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Política e historiografia na Independência: a trajetória de Joaquim José da Silva Maia entre Brasil e Portugal, 1776-1831 WALQUIRIA DE REZENDE TOFANELLI ALVES * Introdução: Na historiografia brasileira há muitas reflexões sobre a relação entre biografia e história. Destacam-se as pesquisas que têm investigado o uso desse gênero para a construção do Estado Nacional, quando da separação do Brasil de Portugal e, sobretudo, seu delineamento após a abdicação de D. Pedro I, em 1831. Nota-se que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro fundado, em 1838, tinha o propósito de escrever a história do Império do Brasil, conformando também uma memória nacional. Seus membros, em 1839, inauguraram uma Revista e nela adotaram sessão intitulada: “Biografia dos Brasileiros Distintos por Letras, Armas, Virtudes e etc...”. Um de seus principais entusiastas, segundo Armelle Enders, foi Januário da Cunha Barbosa que vaticinou contra o esquecimento dos “cidadãos dignos de mérito”, cujas vidas serviriam de exemplos virtuosos” e “lições práticas(ENDERS, 2004: 177). Atribuiu-se centralidade à biografia aliada à concepção “pedagógica” da história então assentada no topos historia magistra vitae. Tal noção coabitou e, cada vez mais, cedeu espaço a aspirações ilustradas e perspectiva de autonomização da História, trazendo às narrativas características científicas. (OLIVEIRA, 2015: 276-277; ARAÚJO, 2011:134-135). Para a construção de um panteão nacional formado por grandes homens, havia seleção baseada em interesses e objetivos políticos. Deve-se ter em vista que o financiamento e o prestígio da instituição dependeram de vínculos estreitos com D. Pedro II (GUIMARÃES, 1995:485-486). Além disso, as biografias publicadas na Revista do IHGB passaram pelo crivo de seus membros cujas escolhas consideraram laços de proximidade e de admiração (ENDERS, 2004:181). Pensar sobre os critérios que os membros do IHGB utilizaram para selecionar os biografados é ainda mais interessante, pois alguns homens deste panteão viveram durante o período colonial ou nasceram em Portugal, mas foram lembrados pelos serviços prestados na América Portuguesa. Postulando cronologia linear para a história do Brasil, muitos historiadores no século * Doutoranda no Programa de História Social da Universidade de São Paulo (USP) e bolsista CAPES.

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  • Política e historiografia na Independência: a trajetória de Joaquim José da Silva

    Maia entre Brasil e Portugal, 1776-1831

    WALQUIRIA DE REZENDE TOFANELLI ALVES*

    Introdução:

    Na historiografia brasileira há muitas reflexões sobre a relação entre biografia e

    história. Destacam-se as pesquisas que têm investigado o uso desse gênero para a

    construção do Estado Nacional, quando da separação do Brasil de Portugal e, sobretudo,

    seu delineamento após a abdicação de D. Pedro I, em 1831. Nota-se que o Instituto

    Histórico e Geográfico Brasileiro fundado, em 1838, tinha o propósito de escrever a

    história do Império do Brasil, conformando também uma memória nacional. Seus

    membros, em 1839, inauguraram uma Revista e nela adotaram sessão intitulada:

    “Biografia dos Brasileiros Distintos por Letras, Armas, Virtudes e etc...”. Um de seus

    principais entusiastas, segundo Armelle Enders, foi Januário da Cunha Barbosa que

    vaticinou contra o esquecimento dos “cidadãos dignos de mérito”, cujas vidas serviriam

    de “exemplos virtuosos” e “lições práticas” (ENDERS, 2004: 177). Atribuiu-se

    centralidade à biografia aliada à concepção “pedagógica” da história então assentada no

    topos historia magistra vitae. Tal noção coabitou e, cada vez mais, cedeu espaço a

    aspirações ilustradas e perspectiva de autonomização da História, trazendo às narrativas

    características científicas. (OLIVEIRA, 2015: 276-277; ARAÚJO, 2011:134-135).

    Para a construção de um panteão nacional formado por “grandes homens”, havia

    seleção baseada em interesses e objetivos políticos. Deve-se ter em vista que o

    financiamento e o prestígio da instituição dependeram de vínculos estreitos com D. Pedro

    II (GUIMARÃES, 1995:485-486). Além disso, as biografias publicadas na Revista do

    IHGB passaram pelo crivo de seus membros cujas escolhas consideraram laços de

    proximidade e de admiração (ENDERS, 2004:181). Pensar sobre os critérios que os

    membros do IHGB utilizaram para selecionar os biografados é ainda mais interessante,

    pois alguns homens deste panteão viveram durante o período colonial ou nasceram em

    Portugal, mas foram lembrados pelos serviços prestados na América Portuguesa.

    Postulando cronologia linear para a história do Brasil, muitos historiadores no século

    *Doutoranda no Programa de História Social da Universidade de São Paulo (USP) e bolsista CAPES.

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    XIX, demarcaram periodização desde o “descobrimento”, em 1500, valendo-se da

    experiência da colonização portuguesa e da continuidade da monarquia como elementos

    constitutivos para a memória e para a história. (ENDERS, 2004: 181-182). O IHGB não

    foi espaço exclusivo para a divulgação de biografias. Observa-se a escrita de obras fora

    da instituição, a exemplo da publicação de João Manuel Pereira da Silva (1817-1898)

    intitulada Varões ilustres do Brasil durante o período colonial e de Sébastien Auguste

    Sisson (1824-1893) com o título Galeria de brasileiros ilustres contemporâneos.

