Antropologia Sociocultural. Rodrigo Simas Aguiar
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Antropologia Sociocultural
Prof. Rodrigo Simas Aguiar
Universidade Federal da Grande Dourados | 2013
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SUMRIO
I A ANTROPOLOGIA: UMA APRESENTAO NECESSRIA, 04
O que Antropologia e quem o antroplogo?
Como so formados os antroplogos no Brasil?
O cientista social tambm um antroplogo?
II ENTENDENDO A HUMANIDADE, 12 Cultura, o objeto de estudo da Antropologia
O homem e o ambiente
O homem atravs de seu passado
III ORIGEM DOS MTODOS DA ANTROPOLOGIA, 34
IV CATEGORIAS ANALTICAS E CONCEITOS INSTRUMENTAIS EM ANTROPOLOGIA, 38
V A PESQUISA ANTROPOLGICA, 43 Entre o inefvel, o inescrutvel e o ininteligvel
Partindo do incio: o que uma pesquisa para as Cincias Sociais?
Agora iniciarei meu trabalho de campo, como devo proceder?
De posse dos dados de campo
VI TEMAS ATUAIS EM ANTROPOLOGIA, 56 Antropologia Empresarial
Antropologia da Sade
Antropologia da Educao
Laudos Antropolgicos
BIBLIOGRAFIA, 63
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I A ANTROPOLOGIA: UMA APRESENTAO NECESSRIA
O que a Antropologia e quem o antroplogo?
Existe um grupo de cientistas que se dedica a estudar a humanidade como um
todo, desde suas longnquas razes e as transformaes sofridas ao longo do tempo, at
suas manifestaes culturais mais contemporneas, como msica, comidas tpicas e
formas religiosas. Estes estudiosos da humanidade so os antroplogos, que se apoiam
em diversos mtodos e tcnicas para desenvolver suas pesquisas. importante ressaltar
que a histria da antropologia, apesar de relativamente recente se comparada com outras
disciplinas cientficas, muito dinmica e propiciou a formao de mltiplas correntes
metodolgicas.
Contudo, inegvel que a populao em geral desconhece quem e como atua o
antroplogo. Mesmo entre as pessoas que j ouviram falar da antropologia, seus
conhecimentos acerca deste campo do saber so moldados dentro de representaes
estereotipadas. Ou seja, a noo geral do antroplogo caricatural. Normalmente se
pensa no antroplogo, em primeiro lugar, como aquele profissional envolvido com
movimentos sociais, vestindo camisetas de lderes revolucionrios e portando bolsas
tiracolo. Por desconhecer o amplo campo de trabalho dos antroplogos as pessoas
menos informadas pensam justamente que os antroplogos no trabalham ou que o
mercado laboral praticamente inexistente. Isso reflexo do tipo de educao que as
crianas recebem nos colgios, que dificilmente expe um leque abrangente de
profisses aos estudantes. A sociedade acaba dando suporte para a manuteno desse
tipo de situao a partir do momento em que se destaca uma pequena lista de
profissionais respeitveis, desprezando todos os demais campos. Quem nunca ouviu
algum fazer meno a uma reao preocupada dos pais diante de uma escolha por uma
profisso diferente das clssicas: meu filho, mas como voc vai fazer para viver
disso? Como resultado, sacrifica-se vocaes enquanto que em alguns campos no
possvel suprir a demanda por profissionais. Mesmo assim, as escolhas acabam por
recair naquelas reas em que h muito tempo as universidades formam mais
profisisonais que a real necessidade de mercado de trabalho. Resultado: de um lado
diplomados desempregados e de outro vagas sobrando por falta de profissionais.
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No Brasil de hoje, a expanso das frentes econmicas e o aumento significativo
do nmero de projetos desenvolvimentistas, trazem a necessidade de se pensar o
impacto desses empreendimentos na sociedade. A produo de gneros em larga escala,
as grandes obras de engenharia, so aes que produzem impactos significativos ao
meio ambiente e s comunidades tradicionais. Dessa forma, foi preciso implantar
regulamentaes para essas atividades, sendo que entre as exigncias institudas est a
produo de um estudo de impacto. Neste tipo de estudo esto envolvidos antroplogos,
arquelogos e cientistas sociais. Mas o campo de trabalho do antroplogo vai mais
alm, abrangendo desde o meio empresarial at as tenses sociais no campo ou nos
bolses de pobreza. Com efeito, podemos pensar em um antroplogo envolvido na
maioria das atividades humanas: sade, gesto, educao, terceiro setor. E a lista se
avoluma. Mas antes de poder explorar melhor o mercado de trabalho do antroplogo, se
faz necessrio definir com clareza o que a antropologia.
Para entender melhor a antropologia preciso recorrer etimologia: a palavra
Antropologia vem do grego Anthropos = Homem e Logia = estudo. Assim, a
Antropologia , literalmente, o estudo do homem. Contudo, muitas disciplinas estudam
o homem, ento qual a diferena principal da antropologia? A resposta simples: a
antropologia se prope a estudar o homem como um todo e em carter global
comparativo, enquanto outras disciplinas, como a histria ou a psicologia, estudam
aspectos especficos da humanidade. Claro que impossvel existir um cientista com
conhecimento suficiente para estudar a humanidade como um todo. Foi necessrio ento
estabelecer divises para facilitar o trabalho antropolgico. No Brasil, inicialmente,
tinha-se por base uma antropologia essencialmente social, focada para o entendimento
de como as sociedades se organizam. Contudo, nos ltimos anos vem se estabelecendo
com fora um modelo de antropologia mais holstico, pensado a partir de quatro
campos. Este modelo, de origem norte-americana, mostrou-se tambm bem eficaz para
entender a grande diversidade cultural de um pas como o Brasil:
Antropologia
Antropologia Fsica
Arqueologia
Lingustica Antropolgica
Antropologia Cultural/social
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Seria impossvel formar profissionais com um conhecimento to amplo acerca das
sociedades humanas. A soluo foi criar estas especialidades dentro da antropologia,
dedicando-se cada qual a um aspecto especfico do que o ser humano:
Antropologia Fsica Estuda a estrutura fsica do homem: sua origem animal e
evoluo gentica. Ou seja, Estuda o homem enquanto entidade biolgica. Como
exemplo, podemos citar a atuao do antroplogo em diversos estudos laboratoriais,
como aqueles empreendidos nos famosos seriados de televiso para determinar as
causas da morte de um indivduo (tambm conhecida como antropologia forense). Mas
um antroplogo fsico tambm pode se dedicar a estudar esqueletos pr-histricos para
averiguar como um indivduo viveu e morreu no passado remoto (paleopatologias).
Arqueologia Estuda o passado do homem pelos restos materiais. Existe aqui uma
grande confuso com o estudo dos fsseis, como os de dinossauros, mas na verdade
quem estuda os animais pr-histricos a paleontologia. A arqueologia busca, acima de
tudo, compreender como se dava a vivncia do homem no passado a partir dos restos
materiais por ele produzidos, como objetos e utenslios. Mas, neste caso, o passado
assume uma dimenso bem mais flexvel, podendo ser um passado recente ou distante.
Assim, um arquelogo pode pesquisar tanto uma antiga civilizao que viveu a mais de
cinco mil anos ou a nossa prpria sociedade a partir do lixo que produzimos.
Lingustica Antropolgica Estuda a grande diversidade de lnguas faladas pelos seres
humanos. Somente no Brasil, h centenas de lnguas faladas, como as lnguas indgenas.
Mas tambm h muitos aspectos regionais que geram diferentes formas de se expressar.
Dessa forma, o linguista pode se dedicar em pesquisar uma lngua falada por ndios no
corao da floresta amaznica ou a nova linguagem que se forma nos espaos digitais,
como as mensagens trocadas pela internet nas redes sociais.
Antropologia Cultural/social Este o mais amplo de todos os campos, que se ocupa
da anlise e descrio das culturas. Alm dos estudos com base na observao direta,
este campo estabelece estreita relao com os demais na tarefa de entender as
sociedades. O antroplogo Claude Levy Strauss, criador da antropologia estrutural,
prope a formao da antropologia social/cultural em trs estgios:
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Etnografia descrio sistemtica das culturas. A primeira fase do estudo
antropolgico, ou seja, o trabalho de campo. Nesta etapa os dados so produzidos pela
observao direta de uma sociedade in situ.
Etnologia primeiro passo em direo sntese. Os dados levantados em trabalhos de
campo so analisados e cruzados, buscando formar um conhecimento mais abrangente
sobre uma determinada sociedade. No Brasil o termo etnologia associado ao estudo
das etnias indgenas. Contudo, em alguns pases a etnologia voltada para ao registro
dos saberes e fazeres tradicionais, em uma estreita relao com o folclore.
Antropologia ltimo estgio, passo final em direo sntese com base nas concluses
obtidas pela Etnografia e pela Etnologia. Dessa forma possvel construir um
conhecimento lato sensu acerca das culturas humanas, conhecimento esse que integra as
matrias lecionadas nas escolas e universidades.
As diferenas entre a antropologia e as demais disciplinas dedicadas ao estudo
do homem vo se afirmando a partir do mtodo empregado pelo antroplogo em seus
estudos. A proposta da antropologia entender as sociedades a partir de um olhar
interior, ou seja, o conhecimento gerado pelos olhos do outro. Para tanto, no se
aplica questionrios ou roteiros, mas se estabelece dilogos com os indivduos do grupo
estudado, o que requer um trabalho de campo prolongado. A eficcia neste sistema de
investigao tem levado a antropologia a outros campos antes to distantes das cincias
humanas puras.
No Brasil, a diversidade cultural e as origens histricas e proto-histricas do
atual panorama tnico demandaram desde cedo uma relao do meio acadmico com os
estudos da cultura. De fato, no podemos esquecer que a primeira universidade
propriamente dita fundada no Brasil foi a Universidade de So Paulo (USP), na dcada
de 1930. Entre os docentes que vieram com a misso de estruturar a USP estava Levi-
Strauss, fato que talvez tenha contribudo para uma melhor insero da Antropologia no
Brasil.
O Brasil, ento, passou a contar com uma comunidade antropolgica ativa e
participativa, abrindo espaos polticos fundamentais para a rea. Ver o Brasil sem levar
em conta a perspectiva da antropologia passou a ser entendido como uma discrepncia,
o que resultou a insero de contedos antropolgicos em outros campos do saber
situados alm das cincias humanas puras, como jornalismo, administrao, direito e
medicina. A fora associativa dos antroplogos tambm gerou mudanas nas polticas
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pblicas, o que desencadeou a necessidade de relatrios antropolgicos antes da
implantao de qualquer empreendimento que afetasse diretamente sociedades
tradicionais.
Pesquisas em uma comunidade tradicional para fins de licenciamento de empreendimento. Jalapo,
estado do Tocantins.
Como so formados os antroplogos no Brasil?
A partir do momento em que uma pessoa se mostra interessada em se tornar
antroplogo ou antroploga, surge a primeira dvida: que curso universitrio forma
antroplogos? Essa pergunta remete a um contexto de significativas mudanas no meio
acadmico.
Antes, no havia no Brasil cursos de graduao em antropologia. Os
antroplogos eram formados especialmente a partir de cursos stricto sensu, ou seja, a
formao se dava nos nveis de mestrado e doutorado. Isso gerava um problema:
retardava consideravelmente o ingresso do profissional no mercado de trabalho, o que
em um Brasil em franco crescimento se traduziu em grave carncia de mo de obra. Os
profissionais altamente especializados acabavam por se incorporar ao corpo docente das
universidades, gerando um grande vazio nas outras frentes de trabalho. De certa forma,
os cursos de graduao em cincias sociais, com o modelo de formao em trs campos
(antropologia, sociologia e cincia poltica) passaram a ser a principal fonte de
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formao de antroplogos. Mesmo assim, a formao em nvel de ps-graduao
continuava a ser necessria para se atingir o nvel de conhecimento e excelncia
esperados de um antroplogo.
Associao Brasileira de Antropologia (ABA) foi determinante para o sucesso
da rea no pas. Os congressos bianuais da ABA chegam a receber mais de dois mil
participantes, demonstrando quo coesa a comunidade antropolgica brasileira. As
polticas de ensino de antropologia so amplamente discutidas pela ABA, que emite
orientaes s universidades quanto constituio de cursos Brasil a fora, sejam esses
de graduao ou de ps-graduao. E especialmente nas ultimas dcadas a ABA passou
a lidar com um problema central: a demanda por antroplogos no mercado de trabalho
brasileiro eminente e a oferta de formao est muito aqum da necessidade.
Mas por que h to poucos cursos de graduao no Brasil? A resposta simples:
a criao de cursos de ps-graduao stricto sensu (mestrado e doutorado) no Brasil foi
interpretada por muito tempo como o caminho mais apropriado para a formao de
antroplogos. O primeiro programa de ps-graduao em antropologia criado no Brasil
foi o da Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional em 1968 e apesar de
relativamente recente, detm abrangncia e prestgio internacionais. Mas o crescimento
na oferta de cursos de ps-graduao em antropologia foi pequeno se comparado com
outras reas acadmicas.
Quanto s estruturas curriculares dos cursos de Antropologia stricto sensu no
Brasil, existe um modelo que parece ter sido a fonte de inspirao para a formulao da
maioria dos cursos. Guillermo Sanabria, em sua dissertao de mestrado intitulada O
ensino de antropologia no Brasil: um estudo sobre as formas institucionalizadas de
transmisso da cultura argumenta que este modelo estrutural parte das disciplinas
tericas bsicas que aproximam os alunos de uma tradio antropolgica, seguido de
um rol de optativas que ir conduzir a formao por meio de escolha do campo de
atuao por parte do discente. No de se estranhar que os cursos repitam modelos
consagrados por escolas antropolgicas mais tradicionais, pois as comisses que
avaliam o credenciamento dos novos cursos so justamente compostas por professores
destacados de programas em operao. Ou seja, existe uma tendncia em reproduzir os
modelos anteriores e no raramente as novas propostas que fugiam a este sistema
clssico eram negadas ou devolvidas com pedidos de ajustes. Felizmente essa realidade
vem mudando, abrindo espao para propostas mais ousadas e diversificadas.
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Por fim, no havia mais como segurar uma demanda to reprimida. A nova
realidade econmica brasileira e a crescente necessidade de antroplogos acabaram
desencadeando, ainda que tardiamente, a criao de cursos de graduao em
Antropologia. A ltima dcada foi marcada pela implantao de graduaes em vrias
instituies e a antropologia passou a ser representada em praticamente todas as
mesorregies brasileiras. Os cursos de antropologia normalmente so concebidos de
forma combinada, como antropologia social e arqueologia ou ainda antropologia e
patrimnio cultural. A tendncia que a oferta de cursos de Antropologia continue
crescendo.
Quadro de instituies credenciadas pelo Ministrio da Educao que possuem cursos de
graduao em atividade nas reas de antropologia e arqueologia.
Regio Instituio Formato
Norte
UFAM Antropologia
UFRR Antropologia
UFAC Cincias Sociais/Antropologia
UNIR Arqueologia
UEA Arqueologia
UNIVASF Arqueologia/Preservao Patrimonial
Nordeste
UFPB Antropologia Social
UFRN Cincias Sociais/Antropologia
UFBA Cincias Sociais/Antropologia
UFS Arqueologia
UFPI Arqueologia
UFPE Arqueologia
Centro-Oeste UnB Cincias Sociais/Antropologia
PUC-Gois Antropologia e Arqueologia
Sudeste
UFF Antropologia
UFMG Antropologia
UFSCar Cincias Sociais/Antropologia
UNICAMP Cincias Sociais/Antropologia
Sul
UFSC Antropologia
UFPel Antropologia Social/Cultural/Arqueologia
UNILA Antropologia/Diversidade Cultural
FURG Arqueologia
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O cientista social tambm um antroplogo?
Como visto anteriormente, a formao de antroplogos pode se dar tambm a
partir dos cursos de graduao em cincias sociais. Contudo, h especificidades neste
modelo de curso as quais os interessados em seguir carreira na antropologia devem estar
atentos. Primeiramente, o aluno que almeje formar-se antroplogo deve buscar
direcionar suas atividades para a rea da antropologia, tanto por meio de iniciao
cientfica, como por cursos de extenso, congressos e grupos de estudo.
O dilogo promovido entre as trs reas de formao Antropologia, Sociologia
e Cincia Poltica parece ser uma das vantagens para os acadmicos de cincias
sociais. Esta formao mais abrangente possibilita ao aluno viso ampliada e capacidade
de reflexo. No se pode esquecer que a Sociologia e a Antropologia compartilham uma
essncia em comum, como os importantes trabalhos no campo da pesquisa social
desenvolvidos pelos clebres pensadores Emil Durkheim e seu sobrinho Marcel
Mauss. O que se espera que os campos da antropologia e da sociologia possam
estabelecer mais dilogos, o que efetivamente j ocorre com a participao de
socilogos nas reunies de antropologia e de antroplogos nas reunies de sociologia.
Neste sentido, o aluno formado no curso de cincias sociais leva vantagem.
Por outro lado, como o currculo de um curso de cincias sociais tem que dar
conta de trs campos do saber, evidentemente um aprofundamento na rea da
antropologia s poder ser plenamente atingido a partir de cursos de ps-graduao.
Mas isso no impede que um cientista social ingresse no mercado de trabalho da
antropologia imediatamente aps a concluso de sua graduao. H muitos postos de
trabalho no campo de consultoria e na prestao de servios a projetos
desenvolvimentistas. Sob a superviso de um antroplogo mais experiente, o cientista
social pode atuar em meio aos j mencionados estudos de impacto em obras de grande
porte. Mas, para isso, imperativo que durante toda a graduao o acadmico esteja
engajado a projetos de professores da rea.
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Acadmicas desenvolvendo trabalho de campo em usina de lcool, Estado do Acre.
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II ENTENDENDO A HUMANIDADE
Cultura, o objeto de estudo da Antropologia
No captulo anterior foram apontadas as muitas caractersticas da antropologia.
Foi possvel entender como se constitui a antropologia enquanto disciplina cientfica e
como o mercado de trabalho. Mas para poder prosseguir com a abordagem da
antropologia necessrio demarcar o principal objeto de sua anlise: a cultura.
H muitos entendimentos sobre o que vem a ser cultura. O mais recorrente no
imaginrio popular aquele que aponta a cultura como um conjunto de atividades
eruditas, como teatro, cinema, livros, museus e assim por diante. Mas essa uma
parcela pequena e muito restrita da cultura e sua perpetuao no imaginrio popular
como conceito de cultura se d pelo uso que determinados segmentos fazem para expor
suas ideologias e demandas polticas. necessrio entender que para a antropologia
cultura muito mais: abrange todas as formas de ser, pensar e atuar de uma determinada
populao ou subgrupo social.
O primeiro conceito de cultura ligado antropologia foi o proposto pelo
antroplogo britnico Edward Burnett Taylor na segunda metade do sculo XIX:
Cultura como esse todo complexo, que compreende conhecimentos, crenas, arte,
moral, leis, costumes e qualquer outra capacidade e hbito adquirido pelo homem
enquanto membro da sociedade. Por ser o primeiro pesquisador a fazer da cultura um
objeto de estudo, Tylor considerado o pai da antropologia e seu conceito de cultura
serviu de base para todos os posteriores.
O pensar acerca do outro, do diferente, sempre acompanhou o homem ao longo
de sua histria. Desde os remotos perodos do paleoltico, grupos rivais teciam
representaes uns acerca dos outros. Na antiguidade, os povos conquistados por
Alexandre Magno passaram a ser descritos pelos historiadores gregos, muitos desses
caracterizados como brbaros ou inferiores. O mesmo pensamento acompanhou os
romanos, que tinham por brbaros todos os povos que viviam para alm das raias do
imprio. Ou seja, de certa forma, toda tentativa de descrever o outro acabava por
desencadear alguma classe de representao depreciativa, em maior ou menor grau. Tais
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formas de pensamento tambm chegaram aos nossos tempos e muitas vezes subsidiaram
pensamentos racistas.
No meio acadmico, as tantas diferenas socioculturais entre os grupos humanos
dispersos ao redor do mundo levaram os pesquisadores do sculo XIX a propor uma
classificao dos povos por seu grau de evoluo social. Essa corrente, que recebia o
nome de evolucionismo social, pregava que a humanidade passou por estgios, onde as
populaes evoluam das mais primitivas para as mais civilizadas. As sociedades da
contemporaneidade que viviam em forma tribal eram tidas como as que tinham seu grau
de evoluo estacionado, ao passo em que a civilizao europeia seria o estgio social
mais avanado que o homem havia atingido.
O antroplogo britnico Lewis Henry Morgan, em 1887, aperfeioou e ampliou
as ideias de um pesquisador menos conhecido, chamado Robertson, que dividia a
humanidade em trs estgios evolutivos: selvageria, barbrie e civilizao. Este modelo
de evoluo social deu origem a um pensamento eurocentrista que estabelecia uma clara
diviso do mundo: de um lado estavam os povos tidos como brbaros, que cultivavam
hbitos degradantes, e de outro o homem civilizado, representando o aperfeioamento
da humanidade. Esta diviso em opostos se materializa em discursos de muitas formas:
brbaros e civilizados, cristos e infiis, animal e humano. Por pano de fundo, sempre o
ideal civilizatrio, cuja Europa seria o exemplo derradeiro. Nas Amricas, desde os
tempos coloniais, o europeu canalizou esse imaginrio depreciativo para os indgenas, o
que muitas vezes serviu de elemento de justificativa para a conquista.
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Contracapa do Volume 7 de Americae, de Theodor De Bry (1592). Indgenas americanos retratados em
duas das representaes que mais povoou o imaginrio europeu: em postura de idolatria, onde o mbarak
evidentemente associado aos espectros do inframundo; e, mais abaixo, em prtica antropofgica.
Acervo da Biblioteca Histrica da Universidade de Salamanca. Reproduo digital autorizada.
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Foi assim que entre os sculos XVIII e XIX se deu uma acirrada discusso entre
duas escolas, a francesa e a alem, discusso essa que influenciou significativamente o
campo da antropologia. De um lado a escola racionalista francesa reivindicava uma
busca pela civilizao mundial cientfica e progressista, a nica forma da humanidade
atingir seu mximo estgio intelectual. Em oposio aparece a escola idealista alem,
que v no ideal de cultura uma forma de defender a tradio nacional em face
civilizao cosmopolita. Assim estava montado o cenrio de luta intelectual: a escola
alem apoiada no conceito de Kultur contra a escola francesa alicerada no conceito de
civilization.
Da escola francesa decorre um modelo de pesquisa mais voltado para os
aspectos de organizao social, fornecendo subsdios para a constituio de uma
posterior antropologia social. J a escola alem, ao se propor investigar como se dava o
amoldamento das culturas particulares, teceu sua colaborao para a formao de uma
antropologia cultural.
Em um dado momento da histria, as duas correntes convergiram para uma
forma mais unssona de antropologia, diminuindo as divergncias entre a antropologia
cultural e a antropologia social. Em comum, ambas passaram a se ocupar do estudo da
cultura humana, mas para tanto era necessrio aperfeioar o conceito de cultura. Na
tentativa de estabelecer uma reviso histrica do conceito de cultura, Alfred Kroeber e
Clyde Kluckhohn chegaram a 164 definies de cultura. Hoje temos vrios conceitos
instrumentais de cultura, mas a antropologia ainda se debate em busca de um conceito
apropriadamente antropolgico de cultura.
Em suma, sabemos que cultura se refere ao conjunto de pautas aprendidas e
transmitidas, sobre as quais toda sociedade est alicerada e fundamenta sua vivncia
social. A cultura pode ser transmitida de gerao em gerao, quando os mais velhos se
encarregam de incitar os mais jovens a seguir padres de comportamento, num processo
que vem desde o nascimento e que na antropologia denominamos endoculturao. A
cultura tambm pode ser ampliada ou modificada por meio de aspectos incorporados de
outras sociedades e esse processo de transmisso de pautas culturais de uma sociedade
para outra recebe o nome de difuso cultural.
Dessa forma, organizamos todos os conhecimentos herdados de nossos
ancestrais e adquiridos ao longo de nossa vida. Mas a cultura dinmica em sua
essncia e em razo disso no se pode esperar que as sociedades humanas permaneam
inalteradas. Isso garante que a rendeira tradicional utilize mtodos seculares para
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compor seus bordados, mas que no abra mo da internet para divulgar o artesanato de
suas comunidades. A identidade de um povo formada por elementos culturais,
materiais e imateriais, que garantem a coeso social e permitem que o universo dos
atores sociais se equilibre dentro de bases ideolgicas e representaes acerca do
passado e do futuro. Os elementos culturais herdados de nossos ancestrais so
classificados como patrimnio cultural. E na qualidade de patrimnio, alm de
herdado ser tambm legado s geraes futuras, cabendo a ns, que vivenciamos o
presente, estabelecer uma correta gesto de nossos bens culturais.
Toda nossa identidade moldada com base em um substrato cultural. Esta
cultura pode se manifestar por duas vias: a cultura material e a cultura imaterial. A
primeira composta de elementos fsicos, palpveis, como objetos e artefatos, cujos
empregos so arranjados e rearranjados no interior da sociedade. J o patrimnio
imaterial formado por toda gama de saberes e fazeres moldados no campo do
simblico, do abstrato e do no palpvel. Nesta ampla categoria estariam includos os
cantos, a religio, as lendas, as danas e todas as outras manifestaes do intelecto
humano. Sendo assim, estabelecemos elos contnuos com nosso patrimnio cultural a
fim de aferir este sentido de mundo. Quando o patrimnio cultural degradado por
influncias externas e indesejadas, decorre um processo de instabilidade social pela
perda da memria e pelo no reconhecimento de um passado e presente compartilhados,
substratos vitais para dotar nosso mundo de sentido.
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Estatueta de escriba egpcio, exemplo de cultura material acervo do Museu do Louvre em Paris, Frana.
Semana Santa em Sevilha, Espanha. Exemplo de cultura imaterial.
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Durante muito tempo se acreditou que as sociedades tradicionais no resistiriam
ante a ao implacvel da globalizao. Por sociedades tradicionais entendemos
aquelas comunidades que vivem de economia de pequena escala, mantendo as tradies
de seus saberes e fazeres, diferentemente das sociedades ocidentais industrializadas.
Contudo, estes grupos humanos se levantaram para reivindicar o reconhecimento de
suas diversidades, demandando da sociedade dominante polticas de tolerncia e
valorizao dos modos tradicionais de vida.
H uma enorme dificuldade em pensarmos a diferena. O diferente o estranho,
causa medo e se tende a repelir. Os grupos humanos normalmente possuem uma viso
de mundo onde sua prpria sociedade tomada como centro, pensando os outros a
partir de seus prprios valores e modelos. Chamamos etnocentrismo essa tendncia que
uma sociedade ou etnia tem de achar que suas condutas so as melhores e mais belas,
devendo assim ser seguidas por todos os outros povos. Em certa medida, todas as
sociedades do mundo so etnocntricas, seja em maior ou menor grau. Trata-se de um
pensamento bsico de oposio: de um lado o grupo do eu, que compartilha gostos e
conceitos; de outro o diferente, o estranho.
Mas o estranhamento fundamental, pois ao constituir a imagem do outro por
sua vez estamos facilitando o aparecimento da auto-imagem. Surge a alteridade,
conceito fundamental na antropologia. Para fugir do etnocentrismo a antropologia faz
uso do relativismo cultural. Relativizar aceitar e entender o outro como uma
alternativa vivel, livrando-se dos preconceitos. No h sociedade melhor ou pior, h
apenas sociedades diferentes, cada qual vivendo de acordo com sua cultura.
O homem e o ambiente
O homem s pode existir se for capaz de adequar e transformar a energia
disponvel no ambiente. Quando um aldeo est plantando hortalias, na verdade est se
utilizando da energia do ambiente para sua manuteno: o vegetal aproveita a energia
do sol por meio da fotossntese; o homem, por sua vez, est transformado o vegetal em
calorias para sobreviver. O fogo, utilizado para aquecer as lareiras das casas, mais um
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exemplo de como os galhos de uma rvore so transformados em outra fonte de energia,
o calor. So elos de uma cadeia: o sol alimenta o pasto, o pasto alimenta a cabra e a
cabra alimenta o homem.
Produo, ento, o resultado da aplicao da tecnologia e do trabalho humano
nos recursos naturais. Dessa forma, a produo de energia constitui a maneira de viver
de um povo. Cada sociedade cria um enorme contedo cultural que vai ditar as normas a
serem respeitadas na satisfao das necessidades mais bsicas. Esta gama de saberes
populares que moldam a relao homem-ambiente se converte em rico material de
estudo para as cincias sociais.
Os quatro modos bsicos de produo so: caa e coleta, agricultura de corte e
queimada, agricultura de irrigao e pastoreio nmade. com base nestes sistemas
produtivos que as sociedades que vivem de forma tradicional garantem seu sustento.
A caa e coleta o modelo mais elementar de produo, onde o homem extrai o
necessrio para sua subsistncia por meio da caa de animais e coleta de plantas, frutas
e razes disponveis no entorno. Este tipo de economia s pode manter pequenos grupos,
de 20 a 30 pessoas. Este modelo foi o primeiro a ser empregado pelo homem em tempos
pr-histricos, acompanhando a humanidade ao longo de sua existncia. Hoje, poucos
grupos isolados, como os que vivem em florestas tropicais ou nas savanas africanas,
empregam este modo econmico.
A agricultura de corte e queimada um modelo de produo que permanece
em uso entre muitas comunidades de pequena escala. Neste sistema, a vegetao em
uma rea a ser destinada para o plantio cortada e em seguida ateado fogo. O objetivo
limpar a rea para o plantio e o carvo resultante da queima, em um primeiro
momento, serve de nutriente. Contudo, neste sistema o solo se esgota rapidamente,
sendo a comunidade obrigada a abandonar as terras cultivadas em um prazo mdio de
cinco anos. Este sistema depende da participao das famlias e capaz de manter
comunidades com at cerca de 200 pessoas.
J a agricultura de irrigao parece ter superado as dificuldades que se
apresentam no modo de corte e queimada. Ao irrigar as terras o agricultor aumenta seu
potencial produtivo. Associando a irrigao com um sistema de rotao de culturas, as
comunidades passaram a usufruir seus territrios de plantio por tempo indeterminado.
Os plantadores de arroz dos campos da China so um exemplo desse tipo de economia,
que por l data de milhares de anos. Com uma grande quantidade de excedentes, tem-se
incio um intenso comrcio e aparece a especializao da mo de obra. Ou seja, se nas
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outras comunidades todos os seus membros possuem as mesmas obrigaes, com este
novo sistema econmico as pessoas passam a se dedicar a atividades especficas:
surgem os agricultores, os artesos, os comerciantes. As grandes civilizaes, que
surgiram s margens do Tigre e Eufrates h mais de 5 mil anos, passaram por esse
processo de especializao da mo de obra.
O pastoreio nmade normalmente empregado por grupos humanos que vivem
em regies inspitas, como nos desertos do Saara ou da Monglia. Diante de um clima
hostil ao homem, essas comunidades aprenderam a sobreviver conduzindo suas cabras e
camelos de osis em osis, estabelecendo trocas comerciais com outros grupos.
Diante desses modelos econmicos est a questo familiar mais bsica: os pais
enfrentando a natureza para dar sustento a seus filhos. A isso denominamos economia
de status, onde os bens so produzidos e distribudos no por compra e venda, mas por
fora dos direitos e obrigaes tradicionais. Em suma, um pai ou uma me no
fornecem uma refeio aos filhos porque estes a compraram, mas sim porque o sustento
da prole faz parte da obrigao tradicional destes pais.
Os estudos antropolgicos direcionados para a relao entre homem e ambiente
atualmente compem o campo de estudo denominado antropologia ecolgica. A
maneira como o homem se utiliza dos recursos disponveis e os transforma, agregando
Para a distribuio dos bens produzidos o homem desenvolveu
trs meios de intercmbio:
- a reciprocidade, onde a troca se d entre comunidades de laos afetivos, do tipo dar
e receber, que vivenciamos entre parentes ou aparentados e no h regras de
quantidade ou tempo do contrafluxo. A reciprocidade implica o intercmbio entre
pessoas que esto numa posio simtrica, de igualdade. uma troca entre iguais,
onde ningum est em posio de dominao.
- o modo redistributivo, que consiste em agrupar todos os bens produzidos em uma
rea central e distribu-los em parcelas igualmente proporcionais ao trabalho
empregado. Este processo controlado por uma autoridade central (como o cacique
ou uma liderana comunitria).
- o mercado, pessoas sem nenhuma relao de parentesco ou estranhas se renem
em um lugar especfico para intercambiar artigos. A introduo de uma unidade de
medida de valores se tornou inevitvel para esse tipo de economia e assim surge o
dinheiro.
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significado cultural aos elementos da natureza, vo constituir o principal foco de estudo
do antroplogo. Plantas, animais, elementos da natureza, passam a integrar uma srie de
estruturas simblicas e cosmolgicas a fim de moldar o universo social e conferir
sentido de vida para os homens e mulheres que vivem de economia tradicional.
Comunidades de pescadores artesanais, ou ainda sociedades agro-pastoris de
pequena escala so alguns exemplos de grupos humanos que compem o objeto de
estudo da antropologia ecolgica. Praticam modos produtivos centrados em
conhecimentos tradicionais passados de pai para filho ao longo de muitas geraes.
Alguns desses conhecimentos so milenares.
Entre os pescadores artesanais da Ilha de Santa Catarina, a vida social obedece a
uma clara ordem cosmolgica. Os elementos naturais, como mar ou o clima, so
interpretados de modo a orientar as aes coletivas. Muitas vezes, seres sobrenaturais,
como as bruxas, so evocados para justificar o insucesso de empreendimentos ou os
males que assolam a comunidade. Os pescadores artesanais hoje vivem um conflito
contra os pesqueiros industriais, a quem responsabilizam pela reduo dos estoques
pesqueiros. Esse problema econmico gerou instabilidade social e tenso, levando os
mais jovens ao abandono das tradies, dilema que se repete em muitas outras
comunidades tradicionais Brasil e mundo afora.
Comunidade de pescadores artesanais em Florianpolis, litoral de Santa Catarina.
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Ganadero conduz seu diminuto plantel pelas caadas reales de um pequeno povoado da Espanha
Num dado momento, se descobriu que as sociedades distribuam de forma
diferente a organizao do trabalho. Elas foram ento classificadas dentro de dois graus
distintos de integrao dos indivduos: a solidariedade mecnica e a solidariedade
orgnica. Na solidariedade mecnica as atividades de subsistncia so desenvolvidas
sem observar uma rigorosa diviso do trabalho, podendo a mesma tarefa ser
desenvolvida por membros de categorias sociais distintas. J na solidariedade
orgnica, a sociedade est formada por unidades dspares, ou grupos especializados,
envolvidos de forma estrita em suas funes.
O homem atravs de seu passado
O estudo do passado humano, dentro da antropologia, feito pelo campo da
arqueologia. A arqueologia hoje uma cincia mais e mais conhecida do pblico em
geral, que se deixa fascinar pelas descobertas dos especialistas. Se antes muitos
achavam que o arquelogo era aquele pesquisador que desenterrava dinossauros uma
confuso recorrente com o campo da paleontologia atualmente mais pessoas sabem
que a arqueologia se dedica ao estudo do passado humano. Na verdade, esta a
derradeira misso da arqueologia, facilmente compreendida a partir da origem grega da
palavra: arkaios (antigo) + logos (estudo).
O arquelogo Peter Drewett, em sua obra Field Archaeology an introduction
ressalta que para o pblico em geral a arqueologia envolveria trs elementos cruciais:
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passado, restos materiais e escavao. Talvez esta figurao no seja to equivocada,
mas o problema central reside em definir exatamente o que passado?. Aplicaramos
a duas variveis para tentar entender melhor o conceito de passado: o passado
distante e o passado recente. Qual destas modalidades seria o objeto da arqueologia?
Ambas. Existem, por exemplo, campos da arqueologia que se dedicam a estudar a
sociedade contempornea (como a anlise de hbitos de consumo) por meio de
observao e classificao do lixo que produzimos. Dessa forma, a definio mais
apropriada a arqueologia como o estudo do passado humano atravs dos restos
materiais; onde o conceito de passado assume uma dimenso bem mais flexvel,
podendo ser um passado remoto ou recente.
Mas, para fazer arqueologia, independentemente da escala de tempo trabalhada,
o mais importante a capacidade do arquelogo em propor interpretaes sobre o estilo
de vida das populaes do passado. A partir das evidncias materiais o arquelogo
organiza informaes que do suporte para criar uma srie de interpretaes de como
algo poderia ter sido ou ocorrido no passado.
Arquelogo examinando em campo um fragmento de cermica Tupiguarani.
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A Arqueologia teve sua origem nos gabinetes de curiosidades e nas colees
particulares. Aristocratas, na nsia de incrementar suas colees privadas com objetos
exticos, financiavam expedies das mais diversas naturezas. Neste perodo, as
escavaes se davam sem mtodo ou rigor cientfico, acarretando a mutilao de
importantes stios arqueolgicos. Somente quando esta condio de amadorismo foi
superada que a humanidade passou a entender melhor sua origem, reconhecendo a
importncia de estudar os povos do passado. A arqueologia, assim, se constituiu como
disciplina cientfica, passando a incorporar tcnicas e mtodos que foram
gradativamente aprimorados.
Hoje, a arqueologia conta com a colaborao de diversas outras reas do
conhecimento para interpretar as evidncias do passado. Com sua essncia
multidisciplinar, busca suporte nos campos da fsica, da qumica, da geografia, da
geologia, da biologia, da medicina, entre outros. As dataes so o resultado da anlise
de processos fsico-qumicos. Com o avano da medicina, muitas tcnicas de
diagnstico so empregadas tambm em evidncias do passado, como o uso de
tomografia computadorizada para o estudo de mmias do Egito. Pesquisando ossadas
humanas provenientes de stios arqueolgicos, a biologia nos ajuda a entender as
doenas que acometeram os indivduos do passado.
O estudo arqueolgico tradicional est embasado na escavao. Um stio
arqueolgico o local onde ocorrem evidncias materiais da presena humana no
passado, como uma cidade antiga ou um assentamento de caadores e coletores. O stio
a ser escavado recoberto por uma malha quadriculada, com quadrculas de 1x1m ou
2x2m. Cada quadrcula escavada individualmente obedecendo a uma progresso
artificial de dez em dez centmetros. Cada dez centmetros de terra removida
corresponde a um nvel arqueolgico, e cada nvel deve ser exaustivamente registrado
com fichas de campo, fotografias e todo recurso adicional possvel. Por fim, o material
removido e levado ao laboratrio, onde ser minuciosamente analisado.
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Acadmicos da UFGD em aula prtica de arqueologia.
Dentre os exames da arqueologia, o mais fundamental a datao de material
arqueolgico. O mtodo mais conhecido o de datao por carbono quatorze. O
carbono est presente em toda matria viva, mas quando um ser morre, os tomos de
carbono quatorze comeam a se desintegrar numa velocidade de 15,3 tomos por
minuto e por grama. Dentro dessa escala de mensurao, o processo de datao por
carbono 14 s eficaz at 50 mil anos e para datar evidncias mais antigas
necessrio recorrer a outros mtodos. O mtodo do potcio-argnio uma alternativa e
o princpio bem similar: o potssio 40 est presente em toda matria viva, mas quando
da morte de um ser, o potssio 40 vai degenerando em argnio 40 numa razo de 50% a
cada 1,3 bilhes de anos. Com isso chegamos a datas muito recuadas, como a da era dos
dinossauros.
Homens e dinossauros
H uma confuso recorrente acerca do homem pr-histrico e dos dinossauros,
talvez porque alguns filmes mostravam homens dividindo espao com os grandes e
ferozes rpteis. Contudo, homens e dinossauros nunca coexistiram. A ltima era dos
grandes rpteis, o Jurssico, terminou a aproximadamente 230 milhes de anos e a
evidncia mais antiga de um pr-homindeo data de 5 milhes de anos. Ou seja, mais
de 225 milhes de anos separam os homens dos ltimos dinossauros.
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No Brasil, a arqueologia praticada por profissionais qualificados e muito bem
avaliados no cenrio mundial. O Brasil tem sido palco de importantes descobertas
arqueolgicas que alteraram completamente a percepo que se tinha da pr-histria no
pas. A primeira grande pergunta que paira nos anais da cincia quando o homem
chegou Amrica? Sabemos que o homem surgiu na frica e aps vrios processos
evolutivos a espcie chamada Homo erectus migrou para a Europa e sia. Por fim,
chegamos nossa espcie, Homo sapies, que se tornou hegemnica. O Homo sapiens
surgiu por volta de 500 mil anos e h 120 mil anos teve origem a subespcie qual
pertencemos na atualidade, o Homo sapiens sapiens.
Durante a ltima glaciao, hordas de caadores teriam cruzado o Estreito de
Bering seguindo o deslocamento de animais da Megafauna. At ento se pensava ser
esta a nica forma de acesso do homem ao continente americano e que esta passagem
teria ocorrido h cerca de doze mil anos, modelo proposto pela arqueloga norte-
americana Betty Meggers na dcada de 1950. Contudo, novos achados foraram uma
reviso dos modelos estabelecidos. Em Monte Verde, no Chile, dataes atestam a
presena do homem h pelo menos 15 mil anos. No Piau, a equipe do Museu do
Homem Americano obteve uma data de 30 mil anos para a ocupao humana na regio
da Serra da Capivara. Dessa forma, como poderia o homem estar na Amrica do Sul
antes do perodo da formao da ponte de gelo no mar da Berngia?
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Estreito de Bering
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Pintura pr-histrica do parque da Serra da Capivara, So Raimundo Nonato, estado do Piau.
Mas o enigma tambm se estendia para o campo da antropologia biolgica. A
migrao que cruzou o Estreito de Bering h 12 mil anos teria sido de matriz
monglica, dando origem a todos os povos indgenas conhecidos no continente
americano. Contudo, em Lagoa Santa, estado de Minas Gerais, arquelogos
descobriram a ossada de uma mulher com cerca de 11 mil anos com caractersticas
negrides, muito similar aos atuais aborgenes australianos. Nos Estados Unidos, no
Lago Kennewick em Washington, cientistas descobriram os restos de um esqueleto de
caractersticas indo-europeias com idade de nove mil anos. Se no passaram por Bering
h 12 mil anos, como teriam ento chegado Amrica?
Uma das hipteses seria a de que o homem teria aprendido a navegar muito
antes do que se imagina. Mas a ideia no to recente. Na dcada de 1950, o
escandinavo Torben Heyerdahl montou uma expedio chamada Kon-tiki, cujo objetivo
seria provar que o homem poderia ter navegado Amrica pelo Pacfico. Para tanto,
Heyerdahl montou uma embarcao rudimentar de junco, estabelecendo uma rota pelas
ilhas do Pacfico. O relativo xito da expedio Kon-tiki e os achados de 50 mil anos na
Austrlia vieram reforar a hiptese de navegao transocenica na pr-histria.
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Diante de ocupaes to antigas no Brasil, importante saber que o clima
daquela poca era diferente do que temos hoje. O pleistoceno corresponde, em nosso
caso, ao ltimo perodo da glaciao, que vai de 18 a 12 mil anos atrs. A partir de 12
mil anos se processa o fim da glaciao e tem incio um perodo ps-glacial chamado
holoceno. Durante esse perodo, entre pleistoceno e holoceno, o clima ainda era mais
seco e frio que o atual, o que influenciava na paisagem. Predominavam as grandes
savanas, o pantanal ainda no existia e a floresta amaznica era uma grande savana. A
isso chamamos paleoclima. A estabilizao climtica, chegando s caractersticas de
clima e vegetao que temos hoje, s vai acontecer a partir do timo climtico, perodo
entre 8 e 6 mil anos atrs. Com o timo climtico aumenta a umidade e a as reas de
florestas se expandem.
Se a presena do homem no Brasil data de 30 mil anos, no Centro-Oeste os
primeiros vestgios humanos esto situados por volta de 12 mil anos. Em ambos os
casos, como vimos, estamos falando de um clima e vegetao bem diferentes. Ainda
perambulavam pelo nosso continente espcies de megafauna pleistocnica, como o
tigre dente-de-sabre e a preguia gigante. Ou seja, incontestvel que homem e
espcies da megafauna pleistocnica compartilharam espaos geogrficos. Contudo,
ainda difcil afirmar, pelo menos no Centro-Oeste, se os animais da megafauna teriam
sido caados pelo homem, pois at o momento no foram encontrados vestgios dessa
atividade como ossos de animais pleistocnicos com marcas de corte feitas pelo
homem.
Grfico ilustrando as pocas de variao climtica e o incio da ocupao humana em Mato Grosso do Sul.
Em Mato Grosso do Sul, as dataes radiocarbnicas revelam distintos perodos
de ocupao humana. A mais antiga corresponde a grupos de caadores nmades, mais
adaptados ao ambiente de savana, que neste estado foram datados em at 11 mil anos. O
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arquelogo Pedro Igncio Schmitz, que desenvolveu importantes pesquisas no Mato
Grosso do Sul, coordenando a equipe do Instituto Anchietano de Pesquisa, vai
classificar este perodo de ocupao como Tradio Itaparica. As tradies
arqueolgicas so chaves de classificao que agrupam os achados por semelhanas
tecnolgicas e estilsticas.
Com o timo climtico, os ambientes em Mato Grosso do Sul adquiriram uma
feio paisagstica e ecolgica prxima da que hoje possuem. Os arquelogos Emilia
Kashimoto e Gilson Rodolfo Martins, em pesquisas desenvolvidas no Rio Paran, ao
longo de seu curso pelo estado de Mato Grosso do Sul, estabelecem a data de 6 mil AP
(antes do presente) como o perodo mais antigo de ocupao das suas margens. Este
novo momento de ocupao, em outras partes do Centro-Oeste, vai ser classificado
como Tradio Serranpolis.
Artefatos pr-histricos encontrados em stio arqueolgico de Mato Grosso do Sul.
Quanto s ocupaes por grupos ceramistas, o Mato Grosso do Sul vai
apresentar assentamentos das tradies Una, Aratu-Sapuca e Tupiguarani, alm de
ocorrncia de stios cermicos que no se enquadram em nenhuma destas tradies
elencadas e que necessitam de mais pesquisas para sua correta classificao. A Tradio
Una possui datas para o Centro-Oeste que recuam 4 mil anos e se caracteriza pela
produo de recipientes de pequena dimenso e sem decorao. Os ceramistas da
Tradio Una, por vezes, ocuparam as mesmas grutas anteriormente utilizadas pelos
grupos pr-cermicos de caadores e coletores.
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A Tradio Aratu-Sapuca tambm ocorre com certa frequncia no Mato Grosso
do Sul. So ocupaes litocermicas, via-de-regra. Alguns arquelogos, como Jorge
Eremites de Oliveira, descrevem os indivduos da Tradio Aratu-Sapuca como os
ceramistas das grandes aldeias anelares, montadas reas abertas prximas s margens de
rios. A cermica Aratu-Sapuca possui forma e dimenso variadas, predominando as
vasilhas periformes, esfricas ou elipsides grandes, que podem chegar a comportar
centenas de litros.
Outro grupo ceramista de grande disperso pelo territrio sul-mato-grossense o
Tupiguarani. A tradio arqueolgica Tupiguarani caracteriza-se pela produo de
recipientes de grande dimenso com decoraes que vo de pintada plstica
(corrugada). Estima-se que o incio da ocupao do territrio que hoje corresponde ao
Mato Grosso do Sul por ceramistas Tupiguarani tenha ocorrido h 1.300 A.P.
Fragmento de cermica pintada Tupiguarani proveniente do stio arqueolgico de Porto Caiu, Navira, MS.
Junto a esse contexto arqueolgico aparece tambm uma diversificada arte
rupestre pr-histrica. Por ate rupestre podemos entender as representaes
iconogrficas executadas sobre suporte rochoso por meio de diferentes tcnicas de
elaborao. So divididas em duas categorias: as pinturas e as gravuras rupestres. Em
Mato Grosso do Sul, maior rea de ocorrncia de grafismos rupestres est na ampla
faixa de transio entre as terras altas do complexo serrano sul-mato-grossense e a
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plancie pantaneira. Diante do atual estado de conhecimento, sabe-se da existncia de
stios de rupestre nos seguintes municpios: Aquidauana, Corumb, Ladrio, Coxim,
Alcinpolis, Costa Rica, Sonora, Chapado do Sul, Pedro Gomes, Paranaba, Rio
Negro, Rio Verde, Corguinho, Jaraguari, Porto Murtinho, Maracaju, Santa Rita do Rio
Pardo, Batagua, Antnio Joo e Jardim. Contudo, o nmero de localidades em Mato
Grosso do Sul onde se registram stios de arte rupestre tende acrescer com o aumento
das pesquisas arqueolgicas.
Pintura rupestre, municpio de Rio Negro, estado de Mato Grosso do Sul.
A arte rupestre o resultado da expresso simblica do homem pr-histrico.
Simbolizar uma condio humana. -nos inerente a necessidade de materializar e dar
feio ao abstrato, representando tudo o que se move na esfera do absorto campo das
ideias. Em suma, a arte rupestre pode ser entendida como uma expresso cosmolgica
por intermdio da iconografia. Contudo, o desconhecimento dos cdigos utilizados nos
impede de traar uma precisa interpretao.
O primeiro passo no estudo da arte rupestre o registro sistemtico dos stios
arqueolgicos desta natureza, estabelecendo a anlise e ordenamento dos elementos
representados por categorias. Este ordenamento leva em considerao determinadas
variveis, como estilo, tcnica de elaborao e de representao. Por fim, os elementos
identificados so dispostos em tabelas tipolgicas de acordo com a similaridade dos
motivos. Isso permite ao pesquisador identificar as regras que compem o cdigo pela
repetio ordenada de motivos.
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Equvocos sobre o homem pr-histrico
Alguns equvocos cientficos h muito foram superados pela cincia, mas por algum motivo continuam sendo repassados nas bancadas escolares, perpetuando-se. Aqui
destacamos alguns:
1. O homem andava de quatro o homem nunca andou de quatro. J nos primeiros pr-homindeos que viviam h quatro milhes de anos a cincia constatou
caractersticas de bipedismo. Antes mesmo da formao do gnero Homo (Homo
habilis, por exemplo), nossos ancestrais j eram andarilhos das savanas.
2. A diferena entre o homem e os animais que o homem raciocina e o animal
no outro engano, pois as pesquisas modernas provaram que os animais so capazes de raciocinar e de se organizar socialmente. Algumas espcies inclusive tem habilidade de expressar cdigos de forma incipiente, como os gorilas que aprendem
alguns cdigos da linguagem dos sinais. Uma das grandes diferenas entre os homens
e os animais que nossa espcie dotada de universalidade semntica, ou seja, a
habilidade de transmitir mensagens por meio de cdigos complexos. Outra capacidade do homem a de acumular conhecimento e transmiti-lo para as novas geraes.
3. As primeiras espcies de homindeos se alimentavam de frutos e razes trata-se de uma viso muito romntica, mas a verdade que alguns dos primeiros homindeos se alimentavam principalmente de carnia. Como eram animais dbeis
ante a natureza indivduos com cerca de 1,30m de altura, sem garras ou presas tinham de esperar que os predadores maiores se alimentassem para poder comer o que
restava nas carcaas.
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III ORIGEM DOS MTODOS DA ANTROPOLOGIA CULTURAL
Sabemos que todas as tentativas de definir o ser humano ao longo da histria
formaram parte de um pensar antropologicamente. Aristteles, ao tentar explicar a vida
humana, props que nossa espcie seria governada por trs almas: uma vegetativa e
comum a todos os seres vivos (vegetais e animais), outra sensitiva e presente tambm
nos animais, e uma terceira, racional, que seria exclusiva do homem. O sopro de vida do
homem, ou anima viria da combinao destas trs almas.
O homem seguiu seu curso ao longo da histria tentando explicar a razo de sua
existncia e a origem das diferenas entre os povos. Como vimos antes, foi no sculo
XIX que surgiram as primeiras teorias sobre o porqu as sociedades so diferentes,
baseando-se num modelo de evoluo social. Havia muito material acumulado em
gabinetes e arquivos, como relatos de viagens, relatrios comerciais e cartas de
missionrios. Os primeiros estudiosos da antropologia se baseavam nesses textos para
elaborar seus tratados sobre povos que, muitas vezes, sequer tinham conhecido.
Foi no incio do sculo XX que nasceu uma crtica a esse modelo de
antropologia, reivindicando o trabalho de campo como forma mais apropriada de
pesquisa acerca das sociedades tradicionais. O primeiro representante dessa corrente foi
o antroplogo polons radicado na Inglaterra, Bronislaw Malinowski. Em sua pesquisa
entre os nativos das ilhas Trobiand (Nova Guin), Malinowski desenvolveu o mtodo
que viria a ser o instrumento por excelncia da antropologia: a etnografia com
observao participante. Sua publicao titulada Argonautas do Pacfico Ocidental
tornou-se um cone para a antropologia e sua influncia sentida at hoje no meio
antropolgico. Essa nova escola antropolgica recebeu o nome de Funcionalismo, pois
sua meta era verificar a funo das instituies para a manuteno da totalidade cultural
nas sociedades.
As ideias de Malinowski abriram caminho para o amadurecimento rpido do
mtodo etnogrfico. Dois de seus pupilos, Radcliffe Brown e Evans-Pritchard
incorporam novas ideias ao estudo antropolgico e suas reflexes so classificadas pela
antropologia como uma nova escola, intermediria entre o funcionalismo de
Malinowski e o estruturalismo de Levi-Strauss e por isso mesmo denominada
funcional-estruturalismo. Para eles, o antroplogo deveria se dedicar descrio das
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variveis culturais, dando especial ateno ao papel destas variveis para a manuteno
da estrutura social. Por sua vez, a estrutura social seria a forma como os grupos esto
organizados e relacionados entre si na sociedade (sociedade como corpo funcional). O
homem no seria s um organismo vivo, mas uma varivel, uma posio na estrutura
social. No seu trabalho com os Nuer, Evans-Pritchard buscou demonstrar como uma
estrutura social, que contm em sua prpria constituio a tenso entre grupos por
oposio segmentar, acaba por garantir a manuteno do sistema como um todo.
Tambm na mesma poca, ou seja, ainda na primeira metade do sculo XX, um
antroplogo norte-americano, chamado Franz Boas, prope a substituio do termo
raa pelo de etnia e funda uma escola que ficou conhecida como Particularismo
Histrico ou Culturalismo Norte-americano. Juntamente com outros antroplogos de
seu tempo, proclamou que a classificao dos grupos humanos por raa no s seria
falsa, carente de base cientfica, mas tambm foi politicamente motivada, pois dava
margem a aes racistas. O mtodo que props Boas era essencialmente comparativo,
pois pela comparao se destacam os padres culturais. Tambm estabelece relaes
entre cultura e personalidade, linha que veio a ser desenvolvida posteriormente por suas
alunas, Ruth Benedict e Margaret Mead.
Entre 1935 e 1938, o antroplogo belga radicado na Frana, Claude Lvi-Strauss
vem para o Brasil para dar aulas na recm-criada Universidade de So Paulo (USP). Na
ocasio, empreendeu estudos etnogrficos entre os Bororo e os Nambiquara e o material
serviu para dar sustentao a sua proposta metodolgica, o Estruturalismo. Tomando
conceitos emprestados da lingustica, Lvi-Strauss estabelece uma nova forma de
anlise das sociedades, de carter sincrnico e que objetivava evidenciar as estruturas
ocultas que operam em pares de oposio. Em sua obra fala de um pensamento
selvagem, que longe de ter um carter evolucionista, expunha uma forma de pensar
natural que sempre atuou nas sociedades humanas. Esta forma de pensar seria do tipo
bricolagem, aonde as pessoas, sem um plano ou roteiro, vo incorporando retalhos e
fragmentos de outras produes. Vai ser tambm com Levi-Strauss que o estudo do
parentesco, iniciado por Malinowski, ganha profundidade. Para o estruturalista, os
sistemas de parentesco tinham a funo de regular o intercmbio de mulheres entre os
grupos, mecanismo pelo qual se asseguravam as alianas.
Na dcada de 1960 a antropologia veio receber outra grande contribuio
metodolgica com os trabalhos de Clifford Geertz, pesquisador norte-americano que
estudou as brigas de galo em Bali. Tambm interessado na contribuio da lingustica e
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da literatura, Geertz vai estabelecer a Hermenutica como mtodo de anlise
antropolgica, modelo este que tambm ficou conhecido como Antropologia
Interpretativa. O princpio do mtodo de Geertz seria estabelecer uma descrio densa
dos fenmenos estudados, onde no trabalho de campo o antroplogo analisa as
dimenses simblicas da ao social desde mltiplas ticas e constri suas
interpretaes. Sendo assim, o homem encontra o sentido de sua vida nos padres
culturais, que seriam amontoados ordenados de smbolos. Nas palavras de Geertz, o
homem um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu e a cultura,
por sua vez, seria o mecanismo que d forma a estas teias. Os indivduos sentem,
percebem, raciocinam, julgam e agem sob a direo destes smbolos. Cabe ao
antroplogo compreender estes meios semiticos (ou seja, fenmenos culturais como
sistemas de smbolos) atravs dos quais as pessoas se definem em sua cultura. Na
antropologia interpretativa se prope analogias da vida social: vida como jogo, vida
como drama, vida como texto. A vida como drama no uma farsa, mas sim uma
representao da hierarquia, um teatro do status. Uma pessoa tida como representante
de um tipo genrico e no como criatura nica com destino especfico e sendo assim, o
que importa o drama e no o ator social. Para Geertz, a anlise da vida social no deve
ser elaborada como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia
interpretativa em busca de significados.
Nos dias atuais vivemos uma fase de reflexo. Os antigos conceitos da cincia
no foram to eficazes quanto se esperava na tarefa de resolver os problemas do mundo.
Nasce assim um movimento ps-moderno que tambm influencia a prtica
antropolgica. A formalidade dos mtodos clssicos colocada em segundo plano e
nasce um modelo de etnografia polifnica. O texto etnogrfico passa a ser questionado,
destacando que muitas das monografias clssicas teriam sido elaboradas dentro de uma
autoridade etnogrfica (mais detalhes no Captulo V). Um dos principais crticos ao
formato do texto etnogrfico o norte-americano James Clifford. O texto etnogrfico
passa a ser tido como uma representao da realidade, que assume mltiplos sentidos
(cultura como processo polissmico) tanto no discurso dos nativos como no do
antroplogo. O caminho seria conceder voz a todos os atores do cenrio etnogrfico,
deixando suas narrativas transparecer sobremaneira no texto etnogrfico (composio
polifnica).
No Brasil, um dos grandes expoentes da antropologia foi Roberto Cardoso de
Oliveira. Em sua publicao O Trabalho do Antroplogo, Cardoso de Oliveira
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retratar que existe um processo de elaborao do quadro etnogrfico, que transita entre
o ver, o ouvir e o escrever, faculdades treinadas que o antroplogo aplica em campo.
Explicaes fornecidas pelos prprios membros da sociedade estudada (o modelo
nativo), passveis de levantamento pela entrevista, seriam a matria prima para o
entendimento antropolgico. Mas para tanto, o pesquisador deve estabelecer uma
relao dialgica. Ou seja, na entrevista, sem se ater a roteiros ou perguntas fixas, o
antroplogo deve primar por um dilogo entre iguais, sem receio de estar contaminando
o discurso do nativo. Mesmo porque, como dizia o prprio Cardoso de Oliveira,
acreditar ser possvel a neutralidade idealizada pelos defensores da objetividade
absoluta apenas viver em doce iluso.
Raa ou Etnia?
A antropologia, entre os sculos XVII e XX, usou o conceito de raas humanas para classificar grupos sociais por meio de mtodos genticos. Essa concepo dava margem a teorias racistas que promoviam excluso
social e violncia.
O conceito de raas humanas deixou de ser utilizado, ficando restrito a aes polticas para reivindicao de igualdade racial. Na legislao se fala em preconceito de raa, como a lei n 12.288 , de 20 de julho de 2010, que instituiu, no Brasil, o Estatuto da Igualdade Racial. Ou seja, o termo raa permanece em uso como um dispositivo legal, mas a
antropologia passou a adotar o termo etnias para se referir s
diversidades.
No Brasil, em 2003, foi sancionada a lei 10.639 que estabelece a incluso de
contedos de histria da frica e da cultura afro-brasileira no currculo
escolar. Em 2011 a lei foi modificada incluindo tambm contedos acerca
das culturas indgenas brasileiras.
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IV CATEGORIAS ANALTICAS E CONCEITOS INSTRUMENTAIS EM
ANTROPOLOGIA
Existem categorias e conceitos que so de uso corrente na antropologia,
configurando sua linguagem tcnica. O domnio deste vocabulrio essencial para a
compreenso dos textos acadmicos e dos escritos etnogrficos.
Grupos tnicos o conceito mais difundido na antropologia para grupo tnico o de
Fredrik Barth. Segundo o autor, um grupo tnico definido por algumas semelhanas
entre os seus membros (como crenas, valores, hbitos, normas, substrato histrico
comum) e por diferenas com outros (lngua, religio, histria, geografia, territrio,
etc.). Todos estes aspectos so referenciais simblicos que esto mais na mente das
pessoas do que na realidade objetiva. A origem do termo Etnia vem do mundo antigo.
Na Grcia antiga o thnos era um conceito que definia um grupo de pessoas com
caractersticas biolgicas e culturais em comum, vivendo e atuando em conjunto. Este
thnos representaria o outro, o estrangeiro, o tnico. Em contraposio ao
thnos, existia o conceito de gnos, isto o ns.
Esses grupos compartilham uma etnicidade, que basicamente se refere a um sentimento
coletivo de identidade. Implica identificar-se, afirmar-se como grupo tnico, sentir-se
parte dele, abarcando tambm um exerccio de incluso e excluso. Essa etnicidade a
expresso de um ethos, o modo de ser coletivo que particular e especfico de um
determinado grupo. Traos diacrticos so exibidos a fim de evidenciar a identidade
tnica, mas esses traos no so necessariamente estticos, podendo sofrer algumas
transformaes ao longo da histria de um grupo humano, o que implica uma
negociao constante da identidade social.
Na relao com os outros, os grupos humanos estabelecem fronteiras, sejam estas
tnicas ou culturais. As fronteiras decorrem de um processo de constante gerenciamento
e renovao do universo cultural, que tem que levar em considerao a relao de um
grupo com outro, sendo a funo principal das fronteiras garantir a autonomia da
vivncia social. As fronteiras, na perspectiva cultural, no se limitam s divises
geofsicas, mas englobam as divises sociais. Contornos simblicos so comumente
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delineados a fim de consolidar um repertrio que o ator social acessa para dar sentido ao
mundo em que vive. Este mesmo contorno simblico vai assumir funo de marco
fronteirio, vindo de encontro com as regras estabelecidas para o contato intertnico,
regras essas que, segundo Barth, vo garantir a persistncia das diferenas culturais.
O territrio um elemento material fundamental para que os grupos humanos
mantenham sua vivncia social. A relao de um povo com seu territrio vai gerar uma
territorialidade, que engloba vrios processos de identificao grupal com o territrio
no qual este grupo est assentado. A territorialidade implica a construo de categorias
mentais para atribuir valores simblicos ao territrio. O resultado que a cultura
depende da relao entre o indivduo com sua sociedade e com o seu territrio.
Representaes sociais - so figuraes mentais criadas com o intuito de interpretar o
universo circundante. Porm, este processo de interpretao se d com base nos
conceitos e pr-conceitos de cada grupo, e no propriamente a partir de uma pretensa
realidade.
Cosmologia: conjunto de modelos explicativos que as sociedades acessam para
interpretar o mundo que as cerca. Atravs da cosmologia se busca explicar a vida, a
morte, as contradies humanas e para isso se faz uso de religio, magia, mitos, cincia
e outros mecanismos proveniente do universo imaterial. A cosmologia se manifesta
atravs de uma srie de contornos simblicos que compem um repertrio elaborado
para conferir um sentido de mundo.
Os rituais de iniciao e de passagem so a figurao simblica de uma transformao
de personalidade. Estes rituais tm por funo materializar a passagem de um indivduo
para outro estado. Apresentam relao com a morte e ressurreio (de um novo
indivduo). Terminado o ritual, o iniciado assume uma nova identidade.
Mitos corpo terico que se expressa na forma de narrativas carregadas de conceitos
ticos e morais. Na maior parte dos casos so narrativas de fundo religioso. Podem estar
relacionadas com a origem do homem e da vida. Mas tambm podem ser uma forma de
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explicar, pelas vias do sobrenatural, eventos que no so plenamente compreendidos
pelos membros de uma sociedade.
Ritos conjunto de procedimentos que tm por finalidade materializar o mito ou o
sagrado. a repetio - ou a evocao - de eventos mitolgicos por meio de uma
liturgia. Um exemplo seria o rito catlico do ofertar (hstia) para rememorar o mito de
que Jesus morreu na cruz pela humanidade.
O nosso mundo ocidental cristo divide-se entre o sagrado e o profano. O sagrado seria
tudo aquilo que est ligado a um estado emocional especial conhecido como
experincia religiosa. Essa experincia pode ser identificada por uma sensao de
assombro e terror, de se estar diante de algo extraordinrio, misterioso, divino. Por sua
vez, o profano define os limites do mundo ordinrio, separando tudo aquilo que no
est conectado com o sagrado.
O animismo consiste da crena de que para todo ser material, tangvel, visvel, existe
um ser imaterial e invisvel denominado alma (do latim anima). As crenas animistas,
ou antinaturalistas, atribuem uma essncia espiritual a todos os seres vivos. Assim
sendo, tudo aquilo que desde o ponto de vista ocidental definimos como mundo material
paradoxalmente influenciado por uma legio de espritos que interagem com os vivos.
Se em nossa sociedade a alma um conceito exclusivamente humano, em outras os
animais tambm so dotados de esprito. Em sua etnografia sobre os Kaiow, o
antroplogo sul-mato-grossense Levi Marques Pereira registrou que certos atributos que
no pensamento ocidental so exclusivamente humanos, como capacidade de
comunicao, intencionalidade, desejo e afetividade, no pensamento do indgena so
compartilhados com uma srie de seres no-humanos, com os quais a sociedade humana
necessariamente interage e dos quais depende para desenvolver sua vida social.
Mas a crena em poderes sobrenaturais nem sempre est ligada ao mundo das almas. Na
viso de muitas sociedades humanas, alguns seres ou objetos so dotados de poderes
mgicos ou sobrenaturais, mas que em sua origem no guarda relao com a alma. A
isso denominamos animatismo. Grupos nativos da melansia chamavam este poder
animatista de mana. Uma lana ou espada que se torna mtica por matar muitos
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inimigos, ou ainda um trevo de quatro folhas, seriam exemplos de objetos portadores de
mana.
Morfologia social: maneira como uma sociedade est estruturada. O estudo de sua
estrutura permite perceber como as unidades esto interligadas ou combinadas, de forma
que a alterao em uma das variveis influencia todo o conjunto. A estrutura social a
forma de organizao e de relao entre as suas partes (grupos de parentes, indivduos,
cls, comunidades). A estrutura social uma rede estvel de relaes entre grupos
sociais com diferentes tipos de acesso aos recursos.
Classe social - Grupo de pessoas que se relaciona de maneira similar com os
mecanismos de controle das sociedades estatais e que dispe de cotas de poder ou
carncia de poder. So similares no que diz respeito distribuio da riqueza, dos
privilgios e do acesso aos recursos e tecnologia. A classe deve ter conscincia de sua
prpria identidade para se organizar socialmente e isso requer uma parcela de
participao social. As classes s existem quando pessoas com formas e quantidades
similares de poder social se organizam em associaes coletivas, como partidos
polticos e sindicatos. A concentrao de poder nas mos de certos grupos e a carncia
de poder de outros gera tenso social. O poder, nesse caso, o controle sobre a renda e
a natureza. Nossa sociedade depende da natureza para gerar energia (combustvel,
hidroeltricas, etc.) e os que dominam estes setores detm poder.
Para Marx e Engels, pensadores cujas ideias deram origem escola marxista, a
industrializao gerou um sistema de classes, no qual a burguesia e a classe operria
(chamada pelos marxistas de proletariado) seriam as mais importantes. A burguesia
controlaria a escola, os meios de comunicao e outras instituies, ao passo em que os
proletrios s teriam o controle de sua fora de trabalho, oferecida em troca de um
salrio. Segundo Marx, o motor da Histria seria o conflito entre essas duas classes.
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A partir do momento em que grupos ou classes de pessoas passaram a se organizar a
fim de fazer valer suas reivindicaes, seja de reconhecimento de sua diversidade ou de
acesso a bens ou ao poder, nascem os movimentos sociais.
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V A PESQUISA ANTROPOLGICA
Entre o inefvel, o inescrutvel e o ininteligvel
Em minha experincia enquanto docente percebi que uma das maiores
dificuldades dos alunos saber como equalizar as pesquisas por eles desenvolvidas com
as orientaes terico-metodolgicas propostas pelas diferentes escolas antropolgicas.
O erro mais comum confundir procedimentos metodolgicos com corpo metodolgico
terico. Este erro recorrente faz com que a observao participante se converta em
uma bengala metodolgica e mais: em uma tbua de salvao.
Esta dificuldade conceitual parece ser o principal obstculo a ser transposto na
formao dos profissionais do campo da antropologia. De fato, lembro-me de meus
tempos de estudante e das inmeras dvidas que surgiam com o progresso das aulas,
que pela lgica seguiam um percurso partindo da teoria clssica contempornea. Do
exerccio acadmico decorre uma prtica monocrdia: os textos dos grandes tericos e
pensadores so lidos e escrutinados, trechos populares so decorados como mantras e
surgem os escolicismos. Mas no momento de trazer estes conceitos para a prtica
profissional que as dificuldades abrolham, formando um verdadeiro areal movedio.
Na dificuldade de moldar suas pesquisas a uma orientao terico-metodolgica,
os acadmicos lanam mo de artifcios, sendo o mais comum a repetio dos
mencionados mantras. Na hermenutica, dizem que o homem um ser amarrado a
teias de significados que ele mesmo teceu para dar sentido ao mundo em que vive, mas
raramente conseguem produzir uma interpretao simblica dos fenmenos por eles
observados em campo. No ps-modernismo, atestam que o texto deve ser pessoal e livre
das amarras metodolgicas, mas quase nunca atingem com xito a textualidade de uma
etnografia polifnica. H ainda os que traam diagramas de parentesco, intitulando-se
estruturalistas, mas que, via de regra, no conseguem decompor a cadeia estrutural que
ordena a narrativa dos mitos.
Por que os acadmicos encontram tais dificuldades em desenvolver suas
pesquisas em sintonia com os pressupostos metodolgicos? A resposta pode estar na
prpria trajetria da antropologia enquanto disciplina acadmica. A antropologia um
campo cientfico relativamente novo. Sua insero no arcabouo de disciplinas
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universitrias se consolidou h no mais que um sculo o primeiro antroplogo a
receber uma ctedra voltada ao estudo do homem foi Tylor, em Oxford, no ano de 1884,
mas a primeira ctedra estritamente em antropologia social foi criada pela Universidade
de Liverpool somente em 1908. Contudo, a consolidao da antropologia nos espaos
nacionais ainda mais nova e ligada a uma busca por modelos de cultura nacional. De
um lado as naes experimentavam a necessidade de construir seus nacionalismos,
criando um modelo endgeno de pesquisa. Por outro, entre as naes que reivindicavam
a alcunha de epicentro do saber antropolgico, estavam aquelas mais comprometidas
com um modelo colonialista de antropologia, onde o saber gerado seguia um fluxo de
dentro para fora e a prtica da pesquisa se dava na imposio dos conceitos de fora para
dentro. Essa discusso atinge elevado destaque no embate protagonizado pelos
antroplogos Marshal Sahlins e Grananath Obeyesekere acerca da interpretao dos
eventos decorrentes do contato entre o Capito Cook e os nativos do Hawaii.
No entanto, mesmo tendo um incio nuclear, onde prevalecia os modelos
defendidos pelas instituies centrais, a antropologia no deixou de alimentar sua
principal caracterstica e maior qualidade: uma inquietao intelectual que se
retroalimentava pela formulao constante de autocrtica. Estas crticas desencadearam
o veloz aperfeioamento metodolgico, que contribuiu para o multifacetado campo
terico que molda a disciplina. To diverso quanto os modelos tericos, foram os
dilogos que apareceram com outros campos do saber: antropologia da educao,
antropologia psicanaltica, antropologia empresarial, antropologia poltica, antropologia
jurdica, isso s para citar uma nfima parte destes dilogos possveis. Ou seja, enquanto
a academia ainda discutia interdisciplinaridade, a antropologia j ensaiava prticas
transdisciplinares.
Este complexo esteio constitutivo tornou a discusso do mtodo um verdadeiro
drama nas bancadas universitrias. Num primeiro momento o mtodo o inefvel, pois
exerce um efeito de seduo ainda que seja difcil defini-lo com palavras. Na medida
em que as aulas tericas vo evoluindo, seguindo o modelo diacrnico de construo
das escolas antropolgicas, o mtodo passa a ser o inescrutvel, onde por mais que se
escrutine os textos clssicos, mais instransponvel parece a barreira que separa o aluno
do domnio instrumental dos conceitos formativos. Por fim, quando o acadmico parte
para a elaborao de sua pesquisa de campo, os mtodos passam a ser aquele corpo
terico ininteligvel, um fenmeno quase transcendental que s pode ser compreendido
com plenitude pelos geniais antroplogos que transpuseram o limiar do raciocnio
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humano ordinrio. O tiro de misericrdia vem com os enunciados epistemolgicos mais
elaborados, como o clssico cultura como processo polissmico e etnografia como
representao polifnica da polissemia cultural.
A principal barreira o descompasso entre a rpida evoluo da crtica
conceitual que rege a antropologia enquanto disciplina e o grau de reflexo que as
universidades nacionais so capazes de promover em sala de aula nos cursos de
graduao. No podemos esquecer que construo filosfica artigo de luxo em nossa
educao de base. Segue-se a isso o fato de que as escolhas dos cursos superiores so
influenciadas pelo aspecto mercadolgico, o que acarreta certo desprezo pelos campos
das humanidades. O resultado frustrante, pois formamos uma classe de descrentes que
veem com pesar e at certo grau de desdm sua prpria rea de atuao. O
amadurecimento dos acadmicos acerca da antropologia vai ocorrer somente aps o
ingresso na formao stricto sensu, ou seja, no mestrado e no doutorado. Ali o aluno
tem de correr atrs do tempo perdido, mas a pesquisa antropolgica parece manter seu
carter inescrutvel.
Como superar essas limitaes? O aluno passa a ter somente os dois anos do
mestrado para desvendar o enigma da esfinge, temendo ser devorado por conta de suas
inabilidades conceituais. Expressar o inefvel, transpor o inescrutvel, compreender o
ininteligvel! Esse seria o desafio. Sobre o docente acaba recaindo o papel de messias,
responsvel por guiar os acadmicos terra prometida em meio ao areal movedio.
Diante disso, a formao acaba prejudicada. Uma maneira que se encontrou para
contornar tais limites foi a constituio de uma escolstica ao revs, onde a razo
superada pela f nos lderes messinicos. As aulas de teoria antropolgica passaram,
assim, a ser o espao onde se aprende os mantras a serem reproduzidos, resultando
disso a formao de inflexveis escolas nacionais. Institui-se um paradoxo, onde ao
mesmo tempo em que a antropologia adquiriu tanta riqueza terica pela autocrtica, em
termos de formao prevalecem os modelos ligados a determinados messias e
protagonizados por um pequeno crculo de famosos programas de ps-graduao.
Qualquer proposta de reflexo que fuja a este sistema tem sido duramente censurada.
O primeiro passo para aperfeioar a formao dos antroplogos seria romper
com esses modelos nacionais limitantes. Depois, iniciar o estudo metodolgico pelo
principal dogma da antropologia: o texto etnogrfico. O texto o espelho da alma
antropolgica, o que transforma em paradigma o saber formatado a partir dos olhos do
outro. Evitar a autoridade etnogrfica, aplicar o vis hermenutico e a polifonia, so
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os mecanismos para se levar o entendimento da pesquisa antropolgica aos estudantes
universitrios. Ainda que pese a dificuldade de se conduzir os acadmicos por esse
campo movedio, sim possvel guiar os alunos por um rico referencial terico-
metodolgico desde os cursos de graduao. Basta fazer com que eles percebam que sua
prpria vida obedece aos mesmos fenmenos que tentamos observar em sociedades to
dspares em relao nossa. Assim tem incio um exerccio que, conforme assevera
Roberto Da Mata, consistiria em exotizar o familiar e familiarizar o extico. preciso
que o aluno tenha claro que as explicaes fornecidas pelos prprios membros da
sociedade estudada (o modelo nativo), passveis de levantamento pela entrevista, seriam
a matria prima para o entendimento antropolgico.
Na sequncia, sero discutidos procedimentos metodolgicos para por fim
estabelecer as conexes necessrias com as correntes terico-metodolgicas,
Partindo do incio: o que uma pesquisa para as cincias sociais?
Entre as muitas caractersticas da cincia est o mtodo, ou seja, o conjunto de
procedimentos ordenados e processados de forma a garantir a acurada observao dos
fatos. Em poucas palavras, o mtodo um caminho que orienta o pesquisador para se
atingir uma finalidade proposta. Enquanto elemento norteador do processo cientfico, o
mtodo fundamental para garantir os quesitos necessrios para que uma reflexo se
torne pesquisa. No para menos que num projeto de pesquisa, a metodologia uma
das primeiras preocupaes.
Entretanto, h muito existe uma clara diviso no mundo acadmico entre as
cincias naturais e as cincias sociais. Seriam os homens e suas atitudes passveis de
observao e experimentao tais quais os fenmenos naturais? A resposta
evidentemente no. Assim, as cincias naturais passaram a buscar a via da
explicao, ao passo em que nas cincias sociais o caminho da pesquisa orientado
pela via da compreenso. Ou seja, nas cincias sociais o pesquisador no explica os
fenmenos sociais, mas sim busca compreender como as sociedades se comportam e
esto organizadas.
A partir do momento em que os cientistas sociais decidiram romper com o ideal
positivista das cincias naturais, abriu-se espao para o amadurecimento de um rico
contedo metodolgico. Mesmo assim, entender fenmenos sociais no simples.
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necessrio definir abordagens. Primeiramente, um pesquisador pode optar entre dois
modelos de anlise: o sincrnico e o diacrnico. No modelo sincrnico os fenmenos
sociais so explicados por um conjunto de estruturas sem necessariamente levar em
considerao a trajetria histrica. O que importa destacar aspectos que possibilitem
um delineamento da sociedade em estudo, onde esses aspectos se comportam em forma
de sistema ou seja, a modificao de uma varivel causaria impactos em todo o
conjunto. No modelo diacrnico os fenmenos sociais so explicados por uma
sucesso de acontecimentos, ou seja, leva em conta a trajetria histrica em que os
fenmenos estudados esto inseridos. Na antropologia encontramos as duas
possibilidades de anlise. Por exemplo: temos na arqueologia uma rea de pesquisa
mais voltada para o diacronismo; nos modelos estruturalistas de antropologia social nos
deparamos com preocupaes voltadas aos fenmenos sincrnicos.
Mas antes de tudo, voc precisa recortar seu objeto de estudo e definir uma
hiptese de trabalho. A pesquisa em cincias sociais serve para entender os pressupostos
sociais, culturais, polticos ou mesmo individuais que se escondem sob a esmagadora
aparncia dos fatos. Mas o que exatamente estamos querendo evidenciar com nosso
estudo? a que tem incio o recorte temtico. Primeiro, temos que definir para qu
estamos fazendo pesquisa: