“Nem sempre vence o · e o sucesso da Estratégia Nacional de Luta ... A ENLCD foi um sinal...

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Março 2016 José Sócrates e o sucesso da Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga: “Nem sempre vence o preconceito” Parceiro do Plano Nacional de Saúde 2014 SAÚDE REPÚBLICA PORTUGUESA

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Março 2016

José Sócrates e o sucesso da Estratégia

Nacional de Luta Contra a Droga:

“Nem sempre vence o

preconceito”

Parceiro do Plano Nacional de Saúde 2014

SAÚDE

REPÚBLICA PORTUGUESA

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3Editorial

FICHA TÉCNICAPropriedade, Redacção e Direcção: News-Coop - Informação e Comunicação, CRL; Rua António Ramalho, 600E;

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www.dependencias.pt Director: Sérgio Oliveira Editor: António Sérgio Administrativo: António Alexandre Colaboração: Mireia Pascual Produção Gráfica: Ana Oliveira Impressão: Multitema

17 Anos depois da promulgação da Estratégia Nacional de Luta contra a Droga (ENLCD) e recuando no tempo recordo o momento em que, pela pri-meira vez, surgiu o esboço duma estra-tégia equilibrada para debater o fenó-meno da droga em Portugal. Foi a cora-gem política, aliada ao pragmatismo daqueles que viam na toxicodependên-cia uma doença e não um crime, que fi-zeram este notável documento interna-cionalmente reconhecido pela capaci-dade dos seus autores substituírem a ignorância e o moralismo balofo e paté-tico pela evidência técnica e científica baseada em princípios, objectivos e es-tratégias do meio envolvente, garantin-do a todos os meios necessários para o tratamento e facilitando outros tipos de abordagens.

A ENLCD foi um sinal maduro e pensado e constituiu, na altura, o virar da página na prevenção, no combate ao tráfico e branqueamento de capi-tais, no tratamento e reinserção social dos toxicodependentes, na criação de respostas, no envolvimento da socie-dade civil, das instituições e autar-quias, na redução de riscos, na for-mação e investigação, na qualidade e

na avaliação do trabalho desenvolvi-do… Acima de tudo, foi um sinal de que ainda há em Portugal quem privi-legie o humanismo e o pragmatismo quando se cruzam objectivos de índo-le sanitária e social e quando o que está em causa é o respeito pelos di-reitos humanos.

Foram muitos os que trabalharam para o sucesso do “Modelo Português” e, tal com dizia o Eng.º José Sócrates, na altura Ministro-adjunto do Primeiro-Ministro, “ A droga não é um problema dos outros, das famílias dos outros, dos filhos dos outros. Nem a luta contra a droga pode ser um exclusivo dos ou-tros, dos especialistas, dos técnicos, das autoridades ou dos políticos. Fize-mos em conjunto uma estratégia, va-mos em conjunto travar a luta”.

Esta estratégia foi o que de me-lhor se fez em Portugal. Respondeu aos problemas gravíssimos que o País atravessava e foi fruto da cora-gem política de um governo que sabia as enormes fragilidades e contradi-ções das “leis avulsas”, que soube envolver todos e todas na criação de uma lei capaz de responder racional e desapaixonadamente ao fenómeno

das drogas, em claro benefício das pessoas delas dependentes.

Hoje, na antecâmara da realização do II Congresso do SICAD e volvidas que são quatro décadas de intervenção em Portugal no âmbito das adições, a revista Dependências não podia deixar de desafiar um conjunto de profissio-nais cujo desempenho marcou clara-mente o percurso traçado no nosso país a falarem da Estratégia e do Mode-lo Português, porque foi daqui que saí-ram as primeiras respostas ao fenóme-no. Foi na base do princípio da centrali-dade no cidadão que se criaram as es-truturas que permitiram minimizar os danos resultantes de um panorama en-tão considerado epidémico e catastrófi-co. Foi assim envolvendo áreas como as da saúde, social, jurídica e dos direi-tos humanos que, hoje, volvidos 17 anos, queremos recordar todos aqueles que, de uma forma directa ou indirecta, mais ou menos activa, participaram na ENLCD. E, naturalmente, os seus men-tores, o Governo do Eng.º António Gu-terres e José Sócrates Ministro Adjunto do Primeiro Ministro.

Sérgio Oliveira, director

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4As origens da Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga:

O think tank que conduziu ao melhor modelo do mundo

“NEM SEMPRE VENCE

O PRECONCEITO”

JOSÉ SÓCRATES

Agradeço ao Sérgio Oliveira, diretor da revista Dependências, o simpático- e signifi-cativo- convite que me faz para escrever um texto a propósito da aprovação da Estraté-gia de Combate á Droga que foi aprovada há dezassete anos. Como todas as refor-mas essa estratégia teve uma história políti-ca. Quando decidi, ainda em 1988, consti-tuir uma comissão para a elaboração de uma estratégia nacional de luta contra a droga, tinha no espírito duas ideias centrais. A primeira era pragmática: aceitar a existên-cia das drogas , mas diminuir o seu impacto na sociedade- na saúde dos cidadãos, na violência que a sua utilização sempre acar-reta e no impacto que provoca no emprego. Este foi um ponto decisivo. A retórica da “guerra contra a droga” que tinha marcado as ultimas três décadas do século anterior, estava esgotada tendo falhado os seus ob-jetivos como mostravam todos os indicado-res. Era chegado o momento para uma vi-são mais realista baseada na” redução de danos”.

A segunda era humanista: o consumi-dor devia ser visto como doente. O combate á droga devia concentrar-se no combate a doença não no combate ao doente. Daí re-sultavam duas consequências. Uma- retirar os consumidores da perseguição criminal e dos tribunais, poupando-os a esse estigma que nada resolvia mas que, pelo contrario, os afastava dos serviços de saúde públicos. A outra – desenvolver uma política publica mais incidente na procura como forma de tratar e não só de reprimir.

É claro que estas intenções esbarra-vam em dois obstáculos. Por um lado os preconceitos sociais, criados por muitos anos de um discurso político que, deixan-do de atender á realidade, se mantinha apenas com base em fundamentos ideo-lógicos. Por outro as convenções interna-cionais, que Portugal tinha assinado, im-punham a ilegalidade do consumo. Ponto importante este, já que qualquer decisão quanto a liberalização do consumo se mostrava não só incompatível com os textos legais como também teria efeitos perversos se decidido apenas num Pais, á revelia do que se passava no resto do Mundo. Foi aqui que a Comissão prestou um serviço inestimável ao País ao fazer as suas propostas. Desde logo, mostrou como o saber científico estava distante da vulgar oratória política. Mas, porventura mais importante, com a fundamentação técnica que apresentou, deu, aos cida-dãos e aos responsáveis políticos, a segu-rança técnica necessária para avançar numa direção diferente e inovadora. Lem-bro, com agrado e simpatia os nomes dessa comissão aos quais fiquei ligado por laços de amizade. Ela foi presidida por Alexandre Quintanilha, e dela fizeram par-te Lourenço Martins ,Cândido Agra ,Daniel Sampaio, João Goulão, Joaquim Rodri-gues, Júlio Machado Vaz, Manuela Mar-ques e Nuno Miguel. O então coordenador do “projeto vida “ Alexandre Rosa teve uma participação importante no desenvol-vimento do trabalho.

Todavia, passado todos estes anos, quero deixar uma nota de agradecimento aos que construíram a solução jurídica mais inovadora, que consistiu em deixar de cri-

minalizar o consumo, passando a trata-lo não como crime, mas como um ilícito de mera contra-ordenação social. Essa solu-ção permitiu tirar os consumidores dos tribu-nais , aproximando-os dos serviços públicos de saúde e, ao mesmo tempo, cumprir os preceitos legais das convenções das Na-ções Unidas a que estávamos e estamos vinculados. O autor da formulação jurídica definitiva foi o Dr. Pedro Silva Pereira que na altura desempenhava funções no meu gabinete e que acompanhou a redação final do documento que se veio a chamar” Estra-tégia Nacional de Combate á Droga” . É, no entanto, justo dizer, que foi nos estudos jurí-dicos do dr. Rui Pereira, que há muitos anos dedicava atenção a este problema da dro-ga, que fomos buscar a inspiração para a solução que veio a ser adotada. O embaixa-dor Mendonça e Moura, desempenhou nes-te domínio um papel muito relevante que hoje recordo, com gosto.

A política é, por natureza, ação. Ela lida com o contingente, com o risco, com a incerteza. É por isso que é inteiramente merecido lembrar a coragem que o então Primeiro Ministro , António Guterres , mos-trou quando decidiu, a poucos meses das eleições legislativas, fazer aprovar em Conselho de Ministros tão importante e significativa mudança política. Apesar dos receios, desconfianças e da muita oposi-ção que na altura enfrentámos, com as habituais previsões catastróficas de que nos transformaríamos rapidamente num “paraíso das drogas”, o “caso português” é hoje apontado como exemplo a seguir e alvo dos elogios unânimes por parte da-queles que há muitos anos acompanham as questões da droga. Os resultados são animadores e essa alteração produziu mudanças. Afinal, nem sempre a política é o “eterno convívio com a decepção”. A par das mudanças na lei da interrupção voluntária da gravidez, da reprodução me-dicamente assistida, do casamento entre pessoas do mesmo sexo e da mais recen-te lei da adoção, a estratégia de combate á droga aprovada em 1999, fica como símbolo de mudanças em que o ideal hu-manista é capaz de vencer o medo, o pre-conceito e a indiferença.

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LEONOR BELEZA

Em 1985, quando iniciei as funções de ministra da saúde, foi tomada a deci-são de passar para o departamento por que passei a ser responsável a área da toxicodependência, até aí situada no Mi-nistério da Justiça.

Esta passagem de responsabilida-des tinha e tem uma leitura óbvia: há um problema de saúde/doença, cuja abor-dagem cabe aos profissionais de saúde e às estruturas que dela se ocupam.

Na sequência da passagem, o Mi-nistério da Saúde dedicou esforços in-tensos, meios e estruturas ao tratamen-to na sua perspetiva daquilo que lhe passava a ser confiado. E foi buscar os melhores profissionais de que podia dis-por.

Data de então, nomeadamente, a criação e construção do Centro das Tai-pas e de estruturas compreensivas de abordagem de dependências que trans-formam as pessoas em doentes. Essas estruturas, então criadas, compreen-diam as várias fases necessárias para um processo de desintoxicação e de re-cuperação para uma vida de plena auto-nomia.

Recordo hoje, com satisfação, a qualidade inexcedível dos profissionais que agarraram esta luta contra a depen-dência como a sua missão mais impor-tante, bem como as capacidades que puderam ser montadas em pouco tempo para “ler” a realidade com olhos novos. Antes do mais, era preciso dar os instru-mentos necessários para que a doença fosse evitada e, uma vez instalada, para que fosse combatida.

Em suma, a obrigação, sem mais, de quem tinha responsabilidade pela saúde dos cidadãos.

CARLOS VASCONCELOS

Que opinião lhe suscita o modelo português, assente na estratégia nacional contra a droga e as toxi-codependências?Carlos Vasconcelos (CV) – Penso

que o modelo está correcto. Está adap-tado às necessidades e à situação de dependência dos nossos utentes. O fac-to de, neste momento, o consumo das substâncias ilícitas não implicar prisão permite que nos concentremos mais no tratamento.

Considera que terá sido a humani-zação e o pragmatismo que mar-caram a diferença na construção da estratégia?CV – Exactamente. Aliás, essa ques-

tão de fundo acaba por ter como reflexo o que referi atrás: os utentes aparecem, vêm tratar-se e estamos mais à vontade para levar a cabo esses cuidados.

A partir da vigência da estratégia, a intervenção parece ter-se cen-trado cada vez mais na evidên-cia…CV – Diria que a descriminalização

dos consumos de drogas ilícitas foi um marco mas a estratégia não chegou ao tratamento…

Comunga, entendo, que terá havi-do quem pretendesse destruir um trabalho que tanto custou a cons-truir…CV – Penso exactamente assim…

De facto, o processo de destruição este-ve em curso. Refiro-me concretamente à falta de recursos humanos nos nossos serviços, designadamente a falta de mé-dicos e de enfermeiros e a dificuldade

que temos em repor elementos que vão saindo por reforma, doença ou até fale-cimento. Ainda por cima num contexto de contínuo alargamento da rede desde os anos 90, o número de técnicos tem vindo a ficar mais reduzido. De qualquer forma, falaria em desmantelamento or-ganizativo e em enfraquecimento de re-cursos. Do ponto de vista político, verifi-ca-se no momento actual alguma preo-cupação em relação às condições em que temos vindo a trabalhar nos últimos anos. Nasceu um movimento de pes-soas, de técnicos do ex-IDT que está preocupado com esses aspetos organi-zacionais, e que publicou um manifesto, “o Manifesto de Aveiro” de que sou sig-natário. Propomos uma alteração signifi-cativa em termos organizativos que per-mita melhorar a qualidade dos cuidados. A melhoria é um imperativo lógico, até porque há cada vez mais situações em carteira em que temos que intervir. Des-de logo, a questão do álcool, que foi um desafio enorme porque o número de al-coólicos no nosso serviço, tendo em conta sobretudo as primeiras admis-sões, cresceu exponencialmente. Exis-tem muito mais alcoólicos a querer tra-tar-se, e outros que provêm do clínico geral, dos tribunais e, nestes casos, es-tamos a falar de uma tipologia de uten-tes que obriga a mais recursos médicos, porque, geralmente, têm intercorrências físicas de gravidade. E se formos depois para as outras dependências, como os consumidores de haxixe enviados pelas comissões de dissuasão, o tabaco e por exemplo as dependências sem drogas como o jogo patológico, que também es-tão na ordem do dia, temos necessida-des acrescidas de formação de técni-cos… Temos um conjunto novo de va-lências e não temos gente suficiente para garantir a desejada qualidade e ca-pacidade de resposta. Finalmente não nos podemos esquecer que éramos um serviço especializado no tratamento de heroinómanos, pioneiro e modelar a ní-vel mundial e que também há muito a fa-zer no sentido de restaurar os níveis de qualidade que nos caraterizavam.

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6 “O PROJECTO VIDA(UMA ETAPA NA LUTA CONTRA AS DEPENDÊNCIAS)”

FEYTOR PINTO

Foi por volta de 1983 que o fenómeno da droga começou a espalhar-se entre nós. Curiosamente atingiu mais pessoas, jovens ou mais velhos, das classes média e alta, do que os marginais de alguns lugares da peri-feria. A razão era simples: o produto era caro e muito poucos conseguiam adquiri-lo para um consumo habitual. Eu acabava de entrar na Pastoral da Saúde da Igreja Cató-lica. Tendo-se constituído um Conselho Na-cional para a luta contra a droga, foi pedido à Igreja um representante que pudesse dar a visão dos cristãos neste difícil problema que afligia a sociedade. Foi sugerido o meu nome e, desde esse tempo, comecei a estar envolvido na luta contra as dependências. Tive nessa altura dois mestres eminentes: a Dr.ª Ana Vicente consultora da ministra Dr.ª Leonor Beleza e o Juiz Armando Leandro com quem já trabalhava em programas de natureza social. Recordo inúmeras conver-sas que com eles travei acerca do consumo de produtos alucinogénios entre as novas gerações.

Em outubro de 1992 fui chamado à Pre-sidência do Conselho de Ministros. Era-me proposto continuar a obra do Dr. Armando Leandro. Não me foi fácil aceitar. Sentia-me sem a preparação suficiente e as minhas preocupações estavam mais centradas no processo educativo do que no tratamento destas dependências. Precisava também do “agreement” do Patriarca de Lisboa de quem hierarquicamente dependia. O sr. D. António Ribeiro concordou, dizendo-me que

a Igreja não podia estar à margem dos gran-des problemas que se colocavam na socie-dade, sobretudo com as jovens gerações. Por outro lado, como dizia o Dr. Armando Leandro é preciso cuidar dos problemas so-bretudo a montante, descendo apenas de-pois a jusante. Era o problema da educação dos mais novos. Finalmente a minha even-tual impreparação seria neutralizada com o estudo, as experiências, e o apoio de dois grandes médicos que recordo constante-mente, o Dr. Nuno Miguel e o Dr. Luís Patrí-cio, membros do Centro das Taipas. Com estes médicos, especialistas na área das to-xicodependências e com as equipas dos CAT’s que trabalhavam no terreno, aprendi a lidar com o problema da droga e da forma de o enfrentar, não apenas no tempo do tra-tamento, mas sobretudo no esforço de uma prevenção eficaz. Se, ao tempo, havia entre os jovens, 5% de consumidores e muito de-pendentes, os outros 95% não consumiam e tinham critérios de resistência ao consu-mo. Dar atenção a estes, foi uma opção prioritária. Ao ser criado o Alto Comissariado para o Projecto de Vida, desde logo se intro-duziram formas de organização e desafios de intervenção que deram ao Projecto uma relevante importância.

Na luta contra a droga, era necessário mobilizar toda a sociedade. Para fazê-lo in-tegraram-se na luta contra a droga, oito mi-nistérios: a Educação, a Saúde, a Seguran-ça Social e o Trabalho mas também a Defe-sa, a Marinha, a Justiça, a Administração In-terna e a Juventude ligada à Presidência do Conselho de Ministros. O Projecto de Vida queria prevenir os consumos, através de uma informação suficiente e sobretudo de uma sensibilidade que permitisse prevenir consequências graves. Tinha também a preocupação de “libertar quem se tivesse deixado apanhar”. A arte médica com espe-cialização assumida voltou-se definitiva-mente para a cura das adições, prestando formas de tratamento que recuperavam as pessoas. Para além disso, porém, havia que lidar com um conhecimento suficiente do tráfico, dos comportamentos desviantes, das influências sobre a população mais jo-vem. A coordenação destes oito ministérios, obrigou a uma reunião semanal, às terças-feiras, com todos os representantes destas áreas de intervenção. Esta coordenação constituiu a forma de intervenção que só no Projecto de Vida foi conseguida. Aqui esta-va, certamente, o ponto de arranque, para uma acção mais eficaz, na luta contra a dro-ga.

A grande prioridade foi dada à preven-ção. Houve consciência de que “prevenir” não é apenas dar notícia dos riscos que o consumo traz consigo. Era necessário uma educação para valores, para o bom uso da liberdade, para uma sã capacidade crítica perante as circunstâncias. Este trabalho foi iniciado de maneira extraordinária no “Viva a Escola”. Este programa liderado inicial-mente pela Dr.ª Catarina Pestana e logo de-pois, pela Profª Dr.ª Isabel Loureiro, consti-tuiu um avanço nacional na reeducação de consumos, nas camadas mais jovens da população escolar. Foram quase 200 esco-las que tiveram este programa e o realiza-ram com resultados extraordinários.

No entanto, o trabalho mais intenso e de urgência maior, deveria ser realizado pe-las equipas médicas. Assumia-se completa-mente que o toxicodependente não é um criminoso com comportamentos violentos, que não é um marginal com atitudes des-viantes, é simplesmente um doente que, na adição perdeu a liberdade suficiente para recusar um produto que o altera completa-mente nas suas atitudes pessoais ou em sociedade. Em Portugal, praticaram-se ex-periências terapêuticas várias, todas com alguns resultados nos métodos usados, mas muitas delas com aspectos que cientifi-camente eram discutíveis, sobretudo pela forma da relação humana com a pessoa doente. A representar o Ministério da Saúde estiveram, o Prof. Dr. José Luís Castanheira e depois, o Dr. João Goulão. Com uma equi-pa de médicos e outros profissionais de saúde notáveis foi possível construir o “Mo-delo Português” terapêutico, de grande rigor científico, de envolvimento humano dos téc-nicos e dos doentes, de eficácia notável e de resultados comprovados. Definitivamen-te, a sociedade compreendeu que o toxico-dependente não é uma pessoa com com-portamentos sociais errados, mas é sobre-tudo um doente que, acompanhado, pode ser curado, reintegrando-se logo depois na vida social. Mantiveram-se nos centros de atendimento terapêutico e nas comunida-des terapêuticas outros modelos, mas o “Modelo Português” radicou-se a partir do departamento da saúde do Projecto Vida. Hoje, é reconhecido internacionalmente pelo grande rigor científico e notável eficá-cia.

O trabalho desenvolvido, de maneira in-tegrada e nas suas várias valências, foi co-nhecido na Europa. Por isso, foi atribuído a Portugal o Observatório Europeu de Drogas e Toxicodependências. Esta agência de es-

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7tudo sistemático deste fenómeno está em Portugal desde 1994. Os 15 países que constituíam a União Europeia, escolheram o Alto Comissário do Projecto Vida para ser presidente, durante o primeiro mandato. Neste momento, o presidente é, de novo o responsável português da Comissão Nacio-nal da Luta Contra a Toxicodependência, o Dr. João Goulão, médico que tem o reco-nhecimento internacional, ao nível da Euro-pa. Para a recolha de dados ao serviço do OEDT, muito tem contribuído a investigação exaustiva que em Portugal se vai realizan-do. Como antigo presidente do OEDT, man-tenho laços de amizade com os responsá-veis europeus e com os profissionais do sector que em Portugal estão no terreno. Constata-se que, entre nós, o fenómeno está estabilizado e que, apesar da mudança de fármacos alucinogénios, não tem au-mentado o número de toxicodependentes. Hoje, o cuidado a ter com estes doentes tem também em atenção o problema do al-coolismo e de outras dependências.

