseexperiências.Ostrabalhosde Galileu devem ser analisados nesse contexto de desenvolvimento deumasociedadecapitalista.

A expansão das classes de comerciantes aumentou o interesse pelosavanços tecnológicos e o respeito pelo trabalho dos artesãos. O métodoescolástico, que incentivava disputas intelectuais, foi ultrapassado pelodesejodecontrolaranatureza,oquesópoderiasedarcomacooperaçãocientí ica.Aospoucos,acrençamísticaeareverênciaàautoridadederamlugaraumpensamentocausalequantitativo.

Histórias mais recentes, como a exposta por M. Valleriani emGalileoEngineer, jáaceitama importânciadadaàpráticanaépocaeprocuram iralémdatesedeZilsel,analisandocomoaaproximaçãodessesdoismundosin luenciouaprópria ísicadeGalileu.Mas,antesdeabordaressasnovastentativas, faremos um brevíssimo resumo do percurso de Galileu comopensador.

OsestudosdeGalileucomeçaramemPisa,aindano inaldoséculoXVI.Alguns escritos dessa época já contestavam a teoria aristotélica dos

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movimentos naturais, através do estudo de corpos emmovimento dentrode um meio luido. Galileu argumentava que era preciso conhecer arelação proporcional entre o peso por volume de um corpo e o peso porvolumedomeioemqueessecorpoestáimerso.Porexemplo,setemosdoisvolumesiguaisdeáguaedemadeira,ovolumedeáguaserámaispesado,logo,nãopodemos fazerovolumedemadeirasubmergir.Essaexplicaçãoseopõeàteoriadascausasaristotélicas,segundoaqualomovimentonãosedáporqualidadesdecadacorpoesimporumacausaúnica,opeso,queécomoumaforçaqueinteragecomaaçãodeummeio.

Uma referência fundamental nesses trabalhos é Arquimedes. Osfenômenos relacionados a corpos em movimento podem ser estudadoscomopesosemumabalança.EGalileucreditouaArquimedesa invençãodomodelodabalançaparaestudaromovimento.Denossopontodevista,sobretudoporque temos a história damatemática como foco, a discussãosobre a in luência de Arquimedes pode ser uma saída para escapar dapolêmica sobre o platonismo de Galileu, que acaba recaindo em um dosladosdaoposiçãoentre teoriaeprática.Desdeosescritos iniciais,Galileuparecia acreditar que a melhor maneira de entender os fenômenos émostrando como eles funcionam de modo mecânico. No estudo domovimento, máquinas simples, inspiradas em Arquimedes, eramfundamentaisparaacompreensão–casodabalança,doplanoinclinadoedo pêndulo. Como a irma Peter Machamer, 7 o ponto de vista mecânicosobre o mundo, exempli icado por Galileu, repousava no tipo deinteligibilidade fornecido pelas máquinas simples de inspiraçãoarquimediana. Esses artefatos gozavam de propriedades fundamentais,como concretude ísica e possibilidade de descrição matemática e demanipulação para a realização de experimentos, o que forneciainteligibilidadeaosconceitosabstratos.

Em 1612, Galileu escreveuDiscorso intorno alle cose che stanno in sul’acqua o che in quella si muovono (Discurso sobre as coisas que estãosobre a água, ou que nela semovem), no qual, apoiando-se na teoria deArquimedesecontrariandoatesearistotélica,demonstravaqueoscorposlutuamouafundamdeacordocomseupesoespecí ico,enãosegundosuaforma. NesseDiscurso, comentava também as manchas solares, quea irmava já ter observado em Pádua em 1610. Entre 1613 e 1615,escreveualgumascartasque icaramconhecidascomoLetterecopernicane(Cartas copernicanas),nasquaisa irmaquealgumaspassagensdaBíbliadeviam ser interpretadas à luz do sistema heliocêntrico, para o qual ele

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não tinhaaindaprovascientí icasconclusivas.Nosanosseguintes,Galileucontinuou seus estudos sobre a teoria de Copérnico, mas sempre comouma hipótese matemática útil, uma vez que simpli icava os cálculos dasórbitas dos astros, e não como ummodelo ísico. Foi nesse contexto queredigiuDialogo sopra i due massimi sistemi del mondo tolemaico ecopernicano (Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundoptolomaico e copernicano), inalizado em 1630 e publicado em 1632, noqual voltou a defender o sistema heliocêntrico. Essa obra foi decisiva noprocessodaInquisiçãomontadocontraele.

Em 1638, foram publicados os seusDiscursos e demonstraçõesmatemáticassobreduasnovasciências .Trata-sedoprimeiro tratadosobreacinemáticaeadinâmicadosmovimentosnasproximidadesdasuper ícieda Terra. Redigido na forma de diálogos, seguia a tradição grega que setornara comum no Renascimento. Seus três interlocutores são: Salviati(que representa o próprio Galileu), Simplício (que defende a iloso ia e aísica de Aristóteles) e Sagredo (personagem prático, de mentalidadeaberta,queatuacomoumaespéciedeárbitroentreasduasposiçõesemconfronto). O livro é constituído basicamente por quatro “jornadas”. Aprimeira é uma introdução às “duas novas ciências”: a resistência dosmateriais e o estudo do movimento. A segunda trata da estática edesenvolve as ideias e os modelos de Galileu sobre a resistência dosmateriais. Nas duas últimas “jornadas”, discutem-se o movimentoaceleradoeasleisqueregemomovimentodosprojéteis.

Aligaçãoentreaquedalivreeomovimentodosprojéteispodesugeriruma in luência direta das artes da guerra. Já vimos que muitos dosdesenvolvimentos teóricos de Galileu tiveram suas origens noconhecimento de artesãos, arquitetos e engenheiros do século XVI, queadquiriam status por atenderem às necessidades da arte da guerra, queapresentavaentãoavançosconsideráveis.No inaldoséculoXV,surgiramarmas de artilharia pesada ligadas a novas estratégias de defesa e, naprimeira metade do século XVI, trabalhos como os de Tartagliadebruçavam-se no estudo do movimento dos projéteis. Se analisarmos oaprendizadodeGalileu como artista-engenheiro (entre 1584 e 1589) e otrabalhoquerealizoudurantesuaestadaemPádua(entre1592e1610),veremos que devotou tempo considerável a pesquisas sobre guerra. Eleconcebeu instrumentosmatemáticos para usomilitar e abriu uma o icinaparaconstruí-los.Alémdisso, transmitiaesseconhecimentoapupilosquequisessemingressaremcarreirasmilitares.Quandoconseguiuaumentaro

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alcance do telescópio, em 1609, estava envolvido justamente nessaeconomia de artefatos e sua ideia inicial não era desenvolver uminstrumentoastronômicoparacomprovaroheliocentrismo,esimfornecerumanovaferramentamilitaràMarinhadeVeneza.

FoijustamentedurantesuaestadaemPáduaqueGalileuformuloualeida queda livre. Di ícil negar que haja alguma relação entre os doisdomínios de interesse. Segundo Valleriani, o estudo da queda livre foidiretamente in luenciado pela pesquisa de Galileu sobre a trajetória deprojéteis, uma questão fundamental para a balística da época. O modelocentralanalisadoporeleéomovimentodequeda,livreousobreumplanoinclinado,demodoqueadistânciadeumcorpoemrelaçãoaopontoinicialaumenta com o quadrado do tempo transcorrido. Se esse movimento dequeda é superposto a um movimento uniforme horizontal, obtemos atrajetória parabólica deumprojétil. Ambos osmovimentos são essenciaisparaaconstituiçãodamecânicadeGalileu.

É importante observar que, nesse tipo de estudo do movimento, nãoimportava saberporque umcorpo cai,mascomoelecai,eessadescriçãoerapuramentegeométrica.Ouseja,naquedalivre,eraprecisosabercomoas grandezas variavam umas em relação às outras, e a resposta a essapergunta implica a utilização de proporçõesmatemáticas para relacionaras grandezas (representadas geometricamente). As leis naturais eramescritas em linguagem matemática, mas essa linguagem era geométrica,sintética, de tipo euclidiano, e não envolvia as fórmulas algébricas queconhecemoshoje.

Diagramaspararepresentaromovimento

Na“jornada”dedicadaaomovimentoacelerado,Salviatienunciaaseguinteproposição:

TeoremaI,proposiçãoIOtemponoqualqualquerespaçoéatravessadoporumcorpoinicialmenteemrepousoeuniformementeaceleradoéigualaotemponoqualomesmoespaço é atravessado pelo mesmo corpo movendo-se com velocidadeuniforme, cujo valor é a média entre a maior velocidade e a velocidadeimediatamenteanterioràaceleraçãotercomeçado.

SalviatidemonstraessaproposiçãousandoodiagramadaFigura4:seja

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a retaABo temponoqual o espaçoCDé atravessadoporum corpoqueiniciaseumovimentonorepousoemCeéuniformementeacelerado.SejaamaiorvelocidadeadquiridaduranteointervaloABrepresentadapelaretaBE,desenhadaperpendicularmenteàretaAB.DesenhearetaAE.Todasasretas paralelas à BE a partir de pontos equidistantes sobre ABrepresentarão valores cada vez maiores da velocidade que começou acrescerno instanteA. SejaFopontoquebissecta a retaBE.DesenheFGparalelaàAB,eGAparalelaàFB.ObtemosumretânguloAGFBcujaáreaéigualàdotriânguloAEB.IssoporqueoladoFGbissectaoladoAEnopontoI, de modo que, se as paralelas no triângulo AEB se estendem até GI, asoma das paralelas contidas no quadrilátero AGFB é igual à soma dascontidasnotriânguloAEB(asqueestãonotriânguloIEFsãoiguaisàsqueestão contidas no triângulo IAG, ao passo que as que estão no trapézioAIFBsãocomunsaambos).

Comoasvelocidadesdomovimentoaceleradosão representadaspelasparalelasnotriânguloAEB,easvelocidadesdomovimentouniformepelasparalelasnoretângulo,Salviaticoncluiqueoqueseperdedemomentonaprimeirapartedomovimentoacelerado (representadopelasparalelasdotriângulo IAG)é compensadopelomomento representadopelasparalelasdotriânguloIEF.

OespaçopercorridonointervalodetempoABédado,emcadacaso(domovimento uniforme e do movimento uniformemente acelerado), pelasáreasdoquadradoedotriângulo.Comoessasáreassãoiguais,concluímosqueespaçosiguaissãoatravessadosemtemposiguaisemambososcasos,o que signi ica que a distância percorrida é proporcional ao tempotranscorrido.

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FIGURA4

À diferença dos medievais, Galileu procurava caracterizar osmovimentosacelerados tal comoeles seproduzem, tentando fornecerumsentido ísico mensurável à ideia de que os movimentos aceleradosadquirem velocidades cada vez maiores. Esses movimentos acumulamvelocidadesemcadapontoe,ao im,essasvelocidadespodemsermedidascomo grandezas independentes do espaço e do tempo. É por possuíremessa autonomia, ou seja, por serem concebidas como grandezas em simesmas que as velocidades podem ser associadas quantitativamente aoespaçopercorridoeaointervalodetempogastoparapercorrê-lo.

O que queremos destacar aqui é a representação das grandezasenvolvidas no movimento por diagramas. As “leis” do movimento sãoexpressas por relações de proporção entre as grandezas geométricasrepresentadas no diagrama. Isso icará ainda mais claro quando Galileuutilizar a lei enunciada na proposição I para tratar domovimento de umcorpoemquedalivre:

TeoremaII,proposiçãoIIOs espaços descritos por um corpo caindo a partir do repouso commovimento uniformemente acelerado estão um para o outro como os

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quadradosdosintervalosdetempogastosparaatravessá-los.Para demonstrar essa proposição, Galileu emprega um diagrama

análogo ao anterior (Figura 5). Suponhamos que o tempo sejarepresentado pela reta AB, sobre a qual tomamos quaisquer doisintervalos AD e AE. A reta HI representa a distância que o corpo,começando do repouso em H, percorre com aceleração uniforme. Se HLrepresenta o espaço atravessado durante o intervalo AD, e HM épercorridoduranteo intervaloAE,entãooespaçoHMestáparaoespaçoHLemumarazãoqueéoquadradodarazãoentreosintervalosdetempoAE eAD.Ou seja, deve-semostrar que as distânciasHMeHL estão umaparaaoutracomoosquadradosdeAEeAD

FIGURA5

Demonstração: [Usando a proposição anterior, Galileu reduz ademonstraçãoparaocasodeummovimentouniformementeaceleradoaocaso de um movimento uniforme.] Desenhe a reta AC fazendo qualquerângulocomABetraceparalelasDOeEPpelospontosDeE.Dessasduasretas,DOrepresentaamaiorvelocidadeadquiridanointervaloAD;eEP,amaiorvelocidadeadquiridanointervaloAE.Masprovamosanteriormenteque,comrespeitoàsdistânciaspercorridas, sãoequivalentesassituações

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emqueocorpocaidorepousocomaceleraçãouniformeeemqueelecai,durante o mesmo intervalo de tempo, com velocidade constante igual àmetade damaior velocidade adquirida nomovimento acelerado. Logo, asdistâncias HM e HL são as mesmas que seriam percorridas, durante osintervalos AE e AD, respectivamente, por velocidades uniformes iguais àmetade daquelas representadas por EP e DO (respectivamente). Bastamostrar,portanto,queasdistânciasHMeHL,percorridasemmovimentouniforme,estãonamesmarazãoqueosquadradosdeAEeAD.

Já havia sido demonstrado no primeiro livro (proposição 4) que asdistânciaspercorridasporduaspartículas emmovimentouniformeestãoumaparaaoutracomooprodutodarazãoentreasvelocidadespelarazãoentre os tempos (em linguagem atual, podemos traduzir essa conclusãopelafórmulad=vt,ondedéadistância;v,avelocidade;et,otempo).Logo,nomovimentouniforme,arazãoentreasvelocidadeséigualàrazãoentreos tempos:arazãoentre½EPe½DO,ouentreEPeDO,é igualàrazãoentre AE e AD. Sendo assim, podemos concluir que a razão entre asdistânciaspercorridaséigualàrazãoentreosquadradosdosintervalosdetempogastosparapercorrê-las.

Para compreender esse raciocínio, podemos adaptar a notação eescrever:

A partir dessa proposição, Galileu pôde constatar que a constante deproporcionalidadedependiadeumaaceleraçãoigualparatodososcorpos:a gravidade. Conhecemos a grande utilidade dessa lei, enunciadageometricamenteporGalileuequeescrevemoshojecomo .Tira-sedaíaconclusãosurpreendentedequetodososcorposemqueda livre,desprezando-se a resistência do ar, caem ao mesmo tempo,independentemente de suamassa. Como nosso objetivo não é fazer umahistória da ísica matemática, não nos deteremos mais sobre asconsequências dessa descrição proposta por Galileu. Gostaríamos demostrar, apenas, de que modo a matemática foi usada na tentativa decompreendercomooscorposadquiremvelocidadeecomoessagrandezapode ser associada a outras grandezas variáveis que participam domovimento,entreelasoespaçoeotempo.

No estudo da queda livre o espaço percorrido foi associado ao tempo

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por intermédio da velocidade. Isso só se tornou possível porque Galileupassou a ver a velocidade como uma grandeza que pode ser de inidaindependentemente do movimento, o que os medievais não faziam. Oespaço e o tempo serão também rede inidos nesse contexto. Parapossibilitar o estudodosmovimentos acelerados, o espaço será sempreoespaçopercorrido;eotempo,otempogastoparapercorrê-lo.

Os diagramas que representam o movimento foram de sumaimportância na demonstração das proposições de Galileu, de naturezageométrica. A história tradicional, preocupada com a questão dosprecursores, vê também aí um antecedente do plano cartesiano, masdestacamosquearelaçãoentreasgrandezaséexpressageometricamentepor meio de proporções. Na época da publicação deDiscursos edemonstrações matemáticas sobre duas novas ciências , aGeometria deDescartes já havia sido escrita, mas Galileu não estava a par dessetrabalho.

NoDiálogo, publicado antes dosDiscursos, encontramos também umatentativaderepresentarduasmagnitudesdiferentes,nocaso,otempoeavelocidade,comopontosde inidosapartirdedoiseixoscoordenados.Mas,apesar da utilização engenhosa dos diagramas na representação domovimento,éumexageroconsiderarGalileuofundadordarepresentaçãoem coordenadas, pois o passo fundamental das justamente denominadas“coordenadas cartesianas” depende da utilização da álgebra. Como noplanodeOresme,nãosãousadasferramentasalgébricasnademonstraçãodeGalileu.

Descartes e a revolução matemática do séculoXVII

O século XVII foimarcado pela crença de que o desenvolvimento técnicopodia melhorar a vida dos homens, ainda que esta não fosse uma novadescoberta.Citaremostrêsexemplostípicosdesseséculo:Galileu,BaconeDescartes.

Em 1620, Francis Bacon publicou oNovum organum , cujo título fazreferência aoOrganon deAristótelese indicaanecessidadede se fundarumnovométodopara interpretar a natureza. SegundoBacon, em vez dalógica aristotélica, o método indutivo podia ser mais frutífero para a

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enunciação de novas verdades cientí icas. Bacon não chegou a ver aprimeira edição de uma de suas obras mais conhecidas,Nova Atlântida,publicada somente pouco depois de sua morte, ocorrida em 1626. Esselivrotratadeumalocalidadeimaginária,marcadapelaprosperidadeepelaintervenção do homem na natureza. Na utópica Casa de Salomão,funcionaria um laboratório cientí ico ictício, de alto nível, onde seriamrealizadas experiências capazes de simular os fenômenos naturais comointuito de controlá-los. Nas torres da Casa, os fenômenos meteorológicosseriam observados, mas também reproduzidos. Chuvas arti iciais, neve egranizo,porvezescomsubstânciasdiferentesdaágua,tornariampossívelaconstruçãodemáquinasparamultiplicaraforçadosventosecriarnovosfenômenos meteorológicos. Poços e fontes arti iciais conteriam mineraisimportantes à manutenção da vida; e os cientistas da Casa teriamdesenvolvido atémesmouma água capazdeprolongar a vidahumana.AambiçãodeBacon,expressanesselivro,podesercomparadaaestetrechodasextapartedoDiscursodométodo,deDescartes:

Nunca iz muito caso das coisas que vinham demeu espírito, e, enquanto não recolhi outrosfrutosdométododequemesirvo…nãomejulgueiobrigadoanadaescreveraseurespeito.…Mas, tão logoadquirialgumasnoçõesgeraisrelativasàFísica,e,começandoacomprová-lasemdiversas di iculdades particulares, notei até onde podiam conduzir e o quanto diferem dosprincípios que foram utilizados até o presente, julguei que não podia mantê-las ocultas sempecargrandementecontraaleiquenosobrigaaprocurar,noquedependedenós,obemgeraldetodososhomens.Poiselasme izeramverqueépossívelchegaraconhecimentosquesejammuitoúteisàvida,eque,emvezdessaFiloso iaespeculativaqueseensinanasescolas,sepodeencontrarumaoutraprática,pelaqual, conhecendoa forçaeasaçõesdo fogo,daágua,doar,dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente comoconhecemos os diversos misteres de nossos artí ices, poderíamos empregá-los da mesmamaneiraemtodososusosparaosquaissãopróprios,eassimnostornarcomoquesenhoresepossuidoresdanatureza.

O texto prossegue defendendo a utilidade dessa nova ciência para ainvenção de uma in inidade de arti ícios que permitiriam tirar proveito,semcustoalgum,dos frutosda terraede todasascomodidadesquenelase encontram. Mas também, e principalmente, essa ciência seria usadapara a conservaçãoda saúde, que seria, semdúvida, o primeiro beme abasedetodososoutrosbensdestavida.EssaobradeDescartes,publicadaem 1637, faz eco a outros escritos anteriores acerca do método para ainvenção de verdades na ciência e contém um apêndice intituladoGeometria. Por isso é interessante associar o seu empreendimentogeométricoaoespíritodaprimeirametadedoséculoXVII.

Está para além do escopo deste trabalho estudar as in luências de

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Bacon sobreDescartes, entretanto, aindaqueaobradeBaconnão tenhaangariadopopularidadeimediata,acríticaàvelhalógicaeosesforçosparaencontrar novos métodos para a enunciação de verdades, presentes noNovumorganum , foramapreciadospormatemáticos comoopadreMarinMersenne e o próprio Descartes. Assim, ao privilegiar a invenção e aintervenção na natureza, o pensamento da época se associava ao estudoquantitativo dos fenômenos. Como já dito, não sabemos se foi o ideal decontrolar a natureza quemotivou o desenvolvimento de umnovo tipo dematemática, ou se foi a matematização dos fenômenos que despertou ointeresse por uma nova relação entre ciência e natureza. Dessa forma,partimos da consideração de que a quanti icação e a medida comointegrantes fundamentais do novo ideal de compreensão da naturezapodemnosajudaraentenderopapeldamatemáticaeosnovoscontornosqueelaadquiriunaépoca.Essaéa“revoluçãomatemática”doséculoXVII,assim designada por Evelyne Barbin emLa révolution mathématique duXVIIèmesiècle.

Em um texto de 1623,Il saggiatore , Galileu já descrevia a operaçãonecessária ao estudo quantitativo dos fenômenos. Para conhecer umamatéria ou substância corporal seria preciso concebê-la como algolimitado, dotado de uma forma, ocupando um certo lugar em um dadomomento, em movimento ou imóvel, em contato com outro corpo ouisolada, simplesou composta.Não importa seessamatériaerabrancaouvermelha, amarga ou doce, com cheiro bom ou ruim. Para Galileu, essasqualidadesdeviamser abstraídas emproldeumadescriçãoquantitativa.De modo semelhante, Descartes a irmava que as únicas determinaçõesque podemos conhecer, na realidade, são aquelas passíveis de seremquanti icadas emedidas. EmRegrasparaadireçãodoespírito , escrito porvolta de 1628, ele já anunciava o projeto de uma nova ciência que seriaumaespéciedematemáticauniversal(mathesisuniversalis):

Re letindo mais atentamente, pareceu-me por im óbvio relacionar com a Matemática tudoaquilo em que apenas se examina a ordem e amedida, sem ter em conta se é em números,iguras,astros,sons,ouemqualqueroutroobjetoquesemelhantemedidasedeveprocurar;e,por conseguinte, deve haver uma ciência geral que explique tudo o que se pode investigaracerca da ordem e damedida, sem as aplicar a umamatéria especial: esta ciência designa-senão pelo vocábulo suposto, mas pelo vocábulo já antigo e aceito pelo uso de Matemáticauniversal (Mathesis universalis ) porque esta contém tudo que contribui para que as outrasciênciassechamempartesdaMatemática.8

Emressonânciacomoespíritodaépoca,Descartesdefendiaentãoqueopensamentonãosededicaacompreender todosos tiposdecoisas,mas

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somenteaquelasquesãopassíveisdequanti icação.Comoa irmaBarbin,arealidade ématemática porque foi tornadamatematizável por separação,portriagem.ParaDescartes,asdeduções lógicasquepermitempassardeumaproposiçãoaoutradevemser substituídaspor relaçõesentre coisasquanti icáveis, traduzidas por equações (igualdades entre quantidades).Quantomaisnosdistanciamosdasquantidades,maisoconhecimentotocao obscuro, podendo induzir a erro. Não podemos con iar nas aparências,noqueacreditamosserverdadeiropelotestemunhodossentidos.Poderiaexistir, como postula Descartes, um gênio maligno que faz com queestejamos enganados sempre que acreditamos ver, ou testemunhar, umcerto fenômeno. Por isso é preciso duvidar sempre. Nesse quadro deincertezas,comoobterumacerteza?Paraessepensador,hádois tiposdeideia: a obscura e confusa, trazida à percepção pelomundo sensível; e aclaraedistinta,queseapresentaaoespíritocomnitidezeestabilidade.Sópodemosconheceromundopormeiodesseúltimotipodeideia,maisbemexempli icadopelamatemática,comsuas igurasenúmerosconcebidosdemodoindependentedossentidos.

NoDiscursodométodo,encontramosumexemploesclarecedorsobreailoso iacartesiana:umaexperiênciacomumpedaçodecera.Setomamosum pedaço de cera sabemos que ele possui certo tamanho, certa forma,certa cor, um cheiro, uma temperatura; e se batemos nele, podemos atéouvirumsom.Masoque acontecequandoacendemosuma chama sobreessa cera?Evidentementeelaperderá todasessaspropriedades.Porqueentãopodemos,aindaassim,continuarachamarde“cera”oqueresta?Oqueháde estávelquepermanece após essasprofundas transformações?Descartesa irmaqueháalgoqueresta,chamadoporelede“extensão”,equenãodizrespeitonemàmatérianemàforma,ouseja,nãoseidenti icacomoespaçoocupadopelacera.Essaextensãoéalgoneutroquepodeserdivisívelemovidode todososmodos–é, emsuma, segundoDescartes,oqueosgeômetraschamamdequantidade.

Ao inserir o pensamento de Descartes na revolução matemática doséculo XVII, Barbinb destaca que uma das principaismotivações do novométodo proposto por esse ilósofo e matemático é ter estabelecido osparâmetros para uma arte da invenção. A produção de invenções comoobjeto da ciência era defendida também por Bacon e por alguns outrosmatemáticos da época. Outro exemplo se encontra nos cursos de Galileusobreproblemasmecânicos traduzidospara o francês porMersenne, em1634, e publicados com um título que fala por si:Les mechaniques de

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Galilée, mathématicien et ingénieur du duc de Florence. Avec plusieursadditions rares et nouvelles, utiles aux architectes, ingénieurs, fonteniers,philosophesetartisans (AsmecânicasdeGalileu,matemáticoeengenheirodo duque de Florença, com diversas adições raras e novas, úteis aosarquitetos,engenheiros,fonteniers,cfilósofoseartesãos).

Contraossaberesantigos,permeadospordemonstraçõesestéreis,seriapreciso fundar uma nova arte da invenção que pudesse fornecer novosobjetos capazes de servir à matemática, assim como os objetos técnicosserviamàvida social.ParaDescartes, asdemonstraçõesmatemáticasnãotinhamsomenteopapelde convencereestabelecerumacerteza;deviamsobretudo esclarecer a natureza do problema e propor métodos deinvenção direta que permitissem resolvê-lo. Por isso ele rejeitava ademonstraçãoporabsurdo.

Nessecontexto,osobjetosgeométricospassavamaservistoscomnovosolhos,umavezquepodiamserúteisnaresoluçãodeproblemaspráticos.Aanálise do papel das curvas geométricas pode mostrar, objetivamente,comoacrençana importânciada técnica levouàconstituiçãodeumnovotipo de geometria. Desde tempos anteriores a Galileu, uma curva já eravista comouma trajetória,podendo representar,porexemplo,opercursode uma bala de canhão. Outros problemas técnicos, como os suscitadospela óptica, teriam modi icado o estatuto das curvas geométricas nasprimeirasdécadasdoséculoXVII,casodascônicas.

Em 1626, Descartes frequentou o círculo de pensadores quegravitavamemtornodopadreMersenne,emParis,quesededicava,entreoutras coisas, a pesquisar problemas ópticos ligados ao estudo domovimento dos raios luminosos. Esses trabalhos levaram Descartes aescreverDióptrica, um dos ensaios publicados com oDiscurso dométodo,ouseja,juntamentecomaGeometria.Trata-sedeumtratadodeópticaquecompreende uma teoria da refração da luz, e desde o início da obrapercebe-se aproximidadedeDescartes comos artesãosde instrumentosópticos.9Umdosprincipaisproblemasquesurgemaíéodeexplicarcomoa forma de uma super ície de refração reúne os raios paralelos em umúnico ponto, fenômeno conhecido como “problema da anaclástica”.Descartesdeuumprimeiropassoparaaconstruçãodaanaclásticausandoelipses e hipérboles. Ele descrevia como construir essas curvas usandoinstrumentos.

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FIGURA6

No caso da hipérbole, na Figura 6, B é um ponto da hipérbole comramos YX e SR; D e K são os seus vértices; e H e I são os seus focos. Oinstrumento para construir a hipérbole é composto por uma régua deextremidadesAeCeporum iocujocomprimento lsatisfaça0<AC−l <IH.

Fixando,porexemplo,aextremidadeCdaréguanofocoI,demodoqueelapossagiraremtornode I; ixandoo iono focoHeemA;e tendoumlápis que possa sermovido ao longo da régua demodo a esticar o io, apontado lápisdesenharáo lugargeométricodospontosBquesatisfazem|BI−BH|=AC−l.Comoaréguafoi ixadaemI,temosqueBI−BH=(AC−AB)−(l−AB)=AC−leoramosuperiordahipérboleserádesenhado.

Da igualdade |BI − BH| = AC −l, resulta a equação cartesiana dahipérbole.AdiferençaAC−ldeterminaadistânciaentreosseusvérticesKeD.

Em seguida, Descartes mostrava que, se construirmos um corpo devidrocomformatohiperbólico,elefarácomquetodososraiosparalelosaoeixoconvirjamparaumpontoforadacurva,opontoInaFigura7:

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FIGURA7

Percebe-se,pormeiodesseexemplo, comoas cônicasdeixaramde servistas como simples objetos geométricos sobre os quais deviam sedemonstrarpropriedadesepassaramaservirapropósitos técnicos.EsseprocessojáestavaemcursoantesmesmodaDióptrica,poisjásesabiaqueascônicaspodiamserusadasparaconstruirlunetaseespelhos,bemcomoservir à relojoaria. Pesquisadores do círculo de Mersenne investigavamcomotransformarumraioluminosocilíndricoemumfeixedecônicas,eaconsequênciadissoparaageometriaéqueoproblemadascurvasópticasimplicava a busca de curvas desconhecidas, ou seja, de curvas querealizassemcertosefeitosópticos.

OqueBarbindesignacomo“invençãodocurvo”éumaconcepçãogeraldas curvas existente na época que não se limitava ao estudo de curvasparticulares, ampliando o universo dos objetos geométricos pelaintrodução de curvas que descrevem movimentos ou são expressas porequações algébricas. Em diversos problemas, tratava-se de procurar umobjeto desconhecido que podia ser uma curva, em um sentido bemmaisgeraldoqueseconsideravaanteriormente.Ageometriase transformava,assim, pormeio dos objetos que se propunha a investigar e das técnicasempregadascomessefim.

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O“método”aquese refereoDiscursodométododevia tersuae icáciacomprovada por aplicações materiais, como ica claro emDióptrica, massua superioridade era demonstrada naGeometria. Para a fabricação delentes hiperbólicas, Descartes empreendeu o estudo das ovais, curvade inida e analisada, naGeometria, por meio de relações de proporçãoexpressasemequaçõesalgébricas.Aconstruçãodasovais,quepossuemapropriedade de fazer com que os raios de luz convirjam para um únicoponto, mostra a utilidade instrumental de sua matemática no campo daóptica;masasuperioridadedométodoseráa irmadacomaresoluçãodeum problema herdado dos antigos, cuja solução ainda não havia sidoencontrada:oproblemadePappus,queestudaremosaseguir.

Ascoordenadascartesianas

Um dos principais objetivos do sistema de coordenadas era permitir oestudo de curvas por meio de retas. Os matemáticos gregos associavamalgumasretasaumadeterminadacurvaparadescrever,demodoretórico,usando proporções, as propriedades dessa curva. Para estudar seçõescônicas, por exemplo, Apolônio usava a noção desintoma, que permitiadeterminar certa curva a partir de uma proporção entre segmentos dereta. No entanto, além de outras diferenças importantes, quandocomparamosessestrabalhoscomageometriadoséculoXVIIessarelaçãoentre grandezas era expressa como uma proporção geométrica, e nãoalgebricamente,comoumaequação.

Para Descartes, a extensão deve ser conhecida por meio de relaçõescomo a proporção, e o objetivo da nova geometria seria estudar igurasusando proporções. Ao traduzir os problemas geométricos em linguagemalgébrica, elevisava compreendermelhoras relaçõesentreasgrandezasdoproblema.LogonoiníciodaGeometria,Descartespropõeautilizaçãodométodoanalítico:

Se queremos resolver qualquer problema, primeiramente supomos que a solução já estáefetuadaedamosnomesatodasaslinhasqueparecemnecessáriasparaconstruí-la.Tantoparaas que são desconhecidas como para as que são conhecidas. Em seguida, sem fazer distinçãoentre linhas conhecidas e desconhecidas, devemos percorrer a di iculdade da maneira maisnaturalpossível,mostrandoasrelaçõesentreessaslinhas,atéquesejapossívelexpressarumaúnica quantidade de doismodos. A isto chamamos uma Equação, uma vez que os termos deumadessasduasexpressõessãoiguaisaostermosdaoutra.10

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Dar nomes às linhas da igura, “tanto para as que são desconhecidascomo para as que são conhecidas”, era a essência da inovação propostaporViète.OobjetivodeDescarteserautilizarnageometria,pararesolverproblemas de construção, uma espécie de aritmética, em que regrassimples de composição levassem de objetos simples a outros maiscomplexos.Ométodocomeçaporexibirosobjetosmais simplesde todos,asretas,easrelaçõessimplesqueosrelacionam,asoperaçõesaritméticas.Na abertura do primeiro livro da Geometria, Descartes se refere às cincooperações básicas da aritmética e mostra que tais operaçõescorrespondemaconstruçõessimplescomréguaecompasso.

Na igura a seguir, tomando-se AB como unidade, o segmento BE é oproduto dos segmentos BD e BC, obtidos ligando-se os pontos A e C edesenhando-seDEparalelaàAC.

UmaconsequênciadesseprocedimentoéqueoprodutodossegmentosBDeBCpodeservistocomoumsegmentoBE,oquenãopodiaacontecerna geometria de tradição euclidiana, onde o produto de dois segmentosdevia ser visto, necessariamente, como um retângulo, ou seja, como umaigura de natureza distinta de um segmento de reta. Suponhamos, porexemplo,queBA=1eBD=aemarquemosCdemodoqueBC=b.Temosque , logo, BE= ab, produto de BD e BC (notem que aqui jápodemosusaroprodutodosmeiosedosextremos,umavezqueestamosoperando com números e não mais com grandezas). Podemos tambémmarcaropontoCdemodoqueBC=ae,nessecaso,BE=a2.Temos,assim,uma potência quadrada que não é associada a um quadrado, mas a umsegmentodereta.Procedimentosdessetipopermitirãovenceroproblemadahomogeneidadedasgrandezaspresentenageometriaeuclidiana(eemViète).

Isso foi possível pela escolha de um segmento de reta arbitrárioconsiderado“unidade”.Apartirdaí,oprodutodedoissegmentospôdeserinterpretadocomoumoutrosegmento,enãomaisnecessariamentecomoaáreadeumretângulo.Essesegmentoeraconstruídopeloprocedimento

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descrito. Apesar de construir geometricamente a solução, tal método eraabsolutamente inovador na geometria, pois permitia ultrapassar ahomogeneidade das grandezas e operar com elas como se fossemnúmeros,oqueimplicaumamisturaentregênerostidostradicionalmentecomodistintos:aaritméticaeageometria.

Descartes sugere a substituição das vogais, usadas por Viète pararepresentarasincógnitas,pelasúltimasletrasdoalfabeto,como x,y,z,w;edepoisdeconstruiramultiplicaçãodedoissegmentos,elepassaaanalisaralgunscasosdeequaçõesquadráticas,mostrandoqueasolução,ouseja,aincógnita, é um segmento de reta que pode ser construído. Por exemplo,para a equaçãoz2= az + b2, a reta incógnitaz seria construída como naIlustração1.

ILUSTRAÇÃO1

Construímos um triângulo retângulo NLM com LM =b e NL = .Queremos construirz que satisfaça à equação. Prolongamos MN até opontoO,talqueNO=NL.ObtemosOM=z.Concluímosdaíque:

Demonstração: Traço uma circunferência com raio e centro N. ElacortaMNemP.Podemosconcluirque . Issoporque (ângulos que determinam o mesmo arco nacircunferência), logo, os triângulos OLM e LPM são semelhantes. Sendoassim,seOM=z,PM=z−a,comoOM.PM=LM2,concluímosqueb2=z(z−a) oub2 =z2 −az.Portanto,o segmentoOMpodeservistocomoa raizdaequação. Depois de mostrar que esse segmento, do modo como foi

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construído, satisfaz à equação, podemos determinarz a partir daspropriedades geométricas da igura, obtendo que .

Descartesignoraasegundaraiz,umavezqueelaserianegativa.Em seguida, ele mostra, respectivamente, como podemos construir as

raízes das equaçõesz2 = − az + b2 (notem que ele já usava −a, masconsiderando quea é positivo, o sinal de menos representava umaoperação sobre o coe iciente positivo) e z2= az − b2. Para resolver essaúltima equação, traçamos na Ilustração 2, de modo análogo ao exemploanterior,umsegmentoNLdetamanho eumsegmentoLMdetamanhob.Noentanto,aoinvésdeligarMaN,traçamosMRparalelaàNL.

ILUSTRAÇÃO2

TomandoN como centro, traçamosuma circunferência por L cortandoMRnospontosQeR,eOépontomédiodeRQ.A linhazprocuradaéMQouMR,expressas,respectivamente,por:

Para ver que MQ e MR satisfazem à equação, basta observar que

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, uma vez que ambos são ângulos quedeterminamomesmoarconacircunferência.ComoostriângulosLRMeQLMtêmumânguloretonovérticeM,elessãosemelhantes.Logo, eLM2=MR.MQ.ComoLM =b, fazendoMR=z, temosdeLM2=MR.MQqueb2 =zMQ.Mascomo

,poisOéopontomédiodeRQ,eMQ=z−RQ,concluímosque .Temosassim,deb2=zMQ,queb2=z(a−z).Logo,z=MRsatisfazàequaçãoz2=az−b2.Fazendoz=MQ,obtemosasegundasolução.Nessecaso,Descartesforneceasduassoluções,umavezqueambassãopositivas.d

Após essa análise, ele acrescenta uma observação importante: “Se ocírculodescritoporNpassandoporLnão cortanem tocaa linhaMQR, aequação não tem nenhuma raiz, de forma que podemos dizer que aconstruçãodoproblemaéimpossível.”

Sabemos, hoje, que o caso em queb > dá origem a duas raízescomplexasdaequação,oquedeviaserexcluído.Podemosobservar,ainda,queDescartes considerava separadamenteos seguintes tiposdeequaçãoquadrática:z2 = az + b2, z2 = −az + b2 ez2 = az −b2. Por que ele nãogeneralizouoproblemaescrevendoapenasumaequaçãodotipo z2+az+b2=0?Porquesóeramconsideradoscoe icientespositivos,umavezquedeviamestarassociadosalinhasconstrutíveis.Sendoassim,aequaçãoz2+az+b2=0nãofoiconsiderada,poisnãopossuiraízespositivas.

Note que as soluções seriamprimeirocasoaraiztambém

serianegativa,pois .

Descartes também considerou equações de grau maior que 2, queajudavam a construir a solução de problemas geométricos. Seu objetivonão era propriamente algébrico; ele queria desenvolver ummétodo quepermitisse reduzir problemas geométricos à resolução de uma ou maisequações. A grande novidade da obra geométrica de Descartes foi aintrodução de um sistema de coordenadas para representar equaçõesindeterminadas. A introdução dessa ferramenta, fundamental para oprojetocartesiano,foimotivadainicialmentepeloseguinteproblema:

ProblemadePappusEncontrar o lugar geométrico de umponto tal que, se segmentos de reta

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são desenhados desde esse ponto até três ou quatro retas dadas emângulos determinados, o produto de dois desses segmentos deve serproporcional ao produto dos outros dois (se há quatro retas) ou aoquadradodoterceiro(sehátrêsretas).

Pappusdemonstrouque,nocasogeral,asoluçãodeveserumacônica.Descartes, inspirado por esse matemático grego, passou a considerar oproblemaparamaisdequatroretas,oquedaráorigemacurvasdemaiorgrau.Emumaformasimpli icada,oproblemaconsisteem:dadas2nretas,encontrarolugargeométricodeumpontomóveltalqueoprodutodesuasdistâncias (não necessariamente em ângulo reto) an das retas (emposiçõesdeterminadas,comângulosdados)éproporcionalaoprodutodasdistânciasàsoutrasnretas.e

Para quatro retas, o lugar geométrico foi descrito por Descartes demodogeneralizávelparaummaiornúmeroderetas.SejaminicialmenteasretasAB,AD,EFeGH,comonaIlustração3:

ILUSTRAÇÃO3

Queremos encontrar um ponto C a partir do qual possamos construirsegmentos de reta CB, CD, CF e CH que façam ângulos dados C A,

e CĤG comas retas dadas.Alémdisso, umoutrodadodo problema é que o produto dos comprimentos de alguns dessessegmentoséproporcionalaoprodutodoscomprimentosdosrestantes.Porexemplo, podemos ter que o produto de CB por CH é igual an vezes o

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produtodeCFporCD.Para resolveroproblemadeencontraro lugargeométricodopontoC,

Descartes propôs, primeiramente, que se suponha o problema resolvido,como na Ilustração 3 (o que determina que ele está usando o métodoanalítico).Comohámuitaslinhas,a irmaele,“parasimpli icaroproblema,consideroumadas linhasdadaseumaoutraa ser traçada (porexemplo,ABeBC)como linhasprincipais,àsquais tentarei referir todasasoutras.ChameosegmentodalinhaABentreAeBdexechameBCdey”.11Oqueele está fazendo é justamente criar um sistema de duas coordenadas noqualaslinhasABeBCsãooseixoscoordenados.

Se os eixos forem escolhidos de modo conveniente, o problema serábastante simpli icado por essa ferramenta. Como os ângulos do triânguloARB são conhecidos (uma vez que BC corta AB e, indiretamente, ADsegundo ângulos dados, pois AB corta AD segundo um ângulo dado), arazão entre AB e BR também é conhecida e podemos dizer que AB estáparaBRassimcomoumaconstantequalquerzestáparaumaconstanteb,ou .Logo,comoAB=x,temos ConsiderandoqueBestá

entreCeR(comonaIlustração3),concluímosque .Comoosângulos do triângulo DRC são conhecidos (pois CB e CD cortam ADsegundoângulosdados),arazãoentreCReCDédadapelarazãoentreamesma constantez e uma outra constante qualquerc (isto é, .

Sendo assim, concluímos que . Usando procedimentosanálogos,obtém-setambémCFeCHemfunçãodasquantidadesxey:

(ondetodasasletras,comexceçãode xey,designamconstantesdadasnoproblema).

O produto de dois desses comprimentos, como CF e CD, por exemplo,possuigrau (nomáximo)2emx e emy; oprodutode três comprimentospossui grau (nomáximo)3 emx e emy; e assimpor diante.Assim, como

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umdadodoproblemaéuma igualdadeentreprodutos (amenosdeumaconstante), teremos uma equação com duas variáveis em cada membro.Por exemplo, se é dado no problema que CF × CD =n CH × CB, essaigualdadeserádadapelaequação:

Trata-se de uma equação do segundo grau em x ey. Atribuindo,portanto, um valor qualquer ax (ou ay), podemos determinar a outraquantidade,y (oux), por meio de uma equação do segundo grau. Porexemplo, atribuindo valores a y teremos equações do tipox2 = ±px ±q2,para as quais a solução pode ser construída com régua e compasso (pormeio dos métodos que Descartes havia deduzido para a construção deraízes de equações quadráticas). Tomando sucessivamente in initosvalorespara y,obtemosin initosvalorespara x e,paracadaparx ey, icadeterminadoumpontoC,oquepermitedesenharacurva.

Observamos que a utilização de um sistema de coordenadas, passofundamental na invenção da geometria analítica, está associada a umproblemaindeterminado,ouseja,comduasquantidadesdesconhecidas.Éimportante notar, ainda, que Descartes não empregava necessariamenteumsistemadeeixosortogonais.Paracadaproblema,deviaserescolhidoosistemamaisconveniente.

OQUESÃOEQUAÇÕESINDETERMINADAS?

Háumadiferençadenaturezaentreasequaçõesx2−4x+3=0ex2+y2=1.Noprimeirocaso,trata-se de encontrar o valor da quantidade desconhecidax, que,mesmonão sendo conhecida,pode ser determinada por uma das igualdadesx = 3 oux = 1. No segundo caso,x ey nãopossuem valores determinados, por isso dizemos que se trata de uma equação indeterminada.Podemosvariarosvaloresdex,oquenosfaráobter,demodogeral,diferentesvalorespara y.Noexemplo, sex ey sãonúmerosreais,o lugargeométricodospontosquesatisfazemàequaçãoéumacircunferênciaderaio1.Opapeldosímboloxmudatambémdeumcasoparaooutro,porissopensamossermaisadequadodizerque,noprimeirocaso,x éuma incógnitae,nosegundo,umavariável.

Paracincoretas,ométodofuncionadomesmomodoeveri ica-sequeasolução é uma cúbica. Descartes não se preocupou em descreverexatamentequecurvaresolveoproblemaemumasituaçãoespecí ica,masemmostrarque,mesmoaumentandoonúmeroderetas,seumétodopodesergeneralizadoparaencontrarcurvasdediferentesgrausqueresolvem

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oproblema.Apráticadaarteanalíticado inaldoséculoXVIeiníciodoXVIIenvolvia

numerosos estudos de problemas particulares, abordados com métodosheterogêneos que tinham em comum a utilização da análise pormeio daferramenta algébrica. A aplicação dos novos métodos à resolução deproblemas geométricos não seguia uma norma bem-de inida. Antes deDescartes,osdiversosprocedimentosdeconstruçãoutilizadosnãotinhamsido submetidos a uma ordenação nem a teorias uni icadoras acerca desua legitimidade. Sabia-se que o uso de métodos algébricos na análiseenvolvia a relação entre problemas, equações e construções, mas anaturezadessasrelaçõesnãoerabemcompreendida.UmdosobjetivosdaGeometriadeDescarteseraordenarodomíniodaresoluçãodeproblemasgeométricos por meio da arte analítica, postulando um novo padrão derigoreumanovanoçãodeexatidãoparaosprocedimentosdeconstrução.

