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“Dizem os caixeiros das lojas desta cidade”: atuação, denúncia e trajetórias na praça mercantil do Maranhão (c.1802-1810) Luisa Moraes Silva Cutrim Universidade Federal de Juiz de Fora [email protected] Introdução “Antes das sete horas já está aberto o comércio, que só fecha as suas portas às nove da noite. Muitas vezes, não bastam essas quatorze horas de intenso labor, fica ainda o serãozinho para depois das portas cerradas: ora trafegar a cachaça de uma pipa que está vazando, ora concluir o aviamento de um pedido de mercadorias. Então, o dia prolonga-se por mais algumas horas. Até 1822, nem os domingos e dias santificados pertenciam aos caixeiros. Se o destino marcava-lhe servir numa loja, tinha ele de aturar a freguesia exigente e cheia de impertinências” (VIVEIROS, 1954, p. 150) A narrativa acima foi feita por Jerônimo de Viveiros, ao discorrer sobre a História do Comércio no Maranhão, e explica sobre o funcionamento das lojas de comércio. Esta é uma das poucas referências que apresenta a rotina dos caixeiros na praça comercial de São Luís 1 . Ainda são raras análises sobre os caixeiros ao redor da América portuguesa, principalmente no início do século XIX, ainda que seja sabido sobre a importância deles para a manutenção dos negócios. O estudo de Lenira Martinho e Riva Gorestein continua sendo o mais conhecido e citado para falar dos caixeiros. As autoras analisaram esse grupo na segunda metade do século XIX na praça comercial do Rio de Janeiro. Assim, Martinho e Gorestein compreendem que os caixeiros eram fundamentais para o funcionamento das lojas e dos negócios, pois eram eles que cuidavam dos pagamentos, cobranças e de todas as escriturações (MARTINHO; GORESTEIN, 1993, p. 38). O contexto de fortalecimento econômico no final do século XVIII foi marcante ao redor da América portuguesa, principalmente pelo crescimento da praça comercial do 1 Jerônimo de Viveiros, que não era historiador por formação, produziu a obra História do Comércio do Maranhão encomendada pela Associação Comercial na década de 1950. Portanto, é preciso cuidado ao observar sua narrativa, já que escreve engrandecendo os comerciantes e o passado colonial do Maranhão. MOTA, Antonia da Silva; GERMANO, Nivaldo. Jerônimo de Viveiros: Sobre o modo de viver e o método de escrever a História do Comércio do Maranhão. IN: BITENCOURT, João Batista; GALVES, Marcelo Cheche. Historiografia maranhense: dez ensaios sobre historiadores e seus tempos. São Luís: Café e Lápis, Ed. UEMA, 2014. p.169-172.

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“Dizem os caixeiros das lojas desta cidade”: atuação, denúncia e trajetórias na

praça mercantil do Maranhão (c.1802-1810)

Luisa Moraes Silva Cutrim

Universidade Federal de Juiz de Fora

[email protected]

Introdução

“Antes das sete horas já está aberto o comércio, que só fecha as suas portas às nove da noite. Muitas vezes, não bastam essas quatorze horas

de intenso labor, fica ainda o serãozinho para depois das portas

cerradas: ora trafegar a cachaça de uma pipa que está vazando, ora concluir o aviamento de um pedido de mercadorias. Então, o dia

prolonga-se por mais algumas horas.

Até 1822, nem os domingos e dias santificados pertenciam aos

caixeiros. Se o destino marcava-lhe servir numa loja, tinha ele de aturar a freguesia exigente e cheia de impertinências” (VIVEIROS, 1954, p.

150)

A narrativa acima foi feita por Jerônimo de Viveiros, ao discorrer sobre a História

do Comércio no Maranhão, e explica sobre o funcionamento das lojas de comércio. Esta

é uma das poucas referências que apresenta a rotina dos caixeiros na praça comercial de

São Luís1. Ainda são raras análises sobre os caixeiros ao redor da América portuguesa,

principalmente no início do século XIX, ainda que seja sabido sobre a importância deles

para a manutenção dos negócios. O estudo de Lenira Martinho e Riva Gorestein continua

sendo o mais conhecido e citado para falar dos caixeiros. As autoras analisaram esse

grupo na segunda metade do século XIX na praça comercial do Rio de Janeiro. Assim,

Martinho e Gorestein compreendem que os caixeiros eram fundamentais para o

funcionamento das lojas e dos negócios, pois eram eles que cuidavam dos pagamentos,

cobranças e de todas as escriturações (MARTINHO; GORESTEIN, 1993, p. 38).