Uma das grandes preocupações de to-dos os colaboradores do Projecto Vida, quer ao nível da coordenação geral e da acção nos vários ministérios, quer no âmbito do trabalho no terreno, foi sempre o problema da humanização de todas as iniciativas. É certo que a humanização dos cuidados, das relações, dos equipamentos e das estrutu-ras faz parte de todo o exercício de cuida-dos terapêuticos. A complexidade do fenó-meno da droga e a dificuldade profunda do acompanhamento de cada caso, exigiram no processo terapêutico um especial cuida-do pela humanização. Respeitar sempre o ser humano e proporcionar a cada um, se-gundo a sua capacidade, os elementos te-rapêuticos para superar as suas dificulda-des, foram sempre factores a privilegiar no âmbito da acção do Projecto Vida. Com uma atenção muito grande à dignidade e li-berdade de cada um, o Projecto Vida abriu-se à hipótese de descriminalização do con-sumo da droga. Faz-se a distinção clara en-tre o traficante e o consumidor. Se o primei-ro é passível de um processo crime, o segundo, isto é, o consumidor não pode ser criminalizado. Recordo-me de, ao tempo, o Ministro do Ambiente me ter pedido a opi-nião do Cardeal Patriarca. Depois de um en-contro com D. José Policarpo, este afirmou que a grande maioria dos toxicodependen-tes eram doentes e vítimas de situações que à partida não quereriam e por tudo isto não deveriam ser criminalizados. Por outro lado, jovens metidos numa prisão ainda que

por pouco tempo, sairiam sempre dali com um consumo e uma dependência maiores. Um doente não pode ser criminalizado. Re-cordo a reacção positiva de todos os secto-res da sociedade que viram, nesta descrimi-nalização, uma forma de salvar muitos jo-vens. Também no processo de prevenção, o facto de não ser considerado crime o consu-mo, permitiu uma reflexão mais aberta na vi-são dos familiares, no ambiente das esco-las, e na superação dos problemas que al-guns, na experimentação, tinham sofrido. O culto da dignidade da pessoa, a afirmação da liberdade responsável, a atitude saudá-vel perante experiências vividas, a sensibili-dade para preparar um futuro deixando para trás experiências de risco, tudo permitiu ao Projecto de Vida lançar as raízes de uma prevenção eficaz e de um tratamento que, com o “Modelo Português”, abriu caminho à estabilização, sem dúvida, na luta contra a toxicodependência.

A concluir, vale a pena ter em atenção a grande sensibilidade ética de todos quantos trabalharam no Projecto Vida. O personalis-mo ético supõe uma atenção prioritária à dignidade e à liberdade humana. Quer na prevenção dos consumos, quer no trata-mento dos doentes, quer na sensibilização da sociedade, tudo tem como referência constante o sentido ético. Através dele res-peitam-se e promovem-se os Direitos Hu-manos, aceitam-se os códigos deontológi-cos e cria-se uma relação fraterna entre pro-fissionais e doentes, relação esta indispen-sável a uma sociedade que liberta das adições e proporciona a todos uma vida mais feliz.

JULIO MACHADO VAZ

Que memórias guarda desse momento em que se conce-beu uma ferramenta pioneira, centrada na humanização e na descriminalização? Júlio Machado Vaz (JMV) –

Guardo as melhoras memórias! Revi amigos, fiz outros e creio ter contri-buído para um trabalho honesto e adequado à problemática em ques-tão. Ficou-me a mágoa de, como prometido, não terem sido publica-das as respostas aos questionários enviados aos núcleos distritais do Projecto Vida que demonstravam a penúria de meios com que se depa-ravam.

Como se sente ao ver a inter-nacionalização deste modelo?JMV – Orgulhoso, seria hipócrita

negá-lo. Sob muitos aspectos Portu-gal tornou-se um exemplo a seguir e isso é reconfortante.

Foi um modelo que custou muito construir, enfrentando muitas batalhas políticas e que resultou mesmo em produção de evidência… Neste momen-to, esse modelo parece ter sido desmantelado…É assim?JMV – Não sei, terá de perguntar

ao SICAD. Pessoalmente penso que os governos de centro-direita opuse-ram, no mínimo..., resistência passi-va a diversas sugestões da Comis-são, sobretudo na área da redução de danos.

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8 “É RECONFORTANTE O PRESTÍGIO INTERNACIONAL GRANJEADO PELA EXPERIÊNCIA PORTUGUESA DE DESCRIMINALIZAÇÃO DO CONSUMO”

ARMANDO LEANDRO

As dependências de substâncias psi-coativas e outras manifestações de pato-logia aditiva constituem, como é geral-mente reconhecido, uma das problemáti-cas mais preocupantes do nosso tempo, bem expressiva da complexidade das so-ciedades atuais e da contradição entre aquisições civilizacionais muito relevan-tes, nomeadamente ao nível dos Direitos Humanos, fundados na indiscutível digni-dade de toda a pessoa, e fenómenos, como estes, que implicam enormes riscos e perigos para a efetivação dessa dignida-de, ao nível da vida individual e coletiva.

A qualidade e a adequação da sua abordagem, na procura incessante da sua compreensão e na busca das correspon-dentes diversificadas respostas preventi-vas e reparadoras, tendentes a evitar e a superar os imensos sofrimentos e prejuí-zos pessoais, familiares e comunitários que esta problemática implica, convocam vários saberes, experiências, atitudes e intervenções, numa postura de transdisci-plinaridade e de intervenção interinstitu-cional responsável e generosa, fundada em exigentes pressupostos éticos, cientí-ficos, culturais, sociais e políticos.

Para o maior êxito possível da conju-gação dos esforços que esses pressupos-tos postulam, é imprescindível uma per-manente comunicabilidade entre a ciência e a investigação, as normatividades, as políticas, os sistemas de intervenção e a ação concreta, holística e integrada, em correspondência com as éticas da discus-são, da responsabilidade, de serviço, da transdisciplinariedade, da interinstitucio-nalidade e do cuidado.

Todas estas éticas são fundamenta-das e potenciadas pela ética mínima co-mum que deriva dos Direitos Humanos, hoje já com força jurídica vinculativa para o Estado, a sociedade e os cidadãos. Fundando-se os Direitos Humanos na in-discutível dignidade da pessoa, parece efetivamente poder considerar-se como fonte de uma ética mínima comum, que liga crentes e não crentes e todos os que se reclamam do humanismo e da demo-cracia.

É certamente na base dessa conce-ção à luz dos Direitos Humanos que deve-mos perspetivar a evolução das proble-máticas respostas relativas aos comporta-mentos aditivos e dependências.

O que julgo implicar o entendimento implícito de que os Direitos Humanos constituem a «boa consciência» de todo o sistema de conceção e atuação em todas esta problemática. Penso que no essen-cial do sentir e do agir já assim o era há vários anos.

Quatro décadas de intervenção em Portugal nesta matéria revelaram uma ati-tude, também com esse sentido, de não desistência na procura incessante das melhores respostas possíveis aos varia-dos e complexos matizes dos problemas levantados, agindo-se de harmonia com a evolução das situações e das conceções sobre as suas determinantes e respostas legais e sociais possíveis.

Mas como os direitos humanos não são estáticos, mas dinâmicos na sua per-ceção e densificação, os princípios, no-meadamente os do humanismo e do prag-matismo, claramente afirmados na notá-vel Estratégia Nacional de luta contra a Droga, aprovada em Abril de 1999, pela Resolução n.º 46/99 do Conselho de Mi-nistros, permitiram um importante salto em frente, nomeadamente pela descrimi-nalização do consumo.

É principalmente sobre essa descrimi-nalização do consumo e correspondente resposta que vou centrar a minha breve

reflexão, correspondendo a convite que muito me honra e agradeço, por me pare-cer dos aspetos mais significativos das mudanças positivas entretanto verifica-das.

Como se sabe, o combate ao tráfico de substâncias psicoativas ilegais e a sua incriminação e forte penalização, no qua-dro de um sistema penal justo, conforme aos Direitos Humanos, reúne um assina-lável consenso universal, tal é a gravidade da ofensa dos valores e interesses indivi-duais e coletivos que atinge.

Já quanto ao consumo dessas subs-tâncias, que se pretende naturalmente evitar, pelos conhecidos sérios perigos e danos que pode envolver para o consumi-dor, as famílias, outros cidadãos e a so-ciedade em geral, as interrogações e re-postas estão longe de ser unânimes; an-tes revelam posições diversas, pelos co-nhecidos problemas filosóficos, éticos, científicos, culturais, políticos, jurídicos e sociais que a questão envolve.

A solução claramente predominante tem sido, com bem se conhece, a da cri-minalização e penalização, embora natu-ralmente mais benévola. Invocam-se, no-meadamente, a ofensa de muito importan-tes valores e interesses públicos de saúde e segurança, o desrespeito pela dignidade e liberdade do próprio consumidor, a dig-nidade, a liberdade e a segurança dos ou-tros cidadãos, e outros valores e interes-ses fundamentais da sociedade, afetada também, designadamente, pelo maior ris-co de frequente criminalidade conexa com o consumo, pela maior dificuldade de combate ao tráfico e pelas exigências de vultosos recursos, a vários níveis, para corresponder aos sérios problemas sani-tários e sociais que o consumo implica, em detrimento de outras necessidades essenciais ao desenvolvimento individual e comunitário de qualidade.

Foi esse o caminho também em Por-tugal até à entrada em vigor da Lei n.º 30/2000, de 29/11.

Entendia-se que o desvalor do consu-mo tinha suficiente dignidade penal, justifi-cando uma pena que, conforme a quanti-dade das substâncias detidas excedia ou não a necessária ao consumo médio indi-vidual durante o período de três dias, ti-nha como limites máximos, respetivamen-te, um ano de prisão ou multa até 120 dias, e três meses de prisão ou multa até 30 dias. O sistema previa significativas possibilidades de suspensão do processo,

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9mediante aplicação de injunções e de apli-cação de medidas alternativas à prisão, que raramente era imposta quando estava em causa o mero consumo, admitindo mesmo a dispensa de pena para o consu-midor ocasional. Confiava-se no valor simbólico da censura penal e no seu efei-to positivo para evitar a reincidência e fa-cilitar o tratamento, que preconizava.

Face à insatisfação pelos resultados globais até então obtidos, em Abril de 1999 foi aprovada a já referida Estratégia Nacional de luta contra a Droga, na se-quência do relatório de trabalho de uma Comissão de composição amplamente in-terdisciplinar, nomeada pelo Governo, tra-balho esse objeto de ampla discussão pú-blica, e bem assim de um relatório da Co-missão Eventual da Assembleia da Repú-blica para o Acompanhamento e Avaliação da Situação da Toxicodependência.

A Estratégia fixou:– Os princípios (da cooperação inter-

nacional; da prevenção; do huma-nismo, envolvendo a consideração, e suas implicações, da toxicodepen-dência como uma doença; do prag-matismo; da segurança; da coorde-nação e da racionalização de meios; da subsidiariedade; e da participa-ção);

– Os objetivos gerais, com relevo para os de reduzir o consumo, sobretudo entre os mais jovens, e garantir os meios necessários para o tratamen-to e a reinserção social dos toxico-dependentes;

– As opções estratégicas, de que se salientam: a descriminalização do consumo e a sua proibição como ilícito de mera ordenação social; a reorientação da prevenção univer-sal seletiva, indicada e ambiental; a melhoria do acesso ao tratamen-to e da sua qualidade; a extensão das políticas de redução de danos; o incentivo à implementação de iniciativas de apoio à reinserção social e profissional de toxicode-pendentes; o incremento da inves-tigação científica e da formação dos recursos humanos; o estabe-lecimento de metodologias e pro-cedimentos de avaliação; a ado-ção de um modelo simplificado de coordenação política interdeparta-mental; o reforço do combate ao tráfico; o aumento do investimento público.

A Lei n.º 30/2000, de 29/11, e diplo-mas posteriores procuraram dar expres-são legislativa aos princípios, objetivos e opções estratégicas por que se optara na formulação da referida Estratégia Nacio-nal.

No que respeita à opção pela descri-minalização do consumo, o novo regime jurídico estatuído pela referida Lei n.º 30/2000, aplicável ao consumo de estupe-facientes e substâncias psicotrópicas, bem como à proteção sanitária das pes-soas que consomem substâncias sem prescrição médica, é assim caracterizável nos seus aspetos essenciais:

a) O consumo, tal como a aquisição e a detenção para consumo próprio, de plantas, substâncias e produtos compreendidos nas tabelas como ilegais, em quantidade que não ex-ceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias, deixou de ser conside-rado crime e passou a constituir contra-ordenação, ou seja, ilícito de mera ordenação social, a apreciar por entidade administrativa.

São-lhes aplicáveis, como reação a esse ilícito, uma coima, sanção pecuniária de natureza não penal mas administrativa, ou, em alternativa, e obrigatoriamente para os consumidores não toxico-dependentes, sanções não pecu-niárias tipificadas na Lei, que vão desde a admoestação à imposi-ção de proibições, interdições e obrigações, orientadas, conforme a circunstância de cada caso, para as finalidades de interioriza-ção do desvalor que o consumo constitui, de incentivo ao trata-mento e de facilitação da reinser-ção social.

O consumo foi assim descrimi-nalizado, afastando o consumidor da intervenção dos tribunais e da aplicação de sanções de natureza penal, com os conhecidos possí-

veis efeitos de estigmatização, de diminuição de autoestima e de con-sequentes maiores dificuldades de reinserção social.

O consumo, embora não inte-grando crime, é contudo considera-do ilegal, censurável e sancionável pela forma referida, assim se afir-mando claramente o seu desvalor, também jurídico.

Considerou-se, e parece-nos que bem, tendo em conta essa afir-mação de desvalor e consequente proibição, que a solução de descri-minalização não contraria as Con-venções Internacionais sobre a ma-téria.

Por outro lado, também se en-tendeu, e bem, não encontrar obs-táculo na Constituição da República Portuguesa, antes poder ter apoio no regime dos direitos fundamen-tais nela estatuído, na medida em que, mostrando-se suficiente a me-nor limitação de direitos por que se optou, em substituição da reação penal, claramente caraterizada como ultima ratio, estão respeita-dos o princípio da proporcionalida-de (ou seja, o princípio da proibição do excesso) e os subprincípios em que este se desdobra, o princípio da exigibilidade (também chamado da necessidade ou da indispensabi-lidade), o princípio da adequação (ou seja, da idoneidade) e o princi-pio da proporcionalidade estrita, que significa que os meios legais de limitação dos direitos liberdades e garantias têm de ter a justa medida, não podendo ser excessivos em re-lação aos objetivos.

b) De salientar que a intervenção pre-vista no sistema instituído não tem lugar no caso de tratamento espon-taneamente pedido pelo consumi-dor, ou pelo representante legal no caso de ter menos de 18 anos de idade.

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c) Atribui-se competência para o pro-cessamento das contra-ordenações e aplicação das respetivas sanções, a executar por entidade administrati-va, a uma Comissão para dissuasão da toxicodependência, sediada a ní-vel distrital, constituída por um jurista, designado pelo Ministério da Justiça e os restantes pelo Ministro da Saúde e pelo Membro do Governo respon-sável pela política da droga e da toxi-codependência, escolhidos estes en-tre médicos, psicólogos, sociólogos, técnicos de serviço social ou outros com currículo adequado na área da toxicodependência. Para além dos procedimentos processuais, estas Comissões têm como atribuições: a prestação de apoio nas sanções a aplicar; o encaminhamento dos con-sumidores para as entidades de saú-de; o acompanhamento dos consu-midores em caso de suspensão pro-visória do processo; e a recolha de in-formação sobre a continuidade do tratamento.

A estas Comissões são apre-sentados os consumidores, num procedimento que, sem prejuízo dos direitos destes, permite um diá-logo e uma melhor compreensão da situação.

d) São previstos procedimentos de diagnóstico para fundamentar o juí-zo sobre a natureza e as circuns-tâncias do consumo.

e) O procedimento legal é flexível, dis-tingue a situação do consumidor to-xicodependente daquele que não se encontra nessa situação, admite a suspensão, quer do processo, quer da determinação da sanção

no caso de o consumidor aceitar sujeitar-se, voluntariamente, a tra-tamento, quer ainda da execução da sanção aplicada. Tudo orientado para a interiorização do desvalor do consumo, para o estímulo e o apoio ao tratamento, quando necessário, e para a reinserção.

A opção pela descriminalização do consumo tem-se mostrado muito positiva nas sucessivas avaliações anuais, não só quando considerada isoladamente, mas também quando perspetivada na globali-dade das medidas tomadas em conso-nância com a Estratégia Nacional, sobre-tudo no que respeita ao esforços de pre-venção, de tratamento, de diminuição de danos e de ajuda à reinserção.

A descriminalização não tem implica-do incentivo ao consumo, tem permitido ganhos significativos em matéria de saú-de, visto que a diluição do estigma do cri-me facilita a procura de ajuda e o encami-nhamento para o tratamento, com a con-sequente repercussão favorável no que respeita a doenças diretamente associa-das ao consumo. E nada revela que tenha prejudicado a luta contra o tráfico.

Assinale-se a relevante vantagem de contribuir para avanços na consideração do consumidor toxicodependente sobretu-do como doente, sem se prescindir da sua responsabilização emancipadora.

É reconfortante o prestígio internacio-nal granjeado pela experiência portugue-sa de descriminalização do consumo, que constitui, sem dúvida, um marco relevante na evolução da política e da prática nesta matéria tão delicada.

Sem prejuízo da constante necessida-de de progressos no pensamento e no

agir, a opção pela descriminalização do consumo afigura-se-nos promissora, tam-bém na potenciação que dela pode resul-tar para a continuidade do indispensável esforço de prevenção universal e de pre-venção seletiva ou indicada¸ na procura permanente de uma nova cultura que, po-tenciando os valores e o espírito crítico, rejeite os numerosos tipos de dependên-cias, como as do álcool, do jogo e da inter-net, que os atuais estilos de vida indivi-duais e comunitários tanto causam e forta-lecem.

A descriminalização do consumo apresenta ainda, como positivo, o aceno que nos faz de que vale a pena, contra-riando derivas securitárias, originadas em temores não fundados, procurar sempre as soluções mais compatíveis com o para-digma dos Direitos Humanos, que, supe-rando o paradigma autoritário e o assis-tencialista, constitui uma mais valia civili-zacional do nosso tempo que importa ten-tar solenizar e concretizar, com qualidade, na vida de cada cidadão e da comunidade em que se integra.

Nesta perspetiva, colocando sempre a pessoa no centro, será mais fácil encon-tramos em conjunto as melhores soluções possíveis, interiorizando que, se aceitar-mos postergar os Direitos Humanos, nada mais faremos do que agravar os proble-mas e a crise, concedendo a vitória ao medo.

O que é contrário à esperança, que não podemos negar nem a nós nem aos outros, sobretudo aos mais vulneráveis, que precisam da nossa solidariedade ati-va para dela não desistirem.

Essencial é que sejamos competen-tes, rigorosos e generosos na conceção e execução de políticas, estratégias e ações sistémicas, holísticas, devida-mente monitorizadas e avaliadas, de-senvolvidas de acordo com o conceito, os objetivos e as metodologias de uma governação integrada, essencial para respostas a problemas complexos, como é o das dependências.

O notável e justamente ambicioso Plano Nacional para a Redução dos Com-portamentos Aditivos e das Dependên-cias, para o período de 2013 a 2020, abrangendo, de forma integrada e articu-lada, a prevenção, a dissuasão, o trata-mento, a redução dos riscos, a minimiza-ção dos danos e a reinserção, constitui mais um importante desafio que se nos impõe vencer.

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11“O MODELO PORTUGUÊS TRANSPORTA CONSIGO A NOÇÃO DE CONTINUIDADE NA INTERVENÇÃO...”