De acordo com a classi icação de Pappus, os problemas geométricoseram subdivididos em planos, sólidos ou lineares, segundo as curvasusadas na construção das soluções. Estas podiam ser curvas construídascomréguaecompasso,cônicasoucurvasmaiscomplexas(comoaespiraleaquadratriz).DepoisdasoluçãoqueacabaradeproporparaoproblemadePappus,Descartes iniciouosegundo livrodaGeometriacriticandoessaclassificaçãopornãodiferenciaroscasosemqueascurvasempregadasnaconstruçãopossuemgrausdiferentes.Alémdisso,dizele,porquedesignarcomo“mecânicos”,enão“geométricos”,osproblemaslinearesconstruídosa partir de curvas como a espiral e a quadratriz? Observando que nãohaveria razão para excluir curvas construídas por outras máquinas tãoacuradasquantoaréguaeocompasso,Descartesacrescenta:

Parececlaroqueseassumimosqueageometriaéprecisaeexata,enquantoamecânicanãoé;esepensamosageometriacomoumaciênciaqueforneceumconhecimentogeraldasmedidasdetodososcorpos,entãonãotemosmaisodireitodeexcluircurvasmaiscomplexas,bastandoqueelas sejam concebidas como curvas descritas por um movimento contínuo ou por váriosmovimentos sucessivos, cada um sendo completamente determinado pelos precedentes; poisdestaformaumconhecimentoexatodamagnitudedecadaumésemprepossível.12

Não há razão, portanto, para se considerar a régua e o compassoinstrumentosmenosmecânicosdoqueoutrosusadosemconstruçõesmaisgerais. A única razão para excluir essa última classe do universo dasconstruçõesconsideradasplenamentegeométricaséqueascurvas,comoaespiral, são construídas pela combinação de dois movimentosindependentesumdooutro.

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As curvas propostas por Descartes são geradas por movimentossucessivos, sendo um movimento completamente determinado peloprecedente.EsseéocasodasoluçãodoproblemadePappus,poisacurva-solução é construída por ummovimento que é de inido por construçõessucessivas comréguae compasso.Problemas resolvidos comconstruçõesdessetipo,segundoasoluçãoqueDescartestinhaacabadodeapresentar,deviam ser considerados plenamente geométricos, como é o caso dequalquer outro problema resolvível com régua e compasso. Osinstrumentosdeconstruçãoconsideradosexatosexpandemouniversodarégua e do compasso, introduzindo curvas geradas por um movimentocontínuo,f bastando que suas coordenadas possuam uma conexãoalgébrica. Essa exigência exclui curvas como o cicloide, de inida por umpontodeumacircunferênciagirandosobreumaretaecujascoordenadasnãopossuemconexãoalgébrica.

Como na solução do problema de Pappus, o curvo é engendrado pelomovimento de retas. Mas esse movimento, admitido na construção decurvas geométricas, não é igual ao movimento no sentido ísico, o quesignificadizerquenãosetratadeummovimentoqualquerdependendodotempo.Oescopodosmovimentosquepodemserconsideradosparagerarcurvas é restrito e depende de critérios geométricos. As curvasconsideradas “geométricas” serão aquelas cujas coordenadas possuemnecessariamentealgumarelaçãocomtodosospontosdeumareta,relaçãoque pode ser expressa pormeio de uma única equação.g Em seguida, ascurvas serão classi icadas pelo grau dessa equação, sendo o caso maissimples,desegundograu,referenteaocírculo,àparábola,àhipérboleeàelipse.

A complexidade de uma curva eramedida por seu grau, e o princípiobásicodométododeDescartesconsistiaemdecomporcurvascomplicadasem outras mais simples. No livro III daGeometria, ele a irma que todacurva passível de ser descrita por um movimento contínuo pode serreconhecidaemgeometriaporumaconstruçãoapartirdeoutracurva,daclasse mais simples que a natureza do problema permitir. Esseprocedimento está na base do método reducionista, que aborda umproblemacomplexodecompondo-oemclassesmaissimples.

A transformação da geometria e o trabalho de

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Fermat

Em 1637, ocorreu uma intrigante coincidência que, todavia, parecerecorrente na história da matemática: dois pensadores, trabalhando demodo independente, obtiveramresultados inovadores semelhantes.Antesdo início desse ano, Fermat anunciou e enviou a Mersenne suaIntroductiondes lieuxplanset solides (Introduçãoaos lugaresgeométricosplanos e sólidos). Esteúltimo recebeu, quase aomesmo tempo, asprovasdo livroDiscurso dométodo, de Descartes, contendo aGeometria. Amboshaviam estabelecido, nesses textos, técnicas semelhantes para tratarproblemasdelugaresgeométricosdemodoalgébrico.

A discussão sobre quem teria chegado primeiro a tais resultados ésecundária aqui, poismais importante para o historiador é a questão dasimultaneidade, já que ela revela a existência de um contexto deproblemase ferramentascomuns.No iníciodoséculoXVII,aaplicaçãodaálgebra a problemas geométricos tinha se tornado uma prática habitual,mas investigavam-se sobretudo problemas que levavam a equaçõesdeterminadas.Asoluçãodeequaçõesdegrau3e4popularizaram-seeosproblemas indeterminados, que apareciam naAritmética de Diofanto,começaramadespertarinteresse.

Os primeiros tratados de arte analítica, como os de Ramus e Viète,abordavam problemas que podiam ser expressos por equaçõesdeterminadas, com apenas uma quantidade desconhecida. Mas o estudodos lugares geométricos, como é o caso do problema de Pappus, trazianovos desa ios. Como vimos na solução de Descartes, exprimir lugaresgeométricospormeiodaálgebra faz interviremequações indeterminadascom duas quantidades desconhecidas variáveis. Essas equações eramanálogasaalgunsexemplosestudadosporDiofanto;adiferençaéqueelasexprimem,agora,soluçõesparaproblemasdelugaresgeométricos.OpanodefundocomumaostrabalhosdeDescartesedeFermatreunia,portanto,uminteressecrescentesobretiposvariadosdecurvaseousodaálgebraem problemas geométricos envolvendo o tratamento de equaçõesindeterminadas.

No caso da resolução de equações, o postulado daneusis, usado porVièteealgunsdeseusseguidores,deviaserabandonado.Outraconstruçãogeométricaassociadaàresoluçãodeequaçõesdeterceirograuseverificoumaissimplesemaisfacilmenteaplicávelaproblemasdegraumaiorque3.Trata-sedométododeApolônio,quejáhaviasidousadoporOmarKhayam

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e que emprega a interseção de cônicas, agora tratadas com o auxílio daferramentaalgébrica.Essemétodoémaisgeralqueaneusis,porquepodeserusadocomcurvasmaisgeraisqueascônicasnasoluçãodeequaçõesdegraumaiorque3.EsseseráocaminhoseguidoporDescarteseFermat.Antesdeles,poucosmatemáticoshaviamtrabalhadosobreaconstruçãodeproblemassólidosusandocônicas.Vièteacrescentouoaxiomadaneusis àsua geometria justamente para lidar com a construção de problemassólidos. Mais tarde, Fermat utilizou as técnicas algébricas desenvolvidaspor ele para de inir cônicas e estudar suas interseções aplicando-as àresoluçãodeproblemassólidos.

Vimosqueo iníciodoséculoXVII foimarcadoporesforçosdediversosmatemáticos para recuperar as obras clássicasmencionadas por Pappus.Entre elas, uma das mais importantes eram asCônicas, de Apolônio. Oobjetivo dos trabalhos iniciais de Fermat era exprimir os problemasgeométricos de Apolônio na linguagem algébrica proposta por Viète. Ageometria analítica de Fermat atingiu sua forma inal por volta de 1635,mas esse bacharel emdireito já estudava o assunto desde os tempos emqueesteveemBordeaux,antesdevoltarparaToulouse.No inalde1636,ele enviou a Paris uma cópia de suaIntrodução aos lugares geométricosplanosesólidos,quandoiniciavaumacorrespondênciacomosmatemáticosparisienses.Naépoca,FermatnãoconheciaaGeometriadeDescartes,massua obra também estabelecia uma correspondência entre lugaresgeométricos e equações indeterminadas. LogonoprincípiodaIntrodução,ele propunha: sempre que em uma equação inal duas quantidadesdesconhecidas são encontradas, temos um lugar geométrico e aextremidade de uma delas descreve uma linha, reta ou curva. Vejamoscomo Fermatmostrava, usando a notação de Viète, que uma equação doprimeirograuésatisfeitaporpontosqueestãoemumalinhareta.

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ILUSTRAÇÃO4

SejaNMuma reta, comumpontoN ixo, e sejaNZ igual à quantidadedesconhecidaa,eZI(aretadesenhadaparaformaroângulo )aoutraquantidadedesconhecidae.ConsidereaindaNBeBT(BTformaoânguloNI igual ao ângulo ) quantidades conhecidasb ed (respectivamente).Sed ×a é igual ab ×e, o ponto I descreve uma reta. Para chegar a essaconclusão, basta observar qued ×a =b ×e implica queb:d ::a:e. Mas arazãob:d é conhecida, pois só envolve quantidades conhecidas. Logo, arazãoa:e entre asquantidadesdesconhecidas tambémserádeterminada,assimcomoo triânguloNZI.Sendoassim,NIéumareta.ObservamosqueFermat utiliza apenas um eixo coordenado e a reta é gerada pelaextremidadeIdosegmentovariávelZIquandoZsemoveaolongodoeixo.AscoordenadasNZeZIsãosoluçõesdaequaçãod×a=b×e.

Emseguida,Fermatpassaaestudarasequaçõesdesegundograu.Paracada caso, trata de mostrar que o lugar geométrico dos pontos quesatisfazemaequaçãoéumcírculoouumacônica.Pode-seconcluirdaíque,se os eixos coordenados e os coe icientes da equação forem dados, osparâmetros que de inem a cônica icam determinados. Os gregos, porexemplo,jáhaviamdeduzidoapropriedadeassintóticadospontosdeumahipérbole,enunciadaemtermosdeproporções.UsandoaálgebradeViète,Fermat escreveu a equação dessa cônica para encontrar, em seguida, olugargeométricodospontosqueasatisfazem.

A Introdução aos lugares geométricos planos e sólidos continha umapêndicesobrea“soluçãodeproblemassólidospor lugaresgeométricos”.Nessesproblemas,dadaumaequaçãodegrau3ou4emumavariável,erapreciso determinar o valor da incógnitax. Para encontrá-lo, Fermatescreviaduasequaçõesdesegundograuemduasvariáveis xey, tomadas

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comocoordenadasdospontosde interseçãodecônicas.Foiassimqueelepôdededuzirummétodopararesolverequaçõesdegrau3ou4pormeiodainterseçãodecônicas.

Quando os matemáticos próximos de Fermat tomaram conhecimentodesses trabalhos, reagiram com ceticismo. Mesmo aqueles envolvidos naprática da “arte analítica” eram tributários do estilo euclidiano deapresentação. Viète fez questão de deixar claro, na Introdução à arteanalítica,quesuasdemonstraçõesalgébricaspodiamserrevertidascomoimdeobterumargumentosintético,apesardejáexistiremtrabalhosqueindicavam um relaxamento em relação a esse tipo de demonstração. Naépoca, usar a análise algébrica sem demonstrações sintéticas eraconsiderado deselegante, e quando Fermat apresentou suas pesquisas aMersenne,em1636,chegouasedesculpar,afirmandoqueseusresultadospodiam despertar algum interesse ainda que não tivesse tido tempo deescreverasdemonstrações.Elepretendiaapresentá-lasdepois,masnuncachegoua fazer isso.Algunshistoriadores,comoMahoney, 13 observamqueFermatnãoseprendiamuitoàsconvençõesdamatemáticaclássica:estavainteressado em seus problemas e na efetividade da arte analítica paratratá-los.

É justamentepelanaturezadosproblemasde lugaresgeométricosquepodemos entender o fato de a síntese ter sido relegada a segundo planoporFermatetambémporDescartes.Nãoerasomenteporacreditaremnaautonomia da análise algébrica que eles deram pouca atenção àsdemonstraçõessintéticas.Liberando-sedaobrigaçãodefornecersínteses,a tradição analítica driblava a di iculdade imposta pelos problemas delugaresgeométricos,nosquaisassíntesesnãosomenteeramdispensáveis,comotambémimpossíveis.

Anovageometriaconstituiu-se,portanto,daintroduçãodenovascurvase de seu uso tanto no estudo de problemas determinados mais geraisquanto na resolução de equações de grau mais elevado e de lugaresgeométricos, traduzidos por equações indeterminadas. E ainda peloestabelecimento dométodo da análise algébrica demodo autônomo, semnecessidade de síntese. Foi a partir da publicidade obtida em torno daobra de Descartes que essa nova geometria tornou-se conhecida,obscurecendo o papel de Viète. Mesmo que a qualidade matemática dosmétodos de Fermat seja equiparável à apresentada por Descartes, o usodaterminologiaedanotaçãodeViètefezdiminuirsuapopularidade.Logoapós um conhecer a obra do outro, iniciou-se uma controvérsia entre

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Descartes e Fermat que não tinha por objeto, contudo, a busca daprioridade dos métodos da nova geometria. Junto com aIntrodução aoslugares geométricos planos e sólidos, Fermat havia enviado a Mersenne atraduçãodeLugaresgeométricosplanos,deApolônio,emaisoutrotexto,desua autoria,Méthodepour larecherchedumaximumetduminimumetdestangentesauxlignescourbes (Métodoparadeterminarmáximosemínimosetangentesalinhascurvas).FoiporessaobraquealgunsmatemáticosdocírculodeMersennecomeçaramaadmirarFermat,casodeRoberval,queajudouadivulgarotalentodessematemáticoatéentãodesconhecido.

Entre 1637 e 1638, Fermat escreveu uma crítica à Dióptrica deDescartes, àqual tiveraacessode formanãoautorizada,pormeiodeumcolega.Descartesficoufurioso,principalmenteporqueotrabalhoaindaerainédito. Antes da publicação efetiva doDiscurso do método (quecompreendiaDióptrica,alémdaGeometria),seuautortomouconhecimentodageometriaanalíticadeFermatedeseumododeencontrarmáximosemínimos, o que fez com que receasse que a obra de Fermat ofuscasse obrilhodoseunovométodo,queestavaprestesasetornarconhecido.Coma singularidade de sua abordagem, Descartes pretendia impressionar aintelectualidade francesa; e as críticas de Fermat, bem como suasinovações na geometria, atrapalhavam tal propósito. Depois de perceberque os métodos de Fermat estavam corretos, Descartes centrou seusataques contra seu estilo, que abria mão de fornecer métodos gerais esistemáticos. Assim, a habilidade do matemático de Toulouse resumia-se,paraele,àartederesolverproblemas.

Veremos, em seguida, o tratamento de ambos para o problema dastangentes, o que pode ajudar a entender algumas diferenças deabordagem.

Cálculodetangentes

As pesquisas envolvendo curvas técnicas foram acompanhadas, desde oinício do século XVII, por um novo interesse pela determinação de suastangentes. Por exemplo, a exposição das propriedades ópticas dos ovaismotivou Descartes a propor um método algébrico para determinar atangenteaumpontodeumacurva.No livroIIIdosElementosdeEuclidesencontramosade iniçãodatangenteaumcírculo–umaretaqueencontrao círculo e que pode ser prolongada sem voltar a cortá-lo – e algumas

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proposições sobre essa reta. Arquimedes havia determinado tangentes adiversas curvas, como a espiral, usando os mesmos movimentos queserviram para de ini-la. No entanto, a ideia antiga de tangente diziarespeitoaocomportamentoderetascomrelaçãoacurvasdadas,de inidasde modo geométrico. Agora, os teoremas sobre tangentes não são vistossomente como resultados especulativos da geometria, possuindo tambémum signi icado técnico ou ísico. As curvas procuradas representam, porexemplo, trajetórias de pontos ou curvas ópticas, e encontrar suastangentes permite determinar a direção de um projétil ou o formato delentes.

A busca de tangentes se insere em problemas relacionados ao estudodomovimento,e,apartirdosanos1630,algunsmatemáticosdocírculodeMersenne, como Roberval, já determinavam tangentes por meio domovimentodospontosquegeramacurva.Estudandoacomposiçãodeummovimento uniforme com um movimento uniformemente acelerado,Galileu havia concluído que a trajetória de um projétil que desliza sobreum plano e cai em seguida é dada por uma parábola. A partir dessadefinição,Robervaldeterminouatangenteàparábola:

Seja a parábola com foco A e um ponto E, na Ilustração 5. Como, porde inição, o ponto E está a igual distância do foco A e da reta diretriz,Roberval deduz que o movimento do ponto E é composto de doismovimentosretosiguais,comamesmavelocidade,umnadireçãodeAEeoutronadireçãodeEH.AdireçãodatangentenopontoEserá,portanto,abissetrizdoânguloAÊH.Robervalpartedoprincípiodequeadireçãodomovimento de um ponto que descreve uma curva é a “tocante” a essacurva em cada posição desse ponto, o que é uma consequência dainterpretaçãofísicadatangente.

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ILUSTRAÇÃO5

Para Descartes, tal procedimento não era satisfatório, pois empregavamovimentosdependentesdo tempo.OmétododeDescartes, apresentadonaGeometria,forneciaumprocedimentogeral,denaturezaalgébrica,paradeterminar tangentes a curvas. Começava por traçar um círculo, comcentro O sobre um eixo coordenado, interceptando uma curva dada porumaequação,comonaIlustração6.Emgeral,essecírculocortaacurvaemdois pontos, C e E, e o método se resume a encontrar qual deve ser ocentrodocírculodemodoaqueessesdoispontossereduzamaumsó.

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ILUSTRAÇÃO6

Suponhamos que a equação da curva da qual queremos encontrar atangente seja dada porf (x,y) = 0 e que o ponto C no qual queremosencontraratangentetenhacoordenadas(a,b).TomemosopontoOnoeixocoordenado com coordenadas (c,0). A equação da circunferência comcentroemOpassandoporCé(x −c)2+y2= (a−c)2+ b2. Se eliminamosyentreessaequaçãoef(x,y)=0,temosumaequaçãoemxquedeterminaasabscissas dos pontos onde a circunferência corta a referida curva.Determinamos, em seguida, o valordec tal que essa equação emx tenharaízes iguais.Acircunferênciacomcentronessenovoponto( c,0) tocaráacurva apenas no ponto C, e a tangente à curva será a tangente àcircunferência nesse ponto. Logo, encontrar essa circunferência permiteconstruiratangente.

Exemplo:comousarométododeDescartesEmpregaremos essemétodo para encontrar a tangente à parábola y2 =xnoponto(1,1).Oraiodacircunferênciacomcentronoponto(c,0)seriar2=(1 −c)2 + 12, e sua equação seria, portanto, (x −c)2+ y2= (1 −c)2 + 1.Substituindoy2 =x, temosaequaçãox2+(1−2c)x+2c−2=0.Paraqueessaequaçãotenhaapenasumaraiz, fazemos(1−2c)2−4(2c−2)=4c2−12c + 9 = 0 e obtemos . Logo, o ponto é o centro dacircunferência procurada, que também passa pelo ponto (1,1). Ocoe icienteangulardatangente,portanto,deveser½,eessaretatangente,quepassapeloponto(1,1)eporumponto(x,y)qualquer,possuiequação

.

PodemosperguntarporqueDescartesprefere interceptaracurvaporumacircunferênciaemvezdedeterminardiretamentearetatangente.Osproblemas ópticos relativos à formadas lentes levavam-no a introduzir atangenteeanormalnaquestãodedeterminaracurvaturadeumacurva.Essa curvatura pode ser dada pela curvatura da circunferência, quedependedoraio,ouseja,quantomenororaiodacircunferênciatangente,maior será a curvatura da curva que queremos estudar. Logo, ométodobaseado na busca de circunferências tangentes é mais frutífero paracompararacurvaturadacurvaàcurvaturadeumacircunferência.

Fermat apresentou, de modo independente, uma maneiracompletamente distinta para encontrar tangentes, justi icada porreferênciasaPappuseViète.SejaaparáboladevérticeDeeixoAD,como

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naIlustração7.SeBéumpontosobreaparábolatraçamosporessepontoumaperpendicularaoeixonopontoC.Emseguida,traçamosumaretaBEtangente à parábola cortando o eixo no ponto E (obtendo B e E é fácildeterminarumaretapordoispontos).Restaencontrar,portanto,aposiçãodopontoE.

ILUSTRAÇÃO7

Suponhamos que BE esteja traçada e tomamos um ponto O qualquersobre essa reta. Traçamos a ordenadaOI de umponto I sobre o eixo e aordenada BC do ponto B. Se o ponto O estivesse sobre a parábola, porpropriedades geométricas que já eram conhecidas desde Apolônio,teríamosque .ComoopontoOéexterioràparábola,temosque

.Porsemelhançadetriângulos, .MasopontoBédado,então,aordenadaBC também,opontoC também,bemcomoDC.Sendoassim,podemosconsiderarqueDC=d e fazemosCI=eeCE=a,ondeCEéoquequeremosdeterminareCIéumaquantidadeaserajustada. Obtemos, assim, a desigualdade expressa por

. Fazendo o produto dos meios pelos extremos,

obtemosqueda2+de2−2dae>da2−a2e.O ponto central do método de Fermat está na aplicação de um

procedimento, que ele atribui a Diofanto, chamado “adequação”, quesigni ica estabelecer uma “equação”, ou uma “igualdade” aproximada. Eleobterá, portanto, uma igualdade aproximada a partir da desigualdade

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anteriormentemencionada.Retirandoostermoscomunsedividindotodosostermospore,temosquede+a²≈2da.SupondoqueOésu icientementepróximo de B e está na parábola, podemos desprezar o termo de (adesigualdade torna-seumaigualdade).Conclui-se,então,quea2

=2daoua=2d.Determinamos,assim,aposiçãodopontoE.Como Fermat havia criticado suaDióptrica, Descartes reagiu demodo

belicoso contra seu trabalho sobre as tangentes, dizendo que nãoapresentavaummétodouniversalderesoluçãodeproblemasgeométricos.Roberval defendeu a generalidade da proposta de Fermat apontando aimportância da utilização de propriedades especí icas de cada curva. Ométodo de Fermat usa uma relação característica da curva, no caso daparábola ,quepodeserexpressaporumaequação.Desdequeessarelaçãosejaconhecida,umprocedimentoanálogopodeseraplicadoaqualquer curva, incluindo aquelas que não são algébricas, o que nãoocorre com o método de Descartes. Por isso Fermat será mais citadoquando os trabalhos sobre o cálculo in initesimal de Leibniz e Newtoncomeçarem, na segundametade do século XVII, a lidar com curvasmaisgerais,incluindoasqueserãoditas“transcendentes”.

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RELATOTRADICIONAL

NORMALMENTE, a história da matemática no período que começaremos aabordarsedivideemsubáreas–cálculo,geometria,álgebra–ousededicaespeci icamente a um conceito matemático – função, número complexo,conjunto. No caso da noção de “função”, diversos escritos fornecem umalista com a evolução das principais de inições, do século XVII ao início doXX, de modo esquemático. Isso nos faz acreditar que teria havido umdesenvolvimento linear durante o qual essas de inições foram sendoaprimoradas até culminar com a versão rigorosa usada atualmente,baseada na linguagem dos conjuntos. Mas por que essas de iniçõesprecisaram ser reformuladas? Quando elas se tornaram insatisfatórias e,principalmente,porquepermaneceramsatisfatóriasdurantetantotempo?

A história do cálculo in initesimal também recebe um tratamentoretrospectivo. Apresentam-se diferentes técnicas que remontam aosparadoxos de Zenão, passando pelométodo grego da “exaustão” e pelosmétodos de Cavalieri para calcular áreas até chegar a Leibniz e Newton.Mas será que podemos a irmar que Leibniz e Zenão tinham o mesmoobjetodepesquisa?

Métodos de naturezas distintas são comumente integrados em umanarrativaúnica,oquepermiteanalisarasuahistóriaemparalelocomummovimento para tornar a matemática mais “rigorosa”. Mas o critério de“rigor” utilizado na história da matemática tradicional espelha-se no damatemáticaatualenoqueessesaberadmitecomoargumentaçãolegítima.Tem-se a impressão, assim, de que os procedimentos investigadosevoluíram desde estágios mais rudimentares, nos quais certasinconsistências aindanãohaviam sido reparadas, até omomento emqueforamformalizadosdomodocomo,hoje,consideramosválido.

aHojesediscuteseasegundatraduçãodolivrodeAl-Khwarizmiérealmentedesuaautoria.bEsteeospróximosdoisparágrafosseservem fundamentalmentedo já citado livroLarévolutionmathématiqueduXVIIèmesiècle,deE.Barbin.cNomedadoaosqueprocuravamlençóisfreáticosusandobombasdeágua.

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dParadeduzirafórmulaalgébricadessasoluçãoapartirdaconstruçãogeométrica,bastaobservarnafiguraqueNL=OM= eNO=b.eOproblematambémpodeserenunciadoparaumnúmeroímparderetas.f A palavra é usada aqui em seu sentido corriqueiro e não matemático. Não há um contínuonumériconamatemáticacartesiana;éacontinuidadedomovimentoqueengendraacontinuidadedacurva.gDescartessóconsideraascurvasalgébricas;asoutras(quehojechamamostranscendentes,comoastrigonométricaselogarítmicas)deviamserexcluídasdageometria.

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6.Umrigorouvários?AanálisematemáticanosséculosXVIIeXVIII

OSESFORÇOSDE“RIGORIZAÇÃO” e “formalização”namatemáticamodernaserãodetalhados no Capítulo 7. No entanto, como em grande parte eles forammotivados pelo advento do cálculo in initesimal e pelas polêmicasenvolvendo a legitimidade de seus procedimentos, este capítulo serádedicado ao seu desenvolvimento, ocorrido nos séculos XVII e XVIII,quandotaistécnicaspassaramaintegrarocampodepesquisasdaanálisematemática.

Neste capítulo e no próximo nos dedicaremos às mudanças queculminaram com a imagem da matemática que temos hoje, forjadaprincipalmente ao longo do século XIX e no início do XX. A história daanálise, ou do cálculo in initesimal, possui um papel central nessastransformaçõesecostumaserdivididaemtrêsmomentos:umprimeiro,denatureza geométrica, em que problemas e métodos de investigaçãogeométricas eram predominantes; um estágio analítico, ou algébrico, quecomeçouporvoltade1740comostrabalhosdeEulereatingiusuaformainalcomLagrange,no inaldoséculoXVIII;eoperíodoemquefoiforjadauma nova arquitetura para a análise matemática, proposta inicialmentepor Cauchy no início do século XIX e continuada por diversos outrosmatemáticosnasdécadasseguintes.1

Enfatizaremos aqui a transição dos métodos geométricos usados porLeibnizeJohannBernoulliatéaanálisealgebrizadadoséculoXVIII.Nossoobjetivo, contudo, não é tratar da história do cálculo (ou da análisematemática, como passou a se chamar) em si mesma, visto que nãopretendemos analisar a história da matemática superior. Mas é precisoabordar esse assunto, ainda que resumidamente, para entender ade inição de noções centrais adotadas no ensino básico – como função,númerorealenúmerocomplexo.Épraticamenteimpossívelcompreendertaisconceitossem investigarocontextoemqueapareceram, intimamenteligado às discussões sobre o cálculo in initesimal e às transformações na

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concepçãoderigor.Em qualquer curso de cálculo in initesimal, a de inição de derivada é

antecedidapelasentença:“Sejaumafunçãoy=f(x).”Porém,oconceitodefunção só foi introduzido na matemática após o aprimoramento dastécnicas diferenciais efetuado por Leibniz e Newton. Esse é mais umexemplo de que os conteúdos matemáticos que aprendemos não sãoorganizados demodo cronológico. Fosse assim não poderíamos aprenderfunções, no nono ano, sem algumas noções básicas sobre derivadas eintegrais.

Até o advento do cálculo, a matemática era uma ciência dasquantidades. No século XVII, o trabalho sobre curvas, relacionavaquantidades geométricas. Já a partir do século XVIII muitos matemáticoscomeçaram a considerar que seu principal objeto era a função. Essamudança foi descrita da seguinte forma por Jaques Hadamard: “O sermatemático,emumapalavra,deixoudeseronúmero:passouaseraleidevariação, a função. A matemática não apenas foi enriquecida por novosmétodos;foitransformadaemseuobjeto.”2

Apesardeesboçosdanoçãodefunçãoseremidenti icadosnoscálculosde Leibniz e Newton, de inições explícitas desse conceito só forampropostas mais tarde. Um de nossos principais objetivos aqui será,justamente, apresentar o contexto que motivou a de inição e asrede iniçõesdanoçãode função.A identi icaçãoentre funçãoeexpressãoanalítica defendida no século XVIII muitas vezes está mais presente nacabeça de nossos estudantes do que sua de inição formal, em termos deconjuntos,propostanoséculoXIX.Alémdoconceitodefunção,aanálisedoséculoXVIII inaugurou,aindaquedemodonãosistemático,anecessidadede discutir os campos numéricos, levando à extensão do conceito denúmero–discussãoqueserátratadanoCapítulo7.

É comumassociarmos a formalizaçãodasnoções-chavedamatemáticamoderna àbuscade rigor. Contudo, antesdo formalismo, osmatemáticosdoséculoXVIIItinhamde iniçõesqueeramconsideradasrigorosas,sóqueno contexto de sua época. A noção de rigor também tem uma história, enãoháumpadrãoúnicoqueamatemáticamais recente teriadescobertocomo universal, tornando as contribuições dos matemáticos anterioressomenteumcaminhoemsuadireção.

Vimos no Capítulo 5 que a “exatidão” dos procedimentos empregadosem geometria foi rede inida por Descartes. Em vez de construçõesgeométricas, foram admitidas técnicas algébricas na de inição de curvas,

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constituídasemobjetocentraldageometria.A segundametadedoséculoXVIIsentiuosefeitosdessamudançaeotrabalhocomcurvas, incluindoabusca de tangentes e áreas, incentivou o desenvolvimento dos métodosin initesimais. Uma discussão relativa aomodo de justi icar amatemáticaacompanhou essas transformações técnicas. Para que a matemáticapudesse se libertar dos padrões gregos, associados ao cânone euclidiano,pensadores do século XVII, incluindo Leibniz, defendiam suas práticascomoumaartedainvenção,paraqualnãoimportavamtantooscritériosdedemonstraçãoesimoqueas ferramentaspermitiamobteremtermosdenovidade.

AbordaremosaquiascontribuiçõesdeLeibnizparaocálculo,bemcomosuas justi icativas,comparandobrevementeseuestiloaodeNewton.Paraentender por que novas de inições foram propostas, comentaremos arecepção do cálculo diferencial e integral e as discussões acerca dalegitimidade de suas técnicas. Em seguida, descreveremos as principaisideiasdeEulereLagrange,responsáveispelatransformaçãodocálculoemuma “análise algebrizada” que remetia a de inição de função à suaexpressãoanalíticaeaconsideravaoobjetocentraldaanálise.AnoçãoderigordoséculoXVIIIpodeseridenti icadaaessesmétodos,quenãoforamintegradosprontamentepelacomunidadedaépoca.Veremosqueopapelda análise matemática, bem como de sua algebrização, deve sercompreendido no contexto da institucionalização do ensino na FrançadepoisdaRevoluçãode1789.

Umproblema ísico, ligado à propagaçãodo calor, foi fundamental nasdiscussões acerca da noção de função no século XIX. Os estudos a esserespeitoforaminiciadosporFourier,matemáticodaviradadoséculoXVIIIpara o XIX. Para concluir, mostraremos como o desenvolvimento damatemática marcou sua relação com a ísica, que não podia ser vista naépoca como um domínio no qual amatemática era “aplicada”. Apesar deuma intensa atividade de outras ciências experimentais, a mecânicaracional se desenvolveu no século XVIII como uma parte damatemática.Nessecontexto,osfenômenos ísicosdeviamserdescritospelaanálise,ouseja,pormeiodefórmulasmatemáticasquepermitissemexplicá-los.

Cálculodeáreaseaartedainvenção

Como visto no Capítulo 5, questões mistas, de natureza não puramente

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matemática,levaramosmatemáticosdoséculoXVIIainvestigarproblemasrelacionadosàprocuradetangentes.Abuscadatangenteaumacurvanãoeramaisumaquestãodegeometriaespeculativa,possuíaumasigni icaçãotécnicaou ísica.Umbomexemploéacicloide,quejátinhasidoabordadapor Galileumas cujo estudo ganhou um novo impulso com o papel a elaatribuídoporMersenne.Acicloideéde inidapelomovimentodeumpontoPemumacircunferênciaque rola sobreumasuper ícieplana sematrito.Quando a circunferência dá uma volta completa em um movimento daesquerdaparaadireita,opontoP traçaumarcodecicloide,conformesevênaFigura1.

FIGURA1

Trata-se de um novo tipo de curva que, apesar de mecânica, não seinsere na tradição das curvas mecânicas e das cônicas usadas nageometria grega. Logo, esse era um bom objeto para testar os novosmétodos investigados pelos matemáticos ligados a Mersenne, queenvolvemaprocuradetangenteseáreasdelimitadasporcurvas.

Durante os anos 1630, Roberval desenvolveu uma técnica paraencontrar tangentes baseada nas propriedades cinemáticas das curvas(descrita no Capítulo 5). Como ele identi icava uma curva à trajetória deum ponto em movimento, a tangente (ou “tocante”) indicava a direçãodessemovimentoemumcertoponto.Eledefendiaessemétodocomoum“princípiode invenção”que consistia em:para cada curva, examinar, pormeio de suas propriedades especí icas, os movimentos compostos que ageram;apartirdaí,determinara tangente (comodireçãodomovimento).Com essa ferramenta Roberval conseguiu encontrar a tangente e a áreadelimitadapelacicloide(iguala trêsvezesaáreadacircunferênciaqueagerou).

Paraobteresseresultado,Robervalusouométododosindivisíveis,quehavia sido formulado pelo aluno de Galileu chamado BonaventuraCavalieri,autordeummodogeométricoparacalcularáreaspublicadoem1635. Essa técnica era baseada na decomposição de uma igura em tiras

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indivisíveis, pois Cavalieri argumentava que uma linha é composta depontos,assimcomoumcordãoé formadoporcontas;umplanoé feitodelinhas assim comouma roupa, de ios; e um sólido é composto de planosassim como um livro, de páginas. Logo, a área de uma igura seria dadapela soma de um número inde inido de segmentos de reta paralelos. Ovolume de um sólido seria a soma de um número inde inido de áreasparalelas, como vemos na Figura 2. Esses seriam, respectivamente, osindivisíveisdeáreaedevolume.

FIGURA2Volumedapirâmidedebasequadradaquepodesercalculadopelasomadeumnúmeroinfinitodeáreasdequadradosparalelos(indivisíveis).

AlémdeRoberval,FermatePascalutilizaramométododosindivisíveisparaencontraráreasdelimitadaspordiferentescurvas.Noentanto,forampropostasmodi icações importantes, constituindo-seumnovométododosindivisíveisnoqualaáreanãoeradecompostaemumnúmero in initodelinhas, mas concebida como a soma de um número inde inido deretângulos. Essa soma difere da área original por uma quantidade quepode ser tornada menor que qualquer quantidade dada. Surgiu, assim,uma nova maneira de calcular áreas por meio da aproximação de umaárea por retângulos in initamente inos, e essa ferramenta podia seraplicada a qualquer igura curvilínea. Um exemplo típico dessaaproximação foi fornecidoporFermatePascal;adaptamos,a seguir, suastécnicasaumproblemaescritoemnotaçãoatual,umavezquequeremosenfatizarsomenteoraciocínioempregado:

Paracalcularaáreadaparábola y=x2entredoispontosOeB,constroem-seretângulossobreasabscissasdepontosdedistânciad,2d,3d,…,nd.Há

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nretângulos(emcinza-claronailustração1)cujasbasesmedemsempre d,e suas alturas, de acordo com a equação da parábola, serão dadas,respectivamente, pord2,4d2,9d2,…,n2d2.Paraencontraraárea, somam-seasáreasdessesretângulos,obtendo-se:

A=d3+4d3+9d3+…+n2d3=d3(1+22+32+…+n2).

ILUSTRAÇÃO1

Motivados pela resolução de problemas desse tipo, Pascal e Fermat jáhaviamcalculadoasomadasm-ésimaspotênciasdosnprimeirosnúmerosnaturais. Emparticular, a soma dos termos entre parênteses poderia sersubstituída por Masd é obtidodividindo-se OB porn, logo, a soma A será dada por

. Quando o número de retângulosaumenta, os dois últimos termos podem ser desprezados. Assim, a somadas áreas dos retângulos será Observamos que esse éjustamente o valor encontrado quando integramos, pelos procedimentosqueconhecemoshoje,afunçãoquedefineaparábola.

Esse método se estende facilmente para outras curvas, distintas daparábola; basta que tenhamosuma equaçãoque substitua as alturas dosretângulos. Para isso, é preciso conhecer a soma dasm-ésimas potênciasdosnprimeirosnúmerosnaturais.Porvoltade1636,Fermatjásabiaque,paranracionalediferentede−1,aáreasobográ icode y =xnentredoispontosOeB(aumadistânciaadeO)édadapor .

Há uma diferença fundamental entre essa técnica e o método de

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exaustãousadopelosgregos,entreelesArquimedes,poisaquinãoseusanenhumaprovaindiretaparasechegaraoresultado inal.ConformevistonoCapítulo3,Arquimedesmostravaqueduasáreassãoiguaisusandoumraciocínio por absurdo, concluindo que a suposição de que uma émaiorque a outra leva à contradição. Já no exemplo dado, o número deretângulos aumenta inde inidamente e considera-se uma aproximaçãodasoma quandon se tornamuito grande. Alémdisso, no caso dos gregos, o“cálculo” de uma área consistia emuma comparação entre áreas. Aqui, oobjetivo é calcular uma área qualquer por meio de uma aproximaçãoobtendo-seumaexpressãoanalítica.Substituindovaloresnuméricosnessaexpressão, tem-se o valor da área para cada caso particular. Oprocedimento de dupla redução ao absurdo, usado pelos antigosgeômetras,eraindireto,aopassoqueonovométodopermiteobteraáreadiretamente.

Na segunda metade do século XVII, ao investigar as propriedades dacicloidepelométododos indivisíveis, Pascal defendia seusprocedimentosapelando para argumentos de inteligibilidade. O método dos indivisíveisparecenãosergeométricoepodeatéserconsideradoumpecadocontraageometria, mas trata-se somente da soma de um número in inito deretângulos que difere da área por uma quantidademenor que qualquerquantidade dada. Para Pascal, os que não entendiam a razão desseprocedimento possuíam, decerto, uma limitação ligada à falta deinteligência.Essemétododeaproximaçãodeáreas éumexemplode artedainvenção, típicadocontextofrancêsdessaépoca.DesdeDescartes jáseacreditavaqueosmatemáticosnãoprecisavammostrardemodosintéticoosresultadosobtidospelométodoanalítico,umavezqueaevidênciaseriasu icienteparadeterminaro verdadeiro.A esse respeito, lembremosqueViète e Descartes chegaram a criticar os antigos por esconderem ocaminhodadescobertaatrásdasdemonstraçõessintéticas.

Nos anos 1660, AntoineArnauld publicou dois livros defendendo essenovométododeprova:Lalogiqueoul’artdepenser (A lógicaouaartedepensar), este com P. Nicole; eNouveaux éléments de géometrie (Novoselementosdegeometria).Emamboseleindicavaumanovanoçãoderigor,que icouconhecidacomo“lógicadePort-Royal”.Integrantedomovimentojansenista, que lutava por reformulações no catolicismo, Arnauld criouescolas com um novo sistema de ensino na localidade francesa de Port-Royal. Seus escritos tinham grande popularidade e nesses dois livros elepropunhasubstituiralógicatradicional,consideradaestérileobscura,pela

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prática dos matemáticos, que, segundo ele, permite que se chegue aresultadosconcretos,alémdeesclarecersuasdeduções.

EmNovos elementos de geometria, Arnauld critica o estilo euclidianoabrindoumadiscussão explícita comos padrões gregos – em seu livro, apalavra“elementos”estavaassociada,quaseexclusivamente,aométododeexposição de Euclides. Um bom exemplo desse confronto é a análise dademonstração da proposição 4 do livro I dos Elementos, que enuncia umcaso de congruência de triângulos. Arnauld denuncia que, nessa prova,temosdeimaginarqueos ladossãoiguais,umavezquedevemrecairumem cima do outro. O papel da “imaginação” é criticado porque, conformeArnauld,contrariavaanecessidadedeevidência.

O sNovos elementos de geometria se iniciam com uma exposição dosfundamentos,ouseja,umaexplanaçãosobrecomooperarcomgrandezasem geral, para só em seguida aplicá-los à geometria. A associação desímbolos às grandezas geométricas, realizada pela análise, satisfaria,segundo o autor, essa demanda de evidência e inteligibilidade. Comoexemplo, ele demonstra a proposição I-47 de Euclides (o teorema “dePitágoras”) usando resultados sobre a proporcionalidade dos ladosexpressaporsímbolos.AFigura3,aseguir,reproduzaoriginaldessaobrade Arnauld. Chamaremos, para efeito didático, o triângulo retângulo deABC,comoânguloretolocalizadoemC.Aalturadivideocomprimentodahipotenusa,h,naspartesmen.

FIGURA3

AdemonstraçãodeArnauldfazusodeteoremassobreacircunferênciademonstrados previamente, como: o quadrado da perpendicular que vaideumpontoda circunferência aodiâmetro é igual ao retângulo formadopelaspartesdodiâmetro.NaIlustração2,criadapornós,teríamospp=mn(a notaçãopara o quadrado aindanão era utilizada, e pp era o quadradodep).

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ILUSTRAÇÃO2

Apartirderesultadosanálogos,Arnauldconcluitambémque:bb=hmedd=hn.Logo,bb+dd=hm+hn.Mascomoh=m+n, temosquebb+dd=hm+hn=h(m+n)=hh.Esseéoteoremaqueenunciaríamoshojeassim:h2=b2+d2.

Nessa demonstração, está em jogo o que Arnauld considera uma“evidência calculatória”, baseada na potência da algebrização, e nãosomente uma evidência visual dependente da igura. Esse exemplo nospermite explicitar o que se designava, na época, como “método deinvenção”.Aocontráriodaexposiçãosintéticadageometriaeuclidiana,queapresentaumaconstruçãosemnospermitirpercebercomoelafoiobtida,a associação de grandezas geométricas a quantidades algébricas exibe ocaminhopercorridoparasechegaraoresultado.Noexemplo,aindaquesetenha partido de teoremas geométricos, o resultado inal foi obtido pormeiodeumamanipulaçãoalgébrica.EssaviaeraconsideradaporArnauldeporoutrosmatemáticosdoséculoXVIIamaisnatural,emcontraposiçãoaométodoaxiomáticodeEuclides.

No ambiente da pesquisa matemática, os métodos de invençãoadquiriram legitimidade inicialmente devido à sua e icácia e suafecundidade,mas,emseguida,passaramaservalorizadosporindicaremoverdadeiroprocedimentoseguidopelosmatemáticosemsuasdescobertas.Talpreponderânciaeramaiscomum,emumprimeiromomento,nastrocasdecartasentrematemáticosquepertenciamaocírculodeMersenne.ComomostraE.BarbinemLarévolutionmathématiqueduXVII èmesiècle,ocritériode evidência, que apela à inteligência do leitor, se tornou cada vez maispresentenessesescritos,oqueterialevadoaumesforçodelegitimaçãodo

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métododainvençãotambémnostratados.Umdosprimeirosadefenderpublicamentetalmétodofoiomarquêsde

L’Hôpital, na obra que popularizou osmétodos in initesimais: Analyse desin iniments petits pour l’intelligence des lignes courbes (Análise dosin initamente pequenos para a compreensão das linhas curvas), editadaem1696.Noprefácio,L’Hôpital fazumhistóricodessemétodo,a irmandoque Descartes foi o primeiro a deixar os antigos para trás, mas tambémcita Fermat, Barrow, Leibniz e Bernoulli. Seu livro começa por duassuposições: que possam ser consideradas iguais duas quantidades quediferem uma da outra de uma quantidade in initamente pequena; e queuma curva seja considerada a reunião de uma in inidade de retas, cadaumadelasin initamentepequena,ouumpolígonocomumnúmeroin initodelados.

Estas duas suposições parecem tão evidentes que não creio que possam deixar dúvidas noespíritodos leitores atentos. Eupoderia atémesmodemonstrá-las àmodados antigos, senãotivessemepropostoserbrevesobreoquejáéconhecidoemerestringiraoqueénovo.3

Essademarcaçãoemrelaçãoaopadrãodosantigosdáumnovosentidoà oposição entre procedimento teórico e prático. O caráter teórico dasdemonstrações que iguram nos tratados é restritivo para a descoberta.Deve se tornar cada vez mais explícita a prática dos matemáticos, quepermite resolver efetivamente os problemas por meios aceitáveis.Enquanto essa transformação in luenciava o fazer matemático, asproduções matemáticas começavam a atingir públicos mais vastos,sobretudoapartirdaatuaçãorevolucionáriadeArnauld.

Comoa irmaGertSchubring,4Arnauldfoiumdosprimeirosautoresdelivros-texto, nosquais buscava explicar anovanotação algébrica comumestilo mais compreensível. Um grande número de livros-texto dematemática foi lançado em seguida por outros pensadores, visandoaperfeiçoar e popularizar esse novo modo de exposição e adaptando-o,também, a leitores mais especializados, caso da obra de L’Hôpital. Umaconsequência desse movimento foi o triunfo do método analítico, quepermitia a irmar a preponderância da era moderna em relação àmatemáticadosantigos.

O debate entre tradição emodernidade re letia-se, namatemática, emuma disputa entre método sintético e analítico. Além de facilitar acompreensão da geometria e apresentar princípios mais frutíferos,Arnaulddestacavaasvantagensmetodológicasdeseumododeexposição.Amaisimportantedelas,paranossospropósitos,referia-seàgeneralidade

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das técnicas permitida pelo uso da álgebra. Um ponto de vista similarestavapresenteemoutrolivro-textodaépoca,Élémentsdesmathématiques(Elementos de matemática), escrito por Jean Prestet entre 1675 e 1689.Apesardotítulo,essaobratratasomentedearitméticaeanálise.Segundooautor, os geômetrasnão conseguiamcomparar retas e igurasdemodosatisfatório porque não as associavam a números (observe-se que essaa irmaçãofazecoàsposiçõesdefendidasanteriormenteporPetrusRamus,mencionadasnoCapítulo5).

Jean Prestet condenava, por exemplo, a ausência de uma explicaçãosobre as operações aritméticas expostas nosElementos de Euclides,dizendo que essa obra era inútil para um aprendiz de matemática.Reunindo os progressos da álgebra de seu tempo, Arnauld e Prestetformularam um programa para generalizar o conhecimento matemáticopormeio dométodo analítico. No inal do século XVII e início do XVIII, ogrupodo ilósofocartesiano,padreeteólogofrancêsNicolasMalebranche,do qual Prestet fazia parte, disseminou essa postura na Academia deCiênciasdeParis,contribuindo,assim,paraamodernizaçãodamatemáticafrancesa.