O contexto de fortalecimento econômico no final do século XVIII foi marcante

ao redor da América portuguesa, principalmente pelo crescimento da praça comercial do

1 Jerônimo de Viveiros, que não era historiador por formação, produziu a obra História do Comércio do

Maranhão encomendada pela Associação Comercial na década de 1950. Portanto, é preciso cuidado ao

observar sua narrativa, já que escreve engrandecendo os comerciantes e o passado colonial do Maranhão. MOTA, Antonia da Silva; GERMANO, Nivaldo. Jerônimo de Viveiros: Sobre o modo de viver e o método

de escrever a História do Comércio do Maranhão. IN: BITENCOURT, João Batista; GALVES, Marcelo

Cheche. Historiografia maranhense: dez ensaios sobre historiadores e seus tempos. São Luís: Café e Lápis,

Ed. UEMA, 2014. p.169-172.

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Rio de Janeiro. Esse período é lembrado muitas vezes pela crise do Antigo Regime com

o fim do pacto colonial. Contudo, para parte da historiografia, as transformações

econômicas não foram suficientes para que mudanças mais profundas ocorressem nas

estruturas sociais e econômicas do Império português. Como ressalta Nuno Monteiro, as

grandes reformas comerciais propiciadas por Pombal eram muito mais respostas a

circunstâncias concretas, relacionadas às práticas do Antigo Regime de controle e

monopólio, do que com uma estratégia racionalizada de embasamento ilustrado

(MONTEIRO, 2017, p. 106). Para João Fragoso, no entanto, quando se trata dos homens

de negócio estabelecidos no Rio de Janeiro, mesmo que se mantivessem nos quadros do

escravismo e do Antigo Regime, eles “continuavam a dominar setores vitais da economia

colonial e algumas rotas essenciais do antigo Império”. Aspectos que contribuíam para o

fortalecimento de “negociantes transoceânicos” (FRAGOSO, 2002, p. 105-106).

A capitania do Maranhão insere-se nesse contexto também como importante

centro aglutinador dos homens de grosso trato, os quais passaram a monopolizar o

comércio da mão de obra escrava, fundamental para a agroexportação, após a extinção da

Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. Segundo o contemporâneo Garcia de

Abranches, este lucrativo comércio que permitiu o estabelecimento de casas comerciais

“monstruosas” na região (ABRANCHES, 1822, p. 13), principalmente a partir do século

XIX. Consequentemente, as casas comerciais trazem consigo a necessidade da mão de

obra dos caixeiros, como destacou Viveiros na citação acima. Retomando o dito trecho,

observa-se o enfoque do autor era ressaltar as dificuldades vividas por esse grupo no

trabalho. Aspecto também apontado por Martinho e Gorenstein, explicando que, por

morarem com os seus patrões, não havia regras bem estabelecidas para fixação de horas

de trabalho e delimitações das atribuições (MARTINHO; GORESTEIN, 1993, p. 40).

O objetivo do presente trabalho será, então, analisar a ação contestatória realizada

por caixeiros de Casas comerciais no Maranhão em 1804. Isto porque, compreende-se a

importância de incluir os caixeiros nas análises sobre as praças comerciais no início do

século XIX, para o aprofundamento das discussões sobre as transformações e as

permanências do Antigo Regime. A partir da petição organizada por eles é possível

observar as relações entre negociantes e caixeiros, ambos majoritariamente portugueses,

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nesse contexto marcado por práticas governativas que mantinham os valores religiosos

do Antigo Regime nos âmbitos políticos e econômicos da província.

Apesar da escassez de fontes o presente artigo é a tentativa inicial de compreender

a atuação dos caixeiros como grupo no Maranhão Oitocentista, visando ampliar também

a compreensão do dinâmico do Império português. Na primeira parte será analisado a

reclamação feita pelos caixeiros pautada na documentação da Arquidiocese do Arquivo

Público do Estado do Maranhão. No segundo momento o enfoque será nas trajetórias de

alguns dos negociantes notificados pela Igreja a partir das reclamações dos seus

funcionários caixeiros, são eles: Antonio Rodrigues de Miranda, Caetano José da Cunha

e Caetano José Teixeira.