DINIS CORTES

Qual é a sua opinião sobre a estra-tégia nacional de luta contra a dro-ga e do tão propalado modelo por-tuguês?Dinis Cortes (DC) – Uma Estratégia

conceptualmente avançada e um Plano de Acção realista e exequível foram os grandes instrumentos do sucesso do cha-mado “Modelo Português”. O competente reenquadramento jurídico que postulou o regime contra-ordenacional para o Consu-mo de substâncias ilícitas foi o corolário de um pensamento avançado, criando es-truturas que passaram a abranger, embo-ra num contexto de “Dissuasão”, a “franja que faltava”, isto é, os consumidores não-dependentes. A integração de respostas desenvolvida num modelo vertical, coor-denado centralmente, permitiu também a flexibilidade na intervenção, destreza nas respostas e descomplexificação de proce-dimentos que permitiu em cerca de 10 anos tornar abordável aquilo que muitos rotulavam de “incontrolável” , isto é o con-sumo de substâncias psicoactivas ilícitas em Portugal. Os consumos mudam com os tempos...aparecem substâncias mais poderosas e mais atractivas, mudam os factores de vulnerabilidade e reinventam-se respostas para o problema...de igual forma mudam as políticas, nem sempre

para melhor ou seja, descentram-se do real problema e centram-se em outros , nomeadamente os de causa financeira...

Como se sente ao ver a internacio-nalização deste modelo?DC – É com muita satisfação que ve-

mos o trabalho de organização, desenho conceptual, intervenção e avaliação nesta matéria reconhecido e referenciado como de vanguarda na área dos comportamen-tos aditivos por insuspeitas organizações, estados e personalidades diversas. Mui-tos dos nossos Dirigentes Políticos ainda não se aperceberam de que este modelo é dos melhores, senão o melhor do mun-do e não fora a visão ainda de esguelha de alguns sectores mais conservadores da nossa sociedade, alguns de cariz clíni-co, movidos muitas vezes pelo preconcei-to e pela inveja, estaríamos ainda mais avançados na intervenção, nomeadamen-te na adequada resposta ás dependên-cias sem substância e a uma adequada e bem temporizada resposta, especialmen-te na componente “acessibilidade”.

Tudo o que se conseguiu nesta área foi num contexto de grande flexibilização, motivação de profissionais, carinho pelos Técnicos, Formação adequada e quantita-tiva e qualitativamente doseada e estimu-lada, espírito de Missão para a causa pú-blica...mas também de prevenção do “bur-nout”, disponibilidade para o contacto e supervisão, gestão de meios e coopera-ção intersectorial Público/Privado, etc. Os resultados traduzidos em evidência cientí-fica apontam hoje um caminho de inter-venção já estendido ao álcool e prefigura novos caminhos desenhados para outras dependências.

Foi um modelo que custou muito construir, enfrentando muitas bata-lhas políticas e que resultou mes-mo em produção de evidência… Mas, neste momento, esse modelo parece ter sido desmantelado…É assim?DC – Pode-se matar o corpo mas a

alma, neste caso o Modelo propriamente dito, sobrevive num lugar intemporal. Um Modelo só o é efectivamente, se vivido e partilhado pelos seus executores e assu-mido cientificamente pelos restantes “sta-keholders”. Qualquer doente toxicodepen-dente vê hoje o Terapeuta como o “pivot” de uma intervenção integrada que confi-gura um modelo que não “encaixa” na

clássica intervenção nos Cuidados de Saúde Primários. A abordagem das de-pendências é algo que não se compadece com dirigentes/pensadores demasiado centrados na gestão de resultados sem preocupação com as pessoas. Um verda-deiro técnico interventor nesta área demo-ra por vezes anos até perceber e interiori-zar o “modelo”, porque é necessário vivê-lo por dentro, partilhá-lo com os seus pa-res, executá-lo e avaliá-lo...ganhar confiança e ensiná-lo aos recém recruta-dos. O modelo português transporta con-sigo a noção de continuidade na interven-ção...de um terapeuta para muitos anos, de um acompanhamento sólido e estrutu-rado e não se compadece, como acontece na generalidade dos Centros de Saúde deste País (UCSP´S) com a mudança de “Médico de Família” de meio em meio ano ou a ausência dele por tempo indetermi-nado. Numa qualquer consulta de Clínica Geral do País a alternativa, no caso da ausência do Médico Assistente seria a Consulta de Recurso ou o Serviço de Ur-gência...em Toxicodependência a alterna-tiva é a recaída, é o regresso às práticas de consumo, à desorganização social e familiar, à criminalidade…à violência e à ilicitude...

Pode morrer o corpo, referi anterior-mente, mas a alma tem subsistido como orientadora de uma prática de saber feito executada ao longo dos últimos anos. Se houver geração seguinte nesta interven-ção e se houver realmente vontade políti-ca de intervir na problemática do consumo e dependência de substâncias em Portu-gal, os decisores ponderarão certamente no conceito de “investimento” em detri-mento do conceito de “despesa” que tanto aflige os menos preparados para dirigir.

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12 “CENTRAR TODA A ATENÇÃO NO DOENTE PARA COMBATER A DOENÇA”

JOÃO GOULÃO

O Dr. João Goulão esteve presen-te em praticamente toda a história portuguesa de intervenção na área das dependências, desde o traba-lho no terreno à concepção estraté-gica. Que principais marcos assina-laria ao longo deste percurso?João Goulão (JG) – É fundamental

recordarmos que as primeiras respostas foram paradigmaticamente instaladas na dependência do ministério da justiça e, apesar de pretenderem ser já respostas de prevenção e de tratamento, a sua co-locação na justiça constitui um indício da forma como as coisas eram encaradas. Depois, há um período, diria que um cer-to deserto de intervenção estatatal, no qual florescem as respostas privadas, al-gumas de muito boa qualidade mas a maioria de muito má qualidade, e que re-presentaram de alguma forma uma outra vertente da exploração da população to-xicodependente. Posteriormente, há um marco fundamental, a criação do Centro das Taipas, enquadrado nas medidas do Projecto Vida como tentativa de resposta a um problema que assumia proporções significativas na sociedade portuguesa. O Centro das Taipas é profundamente marcante nesta realidade porque corres-ponde à instalação de um modelo que veio depois a ser replicado e que inspira tudo o que veio posteriormente a ser de-senvolvido.

Uma criação, na altura, do ministé-rio da saúde…JG – O Projecto Vida era um progra-

ma interministerial, competindo ao minis-tério da saúde a instalação de uma res-posta integrada, que tinha múltiplas valên-cias, desde um serviço de urgências dirigi-do a toda a população toxicodependente de Lisboa mas que acabava por servir todo o país, uma unidade de desabituação para tratamentos de curta duração, um ambulatório muito forte, bem dotado de recursos humanos e sólido em termos téc-nicos, um centro de dia… Em suma, um conjunto integrado de respostas que inspi-rou todo o desenvolvimento que culminou na criação da rede dos CAT em todo o país. É precisamente a seguir à criação do Centro das Taipas que eu entro e, a partir daí, estive envolvido no desenvolvi-mento da rede. Fui responsável pela cria-ção do SPAT, no Algarve num processo decorrido em simultâneo com vários cole-gas recrutados da mesma forma, identifi-cados pelo seu perfil, convidados a faze-rem estágio nas Taipas, com formação ombro a ombro, aprendendo a fazer as coisas e contribuindo para a criação de uma rede nacional. Do ponto de vista das organizações privadas de solidariedade social, a Associação Ares do Pinhal cons-titui um bom exemplo, inspirador das res-postas de qualidade que foram sendo de-senvolvidas, assumindo-se desde muito cedo como um modelo de complementari-dade entre o sector social e o público, contrariando qualquer tendência para a competição. O ambulatório ficou a cargo do sector público, ao passo que os inter-namentos em comunidades terapêuticas e unidades de desabituação ficaram es-sencialmente cometidos à iniciativa das IPSS (embora existam unidades de am-bos os tipos também no setor público). Mesmo no meio técnico, estávamos ainda longe do consenso em torno de algumas intervenções, nomeadamente sobre a uti-lização de programas de substituição opiácea. Havia um programa iniciado no Porto pelo Dr Eduino Lopes com a utiliza-ção de metadona, mas muito circunscrito e limitado e que enfrentava resistência ao alargamento a outros territórios. Penso que foi também importante assumir-se que estávamos perante um instrumento importante e que deveria ser difundido e, de alguma forma, quando assumi a direc-ção do SPTT, em 1997, não pretendendo impor a ninguém a utilização desse recur-

so terapêutico, o que defendi foi que de-veria estar disponível em todo o espaço nacional e que, dependendo dos critérios clínicos, as pessoas pudessem aceder a esse tipo de programas e não se vissem privadas por critérios geográficos. Sentia-se a necessidade de encontrar caminhos claros, de adoptar uma estratégia clara… E considero que foi também dominante a iniciativa do Governo de António Guterres, tomada pelo então ministro-adjunto José Sócrates, de convocar um grupo de pes-soas a quem encomendou recomenda-ções estratégicas. Foi uma acção impor-tantíssima e que revelou uma grande vi-são para que se afrontasse um problema que, na altura, assumia a centralidade das preocupações da população portuguesa.

Estamos a falar num grupo de pen-sadores de várias áreas do conhe-cimento…JG – Exactamente, desde um juíz a

psiquiatras, passando por psicólogos, as-sistentes sociais… Um grupo alargado, curiosamente dirigido por um cientista que nada tinha a ver com a área mas que pos-suía um enorme traquejo, experiência e habilidade na condução de grupos de tra-balho, o Professor Alexandre Quintanilha, e cujo resultado foi muitíssimo importante. A componente mais visível e conhecida in-ternacionalmente é a questão da descri-minalização, proposta que foi apresenta-da completando um pacote de medidas, e que, do meu ponto de vista, sendo impor-tante em termos práticos, foi sobretudo pertinente ao nível simbólico e da introdu-ção de coerência num todo baseado nos princípios do humanismo e do pragmatis-mo. A ideia de que a dependência é uma doença crónica recidivante, condição que deve ser tratada pelas estruturas da saú-de e da área social por contraponto com a abordagem criminalizante que antes pre-dominava, foi um momento determinante.

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JOAQUIM RODRIGUES

É um dos responsáveis pela pro-dução de recomendações, e ideias que viriam a marcar a humaniza-ção do fenómeno das drogas em Portugal. Como vê hoje o proble-ma no nosso País?Joaquim Rodrigues (JR) – Do que é

dado conhecer (não acompanho de perto a evolução da situação) embora a “droga” continue a ser notícia, desperta menos alarme; a toxicodependência passou a ser considerada uma doença... como outras e como tal a merecer mais atenção dos ser-viços de saúde e dos prestadores de cuida-dos; o toxicodependente menos marginali-zado e, uma vez concluído o processo de tratamento –mesmo que nem sempre à pri-meira tentativa – passou a ser aceite sem reservas perturbadoras por um número cada vez maior de empregadores e pela generalidade dos colegas de trabalho.

Há cerca de 17 anos foi publicada a estratégia Nacional de Luta Con-tra a Droga. Que memória guarda desta importante ferramenta de in-tervenção?

JR – Do processo de elaboração da proposta que esteve na origem da estra-tégia recordo

...O alívio que provocou na generali-dade dos membros da Comissão o pare-cer solicitado ao especialista de Direito Penal...quanto à compatibilização da despenalização do consumo de estupe-facientes com as disposições das con-venções internacionais;

- A atitude de reserva/apreensão de alguns deputados da oposição (à direita do então partido do governo/PS) quanto à proposta da Comissão a favor da des-penalização do consumo...

- A interpretação dada à proposta da Comissão pela Resolução do Conselho de Ministros que adotou a Estratégia Na-cional (e da lei nº 30/2000 de 29 de no-vembro)...que alarga a despenalização do consumo à posse e à aquisição!

Que avaliação faz do chamado Mo-delo Português?JR – O mérito fundamental... Ter

sido pioneiro no sentido inovador do ter-mo e ter tido reconhecimento generaliza-do!

Algumas limitações...as decorrentes duma implementação “nacional” (uma im-plementação progressiva, com uma fase de experiência piloto) teriam evitado al-guns acidentes do percurso.

Foi um modelo que custou mui-to construir, enfrentando muitas batalhas políticas e que resultou mesmo em produção de evidên-cia… Mas, neste momento, esse modelo parece ter sido desmante-lado…É assim?JR – Considero que a opção é irre-

versível...O que vejo por vezes “descura-da” é a implementação!

Depois, existem outros passos posterio-res que foram igualmente importantes, como o alargamento das competências do então IDT às questões do álcool e, mais tarde, a criação do SICAD e também o alargamento da abordagem ao mundo dos comportamentos aditivos e depen-dências, uma vez que os mecanismos neurobiológicos que lhes subjazem são semelhantes. Penso que estas seriam as etapas marcantes, todas elas dependen-tes do enorme empenho e competência de um grupo muito alargado de profissio-nais, que tem feito maravilhas nesta área em Portugal e que nos permitiu, não ob-viamente resolver o problema, mas reduzi-lo a uma dimensão equiparável a outros que afectam a sociedade portuguesa.

Apesar de também ter vivenciado a experiência da intervenção a par-tir do terreno, ao longo dos últimos anos assumiu competências fun-damentalmente de gestão de políti-cas. A título pessoal, o que significa para si ver este modelo que ajudou a construir reconhecido internacio-nalmente?JG – É um enorme orgulho… Estive

esta semana na CND em Viena e pudemos mais uma vez constatar como Portugal é hoje apontado como um exemplo de boas práticas. Sinto-me por vezes um pouco in-comodado quando sou apresentado como o obreiro… Longe disso! Fui uma pequena peça na reflexão que conduziu a esta reali-dade e nem sequer tive a iniciativa neste campo, até porque havia pessoas no grupo muito mais habilitadas para desenvolverem esta reflexão. Tenho sido, isso sim, a face vi-sível e há muitos anos a cara de todas estas políticas, tenho tido essa felicidade porque é realmente um enorme orgulho desempe-nhar este papel, gerador de visibilidade na-cional e internacional. Perguntam-me com muita frequência se me considero mais um técnico ou um político… No exercício destas sucessivas funções que tenho assumido, as duas componentes têm que estar presentes porque, por um lado, há a técnica, as neces-sidades identificadas pelos profissionais no terreno e que me são transmitidas e, por ou-tro lado, há o sopesar das circunstâncias e dos momentos em que podemos avançar num determinado sentido ou em que temos que ter alguma moderação. E penso que te-mos optado por um desenvolvimento de po-líticas realistas que têm em conta todos os factores presentes.

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14 “O HUMANISMO E O PRAGMATISMO É UM ENORME FACTOR DE SUCESSO NA NOSSA POLÍTICA”

MANUEL CARDOSO

O Dr. Manuel Cardoso é hoje um dos rostos mais visíveis do dispo-sitivo nacional de intervenção em comportamentos aditivos e depen-dências. Como se iniciou esse per-curso?Manuel Cardoso (MC) – Eu entro no

processo de forma intensa em 1995, quando quisemos regulamentar o interna-mento em comunidades terapêuticas, centros de dia, etc. Entro enquanto médi-co de saúde pública e, de certo modo, en-quanto autoridade de saúde no sentido de vistoriar essas unidades e garantir que apresentariam condições higio-sanitárias e técnico científicas bem como uma equi-pa técnica adequadas a um bom funciona-mento. Até 1998, este foi basicamente o meu trabalho nesta área, participar na equipa de vistorias e preparar os respeti-vos relatórios. Em simultâneo fiz parte do grupo de trabalho que preparou a legisla-ção sobre o licenciamento e o processo de convenção com estas unidades (viriam a ser publicados, já em 1999 os Decreto lei nº 16/99 e 72/99). As unidades, além de terem aumentado, elevaram a sua qua-lidade ao nível das instalações, em termos técnicos e de prestação de cuidados. E a facilidade de acesso a essas unidades que, inicialmente também não se verifica-va, passou da responsabilidade da Segu-

rança Social para a responsabilidade do SPTT a partir de 1998 (sucedendo-se o IDT e, actualmente, as ARS) e essa evolu-ção também se verificou muito por via da publicação daqueles diplomas. Por outro lado passou a haver uma harmonização de processos de internamento, nomeada-mente em articulação com os subsiste-mas de saúde, promovendo assim o finan-ciamento da intervenção terapêutica a quem realmente dela usufruía e evitando duplicações de faturação.

Em 1998, fui convidado para integrar o conselho de administração do SPTT e, desde então, tenho tido responsabilidades essencialmente ao nível da gestão das políticas. Lembro que, à data, porque con-sumir era crime, os doentes que procura-vam tratamento não eram identificados. Não se sabia quantos doentes estavam em tratamento. Não havia sequer uma fi-cha clinica harmonizada. Por outro lado as respostas terapêuticas não cobriam ainda todo o território nacional. A minha primeira tarefa foi perceber qual era a dimensão da “lista de espera” para tratamento. Numa primeira leitura tinha cerca de 2500 doen-tes em espera por uma consulta que viria não se sabia quando.

Todo o processo ficou muito facilitado quando, em 1998, foi criado aquele grupo de sábios que deu origem à estratégia na-cional. Essa estratégia foi realmente o pri-meiro marco e costumo dizer que o modelo português se baseia, mais do que tudo, nes-sa estratégia, no serviço vertical de resposta às necessidades identificadas e, depois, numa coordenação nacional. Daquela Es-tratégia emergem orientações e medidas absolutamente fundamentais para a imple-mentação daquilo que viria a ser o hoje de-signado “modelo português”. Permita-me que refira o que considero serem as medi-das e orientações mais estruturantes; desde logo a descriminalização e com ela o fim dos medos de procurar tratamento e fazer o respetivo registo, o fim do paradoxo entre a implementação de ações de redução de ris-cos e minimização de danos, sem que isso significasse estar a “ajudar” um criminoso a cometer o seu crime; em segundo lugar os princípios, nomeadamente os do humanis-mo e do pragmatismo, que levaram à inter-venção de RRMD, mais estruturada, e mes-mo apoiada em legislação específica, mas também ao alargamento da intervenção te-rapêutica à prescrição de agonistas opiá-ceos como a metadona; em terceiro lugar, a assunção de que a intervenção deveria ser

integrada e tendo em atenção os contextos, nomeadamente o contexto laboral. Na ver-dade a estratégia de 99 já previa a integra-ção dos vários tipos de intervenção. Por ou-tro lado, com o princípio da subsidiariedade, esta estratégia convoca toda a sociedade a participar na resolução dos problemas le-vantados com a toxicodependência. É com base neste princípio que surgem os primei-ros Planos Municipais de Prevenção. Hoje o envolvimento de quase toda a administra-ção pública, quer em termos de coordena-ção nacional, quer em termos de elabora-ção e de implementação dos planos, algo que fazemos pelo menos desde 2005, bem como a participação da sociedade civil, con-tribuem enormemente para a obtenção des-te sucesso da política portuguesa nesta área que é internacionalmente reconhecido. Fica pois claro que a definição das políticas e a sua implementação é facilitada pela des-criminalização por um lado e, por outro, a descriminalização e a criação das comis-sões de dissuasão para a toxicodependên-cia constituem um instrumento que facilita a aplicação de uma lei, mas também a aproxi-mação dos cidadãos à estrutura de saúde e aos serviços que, por sua vez, se sentiram capacitados e habilitados para promoverem a intervenção sem peias. Na minha pers-pectiva, os princípios do humanismo e do pragmatismo funcionaram realmente em pleno e esse é um enorme factor de suces-so na nossa política.

Um dos alicerces dessa estratégia assentou na criação de uma estru-tura vertical… mas deixou de as-sentar…MC – É verdade. O desenvolvimento

da política portuguesa nesta área alicer-çou-se numa estrutura vertical que primei-ro respondia apenas às questões de trata-mento e reinserção social, o Serviço de Prevenção e Tratamento da Toxicodepen-dência (SPTT) e que era tutelada pelo Mi-nistério da Saúde e uma outra, o Projeto Vida, tutelado pela Presidencia do Conse-lho de Ministros (PCM) e que era vocacio-nada para as questões primeiro da pre-venção e depois também para a RRMD. É com a criação do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) que se conse-gue criar uma estrutura vertical que verda-deiramente dá corpo a uma intervenção integrada. A criação das Unidades de In-tervenção Local e em especial dos Cen-tros de Respostas Integradas (CRI) são o seu máximo expoente.