OsnovosproblemastratadosporLeibniz

Após terestudadodireitoe iloso ia,G.W.Leibnizparticipou,em1672,deuma missão diplomática à corte de Luís XIV, na França, onde conheceuChristian Huygens. Antigo aluno de Descartes, Huygens trabalhavaintensamentesobresérieseapresentouaLeibniz,atéentãopraticamenteignorante emmatemática, os trabalhos de Cavalieri, Pascal, Descartes, St.Vincent,J.WalliseJ.Gregory.OsmétodosanalíticosdeDescarteseFermathaviammotivadooestudodaspropriedadesaritméticasdesériesin initasna Inglaterra, sobretudo por Wallis, Gregory e Isaac Barrow. Essespesquisadores resolviam com sucesso um grande número de problemas,comoencontrara tangenteaumacurva,calcularquadraturasoureti icarcurvas,etiveramforteinfluênciasobreNewtoneLeibniz.

A maior novidade introduzida na matemática por Newton e Leibnizreside no grau de generalidade e unidade que osmétodos in initesimaisadquiriram com seus trabalhos. Os matemáticos já tinham um enormeconhecimento sobre como resolver problemas especí icos do cálculoin initesimal, mas não se dedicaram a mostrar a generalidade e a

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potencialidade das técnicas empregadas. Além disso, esses problemaseramtratadosdeformaindependenteeassemelhançasentreosmétodosnãoeramressaltadas.

A concepção de curva será então transformada novamente, dandocontinuidade às inovações já citadas no Capítulo 5. Segundo Barbin,5 nostrabalhosdo imdoséculoXVII,oconceitodecurvarecobriatrêsaspectos:a curva como expressão algébrica, eventualmente in inita; a curva comotrajetória de um ponto em movimento; e a curva como polígono comnúmero in inito de lados. Essas três concepções foram essenciais nodesenvolvimento dosmétodos in initesimais, e Leibniz teve papel centralnessa mudança. Depois de ler a geometria de Descartes, em 1673, eleconsiderouseumétodode tangentesrestritivo.Alémdesercomplicado,oprocedimento não se aplicava a uma grande quantidade de curvas. UmadasprincipaiscontribuiçõesdeLeibniz foi justamenteestenderodomíniodascurvasparaalémdasalgébricas,vistasporDescartescomoascurvasdageometriaporexcelência.

Os artigos de Leibniz sobre o cálculo começaram a ser publicados apartirde1684emumjornalcientí icochamadoActaeruditorum (Atadoseruditos). É desse ano um de seus textosmais importantes, introduzindoum novo método para encontrar máximos e mínimos. Observe-se queLeibniz não iniciou seus escritos fazendo alarde da novidade de seusmétodos. Ao contrário, ele procurava inseri-los na tradição da arteanalítica, por meio da simbolização algébrica. Seus procedimentos decálculo se tornaram conhecidos inicialmente por tal artigo, cujo títuloenfatizava a relação coma álgebra e apossibilidadede extensãode suastécnicas para novos casos: “Novo método para máximos e mínimos, etambém para tangentes, que não é interrompido pelas frações nemquantidadesirracionais,eumtiposingulardecálculoparaelas.”

Com fórmulas simbólicas,Leibnizenunciouas regrasparaencontraraderivada de somas, diferenças, produtos, quocientes, potências e raízes.Essas regras constituíam o algoritmo desse cálculo, que ele denominava“diferencial”. A novidade estava sobretudo em incluir novas curvas,expressas por equações envolvendo frações algébricas e irracionais.Leibnizdemonstroucomoessenovocálculopermitia iralémdosmétodosanterioresparaencontrartangentes,aoincluircurvastranscendentesquenão podem ser reduzidas ao cálculo algébrico e que eram excluídas dageometriaporDescartes.

Desde Viète, o programa analítico tinha transformado a análise em

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sinônimo de álgebra simbólica, tida como uma teoria das equações.Conforme visto no Capítulo 5, a arte analítica propunha uma linguagemsimbólicapara fazermatemáticae lidar comcurvas.Como imde inserirseus trabalhos nessa tradição, Leibniz começou a chamar seu cálculo de“análise de indivisíveis e in initos”. Com isso também pretendia mostrarque novos métodos eram necessários para estudar relações entregrandezasquenãopodiamser tratadas coma álgebraordinária, casodarelação de uma curva com sua tangente ou sua normal. Entrava-se,portanto,emumnovodomíniodarelaçãoentrequantidades,oque,comoveremos, contribuirá para o surgimento da ideia de função como relaçãoentrequantidades.

Na verdade, nesse contexto, a equação deixava de ser algo que deviaexpressarumarelaçãoalgébricadadaentrequantidadesepassavaa serummodode invenção (modus inveniendi). Em outras palavras, passava aserummeioparaencontrarumaquantidadeapartirdeoutras,incluindo-se aí as novas relações transcendentes que interessavam não somente àmatemática, mas também à ísica. As novas curvas e técnicas de soluçãopropostas por Leibniz visavam ainda trazer para o domínio da análisealgunsproblemas ísicosdaépoca.Emumartigode1694,“Consideraçõessobreadiferençaqueexisteentreaanáliseordináriaeonovocálculodostranscendentes”, ele a irmou que seu método fazia parte de umamatemática geral que tratava do in inito e que, por isso, ele serianecessário se quiséssemos usar a matemática na ísica, uma vez que oinfinitoestápresentenanatureza.

Apesquisaemtornodefenômenos ísicosrelacionadosapropriedadesde curvas era comum na época e muitas vezes ligava-se aodesenvolvimento de artefatos técnicos. Um exemplo paradigmático é oestudodopêndulo, feitoporHuygens,queserviaàrelojoariaeenvolviaaanálise detalhada da cicloide. Depois dos exemplos propostos por seumentor, Huygens, Leibniz também foi motivado por estudos ísicosdesenvolvidosporJohannBernoulli.

PÊNDULODEHUYGENS

Nopêndulosimples,otempodeoscilação(período)variadeacordocomaamplitudedamesma.No caso de pequenas oscilações, o período não se altera. Huygens construiu um pêndulo cujoperíodonãosealteravacomaamplitudedaoscilação,ouseja,eleconstruiuumpênduloisócrono.Aimportânciadeseconstruirumpêndulocomtalcaracterísticaresidianapossibilidadedeobtercronômetros mais precisos para os relógios, principalmente cronômetros marítimos, pois obalançodosnaviosalteravaasamplitudesdasoscilações.

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Se o corpo preso à extremidade do pêndulo, como o da Figura 4, descreve uma trajetóriacicloidal,emvezdeumatrajetóriacircular,comonopêndulosimples,operíodoé independenteda amplitude da oscilação. Para isso, Huygens restringiu omovimento do corpo por obstáculosque o obrigassem a descrever uma trajetória cicloidal. Ele mostrou, ainda, que os obstáculostambémdeveriamterumaformacicloidal.

FIGURA4Pênduloisócrono:atrajetóriadocorpopresonaextremidadedopênduloéumarcodecicloide.

Nosproblemasdageometriaanalíticaanterioresaoadventodocálculo,uma curva era sempre o dado de um problema, e a partir da curvabuscava-seuma tangenteouquadratura.Apartirdo inaldo séculoXVII,problemas como o “inverso das tangentes”, estreitamente relacionados aestudosfísicos,passaramarequererumacurvacomosoluçãodoproblemacujodadoeraaretatangente.Issoquerdizerqueaincógnitadoproblemapassouaserumacurva,umaleidevariação.Opoderdaartedainvençãode Leibniz para resolver problemas desse tipo foi, em grande parte,responsável pelo reconhecimento dessa arte como uma ferramentafundamental da matemática. Esse tipo de problema faz intervir o quechamamos, hoje, de equação diferencial. Dadas certas propriedades deuma curva, que podem ser propriedades in initesimais, expressas comoumarelaçãoentreascoordenadasdacurva,busca-seacurva.Umexemplofamosoéodabraquistócrona,propostoem1696por JohannBernoulli.Odesa io consistia em, dados dois pontos situados em um plano vertical,determinar o caminho entre eles ao longo do qual um corpo desce, pelaação da gravidade, no menor período de tempo. O problema atraiu aatenção de vários matemáticos, como Leibniz, Newton, L’Hôpital,Tschirnhaus e Jakob Bernoulli. Quase todos resolveram o problemamostrandoqueabraquistócronaéumacicloide.

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EQUAÇÃODABRAQUISTÓCRONA

AbraquistócronaligandoospontosAeBéumacicloidecomorigememAepassandoporB.

ILUSTRAÇÃO3

Aequaçãodiferencialquemodelaoproblemadabraquistócronaédadapor emquex ey estão indicados na ilustração 3 ea é uma constante obtida a partir de leis ísicasutilizadasparadeduziraequação.

Esta equação tem como solução a cicloide (invertida), com círculo gerador tendodiâmetroa,rolandoaolongodoeixohorizontalquecontémospontosAeC.

Uma questão semelhante motivou o método inverso das tangentes deLeibniz,desenvolvidoduranteosanos1670e80,queconsisteem:dadascertaspropriedadesdeumacurva,queconcernemaomovimento(comoavelocidade),podemosescreverumaequaçãoenvolvendoasabscissaseasordenadasdacurva,mastambémrelaçõesdiferenciais(entrequantidadesinfinitesimais).

Discussões sobre a legitimidade dos métodosinfinitesimais

Segundo Leibniz, sua primeira inspiração para a invenção do cálculoin initesimal veio com a leitura do “Tratado dos senos do quarto decírculo”, escrito por Pascal em 1659. Baseado no modo como Pascaldemonstrava um resultado sobre quadraturas, Leibniz criou o seu“triângulocaracterístico”,umaideiageraldaqualseserviudiversasvezes

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e que nos ajuda a entender como Leibniz concebia o cálculo. Em queconsisteessaideia?

Traçamos um quarto de círculo ABC, como na ilustração 4, e umatangenteEE'porumpontoD.Emseguida,desenhamosumaperpendicularaACpelopontoDemarcamosopontoIdeinterseção.PorE,traçamosEKparalelaàAC,eporE'traçamosE'KparalelaàDI.Temos,assim,queReR'sãoasinterseçõesdasperpendicularesàACporEeE',respectivamente.

ILUSTRAÇÃO4

PascaljáhaviaobservadoqueotriânguloDIAésemelhanteaotriânguloEKE',pois IssovaleparaacircunferênciaporqueatangenteEE'éperpendicularaoraioDA.Logo, eEÊ'K=DÂI.Comoesseresultadoé independentedaposiçãodeEeE', elepermaneceválido se izermos com que E e E' se aproximem muito de D. Leibniza irmava, então, quePascal não enxergou a relevância da semelhança detriângulos que ele próprio demonstrou, pois esta permite diminuir adistância entre E e E' até que não possamos mais atribuir-lhe um valor.Ainda assim, quando essa grandeza (a distância) não é “atribuível”, otriânguloEKE'podeserdeterminadoporsuasemelhançacomotriânguloDIAque, ele, é “atribuível”.Háuma relaçãoque se conservano triânguloEKE' na passagem do inito ao in initesimal que é justamente a suasemelhançacomotriânguloDIA.

Esseargumentosóéválidoparaacircunferência,masLeibniz fornece

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ummétodo análogopara um casomais geral. Podemos tratar o triângulonão atribuível constituído por um pedaço da tangente como sendo oelemento característico de uma curva, designado de triângulocaracterístico(análogoaotriânguloEKE').

Fazemos Δy = E'K e Δx = EK e esse método exprime analiticamentetodos os elementos do problema, tornando a relação uma relaçãoin initesimal (grandezasdotriângulocaracterístico).Notemosquedyedx são quantidades in initamente pequenas quando E e E’ se aproximaminfinitamentedeD.

ÉnessecontextoqueLeibniz introduzapalavra“função”(noartigode1684citadoanteriormente),masparadesignarafunçãodeumagrandezaemrelaçãoauma igura,casodatangente.Adiaremosessadiscussãoparamaisadiante,poisantesprecisamosanalisaralgumasquestõesquepodemser associadas ao triângulo característico. Por exemplo: como é possívelentender e justi icar a razão entre duas quantidades que deixaram deexistir? Esse tipo de consideração gerou inúmeras controvérsias sobre oestatuto dessas “quantidades in initamente pequenas”. Alguns estudiososviram nas grandezas não atribuíveis de Leibniz um apelo a certasquantidadesqueestãoentreaexistênciaeonada.

Durantemuitosanos,osmatemáticossedebateramcomoproblemadefundamentarousodequantidadesin initamentepequenas,os“elementosin initesimais”. O problema dos fundamentos deriva do fato de que ocálculo leibniziano empregava as chamadas “diferenciais”, designadas nanotação de Leibniz pordx edy. Tais quantidades eram utilizadas noscálculos como quantidades auxiliares, e com êxito. Por exemplo, paraencontraraderivadaaumacurvadeequaçãoy =x2, erapreciso tomaradiferençaentreasordenadasdedoispontosvizinhos( x,x2)e(x +dx, (x+dx)2) sobre essa curva. Obtemos, assim, quedy =d (x2) = (x +dx)2 −x2 =2xdx + (dx)2. Aqui, o termo (dx)2 pode ser desprezado, pois possui,comparativamente, ordemde grandeza bemmenor que dx (uma vez queessa quantidade é in initamente pequena). Logo, podemos concluir que

.

O procedimento algébrico descrito, que designaremos de “método dosin initamentepequenos”ou “métododasdiferenças”,obtinhasucessonoscálculos e nas aplicações. O que estava em jogo, portanto, na discussãosobreosfundamentosnãoeraautilizaçãoefetivadessasquantidadesnãoinitas, mas sim seu estatuto. Os argumentos geométricos fornecidos no

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exemplodotriângulocaracterísticonãoeramde initivoseascontrovérsiasprosseguiram, levando Leibniz a propor diversas outras justi icativas. Oargumento mais simples sugeria que os in initesimais deviam serentendidos comomeras icções, mas a tentativa mais convincente estavadiretamenterelacionadaaoconceitodefunção.

É necessário entender que Leibniz concebia uma relação entre duasquantidades como podendo ser independente dessas quantidades. Se háuma relaçãoc entrea eb, essa relaçãocpodenãoserumaquantidadee,nessecaso,a relaçãocnão interferenocálculoquantitativo,quepodeserefetuado com as quantidadesa eb. Para compreender do que se trata épreciso pensar em como Leibniz enxergava a autonomia de uma relaçãofrenteaostermosqueaconstituem.Paratanto,tomemosumprimeirotipode relação, as razões, sendo que para Leibniz razão era diferente defração.Paraele,uma fraçãoeraadivisãodedoisnúmeros, logo,eraumaquantidade obtida pela divisão de duas quantidades. Isto é, mesmo queseja verdade que as duas frações são iguais, frações não são omesmo que razões, ainda que estas sejam expressas por aquelas. Aquantidadedeumarazãopodeserexpressaporumafração,masarazãoem si é uma relação independente dos termos que a compõem. Bastapensar,comodiziaLeibniz,queépossívela irmarqueonúmerodeolhosdosmoradoresdeumacidadequalqueréodobrodonúmerodenarizes,independentemente do conhecimento do número efetivo de olhos e denarizes na cidade. A igualdade de razões seria, assim, uma relação deanalogia entre duas relações, distinta da relação de igualdade entre oproduto dosmeios e o produto dos extremos, que é designada por umaigualdade de frações. Logo, a razão teria uma natureza qualitativa, aopasso que a fração, uma natureza quantitativa. Quando escrevemos oquociente de duas diferenciais designamos uma razão e não umafração.

Não se trata, portanto, da divisão infundada de duas quantidadesin initamente pequenasdy edx, mas de uma relação cujo estatuto éindependente do estatuto dos termos que a compõem.Mesmonão sendoumaquantidade,essarelaçãopodeserexpressaporumafunção,queéoque acontece quando escrevemos . Leibniz não chegou aenunciar desse modo, pois não propôs um conceito de função. Pode-seargumentar, no entanto, que ele já admitia que as quantidades devemestar em relação.Essa conclusão sugerequenãoé relevante investigar ajusti icativa dos in initesimais, sendo mais instrutivo ressaltar que eles

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sempre aparecem em relação. Um dos principais enganos dos estudossobreasorigensdocálculoleibnizianoestariajustamenteemnãoobservaressefato,comoafirmaBos:

Apreocupaçãocomumdoshistoriadorescomasdi iculdadesassociadasàin initapequenezdasdiferenciaisdistraiusuaatençãodofatodeque,napráticadocálculoleibniziano,asdiferenciaisquase nunca aparecem como entidades solitárias. As diferenciais estão localizadas emsequênciassobreoseixos,sobreacurvaesobreosdomíniosdasoutrasvariáveis;sãovariáveisquedependem,elasmesmas,dasoutrasvariáveisenvolvidasnoproblema,eessadependênciaéestudadaemtermosdeequaçõesdiferenciais.6

As diferenciaisdx edy seriam in initesimais não relacionadas. Mas,concretamente, Leibniz praticava um cálculo diferencial sem diferenciais,operandosobreasrelaçõesentreessasdiferenciais,relaçõesconsideradasentidadesautônomase submetidas a regraspróprias.A relação entreduasdiferenciais não é umadiferencial; é resultadodeumaoperaçãodediferenciação (e asderivadasdeordens superiores resultarãodamesmaoperação reiterada). Logo, essa relaçãonãopode ser entendida comoumquocienteentreduasquantidadesin initamentepequenas,nãoatribuíveisouevanescentes,oqueseriacontraditóriocomaimpossibilidadededividir0por0.

O procedimento de Leibniz supõe um princípio subjacente quedemonstra a extrema potência de seu cálculo. Em linguagem atual, esseprincípioestabeleceoseguinte:ésemprenecessáriodeterminaravariávelem relação à qual se quer derivar. Uma quantidade varia em função daoutra,ouseja, játemosaquiumanoçãodevariáveldependenteevariávelindependente, associadas atualmente à noção de função. A riqueza danotaçãopropostaporLeibnizéjustamenteterintroduzidoooperador“ d”,separando-o, aomesmo tempo, da quantidadex à qual ele se relaciona eindicandoaligaçãocomessaquantidade.

Comoa irmaBos,nãoésobreadiferencial,comoobjeto,quesefundaocálculo leibniziano, mas sobre a ideia de diferenciabilidade. Daí aimportância de se introduzir a expressão “diferenciar em relação a”,indicando a percepção clara de que a diferenciação é a noção central docálculo,enãoasdiferenciais.Escolheravariávelemrelaçãoàqualsequerdiferenciar indica uma dupla variação, uma variabilidade combinada queserá associada à relação diferencial, fundamento do cálculo in initesimalparaLeibniz.

A discussão sobre a legitimidade dos métodos in initesimais levará àde inição de função no século XVIII. Como veremos, a introdução desse

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conceitocomoobjetocentraldocálculoocasionaráasubstituiçãode initivada“diferencial”pela“derivada”,queéumafunção.NocontextodeLeibniz,não havia essa necessidade, uma vez que na aplicação do cálculo aproblemas geométricos bastava escolher a variável independente, o queimplica uma relação funcional entre variáveis. Ou seja, o estatuto daoperaçãodediferenciaçãorequeraconsideraçãoimplícitadeumarelaçãoentreasvariáveisquedaráorigemànoçãodefunção.

RecepçãodeLeibnizeNewton

No inaldadécadade1660,istoé,antesmesmodoencontroentreLeibnizeHuygens,Newtonjáempregavaprocedimentosin initesimaise,noiníciodosanos1670, reformulouessesalgoritmosna linguagemde “ luentes”e“ luxões”. Não descreveremos esses métodos, mas citaremos umadiferençaimportanteentreasconcepçõesderigordeNewtonedeLeibniz.

O livroPhilosophiæ naturalis principia mathematica (Princípiosmatemáticos da iloso ia natural), maior obra de Newton, não contémdesenvolvimentosanalíticos.Osresultadossãoapresentadosnalinguagemda geometria sintética. Esse formalismo euclidiano era considerado maisadequadoparaexporumanovateoria.Comovimos,talpontodevistanãoera compartilhado por Leibniz, que, in luenciado pelo contexto francês,pretendia fundar um cálculo universal baseado em ferramentas ealgoritmosquedeveriamconstituirumaartedainvenção.

Muitojásedissesobreadisputadeprioridadenainvençãodocálculoesobre os contrastes entre os métodos de Leibniz e Newton no queconcerne às diferentes concepções de quantidade variável, ou àsdiferentes noções de continuidade. Nesse último caso, Newton deduzia acontinuidade das propriedades ísicas, em última instância, dacontinuidade do decorrer do tempo. Já Leibniz exprimia a lei decontinuidade em termos meta ísicos e matemáticos. Mas o conceitogeométrico de quantidade garantia, de antemão, a continuidade dasgrandezasusadas.

N. Guicciardini, estudioso da obra de Newton, prefere não enfatizaressas diferenças. Na prática, segundo ele, seria possível traduzir osprocedimentosdeNewtonnosalgoritmosdiferenciaisdeLeibniz,umavezqueoqueosdistingueé, sobretudo,aênfaseeaexpectativadecadaumem relação ao cálculo. A orientação das pesquisas de Leibniz e Newton

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seguiadireçõesdiferentes.Paraoprimeiro,osproblemasde fundamentodo cálculo eram preocupações que não deviam interferir nodesenvolvimento dos algoritmos diferenciais. Ao passo que o segundo seesforçouparaexpressarsuateoriaemumalinguagemrigorosa,nocaso,ada geometria clássica. Leibniz promoveu sua teoria e o uso dosin initesimaiscomoumamaneiradedescobrirnovasverdades.JáNewton,parafazercomquesuateoriafosseaceita,sepreocupouemgarantirumacontinuidadehistóricaentreseusmétodoseosdosantigos.

Essadiferençasere letenoestiloenaregularidadedaspublicaçõesdeambos. Uma singularidade de Leibniz reside justamente no fato depublicar sem grandes receios de cometer equívocos, podendo rever suasposiçõesemoutrosartigos.Porexemplo, emrelaçãoàs justi icativasparaos métodos in initesimais, algumas das quais já descrevemos, Leibnizpossuía diferentes versões, muitas contraditórias entre si, não seimportando tanto emmanter uma coerência.Newton, ao contrário, talvezciente da fragilidade dos novos procedimentos in initesimais, trabalhavabemseusargumentosantesde torná-lospúblicoseconsideravaopadrãodageometriagregamaisadequadoparatransmitirsuasideias.

Adivulgaçãoda teoriadeLeibniznaFrança sedeveu, inicialmente, aogrupo de Nicolas Malebranche, este in luenciado por Descartes, com umpapel de destaque na Academia de Ciências de Paris. O marquês deL’Hôpital,responsávelpelolivro-textoquedisseminouocálculoleibniziano,pertenciaaoseucírculodein luências.Comomencionadoanteriormente,olivroAnalyse des in iniments petits pour l’intelligence des lignes courbes serefereauma“análisedosin initamentepequenos”,emquemostraqueosmétodosdeLeibniz lidavamcomesse tipodequantidades.Técnicascomoas empregadas no método dos in initamente pequenos possibilitavamoperar com essas quantidades como se fossem entidades algébricas,permitindo,porexemplo,dividiruminfinitamentepequenoporoutro.

O trabalho de Newton também teve destaque nas discussões sobre ocálculonaFrança,emparticularnosataquesàsquantidadesin initamentepequenas. Por volta de 1700, muitos matemáticos já integravam aAcademiadeCiênciasdeParis,oquegerouumacomunidade interessadaem debater os temas da época. A partir de 1696, houve uma mudançaimportantenofuncionamentodapesquisamatemática,pois,sobin luênciado grupodeMalebranche, aAcademia passou a se organizar em classes,instaurando,pelaprimeiravez,umaclassedematemáticoscompostosdetrabalho remunerados que atuavam somente como pesquisadores. 7 No

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casodocálculo,aAcademiasedividiaentreumgrupomaistradicional,quedeclaravaasuperioridadedosmétodosconvencionais(incluindoFermateHuygens),eoutroquedefendiaosnovosmétodos.Osataquessedirigiam,principalmente, ao uso de quantidades in initamente pequenas porL’Hôpital, mas também ao postulado relativo à de inição da igualdade,admitidoporeleeporJohannBernoulli,cominspiraçãoleibniziana.

ParaLeibniz,duasquantidadessãoiguaisquandoadiferençaentreelassetornamenorquequalquerquantidadedada.Ouseja,anoçãoprimordialé a de diferença, sendo a igualdade compreendida como um casoparticular quando a diferença se torna insigni icante. A partir daí,Bernoulli a irmava que somar ou subtrair a diferencial de uma dadaquantidadenãoalteraessaquantidade,equeobtemos,porconsequência,umaquantidadeigualàdadainicialmente.

AlgunsmatemáticosdaAcademiadeParisatacavamessesprincípios,oque gerouumdebate que se estendeupor aproximadamente cinco anos.Para justi icar o cálculo de ummodo que pudesse ser consideradomaisconvincente, outros pesquisadores apelavam para os argumentos deNewton. Estes sugeriam substituir os fundamentos algébricos, propostospor L’Hôpital, por justi icativas geométricas e cinemáticas, relacionadascomasideiasfísicasdeNewton.

Na Inglaterra,o iníciodo séculoXVIII testemunhoudiversas críticasàsquantidades in initamente pequenas e aos métodos do cálculo. Uma dasmaisconhecidasfoiformuladapelo ilósofoGeorgeBerkeley,quepublicou,em1734,umaobracomumtítuloquetraduzimosparaoportuguêscomo:O analista ou um discurso endereçado a um matemático in iel. Na qual éexaminadoseoobjeto,osprincípioseas inferênciasdaanálisemodernasãoconcebidos de um modo mais distinto, ou deduzidos de um modo maisevidente, do quemistérios religiosos e questões de fé . Berkeley enumeravadiversas de inições e técnicas do cálculo que eram paradoxais econtradiziam a intuição, como a de eliminar quantidades in initamentepequenasnascontas.

OmatemáticoescocêsColinMacLaurinpropôs,em1742,umarespostainspirada nos argumentos geométricos e cinemáticos de Newton na qualrejeitavaosin initesimais.Seusargumentostraziamdevolta,porexemplo,as demonstrações indiretas, por dupla contradição, usadas porArquimedes. Ele desprezava a algebrização e erigia a técnica geométricadeencontrarlimitescomobasedocálculo,apesardenemde iniroquesãolimites nem as regras para operar com eles. Tal proposta in luenciou o

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francês Jean le Rond d’Alembert a defender a substituição dasquantidades in initamente pequenas pelo método de limites, permitindo,contudo, a intervenção da álgebra. Impactado pelas críticas de Berkeley,d’Alembert a irmava que o uso das quantidades in initamente pequenaspodeabreviarasdemonstrações,masqueaindaassimelasnãodevemseraceitas, jáqueéprecisodeduzir aspropriedadesdas curvas com “todoorigor”necessário.Suaposiçãofoipublicadaprimeiramentenosanos1740,sóficandomaisclaraporvoltade1750.

Por exemplo, diferenciando a relação y2 =ax, obtemos ou

.Nessaigualdade, éconsideradoolimitedarazãoentre y ex,

ea igualdade faz sentidomesmoqueessa razãoseaproximede . Issoporqueo limitenãoéexatamentearazãoentre0e0,esimaquantidadeda qual essa razão se aproxima, supondo que y ex sejam ambosdecrescentes.a

Essa de inição é apresentada no verbete “Différentiel”, publicado em1751 naEncyclopédie ouDictionnaire raisonnédes sciences, des arts et desmétiers,ded’AlemberteDiderot.Overbete“Limite”éde1765eneleselêque tal conceito está na base da verdadeira meta ísica do cálculodiferencial.Éditoaindaqueo limitenuncacoincidecomaquantidade,oununca se torna igual à quantidade da qual é limite; o limite sempre seaproxima, chegando cada vez mais perto da quantidade, mas diferesempredelatãopoucoquantosedeseje.

AENCICLOPÉDIADEDIDEROTED’ALEMBERT

AfamosaEncyclopédieouDictionnaireraisonnédessciences,desartsetdesmétiers foipublicadanaFrança entre 1750 e 1772, por Jean le Rond d’Alembert e Denis Diderot. Compreende 33volumes e 71.818 artigos e contou com contribuições dos mais destacados personagens doIluminismo, como Voltaire, Rousseau eMontesquieu. Trata-se também de um vasto compêndiodastecnologiasdoperíodo,emquesãodescritososavançosdaRevoluçãoIndustrialinglesaedaciência da época. Por essas características, teve um papel importante na atividade intelectualanterioràRevoluçãoFrancesa.D’Alembertrespondiapelapartedematemática.

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FIGURA5CapadaprimeiraediçãodafamosaenciclopédiapublicadanaFrançaentre1750e1772.

Outras tentativas de elaborar o conceito de limite se sucederam nasdécadas seguintes. Um exemplo da proeminência dessa discussão foi oprêmiooferecido,em1784,pelaAcademiadeBerlimparaquemrejeitasseos in initamente pequenos. O trabalho vencedor usava a linguagem doslimites.AindaquemuitosdessestrabalhostenhamsidoescritosnaFrança,a defesa dos limites se encaixava mais no estilo inglês, in luenciado porNewton. Ao passo que na Inglaterra os argumentos matemáticosassociavam-se à mecânica, na França era mais comum apelar para aalgebrizaçãodosconceitos.

Diferentemente do que as narrativas tradicionais sugerem, odesenvolvimentodasideiasfundamentaisdocálculonãosedeunointeriorda matemática, como consequência dos trabalhos de uma comunidadeimbuída emaperfeiçoar as lacunas formaisdemodo cumulativo.Duranteos séculos XVII e XVIII, os métodos in initesimais se inseriam em umdomínioamploqueincluíanãosóamatemática,mastambéma iloso iaeaísica.Alémdisso,asdiscussõesacercadesuanaturezaelegitimidadesão

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inseparáveis do ambiente institucional em que aconteciam. Os métodosalgébricos, associados aos nomes de Euler e Lagrange, representam umpróximo passo na transformação da noção de rigor. Descreveremosadiante os trabalhos do primeiro para mostrar, em seguida, que suarecepção na França está ligada ao contexto que acabamos de descrever.Antesdisso,faremosumbrevepanoramasobreanoçãodefunçãoatéessemomento.

Ideias que podem ser associadas à noção defunção

Quando pensamos em função, duas coisas vêm à mente: a curva que arepresenta gra icamente e sua expressão analítica. Em seguida, seizermosumexercíciomais formal, tambémnos lembraremosda ideiadecorrespondência,comoumamáquinacomentradasesaídas.

Se nos ixarmos nessa última ideia, poderemos dizer que as tabelasbabilônicaseegípciasjácontinham,dealgumaforma,umaideiadefunção,umavezquetratavamjustamentederegistrosdecorrespondências(entreumnúmeroeoresultadodasoperaçõesqueenvolvemessenúmero).Poressarazão,a irma-sealgumasvezesqueanoçãodefunçãotemsuaorigemna matemática antiga. No entanto, do ponto de vista histórico, nãoganhamosnadacomessaassociação.

Háumcomponentefundamentalparaodesenvolvimentodoconceitodefunçãoquenãoestavapresentenessemomento:avariação.Umafunçãoéexpressa em termos do que chamamos de “variável”. O que é umavariável? Como é possível representar simbolicamente uma variável? Anoçãodevariávelsó foi introduzida formalmentenoséculoXIX.Umpassofundamental para se chegar a esse conceito foi o nascimento da ísicamatemáticaearepresentaçãosimbólicadeumaquantidadedesconhecida,propostainicialmenteporViètemasdesenvolvidanoséculoXVII.

DEFINIÇÃODEFUNÇÃONOCONTEXTOESCOLAR

Adefiniçãodefunçãoencontradacommaisfrequêncianoslivrosdeensinomédioé:

DadosdoisconjuntosXeY,umafunçãof:X→Yéumaregraouquedizcomoassociaracadaelementox ∈X um elementoy =f(x) ∈Y. O conjuntoX chama-se domínio eY é ocontradomíniodafunção.

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Exemplos:

1)OdiagramadaIlustração5representaumafunçãodeX={1,2,3}emY={a,b,c,d,e}.

ILUSTRAÇÃO5

2)JáodiagramadaIlustração6nãorepresentaumafunçãodeXemY,poisoelemento3deXestáassociadoadoiselementosdistintos(ced)emY.

ILUSTRAÇÃO6

3) A regra que faz corresponder a cada número realx o seu cubo é uma função: suaexpressãoanalíticaéf(x)=x³eoseugráficoédadoaolado.

ILUSTRAÇÃO7

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Oestudodavariaçãopormeiode leismatemáticassedeveemgrandeparteaodesenvolvimentoda ísicapós-Galileu.Aideiadeumavariaçãoemfunção do tempo é fundamental em seus trabalhos, onde já encontramosuma certa noção de função no sentido de uma associação entre duasgrandezas que variam, dada por umaproporção geométrica. Uma funçãopode ser vista justamente como uma relação entre duas grandezas quevariam.ParaDescartes,essarelaçãodeviaseralgébrica,umavezquenãoseassociavaumagrandeza ísicaaotempo.Ouseja,omovimentoquegerauma relação de tipo funcional deveria ser, para Descartes, de naturezageométrica, mas não ísica. No caso de Galileu era diferente, pois eledesejavaentenderomovimentofísico.

Quando falamos de função, pensamos em duas grandezas que variamdemodocorrelato.Observamos,nanatureza,algoquemuda,quevaria,ebuscamos alguma outra coisa que varie, à qual a variação observadainicialmente possa se relacionar. O caso mais comum é o do espaço emrelação ao tempo. Vemos alguma coisa móvel se deslocar no espaço eperguntamosseháalgumaleiquegoverneessemovimentoemfunçãodotempo.Emlinguagematual,poderíamosdizerqueprocuramosumafunçãoque descreva a variação das posições ocupadas pelo corpo móvel eminstantessucessivos.Poressemotivo,umadasprincipaismotivaçõesparaa introduçãoda ideiade funçãoé anoçãode “trajetória”, queassociaummovimento a uma curva que poderá ser expressa por meio de umaequação. Vimos, no Capítulo 5, que no século XVII usava-sefrequentementeessanoção,comonoexemplodocálculodetangentesporRoberval.

Apesardeidentificarmosaadoçãodosimbolismopararepresentarumaquantidade desconhecida como um dos passos fundamentais nodesenvolvimento do conceito de função, cabe ressaltar uma diferençadesse conceito em relação à escrita de uma equação que deve serresolvida. A quantidade desconhecida assume um valor dado quandoresolvemos a equação, ou seja, ela é apenas provisoriamentedesconhecida; trata-se de uma quantidade que possui um valordeterminadoqueestá,emumacertaequação,desconhecido,eresolvemosaequaçãocomoobjetivodeencontrá-la.Contudo,comovistonoCapítulo5,háumagrandediferençaentreequaçõesdeterminadas,quepossuemumaincógnita, e as indeterminadas, que podem possuir duas ou maisincógnitas. Como o próprio nome diz, nessas equações as quantidadesestão “indeterminadas”, isto é, nãoencontronuncaapenasumvalorpara

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uma quantidade desconhecida e sim uma in inidade de valores que“variam”deacordocomosvaloresdeoutraquantidade.Aequaçãodeumacurva, em Descartes, era desse tipo. A partir dessa de inição, Descartesconclui que, tomando in initos valores para x, acham-se também in initosvalores para y. Uma das grandezas indeterminadas pode ser, assim,determinada a partir da atribuição de valores à outra grandezaindeterminada, por meio de um número inito de operações algébricas.Introduz-se aqui, pela primeira vez demodo absolutamente claro, a ideiade que uma equação emx ey é uma forma de representar umadependência entre duas quantidades variáveis, de modo que se possacalcular os valores de uma delas a partir dos valores da outra. Asquantidades ocupam um lugar geométrico representado por uma curvaquepodenão respeitar a restriçãoatualdeque a cadavalorda abscissacorresponda apenas uma ordenada. Uma circunferência, por exemplo, éum exemplo de curva que não é considerada função. Essa característicanãoimportaparanósnomomento,umavezqueestamosfalandosomentederelaçõesentrevariáveissobreumacurva,oqueantecedeoconceitodefunçãopropriamentedito.

Lembramos ainda que, no universo de Descartes, as “funções” quepodiam ser expressas analiticamente eram apenas as de naturezaalgébrica. Na época de Leibniz, expandiu-se o universo das curvas,incluindo-se também as transcendentes. Além disso, este últimoconsiderava as relações in initesimais de modo funcional, como já visto.Explicaremos que o uso de séries in initas, já praticado no século XVII,estaránabasedade iniçãodefunçãonoséculoXVIII,quandoestapassouaseroobjetocentraldaanálise.

Das séries in initas ao estudo das funções porEuler

Em meados do século XVII, diversos matemáticos introduziram sériesin initas para estudar curvas. A partir daí, a relação entre as variáveispodiaserdadaporumasériedepotências in inita.VimosquearestriçãocartesianaàscurvasalgébricasfoiconsideradainconvenienteporLeibniz,que propôs introduzir curvas “transcendentes” que podem serrepresentadas por séries. Nessa extensão do objeto do cálculo, as curvas

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passaramaserexpressasporsériesin initase,noséculoXVIII,taissériessetornaramomeiomaisgeralparaseestudarrelaçõesentrevariáveis.

Apesar de terem pesquisado inúmeras relações funcionais, Leibniz eNewtonnãoexplicitamoconceitode funçãoemsuasobras.A faltadeumtermo geral para exprimir quantidades arbitrárias, que dependem deoutra quantidade variável, motivou a de inição de função, expressa pelaprimeira vez em uma correspondência entre Leibniz e Johann Bernoulli.No inaldoséculoXVII,Bernoullijáempregavaessapalavrarelacionando-a indiretamente a “quantidades formadas a partir de quantidadesindeterminadas e constantes”. Tal concepção é a mesma que temos emmente quando associamos uma função à expressão f(x) = x + 2, porexemplo. Temos aí uma quantidade indeterminada x, que é supostavariável,eumaconstante,nocaso,2.

Em uma resposta a Bernoulli, redigida em 1698, Leibniz discute qualseria a melhor notação para uma função. Nessa época, ele já haviaintroduzido os conceitos de “constante” e de “variável”, que se tornarampopulares com a publicação do primeiro tratado de cálculo diferencial,publicado por L’Hôpital em 1696, conforme já dissemos. A de iniçãoexplícitadanoçãodefunçãocombasenessaperspectivasócomeçouaserdelineada alguns anos mais tarde, em um artigo de Johann Bernoulliapresentado em 1718 à Academia de Ciências de Paris em que ele diz oseguinte:

De inição.Chamamosfunçãodeumagrandezavariávelumaquantidadecomposta,deummodoqualquer,destagrandezavariáveledeconstantes.8

No mesmo artigo, ele usa a letra grega φ para representar a“característica” da função, ou seja, o nome da função, escrevendo oargumento sem os parênteses: φx. Bernoulli não diz mais nada sobre omodode constituir funções a partir da variável independente,mas o queeletememmentesãoasexpressõesanalíticasdecurvas.

Os primeiros passos para que o cálculo in initesimal pudesse serreconstruídocombasenaanálisealgebrizadaforamdadosporumpupilodeJohannBernoulli,LeonardEuler.Apesardessaproximidadeentreeles,os livros de ambos diferem bastante em estilo. Ao passo que o primeiroprivilegiava problemas geométricos emecânicos (como vimos no caso dabraquistócrona), o segundo pretendia se restringir à análise pura, semrecorrera igurasgeométricasparaexplicarasregrasdocálculo.FoicomEulerqueocálculopassouaservistocomoumateoriadas funções, tidas

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comoalgodiferentedecurvas.Aideiadequeaanálisematemáticaéumaciência geral das variáveis e de suas funções exerceu grande in luênciasobre a matemática do século XVIII, a partir da publicação de suaIntroductio in analysin in initorum (Introdução à análise in inita), editadaem1748.Logonoiníciodolivro,Eulersituaafunçãocomoanoçãocentraldamatemáticaepropõeadefinição:

Uma função de uma quantidade variável é uma expressão analítica composta de um modoqualquerdessaquantidadeedenúmeros,oudequantidadesconstantes.9

Um pouco antes, namesma obra, ele já havia de inido uma constantecomo uma quantidade de inida que possui sempre um mesmo e únicovalor, e uma variável, uma quantidade indeterminada, que pode possuirqualquervalor:

Uma quantidade variável compreende todos os números nela mesma, tanto positivos quantonegativos, inteiros e fracionários, os que são racionais, transcendentes e irracionais. Nãodevemosexcluirnemmesmoozeroeosnúmerosimaginários.10

A quantidade variável, como quantidade indeterminada, pode receberqualquervalor, inclusive transcendente, irracionalou imaginário,embora,nessa época, essas quantidades ainda não fossem consideradas númeroscomo os outros, naturais e fracionários. Abordaremos, mais adiante, adefiniçãodosnúmerosirracionaiseimaginários.

Nade iniçãode funçãocitada linhasatrás, faltaexplicaroquesigni icadizer que a função é “uma expressão analítica composta de um modoqualquer” dessas quantidades constantes e variáveis. Uma expressãoanalíticapodeser formadapelaaplicaçãode initasou in initasoperaçõesalgébricas de adição, subtração, multiplicação, divisão, potenciação eradiciação. Euler integra ao escopo das funções admissíveis aquelas quesão transcendentes, ou seja, que podem não ser algébricas (caso daexponencial, do logaritmo e das funções trigonométricas). Essas funçõespodemsermaisbemcompreendidascomoauxíliodaexpansãoemsériesin initas de potências, ou por combinações de operações algébricasrepetidasumnúmero initoou in initodevezes.Todasas funçõespodiamserconstruídasalgebricamente,apartirdefunçõeselementares(comoxn,ax, loga x, senx earcsenx), e o estatuto desses objetos básicos não eradiscutido–eleosadmitiacomodados.

Vemos,assim,queEulerbuscavade inirdemodoprecisooqueéuma“expressão analítica”, enumerando as operações por meio das quais elapoderia ser obtida. A expansão de uma função emuma série in inita era

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uma ferramenta da análise e não um im em si mesmo. Nessa época,supunha-se, implicitamente, que todas as funções pudessem ser escritascomo uma série de potências da formaA +Bz +Cz2 +Dz3+…, ainda quefosse preciso considerar expoentes dados por qualquer número (e nãoapenaspornúmerosinteiros).

DiferentementedeLagrange,comoaindaserávisto,oobjetivodeEulernãoerareduzir todaamatemáticaàálgebradassériesdepotências,masestender omáximopossível a análise usando a ferramenta algébrica. Elepretendia uni icar a matemática com base na álgebra, que não eraencarada somente como uma linguagem para representar objetosmatemáticos. Para ele, a álgebra permitia uma de inição interna dessesobjetos. As quantidades podiam ser tidas como abstratas e nãodemandavamconsideraçõessobresuanaturezaespecí ica(comonúmerosou grandezas). O que importava eram suas relações operacionais comoutrasquantidadessimilares,dadasporfunções.

Chamaremosde“análisealgebrizada”essaconcepçãoquetransformaocálculoinfinitesimalnoestudoalgébricodeséries.Usamosessenovotermopara diferenciar esse estilo que a análise adquiriu no século XVIII da“análise algébrica”, designação introduzida por Euler em seu livro-textoparasereferiràspartes introdutóriasdocálculodiferenciale integral.Oscursos de “análise algébrica”ministrados por Fourier e Cauchy, na ÉcolePolytechnique, também se dedicavam à introdução algébrica dasferramentas úteis para a análise. A pro issão de fé dos matemáticos daépoca,queidenti icavamafunçãoàsuaexpressãoanalítica,começouaserquestionadaaindanoséculoXVIII,nocontextodeumproblema ísicoquefaria intervir uma de iniçãomais geral de função. Trata-se do “problemadascordasvibrantes”,queestudaasvibraçõesin initamentepequenasdeuma corda presa por suas extremidades. Uma corda elástica, como a daIlustração 8, com extremidades ixas 0 e l é deformada até uma certaformainicial;emseguidaasoltamos.Acordacomeçaavibrareoproblemaemquestãoédeterminarafunçãoqueaformadacordadescreveemuminstantet.

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ILUSTRAÇÃO8

D’Alembert já havia traduzido esse problema por uma equaçãodiferencialparcialeconcluídoquesuasoluçãopodeserrepresentadapelasomadeduasfunçõesarbitráriasnasvariáveisxet:φ(x +at)eφ(x−at).Supondo que a velocidade inicial é nula, a função φ é determinada nointervalo(0,l ) pela forma inicial da corda. As condições iniciais da cordapodemsermuitodiversas,masd’Alembertacreditavaqueelasdeviamsersempre representadas por uma expressão analítica: uma equaçãoalgébricaouumasériedepotências.

No mesmo ano de 1748, Euler escreveu um trabalho no qualconcordava com a solução de d’Alembert, observando, porém, que elapermanece válida se a con iguração inicial da corda não é dada por umafórmulaúnica.Segundod’Alembert,aformainicialdacordanãopodiaserdada,porexemplo,porumarcodeparábola y =x −x2, jáqueessa curvanão éperiódica.Baseado emargumentos ísicos e geométricos, Eulernãoadmitia essa restrição, pois a forma inicial da corda pode ser dada porpedaçosdeparábolasdessetipode inidasemdiferentesintervalosdoeixox (temos um exemplo na Ilustração 9). A curva inicial, nesse caso, seriade inida pormúltiplas expressões analíticas, dependendo do intervalo deretaaoqualxpertence.

ILUSTRAÇÃO9

Além de as formas iniciais da corda poderem ser estabelecidas por

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diferentesexpressõesanalíticasemintervalosdistintos,tambémpoderiam,demodomaisgeral,serdadasporumacurvadesenhadaamãolivre.Essaúltima suposição seria a mais razoável do ponto de vista ísico, uma vezque a forma inicial é engendrada a nosso bel-prazer e podemos atribuirumafiguraqualqueràcordaantesdesoltá-la.

