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“EXCESSOS DE PATRIOTISMO”: O TERROR DE ESTADO E OS GRUPOS DE ONZE COMPANHEIROS NO RIO GRANDE DO SUL Marli de Almeida Doutoranda pela Universidade de Passo Fundo [email protected] Resumo: O golpe civil-militar de 31 de março de 1964 instaurou no Brasil um regime de Segurança Nacional, que desde seus primeiros dias utilizou-se da violência estatal como forma de dominação política. Iniciou-se então a Operação Limpeza e os que lutavam pelas reformas de base tornaram-se, da noite para o dia, inimigos do regime que se instaurou naquele momento. Enquadrados na Lei de Segurança Nacional, políticos principalmente do PTB, professores, líderes sindicais, estudantes e trabalhadores de diversas categorias foram perseguidos, cassados e até mesmo presos e torturados. Foi o que ocorreu com os seguidores de Leonel Brizola e integrantes dos Grupos de Onze Companheiros, alvos dessa ação saneadora estatal, já como preliminar do terrorismo de Estado (TDE), sistema utilizado pela ditadura militar para eliminar toda e qualquer oposição ao regime. Palavras-chave: Grupos de Onze, Operação Limpeza, terrorismo de Estado. Os Grupos de Onze Companheiros ou Comandos Nacionalistas foram formados a partir de outubro de 1963, através de chamamentos radiofônicos pelas ondas da Mayrink Veiga, rádio da Guanabara, estado pelo qual o idealizador dos grupos, Leonel Brizola, exercia mandato como deputado federal. Os apelos de Brizola foram prontamente atendidos e formaram-se Grupos de Onze em várias partes do país, principalmente no Rio Grande do Sul. A forte repressão desencadeada sobre os Grupos de Onze Companheiros na chamada “Operação Limpeza” motivou processos de pedido de indenização por perseguição política, tornados possíveis pela Lei 11.042, de 18 de novembro de 1997, por meio da qual o Estado do Rio Grande do Sul “assumiu a responsabilidade por danos físicos e psicológicos causados a pessoas detidas por motivos políticos e estabeleceu normas para que sejam indenizadas” (BRANDO, 2014, p. 13), disponibilizados para consulta pública no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Nos 440 processos selecionados, os requerentes à indenização alegam prisão, perseguição e/ou torturas por envolvimento com os Comandos Nacionalistas ou estão citados em outros processos como membros dos referidos grupos. Os grupos de Onze Companheiros

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“EXCESSOS DE PATRIOTISMO”: O TERROR DE ESTADO E OS GRUPOS

DE ONZE COMPANHEIROS NO RIO GRANDE DO SUL

Marli de Almeida

Doutoranda pela Universidade de Passo Fundo

[email protected]

Resumo: O golpe civil-militar de 31 de março de 1964 instaurou no Brasil um regime de

Segurança Nacional, que desde seus primeiros dias utilizou-se da violência estatal como

forma de dominação política. Iniciou-se então a Operação Limpeza e os que lutavam pelas

reformas de base tornaram-se, da noite para o dia, inimigos do regime que se instaurou

naquele momento. Enquadrados na Lei de Segurança Nacional, políticos – principalmente

do PTB, professores, líderes sindicais, estudantes e trabalhadores de diversas categorias

foram perseguidos, cassados e até mesmo presos e torturados. Foi o que ocorreu com os

seguidores de Leonel Brizola e integrantes dos Grupos de Onze Companheiros, alvos

dessa ação saneadora estatal, já como preliminar do terrorismo de Estado (TDE), sistema

utilizado pela ditadura militar para eliminar toda e qualquer oposição ao regime.

Palavras-chave: Grupos de Onze, Operação Limpeza, terrorismo de Estado.

Os Grupos de Onze Companheiros ou Comandos Nacionalistas foram formados a

partir de outubro de 1963, através de chamamentos radiofônicos pelas ondas da Mayrink

Veiga, rádio da Guanabara, estado pelo qual o idealizador dos grupos, Leonel Brizola,

exercia mandato como deputado federal. Os apelos de Brizola foram prontamente

atendidos e formaram-se Grupos de Onze em várias partes do país, principalmente no Rio

Grande do Sul. A forte repressão desencadeada sobre os Grupos de Onze Companheiros

na chamada “Operação Limpeza” motivou processos de pedido de indenização por

perseguição política, tornados possíveis pela Lei 11.042, de 18 de novembro de 1997, por

meio da qual o Estado do Rio Grande do Sul “assumiu a responsabilidade por danos

físicos e psicológicos causados a pessoas detidas por motivos políticos e estabeleceu

normas para que sejam indenizadas” (BRANDO, 2014, p. 13), disponibilizados para

consulta pública no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Nos 440 processos

selecionados, os requerentes à indenização alegam prisão, perseguição e/ou torturas por

envolvimento com os Comandos Nacionalistas ou estão citados em outros processos

como membros dos referidos grupos.

Os grupos de Onze Companheiros

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No início da década de 1960, o Brasil vivia um cenário de forte crise econômica,

disputas políticas internas e efervescência dos movimentos sociais que buscavam direitos

e melhores condições de vida. Com a Revolução Cubana, em 1959, houve um acirramento

da Guerra Fria na América Latina, sendo que posturas nacionalistas eram vistas com

grande desconfiança e geralmente associadas ao comunismo. Assumindo a presidência

numa grave crise política, após a renúncia de Jânio Quadros, o líder do Partido Trabalhista

Brasileiro (PTB), João Goulart teve de lidar com uma série de tensões internas e externas.

Governou nos sistemas parlamentarista e presidencialista, tentando conciliar com a direita

que não o aprovava e nem admitia perder privilégios. Procurando atender as demandas

dos trabalhadores lançou o programa de reformas de base, porém a reforma agrária

despertava fortes reações, sendo vista e alardeada como atitude comunista. Ainda sofreu

constantes pressões por parte dos Estados Unidos, que retinham empréstimos,

financiavam políticos opositores e não aceitavam de bom grado seu governo nacionalista,

seu programa reformista e sua tolerância com comunistas e esquerdistas radicais. A

esquerda também pressionava o presidente. Leonel Brizola – político petebista, líder do

movimento da Legalidade que garantiu a posse de João Goulart na presidência do país,

ex-governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Goulart representava a ala esquerdista

mais radical no momento, não aceitava a política de conciliação e cobrava do presidente

a implantação das reformas de base, especialmente a agrária. E, descrente da aprovação

das reformas via Congresso, influenciado pelo sucesso da Legalidade, em finais de 1963,

parte para uma nova mobilização popular: os Grupos de Onze Companheiros ou

Comandos Nacionalistas. Brizola estava convencido “que os deputados e senadores,

representantes na sua maioria das elites privilegiadas, somente cedem diante de pressão

combinada popular e militar, à semelhança do que ocorreu na ocasião da posse do Sr.

João Goulart” (CASTELLO BRANCO, 1975, p. 161). Ademais, considerava que o Brasil

estava vivendo momentos decisivos que rapidamente se aproximavam de um desfecho,

que poderia vir em forma de um golpe. Então, a partir de outubro de 1963, fez

pronunciamentos pelo rádio, conclamando o povo a se organizar em grupos para a defesa

do nacionalismo, defesa das conquistas democráticas, reformas imediatas e libertação

nacional. Comparou esse grupo a um time de futebol – associação conhecida por todos

os brasileiros – em que qualquer pessoa, com consciência de patriota e inconformada

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“com os sofrimentos e injustiças que aí estão esmagando nosso povo” (BRIZOLA, 1963,

p.1), em qualquer lugar do Brasil, poderia tomar a iniciativa e formar um grupo. Era

preencher uma lista com onze nomes e enviar à rádio Mayrink Veiga, na Guanabara, onde

ele exercia o mandato de deputado federal. Ouvir as palestras de Brizola transmitidas pelo

rádio era um hábito comum entre os trabalhadores, milhares de pessoas acompanhavam

seus programas, principalmente no Rio Grande do Sul. Ciente desse potencial, ele

divulgava sua ideologia anti-imperialista e reformista, exigindo a execução das reformas,

sobretudo a agrária. A filha de Luiz Gonzaga da Silva, da cidade de São Luiz Gonzaga,

relatou que seu pai “em sua casa sempre reunia grupos de pessoas para ouvir a fala de

Leonel Brizola pela rádio” (Processo 2877-1200/02-1).

As listas com os nomes dos integrantes dos grupos enviadas para a Mayrink Veiga

eram divulgadas com eloquência, enaltecendo os grupos já feitos e incentivando a

formação de novos grupos, bem como exagerando em quantidade e capacidade de

mobilização dos tais Comandos Nacionalistas. Para os grupos conservadores, que já

conspiravam para a derrubada de João Goulart, essa organização popular era uma ameaça,

senão a prova, que a guerra revolucionária estava em curso no Brasil.

Doutrina de Segurança Nacional (DSN) e Terrorismo de Estado (TDE)

Dentro de um contexto de Guerra Fria, em que a disputa ideológica entre

capitalismo e comunismo adquirira contornos globais, o continente americano –

especialmente o Brasil – era considerado pelos Estados Unidos como área do seu interesse

nacional, sendo que os problemas de segurança interna de cada país eram compreendidos

como questões da própria segurança norte-americana. A América Latina necessitava ser

salvaguardada, tanto da influência nefasta do comunismo internacional quanto da atuação

dos movimentos sociais e das lideranças políticas reformistas/nacionalistas que não

pactuavam com o imperialismo estadunidense. Programas de ajuda como a Aliança para

o Progresso conjuntamente com a exportação da Doutrina de Segurança Nacional

objetivavam garantir essa supremacia, especialmente após a Revolução Cubana,

fornecendo, junto com programas socioeconômicos, “treinamentos de oficiais latino-

americanos em escolas militares de policiais dos Estados Unidos, ajuda e reestruturação,

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modernização e reconversão do fator militar para enfrentar e destruir o ‘inimigo interno”

(PADRÓS, 2014, p.15).