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15Na verdade hoje essa estrutura não é

exatamente vertical, mas não deixa de existir uma estrutura específica de resposta. Não estamos no melhor dos mundos nessa maté-ria mas, apesar de ter referido que essa es-trutura vertical foi fundamental, não é menos verdade que, a partir de 1999, a prática da política portuguesa resulta na promoção de uma intervenção absolutamente integrada. Ainda temos os CRI. Apesar de a estrutura não ser neste momento tão vertical, tendo-se verificado essa quebra quando colocámos os centros nas ARS, a verdade é que mante-mos a resposta integrada. O grande desafio aquando da extinção do IDT foi precisamen-te conseguirmos garantir a manutenção des-sa resposta integrada. Esse sim é um pilar fundamental da intervenção em comporta-mentos aditivos e dependências. Apesar da autonomia técnico-científica que deve supor-tar cada um dos tipos de intervenção, a sua implementação no terreno tem que ser inte-grada. Fazemos intervenção preventiva uni-versal ou seletiva, mas atendemos indivi-dualmente os utentes com mais problemas ou promovemos o tratamento dos doentes. Fazemos intervenção de rua para aproximar os doentes das estruturas sanitárias e preve-nimos a desinserção ou promovemos a rein-serção consoante as necessidades de cada um. Aqui, hoje, assistimos à apresentação de um estudo sobre consumos em jovens inter-nados em Centros Educativos e ficou bem claro que as práticas de consumos entre es-tes jovens são bem superior à da população geral, nas mesmas idades. Se agirmos pre-cocemente no percurso destes jovens, se conseguirmos fazer uma intervenção inte-grada prévia, em termos de inserção, preve-nimos ou agimos em simultâneo com uma in-tervenção terapêutica. O mesmo se aplica à redução de riscos e minimização de danos e à reinserção. Com esse tipo de intervenção estamos a conseguir inverter ou parar per-cursos que, de outro modo, caminhariam para problemas muito mais graves.

Os ganhos económicos e financeiros ou a relação de proximidade com os cuidados de saúde primários, prometidos com a extin-ção do IDT e a integração das Unidades de Intervenção Local nas ARS, não se concreti-zaram. Houve, há mesmo ou parece existir, um desconforto quanto à capacidade de res-posta e harmonização da mesma em termos de todo o território nacional, que parecem contradizer aqueles prometidos ganhos. A verdade é que o consumo de álcool e de ta-baco são dois dos três principais fatores de risco de doença e morte na Europa e tam-

bém em Portugal. Temos que garantir que somos capazes de manter uma resposta adequada, em termos de saúde pública, a estes problemas. E essa resposta só pode ser dada intervindo precocemente de manei-ra harmonizada e articulada, globalmente em todo o território nacional. Há que garantir a verdadeira implementação da rede de Re-ferenciação/Articulação entre os CSP e este nível de intervenção intermédia, específica, mas de proximidade que é a intervenção das unidades pertencentes ao anterior IDT.

Foi um dos grandes condutores da integração do álcool nas competên-cias do então IDT e, hoje, depois da criação do Fórum Nacional Álcool e Saúde, temos também o país inserido em várias redes internacionais a este nível… Como classifica essa expe-riência de ter contribuído para a im-plementação de um novo paradigma ao nível da intervenção nos proble-mas relacionados com o álcool?MC – Foi uma experiência muito gira…

Uma vez mais, ou olhamos para os consu-mos de uma forma limitada à dependência e deixamos que tudo aconteça para tratarmos a doença ou olhamos para a componente de saúde pública. Se olharmos para a componente de saúde pública do uso noci-vo de álcool, verificamos que temos um número muito significativo de indivíduos com problemas de consumo nocivo, com consumo de risco, que carecem de algu-ma intervenção. Não é possível esperar que cheguem à situação de dependência para intervirmos. Por outro lado, quando pensamos nos vários problemas e patolo-gias associadas ao consumo de álcool, elas não precisam da dependência para serem influenciadas pelo consumo de ál-cool. Um acidente de viação ou outro, sob o efeito do álcool, por exemplo, não terá ne-cessariamente a ver com dependência. Mui-tas outras patologias de efeito agudo têm a ver com acções imediatas após um consu-mo mais intensivo… As de longo prazo po-dem ter a ver com esse consumo de risco mas hoje sabemos que o consumo de mais de 10 ou 20 gramas de álcool por dia tem se-guramente algum risco. A abordagem que fi-zemos também em relação ao planeamento para a intervenção nas questões do álcool resulta nisso mesmo: em planear, em identi-ficar os problemas, com estudos como este e outros que temos realizado, onde estão os riscos e tentar intervir para reduzir os proble-mas…

O consumo de álcool em Portugal é uma questão cultural e o uso e o consumo nocivos, merecem da comunidade uma complacência enorme. Portugal continua a ser um dos países do mundo com um maior consumo per capita, e as consequências para a saúde são evidentes.

Tratando-se de um problema cultural a sua abordagem deve ser, em nossa opinião, tão alargada quanto possível. Precisamos primeiro de mudar mentalidades para depois alterarmos comportamentos. A criação e de-senvolvimento do Fórum Nacional Álcool e Saúde (FNAS) é o método escolhido para pôr a sociedade civil, os operadores econó-micos, as Organizações não-governamen-tais e a administração pública, Central e Lo-cal, a discutir e a encontrar soluções para os problemas identificados. Este é o grande de-sígnio do FNAS, juntar no mesmo espaço de discussão todos os que de algum modo pos-sam estar envolvidos e se queiram envolver, na resolução dos problemas identificados e com metas a alcançar perfeitamente defini-das. Na verdade, para esta abordagem, Por-tugal beneficia da experiência do Fórum Eu-ropeu Álcool e Saúde, um dos pilares para a implementação da Estratégia Europeia para a redução dos efeitos do uso nocivo do ál-cool, onde de certo modo se inspirou.

A estratégia portuguesa para a redução dos problemas ligados ao álcool, baseia-se numa intervenção equilibrada entre dois do-mínios: o da oferta e o da procura. Foi assim que perspetivámos e executamos o Plano Nacional para a Redução dos Problemas Li-gados ao Álcool e é assim que está dese-nhado e em execução o Plano Nacional para a Redução dos Comportamentos Aditi-vos e das Dependência. O FNAS também nos ajuda a manter este equilíbrio e a pro-mover a implementação das medidas.

Foi defendendo esta abordagem prag-mática e de pequenos passos, mas seguros, que fomos convidados para acompanhar o desenho da Estratégia Global da OMS, bem como do Plano de Ação da Região Europa para esta área. Ao nível da União Europeia foi-nos atribuída a liderança de uma Ação Comum, para a redução dos efeitos nocivos

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16do álcool, que envolve todos os 28 Estados Membros, mais a Islândia, a Noruega e a Suíça. Envolve ainda organizações como a OMS, a OCDE, o OEDT e o Grupo Pompi-dou. Estamos no último ano de execução e creio estarmos a ter um grande sucesso. É a Joint Action RARHA (Reducing Alcohol Rela-ted Harm) www.rarha.eu. Lá para outubro fa-remos uma conferência final, aqui em Lis-boa, para “apresentar contas”. Por outro lado estamos a desenvolver esforços com a Comissão Europeia para que seja aprovada e financiada uma segunda Joint Action. Diria que o nosso trabalho está a ser reconhecido também nesta área. Os últimos dados sobre os indicadores nacionais tem tido uma evo-lução positiva o que nos anima a continuar.

Voltando ao início, diria que toda a inter-venção precisa de ser planeada. No caso dos comportamentos aditivos e das depen-dências a comunidade tem que ser um forte aliado. Uma abordagem equilibrada entre procura e oferta é indispensável. Por outro lado importa partilhar experiências com os parceiros internacionais. É absolutamente crucial partilhar o que temos de melhor e in-tegrar as boas práticas e saberes que temos para receber deles.

Um pouco no seguimento da lógica a que obedeceu a conceptualização do PORI…MC – A lógica do planeamento é sempre

semelhante. Depois, as actividades e inter-venções que se desenham para tentar resol-ver os problemas é que serão diferentes. Quando pensamos em termos globais, inter-vimos sobre o global e podemos fazer inter-venções de âmbito mais universal ou mais seletivo. Mas chegamos a um momento em que o que disponibilizamos para toda a co-munidade não é suficiente para alguns ni-chos e, aí, temos que entrar na especializa-ção e identificar os problemas mais específi-cos quer em termos territoriais, quer popula-cionais ou de contexto para depois definir o tipo de intervenção a desenvolver. O PORI tem essa grande mais-valia: com o apoio das forças vivas dos territórios, conseguimos perceber quais são os problemas de cada um deles, quais são os recursos que o mes-mo tem para trabalhar a todos os níveis e qual é a área lacunar. E, identificando o que falta, posso encontrar uma resposta para procurar satisfazer as necessidades identifi-cadas. É o que temos feito no âmbito do PORI. Penso que também por aí temos al-gum sucesso, sendo evidente que existem custos financeiros altos, mas estou convicto

de que os ganhos são substancialmente mais altos. Contudo não posso deixar de chamar a atenção para o facto de a resposta nacional estar centrada nas unidades de in-tervenção local. A resposta estruturada em termos nacionais é e tem que ser o pilar cen-tral da intervenção. O PORI é uma medida estruturante do Plano Nacional, mas deverá ser sempre uma resposta complementar.

Por último deixe-me dizer-lhe que neste processo de planeamento, com monitoriza-ção permanente e avaliação quer de proces-so, quer de resultados e de impacto, esta-mos a conseguir ganhos em saúde que me parecem muito relevantes.

Mais: diria que quando olhamos para o estudo recentemente apresentado sobre consumos na população escolar, quando olhamos para o estudo sobre os consumos na população geral e para o feito na popula-ção prisional, quando vemos a evolução dos indicadores de morbilidade e mesmo de mortalidade, quando percebemos que va-mos atingindo as metas e objetivos definidos no Plano Nacional, creio poder afirmar que estamos no bom caminho. Estamos todos de parabéns. O trabalho é de todos, os ga-nhos são de todos.

ÁLVARO PEREIRA

Qual é a sua opinião sobre a es-tratégia nacional de luta contra a droga e do tão propalado modelo portuguêsÁlvaro Pereira – (AP) A ENLCD /

modelo português pode ser considerado como um marco civilizacional, revolucio-nário até, na medida em que, afrontando o pensamento então dominante, rompeu com um grande número de dogmas acri-ticamente aceites, sem qualquer susten-

tabilidade científica, que eram apenas sustentados por uma visão moralista da vida e dos comportamentos. A mu-dança de paradigma (da moral para a ética, do pré-conceito para a evidência científica, do reprimir para o cuidar,…) foi, então como hoje, dificilmente con-testável – porque assente em princí-pios e valores, afinal de contas o que torna uma opção ideológica mais acei-tável que outra. Sobretudo o tempo e os resultados vieram mostrar: que os seus detractores estavam errados; a todos os que se empenharam na sua concretização prática que vale a pena lutar contra a corrente quando ela está inquinada por preconceitos ideológi-cos retrógrados, incapazes de enten-der o sofrimento humano.

Como se sente ao ver a interna-cionalização deste modelo?AP – Obviamente satisfeito – ain-

da que seja compreensível que para muitos (países, políticos e técnicos) não é fácil inverter o sentido de políti-cas e práticas consolidadas pelo tem-po.

Foi um modelo que custou mui-to construir, enfrentando muitas batalhas políticas e que resultou mesmo em produção de evidên-cia… Mas, neste momento, esse modelo parece ter sido desman-telado…É assim?AP – Não diria tanto, diria mesmo

que não foi desmantelado. Se calhar porque não houve coragem para tanto, se houve essa intenção política.

Houve mudanças organizacio-nais, cortes orçamentais, alteração de estatuto dentro do Serviço Públi-co? É verdade! Eram necessárias? Tenho a convicção que, no geral, não! Foram úteis? Também me pare-ce que não! Os resultados foram ca-tastróficos? No Algarve, não! Regis-taram-se constrangimentos ao traba-lho dos profissionais? No Algarve não! Faltam profissionais, sobretudo médicos? Faltam! O SNS está amea-çado? Está!

Quando há o sentimento de que as coisas não correm bem, também há um “modelo português”: culpar al-guém, sobretudo culpar o outro. Pro-curar responsáveis é muito complica-do!

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17“A INOVAÇÃO LEVA ANOS A SER RECONHECIDA”

PAULA MARQUES

A Dra. Paula Marques é uma figura incontornável e uma das responsá-veis pela produção de recomenda-ções, e ideias que viriam a marcar a humanização do fenómeno das drogas em Portugal. Como vê hoje o problema no nosso País?A primeira constatação é que está

tudo bem diferente. Se calhar não tanto como desejaríamos… os últimos anos, por força de várias circunstâncias, entre a quais a crise económica e social, fez emergir situações às quais estávamos a ter progressos.

Foi alargado o espectro de interven-ção a outros comportamentos susceptí-veis de provocar adição, o que faz muito mais sentido.

Os resultados obtidos entretanto, não sendo os que mais gostaríamos na sua plenitude, apresentam indicadores bas-tante positivos.

Creio que muitos dos que trabalham neste âmbito identificam áreas onde há necessidade de (re)investir e outras a (re)pensar.

Espero que a dinâmica que caracteri-za/va os serviços e os intervenientes nes-te processo venha a ter um novo ânimo.

Há cerca de 17 anos foi publicada a estratégia Nacional de Luta Con-tra a Droga, hoje designado como o “Modelo Português”, apreciado

e reconhecido internacionalmente, pela sua centralidade no cidadão, na humanização e na descriminali-zação. Que memórias guarda desta importante ferramenta de interven-ção?Todos esses princípios entranharam-

se naturalmente no que poderemos cha-mar, uma vontade latente de mudança. Não houve grande resistência à mudança. Acho que muitos aguardavam um novo quadro onde se pudessem rever.

O que mais recordo foi a discussão que promovemos a nível nacional com um vasto número e tipo de instituições ou pessoas, para conseguirmos um consen-so para elaborar o Plano Nacional, na se-quência do documento da Estratégia.

Lembro-me de ter pastas cheias de propostas dos mais diferentes quadran-tes. O difícil foi verter num único docu-mento a imensidão de excelentes contri-butos.

Nestes 40 anos muita coisa mudou. Que avaliação faz desde o início até ao Modelo Português?Os primeiros serviços criados em

1977 já tiveram algum cariz inovador, para a época. Foi introduzida a intervenção sis-témica e a terapia familiar (TF). Uma “equipa de rua” que trabalhava à noite em locais de festa e de convívio.

A par da intervenção clínica para jo-vens, adultos e famílias, existia uma Divi-são Psico- Social que investiu na forma-ção e num trabalho em rede com Centros de Saúde, Escolas, IPSS e outras entida-des, nomeadamente académicas. Procu-rava-se sensibilizar profissionais de vários quadrantes para as questões ligadas ao uso/abuso de drogas lícitas e ilícitas. Abri-ram-se as duas primeiras Comunidades Terapêuticas (CT) e existia um programa de metadona no Norte.

Procurámos aprender com quem ti-nha mais experiência a nível nacional e in-ternacional, sobretudo franceses, suíços e canadianos.

Foi feito trabalho de qualidade, mas como serviço pioneiro, já com abordagens e estratégias pluridisciplinares e também em três vertentes, prevenção, tratamento e reinserção. Não foi fácil…

A então dependência do Ministério da Justiça não facilitou a acessibilidade dos utentes e familiares mas, verdade seja dita, deixaram-nos desenvolver interven-ções, que já se faziam a nível internacio-

nal, muito contestadas noutros serviços públicos e privados (CT, TF e metadona).

A integração no Ministério da Saúde trouxe vantagens e outros profissionais com experiência diferente e diferenciada.

Foi percorrido um longo caminho por vários técnicos que foram congregados num mesmo serviço. Todos traziam know how. Eram Equipas maioritariamente constituídas por gente jovem, com enor-me empenho, dedicação e conhecimento.

Nunca tive nada contra processos que congreguem e potenciem experiências adquiridas, desde que a intenção seja de introduzir mais-valias, em termos de capa-cidade e qualidade de respostas.

A nova Estratégia veio sacudir e are-jar, ou seja, procurou-se alterar a perspec-tiva vigente. Pretendia-se enveredar por um novo paradigma.

Enfim, estamos hoje onde estamos, porque muitos trilharam vários caminhos, procurando melhorar e continuar a inovar. A inovação leva anos a ser reconhecida. A história dos serviços ligados aos CAD é bem prova disso…

Foi um modelo que custou muito construir, enfrentando muitas bata-lhas políticas e que resultou mes-mo em produção de evidência… Mas, neste momento, esse modelo parece ter sido desmantelado…É assim?Não creio que se possa afirmar que o

modelo foi desmantelado; a sua operacio-nalização e aplicação no terreno é que tem tido algumas condicionantes, por in-compreensão ou pouca flexibilidade de al-gumas estruturas intermédias que não fa-cilitaram a sua execução com a agilidade que lhe era inerente.

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18 “AINDA IREMOS A TEMPO DE INVERTER ESTA MARCHA PARA O ABISMO?”

NUNO MIGUEL

O Dr. Nuno Miguel é uma figura incontornável e responsável pela produção de recomendações que viriam a dar origem à estratégia nacional para a droga e toxicode-pendência e para o tão propalado modelo português. Que memórias guarda desse momento em equipa em que estavam a conceber uma ferramenta pioneira, centrada na humanização e na descriminaliza-ção? Nuno Miguel (NM) - Eu comecei a

trabalhar na área das toxicodependên-cias em 1975, numa consulta então existente no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria, criada pelo Prof. Dias Cordeiro e de que mais tarde fui responsável. Essa consulta tinha uma grande afluência pois foi, até 1977, a única estrutura para o tratamento de toxicodependentes em Lisboa e, mesmo depois da criação do CEPD, continuou a ser muito procurada. Alguns dos técni-cos dessa consulta foram sendo con-frontados com a insuficiência de trata-mentos complementares do tratamento desenvolvido na consulta e, por esse motivo, criaram em 1986 uma comuni-dade terapêutica no concelho de Mação( Ares do Pinhal) e pouco depois estive-ram também envolvidos na tentativa de criação pela Misericórdia de Lisboa de

um centro de dia no Colégio dos Inglesi-nhos. E é a partir deste conjunto de téc-nicos – escolhidos pela Ministra da Saú-de Leonor Beleza -que é formado pri-meiro o Centro das Taipas cuja expe-riência é replicada no Porto ( CAT de Cedofeita) e também no Algarve (SPAT Algarve) e depois o SPTT – integrando também os CEPDs - com a função de criar uma rede pública de estruturas de tratamento de toxicodependentes com articulação com estruturas privadas.

Nesses anos o problema da toxico-dependência tinha um grande relevo – segundo os meus cálculos Portugal terá tido 100.000 dependentes de heroína muitos deles por via endovenosa – sen-do uma das principais preocupações da opinião pública e as questões legais eram também muito discutidas, havendo inclusivamente uma forte corrente de opinião – que chegou a incluir um Minis-tro da Saúde e também uma associação muito interventiva - partidária da legali-zação ou regulação pelo Estado, consi-derando que a luta contra a droga esta-va perdida e que o proibicionismo era uma má estratégia. Particularmente fo-cados na dependência da heroína com o seu cortejo de consequências negativas criminais e sanitárias defendiam ou a li-beralização (como o prémio Nobel da Economia Milton Friedman) ou a regula-ção do mercado, fornecendo o Estado a heroína a todos os dependentes. Mas outra corrente, ainda mais importante, era constituída por aqueles que temiam que qualquer alteração legal num senti-do menos repressivo pudesse ser en-tendida como um sinal de menor gravi-dade do consumo e se traduzisse num aumento descontrolado do número de consumidores. Argumentava esta cor-rente que a Lei portuguesa já era uma lei compreensiva para os consumidores, e que, na prática, embora o consumo de drogas fosse crime, não havia consumi-dores presos pelo facto de consumirem.

Sempre pensei de forma diferente destas duas posições. Por um lado, acreditava que era possível dar uma resposta consequente ao consumo de drogas – obviamente não acabando com o problema mas reduzindo-o a dimen-sões possíveis - a partir da prevenção e do tratamento e que a situação calamito-sa que vivíamos na altura era fruto da falta de investimento quer no tratamen-to, quer na prevenção ( Como foi possí-

vel que até 1986 a resposta oficial ao consumo de drogas fossem três reduzi-dos centros regionais em Porto, Coim-bra e Porto e duas pequenas consultas hospitalares? ) Por outro lado conhecia toxicodependentes que tinham estado presos só pelo consumo e sabia tam-bém que as autoridades policiais utiliza-vam algumas vezes o facto do consumo ser crime para exercer uma ilegítima pressão para conseguir a sua colabora-ção ou para os castigar com práticas hu-milhantes.

Assim para mim sempre foi claro que a lei devia ser mudada e que não era justo que o consumo fosse conside-rado crime. Nem o consumo eventual e muito menos o consumo dos dependen-tes cujo consumo não poderia ser consi-derado simultaneamente doença e cri-me. E nunca achei democrático manter leis cuja efectividade, ou antes não exe-cução, dependia da atitude discricioná-ria daqueles que estariam encarregados de as executar

Mas nunca considerei que a mudan-ça da lei pudesse contribuir para a solu-ção do problema da droga. Era apenas para mim uma questão de justiça e de respeito pela lei. A lei não pode ser in-justa e não pode ser desrespeitada.