Euler não chegou a aprofundar o estudo da solução nesse caso, masessa questão dá origem a uma longa controvérsia sobre a natureza dascondiçõesiniciaisemproblemasdessetipo.Algunsanosmaistarde,DanielBernoulli ( ilho de Johann Bernoulli, já citado) sustentaria que a formainicialdacordaéarbitrária.Jáerasabido,naépoca,queossonsmusicais,emparticularosgeradospelasvibraçõesdeumacorda,sãocompostosdefrequências fundamentais e de harmônicos. Essas vibrações podem serexpressas, portanto, como somas de funções trigonométricas, que sãoperiódicas. Baseado nessa evidência, Daniel Bernoulli a irmou que aposição inicial de uma corda vibrante pode ser representada por umasérie in inita de termos trigonométricos, que deve ser considerada tãogeral quanto uma série de potências. Isso implica que uma funçãoqualquer possa ser representada por uma série trigonométrica, masDanielBernoulliestavamaisinteressadonoproblemafísicoenãochegouaproporumanovadefiniçãodefunçãocombasenessahipótese.

Noprefácio da obra Institutionescalculidifferentialis (Fundamentosdocálculodiferencial),publicadaem1755,Eulerformulaumanovade iniçãodefunçãoquenãoseidentificaàexpressãoanalítica:

Secertasquantidadesdependemdeoutrasquantidadesdemaneiraqueseasoutrasmudamessas quantidades também mudam, então temos o hábito de chamar essas quantidades defunções dessas últimas. Essa denominação é bastante extensa e contém nelamesma todas asmaneiraspelasquaisumaquantidadepodeserdeterminadaporoutras.Consequentemente,sexdesignaumaquantidadevariável,entãotodasasoutrasquantidadesquedependemdex,dequalquermaneira,ouquesãodeterminadasporx,sãochamadasfunçõesdex.11

A generalidade dessa de iniçãomostra a in luência do problema ísicodas cordas vibrantes na concepção de Euler sobre o que deve ser umafunção. Ao passo que d’Alembert deixou que seu conceito de funçãolimitasseascon iguraçõesiniciaispossíveisdacorda,Eulerpermitiuqueavariedadedeformasiniciaisestendesseseuconceitodefunção.

EmsuaEncyclopédie,d’Alembertredigiuoverbete“Função”,incluídonovolume7,de1757.Interessanteobservarasubstituiçãodadesignaçãode“geômetra”,usadaentãoparadesignarummatemático,pelade“analista”.

Função,s.f.(Álgebra).Osantigosgeômetras,oumelhor,osantigosanalistas,chamaram funçãode

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uma quantidade qualquerx às diferentespotências dessa quantidade; mas, hoje, chamamosfunçãodex,ou,emgeral,deumaquantidadequalquer,aumaquantidadealgébricacompostade tantos termos quanto quisermos e na qualx se encontra, ou não,misturado de ummodoqualquercomconstantes.12

O próprio Euler a irmava que o principal aspecto da integração deequações diferenciais, advindas de problemas ísicos, é que elas dãoorigem a uma nova classe de funções “descontínuas” dependentes denossa vontade, ou seja, arbitrárias, que não precisam nem mesmo serrepresentadasporexpressõesanalíticas.Masnãohaviaespaçonaanálisepara desenvolver o estudo desse tipo de função. Ao propor que umafunção pudesse ser de inida por múltiplas expressões analíticas, quepodem ser distintas em intervalos distintos, passaram a ser admitidasfunçõescomoarepresentadanográficodaIlustração10:

ILUSTRAÇÃO10

Tais funções eram denominadas “descontínuas”. A continuidade deEuler era uma noção muito distinta da atual, pois se relacionava àinvariabilidade da expressão analítica que determina a curva. Se a curvaeraexpressaporapenasumaequaçãoem todoodomíniodosvaloresdavariável, ela era contínua. Ela era descontínua se, ao contrário, fosse

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necessário mudar a expressão analítica que exprime a curva quandopassamosdeumdomínio aoutrodas variáveis. Comessade inição, seriadescontínua,porexemplo,acurvaquerepresentaográ icodafunçãoqueexpressamoshojecomonográficodaIlustração11:

ILUSTRAÇÃO11

A de inição de descontinuidade de Euler mostra a centralidade dafórmulanade iniçãodefunçãousadanoséculoXVIII.Namatemáticaatual,a noção de função contínua se relaciona ao fato de o grá ico ter umadescontinuidade, e não à forma da expressão analítica. A curva daIlustração11éconsideradacontínuanopontox=1.

O problema das cordas vibrantes permaneceu con inado a tratadosacadêmicosenãochegouaserapresentadoem livros-textoatéo inaldoséculo XVIII. Do mesmo modo, o debate sobre o conceito de função nãotevemuitarepercussãonesseséculoede iniçõesmaisgeraissósurgiriambemmaistarde.

Em 1787, a Academia de São Petersburgo, da qual Euler tinha sido

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presidente até sua morte, em 1783, lançou um prêmio para quemrespondesse à questão: “Se as funções arbitrárias que são obtidas pelaintegraçãodeequaçõescomtrêsoumaisvariáveisrepresentamcurvasousuper ícies, tanto algébricas quanto transcendentes, tanto mecânicas,descontínuas ouproduzidas por ummovimento voluntário damão; ou seessas funções incluem somente curvas representadas por uma equaçãoalgébrica ou transcendente.” Um matemático francês, Louis Arbogast,venceu o concurso, mostrando que essas funções podem ser não sódescontínuas, no sentido empregado por Euler, mas ainda mais gerais,descontíguas (que é o equivalente de nossas funções descontínuas). Seuartigo foi publicado em 1791, com o título:Mémoire sur la nature desfonctions arbitraires qui entrent dans les intégrales des équations aux différentielles partielles (Memória sobre a natureza das funções arbitráriasque aparecem nas integrais das equações diferenciais parciais). Essedebatesobreacontinuidade,noentanto,restringia-seaomeioacadêmicoenãoexerceugrandeinfluênciaatéoséculoXIX.

FUNÇÕESDESCONTÍNUAS

Apresentamosalgunsgrá icosdefunçõesquepossuemalgumtipodedescontinuidadeemx=0,deacordocomanoçãomoderna.

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RevoluçãoFrancesaealgebrizaçãodaanálise

“Dentro do abrangente processo social de modernização que sucedeu aRevolução,osistemadeeducaçãofoiradicalmentereconstruídocombasenasvisõesotimistasdequeoconhecimentopodiaserensinado,eométodoanalítico podia ser geralmente aplicável”, 13 a irma Gert Schubring emCon licts Between Generalization, Rigor, and Intuition (Con litos entregeneralização, rigor e intuição) referindo-se à França do inal do séculoXVIII. Essa reconstrução signi icou, na matemática, uma dominação doprogramadealgebrização,bemcomosuaseparaçãoemrelaçãoàsoutrasdisciplinas. Entretanto, a maioria dos livros de história do cálculo –

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inclusivealgunsdeótimaqualidadequeconstamdabibliogra iadestelivro–enumeraos feitosdepersonagens importantes, comoEuler,LagrangeeCauchy, sem se preocupar comomodo como o contexto in luenciou suaspesquisas.

Éintrigante,porexemplo,queahistóriadaalgebrizaçãodaanálisesaltedeEuler aLagrangediretamente,umavezqueoprimeironãoatuavanaFrança.O citado livrodeGert Schubring foi oprimeiro estudohistórico afocar os fenômenos de recepção e circulação dos escritos relacionados àanálisenoséculoXVIII.ApesardeaobradeSchubringabordardiferentescontextos nacionais, nos restringiremos à parte que remete à situaçãofrancesa, uma vez que nosso objetivo é bem mais especí ico: entendercomo, entre Euler e Lagrange, a análise algebrizada se tornou umaabordagemhegemônica.

Paralelamente às mudanças políticas, a Revolução levou a umareestruturação do sistemade ensino e do papel da ciência, que passou aserumdiscursodominante – até então, embora sempre tenhagozadodeprestígio social, a ciência exercia pouca in luência na sociedade. Amatemática e a química, sob a égide dométodo analítico, tornaram-se asdisciplinas principais, responsáveis por disseminar os ideais deracionalidade então valorizados. Muitos matemáticos importantes viviamnaFrança,comoLagrange,Laplace,LegendreeMonge,masnãotinhamafunção de ensinar. Na época pré-revolucionária, a instrução matemáticaocupava um lugar marginal e carecia de professores quali icados. Essadisciplina constava do currículo do último nível do Collège (instituição deensino secundário), fora do alcance damaioria dos alunos, que saíam daescola antes de atingir esse nível. A partir de 1750, foi estabelecido umsegundo sistema educacional nas escolas militares que valorizava amatemática e atraía estudantes hábeis, porém, o recrutamento de alunossóabrangiaanobreza.

DepoisdaRevoluçãoFrancesa,alterou-sesigni icativamenteoper ildasustentação inanceira da pesquisa cientí ica, até então bene iciada pelabenevolênciadepatronosereis.Osnovoscientistas–pertencentesaumaclasse média crescente – precisavam de suporte institucional, o queimpulsionouacriaçãodenovospostosde trabalho.Alémdisso,a ideiadeque a formação cientí icapodia serútil à nação era cada vezmais aceita,tantoparaaexpansãodaindústriacomoparaoaperfeiçoamentodaforçamilitar,consciênciaque levouàcriaçãodenovasescolasedepartamentoscientí icos. Em 1794, foi fundada a École Polytechnique, dedicada à

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formaçãode engenheiros e cientistas. Foi nesse contexto que Lagrange eLacroix produziram livros-texto que se tornaram ferramentas cruciaisparaoensinosuperiordamatemática,formandogeraçõesdematemáticosdepeso, comoopróprioCauchy.Essas instituiçõespúblicasgeraramumainéditapadronizaçãodocurrículoquetinhanométodoanalítico,praticadopelamatemáticaepelaquímica, seuprincipalelemento.Nocontextomaisgeral, na tradição do racionalismo, esse método já havia sido defendidopelo ilósofo iluminista francês Étienne Bonnot de Condillac. Namatemática, a abordagem algébrica da análise podia vencer o conceitosintético(geométrico)dasquantidadesinfinitamentepequenas.

EspecialmentedepoisdaquedadeRobespierre,em1794,umgrupodeilósofos chamadosidéologues (ideólogos) passou a determinar a políticaparaaeducaçãoeaciência.DepoisdosataquesdeArnauldePrestetaosmétodossintéticosdeNewton,ascríticasforamrenovadasporessegrupo,que assumiu o programa dos malebranchistas e instituiu o métodoanalítico como orientação predominante. Em um jornal dos idéologuespublicado em 1794, lemos que “esse método deve ser, sem dúvida,fundado na análise … é somente por meio da análise que podemospenetrar com segurança no santuário da ciência”. 14 O método analíticopermitia descobrir novas verdades, ao passo que o sintético era longo eobscuro.Aquímica tambémpassouaoperarcomsímbolos,eLavoisiersebaseouna iloso iaanalíticadeCondillacparadesenvolverseustrabalhos.Essa possibilidade de expressá-la em uma linguagem simbólica permitiunovasdescobertas,provandoafecundidadedaanálise.

A estimada posição do método analítico na sociedade e suaoperacionalização na matemática por meio da ferramenta algébricacriaramumambientefavorávelparaarecepçãodopontodevistadeEulersobre a análise, além de inspirar a concepção ainda mais radical deLagrange, logo em seguida. A recepção de Euler seguiu um cursocontraditório ao papel atribuído a ele pela historiogra ia hoje, conformenosmostra Schubring. Um número considerável dematemáticos lia seustrabalhos,emdiferentespaíses,masamaioriaadotavasomentealgunsdeseus resultados pontuais e não suas posições sobre os fundamentos damatemática. Euler não tinha relação com um sistema de ensino e suasobraseramdirecionadasparaumpúblicomaisacadêmico.

Entre as abordagens de Euler, distinguimos duas como as maisimportantes: a primeira é a operacionalização algébrica do cálculo dediferenças leibniziano;asegunda,a transiçãodessecálculoparaocálculo

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diferencial,quesebaseavaemconsideraçõessobreanaturezadoin inito.Expressando um certo realismo, ele justi icava esse conceito comargumentos mecânicos, como o da possibilidade de dividir a matériain initamente.EssesegundoviésdopensamentodeEulerfoipraticamenteignorado;oprimeiro,entretanto, teveumaintensarecepçãonaFrançanoperíododahegemoniadométodoanalítico.

Ocurso inauguraldeanálisedaÉcolePolytechnique foiministradoem1795 por Gaspard Riche de Prony, engenheiro que tinha grande estimapela matemática. Apesar de seu curso, que foi publicado mais tarde,dedicar-se à análise aplicada à mecânica, ele se baseava,fundamentalmente,nosdoisprimeiroscapítulosdaIntroductiodeEulereadotava seus métodos e sua notação. Como consequência, seu texto é oprimeironaFrançaadefenderoconceitodefunçãocomoobjetocentraldaanálise. O rompimento com a tradição se exprimia pela exclusão dosinfinitamentepequenos.

A radicalidade de um outromovimento, capitaneado por Lagrange, serevela já no título de sua principal obra, publicada em 1797:Théorie desfonctionsanalytiques, contenant lesprincipesdu calcul différentiel, dégagésde toute considération d’in iniments petits, d’évanouissants, de limites et deluxions, et réduits à l’analyse algébrique des quantités inies (Teoria dasfunções analíticas, contendo os princípios do cálculo diferencial, livres dequalquerconsideraçãode in initamentepequenos,evanescentes, limiteseluxões, e reduzidos à análise algébrica de quantidades initas). Vemos aíuma vontade explícita de liberar a matemática das noções ambíguas dein initamente pequenos e quantidades evanescentes, usadas por Leibniz,bemcomodos“fluxões”,quantidadesvariáveisusadasporNewton.

Lagrange fazia parte de uma segunda geração de analistas do séculoXVIII.Iniciousuaatividadenosanos1770,quandojásepreocupavacomaquestão dos fundamentos. Contudo, seu programa de algebrização dosmétodos da análise só foi construído nos anos 1795-96, durante seuscursosdeanálisenaÉcolePolytechnique,quandoasdiferenciaispassarama ser de inidas diretamente pela expansão de uma função em séries. Nolivro de 1797, que contém o ponto de vista praticado nos dois anosanteriores,Lagrangeafirmavaquetodafunçãof(x)podeserexpandidaemumasériedepotências(exceto,talvez,emalgunsvaloresisoladosdex):

f(x+h)=f(x)+p(x)h+q(x)h2+r(x)h3+…

Aderivadafoide inidacomoafunçãoobtidapelocoe icientep(x)dessa

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série. Assim, essa de inição, que substituía a noção de diferencial, icarialivre da consideração dos in initamente pequenos. Com base no métodoque acreditava capaz de resolver as inconsistências da análise, Lagrangecriticou até mesmo algumas concepções de d’Alembert e Euler sobre osfundamentos.Afunçãoeradadaporumafórmulaanalítica inita,masquepodiaserrepresentadaporumasériedepotências,comoadescritaacima,que já tinha sido de inida pelo inglês B. Taylor no início do século XVIII.Paramostrarageneralidadedométodo,Lagrangecalculouaexpansãoemséries de diversas funções algébricas, exponenciais, logarítmicas etrigonométricas.

SÉRIEDETAYLOR

AsériedeTaylordeumafunçãoreal femtornodeumpontox=aéumaexpansãonaformadeumasériedepotências:

Porexemplo,asériedeTaylordafunçãoexponencialf(x)=exemtornodea=0édadapor:

Pormeiodessaexpansão,valoresdeexpodemseraproximadosparaxpróximode0.

Desde os primeiros anos da École Polytechnique, a produção delivrostexto se tornou uma atividade signi icativa, uma vez que oconhecimento não se destinavamais somente às classes privilegiadas. Oslivrossobrecálculodiferencialeintegraltinhamemcomumarejeiçãodosin initamentepequenoseadefesadaconcepçãoalgébrica.Aindaem1797,foipublicadooprimeirovolumedeumlivrodeS.F.Lacroix,Traitéducalculdifférentieletducalcul integral (Tratadodocálculodiferenciale integral),quecontribuiuparadifundirasnovasideiassobreaanálise.Osdoisoutrosvolumessaíramem1798e1800.Em1803,essaobraganhouumaversãoresumida, voltada para o ensino, reeditada várias vezes na França etraduzidaemoutrospaíses.

O projeto de Lacroix era fornecer uma apresentação sistemática dosprincípiosusadosnaanálisenaquelemomento.Elecoletavanovosachadosemtratadosacadêmicoseconversavacomospesquisadorescomo imdeelaborarumaestruturaçãodaanálise.Lacroixcorroboravaacentralidadedanoçãodefunçãonaanálise,masmencionavade iniçõesumpoucomais

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gerais.Segundoele,todaquantidadequedependedeoutrasquantidadesédita “função” dessas últimas, ainda que não se saiba por meio de queoperações se pode passar destas à primeira. O uso do símbolo “ f” pararepresentarfunçõesemgeraltambémfoipropostonessetratado.

Os métodos de expansão em série de Lagrange tiveram um papelcentral na algebrização da análise, mas Lacroix defendia o método doslimites, análogo ao de inido por d’Alembert, que já tinha sido usadotambém por Laplace. Ele considerava pouco rigoroso o uso dosin initamente pequenos, embora o visse como mais cômodo para algunscálculos,destacandoqueseutraçoprincipaleraaextensãodoconceitodeigualdade. Todavia, Lacroix não utilizava essas quantidades in initamentepequenasesimométododoslimites.

As restrições com relação aosmétodos in initesimais izeram a análiseabandonartodasassuasreferênciasgeométricasparasefundarsomentena álgebra. Na suaMéchanique analytique (Mecânica analítica), de 1788,Lagrange já a irmava que amecânica deve ser vista como uma parte daanálise matemática, podendo prescindir de iguras ou de qualquerconsideração geométrica. Ou seja, a análise matemática, identi icada àanálisealgebrizada,podeseaplicaràgeometriaouàmecânica,masdevesercultivadacomoumramodistinto,comseusprópriosfundamentos.

Como em Euler, as demonstrações de Lagrange se baseavam emdeduções algébricas. A possibilidade de realizar um algoritmo, ou umatécnicaanalítica, implicavaummodogeralde realizaresseprocedimento.Aideiaportrásdasdemonstraçõeseraessencialmentealgébrica.Assim,oproblemaoriginaldocálculo,queeraanalisarmatematicamenteavariaçãosobre curvas, foi dando lugar ao estudo de fórmulas. Como a álgebra, aanálise lidava com fórmulase seus teoremaseramprovadospormeiodecálculoscomessasfórmulas.

Vimos que as noções de função e de variável eram enunciadas paranúmerosomaispossívelgerais,comonade iniçãodeEuler,queincluíaosirracionaiseos imaginários.Emalgunscasos,ageneralidadedas técnicasesbarrava em limitações relativas ao campo numérico,mas, na prática, aapresentação de um teorema de análise não incluía a preocupação deconsiderar o domínio de aplicação da técnica usada, uma vez que avalidadealgébrica já fornecia, implicitamente,suageneralidade.Supunha-se que a aplicação das técnicas e das de inições era global, exceto,provavelmente, em pontos isolados, o que não era consideradosignificativo.

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Aseparaçãodaanáliseemrelaçãoàgeometria,noséculoXVIII,implicoua visão damatemática como um formalismo algébrico. Essa con iança noformalismo decorria do sucesso dosmétodos analíticos, e a generalidadeda matemática, uma qualidade cara aos analistas, era assegurada pelageneralidade dos métodos algébricos. Isso signi ica dizer que essesmétodos operavam sobre objetos algébricos e sua generalidade eraderivada da generalidade das fórmulas da álgebra. Logo, se umademonstraçãoerafeitapormeiodetaisfórmulas,oresultadoeraadmitidocomo válido em geral. Não havia sequer a necessidade de tecerespeculaçõesassociadasaodomíniodaaplicaçãodastécnicas.

Essa crençana “generalidadedaálgebra” será criticadano séculoXIX,inicialmente por Cauchy. As pesquisas que ajudaram a desenvolver umanova visão sobre o cálculo diferencial durante esse século tinham comomotivação,segundoalgunshistoriadores,fundaramatemáticasobrebasesrigorosas. Essa interpretação pressupõe que os analistas do século XVIIInãose importavamcomo rigorde seus trabalhos.MasEulereLagrange,só para dar dois exemplos, foram responsáveis justamente portransformarocálculodiferencialeintegraldeLeibnizeNewtoncomo imde liberar esse cálculo de argumentos injusti icados. Dito de outromodo,ao procurar fundar o cálculo em bases mais sólidas e esclarecer seusconceitos fundamentais, diversos matemáticos do século XVIII tinham nabuscadorigorsuamotivação.

NoiníciodoséculoXIX,ascríticasàsconcepçõesanterioresdefunçãoecontinuidade seriam bastante incisivas. As funções contínuas de Eulerseriam caracterizadas como “funções analíticas” e as tentativas deenumerar e delimitar as principais propriedades desse tipo de funçãolevariamàexpansãodouniversodasfunçõespossíveisnamatemática.NoséculoXIX,noentanto, anoçãode função serádiscutida, emumprimeiromomento, com relação a um problema ísico: o estudo da propagação docalor. O programa de ensino e o corpo de professores da ÉcolePolytechnique foramexpandidosem1796ecriou-seumcursodeanálisealgébrica como introdução ao cálculo, já que, dopontode vista da escola,nãosepodiaconfrontarosalunosdiretamentecomas ferramentasdessecampo da matemática – isto é, os estudantes precisavam ser niveladosparaacompanharoaprendizadodeanálise.Acriaçãodessenovocursofoiatribuídaaomatemáticoe ísicofrancêsJean-BaptisteJosephFourier,queteriaumpapelfundamentalnadiscussãosobreoconceitodefunção.

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Fouriereapropagaçãodocalor

FIGURA6CaricaturasdosmatemáticosfrancesesAdrien-MarieLegendre(àesq.)eJosephFourier,feitaspeloartistafrancêsJulien-LeopoldBoilly.

Os trabalhos de Fourier sobre a teoria da propagação do calor datamdos primeiros anos do século XIX e estão associados à rede inição doconceito de função. Tratamos de seusmétodos ainda neste capítulo paraenfatizar que seus estudos partiamde umproblema ísico: saber comoocalor se propaga em uma massa sólida, dadas certas condições iniciais.Quandoocalorédesigualmentedistribuídoemdiferentespontosdamassasólida,ele tendeasecolocaremequilíbrioepassa lentamentedaspartesmaisquentesàsmenosquentes,comoseestivesseemumtubo(empretona Figura 7) que atravessa perpendicularmente as curvas de mesmatemperaturasobreasuperfíciesólida.

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FIGURA7Curvasdemesmatemperatura(emcinza).

Seguindo um raciocínio ísico, ele deduzia que a difusão de calor égovernada por uma equação diferencial parcial. Veremos, em particular,comoFourieranalisavaoexemplodaFigura8,emquetemosumaplacademetalcomumadasarestassupostainfinitamentedistante:

FIGURA8

Supõe-se que a temperatura inicial nas arestas laterais seja zero eaplica-secalornaarestainferior.Deseja-seestudaradistribuiçãodecalorsobre a placa, considerando que a aresta superior está in initamentedistanteequeasarestaslateraissãomantidascomtemperaturanulapelocontato de algum material. Com o im de construir uma equação paratrataroproblema,Fouriersupõeaindaqueaplacaestálocalizadasobreoeixoxeasarestas,nospontosx=−1ex=1.Logo,podemosimaginarumsegundoeixoyquecortaaplacapelomeio.Atemperaturaemcadapontoé dada por uma função T(x,y). O valor de T(x,y) se tornamuito pequenoquandoovalordeyaumenta,umavezqueaúnicafontedecalorestáemy=0.

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Ofatodeatemperaturaserzeronasarestassobre x=−1ex=1podeser expresso como uma situação particular em que T(−1,y) = T(1,y) = 0,comy>0.Ocaloraplicadosobreaarestainferior,situadasobreoeixo x,érepresentadopelafunçãoT(x,0),queéumafunçãodeumavariável,então,podemosdizerqueT(x,0)=f(x).Afunçãof(x)nosdá,portanto,acondiçãoinicialdoproblema,istoé,aquantidadedecaloraplicadoàarestainferioremcadapontoxsobreessaaresta.

Fourier usava argumentos ísicos para deduzir as equações doproblema, bem como para encontrar sua solução. Decompondo apropriedadedepropagaçãodocalorsobreaplaca,eleusaasuposiçãodequeT(x,y)deveseroprodutodeduas funções,umanavariávelx e outrana variávely,econcluiqueasoluçãodoproblemadeveserumasomadefunçõesdotipo

ae−mycos(mx).

OTIPODEFUNÇÃOQUERESOLVEOPROBLEMADEFOURIER

Sabemos que Isso quer dizer que, derivando duas vezes a função em relação ax,

obtemosomesmoresultado,amenosdeumsinal,doquesederivarmosduasvezesemrelaçãoay. Logo, seT(x,y)éoprodutodeduasfunções,umaemx eoutraemy,essasfunçõesdevemserψ(x)=kcos(mx)eφ(y)=cemy.

Derivandocadaumadessasfunçõesduasvezes,temos:

ψ'(x)=−kmsen(mx)φ'(y)=cmemyψ''(x)=−km2cos(mx)φ''(y)=cm²emy

Assim,considerandoT(x,y)=ψ(x).φ(y),tem-se:

Usandoascondiçõesiniciais,ofatodequeT(x,y)=0quandox=−1ex=+1, pode se deduzir quem deve ser um múltiplo ímpar deπ/2. Logo, asoluçãogeralédadapelasérieinfinita:

ondea1,a2,…sãoconstantesarbitrárias.Para encontrar, efetivamente, a solução do problema é preciso

determinar o valor dos coe icientesai. Fourier começa por estudar um

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exemplo particular, considerando a condição inicial f(x) = 1. Qual seria asoluçãonesse caso?Para responderaessapergunta, énecessáriousaracondição inicialf(x) = 1. Como, quandoy = 0 o valor deemy é 1 paraqualquerm,podemosescrever:

Essaigualdadepermiteencontrarovalordoscoe icientes,mastrazumproblema.Sabemosque,sempreque x éumnúmero ímpar, .

Issoimplicaquef(x)=0nessespontos.Mastínhamossupostoquef(x)erauma função constante igual a 1! Como resolver o impasse?Uma respostapossível,quechegouaseraventada,éa irmarqueoproblemanãopossuisolução para essa condição inicial f(x) = 1.Mas Fourier não admitia essapossibilidade,umavezquenãohánenhumimpedimento ísicoparaqueocalor inicial transmitido à aresta inferior tenha temperatura constanteiguala1°.

SeobservarmosodesenhodaplacanaFigura8,constataremosqueosvalores dex variamsomentede−1a1.Ouseja,não importamuitooqueacontece parax < −1 ex > 1; dentre os valores de x para os quais nosinteressa investigarasoluçãodoproblema,osúnicos ímparessão−1e1.Sendoassim,a igualdadedeque tratamosprecisa serveri icada somentepara −1 <x < 1. Vejamos, por meio de sua representação grá ica(Ilustração12),comosecomportaafunção:

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ILUSTRAÇÃO12Representaçãográficadasériedecossenosconsiderandoasseisprimeirasparcelascomai=1,i=1,…,6.

Asomadasérie trigonométrica,emgeral,nãoéuma funçãoconstante.Eladevesetornarigualàfunçãof(x)=1nointervalo−1<x<1.Comoesseé o intervalo que queremos, pode-se dizer que a solução do problema édadapelasérie trigonométricanesse intervalo.Paraobteressasolução,éprecisocalcularos coe icientesno intervalo (−1,1).Fazendo isso,Fourierobservouqueasérietrigonométricarealmenteseidenti icaaosvaloresdafunçãof(x) = 1,mas somente nesse intervalo, podendo se diferenciar emoutros pontos. Isso mostrava que duas funções dadas por expressõesanalíticas diferentes podem coincidir em um intervalo, semnecessariamente coincidirem foradesse intervalo. Essa evidência trazia anecessidade de se prestar atenção à noção de intervalo, que, nessemomento,era interpretadacomoumadaspossibilidadesdevariaçãode x,quandoessaquantidadevariaentrecertosvaloresdeterminados.

Ao fornecer a solução de um problema considerando somente umintervalo, ou de inir uma função somente em um intervalo, Fourierapresentava um recurso inovador em relação à de inição da função pelasua expressão analítica. Nesse caso, uma função era determinadaautomaticamenteseaexpressãoanalíticaestivessebemestabelecida.Nãoera necessário prestar atenção ao domínio de de inição da função; aliás,sequerexistiaessanoçãodedomínio.Essaeoutrasde iniçõesdesse tipo,que nos são bastante familiares, começaram a aparecer nesse momento,mas só se desenvolverão com o estudo dos conjuntos numéricos. Comoveremos no Capítulo 7, os primeiros passos nessa direção serão dados apartirdasegundametadedoséculoXIX.

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Em um trabalho enviado à Academia de Ciências de Paris em 1807,Fouriera irmavaqueumafunçãoqualquerpodeserexpressacomosomadeuma série trigonométrica. Essa possibilidade era admitida porEuler eLagrange, mas somente para funções particulares. Fourier defendia queessa a irmação fosse válida para qualquer função. O comitê que avaliouesse trabalho era composto por Laplace, Lagrange, Lacroix e Monge e orelato foi escrito por outro matemático da época, S.D. Poisson. Nenhumdessesmatemáticos, jácélebres,demonstrouentusiasmopelosresultados.Pior–elescriticaramabertamenteafaltaderigordeFourier.15

Até os anos 1820, as séries de Fourier eram vistas com descon iança,pois contradiziam a concepção aceita sobre a natureza das funções. Arazão dessa descon iança não advinha tanto do fato de ele enxergar asomadeumasériedepotênciascomoumafunção–issoestavadeacordocom os padrões da época – e sim de a irmar que uma função qualquerpode ser representada por uma série trigonométrica. Ora, isso implicavadizer que a função era algo mais do que a sua representação. Ou seja,implicavadizerqueexisteumobjetoqueéafunçãoequeesseobjetopodeserrepresentado por uma série. A expressão analítica, nesse caso, nãoseriaafunção.

Outro problema crucial dos trabalhos de Fourier era operar comumafunção dada por um grá ico bem distinto das funções polinomiais, já queestepossuidescontinuidades.Asfunçõesantesconsideradaseramcurvasbem-comportadas,umavezquepodiamserexpressascomoumasériedepotências.OexemplodeFouriercontradiziaaopiniãoentãoaceitasobreocomportamentodeumafunção.Apesardasdescon ianças,ostrabalhosdeFourier forneciam um método prático para resolver o problema, poispermitiam calcular os coe icientes da série para qualquer função. Alémdisso, as soluções obtidas desse modo podiam ser veri icadas emproblemas concretos. Assim, suas soluções representavam fenômenosísicos com precisão e não podiam simplesmente ser descartadas. Se ométodofuncionava,erainteressanteinvestigarporquê.

Paraalémdeexemplosespecí icos,Fouriernãodemonstrourealmenteque uma função qualquer pode ser representada por uma sérietrigonométricaemumintervalo.Ouseja,mesmoemumintervalorestrito,não havia uma demonstração satisfatória de que essa série convergissepara a função. Quem daria continuidade ao trabalho de Fourier nessadireção seria o matemático alemão Gustav Lejeune Dirichlet, em 1829,comoveremosnoCapítulo7.Nomeio francês, osmatemáticos, sobretudo

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Lagrange, estavam convencidos de que as séries de Fourier nãoconvergiam. Para tentar persuadi-los, Fourier fez alguns experimentoscomparando as predições de seu modelo matemático com fenômenosefetivamenteobservados.

O problema do luxo de calor interessava a muitos pesquisadores daépoca, e, em 1811, houve um concurso da Academia para escolher amelhor explicação sobre o tema. Fourier ganhou o prêmio e começou aescrever um livro com o im de difundir suas ideias. A obra Théorieanalytiquedelachaleur(Teoriaanalíticadocalor)foipublicadaem1822eFourier passou a ocupar um lugar de destaque na cena matemáticafrancesa. Nesse livro encontramos uma de inição mais geral do termo“função”,frequentementecitadanostextossobreahistóriadessanoção:

Em geral, a funçãofx representa uma sucessão de valores, ou ordenadas, os quais cada um éarbitrário.Uma in inidadedevaloressendoatribuídosàabscissax,existeumnúmeroigualdeordenadasfx. Todas têm valores numéricosatuais, oupositivos, ounegativos, ounulos.Não sesupõequeessasordenadasestejamsujeitasaumaleicomum;elassesucedemumaàoutradeummodoqualquer,ecadaumadelasédadacomosefosseumaúnicaquantidade.16

Notamos que, para dado valor da abscissa, deve existir somente umvalor correspondente da ordenada, uma vez que deve haver o mesmonúmero de ordenadas fx e de abscissasx. Os valores dessas ordenadaspodiam ser quaisquer, contanto que fossematuais, ou seja, não in initos.Por isso a de inição é precedida pela expressão “em geral”, quer dizer,podeacontecer,emtese,deafunçãotervaloresinfinitos,masseosvaloresda abscissa estiverem compreendidos entre limites bem determinados, éimpossívelque “umaquestãonatural conduzaa suporquea função fx setorneinfinita”.17

Fourier não subscrevia a pro issão de fé dos matemáticos do séculoXVIIIdequeumafunçãoseidenti icavaàsuaexpressãoanalítica.Paraele,duas funções dadas por expressões analíticas diferentes podem coincidiremum intervalo semcoincidir foradele.Vemos, assim,que suade iniçãode funçãoémaisgeraldoqueausadaanteriormente, sobretudopornãodesconsiderar a lei que governa o modo como a ordenada depende daabscissa.

Um fato menos comentado na historiogra ia tradicional é que Fourierapresentouessade iniçãonaspáginas inaisdasmaisdequinhentasquecompõem suaThéorie analytique de la chaleur. Essa obra se iniciava comuma seção sobre “noções gerais e de inições preliminares”, mas osconceitos de inidos aí dizem respeito ao estudo ísico das mudanças de

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temperatura. Fourier admitia ao longode todoo livroque estava lidandocomfunçõesgerais,àsquaischamavade“arbitrárias”,noentantosósentiunecessidade de propor uma de inição para esse tipo de função quandosurgiram situações nas quais podem intervir funções ainda mais gerais,que precisam ser excluídas (caso daquelas que podem ter valoresin initos). Portanto, o termo “atual”, usualmente esquecido nas históriassobre a noção de função, é essencial na de inição de Fourier, que nãoconsiderou, efetivamente, funções arbitrárias. b Vale lembrar que essade inição não possui nenhum destaque no texto; surge embaralhada nomeio de resultados ísicos sobre a propagação do calor que envolvem aintegraçãodeequaçõesdiferenciais.

A teoria de Fourier superará as descon ianças e ganhará grandedestaquenoséculoXIX.Oproblemadaconvergênciadassériestrabalhadopor ele será abordado por Cauchy em 1826. Esse trabalho continhaalgumas falhas, o que levou Dirichlet a escrever um artigo sobre o tematrês anos depois com uma boa demonstração, segundo seus critérios, daconvergênciadassériesdeFourier.

Aanálisematemáticaeopapeldafísica

Os problemas ísicos tratados geometricamente por meio do cálculo noinaldoséculoXVIIcontinuaramaocuparumpapeldedestaquenoséculoseguinte. A competição entre os métodos de integração de Newton eLeibniztevegrandeimpactonaAcademiadeCiênciasdeParisapartirdemeadosdosanos1730,graças,principalmente,aoestímulodePierre-LouisMaupertuis. Diante da urgência de resolver problemas especí icos denatureza ísico-matemática, icavaemsegundoplanoadiscussão ilosó ica,como a que existia entre cartesianos e newtonianos. Assim, a teorianewtoniana sobre a forma da Terra ganhou popularidade na França nosanos 1730 e as discussões a esse respeitomoldaram a ísicamatemáticafrancesa.Aomesmo tempo, osdebates sobreoprincípiodamínimaação,in luenciados por Leibniz, eram intensos nos anos 1730 e 1740,envolvendocontribuiçõesdeMaupertuised’Alembert.

Ainda que tenha sido escrito anteriormente em latim, oMétodo dasluxões e séries in initas, de Newton, foi publicado em inglês em 1736 etraduzido por Buffon para o francês em 1740. Nesse momento, opensamento newtoniano tornou-se bastante popular na França. A visão

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sobrea ísicaimplícitanessaobra,bemcomonostrabalhossobreocálculoin initesimal, implicava que as variáveis e os coe icientes descritos pelasfunções se relacionavam de modo vago com a realidade das leis danatureza.ParaBuffon,ousodaanálisetornavaosprincípios ísicosopacosao entendimento. Uma equação como a da queda livre, que associa aposição de um corpo ao tempo transcorrido na queda, era uma imagemdiretada leinaturalqueregeesse fenômeno,ouseja,exprimiasuacausaísica.No entanto, as séries in initas, principal ferramenta do cálculo, nãopodiam ser compreendidas como uma soma de causas ísicas, o que foicriticadoporBuffonemumintensodebatecomClairaut.18

Motivada pelo pensamento newtoniano, como também por pesquisasfrancesas, uma comunidade singular de ísica matemática começou a sedesenvolvernaFrançanessaépoca.Outrasin luências,comoadeEuler,apartirdosanos1740,alémdainvasãodefartaliteraturadeoutrospaíses,ajudaram a formatar o seu estilo. Esse processo culminou com o papelpreponderante que Laplace adquiriu a partir dos anos 1770, somado àtransferência de Lagrange de Berlim para Paris, em 1787. Paris setornava, assim, o centro da ísica matemática europeia. Inicialmente, aspesquisas continuaram a versar sobre os mesmos problemas tratadosanteriormente: a teoria sobre a forma da Terra; questões ligadas àestabilidade do Sistema Solar, entre elas o dos três corpos e a teoria daLua; além de problemas de dinâmica, como o estudo do movimento, daconservaçãodaenergiaedoprincípiodemínimaação.

Mas,no inaldoséculoXVIII,odesenvolvimentodaanálisetransformouacompreensãodasrelaçõesentre ísicaematemática.Comopassouaseradmitido a partir de Euler, toda funçãomatemática podia ser reduzida auma soma de termos, ou seja, fazia parte de sua natureza ter in initosparâmetros que eram os coe icientes de uma série de potências. A ísicaprecisavalidarcomséries in initas,poisosfenômenoseramdescritosporequações diferenciais e as soluções dessas equações eram dadas porséries in initas.Uma funçãoeraescritacomoumasérieenão interessavaexplicar sua forma em termos de causas ísicas, já que ela permitiadescreveraevoluçãodofenômeno.Opoderdaálgebrafaziacomquefossemenos necessário para uma fórmula representar a realidade do quepossibilitarumcálculo.

Aos poucos, percebeu-se que vários fenômenos ísicos podiam serdescritos por equações diferenciais análogas, e o problema de deduzir eresolver as equações que descrevem os fenômenos tomou o lugar da

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explicação ísica. Na segunda metade do século XVIII, a elaboração damecânica analítica transformou a ísica matemática de um sabergeométricoemumsaberanalítico.ParaLagrange,porexemplo,amecânicaeraumramodaanálise. Issonãoaconteceucomoestudodos fenômenosnaturais em geral – muitos continuaram a possuir métodos próprios e ainvestigarosprincípiospormeiodeferramentasmatemáticasvariadas.

O que queremos enfatizar é que, no inal do século XVIII, os domíniosque usavam, de modo signi icativo, a nova análise algebrizada, tiveramseus princípios radicalmente transformados por esse uso. Um exemploparadigmático é dado pela mecânica celeste. Desde a obra de Newtondesenvolvera-se uma preocupação fundamental com a descrição dosmovimentoscelestes.Sualeideatraçãouniversala irmavaquedoiscorposseatraemnarazãodiretadesuasmassasenarazãoinversadoquadradode suas distâncias. Essa lei devia explicar o movimento dos planetas noSistema Solar, apesar de se tratar de uma ação a distância, ou seja: osplanetasnão semovemporqueestãoemcontatoou sãoempurradosunspelos outros, mas porque há uma força invisível que faz com que seatraiam.

Esse caráter foi considerado meta ísico por Leibniz, para quem umaforça ísica deveria ser mecânica. Para que a atração pudesse serconcebida como uma força, seria necessário identi icar os traçosmanifestosque a exprimem. Se a irmamosqueumplaneta gira em tornodo Sol graças a uma força, precisamosmostrar como o Sol se liga a esseplaneta,docontrário,supõe-sequedevaserdotadodeummotor.Newtonhesitava sobre a resposta a essa questão. Sua obra mais importante,Princípios matemáticos da iloso ia natural , publicada originalmente em1687,ganhouumacréscimoemsuasegundaedição,de1713,denominadoEscólioGeral,noqualencontramosumcomentárioquebuscaresponderàscríticasrecebidas:

Masatéaquinãofuicapazdedescobriracausadessaspropriedadesdagravidadeapartirdosfenômenos, e não construo nenhuma hipótese; pois tudo que não é deduzido dos fenômenosdeveserchamadoumahipótese;eashipóteses,quermeta ísicasou ísicas,querdequalidadesocultasoumecânicas,nãotêmlugarnafilosofiaexperimental.19

Observamosqueatradução“nãoconstruonenhumahipótese”refere-sea uma declaração que icou famosa, escrita originalmente em latim:hypotesis non ingo.Fingere pode ser ingir ou inventar – em portuguêspoderíamos dizer “não injo, ou não invento nenhuma hipótese”. Para selivrardoproblemapropostoporLeibniz,Newtonargumentouquenãovale

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apenapesquisaracausadagravitação.Entendidacomoumalei,elapodeajudaradescreverosfenômenos,eissobasta,ouseja,nãoprecisamosnospreocuparcomasquestõesrelativasàcausadagravitação.Essaresposta,aperfeiçoadanoséculoXVIII,excluiasquestõessobreacausaeanaturezaísica da atração. Assim, a iloso ia experimental deve tratar somente daspropriedades manifestas; já as qualidades ísicas podem sernegligenciadasemfavordequantidadeseproporçõesmatemáticas.

Mas essa mudança não teve lugar na época de Newton. Em outrasobras, Newton rea irmou seu interesse tanto pela natureza ísica quantopela causa da atração, que poderia estar colada aos corpos e serconsiderada uma qualidade primária, ao lado da impenetrabilidade e daextensão.FoiapartirdoséculoXVIIIquealeideatraçãouniversalpassoua ser concebida como um fato cientí ico independente de sua natureza.Esse tipo de investigação abre mão doporquê para investigar somentecomo os fenômenosacontecem.Koyréapresentouumaavaliaçãonegativadessa transformação: “O pensamento do século XVIII se reconcilia com oinexplicável.”20

As leis que podem ser deduzidas dos fenômenos e veri icadasexperimentalmente tornam-se as próprias causas e devem sergeneralizadas para que seja possível aplicá-las a outros fenômenos. Essaextrapolação foi possibilitada pela matematização. Ao estudar osfenômenos evolutivos da natureza, deve-se partir de atributosmensuráveisda realidadepara encontrar a lei de evoluçãoquedescreveseus estados subsequentes. Se as taxas de variação das variáveis dosistema dependem exclusivamente dos estados iniciais dessas mesmasvariáveis, a dependência entre elas pode sermatematicamente expressaporumaequaçãodiferencial.Logo,paraconhecerosestadossucessivosdeumsistemacausaldeve-seresolveressaequaçãodiferencial.

Esse quadro foi estabelecido no século XVIII e as pesquisas sobre aestabilidadedoSistemaSolar fornecemumexemploperfeitodessepontodevista.TaisestudospartiamdoproblemadeNewton:comogarantirquea atração não perturbe a trajetória dos corpos em torno do Sol? Nadescriçãokepleriana,aórbitadecadaplanetaemtornodoSoldeveriaserelíptica, considerandoapenas a interaçãoentre esseplaneta eo Sol.Mas,comousodaleideatraçãouniversalparadescrevertodososmovimentosdo Sistema Solar, passamos a ser forçados a considerar a perturbaçãocausada pela atração dos outros corpos. No Escólio Geral, Newtonacrescentou: “Este magní ico sistema do Sol, planetas e cometas poderia

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somente proceder do conselho e domínio de um Ser inteligente epoderoso.”21

Logo,aleideatraçãonãoerasu icienteparaexplicaraimpressionanteregularidade do Sistema Solar. O Todo-Poderoso que havia criado oUniverso seria o responsável por garantir sua estabilidade. E Newtoncontinuava: “… até que, en im, esse sistema precise ser recolocado emordem pelo seu Autor.” Contra essa necessidade da intervenção de umDeus que salvaguardasse a estabilidade do Sistema Solar se dirigiraminúmerascríticas,acomeçarporLeibniz,queacusouoDeusdeNewtondefuncionar como um relojoeiro responsável por recolocar regularmente amáquinadoUniversoemfuncionamento.

Deixandode ladoadiscussãosobreacausaeanaturezadaatração,oséculo XVIII se viu tentado a mostrar que todos os fenômenos derivamdessa lei geral, tanto os celestes quanto os terrestres, e que ela deveexplicarporqueandamoscomospéssobreaTerraeporqueobservamosomovimento dos astros. Contudo, para inalizar a construção dessa novaciência, erapreciso eliminar explicaçõesquenão sãopuramente teóricas,como o Deus de Newton servindo de garantia para a estabilidade. Paraisso, fazia-se necessário demonstrar a autossu iciência da lei de atraçãouniversal,eessafoiamotivaçãomanifestadostrabalhosdeLagrangeedeLaplacesobreaestabilidadedoSistemaSolar.

Laplace lamentavaqueNewtonnãotivesseenxergadotodoopoderdesuas leis,e issosedeviaàutilizaçãodageometriasintética.Paradevolveraosistemanewtonianosuavocaçãoexplicativa,erafundamentaltraduzi-lopor meio das ferramentas da análise matemática, “esse maravilhosoinstrumento semo qual seria impossível penetrar emummecanismo tãocomplicado em seus efeitos quanto em suas causas”. 22 A formulaçãoanalíticadoproblemadaestabilidadeesuademonstraçãoeramelementoscruciais para atestar a legitimidade da concepção do Universo conformedescrito por leis matemáticas. Lagrange e Laplace exprimiram esseproblemaemtermosdesériesin initasobtidascomosoluçãodeequaçõesdiferenciais.

Assim,ométodonewtoniano,queconsisteemformularumaleiapartirdaobservaçãoparadepoisgeneralizá-la–permitindoqueelaseapliqueaoutrosfenômenos–,deveriaserrenovadopelasferramentasdaanálise:

Asíntesegeométricatemapropriedadedenãodeixarquesepercadevistaoseuobjetoedeclarear todo o caminho que conduz dos primeiros axiomas às suas últimas consequências; aopassoquea análise algébricanos faz logoesqueceroobjetoprincipalparanosocuparmosde

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combinaçõesabstratas.…Taléafecundidadedaanálise;bastatraduzirnessalínguauniversalas verdades particulares, para ver sair de suas expressões uma multidão de novas einesperadasverdades.Nenhumalínguaétãosuscetíveldeelegância.23

Equações diferenciais do mesmo tipo podiam explicar uma grandediversidadedefenômenos,garantindoaestimadaunidaderacionaldoque,só então, poderia ser chamado de “sistema do mundo”. Dessa forma, ocritério para considerar uma explicação aceitável de um fenômeno ísico(como o da gravitação) deixava de ser mecânico e passava a sermatemático. Se fosse possível obter uma formulação matemática de umfenômeno,aindaquenãosesoubessesuacausa ísica,deviaseprosseguirnainvestigaçãopormeiodaequação.

Oobjeto ísico se transformava e explicar um fenômenopassava a serequivalente, em muitos casos, a descrever o mecanismo ísico que oproduzia.24 Deduzindo das fórmulas as consequências mais sutis e maisdistantesdosprincípiose testando-aspormeiodeexperimentos,podeseveri icar, realmente, se uma teoria é falsa ou verdadeira. Sendo assim, ométodo da ciência experimental passou a se basear na matemática e naísicaeaexperiênciaadquiriuopapeldemeraveri icaçãodeumateoria,ao passo que a explicação foi identi icada à fórmula matemática. Essamudança teve consequências na ísica do século XIX, principalmente naseparação da pesquisamatemática em relação aos problemas ísicos quetinham exercido um papel central no desenvolvimento do cálculoin initesimal. Veremos que essa dissociação se tornará de initiva com aconstituiçãodamatemáticacomo“matemáticapura”noséculoXIX.

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RELATOTRADICIONAL

A NARRATIVA QUE PRETENDEMOS desconstruir aqui está mais presente naexposição da matemática propriamente dita do que nos escritos de suahistória. Trata-se da apresentação dos diferentes tipos de número, combasenosconjuntosnuméricos,quefazusodemotivaçõeshistóricas,entreelas a di iculdade de resolver certas equações. A equaçãox2 + 1 = 0 éexemplaraesserespeito,poiséfrequentementeempregadaparajustificara necessidade de se de inir os números complexos, como se, diante dadi iculdade de solucioná-la, os matemáticos tivessem entrado em umacordoparafundarumnovotipodenúmero.

De modo similar, essa narrativa tradicional enxerga a construção dosdiferentesconjuntosnuméricosapartirdeextensõessucessivas:primeiroos naturais, depois os inteiros, os racionais, os reais e os complexos.Masessa construção, embora didática, não possui fundamento histórico, alémde fornecer uma imagemda evolução damatemática tal qual um edi ícioestruturado,erigidosobrebasessólidas.Aconstituiçãodanoçãoderigor,ora vigente, está ligada à história da análisematemática. Namaioria doslivros que tratam do tema, as práticas dos analistas do século XVIIIaparecem como inconsistentes em comparação com a análise moderna,desenvolvidaapartirdeCauchy.Dentrodesseespírito,chega-seaa irmarque,naviradadoséculoXVIIIparaoXIX,osmatemáticoscomeçaramasepreocupar com a inconsistência dos conceitos e provas de amplos ramosdaanáliseeresolveramcolocarordemnocaos.

Esse ponto de vista foi expresso por N. Bourbaki emElementos dehistória da matemática , livro em que o autor comemora o fato de osmatemáticos, no início do século XIX, terem recolocado a análise nocaminho do rigor, cansados de manipulações algébricas desprovidas defundamentos. Essa miti icação gera sérias consequências no modo comonoções básicas da matemática nos são apresentadas até hoje – caso dadefiniçãodefunçõesedenúmerospormeiodoconceitodeconjunto.

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aNessade inição icaclaraadiferençaentreaconcepçãodaépocaeaatual,pois,emsuaacepçãomoderna, o limite é uma noção estática e não dinâmica (entendido como um número do qual épossívelseaproximarindefinidamente).bAsfunçõesempregadasporelesãoasquediríamos,hoje,“contínuasporpartes”.

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7.OséculoXIXinventaamatemática“pura”

ESTE ÚLTIMO CAPÍTULO possui três objetivos. Continuar mostrando, como noCapítulo 6, que a noção de rigor é histórica, mas agora com relação àstransformações ocorridas no século XIX; explorar uma dessastransformações, a saber, a constituição da noção de número como umobjeto matemático desvinculado da ideia de quantidade; investigar umasegunda transformação, que se relaciona com a primeira, mas quegostaríamos de destacar: a reformulação das noções de número e defunçãoemtermosdeconjuntos.

OséculoXIXfoidescritofrequentemente–eaindaé–comoa“idadedorigor”. Emumaobra amuito utilizada na história da análisematemática, orespeitado historiador I. Grattan-Guinness detalha a contribuição depensadoresdessaépoca, comoDirichlet,Riemann,Weierstrass, reunindo-osemumcapítulointituladocomessaexpressão.Nesseeemoutroslivros,talassociaçãosereferesobretudoàhistóriadaanálise.Poressemotivo,oinício desse movimento que visava levar maior rigor à matemática fazmençãoàsproposiçõesdeCauchy.Emtextosmaisrecentes,noentanto, jápodemos vislumbrar certa consciência de que a concepção implícita derigornasnarrativastradicionaistemumcaráterretrospectivo.Aoanalisaramudançanosfundamentosdaanáliseemumtextode2003,ohistoriadorJ.Lützencomeçaafirmando:

OséculoXIXfoifrequentementechamadodeidadedorigor.Essaéumacaracterizaçãocorretano sentido de que a análise adquiriu um fundamento que ainda reconhecemos comosatisfatório. A rigorização não foi somente uma questão de esclarecer alguns poucos conceitosbásicosemudarasprovasdealgunsteoremasbásicos;aoinvésdisso,elainvadiuquasetodaaanáliseetransformou-anadisciplinaqueaprendemoshoje.1

Apesardeseutomnãosercrítico,J.Lützenreconhecequequandofalaem “idade do rigor” está se referindo à idade donosso rigor. Ou seja, noséculo XIX, a análise matemática adquiriu a forma que reconhecemos,aindahoje,comoválida.Omovimentoderigorizaçãopodeserdivididoemduas fases:uma francesa, naqual sedestaca a iguradeCauchy; e outra

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alemã.Vamosiniciarestecapítuloanalisandoatransiçãoentreambas.Para entender as razões desse movimento será necessário investigar

mais um pouco as transformações ocorridas no ensino da França, emparticularnaÉcolePolytechnique,umavezqueapreocupaçãodidáticafoidecisiva namaneira como Cauchy propôs reorganizar a análise. Segundoele, ao apresentar seus conceitos básicos para os estudantes, não erapossívelapelarparaomodocomoeramentendidosemuso,umavezqueoiniciante não tem experiência para tanto. Sendo assim, não bastavareconhecer que in initésimos, ou limites, eram fundamentos inadequadospara a análise; uma doutrina positiva se fazia necessária. Cauchy diráentão que, para explicitar os fundamentos da análise, é preciso derivarseusresultadosemumaordemcoerente.Issosigni icaisolarosprincípiosfundamentais da teoria e deduzir deles os teoremas. Em análise, taisprincípiosserãoosconceitosdefunção,limite,continuidade,convergência,derivação e integração. Outra razão para a crescente incorporação dessanovaarquiteturanaanálisedecorreudapro issionalizaçãodamatemática,que levou ao aumento do número de pesquisadores e do montante detrabalhos publicados. Logo, era preciso organizar as contribuições dessemundoexpandidodeformainteligível.

Não que osmatemáticos, preocupados com um suposto estado caóticodesuadisciplina,tenhamfeitoumareuniãoecombinadoosnovospadrõesque deveriam substituir os que estavam em uso. Os pesquisadores doséculo XVIII sequer percebiam seus métodos como pouco rigorosos oudesorganizados. Portanto, não podemos a irmar que seus resultadoscarecessem de rigor, como se eles tivessem o objetivo de avançar sempreocupaçõescomafundamentaçãodeseusmétodos.Anoçãoderigorsetransformounaviradado séculoXVIIIparaoXIXporqueosmatemáticosdaépocasebaseavamemcrençase técnicasquenãoerammaiscapazesderesolverosproblemasquesurgiamno interiordaprópriamatemática.Ou seja, isso não se deu por preocupações formalistas, nem por uminteresse metamatemático de fundamentar essa disciplina. O rigor é umconceito histórico, e a noção de rigor de Lagrange era diferente da deCauchy,que,porsuavez,tambémseriacriticadoporWeierstrass,baseadoemsuaprópriaconcepçãoaritmética.

Um dos problemas internos a demandar uma nova noção de rigorsurgiu da crítica à concepção dos números comoquantidades. Essaassociação, a partir de certo momento, passou a bloquear odesenvolvimento da matemática. A discussão sobre as quantidades

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negativas, durante o século XVIII, mostra que somente os númerosabsolutos eram aceitos, pois se pretendia relacionar a existência emmatemática a uma noção qualquer de “realidade”. Para avançar, eraprecisomigrar para um conceito abstrato de número não subordinado àideiadequantidade.

A substituição do paradigma das quantidades implicou uma mudançairreversívelnoedi íciodamatemática,queculminoucomatransformaçãodestaemmatemática“pura”.“Pura”nãoseopõea“aplicada”.Aocontrário,a matemática pode ser “aplicada” a partir do momento em que é vistacomo um saber puro. O movimento que pretendeu erigir a matemáticacomo uma ciência pura foi iniciado na Alemanhab nos primeiros anos doséculoXIX,masnãoteveumcaráterglobaleradical.

Porvoltade1800,amatemáticaerateóricaepráticaaomesmotempo.Fazia parte de seu projeto representar a natureza por equações, e osmatemáticos teóricos se viam como pertencentes à mesma tradiçãoinaugurada por Newton e outros. Uma das consequências da re lexãosobreaestruturainternadamatemática,queocupouoséculoXIX,foiasuaseparação da ísica. Ainda que procurasse se estabelecer como umadisciplina independente, a análise do século XVIII era motivada porproblemas ísicosquecontinuaramaexercergrandein luênciaporalgunsanos.Mas, comaabstraçãoea formalização impostaspelare lexãosobreos fundamentos damatemática, sua relação com a ísica se transformou.No inal do século XIX, esta não serámais central para a recém-formadacomunidade de matemáticos. Essa imagem da matemática se tornoupredominante no século XX, e analisaremos aqui, brevemente, o contextono qual teve início esse processo. Tais assuntos serão tratados nas duasprimeiras seções deste capítulo, que servem de pano de fundo para adiscussãomaisespecí icaquenosocuparáemseguida.Analisaremos,commais detalhes, o desenvolvimento da noção de número e os passos paraque números problemáticos, como os irracionais, os negativos e osimaginários, fossem admitidos. Será visto também que essesdesenvolvimentosnadatêmavercomateoriadosconjuntos,apresentadabem mais tarde. A intervenção dos conjuntos propôs um modo deorganização da teoria bastante distinto da maneira como esses númerosforam compreendidos ao longo da história e passaram a fazer parte damatemática. Tem-se aqui um ótimo exemplo de como a ordem daexposição,nessadisciplina,mascaraaordemdainvenção.

Antes de sua formalização como elemento de conjuntos numéricos,

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ocorridano séculoXIX, o conceitodenúmeropassoupor algumas etapasdecisivasqueimplicaram:

• o desenvolvimento da álgebra, quando a resolução de equações fezaparecernúmerosindesejáveis,quenãopossuíamumestatutode inidoemmatemática;

•ateoriadascurvas,nosséculosXVIIeXVIII,eaproliferaçãodemétodosin initos para resolver problemas do cálculo in initesimal, como o dasquadraturas;

•aalgebrizaçãodaanálisenoséculoXVIII;• astentativasderepresentaçãogeométricadasquantidadesnegativaseimagináriasnoiníciodoséculoXIX.

Ainda que, desde o século XVII, as entidades algébricas tenhamadquiridoumlugardedestaquenamatemática,atéo inaldoséculoXVIIIas raízes negativas e imaginárias de equações eram consideradasquantidades irreais. Os números que hoje chamamos de “irracionais”apareciam na resolução de problemas, mas também não tinham umestatutode inido.Todososnomesutilizadosparadesignaressesnúmerosexprimemadi iculdadedeadmitirsuaexistênciaou,melhordizendo,suacidadania matemática: números “surdos” ou “inexprimíveis”, para osirracionais;quantidades“falsas”,“ ictícias”,“impossíveis”ou“imaginárias”,paraosnúmerosnegativosecomplexos.Issomostraqueeles,alémdenãopossuíremumacidadania,nãoeram,emúltimainstância,sequeradmitidoscomonúmeros.

Normalmente, a história dessesnúmeros é desconectadadasquestõesinternas que apareceram em outros problemas da matemática. Mas apercepçãodanecessidadede incorporá-losenvolveuetapasessenciaisdoprocesso de generalização, incluindo uma compreensão abstrata dosnúmerosedasoperações.Atransiçãodoconceitodequantidadeparaodenúmero foimarcante para a noção de rigor que se constituiu a partir doséculo XIX. Enquanto os números eram associados a quantidadesgeométricas, não se concebiam operações abstratas e arbitrárias sobreeles. Os matemáticos que se deparavam com problemas relativos àfundamentaçãodaanáliseestavamcientesdequeseuprogressodependiadeumaextensãodoconceitodenúmero.Nãoàtoaumaparte importantedessemovimentoficouconhecidacomo“aritmetizaçãodaanálise”.

G. Schubring2 propõe examinar a história dos números negativos

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partindo do abandono do paradigma das quantidades, intimamenterelacionado às discussões sobre o cálculo in initesimal. Para darconsistência às práticas da análise, tornou-se necessário introduzir umanoçãoabstratadenúmero, independentementedasnoçõesdequantidadeegrandeza.Nãoentraremosnessesdetalhes,masprocuraremosinserirasvárias etapas da conceitualização dos números irracionais, negativos eimaginários no panorama mais geral da história da análise. Antes deinvestigarmos as propostas do século XIX, faremos um resumo dosdiferentesmomentosdacompreensãodessesnúmeros.

DepoisdemostrarcomoGaussdefendeuumaconcepçãomaisabstratada matemática em um texto sobre os números negativos e complexos,descreveremoscomooutrosmatemáticosalemãesdoséculoXIXajudaramaconsolidaressavisão.Serãomencionados,pontualmente,ostrabalhosdeDirichlet,RiemanneDedekind,quecontribuíramparaageneralizaçãodoconceito de função e exprimiram as primeiras ideias que podem serassociadasaopontodevistadosconjuntos.Apartirdaí,anoçãodefunçãoterá um papel central na matemática, no lugar das curvas ou dasexpressões analíticas que as representavam.A expressão “pontode vistadosconjuntos”nãoserefereaindaàteoriadosconjuntos.Essadistinçãoéimportante em nossa abordagem, pois pretendemos contextualizar ascontribuiçõesdeCantorparaade iniçãode conjuntonodesenvolvimentoconceitual e abstrato da matemática na Alemanha, ligado aos nomes deDirichlet,RiemanneDedekind.

A abordagem da teoria dos conjuntos, à qual chamamos “conjuntista”,acabou predominando na matemática do início do século XX, levando àrede inição de suas noções centrais em termos de conjuntos. Dessemomentoemdiante,ateoriadosconjuntospassouaseroenquadramentomaisadequadoparaseobterumnovoconsensosobreosfundamentosdaanálise e de toda a matemática. Mostraremos o papel de Bourbaki nacristalização dessa visão, cuja consequência foi a rede inição de todas asnoções básicas da matemática na linguagem dos conjuntos. Será visto,ainda, como essa tendência mudou a concepção sobre número e função,noções que possuem uma longa história prévia. O ponto de vista dosconjuntos foi sugerido, muito recentemente, para mudar o aspecto deteoriasestabelecidaslentamente,durantemuitosséculos.

O contexto francês e a nova arquitetura da

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análiseporCauchy

ComovistonoCapítulo6,omovimentodealgebrizaçãodaanálisemarcouamatemáticafrancesadoséculoXVIII.Masporvoltade1800iniciou-seumareaçãoaessatendência.Osmétodossintéticosvoltaramaserdefendidoseo valor atribuído à possibilidade de generalização fornecida pela álgebrapassou a ser criticado em prol de métodos que pudessem ser maisintuitivos. O ápice desse movimento ocorreu em 1811 e um de seusprotagonistas foiLazareCarnot.AntesdeanalisarmosascontribuiçõesdeCauchy, resumiremosesses acontecimentos combasenoestudo inovadorpropostoporSchubring.3

Nos últimos anos do século XVIII, Laplace adquiriu grande poder nacena francesa, sobretudo depois de se tornar ministro, com o golpe deNapoleão,em1799.Apartirdaí,elepassouaincentivarumapadronizaçãodo ensino na École Polytechnique com base na análise e na mecânica. Ocurso de análise deveria ser dividido em três partes: análise pura (ouanálise algébrica); cálculo diferencial; e cálculo integral. Além disso, aintrodução ao cálculo deveria ser feita com base no método de limites,exposto por Lacroix.4 Um processo de especialização foi colocado emmarcha, aumentando a ênfase no lado teórico do ensino e nosfundamentos,predominantesduranteaprimeiradécadadoséculoXIX.Em1811, a orientação da Écolemudou radicalmente, voltando-se totalmentepara a formação de engenheiros. Decidiu-se que era necessário removerdo programa todo conhecimento que não fosse essencial para a práticapro issional. Emmecânica, por exemplo, isso signi icava excluir as partesteóricas;eemanálise,ondeocorreuamudançamais importante,deviasevalorizar o método sintético, substituindo-se o método dos limites pelaoperaçãocomquantidadesinfinitamentepequenas.

Segundo Schubring, Lazare Carnot é o melhor símbolo da discussãosobre o rigor em análise que teve lugar na França naquele momento,anteriormenteesboçadapord’Alembert.Asprincipaiscontradiçõesdessareação consistiam em tentar obter, ao mesmo tempo, uma maiorgeneralizaçãodamatemática,masmantendooapeloà intuição.Em1797,Carnot já havia publicado uma obra sobre os fundamentos do cálculochamadaRé lexions sur la métaphysique du calcul in initesimal (Re lexõessobreameta ísicadocálculoin initesimal),segundaversãodeumtextode1785.Nessetrabalhoeleexpunhasériashesitaçõessobreosin initamentepequenos,conformesepodevernotrechoaseguir:

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Nãohouvedescobertaquetivesseproduzido,nasciênciasmatemáticas,umarevoluçãotãofelizetãorápidaquantoadaanálisein initesimal;nenhumaforneceumeiosmaissimples,nemmaise icazes,parapenetrarnoconhecimentodasleisdanatureza.Decompondo,porassimdizer,oscorposatéosseuselementos,elaparece ter indicadosuaestrutura interioresuaorganização;mas, como tudo o que é extremo escapa aos sentidos e à imaginação, só se pôde formar umaideia imperfeita desses elementos, espécies de seres singulares que tanto fazem o papel dequantidadesverdadeirasquantodevemsertratadoscomoabsolutamentenuloseparecem,porsuas propriedades equívocas, permanecer ameio caminho entre a grandeza e o zero, entre aexistênciaeonada.5

Mas sua posição mudará depois dessa data. Carnot foi exilado porrazões políticas e retornou à França em 1800, graças a Napoleão, que odesignou ministro da Guerra. Em pouco tempo, contudo, renunciou aocargo e passou a se dedicar às questões ligadas aos fundamentos damatemática, publicando, em 1813, uma nova edição de seu livro. Nessanova versão, reviu suas posições sobre a álgebra, a irmando que seusprincípios são aindamenos claros do que os do cálculo in initesimal. Talposiçãore letiaaconcepçãomaisgeraldaépoca,quevoltavaavalorizarageometria e o saber dos antigos. Inspirado por essa tendência, Carnotpassou a defender o método dos in initamente pequenos contra o doslimitesepropôsseguirosprincípiosdeLeibnizemanálise.

O retorno à geometria como ciência primordial também foi sentido nomeio dosidéologues, in luenteno contextomatemático francês, comovistonoCapítulo 6. Um exemplo éMaine deBiran, que integrou uma segundageraçãodogrupoeatacouosdefensoresdaálgebra,destacandoocaráterobscuro de seus métodos. Segundo ele, a linguagem algébrica é umaprática cega e mecânica que não possui a clareza da geometria. Umcientistapróximodessaalados idéologuesedeMainedeBiraneraAndré-Marie Ampère, que começou a lecionar na École em 1804 e se tornouprofessordeanáliseem1808.

Esse contexto, somado à proximidade entre Ampère e Cauchy, podeajudar a explicar um trecho famoso da introdução doCours d’analysealgébrique(Cursodeanálisealgébrica),publicadoporCauchyem1821.Aocaracterizar sua metodologia, ele critica a “generalidade da álgebra”:“Quanto aosmétodos, tentei imprimir-lhes todo o rigor que se espera dageometria, de modo a nunca recorrer a argumentos advindos dageneralidadedaálgebra.”6

Amençãoàgeometriaexprimeseumodoparticulardetentarconciliaro método dos limites e o dos in initamente pequenos, praticados desde1811 na École Polytechnique. Cauchy assumiu a cadeira de análise em1816 e tratou de reformar radicalmente esse curso. A direção não icou

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satisfeita de início, pois a abordagem escolhida por ele ia além dasdemandasdeumcursodeengenhariaegeravaresistênciaporpartedosalunos, por ser muito esmiuçada e re lexiva. Depois da mudança deorientação,osprofessoresdeveriamintroduziraanálisedemodosucintoeconvenienteparaamecânica,comênfaseemsuasaplicações.Comoformaderesistência,Cauchydecidiuescreverasériedeaulas introdutóriasqueconstituemoseuCoursd’analysealgébrique.Essaobracontém,portanto,osfundamentos do tipo de ensino defendido por Cauchy, que, apesar daconciliação com a geometria anunciada em sua Introdução, não segue ométododosantigos.

Esse é oprimeiro livro-textonoqual umanova visãoda análise se fezpresente. O período que vai da primeirametade do século XVIII até essetrabalho de Cauchy foi marcado pela exploração de aplicações dasferramentas do cálculo na solução de problemas ísicos, tais como o dascordas vibrantes ou o da propagação do calor. Mas esses métodosempregavamnovos conceitos teóricos, comoos de função, continuidade econvergência, que demandavam de iniçõesmais precisas. Por exemplo, aobradeCauchyestabelececritériosparaaconvergênciadesériesede ineos coe icientesda série trigonométricaquepode representaruma funçãoqualquer,jádenominada“sériedeFourier”.

Uma das característicasmais importantes domovimento que se iniciacom Cauchy é a conscientização por parte dos matemáticos de que sópoderiam ser usadas propriedades que tivessem sido explicitamentede inidas. Ou seja, a de inição de função, bem como sua propriedade decontinuidade, por exemplo, não deveria ser pressuposta implicitamente,mas enunciada explicitamente. A noção de função será então de inidaantes das noções de continuidade, limite e derivada, a imde eliminar asincertezasligadasàconcepçãosobreessasnoções.

A preocupaçãode Cauchy como rigor pode ser atestada pelo cuidadode expressar, sempre que possível, o domínio de validade de umade iniçãooudeumteorema.Essamotivaçãoo levoua introduzirasnovasnoçõesdeconvergênciadesériesedecontinuidade,etambémafornecerprovas de existência, como a de somas de séries e das soluções deequaçõesdiferenciais.

Foi justamente a arquitetura proposta por Cauchy, vista em seuconjunto, mais do que o modo de de inir este ou aquele conceito, ou dedemonstrar este ou aquele teorema, que funcionou como um divisor deáguas na história da análise. Conforme já dissemos, e repetimos, o rigor

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matemáticoé emsimesmoumconceitohistórico,portantoemprogresso.OsmatemáticosdoséculoXVIIIeramrigorososdeacordocomospadrõesdo seu tempo.Mas, segundoGrabiner, 7 quandoummatemáticodo séculoXIXpensavaemrigornaanálise,eletinhatrêscoisasemmente:

a)todoconceitoteriadeserde inidoexplicitamenteemtermosdeoutrosconceitoscujasnaturezasfossemfirmementeconhecidas;

b) os teoremas teriam de ser provados e cada passo deveria serjustificadoporoutroresultadoadmitidocomoválido;

c) as de inições escolhidas e os teoremas provados teriam de sersu icientementeamplospara servirdebaseàestruturade resultadosválidospertencentesàteoria.

OconteúdomatemáticodoCoursd’analyseseiniciacomumarevisãodosdiversostiposdenúmero.Domesmomodoqueosdemaismatemáticosdesuaépoca,Cauchyadmitiacomocerto,oudado,osistemadenúmerosqueeram considerados reais. Em seguida, ele de inia quantidade variável,distanciando-se da de inição de Euler. Segundo este, variável é umaquantidade numérica indeterminada ou genérica que inclui todos osvaloresdeterminados,semexceção.AsvariáveisdeCauchypassavamporvários valores diferentes, mas não atingiam, necessariamente, todos osvalores,istoé,elaspodiamserlimitadasaumdadointervalo.

Cauchy de iniafunção a partir da distinção entre variáveisindependentes e dependentes, já usada por Ampère. Duas quantidadesvariáveispodemserrelacionadasdemodoquedadososvaloresparaumadelaspodemosobterosvaloresdaoutra,queseráafunção:

Quandoquantidadesvariáveissão ligadasdemodoque,quandoovalordeumadelasédado,pode-se inferir os valores das outras, concebemos ordinariamente essas várias quantidadescomo expressas por meio de uma delas que recebe, portanto, o nome de “variávelindependente”;easoutrasquantidades,expressaspormeiodavariável independente, sãoasquechamamosfunçõesdestavariável.8

Apesar do caráter geral dessa de inição, os comentários subsequentesmostramqueCauchytinhaemmenteexemplosparticularesdefunção.Eleclassificaasfunçõesemsimplesemistas.Assimplessão:a+x,a−x,ax,a/x,xa, ax,logx, senx, cosx,arcsenx,arccosx.Asmistassãocompostasdassimples, comolog(cosx).

Mas, apesar de não levar em conta o que designaríamos hoje como“funçõesarbitrárias”econsiderarimplicitamenteasfunçõesassociadasàs

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curvasqueasrepresentam,ouniversodasfunçõestratadasporCauchyébemmais amplo do que o do século XVIII. Ele fornece um exemplo paracriticar a de inição de função descontínua de Euler, mostrando que afunção“descontínua”

podeserrepresentadapelaúnicaequação ,−∞<x<+∞.Logo,ela seria também “contínua”, no sentido de Euler. Isso revela que ésupér luo classi icar funções contínuas e descontínuas pela unicidade desuaexpressãoanalítica,conformefeitonoséculoXVIII.Alémdisso,Cauchyfornece exemplos de funções não analíticas, como , que nãopodem ser escritas como uma série de Taylor, contradizendo opressupostodeLagrange,quea irmavaque todasas funçõespodiamserexpressasporumasériedessetipo.

Durantemuito tempoahistoriogra iadamatemática enxergouCauchycomoopaifundadordomovimentoderigornaanálise,atéquecomeçarama ser identi icados alguns erros em sua concepção de continuidade. Asduas imagens são as duas faces damesmamoeda. Ao procurar na obradessematemático francêsantecedentesdasnoçõesmodernasemanálise,podemos nos deparar com erros que frustrarão nossas expectativas.PensamossermaisproveitosoverCauchycomoumhomemdeseutempo,quebuscavaumtipoderigorquejánãoeraodoséculoXVIII,fundadonaalgebrização,mas que tambémnão era o rigor típico do século XIX. Paraele,oconceitodecontinuidadeera fundamental,eessa ideiaseassociavaaouniversodascurvas.Anoçãodefunçãoserelacionavaimplicitamenteaessascurvas,umavezqueexemplosdefunçõesquenãopodemservistascomo curvas ainda não intervinham na matemática da época. Veremos,adiante,queumpassofundamentalnessadireçãoserádadoporDirichlet.

DeclíniodaFrançaeascensãodaAlemanha

Durante as primeiras décadas do século XIX, a matemática francesa foiprofundamente in luenciada pelo legado de Cauchy. Mas no ideal daRevolução,ilustradopelopensamentodeLagrangeeLaplace,ajustificativa

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para qualquer empreendimento teórico permanecia atrelada à suarelevância para a resolução de problemas de ísica ou de engenharia. Amatemáticanãoeraa ferramentacentraldeumabuscaespeculativapelaverdade, e sim o elemento principal de uma cultura ligada à engenharia.Essepapeldamatemáticaajudouacon igurarumcertoespíritodecorpona elite francesa, que adquiria uma identidade cientí ica. A Revoluçãodemocratizara o ideal meritocrático, que substituiu os critérios denascimento no acesso aos serviços. A admissão na École Polytechniquepassou a se dar por concurso e a matemática ganhou status nessameritocracia, uma vez que tal saber era tido como capaz de medir ainteligência.

O objetivo do ensino da matemática era fornecer aos estudantesmétodosabstratossuscetíveis,pelapróprianatureza,deaplicaçõesomaispossívelgerais.Nessecontexto,aanálisedetinhaumaposiçãohegemônica.No iníciodo séculoXIX, omodomais característicode combinar a análisematemática com amecânica era dado namecânica celeste, combase nosprincípiosdefendidosporLagrangeeLaplace.A inalidadeeraempregarequaçõesdiferenciaisparadescreverumnúmerocadavezmaisamplodefenômenosquepassavamaprescindirdeexplicação ísica, jáquepodiamserdescritoseprevistospormeioda resoluçãodaequação.A soluçãodaequaçãodiferencialseidentificavaàsoluçãodoproblema.

A ísicamatemáticaeamecânicacelesteeramosprincipaiscamposdepesquisa dos matemáticos franceses no século XIX. Eles procuravamestudar as equações que governam fenômenos ísicos em mecânica dosluidos,eletrostáticaeeletrodinâmica,teoriadocaloredaluzetc.Aanálisecomplexa,c desenvolvida por Cauchy, emergiu do estudo de equaçõesdiferenciais parciais, ligadas a problemas ísicos. Em 1824, o secretárioperpétuodaAcademiadeCiênciasdeParis, JosephFourier, ao relatarosavanços daquele ano, proclamava: “O tempo das grandes aplicações dasciênciaschegou.”9

Grattan-Guinness10 distingue no primeiro terço do século XIX doisprincipaisgruposatuandonaFrança:teóricos,preocupadoscomanáliseefísicamatemática,comoCauchyeLiouville;ematemáticosaplicados,queseocupavamdemecânicaeengenharia,comoNavierePoncelet.Existiaumaseparaçãoentre,deumlado,a ísicamatemáticaeamecânicaceleste;e,deoutro, a mecânica que lidava com artefatos para a engenharia ou aindústria. Além disso, havia também a geometria, que trabalhava cominstrumentosópticosesobreviviadesdeoséculoXVII.MesmoparaCauchy

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o rigor não era uma restrição nem um objetivo em si mesmo; era acondiçãoparaodesenvolvimentodemétodosgeraiscomvistasàaplicação.Apráticadamatemáticanãoeramuitovalorizadaporsimesma,sobretudoem comparação com seu desenvolvimento na Alemanha das décadasseguintes.

Aoa irmarmosqueapesquisamatemáticanaFrança inspirava-senasaplicações não queremos dizer que sua orientação não fosseeminentemente teórica. O domínio de aplicação de uma teoria era tantomaiorquantomaiselevadoeraseupontodevista.Esseprincípio levavaàbusca de uma ciência derivada de uma ideia uni icadora, caso da análisepara Lagrange. Omesmo princípio levou Fourier a constituir sua análisesobre as séries trigonométricas. Logo, como a irma B. Belhoste,11 omovimento de teorização não se opunha às aplicações; encontrava nelassua inspiração. O interesse pela solução de problemas de ísica ou deengenhariaeabuscaporteoriascadavezmaisgeraiseramosdois ladosdamesmamoeda.

Daísurgiuacrençadequeamatemáticadeveriaserabaseparatodooconhecimento,crençadefendidanaclassi icaçãodasciênciaspropostapelopositivista Auguste Comte em 1842. Para ele, a matemática constituía oinstrumentomaispoderosoqueamentehumanapoderiausarnoestudodos fenômenos naturais, pois sua universalidade seria a imagem do quetodaaciênciadeveriaalmejar.Logo,amatemáticadeveriaseropontodepartidadequalquertreinamentocientíficoeintelectual.

Mesmo Cauchy é visto por alguns historiadores, entre os quais U.Bottazzini,12 comoum típico “engenheiro-cientista”. Sua predominância nacena francesa durante a primeira metade do século XIX seria, de certomodo, um impedimento à recepção de estudos vindos de fora. Aautossu iciência do pensamento francês teria levado a um atraso naincorporação da nova matemática que se desenvolvia sobretudo naAlemanha.Poucoseramosfrancesesque,comoHermiteeLiouville,tinhaminteresse pelas pesquisas que Dirichlet e Jacobi passaram a promover apartirdosanos1840.Aospoucos,Parisdeixavadeseroprincipal centroda atividade matemática e a École Polytechnique perdia seu caráterinovador. O clima de autoritarismo do inal do Segundo Império tornouambíguo o papel da matemática, que era divorciado da pesquisa. Seuestudo era incentivado, acima de tudo, por sua utilidade prática notreinamentodeengenheiroseasociedadese interessavacadavezmenosporpesquisasteóricaseabstratas.

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O contrário acontecia na Alemanha. Por volta dos anos 1850, asuniversidades alemãs adquiriram uma posição dominante na cenainternacional e se tornaram o destino principal dos estudantes quequeriamse atualizar emmatemática avançada.A invasãonapoleônica, noiníciodoséculoXIX,motivouanecessidadedeelevaroníveldeso isticaçãomilitarecientí icadaAlemanha.Osalemãesexplicavamaprópriaderrotaapontando para o alto nível de educação cientí ica dos franceses,consequência da reforma educacional implantada após a RevoluçãoFrancesa.OtraçocaracterísticodasuniversidadesquesedesenvolviamnaAlemanha a partir de 1810 era o papel indissociável entre o ensino e apesquisa.Essaestreitarelaçãopermitiaaosprofessoresiralémdoscursospadronizados e elementares, baseados em livros-texto, para introduzirnovosresultados,ligadosapesquisas.

O estilo dos matemáticos alemães da época pode ser explicado, emgrandeparte,pelaproximidadecomafaculdadede iloso iaepelocontatocom ilósofos. Promoviam-se, assim, orientações mais teóricas, motivadastambémporpressuposições ilosó icas.Ogrupodosneokantianosdoiníciodo século XIX, que se opunha ao idealismo de Hegel, exerceu fortein luência sobre diversos matemáticos alemães algumas décadas depois.Os valores neo-humanistas enxergavam a matemática como uma ciênciapura, o que era expresso na visão de vários pensadores da época. Osconceitosfundamentaisdeviamserdefinidospormeiodeoutrasdefiniçõesclaramenteexplicitadasenuncasebasearemintuições.

Umdosestudiososmais importantesadefenderessepontodevistafoiAugust Leopold Crelle, por ter fundado, em 1826, uma das maisprestigiosasrevistasnaquelemomento,editadaporeleatésuamorte,em1855. Crelle era próximo de Alexander von Humboldt e, em 1828, ao sereferiràmatemática,afirmou:

A matemática em si mesma, ou a assim chamadamatemática pura, não depende de suasaplicações.Elaécompletamenteidealista;seusobjetos,número,espaço eforça,nãosão tomadosdo mundo externo, são ideias primitivas. Eles seguem seu desenvolvimentoindependentemente,pormeiodededuçõesapartirdeconceitosbásicos.…Qualqueradiçãodeaplicaçõesouligaçãocomestas,dasquaiselanãodepende,são,portanto,desvantajosasparaaprópriaciência.13

Duas universidades ganharam destaque no decorrer do século:Göttingen e Berlim. A primeira, mais antiga, inicialmente encarava amatemáticacomoumadisciplinaque também incluíacursos técnicosedeaplicações, como engenharia, entretanto essa orientação foi perdendo

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força. Gradualmente, os professores universitários aumentaram asexigênciasintelectuais,emresposta,parcialmente,aomodelofrancês,mastambém devido à melhoria no nível dos estudantes. Os matemáticos nãoerammais vistos como práticos; participavamde uma elite intelectual deprofessoresuniversitáriosquevalorizavaosaberpuro,principalmentenocontextodashumanidadesenfatizadasporHumboldt.

C.F.GaussfoiprofessordaUniversidadedeGöttingenatésuamorte,em1855.A interaçãoentre ensinoepesquisa foi incrementadadepoisdessadata, com a vinda de Dirichlet de Berlim. Tal aquisição deu início a umanovafaseparaamatemáticanessauniversidade,comapresençatambémde Riemann. Os cursos de ambos inauguraram o processo quetransformaria essa universidade, no inal do século XIX, com a chegadaaindadeKleineHilbert,emumdoscentrosmatemáticosmaisimportantesdo mundo, ao lado da Universidade de Berlim. Dirichlet e Riemannseguiam as linhas iniciais traçadas por Gauss, promovendo uma visãoconceitual e abstrata damatemática. Ainda queDedekind não tenha sidoprofessor em Göttingen – Dedekind não teve uma carreira universitáriaaté1870,quandooptoupor entrarna escola técnicade sua cidade–, eletambém pode ser incluído nesse grupo, uma vez que frequentou essauniversidade durante alguns anos, primeiro como aluno de Dirichlet edepois participando ativamente nas discussões que imprimiramorientações metodológicas comuns. Como defende J. Ferreirós, 14 assemelhanças entre as preferências teóricas de Dirichlet, Riemann eDedekindpermitemintegrá-losemum“grupodeGöttingen”.

Na segunda metade do século XIX, com a posição central que aUniversidade de Berlim adquiriu em relação às outras universidadesalemãs,umanovavisãodamatemáticapassouaprevalecer,dominadapelateoriadasfunçõesdesenvolvidaporWeierstrasseseuscolaboradores.Noinício, essematemático ensinava tópicos relacionados à ísicamatemática,mas, aos poucos, a busca do rigor aritmético na análise se tornou suaprincipal preocupação, aomesmo tempo emquedecaía o interesse pelasaplicaçõesepelageometria.d

OscursosdeWeierstrasscomeçaramporvoltadosanos1860,quandofoifundadoumsemináriomatemáticonaUniversidadedeBerlim,queteveum papel decisivo na constituição do grupo que icou conhecido como“escola de Weierstrass”. A necessidade de re letir sobre o rigor a loroucom seus estudos sobre a teoria das funções analíticas, iniciados nessaépoca. Mais tarde, a concepção de rigor desenvolvida em sua teoria das

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funções fez com queWeierstrass rejeitasse a abordagem de Cauchy. EmBerlim, a matemática passou a se basear em noções puramentearitméticas. Nessa atmosfera, Cantor recebeu sua educação matemáticaentre1863e1869.

Weierstrass preferia apresentar seus resultados nos cursos, por issoelespermanecerampraticamente inéditos até1895, quando foi editadooprimeiro volume de suas obras.Mas, durante os anos 1870, sua fama seespalhou. Muitos convidados vinham assistir a seus cursos e escreviamanotações que acabavam circulando. No inal do século, a noção de rigordefendida porWeierstrass se tornou predominante, repousando sobre aaritmetizaçãodamatemática,conformeessatendênciafoidenominadaporFelix Klein em 1895, na ocasião do aniversário de oitenta anos deWeierstrass.

Esseéocontextoemqueoconceitodenúmero,desvinculadodanoçãodequantidadeedequalquerassociaçãocomarealidadeexterna, tornou-se um dos objetos principais da matemática. As tentativas anteriores deassegurarasbasesontológicasdosconceitosfundamentaisdamatemáticaa partir da relação com uma certa realidade, não importa qual fosse,colocavamosalicercesdessadisciplinanomundoexterno.Noentanto, asdi iculdades encontradas na legitimação das operações com númerosnegativos e na conceitualização dos imaginários, juntamente com asdiscussões epistemológicas sobre o cálculo in initesimal, levaram aodesenvolvimentodeumamatemáticabaseadaemconceitosabstratosquepassoua serdesignadade “pura”.Antesdepassarmos aomodo comoosnúmeros reais (incluindo os irracionais), negativos e complexos foramadmitidoscomoobjetosmatemáticos,apresentaremosumbrevepanoramade seuestatutoantesdessemomento, a imdeenfatizara transformaçãonomododeseconceberessesnúmeros.

Surdos,negativoseimagináriosnaresoluçãodeequações

No livro X dosElementos de Euclides são listadas diversas construçõescujassoluçõessãodadasporsegmentosderetaclassi icadosemracionaise irracionais. As soluções racionais seriam aquelas comensuráveis com aunidadeoucujoquadradofossecomensurávelcomoquadradoconstruído

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sobre a unidade (comovisto nos Capítulos 2 e 3). As outras soluções sãoditas“alogos”,termoquepodesertraduzidocomo“semrazão”(irracional).

Duranteodesenvolvimentodaciênciaárabe,muitosdosnomesgregosforam traduzidos e depois usados pelos europeus. Os seguidores de Al-Khwarizmiresolviamequaçõeseadmitiamocasoderaízesirracionais.Aotraduzir o termo gregoalogos, que também possui o sentido de“inexprimível”, essas soluções foram chamadas de “mudas” ( jidr assam).Nas versões latinas, a designação árabe foi, algumas vezes, traduzidapor“números surdos”, que é como os irracionais icaram conhecidos. Comomencionado no Capítulo 4, os métodos algébricos adquiriram grandeautonomiacomosárabes(começandoa icarindependentescomrelaçãoàgeometria). Além dos irracionais quadráticos, eles calculavam raízes deordem qualquer, obtidas pela inversão da operação de potenciação eaproximadas por métodos elaborados que também permitiam resolverequaçõesnuméricas.

Enquanto se empregava o critério da homogeneidade das grandezasgeométricas,ouseja,enquantooscomprimentoseasáreassópodiamseroperados com objetos da mesma natureza, essas grandezas não eramidenti icadas a números. Mesmo na geometria de coordenadas propostaporDescartes, ainda que ele tenha ultrapassado a lei de homogeneidade(como visto no Capítulo 5) não havia necessidade de se considerarexplicitamente a natureza dos números reais. Descartes se baseava emumateoriadasproporçõesexatasquepermitiarepresentarascurvasporequações, sem se preocupar se essas proporções podiam ser expressaspor números. O problema da natureza dos números, antes da segundametade do século XVII, se apresentava sobretudo no contexto dasoperaçõesaritméticasedaresoluçãodeequações.

Os números irracionais que intervinhamnosmétodos de resolução deequações intrigaram os algebristas europeus dos séculos XV e XVI. UmbomexemploéBombelli, quepropôsummododeaproximaro resultadodoproblemaqueescreveríamoshojecomosendoodeencontrarasoluçãoda equaçãox2=2.Elesabiaqueovalordaraiz,nessecaso,deveriaestarentre1e2, logo,ele reconheciaqueessenúmerodeveria serconstituídopela unidade mais o que sobra, quando subtraímos 1 dessa raiz.Simbolizandoaraizporx,oqueaindanãoerafeitonaépocadeBombelli,teríamosx=1+(x−1).Maselesabiaainda,aseumodo,quep o i sx2 = 2. Dessa igualdade e da anterior conclui-se que

. Invertendo os numeradores e os

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denominadores, temos que . Mas o valor dex − 1 podesernovamentesubstituídonodenominador,etemos:

Essemétodo, denominado atualmente de “frações contínuas”, tem suaorigem no procedimento daantifairese (descrito no Capítulo 2) e forneceuma aproximação para a raiz da equação expressa hoje como , dadapor

Durante o século XVI, os números surdos apareciam frequentementecomo raízes de equações e eram, muitas vezes, aproximados por somasin initas. No entanto, o estatuto desses números ainda não estava bemde inido,ouseja,nãosesabiaseelesdeviamserrealmenteconsideradosnúmeros. Em 1544, o matemático alemão Michael Stifel resumiu asambiguidades que devem ser enfrentadas ao se aceitar esse tipo denúmero:

Discute-se,comjustiça,sobreosnúmerosirracionais,sesãonúmerosverdadeirosou ictícios.Defato,porquenascoisasquedevemserdemonstradaspor igurasgeométricas,quandoestamossem os números racionais, sucedem-se os irracionais, e demonstram principalmente aquelascoisas que os números racionais não podem demonstrar …; somos movidos e pensamosconfessarqueelessãoverdadeiros,asaber,apartirdosefeitosdeles,quesentimosseremreais,certoseconstantes.

Masoutrascoisasnosmovemparaumaafirmaçãodiversa,deformaquepensamosemnegarque os números irracionais são números. A saber, quando tivermos tentado subordiná-los ànumeração, a serem proporcionais a números racionais, descobriremos que eles fogemperpetuamente,demodoquenenhumdelespodeserapreendidoemsimesmoprecisamente;éoquepensamosnasresoluçõesemqueaparecem,comomaisabaixotalvezmostrarei.Masnãopodeserditoumnúmeroverdadeirooquecarecedetalprecisãoequenãotemcomnúmerosverdadeiros nenhuma proporção conhecida. Da mesma forma, portanto, que número in initonão é número, o número irracional não é um número verdadeiro, ele permanece sob certanuvemdeinfinidade.15

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Stifelviaosirracionaiscomonúmerosqueescapamconstantemente.Aoinvestigar proposições sobre iguras geométricas substituindo linhas porsuasmedidas,eleobservavaqueos irracionaisnãoestãoemumarelaçãode proporção com números verdadeiros (os racionais). A “nuvem dein inidade” na qual está imerso um número irracional pode sercompreendida também pelo fato de esse número escapar darepresentação decimal. Em 1585, o holandês Simon Stevin publicou umtexto de popularização em holandês e francês, chamadoDe Thiende (Odécimo, traduzido para o francês como La disme), defendendo umarepresentação decimal para os números fracionários e mostrando comoestender os princípios da aritmética com algarismos indo-arábicos pararealizar cálculos com tais números. Apesar de seu sistema ser bastantecomplexo, semousodevírgulas, o fatode escrever as casasdecimaisdeum número tornava mais evidente a possibilidade de se aumentar onúmero de casas, o que é útil se quisermos aproximar um númeroirracionalporumracional.