“Dizem os caixeiros das lojas desta cidade”

Em 1804, no cais da Praia Grande em São Luís do Maranhão, em meio as obras

da praça pública, alguns caixeiros se reuniram para buscar, pela terceira vez, apoio da

Câmara Eclesiástica devido as suas insatisfações com os seus patrões. Para isso,

organizaram uma petição com o intuito de pedir as necessárias providências sobre o

descumprimento das “leis disciplinares da Igreja” pelos negociantes da praça. Segundo

os caixeiros, o abuso ocorria porque os seus patrões queriam manter as lojas abertas

durante os domingos e dias santos “como nos dias dedicados aos serviços” (APEM,

Autoamento de petições, nº150, cx. 5).

Ao que parece, as reclamações dos caixeiros já eram bem conhecidas pela

arquidiocese, como afirma o autor2 da introdução da petição, que antecede o pedido em

apoio aos personagens. Nesse primeiro momento é ressaltado as duas solicitações

anteriores feitas pelos caixeiros, ambas inclusive recebendo a aprovação da câmara

eclesiástica. O autor solicita, assim, que dessa vez os pedidos sejam realmente executados

e os negociantes cobrados, o que não ocorreu anteriormente, destacando que “pela terceira

vez cheio de confiança na benignidade de V. Ex.ª ” os caixeiros refaziam as reclamações

(APEM, Autoamento de petições, nº150, cx. 5).

2 O final da página com a defesa inicial dos caixeiros encontra-se deteriorada, impossibilitando a

identificação da autoria.

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Observa-se, nesse primeiro momento, a continuidade de um problema envolvendo

caixeiros e negociantes na praça comercial de São Luís. No início do século XIX o

Maranhão já estava estabelecido como importante centro agroexportador, com destaque

para as produções de arroz e algodão. Entre 1796 e 1811 a região alcançou o segundo

lugar nas exportações brasileiras, com 24,4%, atrás apenas do açúcar, com 34,7%

(ASSUNÇÃO, 2015, p.251). Esse contexto de prosperidade econômica propiciou

também o fortalecimento dos negociantes, com o surgimento de importantes Casas

comerciais. O estabelecimento de lojas contava com importante trabalho dos caixeiros,

normalmente braços direitos dos negociantes por saberem as técnicas mercantis, como a

escrituração.

Ainda assim, ao analisarem as relações de trabalho entre negociantes e caixeiros

as autoras Lenira Martinho e Riva Gorestein destacam que os limites da autoridade dos

comerciantes sobre os caixeiros eram medidos pela sua própria consciência, assim como

os problemas relativos do trabalho não era responsabilidade do Estado, mantendo-se na

esfera privada. Além disso, a possibilidade de se tornarem também negociantes no futuro

fazia com que os caixeiros evitassem todos os meios de se indispor (MARTINHO;

GORESTEIN, 1993, p. 42;51;54). Contudo, o que ocorreu nesse caso específico foi o

questionamento da autoridade desses negociantes e busca de intermediação externa. Se o

Estado não intervém, a Igreja sim – ou ao menos era isso que acreditava os caixeiros.

Segundo Pollyanna Muniz, dentre os fundamentos do Juízo Eclesiástico havia o

chamado Iurisdictio essentiallis (jurisdição essencial) que se preocupava com “causas de

matéria espiritual e relativas à disciplina interna da Igreja, da fé, à apostasia, feitiçaria e

as causas relativas ao matrimônio”. Nesta jurisdição os bispos tinham o poder de

processar e punir comportamentos ilícitos independente de quem os praticava. Desse

modo, tanto leigos quanto os eclesiásticos poderiam ser punidos pela jurisdição episcopal

(MUNIZ,2015, p.451). Os caixeiros tinham conhecimento da dita jurisdição, não por

acaso a petição exalta o “repugnante” descumprimento contínuo, por parte dos

negociantes, das “leis disciplinares da Igreja”. Além disso, citam “as constituições que

regem este bispado” que não estavam sendo observadas por seus patrões, as quais seriam

o “Livro 2, tit.12, nº 371 e 383” (APEM, Autoamento de petições, nº150, cx. 5).

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O bispado do Maranhão seguia as leis estabelecidas nas Constituições Primeiras

do Arcebispado da Bahia, onde trata no livro segundo sobre o “sacrifício da missa” e a

obrigação de ouvi-la nos domingos e dias santos (VIDE, 2010, p.56), logo, esses dias não

poderiam ser utilizados para outras atividades, como bem sabiam os caixeiros. Tudo

indica que os personagens se pautaram nas regras eclesiásticas como estratégia para

mudanças na forma dos seus trabalhos, já que a grande reclamação era a obrigatoriedade

de trabalhar aos domingos sem qualquer lamentação ou preocupação de estarem perdendo

a missa.

O processo na Câmara Eclesiástica continua com a relação de nomes que, segundo

o juiz, haviam sido notificados “em suas próprias pessoas” para fecharem suas lojas aos

domingos e dias santos. A relação conta com quarenta e sete nomes, além da última

subscrição que aparece genericamente como os “caixeiros do Coronel José Gonçalves de

Sá”. Dentre as pessoas notificadas estão importantes negociantes da praça de São Luís,

como: Caetano José da Cunha, Antonio Rodrigues de Miranda e Caetano José Teixeira.

Ao que parece, a câmara queria deixar claro que medidas tinham sido tomadas para

atender as reclamações dos caixeiros.

O processo se prolonga até 1806, quando o promotor Jorge Cabral reafirma a

necessidade de por fim “a este abuso, que por vezes tem sido repreendido nesta cidade”.

No entanto, ressalta a necessidade dos suplicantes, ou seja, os caixeiros, de “aparecerem

com seus nomes” para provar quais negociantes ainda estavam descumprindo a ordem. E

se estes estavam realmente abrindo ou fechando as lojas o dia todo ou só depois de

ouvirem a missa (APEM, Autoamento de petições, nº150, cx. 5). Entretanto, não consta

no processo mais nenhum documento que apresente a relação nominal de caixeiros que

por tantas vezes denunciou os negociantes da praça.

A possibilidade dos caixeiros de produzir três petições à Câmara eclesiástica os

insere em um grupo privilegiado que, além de serem alfabetizados, ainda tinham

conhecimento de direitos, o que permitia agir em causa própria quando necessário. Como

destaca Martinho e Gorenstein os caixeiros e os guarda-livros eram os empregados do

comércio com maior possibilidade de ações nesse sentido, até mesmo por um nível de

renda um pouco melhor. Por conta disso, na segunda metade do século XIX eles

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conseguiram se organizar em sociedade com objetivo de “amparo e defesas mútuas”

(MARTINHO; GORESTEIN, 1993, p. 45-47).

No caso dos caixeiros maranhenses, ainda que não fosse uma sociedade formal, a

produção das petições evidencia a capacidade de se organizarem para denunciarem

descontentamento e buscarem melhorias, frente ao grupo que, teoricamente, eles

dependiam totalmente, que eram os homens de negócio. Os caixeiros não apenas se

organizaram, como também tiveram o apoio do a Igreja em questionar os negociantes.

Reclamações sobre o trabalho aos domingos era uma constante também observada

por Martinho e Gorenstein para a praça comercial do Rio de Janeiro na segunda metade

do século XIX. Fiando-se na narrativa de Jerônimo de Viveiros, na citação que inicia o

artigo, os trabalhos aos domingos também se mantiveram no Maranhão até, pelo menos,

a década de 1820. As petições dos caixeiros transparecem, então, o descontentamento

com a prática desde o início do século XIX.

Em contrapartida, o processo também remete a estratégias de resistência típicas

do Antigo Regime, em que as tensões estão relacionadas com “disputas acerca de

privilégios e precedências” que não significava necessariamente a contestação da ordem

social, previamente entendida como desigual (HESPANHA, 2012, p. 43). No caso dos

caixeiros, suas reclamações estavam pautadas em garantir certa precedência estabelecida

pela Igreja e que não era cumprida por seus patrões. Portanto, se valeram das leis

eclesiásticas para demonstrarem que estavam sendo vítimas de injustiças. Hespanha

destaca que esta era uma estratégia eficaz de resistência, já que direito e justiça constituía

a “legitimação fundamental do Poder”, evitando constantemente mudanças que pudessem

ofender direitos de particulares, seja de indivíduos ou de grupos (HESPANHA, 2012, p.

43).

Além disso, os caixeiros não se apresentaram nominalmente nas suas petições, o

que pode estar relacionado com o medo de represália por parte dos patrões. O que

prejudicaria não apenas seu trabalho no momento, como também a possibilidade de

ascensão social que, na maior parte das vezes, só era possível por meio da Casa comercial

em que trabalhava3.

3 É importante destacar que a relação entre negociantes e caixeiros não se matinha de maneira uniforme.

Na década de 1820, por exemplo, durante as guerras de Independência, importantes negociantes da praça

de São Luís saem em defesa dos caixeiros, como Antonio José Meirelles. Este pediu a governador de Armas

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O fato deles não assinarem suas reclamações também corrobora com a ideia de

não estarem questionando a ordem vigente, demonstrando um caráter mais conservador

e veiculado a um discurso jurídico. Aspecto que se relaciona com o próprio perfil dos

negociantes em meados do século XVIII que, mesmo em embate com outros grupos para

alcançarem postos de poder na colônia, não eram essencialmente um “grupo social

revolucionário”. Ainda assim, a elite mercantil conseguiu se estabelecer como grupo de

influência na América portuguesa setecentista (SAMPAIO, 2006, p. 92). Do mesmo

modo, os caixeiros no Maranhão tentaram assegurar suas necessidades frente aquela

sociedade, marcada pela forte influência da Igreja e dos homens de negócio.

“Proprietários e patrões das ditas lojas”

Os negociantes notificados pela Câmara eclesiástica tiveram papel de destaque no

comércio do Maranhão. Os personagens acima apontados - Caetano José da Cunha,

Antonio Rodrigues de Miranda e Caetano José Teixeira, aparecem em subscrição,

juntamente com diversos outros nomes, como os principais negociantes do Corpo de

Comércio, em 1825. Contudo, esses homens de negócio chegaram ao Maranhão entre os

séculos XVIII e início do XIX e já eram conhecidos e atuantes na região no período das

petições.

Antonio Rodrigues de Miranda nasceu em 1764, natural de Portugal (ATJ/MA,

Autos Cíveis de Libello..., 1836, fl. 20), e chega ao Maranhão ainda no século XVIII

durante a atuação da Companhia do Comércio (CARREIRA, 1988, p. 270;286).

Possivelmente a ascensão econômica da região, propiciada pela Companhia, incentivou

a sua vinda, levando seus outros irmãos, João Rodrigues de Miranda e Domingos

Rodrigues de Miranda, a também se instalarem na capitania4. No mesmo ano em que se

que os caixeiros ficassem isentos do alistamento nos corpos de 1ª linha, pois, além de serem os futuros

comerciantes da região, representavam também parcela importante da população branca, que não poderia

correr o risco de ser diminuída. (Conciliador, nº 185, 19/4/1823, p. 9-10) 4 Contudo, os irmãos Miranda não tinham relações próximas, pelo menos, a partir da década de 1820 quando

se posicionaram em lados opostos nas refregas políticas que marcaram a região após a adesão ao movimento constitucional do Porto. Enquanto os irmãos João e Domingos tornaram-se sócios e ativos opositores do

governo, Antonio se manteve aliado do então governador e atuou ao lado de importantes negociantes da

praça, como Antonio José Meirelles. Antonio Rodrigues de Miranda manteve-se, assim, afastado dos

irmãos.

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encerra o processo da Câmara Eclesiástica, em 1806, Antonio Rodrigues de Miranda

consegue sesmaria de duas léguas na vila de Santo Antonio de Alcântara, outra cidade de

destaque no comércio do Maranhão (AHU, Cx. 147, D. 10591). Entre 1809 e 1810 o

negociante aparece, juntamente com outros sócios, como proprietário do navio Príncipe

Atalante que fazia viagens para Liverpool, na Inglaterra (APEM, Códices. Lv. 1.324,

1809-1822).

Caetano José da Cunha também era nesse período importante negociante no

Maranhão, conseguindo em 1807 confirmação de sesmaria na Ribeira do Itapecuru (AN,

Sesmaria, Maranhão, BI 622). O negociante estabeleceu sua Companhia Comercial em

sociedade com o seu irmão Manoel José da Cunha (ATJ/MA, Sequestro de Bens, 5.c.2,

1833). Assim como os Rodrigues de Miranda, possivelmente Caetano e Manoel José da

Cunha se instalaram na região nesse contexto de desenvolvimento econômico, fomentado

pela agricultura e consequente aumento na distribuição de sesmarias (MOTA, 2012, p.28-

29). A partir da década de 1820 Caetano José da Cunha também começa a aparecer como

proprietário de embarcações, comercializando com portos próximos como Tutóia

(interior do Maranhão) e Parnaíba (APEM, Códices. Lv. 1.324, 1809-1822).

Entre os negociantes notificados Caetano José Teixeira era possivelmente o de

maior destaque. Teixeira, também português, já atuava no Maranhão no final do século

XVIII, recebendo sesmaria na região de Grajaú em 1788. Anos depois, em 1790, ele já

era apontado como um dos maiores negociantes da praça comercial de São Luís. Suas

atividades mercantis englobava a venda de mercadorias e escravos, expedições de navios

e diversas consignações (AHU, Cx. 75, D. 6495). Além disso, seus negócios estendiam-

se por outras localidades importantes, desde o interior da capitania (Alcântara e Tutóia),

passando por diversos portos da América portuguesa (Ceará, Rio Grande, Pará e Rio de

Janeiro), alcançando o além-mar europeu (Lisboa, Londres, Liverpool) e a costa africana

(Cabo Verde e Bissau)5. O que aponta para a não especialização característica dos homens

de negócio do período. O seu fortalecimento econômico possibilitou ainda ascensão

social ao receber a Comenda da Ordem de Cristo, uma das principais distinções

honoríficas do período (BN, Seção Manuscritos, Coleção de Documentos Biográficos: C

129, 003).

5 APEM, Códices. Lv.1.321 (1809-1822) e Lv.1.324 (1822-1833).

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Ao que parece o poderio econômico do comendador Teixeira permitiu ainda

relações de negócios com a Igreja. Entre 1811 e 1813 o negociante abre processos de

assinação de dez dias na Arquidiocese para cobrar dívidas contraídas por reverendos, os

quais compraram com o negociante escravos no período das petições, por volta de 1806.

(APEM, Assinação de dez dias, Cx. 80, nº 2645, 2649, 2652). O que não impediu,

contudo, a Câmara eclesiástica de notificar o negociante, em concordância aos caixeiros.

Observa-se, assim, que os súditos portugueses tiveram papel de destaque na praça

comercial que começava a se estabelecer em São Luís. Desse modo, é bastante provável

que os caixeiros que trabalhavam em suas firmas comerciais também fossem portugueses.

Lenira Martinho destaca que os comerciantes portugueses preferiam recrutar os

trabalhadores para suas lojas em Portugal por acharem que os brasileiros não eram bons

para o serviço (MARTINHO, 1976, p.50). Aspecto também observado por Paulo Amorim

ao fazer levantamento de imigração e emigração de Portugal para o Brasil a partir de

1836. Os dados do autor demonstram que os negociantes portugueses monopolizavam o

comércio no Brasil, tanto a retalho, como a grosso, e dificilmente estes homens de

negócio não tinham em suas Casas comerciais pelo menos um caixeiro português. Em

relação ao início do século XIX Amorim destaca o comércio baiano que em 1811 organiza

a Associação Comercial da Baía, a qual era condicionada pelos interesses lusos,

demonstrando novamente o predomínio português (AMORIM, 2018, p. 24;30).

Essa relação entre negociantes e caixeiros portugueses fortalece, então, a ideia de

interconexão entre as diversas localidades do império luso, propiciadas pelas redes

mercantis. Como destaca João Fragoso, “o império apresentava certas identidades que

eram dadas por seus circuitos comerciais transoceânicos, suas formas de acumulação e

mais, pelos negociantes que circulavam e fizeram fortunas em meio a este mare lusitano”

(FRAGOSO, 2002, p.100). Quando o enfoque alcança não apenas os homens de negócio,

que ocupavam o topo dessa hierarquia mercantil, mas também os funcionários essenciais

para o funcionamento desse comércio as “redes imperiais”, defendidas por Fernanda

Bicalho, tornam-se ainda mais abrangente.

Além disso, atuação dos caixeiros em Casas comerciais de negociantes de grosso

trato era de grande destaque, já que estes não cuidavam pessoalmente dos

estabelecimentos. Júnia Furtado ressalta, ao analisar o comércio nas Minas setecentista,

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que o pequeno e o médio comércio a varejo eram dirigidos pelos seus donos, enquanto os

grandes negociantes empregavam diversos funcionários, como caixeiros, escriturários e

guarda-livros, os quais ficavam responsáveis pelas escriturações e contabilidade, aspectos

fundamentais para o sucesso dos negócios. A autora afirma ainda, em adição ao apontado

por Lenira Martinho, que essa variada gama de empregados era recrutada “entre

familiares e compadres mais pobres e acabavam formando redes de poder e prestígio,

calcadas em relação clientelística” (FURTADO, 2006, p. 233;251).

Encaixando-se nesse grupo apontado pelas autoras, é possível deduzir que os

caixeiros dos negociantes Antonio Rodrigues de Miranda, Caetano José da Cunha e

Caetano José Teixeira foram peças chaves para o funcionamento das diversas atividades

mercantis que os personagens estavam inseridos. Ainda assim, mesmo como empregados,

conseguiram se organizar para questionar as obrigações estabelecidas pelos seus patrões.

O que aponta para uma brecha, ainda que pequena, nessa relação clientelística apontada

por Furtado.

Considerações finais

Ao apresentar os debates historiográficos acerca da colonização do Brasil a

historiadora Mônica Ribeiro ressalta o que tem sido recorrente na historiografia: de que

não somente a partir do centro é possível compreender os Impérios, sendo também

fundamental levar em conta as periferias, “destacando as interdependências entre as

partes, a importância dos poderes locais e das negociações estabelecidas” (RIBEIRO,

2013, p. 28). Seguindo esta perspectiva que o conceito de monarquia pluricontinental,

cunhado por Nuno Monteiro, tem sido utilizado para explicar a complexidade do Império

português. Como característica da monarquia pluricontinental portuguesa está a

dependência material do reino dos recursos oriundos da periferia, ou seja, das conquistas

na América (FRAGOSO; GOUVÊA, 2009, p. 43).

Coadunando-se com essa linha historiográfica é de fundamental importância,

então, compreender as praças comerciais espalhadas por diferentes regiões da América

portuguesa, como era o caso do Maranhão. Foi a partir desse comércio Atlântico que se

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manteve a pujança econômica no além-mar. E os negócios ultramarinos que só

funcionavam pela ação de negociantes e caixeiros.

Portanto, a ação contestatória dos caixeiros na praça mercantil de São Luís,

analisado neste artigo, demonstra a “ação cotidiana dos indivíduos espalhados pelo reino”

(FRAGOSO; GOUVÊA, 2009, p. 43), contribuindo para o entendimento do vasto

Império português. Ao buscarem junto à Câmara eclesiástica melhores condições de

trabalho os caixeiros demonstravam que não estavam passivos diante das regras

estabelecidas e buscaram dentro das suas possibilidades estabelecerem posicionamentos.

As petições, que visavam denunciar os negociantes, ainda tiveram o apoio da Igreja.

Logo, é possível ainda questionar a pretensa ideia de organização social, como total

aceitação das hierarquizações que marcaria a sociedade do Antigo Regime.

A preponderância portuguesa no comércio do Maranhão de negociantes e,

possivelmente, de caixeiros aponta ainda para a movimentação dessas figuras ao redor do

Império português. Desse modo, a dinamização da economia agroexportadora na região

possibilitou a formação de redes mercantis, tanto entre os grandes negociantes como

também entre os caixeiros. Essas relações aprofundam, então, as discussões sobre as

dinâmicas do Antigo regime no Império ultramarino luso.

Referências

Documentos

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(O) Conciliador – MA (1821-1823)

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