Foi com este espírito que participei – como qualquer outro membro -na co-missão que elaborou a pedido do Mi-nistro José Sócrates a Estratégia Na-cional. Guardo boas recordações das reuniões e dos restantes actividades dessa comissão, presidida pelo Prof. Alexandre Quintanilha, que contribuiu muito para o bom ambiente e profundi-dade do trabalho realizado e em que vi concretizar-se, em relação às ques-tões legais, a posição que há muito de-fendia. E mais tarde tive a satisfação de ver que o Governo da altura, presi-dido por António Guterres, aceitou as propostas da comissão e publicou uma resolução de conselho de ministros em que nos reconhecemos e mais tarde as leis necessárias para a mudança, não só em relação à descriminalização como também em relação à política de redução de riscos.

Tudo parece ter partido de reco-mendações com base na ciência. Hoje, são evidências produzidas. Como se sente ao ver a interna-cionalização deste modelo?

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NM - A verdade é que as alterações legais respeitantes ao consumo de drogas coincidiram no tempo com a evidência dos resultados positivos que a rede pública de tratamento de toxicodependentes permitiu alcançar e isso criou no espírito de muitos observadores internacionais um equívo-co: a ideia de que os bons resultados al-cançados eram fruto das alterações legais o que só em parte era verdadeiro. Em par-te era verdadeiro particularmente, porque teria sido difícil actuar na área de redução de riscos, como o fizemos, sem as altera-ções legais.

Mas não tiveram em conta assim o outro factor determinante na evolução portuguesa, esta rede pública nacional que articulava prevenção, tratamento, re-inserção social e redução de riscos e da-

nos articulando os serviços públicos com privados e incluindo na rede outras insti-tuições, como as farmácias que possibili-taram um programa de troca de seringas bem dimensionado e a administração de metadona em farmácias selecionadas e preparadas para o efeito. Não podemos esquecer também a ampla colaboração que foi sendo possível ter com as institui-ções públicas da tuberculose e da SIDA e com muitos centros de saúde.

Também o facto de a toxicodepen-dência ser considerada uma doença foi determinante na forma como este pro-blema foi sendo encarado e respondido. Porque tornou possível pensar a respos-ta em termos de tratamento e concep-tualizar de forma diferente o tratamento. Muitas vezes a resposta que se tinha

era centrada na paragem dos consu-mos e na reinserção social ignorando que existe um trabalho - tratamento – a fazer com os toxicodependentes sem o qual o toxicodependente não será capaz de parar os seus consumos ou de se manter sem consumir.

Foi um modelo que custou mui-to construir, enfrentando muitas batalhas políticas e que resultou mesmo em produção de evidên-cia… Mas, neste momento, esse modelo parece ter sido desmante-lado…É assim?NM - Foi de facto um modelo que cus-

tou a construir e que é fruto do trabalho e reflexão de muitos técnicos, abertos ao questionamento das suas ideias a partir da realidade e que na sua elaboração en-controu por vezes resistências e falsos apoios. E não é obviamente um modelo perfeito e acabado. Mas a verdade é que foi tendo resultados muito positivos, reco-nhecidos em Portugal e no estrangeiro,

O que foi para mim surpreendente foi ver um governante elogiar publica-mente o modelo, as instituições, os téc-nicos, o trabalho realizado, os resulta-dos alcançados e simultaneamente ir destruindo tudo, medida a medida, pas-so a passo, parecendo que nunca esta-va satisfeito com a destruição já realiza-da e querendo sempre ir mais longe…

Será que é possível inverter esta marcha para o abismo? Ainda iremos a tempo?

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20 “BREVE REFLEXÃO SOBRE A DESCRIMINALIZAÇÃO DO CONSUMO DE DROGAS EM PORTUGAL”

RODRIGO COUTINHO

A medida legislativa da descriminali-zação do consumo privado de drogas, que integra todo um conjunto de outras medidas da Estratégia Nacional de Luta contra a Droga (ENLCD) aprovada em 1999, foi para mim um acto de justiça porque, desde que integrei em 1985 a equipa do Serviço de Psiquiatria do H. Stª Maria chefiada pelo Dr. Nuno Miguel, que era o responsável pela consulta de adolescentes e toxicodependência do serviço, aprendi com ele e tomei cons-ciência de que a adicção é uma doença da pessoa e que por isso esta não deve-ria ser tomada como criminosa só por esse facto.

Mas para além de injusta, a crimina-lização dos consumos de per si, inibia estes doentes de recorrerem às consul-tas e/ou prejudicavam a adesão e conti-nuidade dos seus projectos terapêuticos e de reinserção sócio-profissional (pro-cessos judiciais, cadastro no registo cri-minal, detenções, etc.).

Penso também que a concepção e a aprovação desta medida, e outras, da ENLCD, foi possível por terem existido alguns aspectos que importa lembrar:

1. A passagem, nos finais da década de 80, dos dispositivos de trata-mento criados e a criar para a tu-tela do Ministério da Saúde (esta-

vam na esfera do Ministério da Justiça), assumindo-se politica-mente de forma clara a adicção como uma doença.

2. A criação e desenvolvimento, a partir daquela altura e ao longo de toda a década de 90 a nível de todo o território nacional, de res-postas terapêuticas diversificadas (redução de danos, tratamento, reinserção social) mas integradas, e que na sua generalidade se re-giam pelos princípios do humanis-mo e pragmatismo posteriormente plasmados na ENLCD.

3. A constatação empírica a partir da prática clinica, corroborada por trabalhos científicos, de que os entraves criminais ao consu-mo não tinham peso específico nas opções dos utilizadores de drogas quanto ao seu consumo, e apenas prejudicavam a aproxi-mação aos serviços e/ou o seu tratamento

4. A dimensão avassaladora e epidé-mica do fenómeno e a sua trans-versalidade a todo o tecido social, tornando este problema e todas as suas consequências na princi-pal preocupação nos anos 90 das famílias portuguesas, que levou a uma leitura “compreensiva” das medidas preconizadas pela ENL-CD por parte da população em ge-ral, contribuindo para a sua acei-tação tácita.

5. A coragem politíca de criar um grupo de peritos e, contra os cos-tumes, aceitar as suas conclusões

Importa dizer que a descriminalização do consumo de drogas, apenas por si só, tem um impacto significativo (redução do estigma, redução das detenções, defesa dos direitos humanos,etc.) mas limitado. Foi o conjunto das intervenções inscritas na ENLCD, que colocadas no terreno, permitiram respostas mais eficazes e abrangentes que, ao aumentarem muito significativamente a procura e a adesão ao tratamento, aumentaram substancial-mente a eficácia das estratégias de inter-venção, conforme evidenciado nos relató-rios nacionais e internacionais pela desci-da de todos os indicadores de severidade nesta população em Portugal.

Para alcançar estes objectivos tam-bém foi essencial a partilha de saberes e experiências entre os seus profissio-nais e a estreita articulação entre os ser-viços no planeamento, organização e desenvolvimento destas estratégias, promovendo a coesão e dando consis-tência às intervenções.

A justeza da medida de descriminali-zação é-me transmitida todas as semanas pelos visitantes de todos os lugares do mundo que vêm observar como se traduz esta medida no terreno (diga-se também que muitas vezes nos referem algum sen-timento de frustração por não terem esta medida aplicada nos seus países).

Gostaria de chamar a atenção para o facto de muito frequentemente o tão falado “modelo português” ser apenas conotado com a medida de descriminali-zação do consumo de drogas, quando na verdade é todo o conjunto das medi-das inscritas na ENLCD que lhe dá a real consistência.

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21“UM CASAMENTO PERFEITO ENTRA A POLÍTICA E OS PROFISSIONAIS NO TERRENO”

FERNANDO MENDES

Qual a sua opinião sobre a estra-tégia nacional de luta contra a dro-ga e do tão propalado modelo por-tuguês? Reconhece que esta ferra-menta é pioneira, por centrar a sua acção na humanização e na descri-minalização?Fernando Mendes (FM) – Sem dúvida

que Portugal surpreendeu tudo e todos com a lei de descriminalização do consumo de drogas. Na altura como um dos vice coorde-nadores do IPDT recordo-me do reboliço que foi logo a seguir à promulgação. Foi a confusão baseada no pressuposto que tudo passaria a ser “liberalizado”. Embora hou-vesse da nossa parte um esforço para expli-car a lei e a sua “ dimensão” no terreno com as articulações institucionais parecia nos que por muito que explicássemos ficavam sempre duvidas, e alguns de nós também as tínhamos, e era tanta gente a querer sa-ber que quase não sabíamos para que lado falar. A nível nacional lançamos uma discus-são aberta à sociedade onde percorrendo o País íamos divulgando, explicando e ouvin-do algumas sugestões. Efetuaram-se em todas as capitais de distrito. Recordo-me que em companhia do Padre Victor Feytor Pinto, antigo Coordenador do Projecto VIDA visitei no patriarcado D. José Policarpo, na altura Arcebispo de Lisboa, com quem abor-damos o assunto clarificando alguns aspec-

tos da lei. Enfim um trabalho e tanto que en-volveu muita gente. Ainda sobre a lei diria que “não foi pioneira “ mas ainda é pioneira num certo sentido e tem vertentes ainda a explorar e a explicar. Tenho o sentimento que se pode aprofundar não a lei em si mas os pressupostos que ela nos disponibiliza e temo que não a esgotar neste sentido se resvale para uma fuga para uma frente em falso.

A Estratégia parece ter partido de recomendações com base na ciên-cia. Hoje, são evidências produzi-das. Como se sente ao ver a inter-nacionalização deste modelo?FM – Um pensamento ousado diria eu,

uma convicção forte e o desejo de fazer uma política mais humana, integradora e eficaz, foram os ingredientes desta lei. Um casamento perfeito entra a política e os pro-fissionais no terreno. Mas não nos podemos esquecer que até chegarmos aqui foi feito muito trabalho e recolhida muita experiencia ao longo de anos que nos permitiu elaborar uma nova estratégia. Fico satisfeito por ver que o modelo nacional chamou à atenção no exterior e que muitos desejam querer adaptá-lo às suas realidades. Contudo é bom recordar que cada um dos países tem a sua própria realidade (cultural, social e económica) e a mesmo terá que ter adapta-ções, que não sei se chegaram ao nosso desenho final. Ousar e realizar como referi anteriormente tem custos que nem todos podem ou querem concretizar e num tempo de crise a ideia é simplificar no mau sentido. Acho que em muitos países a palavra-cha-ve de momento é “ despenalizar”,” cuidar “ e integrar na medida que os sistemas o permi-tem. Nem todos os países têm modelos como o nosso Serviço Nacional de Saúde e talvez por esta razão estejamos a assistir porque o sistema não é publico e é muito caro às tentativas de legalizar certos tipos de consumo de substâncias como a Canna-bis como já acontecem em alguns países como viessem preencher um vazio que o estado não preenche.

Como nota, lembrar que um par de anos mais tarde o modelo implementado permitiu a fusão / integração de duas es-truturas base nesta área o IPDT e o SPTT. E aqui sim o modelo ficou completo e mui-to mais abrangente.

Foi um modelo que custou muito construir, enfrentando muitas bata-lhas políticas e que resultou mes-mo em produção de evidência… Mas, neste momento, esse mode-lo parece ter sido desmantelado… É assim?FM – Como qualquer bom modelo não

pode ser estático e tem que se adaptar às novas realidades a saber das velhas subs-tâncias às novas adições aos novos tipos de consumo como os novos grupos de con-sumidores entre outros fatores e circunstân-cias e nesta perspetiva acreditando que o modelo não está esgotado tem toda a po-tencialidade de se reenquadrar num cenário diferenciado. Para isso uma nova discussão técnica e pública deve ser feita. Passaram-se mais de 15 anos e era momento de se fa-zer uma avaliação Interna e global do todo, ganhos e perdas, da redução da oferta à re-dução da procura. Nem tudo serão um” mar de rosas” mas seguramente algumas coisas teremos que reequacionar. Mais qualidade, mais rede, diversificação de programas te-rapêuticos e socio profissionais mais apoios diferenciados mais intervenção da socieda-de civil e maior regionalização dos serviços com os enquadramentos locais. Conseguir uma integração mais eficaz nas respostas do álcool e do tabaco nos serviços existen-tes de prevenção tratamento e reinserção.

Para terminar direi que tão importante como as políticas são quem as faz e so-bretudo quem as aplica pois podemos ter uma “pedra preciosa” que se for bem tra-balhada poderá ter o dobro do valor que teria se não tivesse o toque final de quem sabe potenciar e valorizar. Conhecimento, ousadia, diplomacia alguma humildade e muito bom senso serão bons conselhei-ros.

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22Estudo sobre o consumo de álcool, tabaco, droga e outros comportamentos aditivos e dependências:

ESPAD 2015 fornece indicadores positivos sobre evolução dos

consumos entre jovens

Foi apresentado, no dia 3 de Março, o mais recente estudo sobre o consumo de álcool, tabaco, droga e outros compor-tamentos aditivos e dependências. O estudo, produzido por Fernanda Feijão, reporta a situação em 2015, abordando ainda uma análise comparativa relativamente aos anos 2003, 2007, 2011 e 2015 e os resultados preliminares permitem concluir que, nos últimos quatro anos, os cerca de 20 mil jo-vens inquiridos, entre os 13 e os 16 anos de idade, diminuí-ram os consumos de álcool, tabaco e droga. Na faixa entre os 17 e os 18 anos, a tendência é de estabilização. Quanto à evolução verificada desde o último estudo, ou seja, entre 2011 e 2015, o estudo permite concluir que as prevalências de consumo de álcool diminuíram em prati-camente todos os grupos etários, excepção feita ao dos 17 e 18 anos, em que se verifica a tal estabilização quanto à experimentação e consumos recentes.No que concerne à embriaguez, a tendência de diminui-ção de prevalência mantém-se em todos os grupos etá-rios, com a mesma excepção a aplicar-se ao grupo dos jovens com 18 anos, em que a estabilização se verifica.A diminuição das prevalências de consumo de cerveja e de bebidas destiladas em todas as idades é também uma conclusão apontada pelo ESPAD 2015.Também as prevalências de consumo de tabaco diminuí-ram entre os jovens dos 13 aos 17 anos e estabilizaram aos 18 anos.No consumo de droga, a tendência global de experimen-tação diminuiu entre os 14 e os 16 anos, estabilizou nos 17 e aumentou nos 18 anos. A droga mais consumida, a cannabis, foi menos consumida entre os 14 e os 16 anos, não teve alterações de consumo nos 13, 15 e 17 anos e aumentou aos 18 anos; nos consumos recentes e atuais houve também diminuição ou estabilidade.Também a experimentação de outras drogas, como os aluci-nogénios, cocaína e heroína diminuiu entre os 14 e os 17 anos, sendo que as de tipo anfetamínico foram menos expe-rimentadas pelos alunos de 14 e 16 anos tendo-se verificado estabilização entre os jovens com 13, 15, 17 e 18 anos.Dependências marcou presença na sessão de apresenta-ção dos resultados do ESPAD e entrevistou a investigado-ra Fernanda Feijão, o Subdiretor Geral do SICAD Manuel Cardoso e o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Fernando Araújo.

Fernanda Feijão

Fernanda Feijão (FF) – Este estudo é uma generalização do ESPAD que se faz a nível europeu, em mais de 40 países, desde 1995. Realiza-se de quatro em quatro anos, nos alunos que completam 16 anos no ano em que o estudo se faz. Em Portugal, sou coordenadora nacional desde 2000 e, desde 2003, ano do primeiro estudo que coordenei inteiramente, deci-dimos alargar as amostras aos alunos dos 13 aos 18 anos o que nos permite comparar, desde essa altura, a evolução de cada um desses grupos etários, bem como a situação global. Fundamentalmente, incide sobre o âmbito das drogas, do ál-cool e do tabaco e, este ano, pela primeira vez, temos uma ver-tente alargada sobre o consumo de internet e de jogo (a dinhei-ro ou sem ser a dinheiro; na internet ou de base territorial). A amostra foi muito boa: recebemos 20 mil questionários preen-chidos, dos quais 18.111 são dos grupos etários entre os 13 aos 18 anos; os restantes são abaixo dos 13 ou acima dos 18. Temos cerca de 3 mil alunos em cada grupo etário, o que nos permite fornecer também resultados representativos de cada grupo etário por sexo. O procedimento é o mesmo de sempre, anónimo e totalmente confidencial e a colaboração das escolas foi excelente. Fizemos o estudo em cerca de mil turmas de 530 escolas, os diretores cooperaram muito bem, o mesmo se veri-ficando relativamente aos coordenadores locais que aplicaram o inquérito… É uma longa história de trabalho em conjunto que temos com o Ministério da Educação e, mais uma vez, funcio-nou lindamente.

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Que principais tendências e alterações relativamente a 2011 se concluem a partir do inquérito?FF – Há quatro anos, acabei o estudo de 2011 a dizer que

tinha havido diminuição do número de consumidores mas os que consumiam tinham consumos mais frequentes e mais in-tensivos (porque consumiam substâncias de maior nocividade e em maior quantidade). Este ano, vou terminar dizendo que continua a haver diminuição de consumidores em todas as substâncias mas também, em geral, menor frequência de con-sumos. Globalmente, mantém-se a tendência decrescente (pelo menos, desde 1997) do número de consumidores que ex-perimentaram álcool ou tabaco bem como dos que consumiram estas substâncias no último ano (P12M) ou no último mês antes do estudo (P30D) de que destaco, em particular, a diminuição acentuada das percentagens de consumidores de cerveja ou de bebidas espirituosas. De um modo geral, também diminuiu, a frequência com que foram feitos esses consumos, o que é ex-celente notícia, sendo que apenas nos alunos mais velhos (17 e 18 anos) houve algumas exceções. Quanto aos comporta-mentos de maior risco há que salientar que embora seja rele-vante, nos alunos de todas as idades, a diminuição da percen-tagem de embriaguez ao longo da vida e no último ano, quanto ao último mês, apenas em metade dos grupos etários houve decréscimo tendo havido estabilidade na outra metade. Por ou-tro lado, nos alunos mais velhos, aumentou a percentagem dos que se embriagaram mais que 5 vezes. O consumo de tabaco (cigarros) também diminuiu, o que é excelente. No entanto, este ano introduzimos questões relacionadas com o tabaco de enrolar e cigarros electrónicos e, quando juntamos estas subs-tâncias, o decréscimo, embora se verifique, não é tão acentua-do.

Fizemos o estudo em cerca de mil turmas de 530 escolas, os diretores cooperaram muito

bem, o mesmo se verificando relativamente aos coordenadores locais que aplicaram o inquérito.

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Relativamente às drogas, acentua-se a diferença entre os consumos de cannabis e o das outras drogas: apenas o consumo de cannabis é relevante sendo o das outras drogas praticamente residual (os valores máximos das prevalências de consumo nos últimos 12 meses, do ecstasy e da cocaína são, respetivamente, da ordem dos 2% e 1%). Para todas, exceto a cannabis no caso da experimentação aos 18 anos, houve uma redução do número de consumidores, no entanto, aos 18 anos, um em cada três alu-nos já experimentou cannabis e 14% consumiram-na nos últimos 30 dias.

Por último, embora tenha diminuído em alguns grupos etários, continua muito elevada a prevalência de consumo de tranquilizan-tes ou sedativos, em particular entre as raparigas: aos 18 anos uma em cada quatro já tomou este tipo de medicamentos na maior parte dos casos, segundo prescrição médica.

Relativamente a jogo e internet não existe comparabilida-de de dados…FF – Não existe comparabilidade, porque é a primeira

vez que inquirimos sobre estes temas, mas constata-se uma frequência muito grande, desde logo da internet, como seria de esperar, em que as actividades com maior frequência de utilização são as redes sociais, os streamings e downloads e a pesquisa de informação. A seguir, vem o gaming, ou seja, o jogo na internet sem dinheiro, predominantemente pelo sexo masculino. Também constatámos que já existe um grupo de dimensão relevante que faz compras na internet… Relativa-mente ao jogo a dinheiro, investigámos os vários tipos de jo-gos de dados e cartas, apostas desportivas (corridas de au-tomóveis, cavalos, etc, ou totobola – na altura ainda não ha-via o placard), lotarias (raspadinhas, totoloto, euromilhões, bingo, etc.) e slot machines (máquinas de frutas, etc.). Rapa-zes e raparigas revelam uma actividade relevante nas lota-rias, sendo já mais de 10% os rapazes mais velhos (17 e 18 anos) que jogam a dinheiro, online, nas apostas desportivas ou nas lotarias.

Apenas o consumo de cannabis é relevante

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25Fernando Araújo, Secretário de Estado Adjunto e da Saúde

Presumo que os resultados deste estudo o satisfaçam…Fernando Araújo (FA) – Sim, como foi possível verificar, este

estudo demonstra que existe uma estabilização e uma redução nalgumas substâncias e escalões etários… De qualquer forma, queremos sempre mais. Existem indicadores, como o consumo de álcool, em que constatamos níveis elevados, particularmente en-tre os jovens e raparigas, o que reforça a necessidade de promo-vermos uma política activa quer em termos de prevenção, quer de redução da oferta. O mesmo se aplica a novas áreas, como a in-ternet ou do gambling, da própria cannabis que ainda tem alguma complacência social, bem como os fármacos sujeitos a receita médica, os sedativos e tranquilizantes. São áreas em que temos que trabalhar, olhando atentamente para os números, locais e es-

calões etários e, juntamente com a Educação, preparando políti-cas activas no sentido de tentarmos reduzir estes valores.

Quer dizer que o país não tem que temer um desinvesti-mento neste dispositivo?FA – Bem pelo contrário: estamos com muita vontade de

apostar nesta área. Quanto melhor conduzirmos políticas no âm-bito da prevenção, mais qualidade de vida asseguraremos e me-nos despesa teremos em termos posteriores.

Tem sido muito ventilada a necessidade de assegurar uma nova solução para a estrutura que assume a tutela desta área, nomeadamente o SICAD… Será ponderável o regresso a uma organização vertical, à imagem do an-tigo IDT?FA – Essa é uma óptima pergunta… diria que estamos ainda a

reflectir sobre essa matéria e faz sentido avaliar os resultados, comparar com o que tínhamos no passado e encontrar novas so-luções. Penso que, durante este ano de 2016, faremos segura-mente essa avaliação.

Consulta pública para avaliação da Estratégia da União Europeia em matéria de Drogas e do respectivo Plano de Acção, a ter lugar em 2016Está aberta a consulta pública para avaliação da Estratégia da UE em matéria de Drogas e do respectivo Plano de Acção 2013

-2016, a ter lugar em 2016. Todos os stakeholders nacionais estão convidados a participar nesta consulta, que decorrerá até 9 de maio próximo.

A Estratégia da UE em matéria de Drogas fornece o quadro político e as prioridades de acção no domínio das políticas de drogas para o período 2013-2020. A própria Estratégia estipula que a Comissão Europeia proceda a uma avaliação externa intercalar, em 2016, tendo em vista a preparação de um segundo plano de acção para o período 2017-2020.

O contributo para esta consulta pública poderá ser realizado através do preenchimento de um questionário on-line, disponível em: http://ec.europa.eu/dgs/home-affairs/what-is-new/public-consultation/2016/consulting_0032_en.htm

As respostas a este questionário serão incluídas num relatório e publicadas na internet, constituindo um importante contributo para o exercício de avaliação da Estratégia e do Plano de Acção.

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26Inquérito sobre comportamentos aditivos em jovens internados em Centros Educativos:

65% dos crimes cometidos sob o efeito de bebidas alcoólicas ou de substâncias ilícitas

Em Junho de 2015, o Serviço de Intervenção nos Compor-tamentos Aditivos e nas Dependências, em articulação com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisio-nais, desenvolveu o Inquérito sobre Comportamentos Adi-tivos em Jovens Internados em Centros Educativos, nos seis Centros Educativos do país, com o objectivo de apro-fundar o conhecimento sobre os comportamentos aditivos destes jovens, a sua relação com a criminalidade e identi-ficação de factores subjacentes.Constituindo o primeiro estudo sobre comportamentos aditivos no âmbito da vigência da Lei Tutelar Educativa, pretendeu-se, entre outros objectivos, obter uma leitura mais compreensiva da inter-relação dos comportamentos aditivos e dos comportamentos delinquentes, bem como identificar factores que orientem o desenvolvimento de in-tervenções.A apresentação pública dos resultados deste estudo foi realizada no dia 18 de Março, no Auditório do Centro de Formação do Centro Educativo Padre António Oliveira, em Caxias e contou com as presenças da Secretária de Estado Adjunta e da Justiça, Helena Mesquita Ribeiro e do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Fernando Araújo.Dependências apresenta um sumário do estudo.

Objectivos• Caracterizar os jovens em geral quanto a variáveis que se re-

lacionam com o uso/abuso de drogas e álcool e envolvimen-to em crimes;

• Caracterizar o envolvimento em práticas criminais; • Caracterizar os comportamentos aditivos (bebidas alcoóli-

cas, drogas e jogo);

• Explorar a relação entre variáveis caracterizadoras do con-sumo de substâncias psicoactivas e envolvimento em cri-mes.

MetodologiaTrata-se de um estudo quantitativo, transversal, aplicado à po-

pulação de jovens presentes nos 6 Centros Educativos do país, em Junho de 2015, através de um questionário de autopreenchi-mento, tendo participado 142 jovens (93% da população). Sobre os dados recolhidos procedeu-se a uma análise descritiva e esta-tística bivariada.

Resultados

Consumo de substâncias psicoactivasOs jovens internados nos Centros Educativos apresentam

prevalências de consumo de bebidas alcoólicas e de substâncias ilícitas, bem como padrões de consumo nocivo, superiores às dos jovens que frequentam o ensino regular público.

93% já experimentaram bebidas alcoólicas e 89% já consu-miram substâncias ilícitas. Nos 12 meses anteriores ao interna-mento, 82% consumiram bebidas alcoólicas e 80% substâncias ilícitas. Por sua vez, nos 30 dias anteriores, 72% consumiram be-bidas alcoólicas e 68% substâncias ilícitas.

Independentemente do período temporal, os tipos de bebidas alcoólicas ingeridas por mais jovens são as espirituosas e a cerve-ja, destacando-se, a este nível, a cannabis, entre as substâncias ilícitas. Por exemplo, nos 12 meses antes do internamento, 74% beberam espirituosas, 66% beberam cerveja e 79% consumiram cannabis.

A seguir à cannabis, o grupo de substâncias/consumos ilícitos referido por mais jovens é o dos estimulantes que não a cocaína

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27(anfetaminas, ecstasy e outros): 22% consumiram nos 12 meses antes e 13% nos 30 dias antes do internamento, sendo os opiá-ceos, os hipnóticos/sedativos não prescritos e os esteróides ana-bolizantes mencionados apenas marginalmente.

Quanto às substâncias psicoactivas mais comuns, de uma for-ma geral, estes jovens não diferem dos do ensino regular público. Contudo, as prevalências de consumo são superiores, sobretudo da cannabis, com uma prevalência semelhante à do consumo de bebidas alcoólicas.

Pelo menos metade dos jovens apresentava, nos 30 dias an-teriores ao internamento, padrões de consumo de risco acrescido: consumo diário/quase diário de cannabis (46%), beber até ficar “alegre” (53%), consumo “binge” (45%) e embriaguez (29%). 62% consomem habitualmente (sem referência a um período temporal específico) mais do que uma substância na mesma ocasião, so-bretudo bebidas alcoólicas e cannabis.

53% dos jovens já tiveram problemas relacionados com o seu consumo de bebidas alcoólicas e 56% com o seu consumo de substâncias ilícitas (24% com ambos), sobretudo o envolvimento em actos de violência (42% devido a substâncias ilícitas e 41% a bebidas alcoólicas), seguido dos problemas graves de rendimento na escola/trabalho (30% devido a substâncias ilícitas e 22% a be-bidas alcoólicas) e dos problemas de comportamento em casa (29% devido a substâncias ilícitas e 22% a bebidas alcoólicas). Em ambos os casos, estes estão relacionados com padrões de consumo mais nocivos.

37% dos jovens declaram que já consumiram pelo menos uma vez uma bebida alcoólica após o início do internamento e 36% que já consumiram substância ilícitas. Como, durante o in-ternamento, alguns jovens têm autorização de saída para o exte-rior do Centro Educativo, para o fim-de-semana, férias ou frequên-cia de escola/estágios, importou diferenciar as prevalências de consumo dentro e fora deste: 34% já haviam consumido bebidas alcoólicas fora do Centro Educativo, 10% dentro. Por sua vez, 26% já haviam consumido substâncias ilícitas fora do Centro Educativo e 23% dentro.

Quanto a consumo mais recente, 26% dos jovens tomaram bebidas alcoólicas nos últimos 12 meses no internamento (26% fora, 10% dentro) e 34% consumiram substâncias ilícitas (25% fora e 22% dentro). Nos últimos 30 dias, 23% tomaram bebidas alcoólicas (7% dentro) e 19% consumiram ilícitas (13% dentro).

Neste período, estes consumos foram realizados essencialmente de forma ocasional, isto é, 1 a 3 dias no mês.

Durante o internamento, a cerveja e as espirituosas mantêm-se como as principais bebidas alcoólicas ingeridas, cingindo-se o consumo de ilícitas quase exclusivamente ao de cannabis.

É de ressaltar a importante redução dos consumos com o iní-cio do internamento, em que 2 em cada 3 jovens que consumiam bebidas alcoólicas nos 12 meses anteriores deixaram de o fazer após o início do internamento, o que sucede também a mais de metade dos jovens que consumiam substâncias ilícitas neste pe-ríodo.

Práticas de jogoNos últimos 12 meses, 83% dos jovens jogaram jogos elec-

trónicos (em computador, consolas, tablets, smartphones,..), sem dinheiro envolvido, sobretudo os jogos de estratégia em tempo real, o Grand Theft Auto e os jogos de tiro na primeira ou terceira pessoa, sendo, também estes, os seus jogos favoritos.

58% dos jovens alteraram o tipo de jogos praticados após o início do internamento (sobretudo por não terem disponíveis os jo-gos de que gostam) e 55% passaram a jogar durante menos tem-po. Nos Centros Educativos é permitida a prática deste tipo de jogo, mediante o cumprimento de objectivos pedagógicos e em horários restritos.

Nos últimos 12 meses, 33% dos jovens jogaram a dinheiro (28% em modo online, 28% em modo offline), não sendo esta prá-tica permitida no Centro Educativo. Os jogos praticados por mais jovens são os de cartas ou dados (20% online, 19% offline) e as lotarias (12% online, 12% offline). Por sua vez, os praticados com mais frequência são os de cartas ou dados e os de apostas, sendo de notar que, de uma forma geral, está em causa uma frequência de jogo igual ou inferior a uma vez por semana.

Num dia típico de jogo, os jovens usualmente jogam jogos electrónicos durante um período inferior a 1 hora no Centro Edu-cativo e cerca de 3 horas fora deste. No quadro do jogo a dinheiro, num dia típico de jogo, as quantias envolvidas são usualmente in-feriores a 10€.

20% dos jovens já tiveram problemas relacionados com o jogo, sobretudo o envolvimento em actos de violência (13%). Os problemas são mais comuns nos jogadores a dinheiro, indepen-dentemente do modo online/offline.

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28Consumos de substâncias psicoactivas e crimes que conduziram à medida de internamentoOs principais crimes pelos quais os jovens estão a cumprir

medida são o roubo, o furto e a ofensa à integridade física. 28% declaram o envolvimento em crimes respeitantes a estupefacien-tes, provavelmente reportando crimes pelos quais não estão a cumprir medida.

A idade de início do consumo de bebidas alcoólicas e do con-sumo de substâncias ilícitas evolui a par da idade de início da prá-tica dos crimes.

65% dos jovens cometeram pelo menos parte dos crimes sob o efeito de bebidas alcoólicas ou de substâncias ilícitas: 34% esti-veram por vezes sob o efeito de bebidas alcoólicas, 8% sempre e 45% estiveram por vezes sob o efeito de substâncias ilícitas, 15% sempre.

66% dos jovens declaram que cometeram os crimes para ob-tenção de dinheiro ou bens, 40% pela diversão/adrenalina e 33% por motivações ligadas ao consumo de substâncias psicoactivas (24% para comprar drogas/álcool, 19% porque estavam sob o efeito de drogas/álcool, 4% porque estavam a ressacar).

Caracterização dos jovens quanto a factores de risco para o uso/abuso de álcool e substâncias ilícitas e criminalidadeEstes jovens experienciaram um conjunto de rupturas/transi-

ções na sua vida, possivelmente mais que os jovens em geral, considerando alterações na estrutura familiar (apenas um terço vi-veu sempre com ambos os progenitores), mudanças de casa (42% mudaram 3 ou mais vezes de casa) e mudanças de escola (metade ou mais dos jovens frequentaram mais escolas do que o expectável para o seu grau de escolaridade).

Antes do internamento, os jovens frequentavam anos de es-colaridade inferiores ao previsível para a sua idade, 95% costu-mavam faltar às aulas, 86% já tinham sido suspensos ou expul-sos, 16% consideravam que a escola não tinha utilidade e 70% não gostavam da escola.

56% dos jovens mencionam o recurso a substâncias psicoati-vas como forma de lidarem com situações difíceis na sua vida.

28% identificam um ou mais familiares próximos que costu-mam ou costumavam embriagar-se, 25% que costumam ou cos-

tumavam consumir drogas e 8% com problemas relacionados com o jogo.

24% consideram que os seus familiares próximos aceitam o seu eventual consumo de cannabis e 21% que aceitam eventuais consumos nocivos de bebidas alcoólicas (embriaguez). O nível de aprovação percebida quanto a outras substâncias ilícitas é infe-rior.

Estes jovens desvalorizam mais o risco associado ao consu-mo de cannabis que os jovens em geral: metade considera que, desde que consumida poucas vezes, a cannabis não traz grandes problemas.

76% dos jovens consomem cannabis quando estão com ami-gos, sendo que 37% o fazem sempre que estão com estes. Por sua vez, 21% referem que, quando estão com amigos, frequente-mente roubam e 11% fazem-no sempre.

A sua facilidade de acesso (percebida) a substâncias ilícitas é superior à dos jovens em geral. Em particular, 71% consideram muito fácil obter cannabis num período de 24 horas.

Os jovens e o Centro EducativoPraticamente todos os jovens frequentam um Curso de Edu-

cação e Formação de Adultos no Centro Educativo. Mais de meta-de (57%) gosta da escola frequentada actualmente, enquanto apenas 30% gostavam da escola que frequentavam antes de en-trarem no Centro Educativo.

Com efeito, no quadro das funções atribuídas à escola, en-quanto 16% consideravam que a escola frequentada antes não tinha qualquer utilidade, é de 5% a percentagem de jovens que tem essa opinião relativamente à escola frequentada actualmente. Em comparação (escola frequentada antes vs escola frequentada no Centro Educativo), a escola frequentada no Centro Educativo é perspectivada por mais jovens como servindo para aprender (65%) e/ou para virem a ter um emprego de que gostem ou em que ganhem bem (70%) e por menos jovens como servindo para conviver (21%).

Mais de metade dos jovens pretende mudar o seu estilo de vida quanto a práticas criminais, consumos e práticas de jogo após o internamento: 85% perspectivam mudar o estilo de vida quanto à prática de crimes, 75% quanto ao consumo de bebidas alcoólicas, 67% quanto ao consumo de substâncias ilícitas e 66% quanto a práticas de jogo.

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29Entrevista com José Soeiro, deputado na Assembleia da República:

“O diagnóstico que nos apresentam é suficientemente expressivo para que uma resposta deste tipo seja

implementada”A proposta surgiu no seio do Bloco de Esquerda que, após consulta às equipas de rua que intervêm no Porto, a técnicos que operam na área das dependências, a inves-tigadores como Luís Fernandes e à associação de utiliza-dores CASO, constatou que a criação de uma sala de consumo assistido se justificaria na cidade do Porto. Apre-sentada a sugestão no seio da Assembleia Municipal, a maioria optou pela realização prévia de uma discussão pública que envolvesse os demais agentes e instituições com responsabilidades sobre a temática, realizada no dia 7 de Março no Teatro Tivoli. Ainda na antecâmara desta discussão, Dependências entrevistou José Soeiro, depu-tado na Assembleia da República pelo Bloco de Esquer-da, favorável à implementação de um dispositivo que con-sidera justificado face à existência de “uma experiência internacional com a qual devemos aprender, prevista na lei portuguesa e percepcionada por quem faz intervenção no terreno no Porto como seria útil, nomeadamente por-que permitiria diminuir infecções como o VIH e o VHC, prevenir overdoses, oferecer melhores condições de hi-giene e sanitárias a quem consome drogas injectáveis a céu aberto, criar uma porta de entrada dos consumidores para a rede de cuidados de saúde, sensibilizá-los e edu-ca-los para a saúde”.

A criação das salas de consumo assistido cabe às es-truturas que tutelam a droga, depois de ouvida a câmara municipal sobre a sua utilidade e conveniência. O debate público em torno deste dispositivo surge num momento em que todos os indicadores parecem apontar no senti-do contrário. Sendo assim, qual o interesse deste debate?José Soeiro (JS) – Este é um debate que não vem de agora

e várias vozes têm insistido na necessidade de implementar este tipo de dispositivo. O facto de estar previsto há 15 anos que o mesmo possa existir mas, na verdade, ainda não ter sido ainda concretizado em nenhuma cidade resulta de um entendi-mento de que estaria sob a dependência da decisão dos execu-tivos camarários. Isto significa que, ao nível autárquico, é im-portante que se sinalize o interesse e a vontade da autarquia em acolher um dispositivo deste tipo. Claro que isto vai sempre implicar que exista articulação entre o SICAD, neste caso, a instituição que tutela esta área a nível nacional e o poder muni-cipal. Mas entendemos que, tendo em conta a situação existen-te no Porto e a avaliação de experiências deste tipo a nível in-ternacional (serão 86 as salas de consumo assistido existentes em toda a Europa), era o momento de a autarquia sinalizar o

seu interesse em ter um dispositivo deste tipo na cidade. Fize-mos uma proposta na Assembleia Municipal para que fosse criado um grupo de trabalho que envolvesse vários intervenien-tes, desde os poderes municipais, as ONG, as equipas de rua, as associações de consumidores como a CASO, pessoas da área da investigação, da saúde e da Segurança Social que de-vem estar envolvidas. A proposta apontava então para a cria-ção desse grupo de trabalho, que deveria estudar o tema e apresentar uma proposta concreta sobre o modelo da sala de consumo assistido e a sua localização, incluindo a possibilida-de de ser um dispositivo móvel. Na Assembleia Municipal, o en-tendimento da maioria dos deputados foi que, antes de a As-sembleia tomar essa decisão, transformássemos a nossa pro-posta na realização de um debate público como primeiro passo, anterior à criação desse grupo de trabalho. É nesse âmbito que este debate vai acontecer.

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Não menosprezando a necessidade de se promover um debate público, por que se justificará levantar esta ques-tão num momento em que foi recentemente apresentado o relatório anual sobre consumos de substâncias e com-portamentos aditivos, que revela diminuições a todos os níveis, particularmente nos consumos injectáveis e em que os novos contágios por VIH/Sida também reduziram substancialmente?JS – Por dois motivos: por um lado, o tão propalado modelo

português prevê um conjunto de políticas de redução de riscos e minimização de danos, no seio do qual figuram as salas de consumo assistido. No nosso entendimento, o próprio modelo que se pensou e que resultou do debate público que deu ori-gem à lei, que aconteceu há 15 anos e vem sendo mantido des-de então, não fica completo sem este dispositivo, que estava previsto. A segunda ordem de razões que nos levam a avançar com esta proposta resulta do facto de termos tido um contacto regular com equipas de rua, como a APDES, com os técnicos que fazem intervenção nesta área, com investigadores como o Professor Luís Fernandes e com consumidores, através da As-sociação CASO. O diagnóstico que nos apresentaram, em rela-ção ao qual não temos nenhuma razão para duvidar, até porque assenta em números concretos, é que existem actualmente 1600 consumidores regulares de drogas injectáveis nas ruas e uma taxa de prevalência de Hepatite C na ordem dos 20% e de VIH na ordem dos 11%. Tendo Portugal feito progressos assi-naláveis nesta área, que são consensuais – e ainda bem que uma lei que até na altura gerou alguma discussão e polémica é hoje acolhida por todos os grupos parlamentares a nível do Parlamento Português, onde é relativamente consensual um balanço muito positivo do passo que Portugal deu há 15 anos e da política que tem sido posta em marcha e que teve recuos com o anterior governo porque realizou cortes em alguns des-tes programas e projectos de redução de riscos, houve até uma interrupção do programa de distribuição de seringas – o diag-nóstico que nos fazem é que existe aqui um problema que po-deria ser melhor enquadrado e que há uma intervenção a fazer no sentido de reduzir a prevalência deste tipo de infecções nes-ta população específica. Portanto, reconhecendo que tem sido feito um caminho, entendemos que este dispositivo, que está previsto na lei, permitiria diminuir este tipo de infecções e a pre-valência deste tipo de doenças e criar uma porta de entrada dos consumidores para a rede de cuidados de saúde. Não é

que as equipas não façam esse trabalho mas as próprias en-tendem que uma sala de consumo assistido poderia dar outro enquadramento a este trabalho, para além de outros aspectos como a possibilidade de fazer a prevenção de overdoses, de oferecer maior informação sobre redução de riscos, de desen-volver mais a educação para a saúde, etc. Como resultado do contacto que tivemos com estas associações, entendemos que a existência de uma sala de consumo assistido no Porto permi-tiria dar um passo mais nesta política, sabendo também que, em Lisboa, esta discussão está a ser feita, que até está mais avançada do que na cidade do Porto porque os seus órgãos municipais já deram luz verde à criação do dispositivo. E há pessoas que nos merecem também grande consideração, como o Professor Henrique de Barros, que nalgumas iniciativas e na interpelação que tem feito aos grupos parlamentares, no-meadamente ao Bloco de Esquerda, tem insistido na necessi-dade de, no Porto, se poder avançar com uma sala de consumo assistido.

Não contrariando o argumento do humanismo, da centra-lidade no cidadão e do pragmatismo inerente à criação deste dispositivo e à própria estratégia nacional que o prevê, este indicador de 1600 utilizadores a consumirem a céu aberto contraria o estudo recentemente apresentado na Assembleia da República sobre consumos em Portu-gal… Afinal, quem fala a verdade?JS – Não me arrogarei a condição de juiz sobre quem fala

verdade. Direi apenas, também pela minha formação de soció-logo, que quanto a fenómenos deste tipo nem sempre os instru-mentos de inquérito sociológicos utilizados em estudos mais extensivos são capazes de levantar com o detalhe necessário alguns destes dados. Se tivéssemos um dispositivo deste tipo, poderíamos inclusivamente fazer um levantamento mais rigoro-so do número de pessoas que ao mesmo recorreriam e, por essa via, ter também outros números. O que é facto é que as pessoas que integram as equipas de rua, com base nas pes-soas que acompanham, nos utentes que contactam, no número de seringas que distribuem, chegam a este diagnóstico sobre a cidade do Porto. Eu, José Soeiro, não fiz este estudo, conheço os números de que fala de um lado e do outro e tenho boas ra-zões para acreditar que o levantamento feito pelas equipas de rua resulta da sua experiência e da sua intervenção, sendo ri-goroso.

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Em que medida poderão esses indicadores revelados pe-las equipas de rua no Porto, que apontam um acréscimo de utilizadores de drogas injectáveis a céu aberto, colocar em causa o seu próprio trabalho, pelo menos no que con-cerne a eficácia e eficiência?JS – Desde logo, não sei por que razão diz que há um aumen-

to. O facto de fazermos este diagnóstico hoje, de 1600 identifica-dos pelas equipas de rua, não significa que a situação esteja ne-cessariamente a aumentar. Até tenho a expectativa de que esteja a diminuir o número de consumidores nestas situações mas, ain-da assim, o diagnóstico que nos apresentam é suficientemente expressivo para que uma resposta deste tipo seja implementada. E ainda que fossem menos, que estivéssemos a falar de poucas centenas, era o suficiente. Se um dispositivo deste tipo permitir re-duzir a prevalência destas infecções, constituir-se como porta de entrada na rede de cuidados de saúde e melhorar as condições de saúde pública e de segurança para os consumidores e para a po-pulação e, se além disso, ainda for uma fonte de informação sobre os riscos, etc., acho que são razões suficientes independente-mente do número para que se possa avançar.

Mas não é essa a função exacta das equipas de rua?JS – É diferente fazer distribuição de seringas e um contacto

com os utentes na rua, como é feito, de ter um local onde esses consumos podem ser feitos em condições mais seguras e onde pode haver um tipo de acompanhamento e de enquadramento di-ferente do contacto que se promove nos locais onde esses consu-mos se fazem. Obviamente, este dispositivo não resolverá todos os problemas nem substitui o trabalho de contacto no conjunto do território destas equipas mas potenciará o trabalho que está a ser feito. Diria que o balanço do trabalho dessas equipas é positivo e, certamente, se as mesmas não existissem, estaríamos perante cenários mais complicados.

Estamos a falar de consumidores com perfis distintivos, que elegem práticas muito particulares quanto aos espa-ços em que utilizam drogas e que, habitualmente, privile-giam uma certa privacidade… De que forma se adequaria o dispositivo aos hábitos destes utentes?JS – Acho que essa resposta não deve ser dada por mim nem

pelo Bloco de Esquerda. O que propusemos foi a criação de um grupo de trabalho em que representantes do poder local, a entida-de que tem responsabilidades sobre o território, representantes das entidades ligadas ao combate à toxicodependência, represen-tantes das equipas de rua e dos próprios consumidores e pessoas

que fazem investigação, na conjugação destas experiências e preocupações, encontrem o melhor modelo. Nem o modelo nem a localização estão definidos. Os consumidores, que são conhece-dores desses rituais e do conjunto de pessoas que estão nessa si-tuação, bem como os outros intervenientes no fenómeno, é que poderão encontrar o melhor modelo. Agora, existe uma experiên-cia internacional sobre as salas de consumo assistido, algumas com 30 anos, que já têm o tempo suficiente para poder fazer-se um balanço e saber-se se são uma solução boa ou má, se apre-sentaram resultados ou não. A avaliação internacional que se faz revela um efeito positivo e um papel cumprido, obviamente não como único dispositivo ou resposta. Onde se localizaria, se seria móvel, a exemplo de experiências noutros países… o me-lhor modelo, em função da realidade concreta da cidade do Porto deve ser apurado nesse grupo de trabalho a criar que, depois, deve apresentar uma proposta à autarquia e ao SICAD, a quem caberá implementá-la. Não nos cabe a nós, nesta fase, estar a apresentar um modelo fechado mas tão só alertar que existe uma experiência internacional com a qual devemos aprender, existe a previsão na lei portuguesa de que este dis-positivo pode ser utilizado e accionado e existe a percepção e o diagnóstico de quem faz a intervenção no terreno de que este dispositivo seria útil. Estas três condições fazem com que, do nosso ponto de vista, se deva criar esse grupo de trabalho, que deve fazer o quanto antes uma proposta o mais consensual possí-vel perante as realidades que se identificarem e as respostas que se entenderem como mais úteis, tendo em conta a realidade deste tipo de consumos na cidade do Porto. Isto deve ser feito também em articulação com outros tipos de redes que estão no terreno. O Porto teve uma experiência muito positiva, criada na sequência da Estratégia Nacional de Integração das Pessoas Sem-Abrigo e dos Núcleos Locais de Integração das Pessoas Sem-Abrigo, os NPI-SA. Este tipo de rede também deve ser envolvido, até porque sa-bemos que existe uma percentagem próxima dos 10% deste uni-verso que são sem-abrigo e que, no seio destes, uma percenta-gem é toxicodependente. Como qualquer problema, este é multi-dimensional e existe aqui uma intervenção que deve ser pensada tendo em conta toda essa informação que origine a solução que melhor sirva a cidade do Porto.

Um dos princípios das Equipas de Rua é criar condições que permitam motivar os toxicodependentes para trata-mento. Infelizmente isso não acontece e o que é mais gra-ve, é que muitas destas pessoas estão infectadas com a Hepatite C. Porquê ?JS – Imagino que, muitas vezes, a própria situação e o quo-

tidiano de uma parte destes consumidores os afasta dos servi-ços de saúde. Isso significa que têm que haver portas de entra-da nesses serviços de saúde. Numa das conversas que tive-mos com um médico de infecciologista, especialista nesta área, percebemos que uma das razões que avança para a defesa deste tipo de dispositivos resulta do facto de os mesmos pode-rem ser uma porta de entrada desta população na rede de ser-viços de saúde. Muitas vezes, estas populações só chegam aos serviços de saúde no fim de linha e, se este dispositivo pu-der ser uma porta de entrada para as pessoas infectadas com VHC entrarem em contacto com os serviços de saúde e serem tratadas, isso já seria uma razão importante para se avançar com uma solução deste tipo.

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32XI Feira da Saúde de Baguim do Monte:

Junta de Freguesia de Baguim do Monte aposta na diferença

A Junta de Freguesia de Baguim do Monte organizou, no dia 18 de Março, o seminário Integração Profissional da Pessoa com Deficiência. O evento, que contou com a presença da Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiên-cia, Ana Sofia Antunes, foi uma das várias actividades da XI Feira da Saúde de Baguim do Monte. Durante o evento, a Secretária de Estado foi “madrinha” da contratação de mais uma pessoa com deficiência para a Junta de Freguesia de Baguim do Monte. Diariamente, colaboram já nesta autar-quia 11 pessoas com deficiência, reconhecidas pelos eleva-dos graus de produtividade e competência demonstrados. Três dessas pessoas já estão contratadas, com vínculo está-vel e duradouro, sendo que no passado dia 18 foi dado o pri-meiro passo para a contratação da quarta pessoa com defi-ciência e com vínculo idêntico.Dependências marcou presença no evento promovido por uma freguesia que aposta efectivamente na diferença para provar que somos todos iguais e entrevistou Ana So-fia Antunes e o Presidente da Junta de Freguesia de Ba-guim do Monte, Nuno Coelho.

Ana Sofia Antunes, Secretária de Estado da Inclusão para as Pessoas com Deficiência

Em que medida fará sentido a existência de uma secreta-ria de estado para a inclusão numa sociedade democráti-ca e num estado de direito?Ana Sofia Antunes (AA) – Se faz ou não sentido, é o nosso tra-

balho que o irá demonstrar... Creio que faz. Aliás, se achasse o contrário não teria aceitado esta posição. Sempre entendi que as questões da deficiência e da sua inclusão em geral no nosso país necessitam ainda de um tratamento profundo que, neste momen-to, justifica que sejam destacadas do contexto global da Seguran-ça Social. A Segurança Social é um mundo que tem várias realida-

des a cuidar e, por razões naturais e até muitas vezes sem inten-ção, acaba por secundarizar ou terciarizar estas questões quando as mesmas são fundamentais e precisam de muito acompanha-mento. Portanto, sim, para mim faz sentido mas acho que só vou conseguir dar uma resposta absolutamente convicta a isso quan-do conseguir olhar para trás e afirmar que valeu a pena estar cá.

A promoção da inclusão constitui, sem sombra de dúvida um grande desafio, até pelas barreiras ainda existentes… Teme algum dia ter que desistir desse desígnio?AA – Confesso que não sou criatura para desistir. Nunca! Jamais!

Quando se fala em valorizar estas pessoas, haverá que fazê-lo pela deficiência ou pela qualidade inerente à dife-rença?AA – Antes de mais, valorizá-las por serem pessoas. Com ca-

racterísticas próprias, com qualidades, com defeitos… mas pes-soas. E, acima de tudo, com funcionalidade. Ao contrário do que muitas vezes ainda se pensa, ser deficiente não significa ser inca-paz. Está demonstrado em múltiplos contextos, até cientificamen-te por diversos estudos, que apostar e dar uma oportunidade a uma pessoa com deficiência, ainda que com limitações físicas, sensoriais ou mesmo intelectuais corresponde a encontrar um co-laborador incansável, com um nível de entusiasmo e de optimismo inigualável porque a oportunidade que lhe está a ser dada é muito mais valorizada do que no contexto geral.

As freguesias são, por definição, um lugar da democracia. Neste caso, estamos perante um lugar de inclusão… Por que não serão assim todas as autarquias do país?AA – Isso terá que perguntar aos senhores presidentes das

juntas do resto do país. Por mim, farei a minha parte, que consiste em tentar sensibilizá-los e chateá-los ao máximo para que sejam diferentes. As juntas e câmaras têm oportunidades, com medidas de apoio ao emprego, de serem de facto diferentes e de darem outro exemplo e acho que é possível conseguirmos.

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33Nuno Coelho, Presidente da Junta de Freguesia de Baguim do Monte

Que balanço faz desta Feira da Saúde?Nuno Coelho (NC) – O balanço da XI Feira da Saúde é franca-

mente positivo. Foi um conjunto de iniciativas que se estendeu por sete dias, que começou com uma caminhada solidária cuja verba rendeu a favor da Liga Portuguesa Contra o Cancro, tivemos vá-rias formações no âmbito das pessoas idosas, dos mais jovens, dos adolescentes e das crianças e, agora, temos este seminário dedicado às pessoas com deficiência, nomeadamente à sua inte-gração profissional no tecido empresarial. E é com especial prazer que encerramos esta edição com a contratação de mais uma pes-soa com deficiência para a Junta de Freguesia de Baguim do Monte, com a Secretária de Estado para a Inclusão de Pessoas com Deficiência a “amadrinhar” essa contratação. Isto tem para nós um significado muito especial porque a pessoa que vamos contratar já cá colabora há quatro anos, tem saltado de programa em programa e, finalmente, através de uma nova janela aberta pelo actual Governo e pelo IEFP, conseguimos contratar esta pes-soa com um vínculo duradouro, o que permitirá à Ana Filipa ter es-tabilidade na sua vida, pensar no seu futuro, na sua família e pro-gramar de outra forma a sua vida.

São 11 mais 4… Qual a diferença entre os 11 e os 4?NC – Temos 11 pessoas com deficiência a trabalhar aqui todos

os dias, que demonstram que não é preciso não ter deficiência para ser-se competente ou eficiente. Todos esses 11 têm, à sua maneira, a sua competência e eficiência. O que é preciso é conseguirmos ren-tabilizar ao máximo aquilo que as pessoas têm para dar e que podem dar e coloca-los nos sectores que sejam vitais para eles poderem ser competentes e eficientes. Além dessas pessoas com deficiência, também temos pessoas diferentes, nomeadamente um cidadão de etnia cigana e um africano… Apostamos na diferença para mostrar-mos que somos todos iguais e somos tão ou mais eficientes do que todas as outras juntas de freguesia.

De onde vem esta paixão pelas pessoas, nomeadamente por aquelas que necessitam de ser tratadas como iguais?NC – Tudo se resume exactamente a isso: a paixão pelas pes-

soas. Para mim, são todas iguais e desde que iniciei funções que tenho uma particular apetência para olhar para as pessoas com deficiência e dar-lhes oportunidades. Eu próprio passei por uma fase traumática resultante de um acidente de viação em que perdi

a mobilidade e, portanto, sei exactamente o que é ter mobilidade reduzida e também sei o que a pessoa é capaz de fazer e o que a incapacidade física limita… Por outro lado, apesar de muito pou-cos apostarem em pessoas com deficiência mental, também sei que existe muita gente com essa limitação capaz de fazer coisas extraordinárias. Portanto, a minha paixão é exactamente ajudar as pessoas, colaborar e ajudar a torná-las iguais. Ao longo destes tempos em que sou autarca, conseguimos em Baguim do Monte provar à sociedade que somos todos iguais.

É também pelas pessoas que tem três projectos que espe-ra ver concretizados há algum tempo… Comecemos pelo centro de saúde…NC – O centro de saúde tem tudo pronto para avançar, desde o

projecto aprovado… Só faltava aprovar uma portaria com alguns tra-balhos extra e, actualmente, apenas carece dessa publicação. O se-nhor ministro da saúde e a ARS sabem como está o processo e es-pero que até ao final do Verão surja o mote para se iniciarem as obras. Confio plenamente que este será o Governo que concretizará essa nossa pretensão de há vários anos. Outro projecto tem a ver com um calendário solidário. Pretendemos demonstrar através de fo-tografias que todos somos iguais. Através deste calendário para a in-clusão, queremos mostrar que não existem diferenças resultantes de raças ou limitações físicas ou mentais. O terceiro projecto, que gosta-ria de ver concretizado em Baguim do Monte e replicado nas demais autarquias, é uma plataforma de inclusão. A autarquia fará a gestão de tudo isto, através de um técnico avalizado e formado na área e com competências para a inclusão de pessoas com deficiência. Este eixo, a autarquia, terá quatro braços, um ligado directamente ao IEFP e ao Centro de Emprego, outro ligado ao tecido empresarial e comer-cial local e outro ligado às IPSS que lidam com a deficiência. As IPSS colocam na autarquia as pessoas com deficiência para formação em contexto de trabalho, ao longo de quatro meses a um ano.. Ao longo desse período, na autarquia local, a pessoa vai adquirindo conheci-mentos e hábitos de trabalho que possibilitará, através dessa forma-ção activa, que a plataforma possa pegar nessa pessoa e, em con-tacto com empresas, a possa referenciar para determinadas habilita-ções e competências. E estas empresas, através do IEFP, poderão ter algum tipo de benefícios se integrarem essas pessoas. Esta plata-forma poderá ser geradora da inclusão de milhares de pessoas com deficiência em Portugal. Se todas as autarquias locais conseguirem colocar pelo menos uma pessoa, estaremos a falar de milhares de pessoas inseridas profissionalmente. Não só daremos emprego a jo-vens técnicos que precisam mas também a milhares de pessoas com deficiência. Estamos a falar de um instrumento que poderá custar 10 mil euros por ano à autarquia, correspondentes ao ordenado do téc-nico, que poderá colocar dez a 15 pessoas no tecido empresarial.

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34Conferências de Matosinhos:

Matosinhos promove reflecção sobre violência familiar

A Câmara Municipal de Matosinhos organizou, nos dias 17 e 18 de Março, a conferência Olhares sobre a Violência no Contexto Familiar. O evento serviu para reunir o estado da arte actual nesta matéria, a partir do conhecimento na-cional e internacional, promovendo uma crítica reflexiva relativamente às práticas levadas a cabo no terreno. Para debater esta realidade e desenhar respostas mais ade-quadas no combate a esta epidemia social, a Câmara de Matosinhos, o Jornal de Notícias e o Fórum Europeu de Segurança Urbana (EFUS) juntaram alguns dos maiores especialistas nacionais e internacionais, na primeira ini-ciativa de uma nova série das Conferências de Matosi-nhos.A conferência Olhares sobre a Violência em Contexto Fa-miliar aposta em tornar disponível o conhecimento actual-mente existente sobre esta problemática, partilhando al-gumas das experiências e intervenções que têm sido co-locadas no terreno com algum sucesso. Pretende-se, des-te modo, criar orientações para a aplicação de políticas e modelos de intervenção local articulados e mais adequa-dos.As jornadas abordaram temas como a violência nas rela-ções familiares e na intimidade, a protecção das vítimas, a prevenção da reincidência, a coordenação das forças po-liciais e a criminalização da agressão, sendo encerradas pela secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Catarina Marcelino, e pelo presidente do Fórum Europeu de Segurança Urbana, Guilherme Pinto.O Município de Matosinhos tem vindo a promover, há mais de 10 anos, estratégias de prevenção da violência e de protecção de vítimas com recurso a agentes de locais. Ainda assim, é reconhecida a necessidade urgente de re-pensar este modo de actuação, tendo em vista uma políti-ca de rede que integre simultânea e articuladamente pro-gramas de controlo e intervenção com pessoas agresso-ras, projectos de capacitação das vítimas e intervenção com famílias em risco, bem como projectos mais eficazes de educação social para a não-violência.Com estas jornadas pretende-se conjugar o conhecimen-to nacional e internacionalmente disperso, promovendo-se a crítica reflexiva relativamente às práticas actualmente no terreno e às suas potencialidades e limitações.Dependências aderiu ao desafio e esteve presente nesta conferência, entrevistando Catarina Marcelino, Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, o Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos, Guilherme Pinto e Ma-nuel Albano, da CIG.

Catarina Marcelino, Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade

Haverá hoje mais violência ou será esta apenas mais co-nhecida actualmente?Catarina Marcelino (CM) – Não existe hoje mais violência. Jul-

go que a mesma é mais conhecida, o que é positivo porque signi-fica que saiu da esfera privada para a esfera pública. As pessoas estão mais disponíveis, quer para ouvir as que são vítimas, quer as vítimas para exporem o seu problema porque sentem que há resposta por parte da sociedade. Antes, o que acontecia, para além da vergonha e do tabu, é que ninguém queria ouvir que o problema existia e as pessoas também não sentiam que, do lado de lá, as queriam ajudar. Entendo que as coisas melhoraram mui-to, fundamentalmente nos últimos 15 anos.

Habitualmente, é a vítima a condenada a abandonar o seu lar e família… Por que são os processos conduzidos des-ta forma?CM – De facto, o sistema tem sido muito perverso, retirando as

vítimas da sua casa por se tratar da forma mais célere de as proteger. Para as vítimas poderem ficar em casa quando apresentam uma queixa é necessária uma articulação entre as organizações que até hoje ainda não conseguimos alcançar, fundamentalmente entre o Mi-nistério Público e das forças de segurança. Mas estou convicta de que, muito em breve, teremos uma boa articulação e o paradigma irá mudar porque temos estado a trabalhar nisso. O Ministério da Justiça está muito empenhado, as forças de segurança e a Administração In-terna também, a própria Procuradora-Geral da República tem dado sinais, havendo DIAP do país, como o do Porto, que têm experiên-cias muito positivas nesta articulação. Em suma, estou convencida de que, com uma melhor articulação institucional, conseguiremos em breve virar esse paradigma e as casas de abrigo passarão a ser a úl-tima resposta e não a primeira.

E como se previne este problema?CM – Só há uma forma de trabalhar as questões da pre-

venção: trabalhar nas escolas, ter uma estratégia, um pro-

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35grama, um projecto nas escolas públicas que cheguem a to-das as crianças e jovens desde o primeiro ciclo, para que possamos trabalhar com as crianças de forma continuada em matérias como direitos humanos, igualdade, competên-cias sociais e pessoais que lhes permita crescer com uma formação de direitos humanos, de igualdade, cidadã. Por isso, também estamos a trabalhar arduamente numa estraté-gia nacional de educação para a cidadania nas escolas pú-blicas.

Em que medida poderá também a solução passar pela for-mação das autarquias e da sociedade civil?CM – Costumo dizer que temos que ter uma comunidade

activa. Para o efeito, precisamos de conhecimento e de infor-mação na comunidade, o que passa muito pelos municípios, pelas redes sociais e pelos conselhos locais de acção social, áreas por excelência para melhorar informação e a articulação entre as pessoas que estão no terreno, como as ONG ou as próprias entidades públicas. De facto, as autarquias têm um pa-pel chave na articulação, através de um trabalho de proximida-de com todas estas entidades que existem no seu território e também com os planos municipais para a igualdade. É preciso que as autarquias tenham uma estratégia, que se faz através de planos municipais para a igualdade.

Guilherme Pinto, Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos

Que balanço faz da realização destas Conferências de Ma-tosinhos?Guilherme Pinto (GP) – Acho que foram dois dias fantás-

ticos… Tivemos muita gente a debater um tema extrema-mente actual, a violência no contexto familiar e creio que saí-ram daqui pistas e determinação para continuarmos este combate.

Na abertura, falou no “crime da violência”, ao passo que, no encerramento, versou sobre o problema da “desigual-dade de género”…GP – São duas coisas ligadas porque, quando se fala em

violência no contexto familiar, a principal continuará a ser por-ventura a violência relativa à igualdade de género ou a violên-cia sobre as mulheres. É algo que temos que combater para que a criminalidade recue e continue a recuar cada vez mais.

O apelo que fez aos técnicos, apresentando ferramentas resultou?

GP – Creio que sim… Agora, o trabalho do Fórum vai prosse-guir, no sentido da criação de um grupo de cidades que continue este trabalho iniciado aqui, hoje, na conferência.

Serão os valores familiares a grande causa destas confe-rências?GP – A grande causa destas conferências é o valor dos direi-

tos humanos.

Manuel Albano, CIG

O que estará particularmente em causa quando se fala so-bre violência em contexto familiar? Serão os valores da família ou a crise que esta atravessa?Manuel Albano (MA) – Diria que são os nossos valores. A fa-

mília é composta por todos e por todas nós e, quando não valori-zamos a família, seja qual for a sua forma de organização e olha-mos para a mesma como um espaço de violência, é isso que está em causa. Tem a ver com a construção da cidadania. Construir ci-dadania significa olhar sobre estas visões, sobre estas questões, sobre a família. Temos que perceber como a desconstruímos para a voltarmos a construir sem violência.

Haverá hoje mais violência ou será a mesma apenas mais visível?MA – Acredito que é mais visível, também pelas respostas

que o sistema deu a esta problemática. Pelas respostas de apoio, de atendimento, pela capacidade que as vítimas têm hoje de poderem recorrer a alguém e obterem uma resposta. Isto torna o problema mais visível. E também pelo conhecimen-to… Esta conferência vem provocar conhecimento e dinamizá-lo para além de quem trabalha directamente estas questões. E conhecer é fundamental para intervir. Também vocês, jornalis-tas, quando publicam um artigo sobre esta matéria, estão a de-socultar o fenómeno, tornando-o mais conhecido. As pessoas que vivenciam este problema sentem que não estão isoladas, que existem mais pessoas que o vivenciam e adquirem uma maior capacidade de denúncia. Também por isso, o aumento em termos numéricos. Em termos de realidade, não acredito que esteja a acontecer. Haverá, isso sim, uma maior visibilida-de do fenómeno.

Que peso terá uma boa informação relativamente a estas questões?MA – É fundamental! É o que pode fazer a diferença entre al-

guém se manter ou sair do ciclo da violência. Informar correcta-mente vai determinar que aquela pessoa, que é vítima saia ou se mantenha no ciclo.

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36Revela estudo promovido pela Associação Existências:

Maioria dos jovens desconhece alterações à lei do álcool e

continua a venda ilegalA Associação Existências e o IREFREA Portugal organiza-

ram a reunião de Inverno da secção do Álcool do Internatio-

nal Council on Alcohol and Addictions (ICAA), evento que

decorreu em Coimbra, nos dias 7 e 8 de Março. O ICAA é

uma das mais antigas ONG a actuar no campo das depen-

dências, dedicando-se ao trabalho nas áreas da prevenção,

redução de riscos, epidemiologia e políticas, agregando vá-

rios países de diferentes continentes. Esta organização pro-

move ainda o trabalho através de diferentes secções, uma

das quais é a secção do álcool. Esta reunião, que ocorre

com uma frequência anual, tem como objectivo a promoção

do intercâmbio de experiências, bem como determinar e pla-

nificar as prioridades e os temas de interesse para o futuro.Um dos dias do encontro foi reservado para que o país anfi-

trião convidasse indivíduos nacionais para partilharem com

os restantes investigações, dados, experiências e projectos,

entre outros, que estejam inseridos dentro da problemática

do álcool. Dependências foi convidada a realizar uma ses-

são, bem como a IPSS de Coimbra, Existências, que divul-

gou os resultados de um estudo que elegeu como intenção

analisar o conhecimento e a percepção dos jovens sobre a

nova legislação.

No dia 1 de Julho do ano anterior entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 106/2015 de 16 de junho que introduziu um novo regime jurídico de disponibilização, comércio e consumo de bebidas al-coólicas em locais públicos e em locais abertos ao público proibin-do a venda de qualquer bebida alcoólica, independentemente da sua composição, a menores de idade, pessoas com anomalia psí-quica ou indivíduos aparentemente embriagados. As alterações vi-sam sobretudo promover a implementação de melhores medidas de proteção dos menores no que toca ao acesso a bebidas alcoó-licas.

Desta forma, no segundo semestre do ano 2015 a Associação Existências, IPSS sedeada em Coimbra que, para além de outras atividades, é promotora de intervenções em Contexto Recreativos Noturnos no âmbito da Redução de Danos associados ao consu-mo de substâncias psicoativas, desenvolveu um estudo que tem como intenção analisar o conhecimento e a perceção dos jovens sobre a nova legislação. Com este estudo procurou-se obter mais informações sobre o potencial impacto da nova legislação na rea-lidade da cidade de Coimbra, no que ao consumo de bebidas al-coólicas diz respeito. Assim sendo, para além de outras vantagens pretende-se que este estudo adeque intervenções futuras da Exis-tências.

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O estudo foi desenvolvido através de uma entrevista se-miestruturada, com recurso a um questionário previamente ela-borado. Com esta entrevista pretendia-se aferir as seguintes di-mensões: 1.compreender o padrão do inquirido face ao consu-mo de bebidas alcoólicas; 2. verificar se os inquiridos conside-ram ter conhecimento das alterações legislativas, e qual o grau de compreensão da mesma; 3. analisar a opinião dos inquiridos face às alterações verificadas a nível legislativo, à sua aplicabi-lidade e potencial eficácia da Lei; 4. avaliar-se a perceção dos inquiridos relativamente ao cumprimento da legislação, nomea-damente no que se refere à compra em estabelecimentos co-merciais e ao consumo de bebidas alcoólicas por menores.

No âmbito do presente estudo foram inquiridas 141 pes-soas, selecionadas através do método de amostragem por con-veniência, com idades maioritariamente compreendida entre os 19 e os 28 anos. As entrevistas foram essencialmente realiza-das em estabelecimentos recreativos.

Do total de inquiridos a maioria são estudantes, essencial-mente do ensino superior. Mais de 90% dos inquiridos declarou ser consumidor habitual de bebidas alcoólicas e que o faz com regularidade em bares, cafés e discotecas.

Quando questionados sobre a nova lei do álcool, 55% afir-mam ter conhecimento da mesma enquanto os restantes 45% revelam desconhecimento. As respostas mais frequentes, reve-ladoras do conhecimento da legislação foram: “proibição do consumo de álcool por menores”, “proibição de venda de álcool a menores”. Destaca-se ainda a existência de respostas incor-retas sobre a nova lei de álcool, sendo as mais comuns são “Proibir venda do álcool a menores de 16 anos” ou “É proibida a venda de bebidas espirituosas a menores de 18 e bebidas des-tiladas a menores de 16”.

Relativamente à aceitação da nova legislação, verifica-se que a grande maioria dos inquiridos declara estar de acordo com as alterações legislativas. Deste modo, 82% dos indiví-duos inquiridos indicam concordar com as alterações, 18% res-pondem negativamente.

Quando questionados acerca da eficácia das medidas intro-duzidas na legislação, verifica-se que a maioria dos inquiridos, 60% da amostra, dúvida da sua eficácia, enquanto 40% consi-dera que as medidas podem ser eficazes. Analisando as justifi-cações dadas, verifica-se que os que respondem afirmativa-mente destacam a existência de uma maior sensibilização e controlo dos jovens e dos estabelecimentos. Por outro lado os que não valorizam a eficácia da medida indicam que continuam a existir formas de obtenção de bebidas alcoólicas da parte dos jovens, ou através de indivíduos mais velhos que adquirem as bebidas ou porque consideram que a capacidade de fiscaliza-ção e controlo dos estabelecimentos comerciais será reduzida.

No seguimento da questão anterior, pretendeu-se avaliar a perceção dos inquiridos relativamente ao cumprimento da le-gislação, nomeadamente no que se refere à aquisição e consu-

mo de bebidas alcoólicas por menores de 18 anos. Neste senti-do, os inquiridos foram questionados acerca de tipo de estabe-lecimentos nos quais é mais provável que menores de 18 anos consigam comprar bebidas alcoólicas. Os bares e as discote-cas foram o tipo de estabelecimentos nos quais os inquiridos consideram que o acesso a bebidas é mais fácil, seguido pelos supermercados e cafés.

Os inquiridos foram questionados se conseguiam identificar alguma situação que tivessem assistido um menor de 18 anos a comprar uma bebida alcoólica, tendo apenas 31% dos inquiri-dos respondido afirmativamente. Dos restantes, 63% referiram não ter presenciado nenhuma situação e 6% optaram por não responder.

Relativamente ao tipo de bebida adquirida a grande maioria indicam que o menor comprou cerveja, seguido de bebidas es-pirituosas e de vinho. Esta aquisição foi observada maioritaria-mente em bares, seguido por discotecas, cafés, supermerca-dos e restaurantes. É importante sublinhar que vários inquiridos presenciaram mais do que um caso de um menor comprar a be-bida alcoólica.

Em forma de conclusão pode-se afirmar que existe, ainda, uma percentagem muito significativa de jovens que indica des-conhecer as alterações que a nova legislação introduziu na re-gulamentação da venda e consumo de bebidas alcoólicas, sen-do, portanto, necessário promover ações de informação e de sensibilização que alterem esta realidade.

Da mesma forma, verificam-se que, tomando como verda-deiras as afirmações dos entrevistados, existem situações de venda de bebidas alcoólicas a jovens menores de idade. Esta situação pressupõe, por um lado, o aumento de ações de vigi-lância por parte das autoridades, mas pressupõe, também, que se realize algum tipo de intervenção junto dos jovens e das suas famílias, no sentido de os consciencializar para os efeitos negativos do consumo de bebidas alcoólicas numa idade infe-rior aos 18 anos.

Mais de 90% dos inquiridos declarou

ser consumidor habitual de bebidas

alcoólicas e que o faz com regularidade

em bares, cafés e discotecas.

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XLIII Jornadas Nacionales de Socidrogacohol

Un año más la sociedad científica Socidrogalcohol ha reunido en sus Jornadas Nacionales a profesionales de las adicciones de todo el territorio español. Más de 500 expertos se reunieron la pa-sada semana en Alicante para tratar temas muy diversos en rela-ción con las adicciones.

Una de las apuestas de la sociedad se orienta en la actualidad hacia el apoyo del trabajo conjunto con las ONGs. El último infor-me de la Encuesta EDADES difunde que la prevalencia del consu-mo de drogas aumenta ligeramente en relación al alcohol y el ta-baco (aunque desde Socidrogalcohol preocupa seriamente que el 78,2% de las chicas y el 75,3% de los chicos menores de edad sean consumidores de bebidas alcohólicas); también destaca que 1 de cada 10 personas ha probado la cocaína al menos una vez en la vida; y en general, respecto a la encuesta EDADES de 2011, los valores globales de consumo de diversas sustancias alguna vez en la vida han incrementado respecto a 2011.

Por ello la intervención en adicciones continúa siendo indis-pensable, y dentro de esta, el papel del Trabajo Social es una dis-ciplina privilegiada para desarrollar dicha intervención en el marco de las entidades del tercer sector (ONG).

Las adicciones son un problema de salud bio-psico-social, o como explicaba Felisa Pérez, en representación de la Unión de Asociaciones y Entidades de Atención al Drogodependiente, UNAD, en la mesa redonda celebrada en un espacio prejorna-das: “Es posible que las adicciones sean más un problema socio-psico-bio”.

El papel de los Grupos de Ayuda Mutua (GAM) , que se desar-rollan en los recursos del tercer sector, es un complemento que contribuye en la adherencia al tratamiento. Los GAM son una mo-delo de salud, con especial relevancia del modelo de “iguales”, for-mado por personas que sufren la misma patología o conflicto. En España se están empezando a valorar resultados. En 2013 se pu-blicó un estudio basado en la integración de los GAM para familia-

res en un programa público de tratamiento del alcoholismo, con-cluía que las intervenciones con familiares dependientes del al-cohol demuestran mayor eficacia en el pronóstico de la dependen-cia alcohólica, la cual mejora cuando estos familiares acuden a los GAM, obteniendo en los propios pacientes menos abandonos y menos días de consumo durante el tiempo de tratamiento.

BANALIZACIÓN DEL CANNABISEl consumo de cannabis preocupa de forma especial a los

profesionales de las adicciones. El cannabis es la droga ilegal consumida por un mayor porcentaje de jóvenes. Según la recién publicada encuesta ESTUDES (elaborada por el Plan Nacional sobre Drogas entre la población en edad escolar) 3 de cada 10 menores ha probado cannabis alguna vez en su vida y 1 de cada 4 lo ha consumido en el último año. En este grupo de población, el 65,6% ha consumido principalmente marihuana; un 9% es consu-midor de hachís, un 25,4% consume los dos tipos; y un 86,5% mezclan cannabis con tabaco. El consumo de porros consumidos al día es de 3,2.

Desde sociedad científica se advierte que la banalización del consumo de marihuana es un riesgo para la salud corporal y men-tal. Julio Bobes, expresidente de Socidrogalcohol e investigador principal de CIBERSAM Oviedo, explicó que cuando una persona consumidora de marihuana intenta dejar de consumirla pueden aparecer síntomas de abstinencia, del tipo irritabilidad, mal humor, insomnio, disminución del apetito, ansiedad y deseo intenso de fu-mar nuevamente; que suelen persistir durante varios días y que pueden conducir a un nuevo consumo, intensificando de este modo la conducta adictiva de fumar marihuana. El 10 por ciento de las personas que han fumado marihuana desarrollan un consumo excesivo o incluso una adicción, asociados a consecuencias ne-gativas.

Desde la sociedad se advierte que el cannabis no es una sus-tancia innocua y sí tiene consecuencias graves para la salud. La

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mayor o menor accesibilidad a la sustancia es determinante para aumentar o disminuir su consumo.

BANALIZACIÓN DEL ALCOHOLLa sociedad científica ha mostrado su preocupación por el

consumo de alcohol en menores, caracterizada por una muy baja percepción de riesgo. Francisco de Asís Babín, delegado para el Plan Nacional sobre Drogas en funciones, expuso que si bien el consumo intensivo de alcohol ha descendido en esta última en-cuesta, las prevalencias continúan en niveles muy elevados: “Casi 8 de cada 10 estudiantes reconoce haber bebido alguna vez. Por ello es necesario promover un amplio debate social, con la partici-pación de todos los actores concernidos, que desemboque en una mayor concienciación sobre este problema”.

El alcoholismo es una enfermedad adictiva grave que afecta al cerebro. Las evidencias neurobiológicas sugieren que cualquier persona puede desarrollar una adicción, si se encuentra sometida a factores ambientales (como el estrés intenso y prolongado) o bien farmacológicos (como la administración de agonistas de los receptores dopaminérgicos), ya que tanto unos como otros pue-den incrementar la vulnerabilidad hacia la adicción. Josep Guar-dia, vicepresidente de Socidrogalcohol, afirmó que “muchas per-sonas creen que el consumo moderado de estas sustancias adic-tivas no resulta peligroso y que, por tanto, un consumo “responsa-ble” es siempre seguro. Esta creencia errónea probablemente está basada en la idea de que las personas somos capaces de controlar el funcionamiento de nuestro cerebro, cuando en reali-dad no siempre es así”.

Lamentan que aún hay un bajo porcentaje de personas que acuden a tratamiento. La mayoría de enfermos adictos no siguen un tratamiento especializado. Por este motivo, Francisco Pas-cual, presidente de Socidrogalcohol, destacó la necesidad de acu-dir a los recursos especializados y que sea desde atención prima-ria desde donde se detecte la problemática y se haga la deriva-ción: “Todos tenemos que trabajar cohesionados, los recursos de atención primaria, los recursos especializados y las ONGs que aportan el apoyo social tan necesario.”

Relacionado con esta temática se presentó en estas jornadas el libro ‘Consumo intensivo de alcohol en jóvenes’ coordinado por la vi-cedecana de la Facultad de Psicologia de la Universidad de Valencia y miembro de la junta directiva de la sociedad, Maite Cortés.

PAPEL DE LOS MEDIOSEntre otras cuestiones, la apuesta de Socidrogalcohol está

siendo el establecimiento de buenas relaciones con los perio-distas de los medios de comunicación. El objetivo es mejorar la relación entre profesionales de la comunicación y de las adic-ciones para informar de forma rigurosa sobre un tema comple-jo. Para ello, hubo varias mesas dedicadas al intercambio de visiones entre ambos. Por la parte de los periodistas, Rafa Tor-res, vicepresidente de la Asociación de la Prensa de Alicante,

explicó que muchas veces en la información entra en juego el balance de la empresa periodística, ya no solo la ética del pro-pio profesional. Xavier Ferrer, que lleva poco al frente de la plataforma lasdrogas.info, recalcó la necesidad de coopera-ción por la existencia de una responsabilidad social comparti-da. También se habló de la credibilidad de las fuentes y de la valoración subjetiva de la población con respecto a las dro-gas. Se hizo referencia a la encuesta del CIS, que sitúa el pro-blema de las drogas en un lugar muy alejado de las primeras preocupaciones de los españoles, una información algo sesga-da porque los entrevistados deben elegir sus tres preocupacio-nes actuales, según explicó Ferrer.

Para que se den informaciones correctas, primero debe existir una buena formación, sobretodo partiendo de las univer-sidades. La segunda de las mesas sobre periodismo contó con Otger Amatller, quien habló de la necesidad de un aprendizaje conjunto para la elaboración de buenas informaciones. Tam-bién intervinieron en la mesa Aitor Ugarte, Fundador de Comu-nideas y socio de la Asociación Nacional de Informadores de Salud y Mireia Pascual, periodista de este medio.

AVANCES EN INVESTIGACIÓNComo cada año Ivan Montoya, director médico del Nationa

Institute on Drugf Abuse de EEUU, explicó los principales avan-ces a nivel de investigación que han desarrollado o se están de-sarrollando desde el instituto. Este año destacan:

• La aprobación del NARCAN por la FDA (la FAD es la agencia del gobierno de los Estados Unidos responsable de la regu-lación de medicamentos, alimentos, etc.) de la naloxona na-sal en esprai que se absorbe por la mucosa

• Un implante de buprenorfina que está a la espera de acepta-ción por FDA

• Investigación ABCD (Adolescent Brain Cognitive Develop-ment). 10.000 adolescente de 9 años que se van a seguir du-rante 10 años con el proposito evaluar los cambios cere-brales en jóvenes que consumen y no consumen. Se trata de la primera vez que se hace un estudio de esta envergadu-ra y longitudinal que aportará, según Montoya, una gran ri-queza de datos.

Apoyo en la investigación de las terapias de conductasLa ola de banalización y la poca percepción de riesgo han he-

cho que muchos estados hayan legalizado el uso de la marihuana. En EEUU el consumo de marihuana se ha incrementado con res-pecto al tabaco. En muchos casos ha sido causado por los medios de comunicación que han divulgado informaciones sobre los efec-tos terapéuticos sin que tenga base científica, según explicó Mon-toya. Desde el NIDA no hay evidencia de que el cannabis tenga efectos terapéuticos porque no se ha podido probar en humanos. El NIDA quiere conocer bien los efectos terapéuticos y los negati-vos y su investigación se dirige a este fin.

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