A introdução da representação decimal com vírgulas foi um passoimportante na legitimação dos irracionais, uma vez que fornecia umaintuiçãodequeentredoisnúmerosquaisqueré sempreviável encontrarum terceiro, aumentando o número de casas decimais. Nota-se, pormeiodessa representação, que, apesar de os irracionais escaparem, é possívelque racionais cheguem muito perto. Não por acaso, Stevin foi um dosprimeiros matemáticos do século XVI a dizer que o irracional deve seradmitidocomonúmero,umavezquepodeseraproximadoporracionais.

EXEMPLODEAPROXIMAÇÃODEIRRACIONAISPORRACIONAIS

As cinco primeiras aproximações de obtidas pelo método das frações contínuas são:

ILUSTRAÇÃO1

Temos também uma ilustração da aproximação do irracional de racionais: 1,4, 1,41,1,414,1,4142…

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ILUSTRAÇÃO2

AstécnicasempregadasparaasoluçãodeequaçõesevoluíramduranteosséculosXVIeXVIIparaumateoriadasequaçõesquebuscavafórmulasgeraisparaexprimirasraízes.OsimbolismodeViètefoiaospoucossendoincorporado e permitiumaior generalidade no tratamento das equações.OsprimeirosacolocaraquestãodaexistênciadasraízesdeumaequaçãoqualquerforamGirardeDescartes,naprimeirametadedoséculoXVII.

Em1629,AlbertGirardintroduziuoproblemadesaberqualonúmeroderaízesdeumaequaçãoqualquer,problemaquefundaumaperspectivamaisgeraldeanálisedasequações.Seulivro Inventionnouvelleenalgèbre(Nova invenção em álgebra) exprime, já no subtítulo, o objetivo de“reconhecer o número de soluções que elas [as equações] recebem,incluindo diversas coisas necessárias à perfeição desta divina ciência”. 16Para obter a desejada generalidade, ele a irma que todas as equaçõespossuem tantas soluções quanto o grau da quantidade de maior grau, oque consiste em uma primeira versão do que conhecemos, hoje, como“teoremafundamentaldaálgebra”.

OTEOREMAFUNDAMENTALDAÁLGEBRA–EXEMPLOS

Onúmeroderaízesdeumaequaçãoédadopeloseugrau:

•2x4+5x3−35x2−80x+48=2(x+3)(x+4)(x−4)(x−½)=0possuiquatroraízes:−3,−4,4e½.

•x3−4x2−2x+20=(x2−6x+10)(x+2)=0possuitrêsraízes:3+i,3−ie−2.•x3−2x4−7x3−4x2=x2(x+1)2(x−4)=0possuicincoraízes:0,−1(amboscommultiplicidade2)e4.

•x3+x2−2x−2=(x2−2)(x+1)=0possuitrêsraízes:− , e−1.

SegundoGirard,todasasequaçõesdaálgebrarecebemtantassoluçõesquanto a denominação da mais alta quantidade, exceto as incompletas.Obviamente, para admitir esse número de soluções, será necessárioadmitir comoválidas as soluçõesqueeledesigna “impossíveis”.Masparaque servemessas soluções se elas são impossíveis?Girard respondequeelasservemporsuautilidade,massobretudoparagarantirageneralidade

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doresultado:

Poderíamos perguntar para que servem as soluções que são impossíveis, respondo que paratrêscoisas:paraacertezadaregrageral,paraacertezadequenãoháoutrasoluçãoepelasuautilidade.17

Em seguida, Girard acrescenta que as soluções podem ser “mais quenada” (“positivos, incluindo os irracionais”), “menos que nada”(“negativos”),oudotipo Algunsanosmaistarde,Descartestambémiráadmitir que uma equação possui tantas raízes quantas são as dimensõesdaquantidadedesconhecida.Noentanto, eledestacaquealgumasdessasraízes podem ser “falsas oumenos que nada” e investiga quantas são asverdadeiras e quantas são as falsas para uma equação qualquer. Concluientãoque:

tanto as verdadeiras raízes quanto as falsas não são sempre reais, mas às vezes apenasimaginárias;oquequerdizerquepodemossempreimaginartantasquantodissemosemcadaequação, mas às vezes não há nenhuma quantidade que corresponda àquelas queimaginamos.18

Oexemploutilizadoparailustraressecasoéodaequaçãodadaporx3−6xx+13x−10=0,paraaqualpodemosimaginartrêssoluções,dasquaisapenasumaéreal,dadapelonúmero2.Quantoàsoutras,mesmoqueasaumentássemos, diminuíssemos oumultiplicássemos, não conseguiríamosfazercomquedeixassemdeserimaginárias.Apalavra“imaginária”,talvezdevido à grande in luência da obra de Descartes, passará a ser a maisusadaparadesignaressasquantidades.

Resumindo, vimosqueo estudodonúmerode raízes deuma equaçãotrouxe a necessidade de se considerar raízes irracionais, negativas eimaginárias.Osnúmerosirracionaiseramentendidosdemodogeométrico,porém, a exigência algébrica motivou a re lexão sobre o estatuto dasquantidades negativas e imaginárias. Os números negativos já tinhamaparecido em alguns momentos da história, mas em relação com asoperações aritméticas. Enquanto um número negativo −a era entendidocomo0−a,nãosepunhaoproblemadedefini-loemsimesmo.

Fibonacci usava números negativos em diversos problemas comovalores intermediários e comosoluções.Contudo, ele tentava transformaroscasosemqueessasquantidadesapareciam–chamadosinsolúveis–emoutros que permitissem sua interpretação. Em alguns tratados do séculoXVos resultadosnegativoseramusados semgrandesdiscussões.EmsuaAlgebra, Petrus Ramus enuncia as operações aritméticas para números

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positivos e negativos, além de operar com essas quantidadessistematicamente.Apesardenãoinvestigaremsuanatureza,osalgebristasdosséculosXVeXVIlidavamcomessasquantidadesnoscálculosdemodopragmático, uma vez que tinham por objetivo resolver equações. Logo,apesar de não admitirem números negativos como solução da equação,podiamaceitá-losnoscálculos.

Cardano usava as mesmas regras de sua época para operar comquantidades negativas, e re letiu sobre a consistência dessas operações.Ele admitia quantidades negativas como raízes de equações, no entantodesignava essas soluções como “ ictícias”. É interessante observar quenúmerosnegativos,quandoapareciamnoscálculos,podiamserchamados“negativos”,entretanto,quandorepresentavamasoluçãodeumaequaçãoeram ditos “ ictícios”. Isso mostra que, apesar do reconhecimento dautilidade prática dessas quantidades, elas não eram consideradasnúmeros. Os objetos admitidos pela matemática se confundiam com asgrandezasgeométricas.

Uma situação semelhante à dos números negativos ocorria para asraízesdessesnúmeros.VimosnoCapítulo4queométododeCardanopararesolver equações cúbicas gerava um problema no caso das chamadasequações“irredutíveis”,como x3=15x+4.Éfácilver,substituindoovalordexpor4,queessaéumaraizválidadaequação.Contudo,ométodofaziaaparecerraízesdenúmerosnegativoscomointermediáriasnocálculodasraízesdasequaçõescúbicas,emborasomenteasraízesracionaispositivasfossem admitidas como solução. Apesar de a irmar explicitamente que araizquadradadeumnúmeropositivoépositivaearaizquadradadeumnúmero negativo não é correta, Cardano não se privava de operar comraízesdenúmerosnegativos.

Porexemplo,diziaele,sequeremosdividironúmero10emduaspartescujo produto seja 40, “é evidente que este problema é impossível, maspodemosfazeroscálculosdomodoquesesegue”:19dividimos10emduaspartesiguais,obtendo5,quemultiplicadoporsimesmo,dá25;subtraímosde 25 o produto requerido, ou seja, 40, e restará m15. Colocando talproblema em linguagem atual: deseja-se determinar números x ey quesatisfaçamx+y=10ex.y=40,oqueéequivalenteadeterminarasraízesdaequaçãox2−10x+40=0obtidaapartirdessas igualdades.Ospassosacimacorrespondemaocálculode

A solução deveria ser justi icada geometricamente, e Cardanoapresentava uma tentativa interessante para suprir a ausência de

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representação geométrica natural. Segundo as proposições de Euclides, aequação de que tratamos aqui exigiria a construção de um quadrado deáream15.ÉcomosetivéssemosumasituaçãoequivalenteàdaproposiçãoII-5deEuclides,estudadanoCapítulo3,quea irmaserAD×DB+CD2 =CB2=CBKI.

DividindoosegmentoABdecomprimento10emdoissegmentosiguaisedesiguais,queremosencontraropontoDqueresolveoproblema,comona Ilustração 3. Para isso, seria necessário retirar do quadrado CBKI, deárea25,umretângulodeárea40(igualaoprodutodeADporDB).Sendoassim,oquadradoemCDdeveriateráream15.

ILUSTRAÇÃO3AjustificativageométricadeCardanoparaassoluçõesdex2−10x+40=0.

Paraencontrarumsentidogeométricoparaaregradecálculoutilizada,Cardano observava que 40 é o quádruplo de 10, logo, queremos que oproduto AD ×DB seja o quádruplo de AB. Devemos, portanto, retirar deCBKI o quádruplo de AB. Se restasse algo, a raiz quadrada dessaquantidade,respectivamentesomadaesubtraídadoladodeCBKI,dariaoresultadoprocurado.MascomooresultadoénegativoeadiferençaentreCBKI e o quádruplo de AB ém15, essa raiz seriaRm15, quantidade que,respectivamentesomadaesubtraídade5,nosdariaasoluçãodesejada.

Essas soluções eram escritas como “5p Rm 15” e “5m Rm 15”, eCardanoa irmavaque“fazendoabstraçãodastorturas in ligidasaonosso

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entendimento”podemosconcluirqueoprodutodessesdoisnúmerosé40,ouseja,“25mm15quadest40”.Noentanto,oquadradoCBKInãopossuiamesma natureza do segmentoAB, logo, não possui amesma natureza doquádruplodeAB,queé40,pois“umasuper ícieépornaturezadiferentedeumnúmeroedeumareta”.Asquantidadesobtidas(5 pRm15e5mRm15)são,portanto,a irmavaCardano,“realmenteso ísticas”,umavezquepodemosrealizarcomelasoperaçõesquenãopodemos“realizarnemcomosnúmerospuramentenegativos,nemcomosoutros”.

A seu modo, Cardano realizava a multiplicação de por e obtinha como resultado 25 − (−15) = 40. Todavia, para

justi icar geometricamente essa operação, era obrigado a utilizarquantidades “so ísticas” que permitiam a realização de operações comoretirar um segmento de um quadrado. Esse é um dos indícios de queCardano icava dividido entre assumir as operações algébricas por simesmasoutentarjustificá-lasgeometricamente.

A operação comnúmeros negativos também será questionada. Apesardeterempregadoanteriormentearegradossinais(“menoscommenosdámais”),Cardanopassaráanegá-la,justi icando,demodogeométrico,queoresultado deve ser menos. Para ele, era necessário dar um sentidogeométrico às operações algébricas, embora elas funcionassem bem noscálculos.

Mencionamos no Capítulo 4 que R. Bombelli resolveu o problema decalcular a raiz da equação que escrevemos hoje como x3 = 15x + 4.Aplicando a fórmula de Cardano, obtemos

A raiz seria dada, portanto, por:. Por métodos de tentativa e erro, sabe-se que

essasomadevedar4.Obviamente, Bombelli não usava essa notação. Designando a raiz

quadradaporR.q.earaizcúbicaporR.c.,escreviaqueR.c.2.p.dm.R.q.121+R.c.2.m.dm.R.q.121. Observamos que ele usava a notaçãodm.R.q.121 para

,oqueédiferentedeR.q.m.121. Issoindicaqueasuanotaçãoparaprivilegiavaaoperaçãorealizadacomessenúmeroenãoonúmero

obtidocomoraizdeumaquantidadenegativa.Omaisinteressantedessanotaçãoéquep.dm.,queéaabreviaçãopara

piùdimeno,emitaliano,designaqueestamossomandoaraizquadradadonúmero negativo 121 em.dm., abreviação demeno di meno, designa asubtração dessa mesma quantidade. Por meio de operações com essesnúmeros, Bombelli concluía que o valor inal era 4. Para enunciar as

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operaçõescomosnúmerosp.dm.em.dm.,Bombelliforneciaalgoritmosquepermitiam calcular suas multiplicações por qualquer outro número,a irmando inclusivequem.dm. ×m.dm. dám., oqueé equivalente adizerq u e . Isso mostra que Bombelli admitia enunciarregrasdecálculocomessesnúmeros.

Os números imaginários foram abordados em seu primeiro livro,juntamente com de inições de conceitos elementares, como potências,raízesebinômios,alémdasoperaçõesqueosenvolviam.Elereconheciaaexistência das raízes negativas e seguia adiante, a irmando que essasexpressões erammais “so ísticas”que reais (aquali icaçãode “so ísticas”para essas quantidades indica que elas produzem so ismas). É o quepodemospercebernotrechoabaixo:

Encontrei um outro tipo de raiz cúbica composta, muito diferente das outras, no capítulo do“cuboigualatantoenúmero”,quandoocubodaterçapartedotantoémaiorqueoquadradodametadedonúmero,comonessecapítulosedemonstrará,…porquequandoocubodoterçodo tanto émaior que o quadradodametade do número, o excesso não se pode chamar nemmais nemmenos, pelo que lhe chamarei depiùdimeno, quando se adicionar, emeno dimenoquando se subtrair. … E essa operação é necessária … pois sãomuitos os casos de adicionarondesurgeessaraiz,…quepoderápareceramuitosmaisso ísticaquereal,tendoeutambémessaopinião,atéterencontradoasuademonstração…masprimeirotratareideosmultiplicar,escrevendoaregrademaisedemenos.20

Emseguida, elepassaa enunciaras regrasde cálculo.Ahistoriogra iaretrospectivadamatemática,praticada,porexemplo,porBourbaki, chegaaa irmarquepiù,meno,menodimenoepiùdimenosão,respectivamente,1,−1,−iei.SobretudoporqueBombelli,nocapítulo“Summaredi p.dim.etm.di m.” , apresenta um importante axioma que revela que não se podesomarpiùcompiú.di.meno.Essaideiaévistacomoumaprimeiranoçãodeindependêncialinearentreosvaloresrealeimaginário.

Poderíamos,comefeito,estabelecerumacomparaçãoentreasregrasdeBombellieaquelasqueutilizamosatualmente,porém,dizerquepiù,meno,meno di meno epiù di meno são, respectivamente, 1, −1, −i ei, soainadequado. A razão mais forte para nos precavermos dessa associaçãoapressadaéqueo símbolo i seráutilizado comoumaunidade imaginária,ao passo quepiùdimeno emenodimeno contêmem suas expressões asideias de adição e de subtração, ou seja, relacionam-se a operações.Parece-nos valioso insistir, do ponto de vista da história da matemática,q u epiù di meno emeno di meno, mesmo tendo, respectivamente, osigni icadode ,nãosigni icamosnossosie−i.Ossinaisqueprecedem as raízes de −1, no texto de Bombelli, indicam que essas

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quantidadesnãosãoindependentes;sãosempresomadasaousubtraídasdeumnúmeroreal.

A obra de Bombelli não teve muita repercussão, e o emprego dosnúmerosnegativosedesuasraízesaindainquietavaosmatemáticosatéoséculo XVII, com exceção do caso em que intervinham nas operações. Aintrodução de uma nova notação, com os trabalhos de Viète, desviou aatençãodosmatemáticosquesucederamosalgebristasdoséculoXVI,eelenão admitia nem números negativos e imaginários como raízes deequações,apesardeoperarcomaregradossinaisdemodopragmático.

Será novamente no contexto do estudo geral do número de raízes deuma equação que Girard e Descartes irão admitir soluções negativas eimaginárias. Ainda que Descartes chamasse de soluções “falsas” asquantidadesnegativas,eleasadmitiacomosoluçõestãoválidasquantoaspositivas. Jáos coe icientesdas equaçõeseramconsideradosquantidadespositivas,poispossuíamumsentidomultiplicativoerepresentavamobjetosgeométricos. Logo, ainda que se operasse com números negativos, elesaindanãoeramtidoscomonúmeros,comomesmoestatutodospositivos.

EssaconcepçãoserátransformadanasegundametadedoséculoXVII.Olivro de ArnauldNouveaux éléments de géometrie (Novos elementos degeometria)trazoprimeirodebateexplícitoentredoismatemáticossobreomodo de conceber as quantidades negativas. Schubring21 mostra queArnauldrecorreajusti icativasgeométricas,similaresàsdeCardano,paradefenderque “menos commenosdevedarmenos”. Seuopositor,Prestet,mencionado no Capítulo 6, a irma, ao contrário, que as quantidadesnegativas devem ter omesmo estatuto das positivas. Além disso, a regradossinaisdeveserprovadaalgebricamenteenãogeometricamente,comoCardanohaviapropostoeArnauldjustificado.

Essas posições darão origem a um debate entre Arnauld e Prestet arespeitodoestatutodasquantidadesnegativas.Umanovidadeéquesuasconsideraçõeseramescritasemfrancêsenãoemlatim,comoantes.Logo,tiveram grande impacto nosmeios cultos franceses até o início do séculoXVIII. As discussões nesse período empregavam argumentosepistemológicos que remetiam à realidade das quantidades negativas.Enquantoocritériodeexistênciaprevalecia,aefetividadedaoperaçãocomasquantidadesnegativasseopunhaàadmissãoplenadessasquantidadescomo objetos matemáticos. Mas essa contradição não tinha granderepercussão na comunidadematemática francesa e não constituiria umacrise epistemológica até meados do século XVIII, quando o panorama

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começouasetransformar.

NúmerosreaisecurvasnosséculosXVIIeXVIII

DuranteoséculoXVII,diversos trabalhosmostraramexemplosdecurvasque eram dadas por uma sucessão in inita de operações algébricas. Osnúmerosirracionaiserammanipuladoslivrementesemqueoproblemadesua natureza matemática precisasse ser investigado. Pascal e Barrowa irmavamquenúmerosirracionaisdeviamserentendidossomentecomosímbolos, não possuindo existência independente de grandezasgeométricas contínuas. Um número como , por exemplo, deveria serentendidocomoumagrandezageométrica.

Com Leibniz e Newton, o cálculo in initesimal passou a usarsistematicamenteasséries in initas.Anoçãodequeaumpontoqualquerda reta está associado um número icava implícita. Newton, que tambémpensava que os irracionais deviam ser associados a grandezasgeométricas,concebeuacontinuidadeengendradapelomovimento:

Não considero as grandezasmatemáticas formadas de partes tão pequenas quanto se queira,mas descritas por um movimento contínuo. As linhas são descritas e engendradas não pelajustaposição de suas partes, mas pelo movimento contínuo de pontos; as super ícies, pormovimentoscontínuosdelinhas;ossólidos,pelomovimentocontínuodesuperfícies.22

Nesse período, o cálculo de áreas já estava distante da tradiçãoeuclidianaebuscavaassociaraáreaaumnúmero.Ométodoutilizadoerabaseado,primordialmente,namanipulaçãodeséries in initas,comojáerao caso da técnica usada por Pascal e Fermat descrita no Capítulo 6. Asoluçãodeproblemasenvolvendoquadraturaseequaçõesdiferenciaisfezproliferarousodessasséries.

A questão de determinar a área do círculo, por exemplo, que Leibnizdesejavaexprimirporumnúmero, efetuavaa junçãoentreo contextodecurvas e o universo dos números, introduzindo π. Arquimedes já haviaencontrado limites para a razão entre o perímetro e o diâmetro dacircunferência, e outrosmatemáticos já tinhamaproximadoo valor dessarazão, mas no contexto do cálculo leibniziano se colocará o problema deadmitirπcomoumnúmero.

Essemovimento levou à a irmação de que a soma da série dada por que designa a área limitada por um círculo de

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diâmetro 1, é um número. A soma total da área era compreendida comoumvalorexato,quepodiaserdesignadopelonúmerotranscendente π/4.Aquestão não era apenas lidar com números irracionais que apareciamcomo raízes de equações algébricas; havia outros números que nãopodiamserassociadosaraízesdeequações.

Euler abordou esse problema, procurando identi icar as diferençasentre números algébricos e transcendentes – os primeiros podendo serobtidos como raízes de equações; os segundos, não. Os irracionaisalgébricos eram as raízes de uma equação com coe icientes inteiros; osoutros, dos quais se conhecia apenas π ee, eram transcendentes. Eulerchegou a investigar se é possível escrever o número π usando radicais,questão associada à resolução do antigo problema da quadratura docírculo.

NoséculoXVI,algunsmatemáticos,comoM.Stifel,jáhaviamaventadoahipótese de a quadratura ser impossível. Para demonstrar isso, eranecessárioveri icarqueoperímetronãoestáparaodiâmetroassimcomoum número inteiro para outro. Em meados do século XVIII essapossibilidade não surpreendia mais os matemáticos, sobretudo devido àgrandevariedadedesériesin initasqueserelacionavamàquadraturadocírculo.Seasomadessasséries forumaquantidaderacional,elaseráumnúmero inteiro ou uma fração; caso contrário, pode ser um númerotranscendente. Desde o século XVII eram fornecidas diversasaproximaçõesparaovalordarazãoentreodiâmetroeacircunferênciadocírculo.Mas apenas emmeados desse século osmatemáticos perceberãoque, ao invés de buscar o verdadeiro valor de π, poderiammostrar quenãohá“verdadeirovalor”,ouqueessevaloréimpossível.

No contexto do cálculo in initesimal, o problema de saber como asgrandezas, ou o que Leibniz designou de “contínuo”, se associavam anúmeros só aparecia em casos isolados e não constituía um problemaepistemológico.Por exemplo, Leibniz tinha introduzido funçõesdadasporquocientesdepolinômiose,juntamentecomJohannBernoulli,questionavase esse quociente poderia ser decomposto em elementos simples. Issoimplicava decompor o denominador em fatores de primeiro e segundograus.

Exemplo – Decomposição de um polinômio racional: Seja o polinômiofracionário . Queremos saber se podemos decompor essequociente em duas parcelas nas quais, no denominador, haja somente

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fatores de primeiro e segundo graus, o que possibilita a decomposiçãodessafunçãoemelementossimples,quesabemosintegrar.Opolinômiodegrau 3 do denominador pode ser decomposto como (x2 − 2) (x + 3) e aobservação dessa igualdade permite escrever

. Essa reescritura pode facilitar bastante oscálculos com a função inicial. No entanto, esse caso apresenta uminconveniente,jáqueodenominadornãoestáde inidoparax2=2(oux=

),nemparax=−3,oquetornaimpossíveladecomposiçãodessafraçãoracionalemelementossimples.

A associação de curvas a equações, desde Descartes, assumiaimplicitamenteaequivalênciaentrearetaeoconjuntodosreaiscombasenaevidênciageométrica,sempreocupaçãocomoproblemadosirracionais.No entanto, essa equivalência deixou de ser natural a partir do inal doséculoXVIIesobretudonoXVIII.Exemploscomoodadecomposiçãodeumpolinômio se multiplicavam, mas não chegam a constituir um problemauni icado relacionado aos fundamentos da matemática. Como veremosadiante,osmatemáticosdoséculoXIXobservarãoquesuasde iniçõesparanoções como limite, continuidade e convergência dependiam daspropriedades dos números reais. Antes disso não havia razão su icientepara que osmatemáticos izessem esforços com o objetivo de esclarecerconceitualmenteanoçãodenúmeroreal.Devidoàprevalênciadaideiadequantidade geométrica, a completude do domínio dos reais era assumidaimplicitamentecomodada,derivadadacompletudedareta.

Umbomexemplodisso resideno estudodonúmerode raízesdeumaequação, o qual, no século XVIII, era realizado com o seguinte método:observava-se, inicialmente, que toda equação algébrica de grau ímparadmiteaomenosumaraizreal;emseguida,dadaumaequaçãoqualquer,procurava-se reduzi-la, por procedimentos algébricos, a uma equação degrauímpar.Noentanto,a justi icativadequetodaequaçãodegrauímparpossui ao menos uma raiz real não pode ser feita por procedimentosalgébricos.

As primeiras argumentações sobre esse fato eram de naturezageométricaedecorriamdaobservaçãodeque,paravaloresgrandesde x,opolinômioxn+an-1xn−1+…+a1x+a0secomportacomooseutermodemais alto grau. Sen é ímpar, sabemos que quando x → +∞,xn → +∞ equandox → −∞,xn → −∞. Dizia-se, portanto, a partir da evidênciageométrica, que pelo “princípio de continuidade” a curva que representa

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esse polinômio deve interceptar o eixo x ao menos uma vez, pois essacurva teria uma parte que tende para +∞ (acima do eixo x) e outra quetendepara−∞(abaixodoeixo x).Masnotemqueessaconclusãosebaseiasobre uma propriedade da reta – como equivalente ao conjunto dosnúmeros reais – que aindanão estavabemestabelecida.A associaçãodefigurasgeométricasaequaçõesimplicanecessariamenteaconsideraçãodequearetacontémtodososreais.Podemospensar,porexemplo,nográ icodey = 2 −x2, exibido na Ilustração 4, que deve interceptar o eixo x nospontosx=± .

ILUSTRAÇÃO4Gráficodaequaçãoy=2−x2.

ComonamaiorpartedoséculoXVIIIaadmissãodacompletudedaretaera implícita nos problemas tratados, não se colocava a questão deinvestigar o estatuto dos números reais. As quantidades eram divididassomenteentrecontínuasediscretas.Asdiscretaspodiamserconcretasouabstratas e eram vistas como números puros (naturais ou racionaispositivos); já as contínuas eram números reais entendidosgeometricamentepormeiodesegmentosdereta.Adesignaçãodenúmero“real” começou a ser empregadapor volta de 1700para distinguir essasquantidades das negativas e imaginárias, que ainda não eramconsideradasreais.

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NegativoseimagináriosnoséculoXVIII

Em 1750 tomou corpo na França um intenso debate, que chegou até aInglaterra, acerca da natureza das quantidades negativas. A discussãocomeçou na Academia de Ciências de Paris, impulsionada principalmentepor Bernard le Bouvier de Fontenelle, mas também envolveu Clairaut ed’Alembert.ComomostraSchubring, 23anovidadequepodeterprovocadoessacriseeraoestudodoslogaritmos,descobertosno inaldoséculoXVIIcomo uma ferramenta importante no cálculo e que evoluíram até seremincorporadosnamatemática.DuranteosséculosXVIIeXVIII,comoestudodasfunçõestranscendentesologaritmosetornouumconceitoimportantepara esclarecer as ferramentas algébricas da análise e dar-lhesconsistência. Veremos, adiante, como os logaritmos se relacionam com asquantidadesnegativaseimaginárias.

Fontenelle começou propondo que não se compreendiam asquantidades negativas somente como subtrativas, isto é, aquelas quedeveriamserretiradasdeoutras.Paraele,eranecessáriodiferenciardoisaspectos nessas quantidades: um propriamente quantitativo, comumenteadmitido; e outro qualitativo, relacionado à ideia de oposição. Asquantidadespositivasenegativasdeveriamservistas,pois,comoopostas.Segundo Fontenelle, elas não possuíam somente um ser numérico, mastambémumserespecífico,oquepermitiadizerqueeramopostas.

Clairaut seguiu a mesma linha de Fontenelle, admitindo quantidadesnegativas como soluções das equações. No entanto, os escritos de ambosforam atacados duramente por d’Alembert, que, na Encyclopédie, criticouradicalmente a aceitação dos números negativos, atitude que, conformeseupensamento,partiadeumafalsameta ísica.Domesmomodo,deviaserejeitar, ainda segundo ele, a generalidade obtida pela álgebra naresolução de equações. Essa posição contradizia sua defesa do poder degeneralizaçãodaálgebranocontextodaanálise,mas,parad’Alembert,naresolução de equações o uso da álgebra dava lugar a uma meta ísicaequivocada sobre as quantidades negativas. Ou seja, podia se aceitar aregra dos sinais nas operações, no entanto não era legítimo conceberquantidades negativas como sendo menores que zero, pois essa ideia éincorreta.

A ruptura provocada por d’Alembert devia-se às suas posições emrelaçãoaologaritmodenúmerosnegativos,querequeriaaintervençãodenúmerosimaginários.EmumacontrovérsiacomEuler,quedescreveremos

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a seguir, d’Alembert acreditava que esses logaritmos deviam ser reais, oque tentava demonstrar a todo custo. Isso o fez questionar, em geral, oestatutodosnúmerosnegativos,evitandooproblemadedarconsistênciaaseuslogaritmos.

Oestudodadecomposiçãodeuma fraçãoemelementos simples, comovisto no exemplo de um polinômio racional, também está ligado à teoriadoslogaritmos.Paraseintegrar,porexemplo,opolinômiofracionário, ele devia ser decomposto em elementos simples, o que faria com queaparecessemnúmeros imagináriosnodenominador.Ocasode jádáuma ideia da complexidade do problema, pois sua decomposição emelementossimplesé:

Como imdeencontraraintegraldopolinômioacima,deve-seintegrarcada uma das parcelas, fazendo uso da regra . Como osdenominadores das parcelas contêm números imaginários, coloca-se oproblemadedefinirologaritmodeumnúmerodessetipo.

As contribuições de Leibniz e Bernoulli para a integração de funçõesracionais, com base nessa decomposição, foi o primeiro passo para oestudogeraldos logaritmos.Para integraruma função racional inteiradevariávelx, eraprecisodecompô-laemumprodutode fatoresdeprimeirograudaformax−a ou .A integraçãodessesfatorescolocariaoproblemadoslogaritmosdosnúmerosnegativoseimaginários.

Partindodofatodequelog(+1)=0,Bernoullihaviapropostoque:

Elededuziadaíquetodonúmeronegativopossuiumlogaritmorealqueé igualao logaritmodeseuvalorabsoluto.Essaconclusão–quesabemoshojenãoserverdadeira–podeserexpressapor:

Logo, um número e seu oposto devem possuir o mesmo logaritmo.

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Leibniz tinhaenunciadoa regradequeaderivadade log(x) é igual a ,masa irmavaqueelasóeraválidaparavaloresreaispositivosde x. ParaEuler, essa regra deveria ser geral, já que a generalidade da álgebra,segundo ele, era um fator fundamental para a legitimidade da análisealgébrica. Euler dizia ainda que o cálculo lida com variáveis gerais, logo,era preciso demonstrar que a regra de Leibniz também era válida paraqualquervalordex,fosseelepositivo,negativoouimaginário.

Em uma carta enviada a Bernoulli em 1728, Euler evidenciou umacontradiçãonoseuresultado.Assim,de1747a1748enviouad’Alembertdiversas cartas sustentando que os números negativos não possuíamlogaritmos reais, conforme pensavam d’Alembert e Bernoulli. Podemosveri icar seu argumento usando a notação atual. Euler já sabia queeiπ =cosπ+i.senπ,ouseja,eiπ=−1.Logo,ln(−1)=π.ieoslogaritmosdenúmerosnegativosdevemserimaginários,enãoreais.

Essa polêmica estava relacionada também a outra discussão do séculoXVIII, envolvendoa formado “imaginário”.Na soluçãodaequaçãocúbica,combasenasfórmulasdesenvolvidaspelosmatemáticosdoséculoXVI,osnúmeros imaginários eram sempre da forma (coma eb reais),escritosnanotaçãodaépoca(notaçõescomoosímbolo sócomeçaramaserusadasno inaldo séculoXVII).Cabiaperguntar,noentanto, senasequações de graumaior os números “imaginários” seriam sempre dessaforma ou se existiriamuniversosmais amplos emque eles poderiam serescritos de outromodo. Isso porque não se sabia sequer se as raízes deequaçõesdegraumaiorque3podiamserexpressasporradicais.

Um primeiro resultado sobre a forma do imaginário foi fornecido em1747, emumadissertaçãoded’Alembert sobreosventos. 24No artigo79,ele a irmava que uma quantidade qualquer, composta de tantosimaginários quanto desejarmos, pode ser reduzida à forma ,comAeBquantidadesreais;detalmaneiraqueseaquantidadepropostaforreal,tem-seB=0.

Euler abordou o tema em sua obraRecherches sur les racinesimaginaires des équations (Investigações sobre as raízes imaginárias dasequações), de 1749. Ele a irmava que toda fração formada por adição,subtração, multiplicação ou divisão, envolvendo quantidades imagináriasdaforma , teráamesma forma ,emqueas letrasMeN representam quantidades reais. Desse teorema decorre que a formageral compreende também todas as quantidades reais, bastafazerN = 0. Desse modo, as quatro operações enunciadas para os reais

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(adição, subtração, multiplicação e divisão) podem ser estendidas aosimaginários. D’Alembert registrou em 1784, em sua Encyclopédie, aimportânciadeseuprópriotrabalhonosverbetesdenominados“Équation”e “Imaginaire”. Ele ressaltava ter sido pioneiro em demonstrar quequalquer quantidade imaginária, tomada à vontade, pode sempre serreduzidaàforma ,comeefsendoquantidadesreais.

Apesar dessas discussões, a questão do estatuto e da forma dasquantidades irracionais e imaginárias não era uma preocupação centraldosmatemáticosnoséculoXVIII.Oquemarcavaaépocaeraaideologiadeque as regras gerais que serviam para operar com os reais deviam seraplicadastambémaosimaginários.

Representação geométrica das quantidadesnegativaseimaginárias

No início do século XIX, houve considerável repercussão na França dascontrovérsias inauguradas por d’Alembert envolvendo o estatuto dosnúmeros negativos. O mesmo não se deu com relação aos imaginários.Essas quantidades eram usadas sem demandar grandes re lexões sobresua natureza e toleradas por sua utilidade prática na realização decálculos. Isso porque era impossível justi icar os números negativos eimaginárioscomumacompreensãodamatemáticaqueconcebiacomoseuobjeto principal a noção de quantidade. Os objetos da matemática eramconsiderados abstrações que, ainda que tivessem certa autonomia emrelação ao mundo real, continuavam a ser justi icados por meio dessemundo. A proliferação dos métodos algébricos, relativamenteindependentes da geometria durante o século XVIII, motivou a expansãodasoperações,oque iria contribuirpara levarao limiteoparadigmadasquantidades.

Euler já via a álgebra como uma ciência dos números, e não dasquantidades. Para ele, todas as grandezas podiam ser expressas pornúmeros e a base da matemática devia se constituir de uma exposiçãoclaradoconceitodenúmerosedasoperações.Entretanto,suaspropostasnãoforamreconhecidasnoséculoXVIII.ParaEuler,omododeseobterosnúmeros negativos era similar aomodode se obter os positivos.No casodestes,somamoscontinuamenteaunidadeparaobterosnúmerosnaturais

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(assimdenominadosporele):0,+1,+2,…. Se, ao invésde continuaresseprocesso com adições sucessivas continuássemos na direção oposta,subtraindounidades,obteríamosasériedosnúmerosnegativos:0,−1,−2,…. Esses números, fossem positivos ou negativos, deveriam, segundo ele,ser chamados de “números inteiros”, para distingui-los das frações. Masessasconsiderações tambémnão tiveramgrande in luêncianaFrança,aocontráriodeoutraspartesdesuaobra.

NoiníciodoséculoXIX,ocontextoinstitucional francêsestavamarcadopelaspolêmicasacercadoretornoaosmétodossintéticosdageometriaeaquestão do estatuto dos números imaginários era abordada somente emtratados marginais, ao largo do meio acadêmico. Chega a sersurpreendente, logo depois de 1800, o número de trabalhos sobre arepresentaçãogeométricadosnegativoseimagináriosescritosporpessoasquenãoparticipavamdacomunidadematemática.UmexemploconhecidoéododinamarquêsCasparWessel,masnomeiofrancêshouvetambémocaso do padre Adrien-Quentin Buée, que não integrava a comunidadecientí ica. Ele usava a distinção entre os aspectos quantitativos equalitativosdosnúmerosnegativospropostaporFontenelle,esclarecendoque os sinais de mais e de menos têm dois signi icados distintos que épreciso interpretar. O primeiro designa uma operação aritmética que,quando aplicada a um segmento de reta, de ine seu comprimento; já osegundopodeservistocomoumaoperaçãogeométricaqueremeteàideiadedireção.

Outro personagem mítico é Jean-Robert Argand. Na historiogra iatradicional,diz-sequesetratavadeumsuíço,amadoremmatemática,quetrabalhava comoguardadorde livros.Masessaversãoé falsa.Hoje só sepodea irmarque,entre1806e1814,umcertoArgandparecetersidoumtécnico que estava a par do desenvolvimento da ciência na época. Em1813,foipublicadoumartigodeJacquesFrédéricFrançaisnos AnnalesdeMathématiques Pures et Appliquées , a primeira revista especializada emmatemática, editada fora de Paris por J.D. Gergonne. Français declaravaqueasideiasdefendidasporelehaviamsidotiradasdeumacartadeA.M.Legendre, na qual esse “grande geômetra” comunicava as ideias de umautor anônimo sobre a representação dos negativos e imaginários. Esseapelo levou Argand a entrar no debate, mostrando que ele era o autorcitado.25

UmaversãodotextodeArgandjátinhasidoimpressaantesdessadata,mas sem a indicação de seu nome. Com esse interesse renovadopor seu

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trabalho, Argand publicou, ainda em 1813, nosAnnales de Gergonne, oartigo “Essai sur une manière de représenter les quantités imaginairesdans les constructions géométriques” (Ensaio sobre uma maneira derepresentar as quantidades imaginárias nas construções geométricas). Aíelecomeçaportratardasquantidadesnegativas,a irmandoqueestasnãopodiam ser rejeitadas, sob o risco de se ter de questionar diversosresultadosalgébricosimportantes.

Tomemos as grandezasa, 2a, 3a, 4a etc. É evidente que podemosacrescentar grandezas ao in inito. Mas e a operação inversa? Podemossubtrair a grandezaa de cada um dos termos anteriores, obtendo asequência:3a,2a,a,0.Edepois?Comoprosseguir?Quesentidoatribuiràsubtração 0 −a?Argandpropõeumaconstrução capazdeassegurar, emsuas palavras, alguma “realidade” a esses termos, que, de outro modo,seriamsomente“imaginários”.

Supondoumabalançacomdoispratos,AeB.AcrescentemosaopratoAas quantidadesa,2a, 3a, 4a, e assim sucessivamente, fazendo com que abalançapeseparao ladodopratoA. Sequisermos,podemos retirarumaquantidadeadecadavez,restabelecendooequilíbrio.Equandochegamosa 0? Podemos continuar retirando essas quantidades? Sim, a irmavaArgand; basta acrescentá-las ao prato B. Ou seja, introduz-se aqui umanoção relativa do que “retirar” signi ica: retirar do prato A signi icaacrescentar ao prato B. Desse modo, as quantidades negativas puderamdeixar de ser “imaginárias” para se tornarem “relativas”. A grandezanegativa−aérepresentadanaFigura1.

FIGURA1

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AideiaderelaçãoentregrandezasassimintroduzidaporArgandinclui:umarelaçãonumérica,quedependedosvaloresabsolutosdasgrandezas;euma relaçãodeorientação,quepode seruma relaçãode identidadeoude oposição. Argand conseguia, assim, que as quantidades negativas setornassem “reais” reunindo as noções de “quantidade absoluta” e de“orientação”.

ILUSTRAÇÃO5

A representação proposta permite atribuir um sentido às operaçõescomnúmerosnegativos,porexemplo,àmultiplicaçãopor−1,quepassaaser entendida como uma re lexão em relação à origem. Isso possibilitaentender mais facilmente por que −1 × −1 = +1. Começamos com doissegmentosorientadose,apósare lexãode−1emrelaçãoàorigem,obtém-se+1,comonaIlustração5.

Mas serápossível obter omesmo sucessopara as raízes dosnúmerosnegativos,quantidadestambémconsideradas“imaginárias”?

Estabelecidaumarepresentaçãoparaasgrandezasrelativas (positivasenegativas)comograndezasdirecionadas,Argandpassouaanalisartodasaspossibilidadesderelaçãodeproporçãoentreessasgrandezas,obtendoque:

+1:+1::−1:−1e+1:−1::−1:+1.

D’Alembert já havia refutadoo argumentousadona teoria geométricadasproporções,a irmandoque1eraincomparávelcom−1.Aquestãodasmédiasproporcionaisentrenúmerosdesinaisdiferentesestavapresentenas discussões sobre os imaginários, como veremos também no caso

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expostoaseguir.Sabemosque amédiaproporcional entre grandezasdemesmo sinal é

+1ou−1,poisse−1:+x ::+x :−1,ouse+1 :+x ::+x : +1, aquantidadexdeve ser +1 ou −1. Cabe, portanto, perguntar: como seria possíveldeterminar a média proporcional entre duas grandezas de sinaisdiferentes? Argand investigou as grandezas que satisfazem a uma novaproporção: +1 : +x :: +x : −1 e encontrou a resposta no diagrama daIlustração6.

ILUSTRAÇÃO6

Os segmentos KA e KI são entendidos, respectivamente, comosegmentos direcionados de K para A e de K para I e representam asgrandezas unitárias positiva e negativa. Em seguida, traça-se umaperpendicular, EN, à reta que une I a A. O segmento KA está para osegmento direcionado KE assim como KE está para KI; e KA está para osegmentodirecionadoKNassimcomoKNestáparaKI.Logo,acondiçãodeproporcionalidade exigida para a grandeza x é satisfeita porKE eKN.AsgrandezasgeométricasquesatisfazemàproporçãorequeridasãoKEeKN,quepodemservistascomorepresentaçõesgeométricasde e .Na verdade, o diagramaqueArgandusa contém todas as direções, comonaIlustração7,permitindorepresentarnãosomenteosimagináriospuros,mastambémosnúmerosquehojechamamosde“complexos”.

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ILUSTRAÇÃO7

Arepresentaçãodosnúmerosnegativosfoi frutodaconcepçãodeumaoposição entre duas direções, estabelecida a partir de um ponto neutrode inido como ponto 0 (zero). Na balança de Argand, o 0 pode ser vistocomo ponto de apoio entre os braços. Esse 0 não é propriamente um“nada”,nemonúmeronegativoéum“menosquenada”;o0éoreferencialque permite a escolha (decisão) de uma orientação que tornará umnúmeropositivoounegativo. Se considerarmososnúmerosumagregadode coisas, como uma pluralidade, o +1 será sempre ligado a acrescentaralgo mais, operação que pode ser repetida in initas vezes, mas não oinverso. A balança de Argand consegue reverter essa dessimetria entrepositivosenegativoseo0podeservistocomopontodeapoiodosbraçosque devem se reequilibrar, à direita e à esquerda, enquanto colocamospesosemcadaumdospratosoudelesosretiramos.

Paraarepresentaçãodasquantidadesimaginárias,Argandobteveigualsucesso, combinando as ideias de grandeza absoluta e de orientação,porém a orientação não émais dada somente comouma oposição, pois aproporção impõe a +1 estar para + x como essa quantidade está para −1.Portanto, temos uma nova direção que, nesse caso, deve ser umaperpendicular. A multiplicação por deve ser entendida agora comouma rotação, em sentido horário, quando semultiplica por ; e anti-horário quando se multiplica por (ou seja,

As quantidades e tornam-se “reais” porque podemosconcebê-las como orientações distintas na direção perpendicular quedetermina dois lados para o segmento inicial IA. Como requerido pelamédiaproporcional,aorientaçãopositiva,estáparaaperpendicularcomoestaestáparaaorientaçãonegativa,evice-versa.Temosentão,nolugarde

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umare lexão,umarotação.O0nãoé,portanto,umpontoneutro,masumcentrode rotação,opontoqueorganizaogiro.Aoposiçãopodeservista,agora, como o produto do giro, ixando os extremos de uma rotação (sepensarmos a re lexão como o extremo de uma rotação, ).Podemosassociara igurageométricapropostaporArgandaomodocomorepresentamososcomplexosnoplanoquechamamosde“Argand-Gauss”.

Essas primeiras propostas sobre o fundamento dos negativos eimaginários, apresentadas por pensadores que não eram centrais namatemática,revelamqueopensamentodaépocatinhanecessidadedeseapoiar emumaepistemologiabaseada emuma relação geométrica comarealidade. A tentativa de estender a análise às variáveis complexas, feitaporCauchy, trazianovosproblemase, logo, umanovademandaquanto àde inição desses números de modo formal. A matemática que sedesenvolverá a partir de meados do século XIX passará a privilegiar acoerênciainternadosenunciadoseade iniçãodeseusobjetosprescindirádessaconexãocomomundoexterno.AconcepçãodeobjetosmatemáticosplenamenteabstratosémarcantenotrabalhodeGausssobreosnúmerosimaginários, o que sugerirá que esses números sejam admitidos emmatemática tanto quanto os outros, não sendo mais chamados de“imaginários”esimde“complexos”.

Gausseadefesadamatemáticaabstrata

Quando, em 1831, Gauss publicou o que denominava “meta ísica dasgrandezas imaginárias”, no artigo “Theoria residuorum biquadraticum”(Teoria dos resíduos biquadráticos), já tinha renome. Foi o primeiromatemáticoinfluenteadefenderpublicamenteasquantidadesimaginárias,desde seus trabalhos sobre a demonstração do teorema fundamental daálgebra,editadoem1799.Decertomodo,podeservistocomoumhomemdoséculoXVIII,pornãodistinguirsuaspesquisasdasrealizadasem ísica,astronomiaegeodésia,alémdeescreveremlatim.Contudo,seustemasdeestudo e suas ideias sobre a matemática, sobretudo sua concepção derigor,aproximam-nodasnovastendênciasdoséculoXIX.

O ponto de vista defendido por Gauss exprime o início de ummovimento que não considerará necessário quali icar as quantidadesnegativas e imaginárias pela sua natureza, como acontecia quando estas

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eram consideradas “so ísticas”, “absurdas”, “impossíveis”, “falsas” ou“imaginárias”. Vistos como números propriamente ditos, os negativos ecomplexos ganharão um lugar na aritmética e serão entidades sobre asquaisépossívelefetuarcálculosdemodoconsistente.TalcaminhonãofoilinearepassoupelaconstituiçãodamatemáticapuranaAlemanha.

AsdiscussõessobreoestatutodosnúmerosnegativosduranteoséculoXVIII e iníciodoXIXnaFrançamostramque somentenúmeros absolutoseramadmitidoscomoobjetosdamatemática.EssavisãotemsuasíntesenomodocomoCauchyapresentouseuconceitodenúmeronoCoursd’analyse.Inspiradopeladiferenciaçãoentreessanoçãoeadequantidade,distinçãoque já tinha sido proposta por Ampère, ele a irma que os númerosnegativosnãosãopropriamentenúmerosesimquantidades,umavezqueaquelesdevemsersomenteosabsolutos.Quandoseassociaumsinalaumnúmero absoluto, ele deve ser visto como uma quantidade; e duasquantidadessãoiguaisquandocoincidememseusvaloresnuméricoseemseussinais.Casocontrário,quandoosvaloresnuméricoscoincidem,masossinais diferem, as quantidades são opostas. Nessa caracterização, Cauchyse aproxima da adaptação proposta por Buée do pensamento deFontenelle, mas sua posição exprime a prevalência do conceito dequantidadenamatemática.

