Antropologia Sociocultural. Rodrigo Simas Aguiar

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Apostila de Antropologia

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  • Antropologia Sociocultural

    Prof. Rodrigo Simas Aguiar

    Universidade Federal da Grande Dourados | 2013

  • SUMRIO

    I A ANTROPOLOGIA: UMA APRESENTAO NECESSRIA, 04

    O que Antropologia e quem o antroplogo?

    Como so formados os antroplogos no Brasil?

    O cientista social tambm um antroplogo?

    II ENTENDENDO A HUMANIDADE, 12 Cultura, o objeto de estudo da Antropologia

    O homem e o ambiente

    O homem atravs de seu passado

    III ORIGEM DOS MTODOS DA ANTROPOLOGIA, 34

    IV CATEGORIAS ANALTICAS E CONCEITOS INSTRUMENTAIS EM ANTROPOLOGIA, 38

    V A PESQUISA ANTROPOLGICA, 43 Entre o inefvel, o inescrutvel e o ininteligvel

    Partindo do incio: o que uma pesquisa para as Cincias Sociais?

    Agora iniciarei meu trabalho de campo, como devo proceder?

    De posse dos dados de campo

    VI TEMAS ATUAIS EM ANTROPOLOGIA, 56 Antropologia Empresarial

    Antropologia da Sade

    Antropologia da Educao

    Laudos Antropolgicos

    BIBLIOGRAFIA, 63

  • I A ANTROPOLOGIA: UMA APRESENTAO NECESSRIA

    O que a Antropologia e quem o antroplogo?

    Existe um grupo de cientistas que se dedica a estudar a humanidade como um

    todo, desde suas longnquas razes e as transformaes sofridas ao longo do tempo, at

    suas manifestaes culturais mais contemporneas, como msica, comidas tpicas e

    formas religiosas. Estes estudiosos da humanidade so os antroplogos, que se apoiam

    em diversos mtodos e tcnicas para desenvolver suas pesquisas. importante ressaltar

    que a histria da antropologia, apesar de relativamente recente se comparada com outras

    disciplinas cientficas, muito dinmica e propiciou a formao de mltiplas correntes

    metodolgicas.

    Contudo, inegvel que a populao em geral desconhece quem e como atua o

    antroplogo. Mesmo entre as pessoas que j ouviram falar da antropologia, seus

    conhecimentos acerca deste campo do saber so moldados dentro de representaes

    estereotipadas. Ou seja, a noo geral do antroplogo caricatural. Normalmente se

    pensa no antroplogo, em primeiro lugar, como aquele profissional envolvido com

    movimentos sociais, vestindo camisetas de lderes revolucionrios e portando bolsas

    tiracolo. Por desconhecer o amplo campo de trabalho dos antroplogos as pessoas

    menos informadas pensam justamente que os antroplogos no trabalham ou que o

    mercado laboral praticamente inexistente. Isso reflexo do tipo de educao que as

    crianas recebem nos colgios, que dificilmente expe um leque abrangente de

    profisses aos estudantes. A sociedade acaba dando suporte para a manuteno desse

    tipo de situao a partir do momento em que se destaca uma pequena lista de

    profissionais respeitveis, desprezando todos os demais campos. Quem nunca ouviu

    algum fazer meno a uma reao preocupada dos pais diante de uma escolha por uma

    profisso diferente das clssicas: meu filho, mas como voc vai fazer para viver

    disso? Como resultado, sacrifica-se vocaes enquanto que em alguns campos no

    possvel suprir a demanda por profissionais. Mesmo assim, as escolhas acabam por

    recair naquelas reas em que h muito tempo as universidades formam mais

    profisisonais que a real necessidade de mercado de trabalho. Resultado: de um lado

    diplomados desempregados e de outro vagas sobrando por falta de profissionais.

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    No Brasil de hoje, a expanso das frentes econmicas e o aumento significativo

    do nmero de projetos desenvolvimentistas, trazem a necessidade de se pensar o

    impacto desses empreendimentos na sociedade. A produo de gneros em larga escala,

    as grandes obras de engenharia, so aes que produzem impactos significativos ao

    meio ambiente e s comunidades tradicionais. Dessa forma, foi preciso implantar

    regulamentaes para essas atividades, sendo que entre as exigncias institudas est a

    produo de um estudo de impacto. Neste tipo de estudo esto envolvidos antroplogos,

    arquelogos e cientistas sociais. Mas o campo de trabalho do antroplogo vai mais

    alm, abrangendo desde o meio empresarial at as tenses sociais no campo ou nos

    bolses de pobreza. Com efeito, podemos pensar em um antroplogo envolvido na

    maioria das atividades humanas: sade, gesto, educao, terceiro setor. E a lista se

    avoluma. Mas antes de poder explorar melhor o mercado de trabalho do antroplogo, se

    faz necessrio definir com clareza o que a antropologia.

    Para entender melhor a antropologia preciso recorrer etimologia: a palavra

    Antropologia vem do grego Anthropos = Homem e Logia = estudo. Assim, a

    Antropologia , literalmente, o estudo do homem. Contudo, muitas disciplinas estudam

    o homem, ento qual a diferena principal da antropologia? A resposta simples: a

    antropologia se prope a estudar o homem como um todo e em carter global

    comparativo, enquanto outras disciplinas, como a histria ou a psicologia, estudam

    aspectos especficos da humanidade. Claro que impossvel existir um cientista com

    conhecimento suficiente para estudar a humanidade como um todo. Foi necessrio ento

    estabelecer divises para facilitar o trabalho antropolgico. No Brasil, inicialmente,

    tinha-se por base uma antropologia essencialmente social, focada para o entendimento

    de como as sociedades se organizam. Contudo, nos ltimos anos vem se estabelecendo

    com fora um modelo de antropologia mais holstico, pensado a partir de quatro

    campos. Este modelo, de origem norte-americana, mostrou-se tambm bem eficaz para

    entender a grande diversidade cultural de um pas como o Brasil:

    Antropologia

    Antropologia Fsica

    Arqueologia

    Lingustica Antropolgica

    Antropologia Cultural/social

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    Seria impossvel formar profissionais com um conhecimento to amplo acerca das

    sociedades humanas. A soluo foi criar estas especialidades dentro da antropologia,

    dedicando-se cada qual a um aspecto especfico do que o ser humano:

    Antropologia Fsica Estuda a estrutura fsica do homem: sua origem animal e

    evoluo gentica. Ou seja, Estuda o homem enquanto entidade biolgica. Como

    exemplo, podemos citar a atuao do antroplogo em diversos estudos laboratoriais,

    como aqueles empreendidos nos famosos seriados de televiso para determinar as

    causas da morte de um indivduo (tambm conhecida como antropologia forense). Mas

    um antroplogo fsico tambm pode se dedicar a estudar esqueletos pr-histricos para

    averiguar como um indivduo viveu e morreu no passado remoto (paleopatologias).

    Arqueologia Estuda o passado do homem pelos restos materiais. Existe aqui uma

    grande confuso com o estudo dos fsseis, como os de dinossauros, mas na verdade

    quem estuda os animais pr-histricos a paleontologia. A arqueologia busca, acima de

    tudo, compreender como se dava a vivncia do homem no passado a partir dos restos

    materiais por ele produzidos, como objetos e utenslios. Mas, neste caso, o passado

    assume uma dimenso bem mais flexvel, podendo ser um passado recente ou distante.

    Assim, um arquelogo pode pesquisar tanto uma antiga civilizao que viveu a mais de

    cinco mil anos ou a nossa prpria sociedade a partir do lixo que produzimos.

    Lingustica Antropolgica Estuda a grande diversidade de lnguas faladas pelos seres

    humanos. Somente no Brasil, h centenas de lnguas faladas, como as lnguas indgenas.

    Mas tambm h muitos aspectos regionais que geram diferentes formas de se expressar.

    Dessa forma, o linguista pode se dedicar em pesquisar uma lngua falada por ndios no

    corao da floresta amaznica ou a nova linguagem que se forma nos espaos digitais,

    como as mensagens trocadas pela internet nas redes sociais.

    Antropologia Cultural/social Este o mais amplo de todos os campos, que se ocupa

    da anlise e descrio das culturas. Alm dos estudos com base na observao direta,

    este campo estabelece estreita relao com os demais na tarefa de entender as

    sociedades. O antroplogo Claude Levy Strauss, criador da antropologia estrutural,

    prope a formao da antropologia social/cultural em trs estgios:

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    Etnografia descrio sistemtica das culturas. A primeira fase do estudo

    antropolgico, ou seja, o trabalho de campo. Nesta etapa os dados so produzidos pela

    observao direta de uma sociedade in situ.

    Etnologia primeiro passo em direo sntese. Os dados levantados em trabalhos de

    campo so analisados e cruzados, buscando formar um conhecimento mais abrangente

    sobre uma determinada sociedade. No Brasil o termo etnologia associado ao estudo

    das etnias indgenas. Contudo, em alguns pases a etnologia voltada para ao registro

    dos saberes e fazeres tradicionais, em uma estreita relao com o folclore.

    Antropologia ltimo estgio, passo final em direo sntese com base nas concluses

    obtidas pela Etnografia e pela Etnologia. Dessa forma possvel construir um

    conhecimento lato sensu acerca das culturas humanas, conhecimento esse que integra as

    matrias lecionadas nas escolas e universidades.

    As diferenas entre a antropologia e as demais disciplinas dedicadas ao estudo

    do homem vo se afirmando a partir do mtodo empregado pelo antroplogo em seus

    estudos. A proposta da antropologia entender as sociedades a partir de um olhar

    interior, ou seja, o conhecimento gerado pelos olhos do outro. Para tanto, no se

    aplica questionrios ou roteiros, mas se estabelece dilogos com os indivduos do grupo

    estudado, o que requer um trabalho de campo prolongado. A eficcia neste sistema de

    investigao tem levado a antropologia a outros campos antes to distantes das cincias

    humanas puras.

    No Brasil, a diversidade cultural e as origens histricas e proto-histricas do

    atual panorama tnico demandaram desde cedo uma relao do meio acadmico com os

    estudos da cultura. De fato, no podemos esquecer que a primeira universidade

    propriamente dita fundada no Brasil foi a Universidade de So Paulo (USP), na dcada

    de 1930. Entre os docentes que vieram com a misso de estruturar a USP estava Levi-

    Strauss, fato que talvez tenha contribudo para uma melhor insero da Antropologia no

    Brasil.