A DSN era composta de uma série de pressupostos teóricos criados por

estrategistas norte-americanos a partir das experiências vivenciadas no Vietnã, na

Indochina e na Argélia, e na suposta necessidade de responder a nova técnica de guerra

empregada pelos subversivos desses países. Considerava que o comunismo almejava

conquistar o mundo e, para isso, se utilizaria de todo e qualquer descontentamento

existente nos países de Terceiro Mundo. A partir da premissa que em toda parte haveria

“a presença do comunismo internacional; em toda parte uma guerrilha potencial”

(COMBLIN, 1978, p. 47), havia a necessidade de um estado de guerra permanente contra

o “inimigo interno”, que se estendia desde opositores abertos do regime, como as

organizações armadas, até qualquer pessoa que questionasse o sistema. Tudo o que não

estivesse em concordância com o sistema era identificado com comunismo, conceito que

se tornou flexível e abrangente, justificando todo e qualquer tipo de repressão, inclusive

torturas, considerada um meio para obter informações.

O terrorismo de Estado implantado pelos regimes de Segurança Nacional estava

alicerçado na DSN, sendo que o Brasil foi o primeiro país a instaurar uma ditadura

baseada nas premissas dessa doutrina, produzindo um aparato repressivo estatal que

serviu de modelo para os demais governos militares que se instauram posteriormente na

região, entre os quais o Uruguai (1973), Chile (1973) e a Argentina (1976). Apesar da

experiência brasileira não ter tido a extensão e a profundidade que se verificou em outras

realidades das ditaduras latino-americanas, a ditadura utilizou-se da instrumentalização

do Terror de Estado e tornou-se um “laboratório” para os demais, elaborando e

exportando suas práticas (FERNANDES, 2009, p. 148). A denominação “terrorismo de

Estado”, conforme Miguel Bonasso, demarca

um modelo estatal contemporâneo que se ve obligado a transgredir los marcos

ideológicos y políticos de la represión “legal” (la consentida por el marco

jurídico tradicional) y debe apelar a “métodos no convencionales”, a la

extensivos e intensivos, para aniquilar a la oposición política y la protesta

social, sea ésta armada o desarmada (BONASSO, 1990, prefácio).

O conceito de Terror de Estado é amplamente utilizado para as ditaduras civis-

militares das décadas 1960 e 1970 nos outros países do Cone Sul, referindo-se, inclusive,

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da mesma forma à ditadura brasileira. Recentemente esse conceito vem sendo

incorporado pela historiografia brasileira nas análises do período da ditadura militar,

especialmente após a decretação do AI-5, instrumento que permitiu a Ditadura de

Segurança Nacional Brasileira instaurar efetivamente o TDE, na medida em que a

violência passou a fazer a mediação entre o estado e a sociedade, em nome da “segurança

nacional” (ALVES, 2005; PADRÓS, 2005; CARDOSO, 1990). Podemos, entretanto,

verificar práticas de TDE desde 31 de março de 1964. Para Caroline Bauer é através

conceito de terrorismo de Estado que ações que foram tidas como “excessos de

patriotismo” realizadas por alguns membros do aparelho repressivo do Estado “passam a

ser percebidas como resultado de um sistema definido, previamente organizado e

incentivado desde a própria estrutura do poder” (2005, p. 7).

Operação Limpeza

Tomado o poder, os militares assumiram a tarefa de “arrumar a casa”, iniciando

imediatamente o processo de “limpeza” da sociedade, com repressão, prisões e até mesmo

torturas em diversas partes do país. “Milhares foram presos na ‘Operação Limpeza’,

sendo que a repressão foi especialmente severa no Nordeste” (SKIDMORE, 1969, p. 55)

visto que lá atuavam o governador Miguel Arraes, o líder das Ligas Camponesas

Francisco Julião, o educador Paulo Freire, entre outros, todos “perigosos subversivos”

ameaçadores à ordem vigente. Da mesma forma no Rio Grande do Sul a Operação

Limpeza foi aplicada de forma exemplar. O estado era considerado potencialmente

perigoso no caso de uma possível resistência ao golpe, em razão do movimento da

Legalidade ocorrido por ocasião da renúncia de Jânio Quadros, liderado por Leonel

Brizola, que exercia o mandato de governador. Ademais, era o estado de origem do

presidente deposto e do ex-governador, que após a tentativa frustrada de resistência

exilou-se no Uruguai, onde já se encontrava João Goulart. A presença de Leonel Brizola

no país vizinho era motivo de inquietação ao regime recém-instaurado, representando o

perigo iminente de uma insurreição popular, que poderia ser acionada através dos Grupos

de Onze, por isso esses grupos foram alvo privilegiado dessa “ação saneadora”. Ademais,

historicamente o estado do Rio Grande do Sul destaca-se na geopolítica por suas

fronteiras com o Uruguai e a Argentina, configurando-o como uma área de segurança

nacional e digno de um “cuidado especial”.

