Ao meu pai, texto publicado n'O Diário do Norte do Paraná

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O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ Domingo, 14 de dezembro de 2014 CULTURA D3 Quem já viu um show de Eras- mo Carlos sabe que é emocio- nante à beça testemunhar as ver- sões roqueiras, cheias de guitar- ras distorcidas e bateria pesada, que ele faz para “Quero que Vá Tudo Pro Inferno”, “Festa de Ar- romba”, “Mesmo que Seja Eu” e outros tantos clássicos. O proble- ma é que, generoso com o públi- co, Erasmo jamais recusa os pedi- dos: acaba cantando, a cada apre- sentação, todos os seus tantos su- cessos. Se, por um lado, isso ga- rante a presença das dez mais, ficam sem espaço no show, con- sequentemente, os belos lados B acumulados em seus álbuns. Para mostrar seu lado menos co- nhecido, O Tremendão anunci- ou um projeto ousado: gravará um DVD ao vivo, em São Paulo, só com as menos conhecidas. No show, “Gente Aberta” e “Maria Joana”,doantológicoálbum“Car- los, Erasmo” (1971),e “Grilos”, de “Sonhos e Memórias” (1972), vão finalmente ganhar espaço no re- pertório. Para ver isso ao vivo, o preço é um pouco salgado: R$ 160, por pessoa, numa das cadei- ra do Tom Jazz, nos dias 23 e 24 de janeiro. Assim, Erasmo Carlos parece fazer justiça com a própria obra. Afinal, é injustificável a apatia com que a crítica trata não só seus ál- buns antológicos, mas, também, seus álbuns recentes. Se quisesse, o Tremendão conseguiria manter um baita show só com lados B dos últimos três álbuns de estúdio: “Rock‘N’Roll”(2009),“Sexo”(2011) e “Gigante Gentil” (2014): precio- sidades compostas com Caeta- no Veloso, Arnaldo Antunes e Nelson Motta estão escondidas nesses álbuns. E pode esperar: algumas dessas certamente es- tarão nesse corajoso DVD. Alexandre Gaioto [email protected] y Tremendão, para poucos SHOW/SÃO PAULO O Erasmo Carlos anuncia gravação de DVD, em SP O Show reunirá suas canções menos conhecidas CORAJOSO. O cantor e compositor Erasmo Carlos: novo DVD não terá seus sucessos —FOTO: DIVULGAÇÃO VEJA LÁ V ERASMO CARLOS Quando: 23/1 e 24/1, às 22h Onde: São Paulo, Tom Jazz, Avenida Angélica, 2331, Higienópolis Quanto: R$ 160, à venda no site Ingressorapido.com.br Mais informações: (11) 3255- 0084 TAVARES y Sérgio Tavares Os livros encalharam. Meu pai não conseguiu resgatar nem o dinheiro nem o prestígio. Durante um tempo, teimou em enviar contos para jornais a troco de visibilidade. Nem isso. Encerrou-se numa repartição pública, fazendo serviço de clipping Ao meu pai ra no calor da discussão que minha mãe acusava meu pai de fracassa- do. Não importava quem estivesse vencendo o duelo, aquilo tinha o efeito de um golpe fulminante. De imediato, meu pai se calava e ia se dobrando aos poucos, como se algo pesado se partisse e desmoronas- se dentro de si. Sentada sobre o tapete da sala, eu o via, reduzido a altura dos brinquedos, ras- tejar pela soleira para dentro do quartinho. Eu não entendia. Só fui decifrar o real sentido da- quilo anos depois, quando já não doía tanto. Meu pai tentou ser escritor. Ou melhor, conse- guiu ser escritor por um período. Meses antes do meu nascimento, ele venceu um concurso literário cujo prêmio era a publicação do livro de estreia. Foi um sucesso. Recebeu ótimas crí- ticas, deu entrevistas para a televisão. Meu pai excursionou, para fazer lançamentos em algu- mas cidades. O livro lhe conferiu um ano estu- pendo. A concretização de um sonho: ser um autor reconhecido e elogiado. Era a chance da sua vida, portanto decidiu abraçá-la o mais forte que seus braços pudes- sem. Como cedeu o escritório para mim, trans- feriu a mesa e a máquina de escrever para o quartinho da empregada que nunca tivemos. Passava praticamente o dia inteiro trancado ali, repercutindo pela casa o martelar das te- clas. Não queria deixar esfriar seu rastro, emu- decer os ecos do seu nome. O segundo livro de- veria sair em um ano. No máximo. Planejava assim. Ocorre que o futuro idealizado não se ajustou ao real. A editora do prêmio não se interes- sou em publicar seu segundo livro. Ele ende- reçou o original para outros selos, mas não obteve resposta. A cada entrega do Correio, corria para descobrir uma carta de aceitação e deparava-se com as contas que só aumenta- vam. Tentou telefonemas, sem efeito. Então, de modo sorrateiro, assaltou, de uma poupan- ça reservada para mim, a quantia necessária para o custo de uma edição paga pelo autor. Minha mãe nunca o perdoou por isso. Os livros encalharam. Meu pai não conseguiu resgatar nem o dinheiro nem o prestígio. Du- rante um tempo, teimou em enviar contos para jornais a troco de visibilidade. Nem isso. Encerrou-se numa repartição pública, fazen- do serviço de clipping. Dizia que gostava, pois algumas reportagens lhe serviam de inspira- ção. Contudo, nunca mais tentou publicar. Es- crever lhe bastava. As horas vagas passava trancado no quartinho, em meio a livros des- prezados, recortes pálidos de críticas e VHS gravadas, o museu de si mesmo. Lembro-me disso, com o telefone colado ao ouvido. Do outro lado da linha, uma repórter aguarda resposta para o convite de entrevistar meu pai, por conta dos vinte anos do seu livro de estreia. Quer produzir uma matéria especi- al, fala com entusiasmo, remontando o passa- do em depoimentos e circunstâncias que o tor- nava glorioso para o meu pai. Penso em como isso poderá deixá-lo realmen- te feliz. Recompor sua autoestima, enchê-lo de esperança. Em como ele poderá acreditar que é uma nova chance, cair na ilusão de que os li- vros lhe reservam algo, voltar a não ter dúvida de que é um escritor. Agradeço e digo não. Desligo o telefone. Nesse momento, meu pai desponta o rosto no batente do quartinho. Quem era, filha?, pergunta. Engano, digo. Ele assente e volta a fechar a porta. Um engano tremendo, pai. E