    Segundo Temístocles Cezar, assim como no IHGB, esses trabalhos exploraram a noção

    “pedagógica” da história associada à retórica da nacionalidade, o que produziu “discurso

    historiográfico e político extremamente persuasivo” (CEZAR, 2003: 75).

    O objetivo nesse trabalho é apresentar aspectos da trajetória de vida do negociante

    Joaquim José da Silva Maia (1776-1831) de modo que auxilie na compreensão de seu

    projeto em defesa do Império luso-brasileiro, derrotado com a consolidação da separação

    entre Brasil e Portugal1. Também busca-se problematizar produções historiográficas que

    interpretaram Maia como “áulico”, “conservador”, “absolutista” e “reacionário”, quando,

    inequivocamente, foi um defensor da monarquia constitucional no Brasil e em Portugal.

    Por fim, também se investigará o motivo do encobrimento do projeto de Maia na

    historiografia e de sua biografia, considerando a atuação de seu filho, Emílio Joaquim da

    Silva Maia que, como membro da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e do

    IHGB, tentou recuperar a memória do pai na década de 1840, não obtendo sucesso.

    Trajetória de Joaquim José da Silva Maia:

    Joaquim José da Silva Maia nasceu na cidade do Porto, em Portugal, em 03 de

    dezembro de 1776. Em 1796, se estabeleceu na Vila da Cachoeira na capitania da Bahia,

    lançando-se no comércio. Por volta de 1802, transferiu-se para a capital Salvador. Foi

    proprietário da sumaca Voador e do bergantim Nelson, realizando viagens regulares a

    regiões meridionais na década de 1810. Os carregamentos de Maia, em sua maioria,

    1Para embasar a proposta de Joaquim José da Silva Maia a respeito de um Império luso-brasileiro, o trabalho

    ampara-se no estudo de Maria de Lourdes Viana Lyra sobre a utopia de um “poderoso” e “vasto” Império

    Português (LYRA, 1994).

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    compunham-se de carne seca, couro, sebo, açúcar, aguardente e farinha de trigo2. Maria

    Beatriz Nizza da Silva apontou que Maia possuía cabedal suficiente para considerá-lo no

    tráfico de escravos. (SILVA, 2008: 18) Ademais, sinalizou para a possibilidade de que o

    negociante tenha se filiado à maçonaria. (SILVA, 2008:165-166).

    Em 10 de fevereiro de 1821, Maia participou do movimento que ligou a Bahia às

    Cortes de Lisboa. Por esse motivo, em 1° de março do mesmo ano, passou a redigir o

    periódico Semanário Cívico e a defender uma monarquia constitucional e representativa

    com a participação de portugueses da América e da Europa nas Cortes de Lisboa. A visão

    de Maia era bastante pragmática. Por ter sua atividade principal ancorada no comércio e,

    tendo em vista que seus negócios se expandiam para a África e para a Europa, vaticinou

    pela preservação de uma ampla rede de negócios luso-brasileira, criticando, em

    contrapartida, o Tratado de 1810 que garantiu aos britânicos posição vantajosa no

    mercado da América Portuguesa. (SEMANÁRIO CÍVICO, n°29, 1830:05).

    Para o negociante, as ações de Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de

    Pombal) no século XVIII, deveriam orientar os ministros de D. João VI, para que

    obstruíssem a ingerência britânica no comércio luso-brasileiro3. Sopesando essas

    experiências, advogou pela adoção de medidas protecionistas a fim de viabilizar a

    participação do Império Português na concorrência com outros Impérios que também se

    constituíam. Defendeu a manutenção do tráfico de escravos e projetou reformas de

    infraestrutura nos portos, na agricultura e no comércio, apontando ser necessário

    aumentar a qualidade e quantidade da produção luso-brasileira, para que só assim, os

    portugueses tirassem vantagens no livre-comércio. Em sua opinião, o sucesso do Império

    Português dependia da prosperidade mútua entre os Reinos de Brasil e Portugal:

    Portugal não pode prosperar, e enriquecer, sem que outro tanto aconteça ao

    Brasil; é o que já experimentamos na época do Ministério do Marquês de

    Pombal, e na subsequente; quando Portugal prosperou no seu comércio,

    navegação e indústria, foi também quando o Brasil fez os grandes progressos

    em todos os ramos da sua agricultura, navegação e comércio. (SEMANÁRIO

    CÍVICO, n° 12, 1822: 03).

    2Os registros das embarcações de Joaquim José da Silva Maia estão disponíveis em diversos números dos

    periódicos Idade d’Ouro do Brasil e Gazeta o Rio de Janeiro entre os anos de 1810 a 1818. 3Sobre a política econômica de Sebastião José Carvalho de Mello e seu sucessor, D. Rodrigo de Sousa

    Coutinho, ver: (CARDOSO; CUNHA, 2011).

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    Em 25 de outubro de 1821, o negociante defendeu que a capital do Império deveria

    ser exclusivamente Lisboa, opinião que lhe rendeu muitas divergências, especialmente,

    com periódicos fluminenses (SEMANÁRIO CÍVICO, n°35, 1821: 01-02). Tal defesa de

    Silva Maia não foi despropositada, pois grupos nas províncias no Norte e no Nordeste

    interpretaram como desvantajoso um centro de poder na América Portuguesa com o

    príncipe regente, optando apenas pela capital em Lisboa com a qual, inclusive, tinham

    maior alinhamento político e de negócios. (ALVES, 2018:140).