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Demonstrando o uso do Terrorismo de Estado já no início da ditadura militar, o

jornalista Márcio Moreira Alves, do jornal carioca Correio da Manhã, publicou, em

janeiro de 1966, um livro denunciando o que ocorria no país: Torturas e torturados.

Márcio Moreira Alves ressalta a falta de reação ao golpe civil-militar e sendo

desnecessária e exagerada a conduta militar sobre os vencidos, pois “nenhum atentado

colocou em perigo as vidas dos vitoriosos ou a segurança dos cidadãos. Não existia a mais

remota possibilidade de reação organizada contra o governo constituído. A debacle das

forças que apoiavam os Srs. João Goulart, Leonel Brizola, Miguel Arraes e outros, fora

completa”. O país se encontrava em perfeita calma, assim sendo, “as torturas não

buscavam informações urgentes, não eram exercidas contra inimigos em pé de guerra”

(ALVES, 1966, p. 22).

Em O golpe começou em Washington, publicada em 1965, Edmar Morel relatou

os acontecimentos dos primeiros meses da ditadura militar. Morel refere que no dia dois

de abril, após uma noite de “São Bartolomeu, triste noite de pavor, que ainda hoje cobre

de pranto centenas de lares humildes, com seus chefes encarcerados e seviciados” (1965,

p. 109), em que nem padres e freiras escaparam, a Nação estava num clima de terror, com

deputados federais encarcerados, prisões em massa. Para os militares, o inimigo interno

precisava ser vencido, afinal “se eles vencessem seria muito pior!”, sendo que “este ‘eles’

refere-se aos comunistas e, sobretudo, aos brizolistas (ALVES, 1966, p. 41).

A retroatividade, segundo Enrique Serra Padrós é uma das características do

Terror de Estado, criminalizando atividades antes vistas como normais: “O absurdo dessa

prática estava, na sua essência perversa, decretar criminosos, segundo o corpo de normas,

regras, valores e leis derivados da DSN, comportamentos que, até o dia anterior aos golpes

de Estado, eram considerados constitucionalmente legítimos” (2014, p. 24), como era o

caso da formação dos Grupos de Onze. Conclamados pelo cunhado do presidente da

república e também liderança do PTB, que estava no governo, os grupos estavam sendo

organizados publicamente, via chamamento radiofônico, como uma forma de pressão

popular pelas reformas de base, especialmente a reforma agrária, e a partir do golpe foram

considerados subversivos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional.

Em maio de 1964, em relatório endereçado ao Secretário de Segurança Pública, o

delegado de polícia de Erechim assim se refere aos Grupos de Onze:

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À guisa de ilustração, iremos salientar o seguinte: O Grupo dos Onze é uma

organização que se assemelha a tipo militar, o que em assunto militar quer

dizer Grupo de Combate, com exceção numérica, o que poderá ser com armas

ou não, fardas ou não, mas com finalidades combativas constituídas por

partidos ou particulares, em assim o sendo, a constituição de tais grupos tinha

alguma finalidade, e como foi inicialmente, parece enquadrar-se perfeitamente

no citado art. 24, da Lei de Segurança Nacional (Relatório 05/64. Sops/E.

1.2.98.4.1).

As prisões começaram antes mesmo da decretação do Ato Institucional nº1, de 9

de abril de 1964, que estabeleceu a repressão legal por meio dos Inquéritos Policiais

Militares (IPMs), constituindo “o mecanismo legal para a busca sistemática de segurança

absoluta e eliminação do ‘inimigo interno” (ALVES, 2005, p. 68). De acordo com o

Projeto Brasil: Nunca Mais, os IPMs “foram processos formados, por assim dizer, para

forçar algum tipo de enquadramento legal daquelas centenas e milhares de cidadãos

presos nos primeiros dias após a reviravolta política de 1° de abril de 1964” (2003. p.

155). No Estado, esses IPMs ficaram a cargo de um coronel, designado a atuar numa

região específica junto a uma Delegacia de Polícia ou das Seções de Ordem Política e

Social (SOPS).

O Rio Grande do Sul estava alinhado aos golpistas, sendo que o governador Ildo

Meneghetti, prevendo uma reedição da Legalidade sob o comando de Brizola, saiu de

Porto Alegre no dia 1º de abril e estabeleceu temporariamente o governo estadual na

cidade de Passo Fundo, preparando-se para um possível confronto armado. Apesar das

manifestações populares na capital e dos apelos de Leonel Brizola, João Goulart, que

chegou à Porto Alegre no dia 2 de abril, decidiu pela não resistência, rumando para o

exílio no Uruguai, sendo que “as primeiras prisões efetuadas pelos militares golpistas na

cidade [Porto Alegre], que atingiram deputados estaduais do PTB e o próprio prefeito da

capital, naquele mesmo dia 2 de abril” (ZARDO, 2011, p. 159). Vitoriosos, os golpistas

assumiram a tarefa de “arrumar a casa”, expurgando os elementos nocivos e ensinando

aos demais qual era o comportamento adequado para a “boa sociedade ocidental,

democrática e cristã”.

Em Porto Alegre, o DOPS havia prendido 241 pessoas até 24 de abril de 1964

(Correio do Povo, 24/04/1964); em Santa Maria, de acordo com o jornal A Razão, até o

final de maio, cerca de 80 pessoas já haviam prestado depoimentos e mais 51 estavam

previstas para serem ouvidas nos dias seguintes no DOPS da cidade (RUBERT, 2004, p.

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28); na região Alto Uruguai o jornal A Voz da Serra noticiou que já haviam sido feitas

mais de duzentas detenções até 30 de abril de 1964 (A Voz da Serra, 30/04/1964) e até 19

de maio foram ouvidas mais de trezentas pessoas (A Voz da Serra, 19/05/1964); em

Carazinho, segundo jornal Diário da Manhã, de Passo Fundo, no dia 19 de abril 34

pessoas foram levadas para Porto Alegre e ficaram presas no SESME (Diário da Manhã,

11 e 12/04/1998). Em Humaitá, Pedro Soave de Almeida foi detido “juntamente com

outros trezentos integrantes e simpatizantes do antigo PTB” (Processo 6492-1200/98-2)

e em Frederico Westphalen o Exército levou a interrogatório mais de 150 frederiquenses

(SZATKOSKI, 2003, p. 148). Taiara Souto Alves (2009, p. 115) explica que o governo

do estado criou uma Comissão de Expurgos para investigar o funcionalismo do estado,

que baseada no Ato Institucional nº 1, até o mês de outubro de 1964, havia examinado

328 processos, dos quais 178 foram arquivados e 150 chamados a prestar defesa. O ex-

capitão da Brigada Militar, Maildes Alves de Mello, calculou que nesse mesmo período

22 membros da Brigada Militar foram demitidos e expulsos, 73 reformados e 278

funcionários civis estaduais foram expurgados (MELLO, 1997, p. 79-86).

Para capturar os subversivos e manter a ordem, o governo estadual criou dez

destacamentos volantes da Brigada Militar, sob o comando de um coronel. O coronel

Orlando Pacheco, chefe da Casa Militar do Palácio Piratini informou em entrevista à TV

Piratini, no dia 8 de abril, que a partir do dia 9 de abril seguiriam “para diversas

localidades dez destacamentos volantes da Brigada Militar, com, um efetivo de mil

homens, especialmente treinados para combater possíveis atos de guerrilhas ou

sabotagens no interior do Estado” (Diário de Notícias, 9/04/1964). Esse contingente

tinha, ainda, a missão de esclarecer as populações interioranas a respeito dos verdadeiros

motivos do movimento de 1964 além de servirem como instrumento de ação contra

“perniciosos grupos intolerantes à Revolução vitoriosa”, especificamente, os Grupos de

Onze Companheiros. Apesar do Decreto nº 16.552 referir a criação de dez (10)

Destacamentos Volantes Especiais, o Boletim Geral da Brigada Militar do ano de 1964

refere criação e de quatro (4) destacamentos: Destacamento Especial de Erechim,

Destacamento Especial de Três Passos, Destacamento Especial de Cerro Largo e

Destacamento Especial de Pinheiro Machado. O “Teatro de Operações” desses

destacamentos, inicialmente, foi a Região do Alto Uruguai, pois “naquela região se

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presumia a existência de Grupo Guerrilheiros contrários à Revolução, já vitoriosa. Esta

presunção decorria da existência dos chamados ‘Grupos de Onze’, que estiveram ao lado

do Governador Brizola, em 61, no Movimento pela Legalidade” (Correio Brigadiano,

2013, p. 14).

Excessos de patriotismo

Imediatamente após o golpe, começaram as prisões dos elementos considerados

“perigosos” pelo regime recém instituído. No caso em estudo, dos 440 processos das

pessoas que ajuizaram processo indenizatório relacionados aos Grupos de Onze, 19

pessoas foram conduzidas à prisão até o dia 09 de abril.

Após a decretação do AI-1 e da criação dos Destacamentos Especiais Volantes da

Brigada Militar, as buscas pelos subversivos se intensificaram, aumentando

consideravelmente o número de prisões efetuadas, sendo que 191 pessoas alegam terem

sido presas em abril de 1964 e 161 presas em maio do mesmo ano.

A partir da percepção da existência de um inimigo infiltrado na sociedade, que

tanto poderia ser o líder sindical, o estudante ou o agricultor,

o TDE procurou agredir tanto alvos selecionados (líderes, políticos, militantes

sociais, intelectuais) quanto outros indiscriminados. Isto ocorreu pela

existência de um grande número de ‘inimigos’ reconhecidos como tais e

localizados em “zona de combate” – área guerrilheira, bairros populares,

instituições universitárias e secundaristas – e pela identificação da população,

em geral como potencial inimigo (PADRÓS, 2014, p. 17).

O Grupo de Onze, identificado como o “inimigo interno” mais perigoso do

momento, precisava ser desbaratado. Havia a necessidade de punição aos que estavam

minando a boa sociedade ocidental-capitalista-cristã com suas ideias nacionalistas – com

certeza comunistas – além de demonstrar ao restante da sociedade o que aconteceria aos

que se atrevessem a contestar o regime. Enrique Padrós ressalta que aplicação de medidas

coercitivas e repressivas de impacto direto constituem a “pedagogia do medo” do TDE.

Nesse sentido, as prisões eram feitas com grande aparato, numa demonstração de poder

e violência que atingia não apenas o envolvido com a formação do grupo, mas numa

“violência irradiada” (2014, p. 20), atingia seu núcleo familiar, círculo de amigos,

vizinhança, locais de estudo e trabalho, etc., disseminando medo, incerteza e insegurança

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nas comunidades onde viviam os membros dos Grupos de Onze. Paulo César Medeiros

relata sobre a prisão de seu pai, que no dia 31 de março de 1964 “sua casa foi sitiada por

soldados do Exército fortemente armados, inclusive, com uma metralhadora Ponto 50.

Haviam de 15 a 20 soldados” (Processo 69-61-1200/98-5).

O temor atingia envolvidos com os Grupos de Onze e seus familiares. O filho de

Jeronimo Moreira Borges, agricultor de Crissiumal, relata que o pavor do que poderia

acontecer com a prisão levou seu pai a ficar escondido no mato quando ficou sabendo das

prisões que estavam ocorrendo na cidade, sendo que tinham de levar-lhe alimentos

(Processo 6891-1200/98-2). A viúva de Nicanor Rodrigues de Almeida, de Marcelino

Ramos, ao descrever a situação que viveram, afirmou que: “O clima de angústia, de medo

e sofrimento, alojou-se na nossa residência, já que os presos políticos eram muito

maltratados, seviciados e até mortos” (Processo 6586-1200/98-0).

Na cidade de Nova Palma, foram efetuadas prisões antes e após a missa dominical.

Valdir Tronco Crauss afirma que “quando estava entrando na igreja para assistir à missa,

em meio à grande maioria do povo de Nova Palma que lá se encontrava, fui cercado por

oito (8) soldados do Exército, armados com metralhadoras e baionetas, que, em meio à

multidão, me deram voz de prisão e me conduziram ao Camburão” (Processo 6037-

1200/98-2). O padre fez o registro no Livro Tombo da Igreja: “Em Nova Palma, logo

após a saída da missa dominical, apareceram inesperadamente caminhões do exército,

fazendo prisões de homens que posteriormente se soube tinham mandado seus nomes,

numa lista subscrita, à Rádio Mayrink Veiga” (Processo 6037-1200/98-2). Renato Jose

Pippi, um dos presos nessa ocasião declarou: “Dá pra calcular o que acontece num lugar

do interior, extremamente conservador, ser preso em pleno domingo, após a missa, sob

os olhares de toda a população?” (Processo 4445-1200/98-7).

A prisão, feita normalmente com grande aparato militar já era fato vergonhoso,

acrescente-se ainda a humilhação de desfilar pela rua da cidade, acorrentados, para

mostrar à população os perigosos comunistas, “modestos agricultores e respeitáveis

chefes de famílias foram carregados em caminhões de carga, como animais ou malfeitores

contumazes, exibidos pelas ruas de vilas e cidades, num espetáculo deprimente e

desumano, que a ninguém honra e a todos envergonha” (A Voz da Serra, 25/061964, p.

8).

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Em alguns casos houve apenas tortura psicológica, mas outros relatam agressões

violentas, justificadas pela suposta defesa da pátria contra as forças terroristas integradas

por “subversivos apátridas a serviço do comunismo internacional”. Na cidade de

Tuparendi, de onde provém 13 processos de pedido de indenização, muitos agricultores

foram intimados à comparecer na Delegacia de Polícia por seu envolvimento com os

Grupos de Onze. Como o local era muito pequeno para tantas pessoas, tiveram de

permanecer à frente da Delegacia, não podendo afastar-se. Não podiam sequer ir ao

banheiro. Expostos como bichos à população, para que todos os moradores da cidade

conhecessem os comunistas, conforme dizia o delegado. Eram xingados e maltratados

pelos policiais. Mulheres grávidas, outras com seus bebês de colo, idosos, todos

permaneciam ali enquanto fosse a vontade do delegado, situação que perdurou por dias

(Processo 2854-1200/02-0).

O Destacamento Especial Volante de Erechim, chefiado pelo Coronel Gonçalino

Curio de Carvalho, que atuou na região Alto Uruguai, de onde provêm 228 processos de

pedido de indenização, já se encontrava na cidade no dia 12 de abril de 1964. Várias

pessoas presas nessa região sofreram torturas, ocasionando casos graves de depressão,

loucura e até mesmo mortes após a saída da prisão. Como casos representativos desses

acontecimentos temos Arquimino Assmann e Leopoldo Chiapetti, ambos agricultores.

Em Mariano Moro – na época, distrito de Erechim – a ata de formação do Grupo

de Onze foi registrada em cartório, demonstrando a crença de estar participando de uma

ação legal e democrática. Já no dia 03 de abril de 1964 foram presos membros desse

grupo. Leopoldo Chiapetti, apontado como o chefe, foi preso na delegacia de Severiano

de Almeida e após levado ao presídio regional de Erechim onde permaneceu de 30 de

abril a 21 de maio de 1964, sendo que

foi largado em uma cela sozinho, cela esta muito fria e úmida, o deixaram sem

roupas, completamente nu, onde sofreu diversas torturas, batiam em todo o seu

corpo, inclusive nos órgãos genitais, na tentativa de tirarem informações, sobre

armas e as ações que [os Grupos de Onze] pretendiam desencadear. (Processo

6066-1200/98-5)

A viúva ainda referiu que seu falecido marido sofreu ainda choques elétricos e

afogamentos em água gelada. No dia 03 de maio de 1964, Leopoldo Chiapetti foi

internado no Hospital Santa Teresinha, de Erechim, por ferimentos ocasionados pela

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tortura, ficando sob custódia nesse hospital. Ele ficou com sequelas em decorrência dos

maus tratos que lhe foram impingidos na prisão e apesar de submeter-se a tratamento

médico-hospitalar durante meses, morreu em consequência dos problemas ocasionados

pela tortura, em 21 de maio de 1965, aos 59 anos.

Arquimino Assmann era líder de um Grupo de Onze organizado na localidade de

Baliza, em Gaurama. Admirador de Leonel Brizola, comumente reunia vizinhos em sua

casa para escutar no rádio os discursos do político. A referência documental é que ele

ficou preso de 18 a 21 de maio, mas sua esposa afirma que ficou preso durante seis dias.

“Queriam obrigá-lo a confessar que possuía armas escondidas no porão de sua casa. Ele

não tinha armas e não confessou, mas foi amarrado no pau de arara, surrado e torturado

até com pingos de gasolina que caiam sobre a sua cabeça. Também não recebeu comida

nem água enquanto esteve preso” (A Voz da Serra, 27/05/1999). Enquanto Arquimino

esteve preso, sua casa foi invadida por homens armados que procuravam armas. Por causa

das torturas, ao sair da prisão, foi internado em um hospital psiquiátrico, não voltando a

ter uma vida e convivências normais até sua morte, em 1979.

As torturas não se limitaram à região Alto Uruguai. O terceiro Destacamento

Volante Especial, composto por membros do Centro de Instrução Militar – CIM, sob o

comando do Major Odilon Alves Chaves, de 12 de maio a 8 de julho de 1964 foi para a

região noroeste, ficando o comando na cidade de Cerro Largo e atuou, entre outras

cidades, em Giruá, onde a família Kitzmann, envolvida com a formação de Grupos de

Onze, foi atingida pela Operação Limpeza. Alcides Kitzmann e o pai, Alfredo Kitzmann,

agricultores, foram presos durante quatro ou cinco dias, sendo que

foram barbaramente espancados, sendo agredidos com socos, ponta pés,

golpes com revolver, fuzil, bem como sofreram choques elétricos e prensa na

cabeça, sendo que até mesmo lhe introduziram objeto no ânus, através do qual

lhes davam choques elétricos, a fim de obter confissão (Processo 0875-

1200/98-6).

A esposa de Alcides, grávida de quatro meses, por ocasião de sua prisão, foi

agredida com golpes de joelho na barriga, pois “filho de comunista não devia nascer”. A

criança nasceu deficiente, porém o fato que não comprovado se foi em decorrência do

espancamento. Já o pai, Alfredo Kitzmann, “desde aquelas torturas, ficou com sequelas

na cabeça, vindo a morrer em razão de tais sequelas” (Processo 0875-1200/98-6). Por

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serem acusados de pertencerem ao Grupo de Onze, além do sofrimento físico nas prisões,

tiveram de vender suas terras e o gado para pagar despesas com médicos e advogados,

resultando no empobrecimento da família. Além disso, para fugir das perseguições,

Alfredo se refugiou na Argentina, onde ficou escondido por vários meses e Alcides

mudou-se para o Paraná (Processo 0875-1200/98-6).

Após a soltura da prisão, os indiciados por pertencerem aos Grupos de Onze

permaneciam sob vigilância, tendo de se apresentar periodicamente na Delegacia de

Polícia de sua cidade ou de cidade vizinha e assinar o livro dos elementos vigiados,

conforme consta no Livro de Ocorrências da Seção de Ordem Política e Social (SOPS)

de Erechim:

Diligencia (sic.) à Faxinal Grande.

Aos desseis (sic.) dias do mês maio do ano de mil e novecentos e sessenta e

quatro (1964). Por ordem do Sr. Delegado Regional foi realizado diligencia

(sic.) a Secção 15 de Novembro, Votouro, Faxinal Grande e Faxinalzinho,

para deter João Oliveira e intimar todos os elementos envolvidos nos “Grupos

dos Onze”, para assinarem o livro de presença de elementos vigiados pela

Polícia, que deverão assinar o livro semanalmente aos sábados (sic.). Em

16/5/64. (Processo 4735-1200/98-0)

Assinar o livro dos “elementos vigiados” já era uma humilhação, a qual podia ser

sobreposta outras mais, conforme relato de familiares de Danilo Oltramari, comerciante

e vereador em São Valentim, organizador de Grupo de Onze.

A polícia não se satisfazia só com sua prisão. Para demonstrar o poder que

possuía e de manifestação da ditadura que imperava, punha-o em cima de um

caminhão, percorrendo as ruas da cidade, demonstrando a todos, que prendia

um elemento perigoso para a “democracia” do país. [...]Após a realização do

“desfile”, era o preso levado até o destacamento da Brigada Militar, localizado

em frente à praça principal da cidade, onde a humilhação continuava, pois

faziam-no lavar os veículos do destacamento, tudo presenciado pela

comunidade e por sua família. Permanecia no destacamento onde era

interrogado e torturado, sendo após conduzido em caminhão aberto até o

Presídio de Erechim, onde ficava preso por alguns dias. Solto, retornava a São

Valentim e, após alguns dias, a mesma situação se repetia (Processo 4098-

1200/98-1).

O mandato como vereador de Danilo Oltramari foi cassado, seu comércio faliu

por suas prisões recorrentes e pela pecha de subversivo comunista que lhe foi imputada.

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Mesmo tendo sido acometido por câncer intestinal as humilhações e torturas não

cessaram, vindo a falecer em 1967.

Conclusão

Perda de emprego, autoexílio, perda do capital para custear as despesas com

deslocamento e/ou advogados, impossibilidade de conseguir nova colocação no mercado

de trabalho por estar fichado no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS),

discriminação da família por parte da comunidade, afastamento dos amigos são relatos

recorrentes como consequência do envolvimento com os Grupos de Onze. E, após o

período de prisão, deveriam se apresentar periodicamente na Delegacia, ou órgão

indicado, para assinar o livro dos “elementos vigiados”, onde sofriam novas humilhações

e até mesmo agressões.

A “pedagogia do medo” imposta no momento surtiu efeito de retraimento e

afastamento social, mais ainda, de afastamento de qualquer movimento de contestação ao

regime. Muitas pessoas negavam a participação nos grupos e a história deles foi relegada,

durante muito tempo, ao esquecimento. A repressão e o silêncio (e/ou desinformação)

consistiam em mecanismos funcionais e complementares, vitais para a ditadura e seus

interesses orgânicos. A conivência de parte da sociedade e da imprensa – e mais tarde a

censura explícita – garantiu a invisibilidade do terror de Estado, ou, então o seu

mascaramento mediante o deslocamento de sentido através de uma releitura que realçava

a resposta defensiva e patriótica contra as forças terroristas (PADRÓS, 2014, p. 26).

A violência física, humilhação ou vexação pública a que foram submetidas as

pessoas que assinaram as listas ou que de alguma forma se envolveram com a formação

dos Grupos de Onze são desmesuradas perante o risco que eles representavam, que

provou ser inexistente. Muitos desses crimes foram amenizados, relevados como

“excessos” de patriotismo no cumprimento do dever (O Nacional, 30/10/1964), casos

excepcionais balizados pela pureza dos ideais dos coronéis que conduziam os IPMs,

conforme o próprio Presidente Castelo Branco, em entrevista coletiva à imprensa. Porém,

a documentação demonstra a existência, já em abril de 1964, de uma política e estrutura

para reprimir e eliminar “aqueles considerados culpáveis ou suspeitos de agressores à

lógica da Doutrina de Segurança Nacional” (PADRÓS, 2014, p. 11). Os depoimentos dos

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envolvidos com os grupos reforçam a hipótese de que essa repressão já configurava

preliminar da prática de terrorismo de Estado, com o propósito de eliminação de toda e

qualquer oposição ao regime.

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