    O Brasil, ento, passou a contar com uma comunidade antropolgica ativa e

    participativa, abrindo espaos polticos fundamentais para a rea. Ver o Brasil sem levar

    em conta a perspectiva da antropologia passou a ser entendido como uma discrepncia,

    o que resultou a insero de contedos antropolgicos em outros campos do saber

    situados alm das cincias humanas puras, como jornalismo, administrao, direito e

    medicina. A fora associativa dos antroplogos tambm gerou mudanas nas polticas

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    pblicas, o que desencadeou a necessidade de relatrios antropolgicos antes da

    implantao de qualquer empreendimento que afetasse diretamente sociedades

    tradicionais.

    Pesquisas em uma comunidade tradicional para fins de licenciamento de empreendimento. Jalapo,

    estado do Tocantins.

    Como so formados os antroplogos no Brasil?

    A partir do momento em que uma pessoa se mostra interessada em se tornar

    antroplogo ou antroploga, surge a primeira dvida: que curso universitrio forma

    antroplogos? Essa pergunta remete a um contexto de significativas mudanas no meio

    acadmico.

    Antes, no havia no Brasil cursos de graduao em antropologia. Os

    antroplogos eram formados especialmente a partir de cursos stricto sensu, ou seja, a

    formao se dava nos nveis de mestrado e doutorado. Isso gerava um problema:

    retardava consideravelmente o ingresso do profissional no mercado de trabalho, o que

    em um Brasil em franco crescimento se traduziu em grave carncia de mo de obra. Os

    profissionais altamente especializados acabavam por se incorporar ao corpo docente das

    universidades, gerando um grande vazio nas outras frentes de trabalho. De certa forma,

    os cursos de graduao em cincias sociais, com o modelo de formao em trs campos

    (antropologia, sociologia e cincia poltica) passaram a ser a principal fonte de

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    formao de antroplogos. Mesmo assim, a formao em nvel de ps-graduao

    continuava a ser necessria para se atingir o nvel de conhecimento e excelncia

    esperados de um antroplogo.

    Associao Brasileira de Antropologia (ABA) foi determinante para o sucesso

    da rea no pas. Os congressos bianuais da ABA chegam a receber mais de dois mil

    participantes, demonstrando quo coesa a comunidade antropolgica brasileira. As

    polticas de ensino de antropologia so amplamente discutidas pela ABA, que emite

    orientaes s universidades quanto constituio de cursos Brasil a fora, sejam esses

    de graduao ou de ps-graduao. E especialmente nas ultimas dcadas a ABA passou

    a lidar com um problema central: a demanda por antroplogos no mercado de trabalho

    brasileiro eminente e a oferta de formao est muito aqum da necessidade.

    Mas por que h to poucos cursos de graduao no Brasil? A resposta simples:

    a criao de cursos de ps-graduao stricto sensu (mestrado e doutorado) no Brasil foi

    interpretada por muito tempo como o caminho mais apropriado para a formao de

    antroplogos. O primeiro programa de ps-graduao em antropologia criado no Brasil

    foi o da Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional em 1968 e apesar de

    relativamente recente, detm abrangncia e prestgio internacionais. Mas o crescimento

    na oferta de cursos de ps-graduao em antropologia foi pequeno se comparado com

    outras reas acadmicas.

    Quanto s estruturas curriculares dos cursos de Antropologia stricto sensu no

    Brasil, existe um modelo que parece ter sido a fonte de inspirao para a formulao da

    maioria dos cursos. Guillermo Sanabria, em sua dissertao de mestrado intitulada O

    ensino de antropologia no Brasil: um estudo sobre as formas institucionalizadas de

    transmisso da cultura argumenta que este modelo estrutural parte das disciplinas

    tericas bsicas que aproximam os alunos de uma tradio antropolgica, seguido de

    um rol de optativas que ir conduzir a formao por meio de escolha do campo de

    atuao por parte do discente. No de se estranhar que os cursos repitam modelos

    consagrados por escolas antropolgicas mais tradicionais, pois as comisses que

    avaliam o credenciamento dos novos cursos so justamente compostas por professores

    destacados de programas em operao. Ou seja, existe uma tendncia em reproduzir os

    modelos anteriores e no raramente as novas propostas que fugiam a este sistema

    clssico eram negadas ou devolvidas com pedidos de ajustes. Felizmente essa realidade

    vem mudando, abrindo espao para propostas mais ousadas e diversificadas.

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    Por fim, no havia mais como segurar uma demanda to reprimida. A nova

    realidade econmica brasileira e a crescente necessidade de antroplogos acabaram

    desencadeando, ainda que tardiamente, a criao de cursos de graduao em

    Antropologia. A ltima dcada foi marcada pela implantao de graduaes em vrias

    instituies e a antropologia passou a ser representada em praticamente todas as

    mesorregies brasileiras. Os cursos de antropologia normalmente so concebidos de

    forma combinada, como antropologia social e arqueologia ou ainda antropologia e

    patrimnio cultural. A tendncia que a oferta de cursos de Antropologia continue

    crescendo.

    Quadro de instituies credenciadas pelo Ministrio da Educao que possuem cursos de

    graduao em atividade nas reas de antropologia e arqueologia.

    Regio Instituio Formato

    Norte

    UFAM Antropologia

    UFRR Antropologia

    UFAC Cincias Sociais/Antropologia

    UNIR Arqueologia

    UEA Arqueologia

    UNIVASF Arqueologia/Preservao Patrimonial

    Nordeste

    UFPB Antropologia Social

    UFRN Cincias Sociais/Antropologia

    UFBA Cincias Sociais/Antropologia

    UFS Arqueologia

    UFPI Arqueologia

    UFPE Arqueologia

    Centro-Oeste UnB Cincias Sociais/Antropologia

    PUC-Gois Antropologia e Arqueologia

    Sudeste

    UFF Antropologia

    UFMG Antropologia

    UFSCar Cincias Sociais/Antropologia

    UNICAMP Cincias Sociais/Antropologia

    Sul

    UFSC Antropologia

    UFPel Antropologia Social/Cultural/Arqueologia

    UNILA Antropologia/Diversidade Cultural

    FURG Arqueologia

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    O cientista social tambm um antroplogo?

    Como visto anteriormente, a formao de antroplogos pode se dar tambm a

    partir dos cursos de graduao em cincias sociais. Contudo, h especificidades neste

    modelo de curso as quais os interessados em seguir carreira na antropologia devem estar

    atentos. Primeiramente, o aluno que almeje formar-se antroplogo deve buscar

    direcionar suas atividades para a rea da antropologia, tanto por meio de iniciao

    cientfica, como por cursos de extenso, congressos e grupos de estudo.

    O dilogo promovido entre as trs reas de formao Antropologia, Sociologia

    e Cincia Poltica parece ser uma das vantagens para os acadmicos de cincias

    sociais. Esta formao mais abrangente possibilita ao aluno viso ampliada e capacidade

    de reflexo. No se pode esquecer que a Sociologia e a Antropologia compartilham uma

    essncia em comum, como os importantes trabalhos no campo da pesquisa social

    desenvolvidos pelos clebres pensadores Emil Durkheim e seu sobrinho Marcel

    Mauss. O que se espera que os campos da antropologia e da sociologia possam

    estabelecer mais dilogos, o que efetivamente j ocorre com a participao de

    socilogos nas reunies de antropologia e de antroplogos nas reunies de sociologia.

    Neste sentido, o aluno formado no curso de cincias sociais leva vantagem.

    Por outro lado, como o currculo de um curso de cincias sociais tem que dar

    conta de trs campos do saber, evidentemente um aprofundamento na rea da

    antropologia s poder ser plenamente atingido a partir de cursos de ps-graduao.

    Mas isso no impede que um cientista social ingresse no mercado de trabalho da

    antropologia imediatamente aps a concluso de sua graduao. H muitos postos de

    trabalho no campo de consultoria e na prestao de servios a projetos

    desenvolvimentistas. Sob a superviso de um antroplogo mais experiente, o cientista

    social pode atuar em meio aos j mencionados estudos de impacto em obras de grande

    porte. Mas, para isso, imperativo que durante toda a graduao o acadmico esteja

    engajado a projetos de professores da rea.

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    Acadmicas desenvolvendo trabalho de campo em usina de lcool, Estado do Acre.

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    II ENTENDENDO A HUMANIDADE

    Cultura, o objeto de estudo da Antropologia

    No captulo anterior foram apontadas as muitas caractersticas da antropologia.

    Foi possvel entender como se constitui a antropologia enquanto disciplina cientfica e

    como o mercado de trabalho. Mas para poder prosseguir com a abordagem da

    antropologia necessrio demarcar o principal objeto de sua anlise: a cultura.

    H muitos entendimentos sobre o que vem a ser cultura. O mais recorrente no

    imaginrio popular aquele que aponta a cultura como um conjunto de atividades

    eruditas, como teatro, cinema, livros, museus e assim por diante. Mas essa uma

    parcela pequena e muito restrita da cultura e sua perpetuao no imaginrio popular

    como conceito de cultura se d pelo uso que determinados segmentos fazem para expor

    suas ideologias e demandas polticas. necessrio entender que para a antropologia

    cultura muito mais: abrange todas as formas de ser, pensar e atuar de uma determinada

    populao ou subgrupo social.

    O primeiro conceito de cultura ligado antropologia foi o proposto pelo

    antroplogo britnico Edward Burnett Taylor na segunda metade do sculo XIX:

    Cultura como esse todo complexo, que compreende conhecimentos, crenas, arte,

    moral, leis, costumes e qualquer outra capacidade e hbito adquirido pelo homem

    enquanto membro da sociedade. Por ser o primeiro pesquisador a fazer da cultura um

    objeto de estudo, Tylor considerado o pai da antropologia e seu conceito de cultura

    serviu de base para todos os posteriores.

    O pensar acerca do outro, do diferente, sempre acompanhou o homem ao longo

    de sua histria. Desde os remotos perodos do paleoltico, grupos rivais teciam

    representaes uns acerca dos outros. Na antiguidade, os povos conquistados por

    Alexandre Magno passaram a ser descritos pelos historiadores gregos, muitos desses

    caracterizados como brbaros ou inferiores. O mesmo pensamento acompanhou os

    romanos, que tinham por brbaros todos os povos que viviam para alm das raias do

    imprio. Ou seja, de certa forma, toda tentativa de descrever o outro acabava por

    desencadear alguma classe de representao depreciativa, em maior ou menor grau. Tais

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    formas de pensamento tambm chegaram aos nossos tempos e muitas vezes subsidiaram

    pensamentos racistas.

    No meio acadmico, as tantas diferenas socioculturais entre os grupos humanos

    dispersos ao redor do mundo levaram os pesquisadores do sculo XIX a propor uma

    classificao dos povos por seu grau de evoluo social. Essa corrente, que recebia o

    nome de evolucionismo social, pregava que a humanidade passou por estgios, onde as

    populaes evoluam das mais primitivas para as mais civilizadas. As sociedades da

    contemporaneidade que viviam em forma tribal eram tidas como as que tinham seu grau

    de evoluo estacionado, ao passo em que a civilizao europeia seria o estgio social

    mais avanado que o homem havia atingido.

    O antroplogo britnico Lewis Henry Morgan, em 1887, aperfeioou e ampliou

    as ideias de um pesquisador menos conhecido, chamado Robertson, que dividia a

    humanidade em trs estgios evolutivos: selvageria, barbrie e civilizao. Este modelo

    de evoluo social deu origem a um pensamento eurocentrista que estabelecia uma clara

    diviso do mundo: de um lado estavam os povos tidos como brbaros, que cultivavam

    hbitos degradantes, e de outro o homem civilizado, representando o aperfeioamento

    da humanidade. Esta diviso em opostos se materializa em discursos de muitas formas:

    brbaros e civilizados, cristos e infiis, animal e humano. Por pano de fundo, sempre o

    ideal civilizatrio, cuja Europa seria o exemplo derradeiro. Nas Amricas, desde os

    tempos coloniais, o europeu canalizou esse imaginrio depreciativo para os indgenas, o

    que muitas vezes serviu de elemento de justificativa para a conquista.

  • Antropologia Sociocultural

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    Contracapa do Volume 7 de Americae, de Theodor De Bry (1592). Indgenas americanos retratados em

    duas das representaes que mais povoou o imaginrio europeu: em postura de idolatria, onde o mbarak

    evidentemente associado aos espectros do inframundo; e, mais abaixo, em prtica antropofgica.

    Acervo da Biblioteca Histrica da Universidade de Salamanca. Reproduo digital autorizada.

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    Foi assim que entre os sculos XVIII e XIX se deu uma acirrada discusso entre

    duas escolas, a francesa e a alem, discusso essa que influenciou significativamente o

    campo da antropologia. De um lado a escola racionalista francesa reivindicava uma

    busca pela civilizao mundial cientfica e progressista, a nica forma da humanidade

    atingir seu mximo estgio intelectual. Em oposio aparece a escola idealista alem,

    que v no ideal de cultura uma forma de defender a tradio nacional em face

    civilizao cosmopolita. Assim estava montado o cenrio de luta intelectual: a escola

    alem apoiada no conceito de Kultur contra a escola francesa alicerada no conceito de

    civilization.

    Da escola francesa decorre um modelo de pesquisa mais voltado para os

    aspectos de organizao social, fornecendo subsdios para a constituio de uma

    posterior antropologia social. J a escola alem, ao se propor investigar como se dava o

    amoldamento das culturas particulares, teceu sua colaborao para a formao de uma

    antropologia cultural.

    Em um dado momento da histria, as duas correntes convergiram para uma

    forma mais unssona de antropologia, diminuindo as divergncias entre a antropologia

    cultural e a antropologia social. Em comum, ambas passaram a se ocupar do estudo da

    cultura humana, mas para tanto era necessrio aperfeioar o conceito de cultura. Na

    tentativa de estabelecer uma reviso histrica do conceito de cultura, Alfred Kroeber e

    Clyde Kluckhohn chegaram a 164 definies de cultura. Hoje temos vrios conceitos

    instrumentais de cultura, mas a antropologia ainda se debate em busca de um conceito

    apropriadamente antropolgico de cultura.

    Em suma, sabemos que cultura se refere ao conjunto de pautas aprendidas e

    transmitidas, sobre as quais toda sociedade est alicerada e fundamenta sua vivncia

    social. A cultura pode ser transmitida de gerao em gerao, quando os mais velhos se

    encarregam de incitar os mais jovens a seguir padres de comportamento, num processo

    que vem desde o nascimento e que na antropologia denominamos endoculturao. A

    cultura tambm pode ser ampliada ou modificada por meio de aspectos incorporados de

    outras sociedades e esse processo de transmisso de pautas culturais de uma sociedade

    para outra recebe o nome de difuso cultural.

    Dessa forma, organizamos todos os conhecimentos herdados de nossos

    ancestrais e adquiridos ao longo de nossa vida. Mas a cultura dinmica em sua

    essncia e em razo disso no se pode esperar que as sociedades humanas permaneam

    inalteradas. Isso garante que a rendeira tradicional utilize mtodos seculares para

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    compor seus bordados, mas que no abra mo da internet para divulgar o artesanato de

    suas comunidades. A identidade de um povo formada por elementos culturais,

    materiais e imateriais, que garantem a coeso social e permitem que o universo dos

    atores sociais se equilibre dentro de bases ideolgicas e representaes acerca do

    passado e do futuro. Os elementos culturais herdados de nossos ancestrais so

    classificados como patrimnio cultural. E na qualidade de patrimnio, alm de

    herdado ser tambm legado s geraes futuras, cabendo a ns, que vivenciamos o

    presente, estabelecer uma correta gesto de nossos bens culturais.

    Toda nossa identidade moldada com base em um substrato cultural. Esta

    cultura pode se manifestar por duas vias: a cultura material e a cultura imaterial. A

    primeira composta de elementos fsicos, palpveis, como objetos e artefatos, cujos

    empregos so arranjados e rearranjados no interior da sociedade. J o patrimnio

    imaterial formado por toda gama de saberes e fazeres moldados no campo do

    simblico, do abstrato e do no palpvel. Nesta ampla categoria estariam includos os

    cantos, a religio, as lendas, as danas e todas as outras manifestaes do intelecto

    humano. Sendo assim, estabelecemos elos contnuos com nosso patrimnio cultural a

    fim de aferir este sentido de mundo. Quando o patrimnio cultural degradado por

    influncias externas e indesejadas, decorre um processo de instabilidade social pela

    perda da memria e pelo no reconhecimento de um passado e presente compartilhados,

    substratos vitais para dotar nosso mundo de sentido.

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    Estatueta de escriba egpcio, exemplo de cultura material acervo do Museu do Louvre em Paris, Frana.

    Semana Santa em Sevilha, Espanha. Exemplo de cultura imaterial.

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    Durante muito tempo se acreditou que as sociedades tradicionais no resistiriam

    ante a ao implacvel da globalizao. Por sociedades tradicionais entendemos

    aquelas comunidades que vivem de economia de pequena escala, mantendo as tradies

    de seus saberes e fazeres, diferentemente das sociedades ocidentais industrializadas.

    Contudo, estes grupos humanos se levantaram para reivindicar o reconhecimento de

    suas diversidades, demandando da sociedade dominante polticas de tolerncia e

    valorizao dos modos tradicionais de vida.

    H uma enorme dificuldade em pensarmos a diferena. O diferente o estranho,

    causa medo e se tende a repelir. Os grupos humanos normalmente possuem uma viso

    de mundo onde sua prpria sociedade tomada como centro, pensando os outros a

    partir de seus prprios valores e modelos. Chamamos etnocentrismo essa tendncia que

    uma sociedade ou etnia tem de achar que suas condutas so as melhores e mais belas,

    devendo assim ser seguidas por todos os outros povos. Em certa medida, todas as

    sociedades do mundo so etnocntricas, seja em maior ou menor grau. Trata-se de um

    pensamento bsico de oposio: de um lado o grupo do eu, que compartilha gostos e

    conceitos; de outro o diferente, o estranho.

    Mas o estranhamento fundamental, pois ao constituir a imagem do outro por

    sua vez estamos facilitando o aparecimento da auto-imagem. Surge a alteridade,

    conceito fundamental na antropologia. Para fugir do etnocentrismo a antropologia faz

    uso do relativismo cultural. Relativizar aceitar e entender o outro como uma

    alternativa vivel, livrando-se dos preconceitos. No h sociedade melhor ou pior, h

    apenas sociedades diferentes, cada qual vivendo de acordo com sua cultura.

    O homem e o ambiente

    O homem s pode existir se for capaz de adequar e transformar a energia

    disponvel no ambiente. Quando um aldeo est plantando hortalias, na verdade est se

    utilizando da energia do ambiente para sua manuteno: o vegetal aproveita a energia

    do sol por meio da fotossntese; o homem, por sua vez, est transformado o vegetal em

    calorias para sobreviver. O fogo, utilizado para aquecer as lareiras das casas, mais um

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

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    exemplo de como os galhos de uma rvore so transformados em outra fonte de energia,

    o calor. So elos de uma cadeia: o sol alimenta o pasto, o pasto alimenta a cabra e a

    cabra alimenta o homem.

    Produo, ento, o resultado da aplicao da tecnologia e do trabalho humano

    nos recursos naturais. Dessa forma, a produo de energia constitui a maneira de viver

    de um povo. Cada sociedade cria um enorme contedo cultural que vai ditar as normas a

    serem respeitadas na satisfao das necessidades mais bsicas. Esta gama de saberes

    populares que moldam a relao homem-ambiente se converte em rico material de

    estudo para as cincias sociais.

    Os quatro modos bsicos de produo so: caa e coleta, agricultura de corte e

    queimada, agricultura de irrigao e pastoreio nmade. com base nestes sistemas

    produtivos que as sociedades que vivem de forma tradicional garantem seu sustento.

    A caa e coleta o modelo mais elementar de produo, onde o homem extrai o

    necessrio para sua subsistncia por meio da caa de animais e coleta de plantas, frutas

    e razes disponveis no entorno. Este tipo de economia s pode manter pequenos grupos,

    de 20 a 30 pessoas. Este modelo foi o primeiro a ser empregado pelo homem em tempos

    pr-histricos, acompanhando a humanidade ao longo de sua existncia. Hoje, poucos

    grupos isolados, como os que vivem em florestas tropicais ou nas savanas africanas,

    empregam este modo econmico.

    A agricultura de corte e queimada um modelo de produo que permanece

    em uso entre muitas comunidades de pequena escala. Neste sistema, a vegetao em

    uma rea a ser destinada para o plantio cortada e em seguida ateado fogo. O objetivo

    limpar a rea para o plantio e o carvo resultante da queima, em um primeiro

    momento, serve de nutriente. Contudo, neste sistema o solo se esgota rapidamente,

    sendo a comunidade obrigada a abandonar as terras cultivadas em um prazo mdio de

    cinco anos. Este sistema depende da participao das famlias e capaz de manter

    comunidades com at cerca de 200 pessoas.

    J a agricultura de irrigao parece ter superado as dificuldades que se

    apresentam no modo de corte e queimada. Ao irrigar as terras o agricultor aumenta seu

    potencial produtivo. Associando a irrigao com um sistema de rotao de culturas, as

    comunidades passaram a usufruir seus territrios de plantio por tempo indeterminado.