    O Semanário Cívico foi publicado até 19 de junho de 1823 e, através dele, Maia

    fez críticas a D. Pedro e à proposta de separação endossada por grupos políticos sediados

    no Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Na Bahia, apoiou as tropas lideradas por

    Inácio Luís Madeira de Mello contrariando o projeto de separação encabeçado no Centro-

    Sul. Lá escreveu também o periódico Sentinella Bahiense (1822) apoiando a posição de

    grupos em Salvador pela fidelidade às Cortes de Lisboa. Com o fim da guerra civil, em

    02 de julho de 1823 e com a derrota de Madeira de Mello, Maia se retirou com a divisão

    portuguesa para o Maranhão, onde chegou, em 14 de julho de 1823. Declarou ter jurado

    a Independência na Câmara de São Luís, em 07 de agosto, solicitando passaporte,

    segundo ele, como “brasileiro” para se estabelecer com a família no Porto, em Portugal.

    Aportou na cidade, em 1° de janeiro de 1824 e retomou as atividades no comércio

    (BRASILEIRO IMPARCIAL, n°03, 1830:04). Foi nesse período que produziu um

    manuscrito sobre o Maranhão elencando que na província havia dois partidos divididos:

    um dos que queriam conservar a união com Portugal, e outro pela

    independência política do Brasil: mas este último partido estava subdividido

    em imperiais, que queriam aderir-se ao Rio de Janeiro, e outros que desejavam

    governo democrático4 (MAIA, 1824: f.01)

    Em 18 de julho de 1826, o negociante iniciou a publicação do periódico Imparcial,

    motivado pela notícia de que D. Pedro enviara uma Carta Constitucional do Brasil para

    ser outorgada em Portugal. Tendo em vista o reconhecimento da Independência, em 29

    de agosto de 1825 e a morte de D. João VI, em 10 de março de 1826, Maia remodelou

    seu projeto de acordo com as novas circunstâncias, interessado na manutenção dos

    4Agradecemos o Prof. Dr. Marcelo Cheche Galves por ter compartilhado conosco a transcrição do

    manuscrito de Joaquim José da Silva Maia sobre o estado político do Maranhão.

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    negócios entre Brasil e Portugal. Assim, se entre 1821 a 1823 havia qualificado D. Pedro

    como um “jovem e inexperiente príncipe” iludido pelos “áulicos” no Rio de Janeiro, a

    despeito de José Bonifácio de Andrada (SEMANÁRIO CÍVICO, n°69, f.03); em 1826,

    declarou apoio ao Imperador do Brasil, por acreditar que este capitanearia um projeto

    constitucional e representativo para a monarquia em Portugal (IMPARCIAL, 1830, n°01,

    f.02). Apesar da possibilidade de reunião das duas Coroas ter sido cogitada, D. Pedro teve

    de abdicar ao trono em favor de sua filha, D. Maria da Glória, por pressões na política

    interna do Brasil e no cenário mundial (BARBOSA, 2004:07). O assunto da separação do

    Brasil, aliás, foi discutido durante as negociações para o reconhecimento da

    Independência mediadas pelos britânicos, antes mesmo da morte de D. João VI

    (SANTOS, 2015: 299-300). No decreto de 1826, D. Pedro determinou que a filha deveria

    casar-se com o tio, D. Miguel e ambos deveriam jurar a Carta Constitucional, assim, esta

    assumiria o trono quando chegasse à maioridade. (LOUSADA; FERREIRA, 2000: 113).

    D. Miguel recebeu a notícia das decisões de D. Pedro, em 1826, enquanto estava

    no exílio, em Viena. Ali havia se estabelecido desde sua participação na “Abrilada”, em

    30 de abril de 1824. Na ocasião, D. Miguel na condição de comandante-em-chefe, havia

    determinado prisões de ministros de D. João VI, a pretexto de serem maçons, obrigando

    também seu pai e rei a refugiar-se. O movimento foi rapidamente contido, mas causou

    comoções contra o infante (LOUSADA; FERREIRA, 2000: 77-78). Depois da morte de

    D. João VI e das determinações de D. Pedro, D. Miguel demonstrou adesão aos planos

    do irmão. Chegou a jurar a Carta Constitucional e a assumir os esponsais com a sobrinha

    de Viena e, apesar de ter se recusado a fazer escala no Rio de Janeiro antes de ir a Portugal,

    foi nomeado regente, em 03 de julho de 1827. (LOUSADA; FERREIRA, 2000:124-137).

    Quando D. Miguel chegou a Lisboa, em 22 de fevereiro de 1828, apressou-se a

    afastar-se dos acordos. Transigiu com camaristas, nobres e camponeses pobres que o

    aclamaram rei “absoluto”, optando pela convocação de cortes que emulassem os antigos

    usos e costumes do Reino, aditando representantes do clero, da nobreza e do povo para

    ressignificar sua condição no poder, em 11 de julho de 1828. Conforme apontou Andréa

    Lisly Gonçalves, não há consenso na historiografia sobre a natureza do governo de D.

    Miguel, porém “a ideia de retorno ao absolutismo não passa de um recurso ideológico,

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    já que o Estado absolutista já havia sofrido abalo suficiente com as revoluções liberais,

    para que se pudesse voltar a uma ordem antiga”. (GONÇALVES, 2019:257-258).

    É curioso notar que no Imparcial de 16 de setembro de 1826, Silva Maia chegou

    a fazer previsões sobre o que aconteceria se D. Miguel não honrasse os acordos com o

    irmão e a sobrinha. Alguns dos pontos elencados foram: que uma crise diplomática se

    abriria com o Brasil e com a Inglaterra, resultando em conflito militar. Os negócios em

    Portugal estariam ameaçados, visto que dependiam das relações com Brasil e Grã-

    Bretanha para escoar seus principais produtos. Ademais, a crise se agudizaria pelo fato

    de que muitos “capitalistas”, frente à mudança de governo, ocultariam seus cabedais ou

    emigrariam, transferindo suas riquezas ao estrangeiro. (IMPARCIAL, n°18, 1826:03).

    Um mês após D. Miguel iniciar seu reinado, Maia foi preso na cadeia da Relação

    no Porto, em 27 de março de 1828. Segundo ele, por ter sido citado em uma devassa e

    acusado por testemunhas anônimas de participar do movimento de 24 a 28 de julho de

    1827 (IMPARCIAL, n°32, 1828:01). Esse movimento ficou conhecido como

    “Archotadas”, visto que liberais protestaram à noite sob a luz de archotes, contra a

    demissão do ministro da guerra, General Saldanha, durante a Regência de D. Isabel Maria

    (VARGUES; TORGAL, 1998: 64). Mais tarde, em 1830, apontou que o motivo real de

    sua prisão se deu porque D. Miguel tentou acabar com “o único periódico constitucional

    que então existia” no Porto, conduzindo o redator à prisão “preventiva” por ter apoiado

    abertamente D. Pedro IV e a Carta Constitucional desde 1826 (MAIA, 1841:10).

    Maia tinha 51 anos de idade quando foi preso. Na ocasião, alegou ser “a primeira

    vez que em nossa vida nos achamos violentamente reclusos, e isto em nossa pátria natural

    [Porto], aonde viemos procurar asilo” quando “comoções violentas” afetaram, entre 1822

    e 1823, “nossa pátria adoptiva [a Bahia]”. O negociante mencionou a sua infelicidade e

    a de sua esposa, Joaquina Rosa da Costa, que “estando enferma no ato da nossa prisão”

    teve a doença agravada e “sucumbiu em três dias, sendo sepultada em terra estrangeira,

    sem lhe poder dizer o último adeus!”. Lamentou-se também pelo filho, Emílio Joaquim

    da Silva Maia, por ter abandonado os estudos em Coimbra onde cursaria o primeiro ano

    de medicina, para “vir socorrer seu infeliz pai, e sua mãe moribunda”. Disse que pouco

    antes de ser preso, já se preparava para voltar ao Brasil (IMPARCIAL, n°32, 1828:01).

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    A prisão do redator do Imparcial durou pouco. Maia escapou, em 21 de maio de

    1828, graças à Revolução Liberal do Porto iniciada, em 16 daquele mês. Apesar de elogiar

    no Imparcial os militares que dela participaram, em sua memória de 1830, disse que não

    possuíam energia necessária para a condução de uma revolução, pecando pelo excesso de

    moderação. (MAIA, 1840:33). Vasco Pulido Valente, ao comentar as ações desses

    militares, disse que “os ‘liberais’ não faziam inimigos gratuitamente, porque esperavam

    conseguir o apoio da quase totalidade do exército”, prezando por evitar uma guerra civil.

    Além disso, pesou sobre o movimento, a conjuntura internacional desfavorável aos

    liberais, com a França de Carlos X, a Inglaterra de Wellington, a Espanha de Fernando

    VII e o Império Austríaco que “apesar de desaprovarem pelo princípio a coroação de D.

    Miguel, não o queria destituído de lugar-tenente”, porque não reconheceriam D. Isabel

    Maria e temiam uma “revolução” semelhante à de 1820. (VALENTE, 2006: 99-102).

    Nuno Gonçalo Monteiro observou que com o fim do movimento, em 03 de julho

    de 1828, D. Miguel deu início a uma intensa perseguição aos liberais, instituindo um

    Tribunal da Alçada do Porto, em 14 de julho de 1828. Não se sabe exatamente o número

    de perseguidos políticos durante o regime miguelista, todavia, o autor estima que

    ultrapassou 20.000 pessoas, tendo em vista uma população de três milhões de habitantes

    à época. (MONTEIRO, 2013: 60). Em 1830, Maia disse que para a Alçada do Porto não

    bastou sequestrar os seus bens. Seu genro teria sido preso, a quem considerava inocente.

    Seu amigo e guarda-livros, José Antonio de Oliveira Barros foi executado e o padre,

    Manoel Rodrigues Braga que serviu de censor ao Imparcial, foi condenado a dez anos de

    degredo para Angola. (BRASILEIRO IMPARCIAL, n°07, 1830: 04).

    Após o fim da revolução, Joaquim José da Silva Maia e seu filho fugiram para a

    Galiza, na Espanha, na companhia da Divisão das Tropas Constitucionais e dali partiram

    para o exílio. Em 1829, Maia se fixou no Rio de Janeiro, onde publicou o periódico O

    Brasileiro Imparcial, cuja duração foi de janeiro a dezembro de 1830. Nele apoiou D.

    Pedro no Brasil que sofria com a impopularidade em seu governo. Diversas vezes,

    descreveu o posicionamento da comunidade internacional acerca dos emigrados do

    governo de D. Miguel. Procurou persuadir os “brasileiros” de que “a causa da Rainha

    Fidelíssima não era tão estranha ao Brasil”, visto que “D. Maria 2°, Rainha

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    Constitucional dos Portugueses reanimará as relações de comércio, e de amizade entre

    Portugal e o Brasil”. Em sua visão, “os dois povos irmãos regidos pelo mesmo sistema,

    pelo Pai, e pela Filha, mutuamente se auxiliarão para manter suas respectivas

    Constituições” (BRASILEIRO IMPARCIAL, n°38, 1830: 01-02).

    Vê-se que, Silva Maia, em 1830, continuou a defender que os dois territórios

    poderiam ter ganhos mútuos desde que empregassem o sistema constitucional e aliassem

    seus interesses no comércio. Reconheceu a Independência política do Brasil, mas não a

    separação definitiva dos negócios luso-brasileiros:

    A Independência deste Império está solidamente firmada não tanto pela

    garantia dos Tratados com algumas Potências, como pelo caráter dos dois

    povos; nenhum deles se querem mais unir politicamente, e só pelas relações de

    comércio, e de amizade. (O BRASILEIRO IMPARCIAL, n°22, 1830: 03).

    O Brasileiro Imparcial foi um periódico muito criticado. Contra ele diversos

    jornais lançaram acusações, como o Aurora Fluminense de Evaristo Ferreira da Veiga.

    Em 1830, Veiga acusou Maia de ser “português” contrário aos “brasileiros”, lembrando

    seu passado na Bahia, quando se opôs à separação no Semanário Cívico. (AURORA

    FLUMINENSE, n°376, 1830: 01). Acusou-o, ainda, de participar do “partido áulico

    recolonizador”, posto que “o Imparcial é pago por essa mesma cabala, tão inimiga das

    liberdades do Brasil como as de Portugal”. Para ele, esta cabala “palaciana” “retinha

    no Rio de Janeiro os emigrados, como instrumentos (...) para seus fins criminosos”.

    (AURORA FLUMINENSE, n°404, 1830: 03). Maia se defendeu das acusações, dizendo

    portar passaporte como “brasileiro”, expedido por autoridades legais desde quando jurou

    a Independência na Câmara no Maranhão, em 1823. Alegou que sua cidadania estaria

    amparada pela Constituição de 1824, no art.6 § 4, por ter cumprido todas as exigências5.

    Na condição de exilado, disse que o Consulado em Portugal e as delegações do Império

    do Brasil nas Cortes da Europa, em 1829, “nos reconheceram por súdito do mesmo

    [Império do Brasil], e nos deram novos Passaportes com os quais nos apresentamos

    nesta Corte”. (BRASILEIRO IMPARCIAL, n°79, 1830: 01).

    5 Para mais informações sobre a questão da cidadania atribuída por decretos e leis durante o Primeiro

    Reinado, ver: (RIBEIRO, 1997).

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    Nívea Carolina Guimarães notou as desavenças entre Evaristo da Veiga e Silva

    Maia, comentando a condição de emigrado deste último, que o levou a ser detratado como

    “áulico”. Também chamou a atenção para o fato de que o redator do Aurora Fluminense

    não considerou desarrazoada a possibilidade de retorno de D. Pedro, em 1833, para reaver

    os direitos do filho no Brasil na condição de tutor ou, ainda, encabeçar sua subida ao

    trono a “pretexto de aceder à vontade geral dos povos”. Mostrou que naquele contexto,

    havia desconfianças, apesar de remotas, por parte de Veiga sobre a possibilidade de

    aproximação entre os territórios (GUIMARÃES, 2016: 42 et seq.). Para Evaristo da

    Veiga, muitos personagens descontentes com a situação na Regência, poderiam tentar

    convencer D. Pedro de “que a sua presença é aqui precisa para salvar a Monarquia”,

    vendo que os exemplos, como o de Carlos V na Espanha, poderiam levá-lo a se arrepender

    da abdicação de 1831. (AURORA FLUMINENSE, n°724, 1833: 02).

    As disputas na imprensa na década de 1820 e de 1830, revelaram-se intensas. Os

    vocabulários carregados de sentidos políticos foram mobilizados insistentemente, assim

    como vários recursos retóricos e acusações cotidianas marcaram os assuntos nas diversas

    folhas (MOREL, 2002; BASILLE, 2018). Diferentes projetos divulgados expressavam

    também diferentes expectativas de negócios de grupos ligados à política, dando vazão a

    concepções liberais diversas. Se por um lado, o liberalismo de Maia dizia respeito às

    vantagens de se manter vínculos comerciais entre Portugal e Brasil, por outro lado, o

    liberalismo de Evaristo da Veiga, próximo ao de Bernardo de Vasconcellos, pautava-se

    em prerrogativas da livre-concorrência, excluindo vantagens de portugueses nos portos

    brasileiros (AURORA FLUMINENSE, n°71, 1828: 01).

    Joaquim José da Silva Maia faleceu, em março de 1831, segundo o redator d’O

    Moderador “pela rotura de um aneurisma do coração”. Para ele, Maia foi “um campeão

    vigoroso e ousado que desapareceu da carreira da polêmica”. Chamou a atenção para o

    “inacreditável” fato de que durante seu enterro, “um número assaz considerável de

    estouvados” se reuniu “para ultrajar o seu cadáver, [e] insultar as últimas honras que a

    religião tributa a seus filhos”. Essa afronta, em sua visão, se deveu ao “ódio de partido

    [que] sobrevive à mesma morte”. Foi preciso intervenção da polícia e de religiosos de S.

    Antônio, para preservar a igreja da profanação. (O MODERADOR, n° 81, 1831: 03).

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    Biografia, memória e política:

    Situando as discussões sobre biografia enquanto possibilidade para a escrita da

    história na atualidade, é importante ter em vista o movimento errático que o gênero

    suscitou, fornecendo diversas compreensões e indagações para a história. Conforme

    apresentou Sabina Loriga, na segunda metade do século XX, sobretudo na década de

    1980, novo paradigma marcou os estudos sobre biografias no momento em que entraram

    em crise modelos interpretativos sustentados sobre escala abrangente de análise, como o

    marxismo e o estruturalismo. Foi crescente o interesse pela democratização do perfil dos

    biografados, ampliando investigações sobre a memória dos vencidos, das mulheres, dos

    pobres e de todos os excluídos da história “oficial”. (LORIGA, 2011:213).

    As discussões sobre biografia e historiografia são importantes para esse trabalho,

    na medida em que descortinam os interesses políticos e os apelos teleológicos dos autores

    que procuraram formar um panteão de “homens ilustres” durante o processo de

    construção e consolidação do Estado Nacional. Destaca-se o trabalho de Cecilia Helena

    Lorenzini de Salles Oliveira que, ao considerar a dinâmica da lembrança e do

    esquecimento, observou que a seleção de personagens a serem imortalizados ou

    esquecidos, assim como de interpretações e de marcos cronológicos adotados na

    historiografia, precisam ser considerados como derivativos de interesses políticos para a

    conformação de uma memória. (OLIVEIRA, 1999: 17-18). No mesmo sentido, ao

    estudar a província do Maranhão que, assim como a Bahia não aderiu prontamente à

    proposta separatista de 1822, Marcelo Cheche Galves, valendo-se das interpretações de

    Cecília Salles Oliveira, observou que desde o século XIX com John Armitage até 1970,

    a historiografia obscureceu os diversos projetos afirmando que na América Portuguesa

    teria havido uma unanimidade pela separação, visto ser objetivo de muitos autores

    encobrir personagens e propostas que defenderam expectativas políticas diferentes, muito

    divulgadas em províncias como Pará, Maranhão e Bahia (GALVES, 2010:17).

    Na historiografia dedicada ao tema da Independência, são poucas as referências

    sobre a trajetória de vida de Joaquim Maia ou estudos que investigaram seu projeto

    político. A maioria dos estudos sobre ele, o caracterizaram como um “português”

    contrário aos “brasileiros” na luta pela Independência. No século XIX, houve tentativa de

  • 11

    obscurecer os diversos projetos, sedimentando interpretação de que a separação foi

    resultado da oposição entre “portugueses” e “brasileiros”, entendimento que já foi

    problematizado por produções recentes que abordaram as complexidades no processo de

    configuração das identidades nacionais (Cf. MARSON, OLIVEIRA, 2018; JANCSÓ;

    PIMENTA, 2000, RIBEIRO, 2002).

    Em Reclamação do Brasil de 1822, José da Silva Lisboa comentou que o

    Semanário Cívico havia “obstado o reconhecimento público da dignidade da regência

    de S. A. R.” e que, em 1821, no Rio de Janeiro, existia uma “cabala anti-brasílica”

    “mancomunada com sua Sociedade Correspondente fixa na Bahia” da qual Maia teria

    participado (LISBOA,1822: 35 et seq.). Já em 1830, na História dos principais sucessos

    do Brasil, Lisboa apontou que os “cabalistas portugueses” tinham ódio dos “patriotas

    brasileiros” (LISBOA, 1830: 05). John Armitage, em História do Brasil de 1837,

    seguindo a interpretação de Silva Lisboa, fez referências à Bahia dizendo que ali havia a

    “preponderância” de “portugueses natos” e, por esse motivo, a Junta Provisória não

    reconheceu a “autoridade de D. Pedro como Regente” demarcando a oposição entre

    “brasileiros” e “portugueses” (ARMITAGE, 1837:28).

    Em obra póstuma intitulada História da Independência do Brasil de 1916,

    Francisco Adolfo Varnhagen relatou que “esbravejaram na Bahia, os inimigos da causa

    brasílica”, referendando o Semanário Cívico como um de seus representantes.

    (VARNHAGEN, 1916: 409-410). Por sua vez, Nelson Werneck Sodré, em 1966, também

    mencionou o aparecimento do Semanário Cívico, em 1821, na Bahia, como representante

    da “imprensa áulica” ao lado da Idade d’Ouro do Brasil. Caracterizando o periódico

    como “absolutista”, disse que merecia “o apelido de ‘semanário cínico’ que lhe puseram

    os baianos”, destacando o “luso” Silva Maia como seu redator. (SODRÉ, 1999:49).

    Seguindo interpretação de Sodré, Consuelo Pondé de Sena realizou estudo, em 1983,

    sobre o Sentinella Bahiense, que foi republicado, em 2016. Segundo a autora, seu objetivo

    era “comentar a propaganda antinacionalista promovida pelo referido Jornal”,

    considerando o “português” Joaquim José da Silva Maia como “reacionário” por ter sido

    contrário aos “patriotas brasileiros” no contexto da Independência. Christiane Peres

    Pereira defendeu, em 2013, dissertação para investigar a trajetória de Maia e suas

  • 12

    participações na imprensa. Todavia, nota-se que a autora polemizou com o personagem,

    considerando-o “português”, “áulico” e “conservador”, cujos pensamentos políticos, em

    toda a sua trajetória, denotavam uma postura por um “constitucionalismo exacerbado, à

    maneira liberal conservadora, portuguesa, de ser” (PEREIRA, 2013:15).

    Nota-se que na década de 1840, Emílio Joaquim da Silva Maia (1808-1859), filho

    de Joaquim José da Silva Maia procurou retomar a memória do pai. Observa-se, que desde

    cedo, declarou alinhamento à posição política de seu progenitor. Em 1826, aos dezessete

    anos, escreveu uma carta avisando a ele de seu alistamento no Corpo dos Voluntários

    Acadêmicos de Coimbra para combater milícias miguelistas. Seu pai valeu-se da

    declaração do filho, para dizer que entre os voluntários, havia “estudantes brasileiros,

    que com generoso entusiasmo quiseram fazer causa comum com seus condiscípulos

    portugueses” (IMPARCIAL, n°56, 1826:03). Orgulhoso, publicizou a carta de Emílio,

    dizendo que “nosso filho, mancebo de 17 anos (natural da Bahia) frequentando o 3° ano

    filosófico” havia se alistado. Um trecho da carta do jovem foi publicado no Imparcial,

    onde justificou sua atitude dizendo que, como brasileiro, quis dar um testemunho ao

    “nosso Imperador” de que na Europa “os brasileiros” defendiam seus direitos:

    fui dos primeiros a alistar-me, e o mesmo fizeram mais vinte e tantos

    Brasileiros: queremos dar um testemunho ao nosso Imperador que cá na

    Europa sabemos pugnar pelos seus direitos; e uma prova autêntica aos

    Portugueses do amor fraternal que lhes consagramos. Tenho lido e relido todos

    os artigos de guerra, e tenho-me exercitado em todas as evoluções militares.

    Console minha Mãe; diga-lhe que não tenha medo: e se eu morrer na

    campanha, lembre-lhe que para as Espartanas era um dia de júbilo aquele em

    que recebiam a notícia da morte de um filho no campo da honra em defesa da

    pátria. Lance-me a sua benção e esteja certo que eu voltarei com o meu escudo

    ou sobre o meu escudo (IMPARCIAL, n° 56, 1826: 03).

    Emilio Maia se exilou com o pai, em 1828, depois de desarticulada a Revolução

    do Porto. Chegou ao Rio de Janeiro, em 1829, já bacharel em filosofia. Segundo Lúcia

    Garcia, Maia permaneceu no Brasil apenas alguns meses, transferindo-se a Paris, onde

    formou-se em Ciências Físicas e Matemática, diplomando-se, em 1833, em Medicina e

    retornando ao Rio de Janeiro naquele mesmo ano (GARCIA, 2004: 21). Na capital, fez

    parte dos principais círculos intelectuais (e políticos), tornando-se membro da Sociedade

    Auxiliadora da Indústria Nacional e sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico

    Brasileiro. A ele coube presidir sessão dedicada à História na Instituição. Interessante

  • 13

    notar que Emílio Maia fez discurso pela memória de Evaristo da Veiga, em 1837, e recitou

    elogio histórico a José Bonifácio, em 1838. Tais personagens tinham sido opositores de

    seu pai, entre 1822 e 1830, entretanto, as questões históricas e políticas já não eram as

    mesmas naquele momento, estando Emílio Maia ambientado àquela conjuntura.

    Maia só editou e publicou as memórias do pai, em 1841, durante o reinado de D.

    Pedro II. Disse que os espólios do falecido “chegaram às suas mãos, em 1834”, mas é

    possível que, por cautela política, julgou propício publicá-los na década de 1840. Na

    edição, disse que foi levado “pela ideia de pagar um tributo à memória de meu Pai (...)

    porque nisso mesmo quis dar uma prova de todo o meu respeito e amor filial” (MAIA,

    1840: VII). Com o título de Memórias Históricas, Políticas e Filosóficas da Revolução

    do Porto em Maio de 1828 e dos Emigrados Portugueses pela Espanha, Inglaterra,

    França e Bélgica, Emílio Maia dedicou a obra ao IHGB para “acobertá-la com o vosso

    nome, porque ela necessita do mais alto apoio, e [para] cumprir, como já disse, uma

    obrigação contraída desde que me associei aos vossos trabalhos”.(MAIA, 1841:V).

    Frente à dedicatória, procurou justificar as posições políticas que seu pai adotou, dizendo

    que estava acometido pelas afecções do momento. Não negou que os personagens ali

    criticados, alçaram no atual cenário, a condição de heróis, todavia, preferiu não modificar

    as palavras do autor, pedindo escusas e considerações ao público:

    Convenho em que muitas asserções se acham hoje, senão desmentidas, ao

    menos minoradas pela conduta posterior de muitos indivíduos, de que tratam

    estas Memórias (...) convenho igualmente, em que escrevendo meu Pai no

    meio dos sofrimentos e privações a sua pena não se achava isenta das afecções

    do momento, e que eu podia haver retocado o quadro que ele traço, mudando

    os trajes de muitas personagens, que depois vestiram outras galas, e se

    apresentaram hoje como heróis e beneméritos da Pátria; porém neste caso seria

    mister inverter o pensamento do autor. (MAIA, 1841: VIII)

    Emílio Maia se implicou naquela narrativa ao relatar que acompanhou o “Pai em

    toda essa desgraçada emigração”, sendo testemunha de suas vivências e intempéries

    para defender o constitucionalismo e a causa de D. Pedro IV. Reiterou que os valores do

    passado devem ser considerados em seu tempo, prevenindo-se das críticas e julgamentos

    de seus contemporâneos à obra:

    Em minha posição social como Brasileiro, e como homem de uma profissão

    estranha a negócios políticos, não podia hoje ter em vista menoscabar o crédito

    de ninguém, e muito menos de homens eminentes, que por uma série de

    serviços prestados desde 1832 até esta data, se tem constituído acima de toda

  • 14

    a censura; mas a verdade histórica da época anterior em nada deslustra estes

    serviços, porque eles foram em prol da causa, de que meu finado Pai se mostrou

    tão corajoso propugnador. Se algum interesse tem estas Memórias é o de serem

    escritas na época em que os fatos não podia ser contestados, e em que a causa

    constitucional se achava abandonada à sua própria sorte; então não podíamos

    julgar os homens, como hoje, por seus feitos posteriores (MAIA, 1841:IX).

    Em 1844, publicou outro escrito de seu pai, dessa vez, na revista Minerva Brasiliense

    com a qual colaborava. Intitulou-o Memórias históricas e filosóficas sobre o Brasil,

    informado ter sido escrito, em 1824. (ver: ALVES, 2016).

    Em vista da exposição, constata-se a tentativa de Emílio Maia não só para

    justificar a memória do pai como para defendê-la. Nota-se que o próprio médico, apesar

    de sua intensa atividade intelectual, não adquiriu um “lugar” de destaque na memória e

    na historiografia, posto que são poucos os trabalhos dedicados a esse sócio do IHGB,

    conforme observou Lúcia Garcia (GARCIA, 2004: 11-12). Diante de todas essas

    tentativas, seu pai não conseguiu ser integrado ao rol de “ilustres”, mesmo com os

    esforços do filho para lembrar a sua luta pela causa de D. Pedro e da filha em Portugal

    que, indiretamente, se correspondeu com a de D. Pedro II, como ele mesmo observou

    (MAIA, 1841: VIII). Joaquim Maia foi encoberto pela memória que se constituiu ao longo

    do século XIX. Nas poucas vezes em que foi lembrado, foi retratado como um “áulico”,

    “conservador”, “absolutista” e “recolonizador”. Essas inculpações foram endossadas por

    parte da historiografia no século XX que repetiu as acusações de inimigos

    contemporâneos a Maia na imprensa, como se procurou mostrar.

    Torna-se evidente que motivações políticas foram fundamentais para que a

    memória de Maia fosse encoberta no Brasil, ou ainda, para que a ele fosse legado um

    perfil como inimigo dos “brasileiros” por ser considerado “português” e “absolutista”,

    tanto no século XIX quanto no século XX, mesmo que o negociante tenha defendido

    projeto liberal ao longo de toda a sua trajetória e tenha se declarado “brasileiro”. Maia

    realizou modelações em seu projeto adequando-o às transformações políticas, mas não

    deixou de defender a manutenção das relações de negócio e a monarquia constitucional e

    representativa em Portugal e Brasil. Estudar sua trajetória de vida e expectativas é

    importante, pois pode espelhar as de outros personagens que defenderam semelhante

    projeto. Sua proposta para um “Império luso-brasileiro” foi vencida e, por essa razão, a

  • 15

    memória de Maia foi alvo de disputas e distorções, posto que a historiografia destacou

    personagens e projetos favoráveis à separação, expressando interesses políticos inerentes

    ao momento em que foram produzidas.

    Considerações Finais:

    Procurou-se mostrar nesse trabalho, que o projeto pela separação não foi o único

    a ser defendido na década de 1820 e que, só recentemente, estudos têm sido dedicados à

    investigação da multiplicidade de projetos e da atuação de grupos distintos nas diversas

    províncias, refletindo, em certa medida, sobre a condição política de ser cidadão

    português ou brasileiro, após 1823, e sobre diferentes concepções liberais engendradas

    nos anos de 1820 e 1830. Apesar da separação, vínculos de natureza política, de

    parentesco e de negócios não seriam facilmente dissolvidos, restando a grupos que

    participaram do mercado luso-brasileiro, antes e após a Independência, disputarem e

    defenderem a reaproximação entre os territórios para conservar suas redes de negócios.

    Tais expectativas, apesar de perderem força, só foram completamente descartadas na

    abdicação de D. Pedro, em 1831 e, sobretudo, sua morte, em 1834. Abordar, portanto,

    aspectos da biografia de Maia, desnudando que mesmo sendo pai de um dos membros do

    IHGB não conseguiu se destacar no panteão formado por “homens ilustres”, evidencia as

    relações de poder e de política na dinâmica dos que foram lembrados ou encobertos pela

    memória e pela historiografia que se constituíram ao longo do tempo sobre a

    Independência do Brasil.

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