Nas primeiras duas décadas do século XIX, a tendência dominante naAlemanha era a algebrização. Alguns autores já tinham defendido aseparação entre os conceitos de número e quantidade, bem como umavisão puramente aritmética dos números negativos, possibilitada pelodistanciamentodasaplicações.Masessesescritospermaneceramisolados,uma vez que a in luência francesa ainda era grande nesse período e osescritos de Carnot defendendo a geometria também tinham repercussãona Alemanha. No que tange à compreensão das quantidades negativas,muitos autores continuavam a usar a noção de oposição herdada dascorrentes hegemônicas francesas, que concebia, no im das contas, onúmero comoumaquantidade.AspropostasdeGauss, que começaramaser esboçadas por volta de 1800, escapam dessa tendência, pois eledefendiaumconceitodenúmeroautônomo.

Na Alemanha, a in luência da iloso ia de Kant fazia com que osmatemáticos sebaseassememconcepçõesepistemológicasdiferentesdosfranceses. Como mostra Schubring, 26 Gauss retirou boa parte de suasteorias sobre os números negativos e complexos dos trabalhos de umprofessordosecundáriochamadoW.A.Förstemann,que,porsuavez,usou

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os escritos sobre os números negativos que Kant havia publicado em1763.27 Segundo Gauss, os números negativos só podem sercompreendidos quando entendemos que “as coisas contadas” podem serde espécies opostas, de modo que a unidade de uma espécie possaneutralizaraunidadedeoutraespécie(como+1e−1).Mas,paraisso,elea irmaqueascoisascontadasnãodevemserencaradascomosubstâncias,comoobjetosconsideradosemsimesmos,esimcomorelaçõesentreessesobjetos:

Énecessárioqueessesobjetosformem,dealgummodo,umasériecomo…A,B,C,D,…equearelaçãoqueexisteentreAeBpossaservistacomoigualàquelaqueexisteentreBeC,eassimpordiante.Essanoçãodeoposiçãoimplicaaindaumapossíveltrocaentreostermosdarelação,operandodemodoquesearelação(ouapassagem)deAaBéindicadapor+1,arelaçãodeBaAéindicadapor−1.28

Quanto aos números complexos, eles devem ser compreendidostambémcomorelações,eGausscomeçoupordestacarasimilitudeentrearelaçãode+1a−1earelaçãode+ ia−i (símbolosqueele introduziu).Decerta forma, trata-sedeumentendimentoquenãoestámuitodistantedamédia proporcional proposta por Argand. E a consideração dasquantidades imaginárias comoobjetos reaisdaaritmética serádefendida,justamente, apartirdaobservaçãodeque+i e−i podem ser vistos comomédias proporcionais entre +1 e −1. Gauss a irmará, então, que essasrelaçõespodemsertornadasintuitivasporumarepresentaçãogeométrica.Para isso, basta esquadrinhar o plano por um duplo sistema de retasparalelasquesecortamemângulosretos,comonaIlustração8.Ospontosde interseção serãoosnúmeros complexos e, dadoumcertopontoA, eleseráenvolvidoporquatropontosadjacentes:B,B',CeC'.

ILUSTRAÇÃO8

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Osímbolo+1 indicaarelaçãodopontoAcomqualquerumdospontosadjacentes,oquefazcomque−1indiqueautomaticamentearelaçãocomoadjacentenosentidooposto. Suponhamos,porexemplo,que+1 indiquearelaçãodeAcomB.Nessecaso,osímbolo+iindicaráarelaçãodeAcomC;e−1,arelaçãodeAcomB'.Mas+1tambémpoderiaindicararelaçãodeAcomC,enessecaso+ideterminariaarelaçãodeAcomB'e−1,adeAcomC'. O fato de podermos trocar as posições de +1 e +i indica que essesnúmerosnãopossuemnenhumarealidade(ontologia),designandoapenasuma relação. O eixo dos reais e dos imaginários é escolhido, portanto, demodoarbitrário.

Taldiagramautilizafortemente,comoGausssublinha,apropriedadedoplanodeque,escolhidosum“emcima”eum“embaixo”, adistinçãoentreuma “direita” e uma “esquerda” ica automaticamente determinada (aescolhaéarbitráriadadaumacertaorientaçãodoplano,poisnãopodemostrocar +1por −i, ou seja, nãopodemos ter −i nomesmo segmento de +1mantendoosoutros inalterados).Anomenclaturade“positivo”, “negativo”e “imaginário”, respectivamente, para +1, −1 e foi exatamente o quedeu margem, segundo Gauss, a confusões quanto ao estatuto dessesnúmeros, que deviam ser chamados de “unidade direta”, “inversa” e“lateral”,oquemostrasuaíntimarelaçãocomaorientaçãodasdireçõesnoplano.

Para Gauss, os números complexos não precisam ser “realizados”;tratava-se de relações abstratas que deviam ter plena cidadania emmatemática.Essaconceitualizaçãofazecoàsuavisãodequeaabstraçãoéa característica essencial da matemática. Para ele, o processo degeneralizaçãodaálgebra,que levavaàextensãodosdomíniosnuméricos,era um dos principais instrumentos dessa disciplina. A aritméticageneralizada, criada na Idade Moderna, era superior à geometria dosantigos, pois, partindo do conceito de inteiros absolutos, foi possívelestender seus domínios passo a passo: de inteiros a frações, de númerosracionaisanúmerosirracionais,depositivosanegativos,denúmerosreaisanúmerosimaginários.

Na tentativa de justi icar os números negativos e imaginários comorelações abstratas, Gauss formulou argumentos para defender o novocaráterteóricodamatemática,quenãodeveria,segundoele,sebasearnarealidade das substâncias e sim na concepção relacional dos objetosmatemáticos: “O que é contado não são substâncias (objetos imagináveispor si mesmos), mas relações entre dois objetos.” 29 As quantidades

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negativas e complexas passam a ser objetivas, contudo, conforme ade iniçãodeobjetividadepropostaporGauss,elasserãoentendidascomorelações.Narealidade,essepontodevistaparticiparáda ideiamaisgeralde Gauss sobre a realidade matemática. Basta lembrar que ele estavaenvolvidonainvençãodeumanovageometria,nãoeuclidiana,quenãoseapoiana intuição.Asrestriçõesqueosobjetosmatemáticosdeviamsofrerpara se adequarem ao espaço euclidiano deviam ser, de acordo com suaconcepção,eliminadas.

Nomomentodesuapublicação,em1831,oartigodeGausstevepoucoimpacto na matemática alemã, mas essa situação mudou em meados doséculo XIX. O textoTheorie der complexen Zahlensysteme (Teoria dossistemas de números complexos), deHermannHankel, que apareceu em1867, foi um dos primeiros a se basear no conceito de número abstrato,concebido sem consideração da quantidade associada.30 Hankel cita otrabalho de Gauss, defendendo que o conceito de quantidade deve servisto somente como um substrato intuitivo ao de número. Sua teoria foiin luenciada também por outros autores alemães, como HermannGrassmann,queteveumpapelimportantenahistóriadaálgebra.

Aassociaçãodosnúmeroscomplexosaospontosdoplanofoienfatizadapor Gauss como por nenhum outro matemático antes dele, mas o passodecisivo para que o estatuto dos números complexos fosse irmementeestabelecido foi dado com a introdução da noção devetor. Esse conceitoapareceunaInglaterra,noséculoXIX,nostrabalhosdeW.R.Hamilton.Noinal desse século, o plano como conjunto de pontos e o plano comocomposto de vetores passaram a ser vistos comodois conceitos distintos.Nãoseguiremosessecaminho,poisnossoobjetivonãoéfazerumahistóriaexaustiva dos números complexos, e sim entender as mudanças naimagem da matemática durante o século XIX. Como sugerimosanteriormente,o lorescimentodavisãoconceitualeabstratapropostaporGauss estará nasmãos de outrosmatemáticos ligados à Universidade deGöttingen,comoDirichlet,RiemanneDedekind.

Gauss era atraído fortemente por problemas ísicos e dedicou grandepartedesuavidaaoestudodageodésiaedaastronomia.Masseupontodevista sobre amatemática foi bastante in luente emGöttingen, o quepodeser atestado pelo fato de Riemann também defender as relações como oconceito fundamentaldamatemática.Noartigode1831,aoa irmarqueamatemática lidacomrelações,Gaussanalisaocasoemqueosobjetosnãopodem ser ordenados em uma única série ilimitada como…A, B, C, D,….

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Nessasituação,maiscomplexa,elespodemformarumamultiplicidadeeoestudodas relaçõesentrediferentesmultiplicidadesgaranteaordenaçãodos sistemas de relações. Sendo assim, diz: “O matemático faz abstraçãocompletadaqualidadedosobjetosedoconteúdodesuasrelações:elesóprecisacontarecompararasrelaçõesentreelas.”31

Citamos sua utilização da noção de “multiplicidade” de modo alusivo,poisesseassuntofogedoescopodestelivro.Podemosdestacar,noentanto,queGauss entendeumamultiplicidade comoumsubstantivo: umsistemadeobjetosligadosporrelações.Essenãoéexatamenteoconceitoqueteráum papel central na teoria proposta por Riemann nos anos 1850,mas amultiplicidadederelaçõesdefendidaporGausseraumdosnovosobjetosquemotivavamodesenvolvimentodeumateoriadasmultiplicidades.e

Para Riemann, a noção de multiplicidade devia ser independente daintuição geométrica, possibilitando um estudo abstrato das relações.Apesar de recorrer à intuição geométrica para explicar sua teoria, eleacreditavaqueelapodiaserfundadademodocompletamenteabstrato.Anoção sugerida por Gauss fornecia uma base adequada sobre a qualconstruir a nova teoria de Riemann: a topologia. Essa teoria exprime oápicedaautonomiadamatemáticacomrespeitoàsideiasdequantidadeedegrandeza,umavezqueatopologiasede inecomooestudodasrelaçõesindependentementedaspropriedadesmétricasdosobjetos.

MencionarbrevementearelaçãoentreGausseRiemannparamostrarqueamatemáticadeixavaaospoucosdeserumadoutrinadasgrandezasoudasquantidades.Essefoiumdosprimeirospassosparaquepassassema prevalecer novos pontos de vista abstratos, que culminarão com aabordagem dos conjuntos. Antes de abordarmos os conjuntos, citaremosalgumas contribuições de outro matemático que seguiu para Göttingen,Dirichlet.

AdefiniçãodefunçãodeDirichlet

Lejeune-Dirichletéumexemplodematemáticoaexibiroespíritocríticoeteórico que caracterizou o século XIX. Sua visão sobre o que deveriaconstituir uma prova matemática rigorosa in luenciou seuscontemporâneose,emmeadosdoséculo,elejáeravistocomoaexpressãodos novos tempos e da nova concepção sobre o rigor, que transformariadefinitivamenteospadrõesherdadosdosfranceses.

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Dirichlet havia estudado em Paris nos anos 1820 e logo se tornoufundamental para a disseminação da análise e da ísica matemáticafrancesas na Alemanha. Havia participado do círculo de Fourier, que erasecretário-geraldaAcademiadeCiências, ondeDirichlet conheceuA. vonHumboldt,quepromoveria suacarreiranaAlemanha.Dirichlet trabalhouemBerlimatéosanos1850e,noiníciodacarreira,estudouedivulgouostrabalhosdeGauss sobre a análisedeFourier, a teoriada integraçãoe aísicamatemática.Naépoca,aUniversidadedeGöttingenaindanãoeraumcentrodematemáticaavançado.Gausseraprofessordeastronomiaenãose via estimulado a transmitir suas descobertas a alunos poucopreparados.Logo,oensinonãotinhaomesmoníveldapesquisa.

A junçãoentrepesquisaeensino foimarcanteemGöttingendepoisdamorte de Gauss, com a chegada de Dirichlet, em 1855. Suas aulasdiscutiam os temas recentes da pesquisa matemática e motivavam osalunos a seguir seus passos. A presença de Dirichlet, juntamente comRiemanneDedekind,queseviacomoseudiscípulo,mudariaamatemáticapraticadanaUniversidadedeGöttingen.Ostrêsinspiravam-seemGaussepropunham uma visão abstrata e conceitual dessa disciplina. Apesar dasdiferenças entre seus campos de pesquisa, eles convergiam naspreferências metodológicas e teóricas e podem ser considerados umgrupo.OpontodevistaconceitualdeDirichlet foiexpressoemuma fraseque se tornou famosa: “É preciso colocar os pensamentos no lugar doscálculos.”32

Os trabalhos iniciais de Dirichlet sobre as séries de Fourier nosinteressam em particular, uma vez que propõem uma nova de inição defunção. Em 1829, Dirichlet tentou dar consistência aos trabalhos deFourier,demonstrandoquesuassériesconvergem.ComovistonoCapítulo6, Fourier queria mostrar que uma função arbitrária de inida em umintervalo(−l, l) pode ser sempre representada por desenvolvimentos emsériescontendosenosecossenos:

ondeoscoe icientesanebnsãodadosporintegraisqueenvolvemafunçãofnointervalo(−l,l).

Para convencer os matemáticos de que isso era verdade, era precisocalcular os coe icientesan ebn das séries apresentadas acima. Fourier

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interpretou esses coe icientes como áreas sob o grá ico de uma funçãodadaporumafunçãotrigonométricamultiplicadaporalgumaoutrafunção,ou seja, ele estudava a área delimitada pelo grá ico de funções do tipog(t)cos(nπt) oug(t)sen(nπt). Essa área podia ser calculada por umaintegral, mas, obviamente, a área só interessava no intervalo ao qual sereferem os dados do problema, que é do tipo (− l, l). Logo, era precisocalcularaárea,ouaintegral,emumintervalo.

Um dos principais problemas tratados por Dirichlet dizia respeito àscondições para que se possa calcular a integral de uma função. Até essemomento, o cálculo da integral era um problema prático, pois, como afunção era uma expressão analítica, as integrais eram calculadas paraexemplos especí icos. Bastava ter um método algébrico e iciente eencontraraexpressãoanalíticadaintegral,oudaárea.Osmatemáticosdoséculo XVIII não estavam muito preocupados com as condições deintegrabilidade, ou seja, com as condições que uma função deveriasatisfazerparapoderserintegrada.

Dirichletpercebeuquenemtodafunçãopodeserintegrada,enoartigo“Surlaconvergencedessériestrigonométriquesquiserventàreprésenterune function arbitraire entre des limites données” (Sobre a convergênciadas séries trigonométricas que servem para representar uma funçãoarbitráriaentrelimitesdados),publicadoem1829,dáumexemplo:

Essa função, segundo ele, não pode ser dada por umanempor váriasexpressõesanalíticas.Alémdisso,elanãopodeserrepresentadaporumasérie de Fourier, não é derivável e é descontínua em todos os pontos.Intuitivamente,seconcebemosaintegralcomoaáreasobográ icodeumafunção, não é di ícil entender que a função proposta por Dirichlet nãopossuiintegralnosentidoclássico.Sendodescontínuaemtodosospontos,elanãopodedefinirumaárea.

Dirichlet mostrou que para resolver o problema da convergência dassériesdeFourierseriaprecisoinvestigar,emprimeirolugar,quandoumafunção é integrável em certo intervalo. Cauchy tinha tentado esclarecer osigni icadoda integração, e as condiçõesquepropôs foramaperfeiçoadaspor Dirichlet (e mais tarde por Riemann). Ficava claro que essasconsideraçõespressupunhamumconceitodefunçãomaisgeraldoqueos

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usados anteriormente, logo, era preciso discutir a noção que osmatemáticos tinham em mente ao expor problemas desse tipo.Seguramente, não se tratava mais de conceber a função a partir de suaexpressãoanalítica.Porém,qualseriaanovadefinição?

“GRÁFICO”DAFUNÇÃODEDIRICHLET

Indicamos,naIlustração9,asimagensdealgunsnúmerosracionaisealgunsnúmerosirracionaispelafunção:

Para dar uma ideia da complexidade do grá ico completo da função, lembremos que háinfinitosracionaiseirracionaisentrequaisquerdoisnúmeros.

ILUSTRAÇÃO9

Cauchy tinha empregado uma de inição conceitual de função,caracterizando algumas de suas propriedades, como a continuidade, demodo independente da expressão analítica que a representa. Mas oexemplodeDirichletétidocomooprimeiropassoparaquesepercebessea necessidade de expandir a noção de função, uma vez que, nesse caso,esta não tinha nenhuma das propriedades admitidas tacitamente comogerais: não pode ser escrita como uma expressão analítica (segundoDirichlet);nãopodeserrepresentadaporumasériedepotências;enãoécontínua em nenhum ponto (também não é derivável nem integrável).Logo, o exemplo deDirichlet só pode ser visto como uma função se esseconceito for entendido como uma relação arbitrária entre variáveisnuméricas.

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O estranho exemplo descrito linhas atrás foi fornecido no inal domencionadoartigode1829paramostrarqueascondiçõesparaqueumafunção pudesse ser integrada deveriam ser de inidas do modo maispreciso possível. Fourier já havia notadoque, se quisermos integrar umafunção, seus valores devem ser “atuais” e bem determinados em certointervalo, ou seja, o valor da função não pode ser in inito em nenhumponto.Dirichletacrescentavaque,aindaquetenhavalores initos,afunçãotambémnãopodeserdescontínua,comonocasoextremodoexemplo.

NãopodemosesquecerqueessasconsideraçõesestãonostrabalhosdeDirichlet sobre as séries de Fourier. No primeiro artigo, de 1829, escritoemfrancês,oautornãode ineoqueéumafunção,masdiscuteproblemasrelacionadosàcontinuidadedas funçõesestudadasporCauchyeFourier.Uma versão revisada desse texto foi publicada em alemão em 1837,contendoumadefiniçãobastantecitada:

Sejama eb dois números ixos exumaquantidadevariávelquerecebesucessivamente todososvaloresentrea eb.Seacadax correspondeumúnicoy, inito,demaneiraque,quandox semovecontinuamentenointervaloentreaeb,y=f(x)tambémvariaprogressivamente,entãoy édita uma função contínua dex nesse intervalo. Para isso, não é obrigatório, em absoluto, nemqueydependadexdeacordocomumamesmaeúnicalei,nemmesmoquesejarepresentadaporumarelaçãoexpressapormeiodeoperaçõesmatemáticas.33

Antes de tudo, observamos que essa de inição enfatiza o fato de que,dadas duas quantidades variáveisx ey, para quey seja uma função dexnão é necessário que exista uma expressão algébrica associando essavariávelax.Alémdisso,paraqueafunçãoestejabemdeterminada,y=f(x)devereceberapenasumvalorparacada x.Aexigênciadequeparacadaxtenhamos somente um valor paray também está presente na de iniçãoconjuntista que aprendemos na escola, mas a concepção de Dirichlet éindependentedanoçãodeconjunto.

Essa de inição vislumbra a função comouma relação geral entre duasvariáveis, o que permite queDirichlet enuncie as condições para que elapossa ser representada por séries de Fourier em um intervalo (− l, l).Dentreelas,destacamos:

• ser bem-de inida, ou seja, cada um dos valores da ordenada serdeterminadounivocamentepelovalordaabscissa;f

•terumnúmerofinitodedescontinuidadesnointervalo(−l,l).

Na historiogra ia tradicional, bem como nos textos de vulgarizaçãosobreahistóriadanoçãodefunção,enumeram-seospassosna“extensão”

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de sua de inição, desde a identi icação com a expressão analítica até afunção arbitrária. Essa visão parte, frequentemente, de nossa concepçãosobreoqueéessa“arbitrariedade”, investigando,emseguida,osavançose as lacunas que tiveramde ser preenchidos antes que a de inição atualpudesse ser obtida. Tal visão dá margem a questionamentos do tipo “anoção de Dirichlet não era realmente a de uma função arbitrária, massomente contínua por partes”. 34 É verdade, mas Dirichlet, assim comoFourierantesdele,menciona inúmerasvezesas “funçõesarbitrárias”,emambososartigos,parasereferirànecessidadedeiralémdaidenti icaçãoentre função e expressão analítica. Ou seja, apesar de aquilo que eleconsiderava “arbitrário” ser mais um caso particular do que se entendehojedousodesseadjetivo,parecia importante,naquelemomento,a irmarageneralidadecomoformadequestionarareduçãodapráticamatemáticaaoescopodasexpressõesanalíticas.

Essas expressões, compostasporoperações aritméticas simples, foramdurantemuitos anos o principal objeto de estudo da análisematemática,sobretudo no século XVIII. Com o passar do tempo, outras propriedadestornaram-se importantes e classes de função foram introduzidas a partirde novos problemas, como as funções unívocas, contínuas, descontínuasem pontos isolados, diferenciáveis etc. Tais propriedades eramindependentes das possibilidades de se representar uma funçãoanaliticamente. Essa é a principal diferença entre a concepção típica daanálisematemáticadoséculoXVIIIeateoriadefunçõesfundadanoséculoXIX.Aspropriedadesdasfunçõesestudadasdeixamdeserdeduzidasdassuas expressões analíticas e passam a de inir, a priori, uma classe defunçõesaserconsiderada.

Não queremos dizer, com isso, que a noção de função defendida porDirichlettenhasidoimediatamenteincorporadapelamatemáticadeentão.Suade iniçãosófoipopularizadapelotratadopublicadoporH.Hankelem1870.

Uma noção abstrata de função também foi empregada por Riemann apartirdosanos1850.Elepropunhaumaextensãodoconceitode integralque consolidaria a de inição arbitrária de função, uma vez que seusestudos faziam intervir, demodo sistemático, funções reais descontínuas.Riemannsepreocupou,portanto,emestabelecerumateoriadasfunçõesapartirsomentedesuaspropriedades.

Apredominânciadopontodevistaconceitualemmatemática,queabriucaminho para a abordagem conjuntista, foi estimulada por Dirichlet. Mas

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essa tendência seria reforçada por Riemann e Dedekind. Ambos sededicarammaisdiretamenteàcompreensãodasteoriasmatemáticassemrecurso a representações externas. Segundo eles, os novos objetosmatemáticos deviam ser de inidos por suas características internas eadmitidos comoprincípios da teoria. Essa ausência de referência externapode ser vista como a inauguração de uma nova fase da abstração, quetransformarádefinitivamenteamatemáticaemmatemática“pura”.

Caracterização dos números reais e a noção deconjunto

Depois da estranha função sugerida por Dirichlet, proliferarão exemplosde funções patológicas, sobretudo na segundametade do século XIX, queincitarãoumarevisãodade iniçãode função.Umexemplo famosodesses“monstros”, como se dizia no meio, era a função construída porWeierstrass, que desa iava o senso comum da época. Por volta de 1860,Weierstrass adotava uma de inição de função semelhante à de Dirichlet,mas,em1872,apresentouàAcademiadeCiênciasdeBerlimumexemplode função contínua não derivável emnenhumponto. Esse tipo de funçãocontraria nossa intuição geométrica de que uma função traçadacontinuamente, por um desenho a mão livre, deve ser suave, salvo empontosexcepcionais,ouseja,nãopodeterbicosemabsolutamentetodososseuspontos.

Diversos exemplos contraintuitivos surgiram nesse período. Riemannfoi responsável pela criação de alguns deles ao longo de seu estudo daintegração;ainvestigaçãodassériestrigonométricastambémdeuorigemafunçõesbizarras, comoapropostaporDuBois-Reymond (queé contínuamasnãopodeserdesenvolvidaemsériesdeFourier);HankeleDarbouxconstruíramoutrasfunçõespatológicaseinvestigaramsuaspropriedades.Antes, as funções surgiam de problemas concretos, como os de naturezaísica; agora vinhamdo interior damatemática, a partir dos esforços dosmatemáticosparadelimitarosnovosconceitosqueestavamsendoforjadose deviam servir de fundamento para a análise, como os de função,continuidade e diferenciabilidade. Essa autonomia sinalizava a tendênciacrescente de se estabelecer as de inições sobre bases abstratas,independentesdaintuiçãosensíveledapercepçãogeométrica.

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Na função de Dirichlet, icava claro que sua plena compreensãodependia do modo como os racionais e irracionais estavam distribuídossobre o eixo das abscissas, ou seja, sobre a reta numérica. As pesquisassobre convergência que se seguiram ao estudo das séries de Fourierestabeleciam condições que também se baseavam na distribuição dospontossobreumareta.

EmmeadosdoséculoXIX,diversosproblemasmatemáticosconduziama um questionamento sobre o que é um número real e sobre como osracionaiseirracionaissedistribuemnareta.Oestudodaconvergênciadesérieseousodos limitesmotivavamaanálisedosnúmerosparaosquaisas séries convergem: como esses números se distribuem na reta; comouma sequência de números tende para números de outro tipo; quenúmerospodemserencontradosnomeiodocaminhoetc.

CURVADEKOCH

AcurvadeKochfoiapresentadapelomatemáticosuecoHelgevonKochemumartigode1904intitulado “Sur une courbe continue sans tangente, obtenuepar une construction géométriqueélémentaire” (Sobreumacurvacontínuasemtangentes,obtidaporumaconstruçãogeométricaelementar).Aconstruçãoinicia-seapartirdeumsegmentoderetaqueéalteradodeacordocomasseguintesetapas:

•divide-seosegmentoderetaemtrêssegmentosdeigualcomprimento;• desenha-se um triângulo equilátero com base no segmento do meio, obtido no passoanterior;

•apaga-seosegmentoqueserviudebaseaotriângulodosegundopasso.

Dessa forma, quatro novos segmentos são obtidos com comprimento de do tamanhooriginal.Asegundaiteraçãoconsisteemaplicarospassoslistadosacimaemcadaumdosquatrosegmentosobtidosnaiteraçãoanterior.Eassim,sucessivamente,emcadaiteração,aplicam-seospassoslistadosacimaemcadasegmentodaconstrução.AIlustração10mostracincoiteraçõesdaconstrução.

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ILUSTRAÇÃO10

AcurvadeKochéobtidaquandoasiteraçõesserepetemaoin inito.Nolimite,chega-seaumacurva contínua em todos os pontos que não é derivável em nenhumdesses pontos (ou seja, éconstituídaexclusivamenteporbicos).

Antesdessemomentosupunha-se,demodogeral,quearetacontivessetodososnúmerosreais.Porissonãohaviapreocupaçãoemsede iniressetipodenúmero.Umexemplodisso foi visto anteriormente, no estudodasraízesdeumaequaçãodegrauímpar,aoseadmitirqueográ icodeumafunção,positiva(paraxpositivo)enegativa(paraxnegativo),devecortaroeixodasabscissasemumpontoqueéassumidocomoumnúmeroreal.

Apartirde1870,CantorsedebruçarásobreoproblemadassériesdeFourier, investigandoquandoa série trigonométrica,que representaumafunção, é única. Ele mostrou que isso acontece se a série é convergenteparatodososvaloresde x.Mas,emseguida,nabuscadecondiçõesmenosrígidas, Cantor concluiu que a unicidade também pode ser veri icadaquando a série trigonométrica deixa de ser convergente, ou deixa derepresentar a função, emumnúmero inito de pontos excepcionais. Logodepois, ele re inou mais uma vez o argumento, ao perceber que suaconclusão ainda era válida mesmo que o número desses pontosexcepcionaisfossein inito,desdequeestivessemdistribuídossobrearetade um modo especí ico. Para estudar essa distribuição dos pontos, eranecessário descrever os números reais de um modo mais meticuloso edetalhado,semsupor, implicitamenteedemodovago,queessesnúmerosfossem dados pelos pontos da reta. Não entraremos nos detalhes doproblema,poisqueremosdestacarsomenteaconexãoentreoestudodassériestrigonométricaseaconceitualizaçãodosnúmerosreais.

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O trabalho de Cantor sobre esse assunto foi publicado em 1872, masDedekindjávinharefletindosobreosnúmerosreaisesobreanecessidadede estudá-losmais a fundo. Emumpan leto publicado em1872, fazendoreferênciaareflexõesanteriores,Dedekindafirmaque:

Discutindoanoçãodeaproximaçãodeumaquantidadevariável emdireçãoaumvalor limiteixo … recorri a evidências geométricas. … É tão frequente a a irmação de que o cálculodiferenciallidacomquantidadescontínuas,masumaexplicaçãodessacontinuidadeaindanãoédada.35

A im de caracterizar a continuidade, Dedekind julgava necessárioinvestigarsuasorigensaritméticas.Foioestudoaritméticodacontinuidadeque levouàproposiçãodos chamados “cortesdeDedekind”.Ele começoupor estudar as relações de ordem no conjunto dos números racionais,explicitandoverdadestidascomoóbvias,porexemplo:sea>beb>centãoa>c. Apartirdaí, deduziupropriedadesmenos evidentes, comoadequehá in initos números racionais entre dois racionais distintos a ec.Dedekind notou que um racionala qualquerdivideosnúmeros racionaisemduasclasses,A1eA2,aprimeiracontendoosnúmerosmenoresque a;asegunda contendo os números maiores quea. Podemos concluir, assim,quequalquernúmeroemA1émenordoqueumnúmeroemA2.

Comparandoosracionaisaospontosdareta,eleobservouqueexistemmaispontosnaretadoqueosquepodemserrepresentadospornúmerosracionais.Mascomode iniressesnúmeros?AargumentaçãodeDedekindrecorria aos gregos para dizer que eles já sabiam da existência degrandezas incomensuráveis. No entanto, não é possível usar a reta parade inir os números aritmeticamente, pois os conceitos matemáticos nãodevemserestabelecidoscombasenaintuiçãogeométrica.

CONSTRUÇÃODEALGUNSNÚMEROSIRRACIONAIS

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Dadaumacircunferênciacujo raioéumnúmero irracional, como ,marcamosestepontonaretafixandoumcompassonocentrodacircunferênciaegirando-oatéinterceptarareta.

Logo,eranecessáriocriarnovosnúmeros,detal formaque“odomíniodescontínuo dos números racionais R possa ser tornado completo paraformar um domínio contínuo”, 36 como é o caso da linha reta. A palavrausada para designar a propriedade da reta que distingue os reais dosracionais é “continuidade”, que seria equivalente ao que chamamos de“completude”. Apesar de Dedekind a irmar que é preciso “completar” osracionais,essetermonãoeraempregadocomsentidotécnico.

Atéessemomento,acontinuidadedosreaisnãoera justi icadaporquenão era demandada explicitamente, ou seja, tratava-se de umapressuposição implícita dos matemáticos. A elaboração de uma teoriaaritméticadareta,associadaaumcontínuonumérico,se iniciarásomenteno século XIX, com Dedekind. Isso não quer dizer que os matemáticosanteriores tivessem falhado ou fossem negligentes em relação ao rigor.Simplesmenteacontinuidadeeraumdadoenãoumproblema.

Dedekind expôs essa questão em uma correspondência com outromatemático alemão, R. Lipschitz, aluno de Dirichlet, na qual diz que acontinuidadedodomíniodasquantidadeseraumapressuposiçãoimplícitados matemáticos, além da noção de quantidade não ter sido de inida demodopreciso.Atéali,osobjetosdamatemática,asquantidades,existiamea necessidade de de inir sua existência não se colocava. Ao contráriodessassuposições,notexto“WasSindundwasSollendieZahlen?”(Oquesão eoquedevemserosnúmeros?),37 Dedekind insiste que o fenômenodo corte, em sua pureza lógica, não tem nenhuma semelhança com aadmissão da existência de quantidadesmensuráveis, uma noção que elerejeitavaveementemente.

A construção dos reais será feita a partir dos racionais, consideradosdados.Parade iniressesnovosnúmeros,Dedekindpropôstransferirparaodomíniodosnúmerosapropriedadequetraduz,segundoele,aessênciada continuidade da reta. Retomando as duas classes A1 e A2 de inidasanteriormente, ele a irmaque a essência da continuidade estáno fatodequetodosospontosdaretaestãoemumadasduasclasses,demodoquese todo ponto da primeira classe está à esquerda de todo ponto dasegundaclasse,entãoexisteapenasumpontoqueproduzessadivisão.

Comoosracionaispodemserrepresentadosnaretanumérica,opontoquedivide os racionais emduas classes,A1 eA2, seráditoum “corte” dosracionais.Todonúmeroracional adeterminaumcortedessetipo,talquea

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é omaior número emA1, ou o menor emA2. Mas não há somente cortesracionais.

Exemplo1 (corte racional) : De inimos o conjuntoA2 contendoos racionaismenoresque1 :A2={q∈Q |q<1}.EA1contendoosoutrosracionais,ouseja,A1 =Q −A2.Onúmeroqueproduzo corte éo racional1,nesse casotemosoexemplodeumcorteracional.

Exemplo 2 (corte irracional) : De inimosA2 contendo os racionais positivoscujoquadradoémaiorque2,eA1contendoosoutrosracionais,ouseja:

Onúmeroqueproduzocortenãoéracional,poisdeveserumnúmerocujo quadrado é 2, ou seja, . Reside justamente nessa propriedade aincompletude,ouadescontinuidade,dosracionais.

ApresentamosaseguirumailustraçãocomalgunselementosdeA1 eA2paraestesegundoexemplo.

ILUSTRAÇÃO11

Paraobterumconjuntonuméricoquetraduza ielmenteacontinuidadedareta,Dedekindusouumprocedimentoquesetornariamuitofrequentena matemática. Sempre que encontrarmos um número não racionalproduzindoumcorte,deveremos incluiressenúmeronanovacategoriaaser criada, que deve admitir racionais e não racionais. Ou seja, quando ocorte é um número irracional, esse número será reunido aos racionaisformando um conjunto, que gozará da propriedade de continuidade dareta, chamadode “conjuntodosnúmeros reais”. Comessaoperação, esseconjuntonãoserámaisadmitidocomodado,masdefinidodemodopreciso.

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OsestudosdeCantoreDedekindsobreosnúmerosreaisdarãoorigemaumavastagamadenovasperguntasenvolvendoseussubconjuntos.Porexemplo:hámaisnúmerosracionaisouirracionais?Comoenumeraressesnúmeros?

No estudo da representação de uma função qualquer por uma sérietrigonométrica, Cantor já admitiaque essa sériepudesse serdescontínuaem in initos pontos, contanto que estes se comportassem de um modoespecí ico. Esse “modo especí ico” está relacionado justamente àcontinuidadedosreais.Épossívelqueumconjuntoinfinitodepontos,comoos racionais, não complete a reta. A principal propriedade dos númerosracionais, que os torna essencialmente distintos dos reais, é o fato depoderem ser enumerados. O que é isso? Eles são pontos discretos, nãoimbricadosentresi,logo,podemosassociá-losanúmerosnaturaisecontá-los.Oresultadodessacontagemseráumnúmeroin inito,maselapermiteenumerarosracionais.

EssapropriedadelevaráCantoraconcluirqueoconjuntodosnúmerosracionaiséinfinitodeumamaneiradistintadoconjuntodosnúmerosreais,que não podem ser enumerados. O procedimento de “enumeração” doselementos de um conjunto é feito por meio da associação de cada umdesses elementos a um número natural; e a associação é de inida comouma função de um conjunto no outro, uma correspondência biunívocaentreseuselementos.

FUNÇÕESBIUNÍVOCAS

Osdiagramasaseguirrepresentamduasfunções:feg.

Notequenoprimeirodiagrama temoselementosdistintos (x3 ex4) no domínioD que estãoassociadosaomesmovalor(y3)nocontradomínioI.Alémdisso,háelementosemIquenãoestãoassociadosanenhumxnodomíniodef.Omesmonãoocorrenosegundodiagrama.

Uma função é dita biunívoca se diferentes elementos no seu domínio estão associados a

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diferenteselementosnocontradomínioesecadaelementoynocontradomínioestáassociadoaalgumxnodomínio.

Podemospensarnarelação“ser ilhode”entreosconjuntosA={alunosdeumaturma}eB={mãesdosalunos}.Talrelaçãoconstituiumafunção,poisnãoháalunosemmãebiológica.(aindaqueestanãoestejamaisviva)ecadaalunopossuiapenasumamãebiológica.Porém,essafunçãonão é biunívoca, pois pode haver alunas irmãs, isto é, elas terão a mesma mãe (diferenteselementosdodomíniocomamesmaimagem).

Considereagoraarelação“serodobrode”entreosconjuntosA={númerosnaturais}eB={númerospares}. Tal relação constitui uma funçãobiunívoca, pois aodobrar númerosnaturaisdiferentesosresultadosserãodiferentesecadanúmeroparéodobrodealgumnúmeronatural(asuametade).

Nesse contexto surgirá a ideia de função como uma correspondênciaentredoisconjuntosnuméricos.Sexéumelementodoconjuntodosreais,e n um elemento do conjunto dos naturais, pode ser estabelecida umacorrespondência entre x en,demodoquecadaelementodeumconjuntosejaassociadoaum,esomenteum,elementodooutro?Essaéaperguntaque Cantor formula para Dedekind em 1873. Ele mesmo provou que éimpossível encontrar tal correspondência, estabelecendo uma diferençafundamentalentreonúmerodeelementos(cardinalidade)doconjuntodenúmeros reais e o número de elementos do conjunto dos númerosnaturais.

O conceito de correspondência biunívoca servirá de base para aconstituição da nova teoria dos conjuntos, por volta de 1879. Doisconjuntos são ditos com a mesma “potência” se existe correspondênciabiunívoca entre seus elementos. Os conjuntos que possuem a mesmapotência dos naturais são chamados “enumeráveis”, e os outros são “nãoenumeráveis”. A resposta ao critério para que uma série trigonométricarepresente uma função, fornecida por Cantor, repousa sobre essadiferenciação, e essa resposta é a irmativa no caso de a série deixar deconvergir em in initos pontos, contanto que eles formemum subconjuntoenumeráveldareta.

Dedekind dará os próximos passos no desenvolvimento da teoria dosconjuntos ao propor a caracterização dos naturais e racionais em termosde conjuntos. Para ele, os números naturais formam um conjunto de“coisas” ou “objetos de pensamento”. Acontece frequentemente que, poralguma razão, coisas distintasa,b, c,… podem ser percebidas a partir deum mesmo ponto de vista. É o caso dos números: coisas distintas sãoentendidasdeummesmopontodevistaquandoconsideradasapartirdeseus números. Nesse caso, podemos dizer que essas coisas formam umconjunto. Em seguida, Dedekind enuncia as relações básicas envolvendo

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conjuntos que tratam das noções que conhecemos hoje de subconjunto,uniãoeinterseção.

Apartirdosanos1880,Dedekindeoutrosmatemáticos, comoFregeePeano, propuseram construções do conjunto dos naturais e derivaramsuas principais propriedades. Cantor e Dedekind já tinham caracterizadoos reais, e seus estudos, juntamente com os de Weierstrass, foramresponsáveis por fundar a análise sobre novas bases. Mas o grupo deBerlim seguia uma abordagem um pouco distinta da visão conceitual eabstrata praticada por Riemann ou Dedekind. O ponto de vista deWeierstrass tambémpodeserdito conceitual,masdeummododiferentedosmatemáticos de Göttingen, pois ele não tinha omesmo entendimentodo tipo de abstração que estava em jogo ao se de inirem os conceitosbásicosdaanálise.CantorfoiinspiradoporWeierstrass,mas,comomostraFerreirós,38 sua dedicação à teoria dos conjuntos levou-o a se afastar dogrupo de Berlim. Ele chegou a ser criticado porWeierstrass, e o caráterabstratodesuasde iniçõespodeserrelacionadoàin luênciacrescentedeRiemanneDedekindemseustrabalhos,apartirdosanos1880.

A abordagem dos conjuntos e a de inição atualdefunção

A teoria dos conjuntos teve um papel central na organização damatemática moderna e representa o ponto alto de suas expectativas. Ahistóriadaanálisematemáticaévista,frequentemente,comoumaevoluçãodos conceitos intuitivos usados no cálculo do século XVII às de iniçõesrigorosas propostas pelo movimento de aritmetização da análise e pelateoria dos conjuntos. Um bom exemplo é o título do livro editado porGrattan-Guinness em 1980,From Calculus to Set Theory (Do cálculo àteoriadosconjuntos).

AlémdesertidacomooápicedabuscapelorigorquemarcouoséculoXIX, a teoria dos conjuntos é associada à admissão, no interior damatemática, de ideias complexas, como a de in inito, antes renegadas ouentregues a especulações ilosó icas. Na última metade do século XIX,Cantor teria introduzido o in inito na matemática, um dos ingredientesprincipais para o lorescimento espetacular da matemática moderna. Nanarrativa tradicional, a repulsa ao in inito, o horror in initi, teria reinado

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entreosmatemáticosdesdeosgregos,impedindoosavançosdessaciência,atéqueCantorvenceutodasasbarreiraselogroufazercomqueoin initofosse,finalmente,aceito.

OlivroLabyrinthofThought (Labirintodepensamento),deJ.Ferreirós,se inicia com uma citação do escritor Jorge Luis Borges que exprime, demodo um pouco irônico, a miti icação da teoria dos conjuntos e de suaincorporaçãodoinfinito:

Euespiei,atravésdaspáginasdeRusselladoutrinadosconjuntos,aMengenlehre,quepostulaeexplora vastos números que um homem imortal não atingiria mesmo se exaurisse suaseternidadescontando,ecujasdinastiasimagináriaspossuemasletrasdoalfabetohebreucomocifras.Nãomefoidadoentrarnestedelicadolabirinto.39

Muitasnarrativasdo iníciodo séculoXX atribuemaCantor opapel depai fundadordamodernateoriadosconjuntos.ComomostraFerreirósnaintrodução dessa sua obramonumental sobre a história dessa teoria, em1914Hausdorffdedicouoprimeiromanualda teoriadosconjuntosaseucriador, Cantor; e Hilbert escolheu a teoria dos conjuntos como umexemplo-chave do tipo dematemática defendida por ele, frequentementeassociadaaonomedeCantor.

Aprocuradepaisemitosfundadoreséparticularmenteimportantenosmomentos em que uma nova disciplina está buscando reconhecimento.Além disso, durante o fazer matemático, os pesquisadores tendem a seconcentrar em novos resultados e problemas abertos, o que os fazesquecer, naturalmente, as motivações que os conduziram até ali. Masmuitosmatemáticose ilósofos jáhaviamtratadorigorosaepositivamenteda noção de in inito antes de Cantor. Só para dar dois exemplos naAlemanha:Dedekind,namatemática;eHegel,na iloso ia.Alémdisso,comoacabamos de ver, os conjuntos de pontos eram uma necessidade damatemáticanaépocaeforamabordadospordiversosmatemáticos.

Omaisimportanteaqui,noentanto,nãoéfornecerargumentossobreaacuidadehistóricadavisãotradicional.OlivrodeFerreirósnosfazverquea historiogra ia sobre a teoria dos conjuntos reforçou concepçõesequivocadas sobre o desenvolvimento da matemática moderna. AconcentraçãoexcessivanostrabalhosdeCantordeuaimpressãodequeaideiadeconjuntoseoriginou,principalmente,dasdemandasderigorparaa análise. Logo, a utilidade dessa noção em outros ramos damatemática,como a álgebra e a geometria, teria vindo depois, como ummilagre, umsucessoinesperadodaobradeumgênioque,nocaso,seriaCantor.

Esse tipo de reconstrução é comum na abordagem histórica

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retrospectiva. No tema em pauta, ela negligencia os fatores que izeramcomqueateoriadosconjuntosadquirisseumpapelcentralnamatemáticamoderna.Outrotipodehistóriadeveinvestigarnãosomentecomoateoriados conjuntos se desenvolveu, mas como o ponto de vista dos conjuntosganhouespaçonamatemáticaapartirdosanos1850,ou seja, comoumaabordagemconjuntistajáerapraticada,constituindoumterrenofértilparaaproposiçãodeumateoriadosconjuntos.

AnoçãodeconjuntonãoéumadescobertadoséculoXIXexecutadapormentes geniais que, inalmente, desvendaram o fundamento correto damatemática, tidocomoeternamenteválidoe implícitoemtodosostempos,mas que vinha sendo usado por pessoas ainda despreparadas parapenetrar seumisterioso labirinto, como na citação de Borges. Preferimospensar que a matemática efetivamente praticada pelos matemáticos doséculo XIX partia de pressupostos que os izeram inventar noções queparticipavam de uma visão conceitual e abstrata, propícia aodesenvolvimentodanoçãodeconjuntoeàsuaaplicaçãoemproblemasdenaturezasdiferentes.Essepontodevista,quechamamos“conjuntista”,temsua própria história, que não se identi ica com a história da teoria dosconjuntos,comoprocuramosmostraraqui.

Vimos que umdos primeiros a contribuir para essa transformação foiRiemann, o que não quer dizer que ele tenha obtido resultados técnicosque podem ser encaixados no que chamamos, hoje, de teoria dosconjuntos.Ferreirósmostraqueo inícioda teoriados conjuntospode serentendido como um processo de diferenciação progressiva de diferentestraçosabstratosqueapareciamnoestudodeconjuntosconcretos,usadostradicionalmente em matemática. Uma primeira distinção desse tipo foiestabelecida entre os aspectos topológicos e métricos dos objetosgeométricos,daíaimportânciadeRiemann.Emseguida,veiooestudodasestruturasalgébricas,comDedekind;e,depois,adescobertadosnúmerostrans initos por Cantor, juntamente com as propriedades abstratas decardinalidade e ordem. A teoria dos conjuntos emergiu, assim, dainvestigação de conjuntos concretos, encarados de modo cada vez maisconceitualeabstrato.EssahistóriaédetalhadaporFerreirós.Usamossuadistinção entre a teoria dos conjuntos, como ramo da matemática, e aabordagemconjuntista,comoconcepçãosobreamatemática,como imdecaracterizar a imagemdamatemática quemoldou também amaneira deescreversuahistóriaatémeadosdoséculoXX.

Avisãomodernistadamatemáticapregaumarenúnciaaomundo,uma

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vezquenãosedevefazergeometriaouanálisecomosobjetosdadospelosenso comum, mas sim construir o edi ício da matemática sobre noçõesdotadas de uma consistência interna.40 Se quisermos saber o que é umareta, não podemos aceitar o que é comumente concebido como tal. Serápreciso fornecer um sistema de de inições que a constituem como objetoda geometria. Esse modelo axiomático, um dos principais traços damatemática moderna, é associado ao nome de Hilbert, que se tornou omatemáticomais importantedeGöttingennaviradado séculoXIXparaoXX. Depois de serem identi icados diversos paradoxos na teoria dosconjuntos,estapassouaseraxiomatizadaeassugestõesdeHilbertparaosfundamentos da geometria foram exportadas para outros ramos damatemática. No entanto, esse matemático alemão nunca concebeu aaxiomatizaçãocomoum imemsimesmo.Tratava-sedeummétodocomoobjetivo de fundamentar as matemáticas existentes e efetivamentepraticadas.

A imagemdequeamatemática éumsaber axiomatizadobaseadonasnoções de conjunto e estrutura foi popularizada por Nicolas Bourbaki, apartir de 1939, com o início da publicação de seus Éléments desmathématiques: les structures fondamentales de l’analyse (Elementos dematemática: as estruturas fundamentais da análise). “Bourbaki” é opseudônimo adotado por um grupo de matemáticos franceses dos anos1930cujoobjetivoeraelaborarlivrosatualizadossobretodososramosdamatemática, que pudessem servir de referência para estudantes epesquisadores. Cada um desses ramos era visto como uma investigaçãosobre estruturas próprias, tendo como principal ferramenta o métodoaxiomático. Uma de suas principais contribuições foi organizar assubdisciplinas da matemática, selecionando seus conceitos básicos, suasferramentaseseusproblemas.Nessequadro,ade iniçãodefunçãousadapor Dedekind e Cantor será considerada insu iciente e, em seu lugar,Bourbaki41proporá:

Definiçãobourbakistadefunção:SejamE eF dois conjuntos, que podem ser distintos ounão.Uma relaçãoentre um elemento variávelx deE e um elemento variávely deF é ditaumarelação funcional se, para todox pertencente aE, existe um únicoypertencenteaFquepossuiarelaçãodadacomx.Damosonomefunçãoàoperação que associa, desse modo, a todo elementox pertencente aE, oelementoy pertencenteaFquepossuiarelaçãodadacomx;yseráditoo

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valordafunçãonoelementox.

Em seguida, essa primeira versão será reformulada e a função seráde inida como um determinado subconjunto do produto cartesiano dosdois conjuntosE × F. Ou seja, a função é somente um conjunto de paresordenados.Essaabordagemconjuntistadasfunçõeseliminatodasasideiasoriginaisassociadasàvariaçãoe,portanto,ànoçãodevariável.Conjuntoevariação passam a ser ideias inconciliáveis. Podemos de inir variávelusando a noção de conjunto,mas ao preço de conceber todos os valorespossíveisdavariávelaumsótempo.Logo,aoinvésdeserentendidacomouma quantidade indeterminada, que varia, a variável passa a ser umelementodeumconjuntonumérico.

A de inição formal de função, que aprendemos na escola, segue opadrão bourbakista, o que provoca uma di iculdade de conciliação emrelação aos exemplos de função que são efetivamente estudados. É di ícilassociar a noção dinâmica de função, que aparece em situações ísicas, àde iniçãoformal,denaturezaestática.Nahistóriada ísica,afunçãoserviupara estudar a variação, ou a mudança, a partir de uma escolha devariáveisrelevantesemumcertofenômeno.Alémdosexemplos ísicos,asfunçõessãoexempli icadasporcurvasouexpressõesanalíticas,queforamoutrosmodos de conceber funções ao longo da história. Issomostra que,isolada de seu contexto histórico, a de inição de função e as funções queconhecemos durante nosso aprendizado de matemática não convergem.Podemos dizer que se trata de uma de iciência do ensino, porém, nãofazemosessasconsideraçõesparadiscutiraeducação.

Queremos mostrar que as proposições de Bourbaki têm implicaçõesdentro e fora da matemática. 42 A grande obra com que esse grupopretendia reformular todaamatemática–Elementosdematemática – eraumlivro-textoparaensinaraanálisematemáticasobnovasbases.Otítulod eElementos já indicava o desejo de codi icar os estilos de matemáticasegundo os padrões defendidos pelo grupo, mas aos poucos oempreendimento foi estendido para compreender todos os ramos damatemática. Ao invés da diversi icação de métodos e objetos, que tinhaimperado na matemática até aquele momento, era preciso garantir aunidade da disciplina, vista como uma hierarquia de estruturasorganizadaspelométodoaxiomático.Em1948, J.Dieudonnépublicou, emnome do grupo, o manifesto “The architecture of mathematics”, em quedefendiaaedi icaçãodamatemática sobreestruturasde tiposdiferentes.Ametáforadequeseestavapropondouma“arquitetura”esclarecemuito

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sobre o desejo do autor de construir uma teoria uni icada que, como umedifício,seassentassesolidamentesobresuasfundações.

Essa visão contagiou a historiogra ia damatemática. NosElementos dematemática de Bourbaki, cada um dos livros sobre certa subárea eraintroduzidoporumrelato sobrea evoluçãohistóricadaquele assuntoatéali. Esses relatos foram reunidos em um só volume, publicado em 1960comoÉléments d’histoire des mathématiques (Elementos de história damatemática), comcritérios idênticosparaavaliaras ideias importantesdopresenteedopassado.Nãofoiàtoaqueosbourbakistassepreocuparamem escrever uma história damatemática. Alguns de seusmembrosmaisilustres, como André Weil e Dieudonné, publicaram escritos de históriaindependentementedogrupo,masreproduzindoomesmopontodevista.Ahistoriogra ia tradicionaldamatemática,muitasvezescriticadapornós,foiimpulsionadapeloestilobourbakista.

Durante o século XIX, enquanto a matemática se organizava e seinstitucionalizava como matemática “pura”, sua história seguia a mesmatendência,esquecendoosdomínios técnicos,comoa ísicaeaengenharia,quemarcaramodesenvolvimentodamatemáticaatémeadosdoséculoXIXecontinuaramsendoimportantes.Essedesequilíbriopodesersentidoemobrasinfluentesatéhoje,comoolivrodeJ.Dieudonné,Abrégéd’histoiredesmathématiques1700-1900(Resumodahistóriadamatemática1700-1900),de1978.Oautor, integrantedogrupodeN.Bourbaki, adotavaumavisãomodernizante, excluindo tacitamente a maior parte da matemáticaproduzida no período anunciado no título, justamente por se tratar decontribuições relacionadas a aplicações, tidas como irrelevantes. Foi,portanto, quando a matemática passou a se enxergar como matemática“pura” que a distinção entre teoria e prática se tornou importante naescritadesuahistória.Essatendência,queseiniciouno inaldoséculoXIX,seestendeupeloséculoXXecontinuaaserbastantemarcantenahistóriaescrita por matemáticos. Nesse sentido, a história da matemática deBourbaki é exemplar, pois seu objetivo é apresentar novos métodosmatemáticos,legitimando-ospormeiodahistória.

Por volta dos anos 1960, as ideias de Bourbaki contaminaram aeducação,oqueajudouacristalizaraconcepçãopouco,ounada,históricada matemática. Com o movimento da matemática moderna, que tevegrande repercussão no Brasil, defendia-se que essa disciplina devia serensinada com os conceitos de base de inidos àmaneira bourbakista, queseria adaptada às nossas estruturas cognitivas. Nessa época, muitos

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matemáticoseeducadorescompartilhavamacrençadequeosalunostêmdeseracostumadosapensaremtermosdeconjuntoseoperações.Piagetchegouaestabelecerumacorrespondênciaentreasestruturasdefendidaspor Bourbaki e as primeiras operações por meio das quais as criançasinteragemcomomundo.

O estilo bourbakista in luenciou a pesquisa em matemática na época,mas seus efeitosmaisduradouros se fazemsentirna imagemque temos,atéhoje,damatemáticacomoumsaberuni icado.Reescreverahistóriadamatemática e desconstruir seusmitospode ajudar amudar essa visão.Amatemática não trabalha com ideias ixas e seu padrão de rigor não éimutável.Arelaçãoque temoscomessadisciplinasofreasconsequênciasde concepções equivocadas. Pode ser útil, para transformar essa relação,que possamos enxergar a matemática como uma prática cambiante emúltiplaenãocomoumsabertranscendente,portantoa-histórico.

a Trata-se do livroThe Development of the Foundations of Mathematical Analysis from Euler toRiemann, mais especi icamente de seu sexto capítulo, intitulado justamente “The age of rigor” (Aidadedorigor).b Embora a Alemanha só tenha concluído seu processo de uni icação em 1871, para simpli icarchamaremosdeAlemanha,nestecapítulo,todaaregiãodaPrússia.cPartedamatemáticaqueestudaasfunçõescujasvariáveissãonúmeroscomplexosequeestavasendodesenvolvidanaquelemomento.dUmexemplodaconcepçãoaritméticaderigorédadopelasatuaisde iniçõesdenoçõesbásicasdaanáliseemtermosdeε’seδ’s.e Usamos o termo “multiplicidade” pois ainda não estamos atribuindo um sentido técnico a essanoção. A palavra alemãmannigfaltigkeit é traduzida na matemática atual como “variedade”, emportuguês,emanifold,eminglês.Apesardacompreensãocomumdapalavra“multiplicidade”estarassociada à ideia de algo que é “múltiplo” (ou vários), não é nesse sentido que a estamosempregando, o que ica claro quando se fala de “uma multiplicidade”. Usamos “multiplicidade”paraindicaralgoquepossuiváriosaspectos,ouváriasdimensões.f Vemos que essa exigência, que aprendemos na escola como uma propriedade fundamental dafunção, é equivalente à simples demanda de que o valor da função em um ponto possa serdeterminado.

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Anexo:Ahistóriadamatemáticaesuaprópriahistória

OslivrosdehistóriadamatemáticamaisconhecidosnoBrasilsãoHistóriadamatemática, de Carl Boyer, e Introdução à história damatemática , deHoward Eves. Qualquer trabalho que mencione um fato ou umpersonagem histórico da matemática cita, obrigatoriamente, uma dessasobras. Quando muito são mencionados, entre outros, o livro Históriaconcisadamatemática,deDirkStruik,disponívelemportuguês,easobrasem inglêsThe Development of Mathematics, de Eric Temple Bell, eMathematical Thought from Ancient to Modern Times , de Morris Kline.TodosessesautoressãoamericanosouatuaramnosEstadosUnidos.

CarlBoyereraprofessordematemáticaedoutorou-seemhistória,comuma tese sobre a história do cálculo. Foi atuante na história da ciênciaentre 1930 e 1960. Seu livroHistória da matemática foi publicado eminglês em1968 e traduzido para o português logo em seguida, em1974.Trata-sedeumadasprimeirastraduçõesdessaobra,quenãochegouasertraduzida para o francês e apareceu em espanhol e italiano bem maistarde.Conformeacorrentedominantedaépoca,ofocodoautorestámaisna matemática do que nos matemáticos, pois, para ele, os detalhesbiográficostêmpoucainfluêncianodesenvolvimentodosconceitos.

Introdução à história damatemática , de Howard Eves, foi lançado nosEstados Unidos em 1953 e se tornou um livro-texto in luente no país,sendo adotado em diversos departamentos de matemática. O autor seorgulhava de ter introduzido o estudo de problemas com inspiraçãohistórica,cujoobjetivoeramotivarosestudantesparaapesquisanaárea.A edição de 1990 foi traduzida para o português em 1995, mas, antesdesta,váriasoutrasediçõesforampublicadaseminglês,contendorevisõeseampliações.AopassoqueBoyersededicouàhistóriadamatemáticadeum modo mais profundo e contribuiu para a pro issionalização dessecampo de saber nos Estados Unidos, Eves escreveu seu livro como umprofessordematemáticacominteresseemhistória.

Outro professor de matemática era Dirk Struik, que pretendia

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impulsionarointeressedosjovenspelahistóriadessadisciplinacomoseulivroHistória concisa da matemática , de 1948, que ganhou edição emPortugal em 1989. Diferentemente de outras abordagens, esse autorenfatiza os aspectos sociais a partir de uma perspectiva marxista. Em1969, lançouASourceBookinMathematics1200-1800 (Livrodefontesemmatemática 1200-1800), reunindo importantes textos dematemáticos dopassado.

EricTempleBellfoiummatemáticoatuanteentreosanos1920e1940.Em1937, escreveuMenofMathematics:TheLivesandAchievementsoftheGreat Mathematicians from Zeno to Poincaré (Homens damatemática: asvidaseosresultadosdegrandesmatemáticos,deZenãoaPoincaré)e,em1 9 4 0 ,The Development of Mathematics (O desenvolvimento damatemática).Esseautorprivilegiavadetalhessobreosmatemáticos,oquepoderiafornecer,deseupontodevista,umaperspectivamaisinteressantesobreahistóriadadisciplina.Seusrelatos,noentanto,continhamdiversoserroseinterpretaçõesduvidosas.

In luenciado por Boyer,Morris Kline valorizava o papel da história damatemática, em particular na reforma do ensino. Sua contribuição maisimportanteparaahistóriafoiaobraMathematicalThoughtfromAncienttoModern Times (Pensamento matemático dos tempos antigos aos temposmodernos),de1972.

Quase todos esses autores escreveram seus textos mais importantesantesdosanos1970,logo,suavisãosobreahistóriadamatemáticajápodeser considerada ultrapassada. Não queremos desmerecer o trabalhodesses pioneiros, que ajudaram a fundar a história damatemática comocampodepesquisaemotivaramo interessede inúmeros jovensporessaárea.A intenção aqui é ressaltar que suas obras continuama ser citadassemumavisãocrítica,aindaqueinúmerostrabalhoshistóricos,nasúltimasdécadas, tenhamdesmentido e questionado grande parte das a irmaçõesnelasreproduzidas.Atéessemomento,oslivrosdehistóriadamatemáticaeramescritos,principalmente,pormatemáticoseprofessores.Adécadade1970marcouumaviradanahistoriogra ia,poisapro issãode“historiadordamatemática”começouaexistir.TalmudançasedeuprimeiramentenosEstados Unidos, mas também em outros países, cuja produção históricaanteriortambémeraintensa,apesardemenosconhecidanoBrasil.

A história da matemática teve um período de grande atividade naEuropa entre as últimas décadas do século XIX e a Primeira GuerraMundial.1UmexemploéaobramonumentaldomatemáticoalemãoMoritz

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Cantor,Vorlesungen über Geschichte der Mathematik (Preleções sobre ahistóriadamatemática),publicadaemquatrovolumesentre1880e1908(este último volume com colaboradores), cobrindo um longo período: dostempos antigos até1200;de1200a1668;de1668 a1758; e de1759 a1799. Outra iniciativa colossal foi a organização daEncyklopädie dermathematischen Wissenschaften (Enciclopédia das ciências matemáticas),coordenadaporFelixKlein,quepretendiaservirde fonteparaumavisãogeralsobreaáreanaquelemomento,mastambémsobresuapré-história.Operíodo foimarcado aindapor inúmeras ediçõesde trabalhosoriginaisde matemáticos renomados do passado, como as traduções dos textosgregosfeitasporJ.L.Heiberg(paraoalemão),T.L.Heath(paraoinglês)eP. Tannery (para o francês). Não é di ícil imaginar que o períodoentreguerras tenha interrompido essa intensa produção europeiarelacionada à história da matemática, um campo de pesquisas entãoincipiente.Depoisda SegundaGuerra, houve trabalhospontuais, comoosdeOttoNeugebauer,que,apartirde1929,passoua liderarumgrupodehistoriadores sobre asmatemáticas antiga e árabe. Estudos sobre outrosperíodos da história eram escassos, em parte devido ao predomínio davisãopositivistaem iloso ia,mastambémemoutrasáreas,oquepodeterin luenciado os matemáticos e outros pesquisadores a pensarem que a“históriaerabobagem”.2

Noentreguerras,osEstadosUnidossedestacaramemrelaçãoàhistóriadamatemática. Florian Cajori, já conhecido na área, publicou a famosaAHistory of Mathematical Notations (Uma história das notaçõesmatemáticas);3 David E. Smith lançouHistory of Mathematics em 1923(concentrado em tópicos elementares); e E.T. Bell começou a editar seusprimeiros trabalhos. A partir dos anos 1930, o historiador da ciênciaGeorgeSartonpassoua chamar a atençãopara a importânciadahistóriada matemática. Mas somente depois da Segunda Guerra Mundial essecampo ganhou novo impulso, comomostram os trabalhos de C. Boyer, D.StruikeM.Kline,jácitados,mastambémosdeO.Neugebauer,quechegouem 1939 aos Estados Unidos, fugindo do nazismo, e contribuiu para ainstitucionalizaçãodahistóriadamatemáticanopaís.

Na Europa, sobretudo na França e na Alemanha, houve iniciativasisoladasnesseperíodo,massomenteapartirde1960ahistóriadaciênciavoltouacrescer.Esseéumanoimportante,poismarcaafundaçãodeumadas revistasmais conhecidas até hoje dedicada especi icamente ao tema:ArchiveforHistoryofExactSciences .Apesardeesseperiódicotambémter

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divulgado, desde seus primeiros números, artigos de história damatemática,omovimentoparareconhecerahistóriadaciênciacomoáreade pesquisa não foi acompanhado, de imediato, por um esforço similarpara institucionalizar a história da matemática.4 Somente a partir demeados dos anos 1970, a história damatemática voltou a progredir, nãoapenasnaEuropaenosEstadosUnidos,mastambémempaísesforadesseeixo, como o Brasil, que passaram a se interessar pela história de suasprópriasmatemáticas.5Comessas iniciativas,oeurocentrismocomeçavaaser,pelomenos,amenizado.6

Em 1974, o americano Kenneth O. May fundou a revistaHistoriaMathematica, primeiro periódico de pesquisa no ramo.Um traço singularda fase que se iniciou nos anos 1970 é a releitura crítica dasinterpretações dos primeiros historiadores da matemática antiga. 7 Doisnomessãoexemplaresnessadiscussão.OprimeiroéodeWilburR.Knorr,quetrabalhounosEstadosUnidosesededicouintegralmenteàhistóriadamatemática e das ciências antigas. Seus estudos foram em história daciência e não em matemática, e uma versão revisada de sua tese dedoutorado, lançada em 1975,The Evolution of the Euclidean Elements, setornouumclássicoque,naspalavrasdoautor,noprefácio,iria“oualteraroupôrsobumanovaluz,virtualmente,todatesepadrãosobreageometriagrega do século IV”. Knorr publicou também diversas outras obras querevolucionaramahistóriadamatemática.

O segundo exemplo é Sabetai Unguru, romeno que estudou iloso ia ehistória da matemática em Israel e nos Estados Unidos e publicou, em1975, o polêmico artigo “On the need to rewrite the history ofmathematics”,8dirigindofortecríticaàshistóriasdamatemáticagregamaisreconhecidas naquele momento, entre as quais se incluíam as de O.Neugebauer e de B.L. van der Waerden. Nesse artigo, os antigoshistoriadores da matemática grega são desquali icados como“matemáticos”esuastesessãoapontadascomoanacrônicas,marcadasporreconstruções racionais dos conteúdos com base na diferença entrenecessidade lógicaenecessidadehistórica.Talpolêmica foi crucialparaade inição da personalidade da história da matemática, contrastandointerpretações conceituais, baseadas em uma imagem moderna damatemática, com estudos históricos que levavam em conta o contextocultural.

No caso da matemática antiga, principalmente, passou a serdeterminanteumamaioratençãoaoexametextualdasevidências,nãosó

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matemáticas, mas de outras manifestações que pudessem ajudar nacompreensão da época estudada. Os trabalhos inovadores de JöranFriberg, Jens Høyrup e Eleanor Robson, nos anos 1980 e 1990,transformaram de modo irreversível a imagem da matemáticamesopotâmica, antes estudada pormeio de reconstruções anacrônicas. Amesma revolução não aconteceu na história que aborda períodos maisrecentes. O estudo da matemática na Idade Média e no Renascimentorecebeu a in luência dessas transformações no modo de fazer história,incluindoanálisesmaiscontextualizadassobreodesenvolvimentogeraldaciência, bem como da visão sobre a ciência na época. Mas a história damatemática moderna, que reconhecemos como mais próxima da nossa,estáapenascomeçandoaserreescrita.9

Otipodeabordagem10presentenahistóriaescritaporBourbakipossuiressonância com a história da ciência chamada “internalista”, ou seja,aquela exposta como um desenvolvimento de conceitos guiados pornecessidades internas à matemática, focando em resultados e provas.In luenciados pelas calorosas discussões sobre a pertinência demétodosmais amplos para estudar a história da ciência, alguns historiadores damatemática passaram a dar mais atenção, a partir dos anos 1980, aocontexto social, educacional e institucional, bem como à sua in luênciasobre a produçãomatemática. Sob o impulso de diversas forças, iniciava-se, assim, uma fase de maior preocupação com as práticas culturais,contrabalançandoopapelpreponderantequeosconceitostiveramparaoshistoriadoresdasgeraçõesanteriores.11

Passou-se a enfatizar a diferença entre, por um lado, reconstruir umasituação histórica como ela parece ter se dado em seu contexto, e comoparecetersidopercebidaporseusprotagonistas,e,poroutro,reconstruira história a partir de uma visão moderna. Disseminaram-se, nessemomento, as críticas aos anacronismos e ao chamado “whiggismo”,herdadasdahistóriadaciência.Grattan-Guinness,12porexemplo,distinguedoismodosde trataramatemáticadopassado:enfatizandoasuahistóriapropriamente dita ou a nossa herança. No primeiro caso, o historiadorpergunta: “O que aconteceu (ou não) no passado? Por que sim? Por quenão?” Já o ponto de vista da herança quer saber: “Como chegamos atéaqui?” Seu esforço em caracterizar essa diferença de abordagensmostraque ela ainda é pertinente.Mesmo que as duas atividades, a história e aherança, sejam perfeitamente legítimas, a confusão entre ambas não é. Énaturalqueummatemático,aoexploraroescopoeasimplicaçõesdeuma

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ideia matemática desenvolvida recentemente, tente examinar problemasou resultados antigos a partir de uma nova perspectiva, fornecida pelasferramentas que estão sendo propostas. O inconveniente surge quandoesse exercício matemático, interessante e legítimo, é interpretado comohistóriadamatemática.Éprecisoqueestejaclaroqueaescritadahistóriaemtermosdeherançanãoéumatarefarealmentehistórica.

Na visão internalista ou retrospectiva da história supõe-se que amatemáticaéumsabercumulativo,ouseja,seconstituicomoumconjuntodeconhecimentosquevãoseadicionando, seacumulando,paraconstruirum todo ordenado e sistemático. Acreditamos, no entanto, que não existeuma história da matemática de initiva, à qual cada geração dehistoriadores vai adicionando sua singela contribuição. Há matemáticasdiferentes,emtemposdiferentes.Seexistisseapenasumamatemática,nãohaveria lugar para as múltiplas interpretações que mantêm viva, epulsante,apesquisaemhistóriadamatemática.

É importante notar, contudo, que um dos aspectos presentes naconstituição dos saberes matemáticos é sua pretensão à universalidade.Aindaqueosigni icadodenoçõescomo“generalidade”,“universalidade”e“demonstração”tenhamudadoaolongodahistória,otrabalhomatemáticofoi executado, em diferentes momentos, como uma atividadedemonstrativa, almejandoproduzir resultados segundo regras próprias auma época dada. Os processos de abstração, bem como asmanipulaçõessimbólicaspormeiodasquaiselessemanifestam,possuemumahistóriaeforamtraçoscaracterísticosdapráticamatemática–sobretudoemépocasmaisrecentes–e,comotais,precisamseranalisadosdeperto.

Uma história da matemática que se dedique ao contexto no qual otrabalho matemático se produziu – como as escolas, instituições outradições de pesquisa –, mas que deixe de lado a especi icidade dainvençãomatemáticaedeseuobjetodeestudo,tambéméparcial.Omodode argumentar a generalidade de um procedimento, de enunciar umatécnica ou uma demonstração, corresponde a normas em vigor em umadeterminadaépoca,queomatemático,namaioriadasvezes,nãoexplicitaporque jáas interiorizou. Interrogarosmodoscomoessespadrões foramincorporados exige, portanto, a análisede textosquemostremcomoumadeterminadamatemática foi escrita, bem como suas relações com outrostextos da época. Essa necessidade torna a história da matemática umaatividade complexa que requer, além de sensibilidade histórica, umacompreensãodaatividadematemática.Taldi iculdademerece,todavia,ser

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enfrentada, uma vez que esse caminho permite ultrapassar a dicotomiaentre saber abstrato e saber concreto, entre matemática teórica ematemática prática, e defender a existência, e a recorrência, ao longo dahistória,de“práticasmatemáticas”.

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Notas

Apresentação

1.H.Eves,Introduçãoàhistóriadamatemática,p.107.2. Uma exceção é um artigo recente escrito por C.H.B. Gonçalves e C. Possani, “Revisitando a

descobertadosincomensuráveisnaGréciaantiga”,noqualosautoresanalisamargumentosderespeitadoshistoriadoresparamostrarainconsistênciadatesedequetenhahavidoumacrisenoseiodaescolapitagórica.

3.Talprocedimentofoiutilizadonaediçãodolivro Introduçãoàhistóriadamatemática,deH.Eves,noqual,antesdecadaseção,foraminseridos“panoramasculturais”visandoexporoambientehistórico da época tratada, mas sem conectá-lo aos desenvolvimentos matemáticospropriamenteditos.

Introdução

1.TítulotomadoemprestadodoartigodeJ.Høyrup“Theformationofamyth:Greekmathematics–ourmathematics”.Muitasideiasapresentadasnessaseçãoseguemdepertoessehistoriador,responsávelporgrandepartedasinovaçõesnomododefazerhistóriadamatemáticaapartirdosanos1990.

2.Aesserespeito,ver,porexemplo,C.Ginzburg,Oqueijoeosvermes.3. B.L. van der Waerden,Science Awakening: Egyptian, Babylonian and Greek Mathematics , p.4,

traduçãominha.4.J.Høyrup,“TheformationofIslamicmathematics.Sourcesandconditions”,p.41.5.VerR.A.Martins,“AmaçãdeNewton,história,lendasetolices”.6. Uma primeira versão deA estrutura das Revoluções Cientí icas , de Thomas Kuhn, já havia

aparecido como parte daInternational Encyclopedia of Uni ied Science. Em 1957, algunspensadores reuniram-se para re letir sobre os caminhos e as crenças da história da ciência,entre eles especialistas da históriamedieval, comoM. Clagett e R.Merton, alémdo próprio T.Kuhn. As discussões desse encontro estão reunidas em M. Clagett,Critical Problems in theHistoryofScience.

7. Esseeospróximosdoisparágrafossebaseiamnoartigo“Ahistoriogra iacontemporâneaeasciênciasdamatéria:umalongarotacheiadepercalços”,deA.M.Alfonso-Goldfarb,M.H.M.FerrazeM.H.R.Beltran.

8.Paraumaanálisedessafase,comparando-acomasanteriores,verA.A.P.Videira,“Historiogra iaehistóriadaciência”.

9.H.Butterfield,TheWhigInterpretationofHistory.10.VerL.Brunschvicg,Lesétapesdelaphilosophiemathématique.11.T.Kuhn,AestruturadasRevoluçõesCientíficas,cap.11.

1.MatemáticasnaMesopotâmiaenoantigoEgito

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1. Muitos desses tabletes estão disponíveis na internet na biblioteca digital cuneiforme TheCuneiformDigitalLibraryInitiative-CDLI(http://cdli.ucla.edu/),quecompreendemaisde240miltabletes.

2. H.J. Nissen, P. Damerow e R.K. Englund, Archaic Bookkeeping: EarlyWriting and Techniques ofEconomicAdministrationintheAncientNearEast,p.28-9.

3.VerJ.Høyrup,Lengths,Widths,Surfaces.APortraitofOldBabylonianAlgebraandItsKin,p.8.4. Sobreatraduçãodostextoscuneiformes,verC.H.B.Gonçalves,“Observaçõessobreatradução

detextosmatemáticoscuneiformes”.5.D.FowlereE.Robson,“SquarerootapproximationsinOldBabylonianmathematics:YBC7289

incontext”.6.VerO.NeugebauereA.Sachs,MathematicalCuneiformTexts,eO.Neugebauer,TheExactSciences

in Antiquity. Ver também B.L. van der Waerden,Science Awakening: Egyptian, Babylonian andGreekMathematics.

7.VerJ.Høyrup,op.cit.,p.50.8.ConferirJ.Ritter,“Babylone–1800”.9. Fornecida emE.Robson, “Neither SherlockHolmesnorBabylon: a reassessment of Plimpton

322”e“Wordsandpictures:newlightonPlimpton322”.10.EstudadosemE.Robson,“Mesopotamianmathematics”.11.Paramaisinformaçõessobreade iniçãoformaldenúmero,verP.R.Halmos, Teoriaingênuados

conjuntos.12.Aristóteles,Metafísica,98b20-25.

2.LendassobreoiníciodamatemáticanaGrécia

1.Heródoto,Œuvrescomplètes,II,109,p.183.2.B.Vitrac,“Dossier:lesgéomètresdelaGrèceantique”.3.J.-P.Vernant,Mitoepensamentoentreosgregos.4.W.Burkert,LoreandScienceinAncientPythagoreanism,p.413-20.5.Aristóteles,Metafísica,livroI,cap.2,983a.6.Aristóteles,Metafísica,986a22.7.B.Vitrac,op.cit.8.Euclides,Elementos,livroV,definição3.9. Em “Eudoxos-Studien I”, O. Becker expõe uma teoria das razões e proporções baseada na

antifairese que seria anterior à deEudoxo.No entanto, seus pressupostos sãomais lógicos doque históricos, o que é considerado anacrônico por W. Knorr em “Impact of modernmathematicsonancientmathematics”.

10.Proclus,ACommentaryontheFirstBookofEuclid’sElements,p.49,traduçãominha.11.D.Fowleranalisaasmotivaçõesdesseinteresseem“RatioinearlyGreekmathematics”.12.Aristóteles,Metafísica,Analíticosposteriores,I.6-7,75a.13. C.H.B. Gonçalves e C. Possani, em “Revisitando a descoberta dos incomensuráveis na Grécia

antiga”, analisam textos históricos que defendem a tese da crise dos incomensuráveis, bemcomoalgunsdosargumentos, citadosporBurkert,paraexplicaraorigem,aindanaGrécia,dacrençanaincompatibilidadeentreopensamentopitagóricoeosincomensuráveis.

14. Um indíciodoempregodessemétodopodeserencontradono tratadoperipatético “De lineisinsecabilibus”(970a,15-19),atribuídoaAristóteles.

15.Aristóteles,Primeirosanalíticos,I.23,41a29.16. OdiálogofoireproduzidodePlatão,DiálogosI:Mênon,Banquete,Fedro,RiodeJaneiro,Ediouro,

1999(asfiguraseasinformaçõesentrecolchetesforamintroduzidaspornós).

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3.Problemas,teoremasedemonstraçõesnageometriagrega

1.PappusdeAlexandria,Collectionmathématique,livroIII,proposição5,traduçãominha.2.W.Knorr,“Archimedesandthepre-Euclideanproportiontheory”.3.Ibid.,p.28.4. A tese foi publicada no artigo “über die Rolle von Zirkel und Lineal in der griechischen

Mathematik”(Sobreopapeldaréguaedocompassonamatemáticagrega).5. Utilizamos neste capítulo a tradução brasileira dosElementos feita por Irineu Bicudo,Os

“Elementos”deEuclides.6.I.Mueller,PhilosophyofMathematicsandDeductiveStructureinEuclid’sElements.7.B.L.vanderWaerden,ScienceAwakening:Egyptian,BabylonianandGreekMathematics.8.S.Unguru,“OntheneedtorewritethehistoryofGreekmathematics”.9. O resumo dos argumentos de ambos os lados pode ser encontrado em G. Schubring, “The

debateona‘geometricalgebra’andmethodologicalimplications”.10.Aristóteles,Metafísica,NI1088a.11.Arquimedes,Ométododosteoremasmecânicos,apudE.J.Dijksterhuis,p.314.12.UmaanálisedessetrabalhopodeserencontradaemS.Costa,“OmétododeArquimedes”.13.PappusdeAlexandria,Collectionmathématique,livroII,p.212-3.14.W.Knorr,op.cit.15. Para aqueles quedesejam se aprofundarnasCônicas deApolônio, Fried eUnguru fornecem,

e mApollonius of Perga’s Conica: Text, Context, Subtext . Mnemosyne Supplement, uma novatradução desse texto, livre dos anacronismos que o associavam à suposta álgebra geométricadosgregos.

16.W.Knorr,TheAncientTraditionofGeometricProblems.

4. Revisitando a separação entre teoria e prática: Antiguidade eIdadeMédia

1.VerJ.L.Berggren,EpisodesintheMathematicsofMedievalIslam.2.Plutarco,TheLifeofMarcellus,p.471.3.F.VièteapudHøyrup,“Theformationofamyth:Greekmathematics–ourmathematics”,p.14.4.B.Vitrac,“Dossier:lesgéomètresdelaGrèceantique”.5.S.Cuomo,PappusofAlexandriaandtheMathematicsofLateAntiquity.6.G.H.F.Nesselman,DieAlgebraderGriechen.7. A esse respeito e para uma distinção alternativa, ver Heeffer, “On the nature and origin of

algebraic symbolism”. Esse autor mostra ser possível identi icar, na história da álgebra,raciocínios simbólicos que não empregam símbolos. Ou seja, para fazer uma história sobre aemergência do simbolismo em matemática não basta procurar as fontes dos símbolos queusamoshoje,comofezF.CajoriemAHistoryofMathematicalNotations.

8.J.Klein,GreekMathematicalThoughtandtheOriginsofAlgebra.9.J.Christianidis,“ThewayofDiophantus:someclarificationsonDiophantus’methodofsolution”.10.E.T.Bell,TheDevelopmentofMathematics,p.59.11.K.Plofker,“MathematicsinIndia”.12.A.Djebbar,Unehistoiredelasciencearabe.13. M. Chasles,Aperçu historique sur l’origine et le développement des méthodes en géométrie,

particulièrementdecellesquiserapportentàlagéométriemoderne,p.51,traduçãominha.14.B.Vitrac,“Peut-onparlerd’algèbredanslesmathématiquesgrecquesanciennes?”.15.R.Rashed,Al-Khwarizmi:Lecommencementdel’algèbre,p.96.

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16.J.Høyrup,“TheformationofIslamicmathematics.Sourcesandconditions”.17.C.C.Gillispie,DictionaryofScientificBiography.18.J.Høyrup,JacopodaFirenze’s“TractatusAlgorismi”andEarlyItalianAbbacusCulture.19. Ver M. Abdeljaouad, “Le manuscrit mathématique de Djerba: une pratique de symboles

algébriquesmaghrebinesenpleinematurité”.20. M.Moyon, “La tradition algébrique arabe du traité d’Al-Khwarizmi auMoyenÂge latin et la

placedelagéométrie”.21.R.Recorde,TheWhetstoneofWitte,whichistheSecondPartofArithmetik.22.J.A.Stedall,ADiscourseConcerningAlgebra:EnglishAlgebrato1685.

5.ARevoluçãoCientíficaeanovageometriadoséculoXVII

1.VerH.F.Cohen,TheScientificRevolution:aHistoriographicalInquiry.2.Algunsestudosqueexibemacomplexidadedeinteressesdospensadoresdaépocapodemser

encontradosemM.Osler(org.),RethinkingtheScientificRevolution.3.VerS.Gaukroger,TheEmergenceofaScientificCulture.4.F.Viète,Introductionàl’artanalytique,traduçãominha.5.H.J.M.Bos,RedefiningGeometricalExactness,p.147,traduçãominha.6. Ver S. Drake, “Galileo’s experimental con irmation of horizontal inertia: unpublished

manuscripts”.7.P.Machamer,“Galileo’smachines,hismathematics,andhisexperiments”.8.R.Descartes,Regrasparaadireçãodoespírito,regraIV,p.29.9. Uma tradução do texto de Descartes foi publicada em português com o título “A dióptrica:

discursos I, II, III, IV e VIII”. J.P.S. Ramos faz comentários bastante esclarecedores sobre essetextoem“DemonstraçãodomovimentodaluznoensaiodeópticadeDescartes”.

10.R.Descartes,TheGeometry,p.8-9.11.Ibid.,p.28.12.Ibid.,p.43.13.M.S.Mahoney,TheMathematicalCareerofPierredeFermat,1601-1665.

6.Umrigorouvários?AanálisematemáticanosséculosXVIIeXVIII

1.Emsuahistóriadocálculo,publicadaoriginalmenteem1949,C.B.Boyerdestacaamudançadeponto de vista ocorrida emmeados do século XVIII, quando se passou a rejeitar concepçõesgeométricaseenfatizarmétodosformais(cf.C.B.Boyer,TheHistoryofCalculusanditsConceptualDevelopment). Essa tendência foi documentada mais tarde, e com mais detalhes, por outroshistoriadores,comoH.J.M.Bosem“Differentials,higher-orderdifferentialsandthederivativeintheLeibniziancalculus”.

2.J.Hadamard,“Lecalculfonctionnel”,traduçãominha.3. M. deL’Hôpital,Analysedes in inimentpetitspour l’ıntelligencedes lignes courbes,prefácio,p.xv,

traduçãominha.4. Este e os três próximos parágrafos são inspirados em G. Schubring,Con licts Between

Generalization,Rigor,andIntuition.5.E.Barbin,LarévolutionmathématiqueduXVIIèmesiècle,p.195.6.H.J.M.Bos,op.cit.,p.17,traduçãominha.7.Paramaisinformações,verG.Schubring,“Aspettiistituzionalidellamatematica”,p.375.8. J. Bernoulli, “Remarques sur ce qu’on a donné jusqu’ici de solutions des problèmes sur les

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isoperimètres”,Operaomnia,vol.II,p.241,traduçãominha.9.L.Euler,Introductioinanalysininfinitorum,Operaomnia,vol.VIII,p.18,traduçãominha.10.Ibid.,p.17,traduçãominha.11. L. Euler, Institutiones calculi differentialis cumeiususu inanalysi initorumacdoctrina serierum ,

Operaomnia,vol.X,p.4,traduçãominha.12.D’Alembert, Encyclopédieoudictionnaireraisonéedessciences,desartsetdesmétiers ,vol.7,grifos

doautor,traduçãominha.13.G.Schubring,ConflictsBetweenGeneralization,Rigor,andIntuition,p.152,traduçãominha.14.LaDécade,10.FrimaireanIII,vol.3,p.462,apudG.Schubring,op.cit.,p.280,traduçãominha.15.EssadiscussãoéanalisadaemG.Schubring,“Fourier:amatematizaçãodocalor”.16.J.Fourier,Théorieanalytiquedelachaleur,p.552,grifodoautor,traduçãominha.17.Idem.18. Para mais detalhes, ver J. Dhombres, “The mathematics implied in the laws of nature and

realism,ortheroleoffunctionsaround1750”.19.I.Newton,Princípiosmatemáticosdafilosofianatural,p.170.20.A.Koyré,NewtonianStudies,p.163,traduçãominha.21.I.Newton,op.cit.,p.167-8.22.P.S.Laplace,Expositiondusystèmedumonde,p.440,traduçãominha.23.Ibid.,p.437.24. As consequências dessa transformação são analisadas por Y. Gingras em “What did

mathematicsdotophysics?”.

7.OséculoXIXinventaamatemática“pura”

1. J. Lützen, “Between rigor and applications: developments in the concept of function inmathematicalanalysis”,p.155,traduçãominha.

2.G.Schubring,ConflictsBetweenGeneralization,Rigor,andIntuition.3.Idem.4.S.F.Lacroix,Traitéducalculdifférentieletducalculintégral.5.L.Carnot,Réflexionssurlamétaphysiqueducalculinfinitésimal,p.2,traduçãominha.6.A.L.Cauchy,Coursd’analysealgébrique,p.ii,traduçãominha.7.J.Grabiner,TheOriginsofCauchy’sRigorousCalculus.8.A.L.Cauchy,op.cit.,p.19,traduçãominha.9.J.Fourier,“Rapportludanslaséancepubliquedel’Institutdu24avril1825”,p.xxxvi.10.I.Grattan-Guinness,ConvolutionsinFrenchMathematics,1800-1840.11.B.Belhoste,“TheÉcolePolytechniqueandmathematicsinnineteenth-centuryFrance”.12. U. Bottazzini, “Geometrical rigour and ‘modern analysis’, an introduction to Cauchy’s Cours

d’analyse”.13.A.L.Crelle,apudSchubring,op.cit.,p.484,grifosdoautor.14.J.Ferreirós,LabyrinthofThought:aHistoryofSetTheoryanditsRoleinModernMathematics.15.M.Stifel,Arithmeticaintegra,p.103,trechotraduzidodolatimporCarlosH.B.Gonçalves.16.A.Girard,Inventionnouvelleenalgèbre.17.Ibid.,p.F.,traduçãominha.18.R.Descartes,TheGeometry,livroIII,p.86,traduçãominha.19.G.Cardano,TheRulesofAlgebra(ArsMagna),livroXI,p.65-6,traduçãominha.20.R.Bombelli,L’Algebra,p.133,traduçãominha.21.G.Schubring,op.cit.22.I.Newton,SirIsaacNewton’sTwoTreatisesoftheQuadratureofCurves,p.1.

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23.G.Schubring,op.cit.24.J.-R.d’Alembert,Réflexionssurlacausegénéraledesvents.25.G.Schubringmostra,em“Argandandtheearlyworkongraphicalrepresentation:newsources

and interpretations”, que não há evidências su icientes que comprovem a identidade doArgandautordoartigo.Essehistoriadorfornecehipótesesnãoconvencionaisparaacirculaçãodo pensamento de Argand nos primeiros anos do século XIX, uma vez que seu trabalho sóganhoupublicidadenasegundametadedesseséculo.

26.G.Schubring,op.cit.27.I.Kant,AttempttointroducetheconceptionofNegativeQuantitiesintoPhilosophy.28.C.F.Gauss,“Theoriaresiduorumbiquadraticum.Commentatiosecunda[Selbstanzeige]”, Werke,

p.175-6,traduçãodeG.Grimberg.29.Ibid.,p.175.30.VerG.Schubring,op.cit.,p.602.31.C.F.Gauss,op.cit.,p.176.32. J.P.G. Lejeune-Dirichlet,Werke, vol.2, p.245. Na realidade, essa frase foi pronunciada no

obituário do matemático alemão C.G.J. Jacobi e não servia para exaltar essa visão, mas paraa irmarque,apesardeestaseratendênciadominante,ostrabalhosaplicadosdeJacobideviamservalorizados.

33. J.P.G. Lejeune-Dirichlet, “Über die Darstellung ganzwillkürlicher Funktionen nach Sinus undCosinusreihen”,Werke,p.135-6,traduçãominha.

34. Essa discussão aparece em textos inspirados por uma observação análoga encontrada noin luente artigo de A.P. Youschkevitch “The concept of function up to themiddle of the 19 th

century”.35.R.Dedekind,“Continuityandirrationalnumbers”,p.1-2,traduçãominha.36.Ibid.,p.6.37.R.Dedekind,textotraduzidoparaoinglêscomotítulo“Thenatureandmeaningofnumbers”.38.J.Ferreirós,LabyrinthofThought:aHistoryofSetTheoryanditsRoleinModernMathematics.39.J.L.Borges,Lacifra,apudJ.Ferreirós,op.cit.,traduçãominha.40. Para uma caracterização detalhada desse tipo de matemática como “moderna” ver J. Gray,

Plato’sGhost:theModernistTransformationofMathematics.41.N.Bourbaki,Élémentsdesmathématiques.42. Às vezes mais fora do que dentro, como sugere L. Corry emModern Algebra and the Rise of

MathematicalStructures,principalmentenoquedizrespeitoàmatemáticaquesedesenvolveudepoisdafaseáureadogrupo.

Anexo:Ahistóriadamatemáticaesuaprópriahistória

1. Paramais detalhes sobre a história da história damatemática antes desse período, ver: D.J.Struik, “Thehistoriographyofmathematics fromProklos toCantor”, e S.Nobre, “Introduçãoàhistóriadahistóriadamatemática:dasorigensaoséculoXVIII”.

2. Essa hipótese é levantada em I. Grattan-Guinness,Companion Encyclopedia of theHistory andPhilosophyoftheMathematicalSciences,p.1670,traduçãominha.

3. É curioso constatar queUma história da matemática, livro escrito por Florian Cajori nasprimeiras décadas do século XX, tenha sido traduzido para o português em 2007. Apesar depoderinteressaràhistóriadahistóriadamatemática,essaobraébastantedesatualizada.

4.Grattan-GuinnessprocuraexplicarasrazõesemConvolutionsinFrenchMathematics.5.NocasodoBrasil,umareferênciaaesserespeitosãoostrabalhosdeUbiratanD’Ambrosio,que

iniciou o movimento da etnomatemática nos anos 1970 e, desde então, impulsiona diversaspesquisas sobre a história da matemática no país. Ver D’Ambrosio, Uma história concisa da

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matemáticanoBrasil.6.Paracombateroeurocentrismo,nãonosparecepro ícuotentarmostrarqueoqueoseuropeus

descobriramjáestavapresenteemoutrasculturas.Lançar-seemumabuscadesenfreadapelasraízes não europeias damatemática pode levar alguns autores a exagerar para o outro lado,caso do best-seller de G.G. Joseph,Crest of the Peacock: Non-European Roots of Mathematics ,publicadoem1991,emLondres,pelaI.B.Taurus.

7. A história da história da matemática antiga foi estudada em: R. Netz, “The history of earlymathematics: ways of re-writing”, e C.H.B. Gonçalves, “A história da história da matemáticaantiga”.

8. Esse artigo de S. Unguru deu origem a uma controvérsia sobre a “álgebra geométrica” deEuclides,envolvendooutrosmatemáticosfamosos,abordadanoCapítulo3.

9.VerL.Corry,“Thehistoryofmodernmathematics:writingandrewriting”.10.VerN.Bourbaki,Élémentsd’histoiredesmathématiques.11. Umlivrogeraldehistóriadamatemáticaquepretendelevaremcontaessasnovaspesquisas,

cobrindoinclusiveépocasmaisrecentes,éAHistoryofMathematics:anIntroduction,publicadopor V. Katz em1993 e traduzido para o português comoHistória damatemática. Trata-se deumafontecon iávelque,noentanto,devidoàsuaextensão,apresentaalgunstemasdeformabastanteresumida.

12.I.Grattan-Guinness,“Themathematicsofthepast:distinguishingitshistoryfromourheritage”.

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