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Ao meu pai, de Sérgio Tavares, publicado n'O Diário do Norte do Paraná, em 14 de dezembro de 2014

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O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ Domingo, 14 de dezembro de 2014 CULTURA D3

Quem já viu um show de Eras-mo Carlos sabe que é emocio-nante à beça testemunhar as ver-sões roqueiras, cheias de guitar-ras distorcidas e bateria pesada, que ele faz para “Quero que Vá Tudo Pro Inferno”, “Festa de Ar-romba”, “Mesmo que Seja Eu” e outros tantos clássicos. O proble-ma é que, generoso com o públi-co, Erasmo jamais recusa os pedi-dos: acaba cantando, a cada apre-sentação, todos os seus tantos su-cessos. Se, por um lado, isso ga-rante a presença das dez mais, ficam sem espaço no show, con-sequentemente, os belos lados B acumulados em seus álbuns. Para mostrar seu lado menos co-nhecido, O Tremendão anunci-ou um projeto ousado: gravará um DVD ao vivo, em São Paulo, só com as menos conhecidas. No show, “Gente Aberta” e “Maria Joana”, do antológico álbum “Car-los, Erasmo” (1971),e “Grilos”, de “Sonhos e Memórias” (1972), vão finalmente ganhar espaço no re-pertório. Para ver isso ao vivo, o preço é um pouco salgado: R$ 160, por pessoa, numa das cadei-ra do Tom Jazz, nos dias 23 e 24 de janeiro.

Assim, Erasmo Carlos parece fazer justiça com a própria obra. Afinal, é injustificável a apatia com que a crítica trata não só seus ál-buns antológicos, mas, também, seus álbuns recentes. Se quisesse, o Tremendão conseguiria manter um baita show só com lados B dos últimos três álbuns de estúdio: “Rock ‘N’ Roll” (2009), “Sexo” (2011) e “Gigante Gentil” (2014): precio-sidades compostas com Caeta-no Veloso, Arnaldo Antunes e Nelson Motta estão escondidas nesses álbuns. E pode esperar: algumas dessas certamente es-tarão nesse corajoso DVD.

Alexandre Gaioto [email protected] y

Tremendão, para poucos

SHOW/SÃO PAULO

Erasmo Carlos anuncia gravação de DVD, em SP Show reunirá suas canções menos conhecidas CORAJOSO. O cantor e compositor Erasmo Carlos: novo DVD não terá seus sucessos —FOTO: DIVULGAÇÃO

VEJA LÁ VERASMO CARLOS Quando: 23/1 e 24/1, às 22h Onde: São Paulo, Tom Jazz, Avenida Angélica, 2331, Higienópolis Quanto: R$ 160, à venda no site Ingressorapido.com.br Mais informações: (11) 3255-0084

TAVARES

ySérgio Tavares

Os livros encalharam. Meu pai não conseguiu resgatar nem o dinheiro nem o prestígio. Durante um tempo, teimou em enviar contos para jornais a troco de visibilidade. Nem isso. Encerrou-se numa repartição pública, fazendo serviço de clipping

Ao meu pai ra no calor da discussão que minha mãe acusava meu pai de fracassa-do. Não importava quem estivesse vencendo o duelo, aquilo tinha o

efeito de um golpe fulminante. De imediato, meu pai se calava e ia se dobrando aos poucos, como se algo pesado se partisse e desmoronas-se dentro de si. Sentada sobre o tapete da sala, eu o via, reduzido a altura dos brinquedos, ras-tejar pela soleira para dentro do quartinho. Eu não entendia. Só fui decifrar o real sentido da-quilo anos depois, quando já não doía tanto. Meu pai tentou ser escritor. Ou melhor, conse-guiu ser escritor por um período. Meses antes do meu nascimento, ele venceu um concurso literário cujo prêmio era a publicação do livro de estreia. Foi um sucesso. Recebeu ótimas crí-ticas, deu entrevistas para a televisão. Meu pai excursionou, para fazer lançamentos em algu-mas cidades. O livro lhe conferiu um ano estu-pendo. A concretização de um sonho: ser um autor reconhecido e elogiado. Era a chance da sua vida, portanto decidiu abraçá-la o mais forte que seus braços pudes-sem. Como cedeu o escritório para mim, trans-feriu a mesa e a máquina de escrever para o

quartinho da empregada que nunca tivemos. Passava praticamente o dia inteiro trancado ali, repercutindo pela casa o martelar das te-clas. Não queria deixar esfriar seu rastro, emu-decer os ecos do seu nome. O segundo livro de-veria sair em um ano. No máximo. Planejava assim. Ocorre que o futuro idealizado não se ajustou ao real. A editora do prêmio não se interes-sou em publicar seu segundo livro. Ele ende-reçou o original para outros selos, mas não obteve resposta. A cada entrega do Correio, corria para descobrir uma carta de aceitação e deparava-se com as contas que só aumenta-vam. Tentou telefonemas, sem efeito. Então, de modo sorrateiro, assaltou, de uma poupan-ça reservada para mim, a quantia necessária para o custo de uma edição paga pelo autor. Minha mãe nunca o perdoou por isso. Os livros encalharam. Meu pai não conseguiu resgatar nem o dinheiro nem o prestígio. Du-rante um tempo, teimou em enviar contos para jornais a troco de visibilidade. Nem isso. Encerrou-se numa repartição pública, fazen-do serviço de clipping. Dizia que gostava, pois algumas reportagens lhe serviam de inspira-

ção. Contudo, nunca mais tentou publicar. Es-crever lhe bastava. As horas vagas passava trancado no quartinho, em meio a livros des-prezados, recortes pálidos de críticas e VHS gravadas, o museu de si mesmo. Lembro-me disso, com o telefone colado ao ouvido. Do outro lado da linha, uma repórter aguarda resposta para o convite de entrevistar meu pai, por conta dos vinte anos do seu livro de estreia. Quer produzir uma matéria especi-al, fala com entusiasmo, remontando o passa-do em depoimentos e circunstâncias que o tor-nava glorioso para o meu pai. Penso em como isso poderá deixá-lo realmen-te feliz. Recompor sua autoestima, enchê-lo de esperança. Em como ele poderá acreditar que é uma nova chance, cair na ilusão de que os li-vros lhe reservam algo, voltar a não ter dúvida de que é um escritor. Agradeço e digo não. Desligo o telefone. Nesse momento, meu pai desponta o rosto no batente do quartinho. Quem era, filha?, pergunta. Engano, digo. Ele assente e volta a fechar a porta. Um engano tremendo, pai.

E