    Os plantadores de arroz dos campos da China so um exemplo desse tipo de economia,

    que por l data de milhares de anos. Com uma grande quantidade de excedentes, tem-se

    incio um intenso comrcio e aparece a especializao da mo de obra. Ou seja, se nas

  • Antropologia Sociocultural

    20

    outras comunidades todos os seus membros possuem as mesmas obrigaes, com este

    novo sistema econmico as pessoas passam a se dedicar a atividades especficas:

    surgem os agricultores, os artesos, os comerciantes. As grandes civilizaes, que

    surgiram s margens do Tigre e Eufrates h mais de 5 mil anos, passaram por esse

    processo de especializao da mo de obra.

    O pastoreio nmade normalmente empregado por grupos humanos que vivem

    em regies inspitas, como nos desertos do Saara ou da Monglia. Diante de um clima

    hostil ao homem, essas comunidades aprenderam a sobreviver conduzindo suas cabras e

    camelos de osis em osis, estabelecendo trocas comerciais com outros grupos.

    Diante desses modelos econmicos est a questo familiar mais bsica: os pais

    enfrentando a natureza para dar sustento a seus filhos. A isso denominamos economia

    de status, onde os bens so produzidos e distribudos no por compra e venda, mas por

    fora dos direitos e obrigaes tradicionais. Em suma, um pai ou uma me no

    fornecem uma refeio aos filhos porque estes a compraram, mas sim porque o sustento

    da prole faz parte da obrigao tradicional destes pais.

    Os estudos antropolgicos direcionados para a relao entre homem e ambiente

    atualmente compem o campo de estudo denominado antropologia ecolgica. A

    maneira como o homem se utiliza dos recursos disponveis e os transforma, agregando

    Para a distribuio dos bens produzidos o homem desenvolveu

    trs meios de intercmbio:

    - a reciprocidade, onde a troca se d entre comunidades de laos afetivos, do tipo dar

    e receber, que vivenciamos entre parentes ou aparentados e no h regras de

    quantidade ou tempo do contrafluxo. A reciprocidade implica o intercmbio entre

    pessoas que esto numa posio simtrica, de igualdade. uma troca entre iguais,

    onde ningum est em posio de dominao.

    - o modo redistributivo, que consiste em agrupar todos os bens produzidos em uma

    rea central e distribu-los em parcelas igualmente proporcionais ao trabalho

    empregado. Este processo controlado por uma autoridade central (como o cacique

    ou uma liderana comunitria).

    - o mercado, pessoas sem nenhuma relao de parentesco ou estranhas se renem

    em um lugar especfico para intercambiar artigos. A introduo de uma unidade de

    medida de valores se tornou inevitvel para esse tipo de economia e assim surge o

    dinheiro.

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

    21

    significado cultural aos elementos da natureza, vo constituir o principal foco de estudo

    do antroplogo. Plantas, animais, elementos da natureza, passam a integrar uma srie de

    estruturas simblicas e cosmolgicas a fim de moldar o universo social e conferir

    sentido de vida para os homens e mulheres que vivem de economia tradicional.

    Comunidades de pescadores artesanais, ou ainda sociedades agro-pastoris de

    pequena escala so alguns exemplos de grupos humanos que compem o objeto de

    estudo da antropologia ecolgica. Praticam modos produtivos centrados em

    conhecimentos tradicionais passados de pai para filho ao longo de muitas geraes.

    Alguns desses conhecimentos so milenares.

    Entre os pescadores artesanais da Ilha de Santa Catarina, a vida social obedece a

    uma clara ordem cosmolgica. Os elementos naturais, como mar ou o clima, so

    interpretados de modo a orientar as aes coletivas. Muitas vezes, seres sobrenaturais,

    como as bruxas, so evocados para justificar o insucesso de empreendimentos ou os

    males que assolam a comunidade. Os pescadores artesanais hoje vivem um conflito

    contra os pesqueiros industriais, a quem responsabilizam pela reduo dos estoques

    pesqueiros. Esse problema econmico gerou instabilidade social e tenso, levando os

    mais jovens ao abandono das tradies, dilema que se repete em muitas outras

    comunidades tradicionais Brasil e mundo afora.

    Comunidade de pescadores artesanais em Florianpolis, litoral de Santa Catarina.

  • Antropologia Sociocultural

    22

    Ganadero conduz seu diminuto plantel pelas caadas reales de um pequeno povoado da Espanha

    Num dado momento, se descobriu que as sociedades distribuam de forma

    diferente a organizao do trabalho. Elas foram ento classificadas dentro de dois graus

    distintos de integrao dos indivduos: a solidariedade mecnica e a solidariedade

    orgnica. Na solidariedade mecnica as atividades de subsistncia so desenvolvidas

    sem observar uma rigorosa diviso do trabalho, podendo a mesma tarefa ser

    desenvolvida por membros de categorias sociais distintas. J na solidariedade

    orgnica, a sociedade est formada por unidades dspares, ou grupos especializados,

    envolvidos de forma estrita em suas funes.

    O homem atravs de seu passado

    O estudo do passado humano, dentro da antropologia, feito pelo campo da

    arqueologia. A arqueologia hoje uma cincia mais e mais conhecida do pblico em

    geral, que se deixa fascinar pelas descobertas dos especialistas. Se antes muitos

    achavam que o arquelogo era aquele pesquisador que desenterrava dinossauros uma

    confuso recorrente com o campo da paleontologia atualmente mais pessoas sabem

    que a arqueologia se dedica ao estudo do passado humano. Na verdade, esta a

    derradeira misso da arqueologia, facilmente compreendida a partir da origem grega da

    palavra: arkaios (antigo) + logos (estudo).

    O arquelogo Peter Drewett, em sua obra Field Archaeology an introduction

    ressalta que para o pblico em geral a arqueologia envolveria trs elementos cruciais:

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

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    passado, restos materiais e escavao. Talvez esta figurao no seja to equivocada,

    mas o problema central reside em definir exatamente o que passado?. Aplicaramos

    a duas variveis para tentar entender melhor o conceito de passado: o passado

    distante e o passado recente. Qual destas modalidades seria o objeto da arqueologia?

    Ambas. Existem, por exemplo, campos da arqueologia que se dedicam a estudar a

    sociedade contempornea (como a anlise de hbitos de consumo) por meio de

    observao e classificao do lixo que produzimos. Dessa forma, a definio mais

    apropriada a arqueologia como o estudo do passado humano atravs dos restos

    materiais; onde o conceito de passado assume uma dimenso bem mais flexvel,

    podendo ser um passado remoto ou recente.

    Mas, para fazer arqueologia, independentemente da escala de tempo trabalhada,

    o mais importante a capacidade do arquelogo em propor interpretaes sobre o estilo

    de vida das populaes do passado. A partir das evidncias materiais o arquelogo

    organiza informaes que do suporte para criar uma srie de interpretaes de como

    algo poderia ter sido ou ocorrido no passado.

    Arquelogo examinando em campo um fragmento de cermica Tupiguarani.

  • Antropologia Sociocultural

    24

    A Arqueologia teve sua origem nos gabinetes de curiosidades e nas colees

    particulares. Aristocratas, na nsia de incrementar suas colees privadas com objetos

    exticos, financiavam expedies das mais diversas naturezas. Neste perodo, as

    escavaes se davam sem mtodo ou rigor cientfico, acarretando a mutilao de

    importantes stios arqueolgicos. Somente quando esta condio de amadorismo foi

    superada que a humanidade passou a entender melhor sua origem, reconhecendo a

    importncia de estudar os povos do passado. A arqueologia, assim, se constituiu como

    disciplina cientfica, passando a incorporar tcnicas e mtodos que foram

    gradativamente aprimorados.

    Hoje, a arqueologia conta com a colaborao de diversas outras reas do

    conhecimento para interpretar as evidncias do passado. Com sua essncia

    multidisciplinar, busca suporte nos campos da fsica, da qumica, da geografia, da

    geologia, da biologia, da medicina, entre outros. As dataes so o resultado da anlise

    de processos fsico-qumicos. Com o avano da medicina, muitas tcnicas de

    diagnstico so empregadas tambm em evidncias do passado, como o uso de

    tomografia computadorizada para o estudo de mmias do Egito. Pesquisando ossadas

    humanas provenientes de stios arqueolgicos, a biologia nos ajuda a entender as

    doenas que acometeram os indivduos do passado.

    O estudo arqueolgico tradicional est embasado na escavao. Um stio

    arqueolgico o local onde ocorrem evidncias materiais da presena humana no

    passado, como uma cidade antiga ou um assentamento de caadores e coletores. O stio

    a ser escavado recoberto por uma malha quadriculada, com quadrculas de 1x1m ou

    2x2m. Cada quadrcula escavada individualmente obedecendo a uma progresso

    artificial de dez em dez centmetros. Cada dez centmetros de terra removida

    corresponde a um nvel arqueolgico, e cada nvel deve ser exaustivamente registrado

    com fichas de campo, fotografias e todo recurso adicional possvel. Por fim, o material

    removido e levado ao laboratrio, onde ser minuciosamente analisado.

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

    25

    Acadmicos da UFGD em aula prtica de arqueologia.

    Dentre os exames da arqueologia, o mais fundamental a datao de material

    arqueolgico. O mtodo mais conhecido o de datao por carbono quatorze. O

    carbono est presente em toda matria viva, mas quando um ser morre, os tomos de

    carbono quatorze comeam a se desintegrar numa velocidade de 15,3 tomos por

    minuto e por grama. Dentro dessa escala de mensurao, o processo de datao por

    carbono 14 s eficaz at 50 mil anos e para datar evidncias mais antigas

    necessrio recorrer a outros mtodos. O mtodo do potcio-argnio uma alternativa e

    o princpio bem similar: o potssio 40 est presente em toda matria viva, mas quando

    da morte de um ser, o potssio 40 vai degenerando em argnio 40 numa razo de 50% a

    cada 1,3 bilhes de anos. Com isso chegamos a datas muito recuadas, como a da era dos

    dinossauros.

    Homens e dinossauros

    H uma confuso recorrente acerca do homem pr-histrico e dos dinossauros,

    talvez porque alguns filmes mostravam homens dividindo espao com os grandes e

    ferozes rpteis. Contudo, homens e dinossauros nunca coexistiram. A ltima era dos

    grandes rpteis, o Jurssico, terminou a aproximadamente 230 milhes de anos e a

    evidncia mais antiga de um pr-homindeo data de 5 milhes de anos. Ou seja, mais

    de 225 milhes de anos separam os homens dos ltimos dinossauros.

  • Antropologia Sociocultural

    26

    No Brasil, a arqueologia praticada por profissionais qualificados e muito bem

    avaliados no cenrio mundial. O Brasil tem sido palco de importantes descobertas

    arqueolgicas que alteraram completamente a percepo que se tinha da pr-histria no

    pas. A primeira grande pergunta que paira nos anais da cincia quando o homem

    chegou Amrica? Sabemos que o homem surgiu na frica e aps vrios processos

    evolutivos a espcie chamada Homo erectus migrou para a Europa e sia. Por fim,

    chegamos nossa espcie, Homo sapies, que se tornou hegemnica. O Homo sapiens

    surgiu por volta de 500 mil anos e h 120 mil anos teve origem a subespcie qual

    pertencemos na atualidade, o Homo sapiens sapiens.

    Durante a ltima glaciao, hordas de caadores teriam cruzado o Estreito de

    Bering seguindo o deslocamento de animais da Megafauna. At ento se pensava ser

    esta a nica forma de acesso do homem ao continente americano e que esta passagem

    teria ocorrido h cerca de doze mil anos, modelo proposto pela arqueloga norte-

    americana Betty Meggers na dcada de 1950. Contudo, novos achados foraram uma

    reviso dos modelos estabelecidos. Em Monte Verde, no Chile, dataes atestam a

    presena do homem h pelo menos 15 mil anos. No Piau, a equipe do Museu do

    Homem Americano obteve uma data de 30 mil anos para a ocupao humana na regio

    da Serra da Capivara. Dessa forma, como poderia o homem estar na Amrica do Sul

    antes do perodo da formao da ponte de gelo no mar da Berngia?

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

    27

    Estreito de Bering

  • Antropologia Sociocultural

    28

    Pintura pr-histrica do parque da Serra da Capivara, So Raimundo Nonato, estado do Piau.

    Mas o enigma tambm se estendia para o campo da antropologia biolgica. A

    migrao que cruzou o Estreito de Bering h 12 mil anos teria sido de matriz

    monglica, dando origem a todos os povos indgenas conhecidos no continente

    americano. Contudo, em Lagoa Santa, estado de Minas Gerais, arquelogos

    descobriram a ossada de uma mulher com cerca de 11 mil anos com caractersticas

    negrides, muito similar aos atuais aborgenes australianos. Nos Estados Unidos, no

    Lago Kennewick em Washington, cientistas descobriram os restos de um esqueleto de

    caractersticas indo-europeias com idade de nove mil anos. Se no passaram por Bering

    h 12 mil anos, como teriam ento chegado Amrica?

    Uma das hipteses seria a de que o homem teria aprendido a navegar muito

    antes do que se imagina. Mas a ideia no to recente. Na dcada de 1950, o

    escandinavo Torben Heyerdahl montou uma expedio chamada Kon-tiki, cujo objetivo

    seria provar que o homem poderia ter navegado Amrica pelo Pacfico. Para tanto,

    Heyerdahl montou uma embarcao rudimentar de junco, estabelecendo uma rota pelas

    ilhas do Pacfico. O relativo xito da expedio Kon-tiki e os achados de 50 mil anos na

    Austrlia vieram reforar a hiptese de navegao transocenica na pr-histria.

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

    29

    Diante de ocupaes to antigas no Brasil, importante saber que o clima

    daquela poca era diferente do que temos hoje. O pleistoceno corresponde, em nosso

    caso, ao ltimo perodo da glaciao, que vai de 18 a 12 mil anos atrs. A partir de 12

    mil anos se processa o fim da glaciao e tem incio um perodo ps-glacial chamado

    holoceno. Durante esse perodo, entre pleistoceno e holoceno, o clima ainda era mais

    seco e frio que o atual, o que influenciava na paisagem. Predominavam as grandes

    savanas, o pantanal ainda no existia e a floresta amaznica era uma grande savana. A

    isso chamamos paleoclima. A estabilizao climtica, chegando s caractersticas de

    clima e vegetao que temos hoje, s vai acontecer a partir do timo climtico, perodo

    entre 8 e 6 mil anos atrs. Com o timo climtico aumenta a umidade e a as reas de

    florestas se expandem.

    Se a presena do homem no Brasil data de 30 mil anos, no Centro-Oeste os

    primeiros vestgios humanos esto situados por volta de 12 mil anos. Em ambos os

    casos, como vimos, estamos falando de um clima e vegetao bem diferentes. Ainda

    perambulavam pelo nosso continente espcies de megafauna pleistocnica, como o

    tigre dente-de-sabre e a preguia gigante. Ou seja, incontestvel que homem e

    espcies da megafauna pleistocnica compartilharam espaos geogrficos. Contudo,

    ainda difcil afirmar, pelo menos no Centro-Oeste, se os animais da megafauna teriam

    sido caados pelo homem, pois at o momento no foram encontrados vestgios dessa

    atividade como ossos de animais pleistocnicos com marcas de corte feitas pelo

    homem.

    Grfico ilustrando as pocas de variao climtica e o incio da ocupao humana em Mato Grosso do Sul.

    Em Mato Grosso do Sul, as dataes radiocarbnicas revelam distintos perodos

    de ocupao humana. A mais antiga corresponde a grupos de caadores nmades, mais

    adaptados ao ambiente de savana, que neste estado foram datados em at 11 mil anos. O

  • Antropologia Sociocultural

    30

    arquelogo Pedro Igncio Schmitz, que desenvolveu importantes pesquisas no Mato

    Grosso do Sul, coordenando a equipe do Instituto Anchietano de Pesquisa, vai

    classificar este perodo de ocupao como Tradio Itaparica. As tradies

    arqueolgicas so chaves de classificao que agrupam os achados por semelhanas

    tecnolgicas e estilsticas.

    Com o timo climtico, os ambientes em Mato Grosso do Sul adquiriram uma

    feio paisagstica e ecolgica prxima da que hoje possuem. Os arquelogos Emilia

    Kashimoto e Gilson Rodolfo Martins, em pesquisas desenvolvidas no Rio Paran, ao

    longo de seu curso pelo estado de Mato Grosso do Sul, estabelecem a data de 6 mil AP

    (antes do presente) como o perodo mais antigo de ocupao das suas margens. Este

    novo momento de ocupao, em outras partes do Centro-Oeste, vai ser classificado

    como Tradio Serranpolis.

    Artefatos pr-histricos encontrados em stio arqueolgico de Mato Grosso do Sul.

    Quanto s ocupaes por grupos ceramistas, o Mato Grosso do Sul vai

    apresentar assentamentos das tradies Una, Aratu-Sapuca e Tupiguarani, alm de

    ocorrncia de stios cermicos que no se enquadram em nenhuma destas tradies

    elencadas e que necessitam de mais pesquisas para sua correta classificao. A Tradio

    Una possui datas para o Centro-Oeste que recuam 4 mil anos e se caracteriza pela

    produo de recipientes de pequena dimenso e sem decorao. Os ceramistas da

    Tradio Una, por vezes, ocuparam as mesmas grutas anteriormente utilizadas pelos

    grupos pr-cermicos de caadores e coletores.

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

    31

    A Tradio Aratu-Sapuca tambm ocorre com certa frequncia no Mato Grosso

    do Sul. So ocupaes litocermicas, via-de-regra. Alguns arquelogos, como Jorge

    Eremites de Oliveira, descrevem os indivduos da Tradio Aratu-Sapuca como os

    ceramistas das grandes aldeias anelares, montadas reas abertas prximas s margens de

    rios. A cermica Aratu-Sapuca possui forma e dimenso variadas, predominando as

    vasilhas periformes, esfricas ou elipsides grandes, que podem chegar a comportar

    centenas de litros.

    Outro grupo ceramista de grande disperso pelo territrio sul-mato-grossense o

    Tupiguarani. A tradio arqueolgica Tupiguarani caracteriza-se pela produo de

    recipientes de grande dimenso com decoraes que vo de pintada plstica

    (corrugada). Estima-se que o incio da ocupao do territrio que hoje corresponde ao

    Mato Grosso do Sul por ceramistas Tupiguarani tenha ocorrido h 1.300 A.P.

    Fragmento de cermica pintada Tupiguarani proveniente do stio arqueolgico de Porto Caiu, Navira, MS.

    Junto a esse contexto arqueolgico aparece tambm uma diversificada arte

    rupestre pr-histrica. Por ate rupestre podemos entender as representaes

    iconogrficas executadas sobre suporte rochoso por meio de diferentes tcnicas de

    elaborao. So divididas em duas categorias: as pinturas e as gravuras rupestres. Em

    Mato Grosso do Sul, maior rea de ocorrncia de grafismos rupestres est na ampla

    faixa de transio entre as terras altas do complexo serrano sul-mato-grossense e a

  • Antropologia Sociocultural

    32

    plancie pantaneira. Diante do atual estado de conhecimento, sabe-se da existncia de

    stios de rupestre nos seguintes municpios: Aquidauana, Corumb, Ladrio, Coxim,

    Alcinpolis, Costa Rica, Sonora, Chapado do Sul, Pedro Gomes, Paranaba, Rio

    Negro, Rio Verde, Corguinho, Jaraguari, Porto Murtinho, Maracaju, Santa Rita do Rio

    Pardo, Batagua, Antnio Joo e Jardim. Contudo, o nmero de localidades em Mato

    Grosso do Sul onde se registram stios de arte rupestre tende acrescer com o aumento

    das pesquisas arqueolgicas.

    Pintura rupestre, municpio de Rio Negro, estado de Mato Grosso do Sul.

    A arte rupestre o resultado da expresso simblica do homem pr-histrico.

    Simbolizar uma condio humana. -nos inerente a necessidade de materializar e dar

    feio ao abstrato, representando tudo o que se move na esfera do absorto campo das

    ideias. Em suma, a arte rupestre pode ser entendida como uma expresso cosmolgica

    por intermdio da iconografia. Contudo, o desconhecimento dos cdigos utilizados nos

    impede de traar uma precisa interpretao.

    O primeiro passo no estudo da arte rupestre o registro sistemtico dos stios

    arqueolgicos desta natureza, estabelecendo a anlise e ordenamento dos elementos

    representados por categorias. Este ordenamento leva em considerao determinadas

    variveis, como estilo, tcnica de elaborao e de representao. Por fim, os elementos

    identificados so dispostos em tabelas tipolgicas de acordo com a similaridade dos

    motivos. Isso permite ao pesquisador identificar as regras que compem o cdigo pela

    repetio ordenada de motivos.

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

    33

    Equvocos sobre o homem pr-histrico

    Alguns equvocos cientficos h muito foram superados pela cincia, mas por algum motivo continuam sendo repassados nas bancadas escolares, perpetuando-se. Aqui

    destacamos alguns:

    1. O homem andava de quatro o homem nunca andou de quatro. J nos primeiros pr-homindeos que viviam h quatro milhes de anos a cincia constatou

    caractersticas de bipedismo. Antes mesmo da formao do gnero Homo (Homo

    habilis, por exemplo), nossos ancestrais j eram andarilhos das savanas.

    2. A diferena entre o homem e os animais que o homem raciocina e o animal

    no outro engano, pois as pesquisas modernas provaram que os animais so capazes de raciocinar e de se organizar socialmente. Algumas espcies inclusive tem habilidade de expressar cdigos de forma incipiente, como os gorilas que aprendem

    alguns cdigos da linguagem dos sinais. Uma das grandes diferenas entre os homens

    e os animais que nossa espcie dotada de universalidade semntica, ou seja, a

    habilidade de transmitir mensagens por meio de cdigos complexos. Outra capacidade do homem a de acumular conhecimento e transmiti-lo para as novas geraes.

    3. As primeiras espcies de homindeos se alimentavam de frutos e razes trata-se de uma viso muito romntica, mas a verdade que alguns dos primeiros homindeos se alimentavam principalmente de carnia. Como eram animais dbeis

    ante a natureza indivduos com cerca de 1,30m de altura, sem garras ou presas tinham de esperar que os predadores maiores se alimentassem para poder comer o que

    restava nas carcaas.

  • Antropologia Sociocultural

    34

    III ORIGEM DOS MTODOS DA ANTROPOLOGIA CULTURAL

    Sabemos que todas as tentativas de definir o ser humano ao longo da histria

    formaram parte de um pensar antropologicamente. Aristteles, ao tentar explicar a vida

    humana, props que nossa espcie seria governada por trs almas: uma vegetativa e

    comum a todos os seres vivos (vegetais e animais), outra sensitiva e presente tambm

    nos animais, e uma terceira, racional, que seria exclusiva do homem. O sopro de vida do

    homem, ou anima viria da combinao destas trs almas.

    O homem seguiu seu curso ao longo da histria tentando explicar a razo de sua

    existncia e a origem das diferenas entre os povos. Como vimos antes, foi no sculo

    XIX que surgiram as primeiras teorias sobre o porqu as sociedades so diferentes,

    baseando-se num modelo de evoluo social. Havia muito material acumulado em

    gabinetes e arquivos, como relatos de viagens, relatrios comerciais e cartas de

    missionrios. Os primeiros estudiosos da antropologia se baseavam nesses textos para

    elaborar seus tratados sobre povos que, muitas vezes, sequer tinham conhecido.

    Foi no incio do sculo XX que nasceu uma crtica a esse modelo de

    antropologia, reivindicando o trabalho de campo como forma mais apropriada de

    pesquisa acerca das sociedades tradicionais. O primeiro representante dessa corrente foi

    o antroplogo polons radicado na Inglaterra, Bronislaw Malinowski. Em sua pesquisa

    entre os nativos das ilhas Trobiand (Nova Guin), Malinowski desenvolveu o mtodo

    que viria a ser o instrumento por excelncia da antropologia: a etnografia com

    observao participante. Sua publicao titulada Argonautas do Pacfico Ocidental

    tornou-se um cone para a antropologia e sua influncia sentida at hoje no meio

    antropolgico. Essa nova escola antropolgica recebeu o nome de Funcionalismo, pois

    sua meta era verificar a funo das instituies para a manuteno da totalidade cultural

    nas sociedades.

    As ideias de Malinowski abriram caminho para o amadurecimento rpido do

    mtodo etnogrfico. Dois de seus pupilos, Radcliffe Brown e Evans-Pritchard

    incorporam novas ideias ao estudo antropolgico e suas reflexes so classificadas pela

    antropologia como uma nova escola, intermediria entre o funcionalismo de

    Malinowski e o estruturalismo de Levi-Strauss e por isso mesmo denominada

    funcional-estruturalismo. Para eles, o antroplogo deveria se dedicar descrio das

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

    35

    variveis culturais, dando especial ateno ao papel destas variveis para a manuteno

    da estrutura social. Por sua vez, a estrutura social seria a forma como os grupos esto

    organizados e relacionados entre si na sociedade (sociedade como corpo funcional). O

    homem no seria s um organismo vivo, mas uma varivel, uma posio na estrutura

    social. No seu trabalho com os Nuer, Evans-Pritchard buscou demonstrar como uma

    estrutura social, que contm em sua prpria constituio a tenso entre grupos por

    oposio segmentar, acaba por garantir a manuteno do sistema como um todo.

    Tambm na mesma poca, ou seja, ainda na primeira metade do sculo XX, um

    antroplogo norte-americano, chamado Franz Boas, prope a substituio do termo

    raa pelo de etnia e funda uma escola que ficou conhecida como Particularismo

    Histrico ou Culturalismo Norte-americano. Juntamente com outros antroplogos de

    seu tempo, proclamou que a classificao dos grupos humanos por raa no s seria

    falsa, carente de base cientfica, mas tambm foi politicamente motivada, pois dava

    margem a aes racistas. O mtodo que props Boas era essencialmente comparativo,

    pois pela comparao se destacam os padres culturais. Tambm estabelece relaes

    entre cultura e personalidade, linha que veio a ser desenvolvida posteriormente por suas

    alunas, Ruth Benedict e Margaret Mead.

    Entre 1935 e 1938, o antroplogo belga radicado na Frana, Claude Lvi-Strauss

    vem para o Brasil para dar aulas na recm-criada Universidade de So Paulo (USP). Na

    ocasio, empreendeu estudos etnogrficos entre os Bororo e os Nambiquara e o material

    serviu para dar sustentao a sua proposta metodolgica, o Estruturalismo. Tomando

    conceitos emprestados da lingustica, Lvi-Strauss estabelece uma nova forma de

    anlise das sociedades, de carter sincrnico e que objetivava evidenciar as estruturas

    ocultas que operam em pares de oposio. Em sua obra fala de um pensamento

    selvagem, que longe de ter um carter evolucionista, expunha uma forma de pensar

    natural que sempre atuou nas sociedades humanas. Esta forma de pensar seria do tipo

    bricolagem, aonde as pessoas, sem um plano ou roteiro, vo incorporando retalhos e

    fragmentos de outras produes. Vai ser tambm com Levi-Strauss que o estudo do

    parentesco, iniciado por Malinowski, ganha profundidade. Para o estruturalista, os

    sistemas de parentesco tinham a funo de regular o intercmbio de mulheres entre os

    grupos, mecanismo pelo qual se asseguravam as alianas.

    Na dcada de 1960 a antropologia veio receber outra grande contribuio

    metodolgica com os trabalhos de Clifford Geertz, pesquisador norte-americano que

    estudou as brigas de galo em Bali. Tambm interessado na contribuio da lingustica e

  • Antropologia Sociocultural

    36

    da literatura, Geertz vai estabelecer a Hermenutica como mtodo de anlise

    antropolgica, modelo este que tambm ficou conhecido como Antropologia

    Interpretativa. O princpio do mtodo de Geertz seria estabelecer uma descrio densa

    dos fenmenos estudados, onde no trabalho de campo o antroplogo analisa as

    dimenses simblicas da ao social desde mltiplas ticas e constri suas

    interpretaes. Sendo assim, o homem encontra o sentido de sua vida nos padres

    culturais, que seriam amontoados ordenados de smbolos. Nas palavras de Geertz, o

    homem um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu e a cultura,

    por sua vez, seria o mecanismo que d forma a estas teias. Os indivduos sentem,

    percebem, raciocinam, julgam e agem sob a direo destes smbolos. Cabe ao

    antroplogo compreender estes meios semiticos (ou seja, fenmenos culturais como

    sistemas de smbolos) atravs dos quais as pessoas se definem em sua cultura. Na

    antropologia interpretativa se prope analogias da vida social: vida como jogo, vida

    como drama, vida como texto. A vida como drama no uma farsa, mas sim uma

    representao da hierarquia, um teatro do status. Uma pessoa tida como representante

    de um tipo genrico e no como criatura nica com destino especfico e sendo assim, o

    que importa o drama e no o ator social. Para Geertz, a anlise da vida social no deve

    ser elaborada como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia

    interpretativa em busca de significados.

    Nos dias atuais vivemos uma fase de reflexo. Os antigos conceitos da cincia

    no foram to eficazes quanto se esperava na tarefa de resolver os problemas do mundo.

    Nasce assim um movimento ps-moderno que tambm influencia a prtica

    antropolgica. A formalidade dos mtodos clssicos colocada em segundo plano e

    nasce um modelo de etnografia polifnica. O texto etnogrfico passa a ser questionado,

    destacando que muitas das monografias clssicas teriam sido elaboradas dentro de uma

    autoridade etnogrfica (mais detalhes no Captulo V). Um dos principais crticos ao

    formato do texto etnogrfico o norte-americano James Clifford. O texto etnogrfico

    passa a ser tido como uma representao da realidade, que assume mltiplos sentidos

    (cultura como processo polissmico) tanto no discurso dos nativos como no do

    antroplogo. O caminho seria conceder voz a todos os atores do cenrio etnogrfico,

    deixando suas narrativas transparecer sobremaneira no texto etnogrfico (composio

    polifnica).

    No Brasil, um dos grandes expoentes da antropologia foi Roberto Cardoso de

    Oliveira. Em sua publicao O Trabalho do Antroplogo, Cardoso de Oliveira

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

    37

    retratar que existe um processo de elaborao do quadro etnogrfico, que transita entre

    o ver, o ouvir e o escrever, faculdades treinadas que o antroplogo aplica em campo.

    Explicaes fornecidas pelos prprios membros da sociedade estudada (o modelo

    nativo), passveis de levantamento pela entrevista, seriam a matria prima para o

    entendimento antropolgico. Mas para tanto, o pesquisador deve estabelecer uma

    relao dialgica. Ou seja, na entrevista, sem se ater a roteiros ou perguntas fixas, o

    antroplogo deve primar por um dilogo entre iguais, sem receio de estar contaminando

    o discurso do nativo. Mesmo porque, como dizia o prprio Cardoso de Oliveira,

    acreditar ser possvel a neutralidade idealizada pelos defensores da objetividade

    absoluta apenas viver em doce iluso.

    Raa ou Etnia?

    A antropologia, entre os sculos XVII e XX, usou o conceito de raas humanas para classificar grupos sociais por meio de mtodos genticos. Essa concepo dava margem a teorias racistas que promoviam excluso

    social e violncia.

    O conceito de raas humanas deixou de ser utilizado, ficando restrito a aes polticas para reivindicao de igualdade racial. Na legislao se fala em preconceito de raa, como a lei n 12.288 , de 20 de julho de 2010, que instituiu, no Brasil, o Estatuto da Igualdade Racial. Ou seja, o termo raa permanece em uso como um dispositivo legal, mas a

    antropologia passou a adotar o termo etnias para se referir s

    diversidades.

    No Brasil, em 2003, foi sancionada a lei 10.639 que estabelece a incluso de

    contedos de histria da frica e da cultura afro-brasileira no currculo

    escolar. Em 2011 a lei foi modificada incluindo tambm contedos acerca

    das culturas indgenas brasileiras.

  • Antropologia Sociocultural

    38

    IV CATEGORIAS ANALTICAS E CONCEITOS INSTRUMENTAIS EM

    ANTROPOLOGIA

    Existem categorias e conceitos que so de uso corrente na antropologia,

    configurando sua linguagem tcnica. O domnio deste vocabulrio essencial para a

    compreenso dos textos acadmicos e dos escritos etnogrficos.

    Grupos tnicos o conceito mais difundido na antropologia para grupo tnico o de

    Fredrik Barth. Segundo o autor, um grupo tnico definido por algumas semelhanas

    entre os seus membros (como crenas, valores, hbitos, normas, substrato histrico

    comum) e por diferenas com outros (lngua, religio, histria, geografia, territrio,

    etc.). Todos estes aspectos so referenciais simblicos que esto mais na mente das

    pessoas do que na realidade objetiva. A origem do termo Etnia vem do mundo antigo.

    Na Grcia antiga o thnos era um conceito que definia um grupo de pessoas com

    caractersticas biolgicas e culturais em comum, vivendo e atuando em conjunto. Este

    thnos representaria o outro, o estrangeiro, o tnico. Em contraposio ao

    thnos, existia o conceito de gnos, isto o ns.

    Esses grupos compartilham uma etnicidade, que basicamente se refere a um sentimento

    coletivo de identidade. Implica identificar-se, afirmar-se como grupo tnico, sentir-se

    parte dele, abarcando tambm um exerccio de incluso e excluso. Essa etnicidade a

    expresso de um ethos, o modo de ser coletivo que particular e especfico de um

    determinado grupo. Traos diacrticos so exibidos a fim de evidenciar a identidade

    tnica, mas esses traos no so necessariamente estticos, podendo sofrer algumas

    transformaes ao longo da histria de um grupo humano, o que implica uma

    negociao constante da identidade social.

    Na relao com os outros, os grupos humanos estabelecem fronteiras, sejam estas

    tnicas ou culturais. As fronteiras decorrem de um processo de constante gerenciamento

    e renovao do universo cultural, que tem que levar em considerao a relao de um

    grupo com outro, sendo a funo principal das fronteiras garantir a autonomia da

    vivncia social. As fronteiras, na perspectiva cultural, no se limitam s divises

    geofsicas, mas englobam as divises sociais. Contornos simblicos so comumente

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

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    delineados a fim de consolidar um repertrio que o ator social acessa para dar sentido ao

    mundo em que vive. Este mesmo contorno simblico vai assumir funo de marco

    fronteirio, vindo de encontro com as regras estabelecidas para o contato intertnico,

    regras essas que, segundo Barth, vo garantir a persistncia das diferenas culturais.

    O territrio um elemento material fundamental para que os grupos humanos

    mantenham sua vivncia social. A relao de um povo com seu territrio vai gerar uma

    territorialidade, que engloba vrios processos de identificao grupal com o territrio

    no qual este grupo est assentado. A territorialidade implica a construo de categorias

    mentais para atribuir valores simblicos ao territrio. O resultado que a cultura

    depende da relao entre o indivduo com sua sociedade e com o seu territrio.

    Representaes sociais - so figuraes mentais criadas com o intuito de interpretar o

    universo circundante. Porm, este processo de interpretao se d com base nos

    conceitos e pr-conceitos de cada grupo, e no propriamente a partir de uma pretensa

    realidade.

    Cosmologia: conjunto de modelos explicativos que as sociedades acessam para

    interpretar o mundo que as cerca. Atravs da cosmologia se busca explicar a vida, a

    morte, as contradies humanas e para isso se faz uso de religio, magia, mitos, cincia

    e outros mecanismos proveniente do universo imaterial. A cosmologia se manifesta

    atravs de uma srie de contornos simblicos que compem um repertrio elaborado

    para conferir um sentido de mundo.

    Os rituais de iniciao e de passagem so a figurao simblica de uma transformao

    de personalidade. Estes rituais tm por funo materializar a passagem de um indivduo

    para outro estado. Apresentam relao com a morte e ressurreio (de um novo

    indivduo). Terminado o ritual, o iniciado assume uma nova identidade.

    Mitos corpo terico que se expressa na forma de narrativas carregadas de conceitos

    ticos e morais. Na maior parte dos casos so narrativas de fundo religioso. Podem estar

    relacionadas com a origem do homem e da vida. Mas tambm podem ser uma forma de

  • Antropologia Sociocultural

    40

    explicar, pelas vias do sobrenatural, eventos que no so plenamente compreendidos

    pelos membros de uma sociedade.

    Ritos conjunto de procedimentos que tm por finalidade materializar o mito ou o

    sagrado. a repetio - ou a evocao - de eventos mitolgicos por meio de uma

    liturgia. Um exemplo seria o rito catlico do ofertar (hstia) para rememorar o mito de

    que Jesus morreu na cruz pela humanidade.

    O nosso mundo ocidental cristo divide-se entre o sagrado e o profano. O sagrado seria

    tudo aquilo que est ligado a um estado emocional especial conhecido como

    experincia religiosa. Essa experincia pode ser identificada por uma sensao de

    assombro e terror, de se estar diante de algo extraordinrio, misterioso, divino. Por sua

    vez, o profano define os limites do mundo ordinrio, separando tudo aquilo que no

    est conectado com o sagrado.

    O animismo consiste da crena de que para todo ser material, tangvel, visvel, existe

    um ser imaterial e invisvel denominado alma (do latim anima). As crenas animistas,

    ou antinaturalistas, atribuem uma essncia espiritual a todos os seres vivos. Assim

    sendo, tudo aquilo que desde o ponto de vista ocidental definimos como mundo material

    paradoxalmente influenciado por uma legio de espritos que interagem com os vivos.

    Se em nossa sociedade a alma um conceito exclusivamente humano, em outras os

    animais tambm so dotados de esprito. Em sua etnografia sobre os Kaiow, o

    antroplogo sul-mato-grossense Levi Marques Pereira registrou que certos atributos que

    no pensamento ocidental so exclusivamente humanos, como capacidade de

    comunicao, intencionalidade, desejo e afetividade, no pensamento do indgena so

    compartilhados com uma srie de seres no-humanos, com os quais a sociedade humana

    necessariamente interage e dos quais depende para desenvolver sua vida social.

    Mas a crena em poderes sobrenaturais nem sempre est ligada ao mundo das almas. Na

    viso de muitas sociedades humanas, alguns seres ou objetos so dotados de poderes

    mgicos ou sobrenaturais, mas que em sua origem no guarda relao com a alma. A

    isso denominamos animatismo. Grupos nativos da melansia chamavam este poder

    animatista de mana. Uma lana ou espada que se torna mtica por matar muitos

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

    41

    inimigos, ou ainda um trevo de quatro folhas, seriam exemplos de objetos portadores de

    mana.

    Morfologia social: maneira como uma sociedade est estruturada. O estudo de sua

    estrutura permite perceber como as unidades esto interligadas ou combinadas, de forma

    que a alterao em uma das variveis influencia todo o conjunto. A estrutura social a

    forma de organizao e de relao entre as suas partes (grupos de parentes, indivduos,

    cls, comunidades). A estrutura social uma rede estvel de relaes entre grupos

    sociais com diferentes tipos de acesso aos recursos.

    Classe social - Grupo de pessoas que se relaciona de maneira similar com os

    mecanismos de controle das sociedades estatais e que dispe de cotas de poder ou

    carncia de poder. So similares no que diz respeito distribuio da riqueza, dos

    privilgios e do acesso aos recursos e tecnologia. A classe deve ter conscincia de sua

    prpria identidade para se organizar socialmente e isso requer uma parcela de

    participao social. As classes s existem quando pessoas com formas e quantidades

    similares de poder social se organizam em associaes coletivas, como partidos

    polticos e sindicatos. A concentrao de poder nas mos de certos grupos e a carncia

    de poder de outros gera tenso social. O poder, nesse caso, o controle sobre a renda e

    a natureza. Nossa sociedade depende da natureza para gerar energia (combustvel,

    hidroeltricas, etc.) e os que dominam estes setores detm poder.

    Para Marx e Engels, pensadores cujas ideias deram origem escola marxista, a

    industrializao gerou um sistema de classes, no qual a burguesia e a classe operria

    (chamada pelos marxistas de proletariado) seriam as mais importantes. A burguesia

    controlaria a escola, os meios de comunicao e outras instituies, ao passo em que os

    proletrios s teriam o controle de sua fora de trabalho, oferecida em troca de um

    salrio. Segundo Marx, o motor da Histria seria o conflito entre essas duas classes.

  • Antropologia Sociocultural

    42

    A partir do momento em que grupos ou classes de pessoas passaram a se organizar a

    fim de fazer valer suas reivindicaes, seja de reconhecimento de sua diversidade ou de

    acesso a bens ou ao poder, nascem os movimentos sociais.

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

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    V A PESQUISA ANTROPOLGICA

    Entre o inefvel, o inescrutvel e o ininteligvel

    Em minha experincia enquanto docente percebi que uma das maiores

    dificuldades dos alunos saber como equalizar as pesquisas por eles desenvolvidas com

    as orientaes terico-metodolgicas propostas pelas diferentes escolas antropolgicas.

    O erro mais comum confundir procedimentos metodolgicos com corpo metodolgico

    terico. Este erro recorrente faz com que a observao participante se converta em

    uma bengala metodolgica e mais: em uma tbua de salvao.

    Esta dificuldade conceitual parece ser o principal obstculo a ser transposto na

    formao dos profissionais do campo da antropologia. De fato, lembro-me de meus

    tempos de estudante e das inmeras dvidas que surgiam com o progresso das aulas,

    que pela lgica seguiam um percurso partindo da teoria clssica contempornea. Do

    exerccio acadmico decorre uma prtica monocrdia: os textos dos grandes tericos e

    pensadores so lidos e escrutinados, trechos populares so decorados como mantras e

    surgem os escolicismos. Mas no momento de trazer estes conceitos para a prtica

    profissional que as dificuldades abrolham, formando um verdadeiro areal movedio.

    Na dificuldade de moldar suas pesquisas a uma orientao terico-metodolgica,

    os acadmicos lanam mo de artifcios, sendo o mais comum a repetio dos

    mencionados mantras. Na hermenutica, dizem que o homem um ser amarrado a

    teias de significados que ele mesmo teceu para dar sentido ao mundo em que vive, mas

    raramente conseguem produzir uma interpretao simblica dos fenmenos por eles

    observados em campo. No ps-modernismo, atestam que o texto deve ser pessoal e livre

    das amarras metodolgicas, mas quase nunca atingem com xito a textualidade de uma

    etnografia polifnica. H ainda os que traam diagramas de parentesco, intitulando-se

    estruturalistas, mas que, via de regra, no conseguem decompor a cadeia estrutural que

    ordena a narrativa dos mitos.

    Por que os acadmicos encontram tais dificuldades em desenvolver suas

    pesquisas em sintonia com os pressupostos metodolgicos? A resposta pode estar na

    prpria trajetria da antropologia enquanto disciplina acadmica. A antropologia um

    campo cientfico relativamente novo. Sua insero no arcabouo de disciplinas

  • Antropologia Sociocultural

    44

    universitrias se consolidou h no mais que um sculo o primeiro antroplogo a

    receber uma ctedra voltada ao estudo do homem foi Tylor, em Oxford, no ano de 1884,

    mas a primeira ctedra estritamente em antropologia social foi criada pela Universidade

    de Liverpool somente em 1908. Contudo, a consolidao da antropologia nos espaos

    nacionais ainda mais nova e ligada a uma busca por modelos de cultura nacional. De

    um lado as naes experimentavam a necessidade de construir seus nacionalismos,

    criando um modelo endgeno de pesquisa. Por outro, entre as naes que reivindicavam

    a alcunha de epicentro do saber antropolgico, estavam aquelas mais comprometidas

    com um modelo colonialista de antropologia, onde o saber gerado seguia um fluxo de

    dentro para fora e a prtica da pesquisa se dava na imposio dos conceitos de fora para

    dentro. Essa discusso atinge elevado destaque no embate protagonizado pelos

    antroplogos Marshal Sahlins e Grananath Obeyesekere acerca da interpretao dos

    eventos decorrentes do contato entre o Capito Cook e os nativos do Hawaii.

    No entanto, mesmo tendo um incio nuclear, onde prevalecia os modelos

    defendidos pelas instituies centrais, a antropologia no deixou de alimentar sua

    principal caracterstica e maior qualidade: uma inquietao intelectual que se

    retroalimentava pela formulao constante de autocrtica. Estas crticas desencadearam

    o veloz aperfeioamento metodolgico, que contribuiu para o multifacetado campo

    terico que molda a disciplina. To diverso quanto os modelos tericos, foram os

    dilogos que apareceram com outros campos do saber: antropologia da educao,

    antropologia psicanaltica, antropologia empresarial, antropologia poltica, antropologia

    jurdica, isso s para citar uma nfima parte destes dilogos possveis. Ou seja, enquanto

    a academia ainda discutia interdisciplinaridade, a antropologia j ensaiava prticas

    transdisciplinares.

    Este complexo esteio constitutivo tornou a discusso do mtodo um verdadeiro

    drama nas bancadas universitrias. Num primeiro momento o mtodo o inefvel, pois

    exerce um efeito de seduo ainda que seja difcil defini-lo com palavras. Na medida

    em que as aulas tericas vo evoluindo, seguindo o modelo diacrnico de construo

    das escolas antropolgicas, o mtodo passa a ser o inescrutvel, onde por mais que se

    escrutine os textos clssicos, mais instransponvel parece a barreira que separa o aluno

    do domnio instrumental dos conceitos formativos. Por fim, quando o acadmico parte

    para a elaborao de sua pesquisa de campo, os mtodos passam a ser aquele corpo

    terico ininteligvel, um fenmeno quase transcendental que s pode ser compreendido

    com plenitude pelos geniais antroplogos que transpuseram o limiar do raciocnio

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

    45

    humano ordinrio. O tiro de misericrdia vem com os enunciados epistemolgicos mais

    elaborados, como o clssico cultura como processo polissmico e etnografia como

    representao polifnica da polissemia cultural.

    A principal barreira o descompasso entre a rpida evoluo da crtica

    conceitual que rege a antropologia enquanto disciplina e o grau de reflexo que as

    universidades nacionais so capazes de promover em sala de aula nos cursos de

    graduao. No podemos esquecer que construo filosfica artigo de luxo em nossa

    educao de base. Segue-se a isso o fato de que as escolhas dos cursos superiores so

    influenciadas pelo aspecto mercadolgico, o que acarreta certo desprezo pelos campos

    das humanidades. O resultado frustrante, pois formamos uma classe de descrentes que

    veem com pesar e at certo grau de desdm sua prpria rea de atuao. O

    amadurecimento dos acadmicos acerca da antropologia vai ocorrer somente aps o

    ingresso na formao stricto sensu, ou seja, no mestrado e no doutorado. Ali o aluno

    tem de correr atrs do tempo perdido, mas a pesquisa antropolgica parece manter seu

    carter inescrutvel.

    Como superar essas limitaes? O aluno passa a ter somente os dois anos do

    mestrado para desvendar o enigma da esfinge, temendo ser devorado por conta de suas

    inabilidades conceituais. Expressar o inefvel, transpor o inescrutvel, compreender o

    ininteligvel! Esse seria o desafio. Sobre o docente acaba recaindo o papel de messias,

    responsvel por guiar os acadmicos terra prometida em meio ao areal movedio.

    Diante disso, a formao acaba prejudicada. Uma maneira que se encontrou para

    contornar tais limites foi a constituio de uma escolstica ao revs, onde a razo

    superada pela f nos lderes messinicos. As aulas de teoria antropolgica passaram,

    assim, a ser o espao onde se aprende os mantras a serem reproduzidos, resultando

    disso a formao de inflexveis escolas nacionais. Institui-se um paradoxo, onde ao

    mesmo tempo em que a antropologia adquiriu tanta riqueza terica pela autocrtica, em

    termos de formao prevalecem os modelos ligados a determinados messias e

    protagonizados por um pequeno crculo de famosos programas de ps-graduao.

    Qualquer proposta de reflexo que fuja a este sistema tem sido duramente censurada.

    O primeiro passo para aperfeioar a formao dos antroplogos seria romper

    com esses modelos nacionais limitantes. Depois, iniciar o estudo metodolgico pelo

    principal dogma da antropologia: o texto etnogrfico. O texto o espelho da alma

    antropolgica, o que transforma em paradigma o saber formatado a partir dos olhos do

    outro. Evitar a autoridade etnogrfica, aplicar o vis hermenutico e a polifonia, so

  • Antropologia Sociocultural

    46

    os mecanismos para se levar o entendimento da pesquisa antropolgica aos estudantes

    universitrios. Ainda que pese a dificuldade de se conduzir os acadmicos por esse

    campo movedio, sim possvel guiar os alunos por um rico referencial terico-

    metodolgico desde os cursos de graduao. Basta fazer com que eles percebam que sua

    prpria vida obedece aos mesmos fenmenos que tentamos observar em sociedades to

    dspares em relao nossa. Assim tem incio um exerccio que, conforme assevera

    Roberto Da Mata, consistiria em exotizar o familiar e familiarizar o extico. preciso

    que o aluno tenha claro que as explicaes fornecidas pelos prprios membros da

    sociedade estudada (o modelo nativo), passveis de levantamento pela entrevista, seriam

    a matria prima para o entendimento antropolgico.

    Na sequncia, sero discutidos procedimentos metodolgicos para por fim

    estabelecer as conexes necessrias com as correntes terico-metodolgicas,

    Partindo do incio: o que uma pesquisa para as cincias sociais?

    Entre as muitas caractersticas da cincia est o mtodo, ou seja, o conjunto de

    procedimentos ordenados e processados de forma a garantir a acurada observao dos

    fatos. Em poucas palavras, o mtodo um caminho que orienta o pesquisador para se

    atingir uma finalidade proposta. Enquanto elemento norteador do processo cientfico, o

    mtodo fundamental para garantir os quesitos necessrios para que uma reflexo se

    torne pesquisa. No para menos que num projeto de pesquisa, a metodologia uma

    das primeiras preocupaes.

    Entretanto, h muito existe uma clara diviso no mundo acadmico entre as

    cincias naturais e as cincias sociais. Seriam os homens e suas atitudes passveis de

    observao e experimentao tais quais os fenmenos naturais? A resposta

    evidentemente no. Assim, as cincias naturais passaram a buscar a via da

    explicao, ao passo em que nas cincias sociais o caminho da pesquisa orientado

    pela via da compreenso. Ou seja, nas cincias sociais o pesquisador no explica os

    fenmenos sociais, mas sim busca compreender como as sociedades se comportam e

    esto organizadas.

    A partir do momento em que os cientistas sociais decidiram romper com o ideal

    positivista das cincias naturais, abriu-se espao para o amadurecimento de um rico

    contedo metodolgico. Mesmo assim, entender fenmenos sociais no simples.

  • Prof. Rodrigo Simas Aguiar | FCH | UFGD | 2013

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    necessrio definir abordagens. Primeiramente, um pesquisador pode optar entre dois

    modelos de anlise: o sincrnico e o diacrnico. No modelo sincrnico os fenmenos

    sociais so explicados por um conjunto de estruturas sem necessariamente levar em

    considerao a trajetria histrica. O que importa destacar aspectos que possibilitem

    um delineamento da sociedade em estudo, onde esses aspectos se comportam em forma

    de sistema ou seja, a modificao de uma varivel causaria impactos em todo o

    conjunto. No modelo diacrnico os fenmenos sociais so explicados por uma

    sucesso de acontecimentos, ou seja, leva em conta a trajetria histrica em que os

    fenmenos estudados esto inseridos. Na antropologia encontramos as duas

    possibilidades de anlise. Por exemplo: temos na arqueologia uma rea de pesquisa

    mais voltada para o diacronismo; nos modelos estruturalistas de antropologia social nos

    deparamos com preocupaes voltadas aos fenmenos sincrnicos.

    Mas antes de tudo, voc precisa recortar seu objeto de estudo e definir uma

    hiptese de trabalho. A pesquisa em cincias sociais serve para entender os pressupostos

    sociais, culturais, polticos ou mesmo individuais que se escondem sob a esmagadora

    aparncia dos fatos. Mas o que exatamente estamos querendo evidenciar com nosso

    estudo? a que tem incio o recorte temtico. Primeiro, temos que definir para qu

    estamos fazendo pesquisa: