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1 Antropologia e Classes Sociais no Brasil Contemporâneo 1 Moisés Kopper UFRGS/RS Resumo Recentemente, talvez mais que em momentos anteriores de nossa história, o conceito de classe social tornou-se objeto de um variado número de intervenções que emergem de distintas partes do espectro político e intelectual brasileiro. Este artigo parte da recente mobilidade social brasileira para indagar-se pelo significado desses processos de justificação: sobre o que estamos falando, quando invocamos classe social como um operador de sentido privilegiado? Que imagens de classe estão em jogo? Quem fala e quem silencia? Quais são os narradores desses dispositivos? O paper discute como a emergência de uma “nova classe média” deu lugar a novas agendas de pesquisa e de intervenção, que ademais respondem a demandas políticas, econômicas e morais específicas. Finalmente, o artigo sugere mediações e passagens possíveis entre esse mercado de ideias que cerceia a “nova classe média” observando os desdobramentos de suas tentativas e critérios de classificação, assim como a agência dos institutos de propaganda e marketing que sobre ele se debruçam e as ideias que ganham vida no mercado a partir do campo acadêmico atentando para os oradores e silenciadores dessa gramática intelectual. Palavras-chave: antropologia, classes sociais, etnografia O constante crescimento do mercado interno brasileiro, desde a implementação do Plano Real, nos anos 1990, associado a diversas mudanças conjunturais, pôs às claras um conjunto heteróclito de estudos, argumentos e políticas públicas voltadas para um novo segmento da população: a emergente “classe C”. Uma miríade de agentes, instituições públicas e privadas de pesquisa e marketing, jornalistas e elaboradores de políticas públicas sugeriu critérios para a sua apreensão e classificação, arrogando-se o direito de falar em seu nome, de acessar sua subjetividade e, enfim, destinar-lhe a tão aguardada cidadania política através de seu ingresso visível no universo do consumo. Os mais diferentes meios de comunicação têm se empenhado em divulgar os resultados de diversas pesquisas científicas que emergiram, progressivamente, a partir de 2005, e tiveram seu ápice em torno de 2010. A tal “classe C”, cujo critério de circunscrição aproximado é o a renda familiar entre R$ 1200 e R$ 5174 mensais, representaria 53% da população do censo de 2010, o que equivaleria a aproximadamente 102,6 milhões de pessoas. Um estudo realizado pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e publicado em setembro do mesmo ano sugere que, entre 2003 e 2010, cerca de 40 milhões de brasileiros teriam “migrado” para a classe C. Se tais números não dão a dimensão exata dos fluxos de mobilidade social, as estatísticas 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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Antropologia e Classes Sociais no Brasil Contemporâneo1

Moisés Kopper — UFRGS/RS

Resumo

Recentemente, talvez mais que em momentos anteriores de nossa história, o conceito de classe

social tornou-se objeto de um variado número de intervenções que emergem de distintas partes

do espectro político e intelectual brasileiro. Este artigo parte da recente mobilidade social

brasileira para indagar-se pelo significado desses processos de justificação: sobre o que estamos

falando, quando invocamos classe social como um operador de sentido privilegiado? Que

imagens de classe estão em jogo? Quem fala e quem silencia? Quais são os narradores desses

dispositivos? O paper discute como a emergência de uma “nova classe média” deu lugar a

novas agendas de pesquisa e de intervenção, que ademais respondem a demandas políticas,

econômicas e morais específicas. Finalmente, o artigo sugere mediações e passagens possíveis

entre esse mercado de ideias que cerceia a “nova classe média” – observando os

desdobramentos de suas tentativas e critérios de classificação, assim como a agência dos

institutos de propaganda e marketing que sobre ele se debruçam – e as ideias que ganham vida

no mercado a partir do campo acadêmico – atentando para os oradores e silenciadores dessa

gramática intelectual.

Palavras-chave: antropologia, classes sociais, etnografia

O constante crescimento do mercado interno brasileiro, desde a implementação do Plano

Real, nos anos 1990, associado a diversas mudanças conjunturais, pôs às claras um conjunto

heteróclito de estudos, argumentos e políticas públicas voltadas para um novo segmento da

população: a emergente “classe C”. Uma miríade de agentes, instituições públicas e privadas

de pesquisa e marketing, jornalistas e elaboradores de políticas públicas sugeriu critérios para

a sua apreensão e classificação, arrogando-se o direito de falar em seu nome, de acessar sua

subjetividade e, enfim, destinar-lhe a tão aguardada cidadania política através de seu ingresso

visível no universo do consumo.

Os mais diferentes meios de comunicação têm se empenhado em divulgar os resultados

de diversas pesquisas científicas que emergiram, progressivamente, a partir de 2005, e tiveram

seu ápice em torno de 2010. A tal “classe C”, cujo critério de circunscrição aproximado é o a

renda familiar entre R$ 1200 e R$ 5174 mensais, representaria 53% da população do censo de

2010, o que equivaleria a aproximadamente 102,6 milhões de pessoas. Um estudo realizado

pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e publicado em setembro

do mesmo ano sugere que, entre 2003 e 2010, cerca de 40 milhões de brasileiros teriam

“migrado” para a classe C.

Se tais números não dão a dimensão exata dos fluxos de mobilidade social, as estatísticas

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de

2014, Natal/RN.

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econômicas, baseadas no consumo material, são apresentadas como indicativos decisivos:

tratar-se-ia de uma população com renda total estimada em R$ 815 bilhões e expectativa de

consumo que ultrapassa R$ 1 trilhão. Assim, a classe C seria responsável por 78% do que é

comprado em supermercados, 70% dos cartões de crédito em circulação no Brasil e 80% do

acesso à internet; movimentaria um montante anual de R$ 273 bilhões no comércio eletrônico,

em produtos como eletrodomésticos, informática, livros e telefonia celular, além de influenciar

diretamente, por pesquisas de preço, opinião e informações, 50% das compras no varejo

tradicional.

As “táticas de conquista” também mobilizam estratégias políticas e governamentais

visando captar seus desejos e definir suas necessidades. As especulações em torno da “nova

classe média” brasileira ficam evidentes, ainda, na criação de órgãos específicos e na

formulação de políticas públicas para o seu fomento, como é o caso, respectivamente, da

Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE-PR) e do projeto “Vozes

da Classe Média”2. Como consequência desse complexo e arrojado sistema de monitoramento,

que alia a ciência às táticas de governo, através do mercado, novos critérios de classificação da

população em estratos socioeconômicos permitirão fazer a passagem da classe média como um

segmento para a classe média como representativa da população brasileira. É ela, em última

instância, que deverá estar na origem de futuras políticas públicas, ao mesmo tempo em que

deverá tornar governável o país. Mais que a consolidação de um projeto político, tem-se,

igualmente, uma mudança significativa em termos de um projeto de nação — o que envolve,

efetivamente, a caracterização de seu povo como uma espécie de patrimônio sociocultural.

Subitamente, responder à pergunta sobre o que é o Brasil contemporâneo passa, como

referência retórica obrigatória, pela caracterização de sua classe média.

Tendo por pano de fundo esse cenário ainda em constituição, pode-se observar que nos

últimos anos a expressão “nova classe média” se tornou mote para discursos muitas vezes

conflitantes sobre a realidade nacional. Onde quer que performances de estratificação e

mobilidade social estejam em jogo, parece haver certo encantamento no modo reiterado como

diferentes instâncias discursivas apelam para a ideia de “classe” como fundamento explicativo.

Um rápido exame das justificativas produzidas na esfera pública brasileira sobre eventos

cotidianos demonstraria que este foi o caso em pelo menos dois acontecimentos. De um lado,

2 De acordo com o site oficial [disponível em http://www.sae.gov.br/vozesdaclassemedia/?page_id=156], o

Projeto Vozes da Nova Classe Média pretende "contribuir para a definição do perfil atual desse estrato social. O

que se pretende é identificar as múltiplas faces da classe média: de onde vem, onde mais cresceu, como se

comporta, como utiliza os serviços públicos, o que pensa e quer, quais as suas necessidades, receios, valores e

como avalia os serviços públicos".

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uma matéria publicada alguns dias após os protestos de junho de 2013 3 pela agência

internacional Reuters, sob o título sugestivo de “Por que a nova classe média está

protestando?”4, condensa a maior parte das associações realizadas entre as demonstrações e a

emergência de uma nova classe média consciente de seus direitos e deveres.

A conclusão do artigo é de que, não obstante a ascensão recente de milhões de

brasileiros à classe média, não haveria muito o que comemorar: “como trabalhador da área de

saúde pública em um imenso subúrbio no Rio de Janeiro, Tamandaré é o tipo de cidadão que o

governo do Brasil pensa estar realizado. Em vez disso, ele é um dos mais de um milhão de

pessoas no maior país da América Latina que foi às ruas em uma onda de protestos em massa”.

Perpassando toda a análise, não está apenas a pressuposição da incontestabilidade dessa “saída

da pobreza”, senão que ela tenha evocado, como que de supetão, tal reconfiguração de pobres

irrelevantes a cidadãos de bem – não apenas conscientes de suas obrigações como capazes de

encontrar os caminhos tidos como adequados para expressar suas insatisfações nos espaços

públicos. Em poucas palavras, sua narrativa vai ao encontro de dois paradigmas presentes nas

análises correntes sobre o assunto (cf. Kopper, 2014): de um lado, a ideia de que o acesso ao

consumo não é suficiente para caracterizar estratos sociais como médios, e de outro o

pressuposto de que uma classe média deve compartilhar atributos simbólicos e bandeiras

políticas tidos como característicos em diferentes sociedades, tais como, apenas para citar

questões levantadas pelo autor, críticas contra a má qualidade de escolas, hospitais e transporte

público, contra o aumento dos preços, o crime e a corrupção; e, finalmente, contra o marasmo

da classe política.

No segundo caso empírico referido, mais recente, diferentes autores e figuras públicas

sugerem haver uma articulação entre o fenômeno dos assim chamados “rolezinhos” 5 e a

democratização no acesso à tecnologia e ao universo do consumo que os teria propiciado. Como

consequência, são rápidos em apontar, tratar-se-iam de jovens da nova classe média a frequentar

3 Os protestos no Brasil em 2013, também conhecidos como Jornadas de Junho, surgiram por todo o país

inicialmente para contestar os aumentos nas tarifas de transporte público, em grandes capitais como Manaus,

Vitória, Fortaleza, Natal, Salvador, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. Rapidamente

ganharam grande apoio popular após a forte repressão policial contra as passeatas. Atos semelhantes proliferaram

em diversas cidades do Brasil e do exterior em apoio aos protestos, passando a abranger uma grande variedade de

temas, como os gastos públicos em grandes eventos esportivos internacionais, a má qualidade dos serviços

públicos e a indignação com a corrupção política em geral. 4 Disponível em: http://br.reuters.com/article/topNews/idBRSPE96200S20130703. Acessado em 18.02.2014. 5 A palavra “rolê” é uma gíria associada a dar uma volta e se divertir. Os primeiros rolezinhos aconteceram em

dezembro de 2013, organizados por cantores de funk, em resposta à aprovação de um projeto de lei que proibia

bailes nas ruas de São Paulo (proposta que depois foi vetada pelo prefeito Fernando Haddad). Depois, MC’s

passaram a promover encontros ao vivo com suas fãs, seguidos por pequenas “webcelebridades”, pessoas com

milhares de seguidores nas redes sociais, que levaram seus fãs do Facebook aos shoppings. O objetivo era conhecer

gente nova, ser visto, paquerar, se divertir e escutar funk ostentação, gênero musical que mistura batidas de funk

a letras sobre consumo e marcas de luxo.

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espaços até então tidos como “elitizados”, o que daria margem a uma série de reações morais

conservadoras. De modo geral, os debates que se seguiram aos “rolezinhos” oscilaram entre

dois pólos em tensão: de um lado, havia quem percebesse na ocupação de shoppings centers –

não raro vistos, nessa perspectiva, de “templos de consumo” – o sinal de uma resistência política

à exclusão crônica que assolaria essas populações, tradicionalmente à margem do consumo (e,

por extensão, supõe-se, da cidadania). De outro lado, havia quem apontasse tão somente para o

processo de reificação de marcas e objetos subjacente ao ato de consumo. Não deixa de ser

interessante que, se no primeiro caso é a suposta “nova classe média” o termo utilizado para

referir-se aos “rolezeiros”, no segundo são aglutinados, em geral, sob a alcunha de “pobres”.

Essas distinções não são fortuitas, e nos conduzem às apropriações políticas dos jogos

taxonômicos na origem pelas disputas de entendimento desses fenômenos – como de fato

pretendo sugerir ao longo deste texto. Por hora, cabe assinalar, apenas, que: a) o jargão “nova

classe média” predispõe seu empregador a uma positivação do consumo e da cidadania, na

medida em que converte os participantes desses eventos em sujeitos cujas vidas, desejos e

reivindicações merecem ser melhor entendidas; b) tais alterações emergem em contextos de

dramatização da retórica da “desigualdade brasileira”, e o jargão “nova classe média”, na busca

por definir participantes de protestos ou “rolezinhos”, parece sugerir mudanças estruturais na

pirâmide social – essa “coisa antiga, sólida, estruturada (…), o que tínhamos de mais nosso”6.

Em ambos os casos, o que parece estar em jogo são eventos cujas próprias fronteiras de

entendimento ainda não estão sedimentadas – vale dizer, que estão sujeitas a contestações

abertas e jogos taxonômicos em torno de seu legado. Não deixa de ser curioso que uma noção

igualmente afeita a disputas semânticas – como a de “nova classe média” – seja empregada

como condensadora e articuladora de tais fenômenos, numa espiral profusa de experimentações

associativas. Com efeito, se prosseguíssemos, para efeitos argumentativos, numa busca pela

concretude incontestável do que esteja na sua origem, pouco encontraríamos. Talvez mais que

certezas, depararíamo-nos com diferentes instâncias de mediação produzindo narrativas

inteligíveis para definir novos problemas a partir de velhas ferramentas. Antes de perguntarmo-

nos acerca dos efeitos de mobilização política que tais eventos possam implicar, valeria a pena

uma reflexão anterior sobre o que suscita essa crise nos sentimentos de pertencimento a certas

coletividades – sejam elas políticas, sociais ou econômicas. Antes do esfacelamento de partidos

políticos, movimentos sociais e classes econômicas, encontramos novas modalidades de

6 Termos extraídos de crônica de Luís Fernando Veríssimo, disponível em

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,buuu,711779,0.htm.

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sociabilidade forjadas a partir da apropriação de dispositivos tecnológicos – seja a própria

internet, ou os objetos que a formatam – e de novas dinâmicas de mobilidade social ascendente7.

Sem descurar da importância da primeira, este artigo toma como ponto de partida a

recente mobilidade social brasileira para indagar-se pelo significado desses processos de

justificação: do que estamos tratando, quando invocamos classe social como um operador de

sentido privilegiado? Que imagens de classe estão em jogo? Quem fala e quem silencia na

narração desses dispositivos? A que efeitos políticos e econômicos seu emprego conduz?

Não se pode negar que uma genealogia do termo “nova classe média” apontaria para a

emergência de novas agendas de pesquisa e de intervenção, que ademais respondem a

demandas políticas, econômicas e morais específicas. Este artigo toma como ponto de partida

teórico a pesquisa de doutorado, em andamento, e como referência empírica os eventos

brevemente aduzidos acima, para sugerir mediações e passagens possíveis entre o mercado de

ideias que cerceia a nova classe média. A proposta está em observar os desdobramentos das

tentativas e critérios de classificação, atentando para os oradores e silenciadores dessa

gramática intelectual. Para tanto, divide-se em três partes: num primeiro momento concentra-

se na agência dos institutos de propaganda e marketing que se debruçam sobre a nova classe

média; em seguida, sobre o campo intelectual e no modo como as disputas no mercado ganham

vida a partir de construções semânticas elaboradas por acadêmicos; finalmente, sinaliza

algumas razões possíveis para o silenciamento da antropologia nesse debate.

1. Renato Meirelles e o Instituto Data Popular

Em uma de suas várias entrevistas recentes, Renato Meirelles foi apresentado da

seguinte maneira: “O Sr. é especialista na nova classe média. Quem levar essa fatia do

eleitorado tem muitas chances de ganhar esta eleição. Quais são as demandas da nova classe

média na próxima eleição presidencial? Que que é prioridade pra esse público?”. Diretor

fundador do Instituto Data Popular, Meirelles consolidou-se rapidamente como referência

consultiva quando o que está em jogo é traçar tendências, explicar comportamentos e

prognosticar reações da chamada “Classe C”8. Seu nome transformou-se numa espécie de selo

certificador dos saberes produzidos em torno da nova classe média – a tal ponto que sua rotina

atual concentra-se mais na concessão de entrevistas e palestras que propriamente na

administração da empresa que detém – e certamente não é de menor importância para isso o

7 Não sugiro, aqui, que estas sejam as duas explicações principais na origem desses eventos; certamente, há outras

instâncias disruptivas, como a própria realização de megaeventos e a proximidade com o ciclo da política

convencional. Porém, ambos poderiam ser tomados como eventos catalizadores, e menos como dinâmicas que,

pela sua formatação empírica, dão origem a novas formas de apropriação e arranjo de relações sociais. 8 Trecho extraído de entrevista acessível em http://jornalggn.com.br/noticia/rolezinho-nao-e-um-movimento-

politico-diz-renato-meirelles.

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fato de haver convertido, no início da década de 2000, o que até então era apenas uma agência

de marketing num instituto de pesquisa.

A gente não tem pretensão de dizer para onde o Brasil vai ou apontar critérios. O que

a gente tenta fazer é montar uma equipe que junte os diversos olhares num primeiro

momento. Por isso que lá no Data Popular a gente tem antropólogos, sociólogos,

temos economistas na nossa equipe fixa, e todo mundo fica se matando, debatendo a

análise das pesquisas. Que não são apenas pesquisas quantitativas, gosto ou nao gosto,

pesquisa de opinião. Muitas vezes nós vamos olhar os grandes dados do IBGE, a

leitura necessária para essas dúvidas, mas muitas vezes nós moramos nas casas dessas

pessoas. A gente passa um tempo convivendo, conversando com essas pessoas,

porque elas tem que ser as próprias intérpretes disso.

Os institutos privados de pesquisa foram os primeiros a sugerirem e apostarem numa

possível associação entre mobilidade social, redução da desigualdade e ascensão de uma nova

classe média. Dentre aqueles especializados em consultoria sobre esse novo público

consumidor, o mais evidente é o Data Popular, sediado em São Paulo. Conforme relatos que

ouvi em conversas com profissionais e coordenadores de pesquisa, a conversão da empresa de

marketing à condição de instituto de pesquisa ocorreu num período em que poucos teciam

suspeitas sobre a emergência de um novo estrato da população, capaz de consumir. Nas palavras

de um dos analistas,

O Data Popular surgiu em 2001, e foi o primeiro instituto de pesquisa de mercado a

se especializar no consumo de baixa renda. Isso é curioso, porque em 2001 esse debate

ainda não tinha deslanchado. O Lula ainda não tinha ganhado a primeira eleição. De

2004 pra cá, esse debate muda de patamar, aqui no Brasil, quando a gente começa a

ver de fato mudanças ali nos indicadores de pobreza, de desigualdade, e uma série de

outros indicadores. Então de lá pra cá, o Data Popular, enquanto empresa, também

ganhou muito mais visibilidade. Um pouco depois, em 2007, 2008, isso vira um tema

público e depois, principalmente ali em 2009, 2010, tem um boom de notícias sobre

isso, né. E pras empresas também vem nessa mesma onda. O Data Popular, enquanto

provedor de serviços, passa a ter uma demanda muito maior do que tinha. Inclusive

passa a ter fora do Brasil. Tem empresa multinacional que vem pra cá, ‘estou ouvindo

dizer que tem essa nova classe média, que ascendeu no Brasil, e que ta todo mundo

vendendo muito pra ela’. De fora também vindo pra cá. (...) Então se por um lado a

gente tinha, tem ainda, como meta prioritária do governo atual, a redução da pobreza,

passa a ganhar espaço, principalmente na secretaria de assuntos estratégicos, a

manutenção dessas pessoas que ascenderam pruma dita classe média, nesse novo

estrato.

Apesar de a pobreza ter emergido apenas recentemente como um problema de governo

(Sprandel, 2001), o relato aponta para algumas problemáticas centrais no entendimento de uma

frente discursiva em torno da “nova classe média”. De um lado, era essencial que, para investir

seus números de maior eficácia mercadológica, mas também para torná-los eficientes do ponto

de vista de sua potencial utilização como instrumento de elaboração de políticas públicas, era

preciso “cientificizar” sua abordagem, através da criação de um novo braço de mercado, o

instituto de pesquisa. Mais do que alterações práticas, o que estava em jogo era a incorporação

de um conjunto de experts e profissionais capazes de imprimir a credibilidade necessária para

um público doravante mais amplo. Este incluía, segundo site da empresa, os tradicionais

clientes varejistas – alguns dos quais, como o Grupo Sílvio Santos, Grupo Pão de Açúcar, o

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Ministério do Turismo, Casas Bahia, Editora Abril e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) –

mas passaram a incluir, igualmente, instituições que trabalham com a veiculação de dados e

números, como editoras de revistas, jornais, emissoras de televisão, e o próprio governo federal.

Em julho de 2012 tive a oportunidade de conhecer pela primeira vez o Data Popular, em

sua sede na cidade de São Paulo, próximo à Avenida Paulista. O Instituto ocupa todo o terceiro

pavimento de um prédio comercial no coração corporativo da cidade. Em meio à alta demanda

pela finalização e entrega de relatórios, fui recebido em um dos espaços destinados à realização

de grupos focais e reuniões de apresentação para clientes. O ambiente era sóbrio sem ser

austero: uma generosa televisão de mais de 50 polegadas preenchia um dos lados, com home

theaters acoplados e moveis sob medida – para a apresentação performática dos relatórios. Do

outro lado, um grande painel chama a atenção, em que se lê uma definição completa, extraída

de algum dicionário, sobre o significado do verbete “popular” – em letras típicas de dicionário;

ao fundo, ainda, um grande painel espelhado e, em frente a ele, um cavalete que hospedava um

calhamaço de folhas brancas, do tamanho de uma cartolina, usadas para apresentar produtos a

clientes.

Fui recebido, nas ocasiões em que lá estive, por diferentes profissionais encarregados

da coordenação das pesquisas qualitativas e quantitativas. Trata-se de jovens habilidosos em

converter resultados e instrumentos de pesquisa em materiais apropriáveis pelo mercado. São

em sua maioria oriundos das Ciências Sociais, embora especializados em distintas áreas do

conhecimento – fato que permite ao instituto exercer o argumento de sua multidisciplinaridade.

Ao longo dessas entrevistas foram-me apresentadas algumas das técnicas de investigação,

apropriadas das Ciências Sociais, e empregadas no cotidiano da pesquisa de mercado. Antes,

porém, era preciso resolver um problema metodológico na passagem da academia ao mercado,

que poderia parecer inconveniente para cientistas sociais colocados em diálogo desde

perspectivas distintas do exercício da ciência: como é possível falar em nome de uma classe

média brasileira? Que artifício de autoridade científica permite, afinal de contas, essa “licença

poética”? Um dos entrevistados9 relatou:

Eu chamaria de ex-pobres. Talvez isso eles tenham em comum. Mas é claro, em

termos metodológicos são pessoas muito diferentes. Mas isso traz algumas

implicações comportamentais. Digamos, uma família que viveu muito tempo num

ambiente de restrição muito acentuado de renda e, sei lá, em cinco anos passa a ter

uma renda 40% maior, é claro que ela não virou rica. Mas é claro que isso passa a ter

consequências. Ela passa a poder fazer coisas que ela não fazia antes. Então em termos

de capital econômico, isso traz mudanças importantes. E por isso que de fato é eficaz

né, esse tipo de foco que as empresas dão pra essa população em termos de mercado.

De fato, esses caras passaram a representar uma fatia maior do mercado do que elas

ocupavam antes. E você entender se ele gosta de um café mais forte ou mais fraco

agora faz mais sentido do que há 10 anos atrás, quando o mercado de café era mais

9 Por solicitação expressa dos próprios entrevistados, seus nomes serão preservados no anonimato.

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elitista. Claro, em termos de capital cultural isso evolui da mesma forma? Não. Isso

vai de uma forma muito mais lenta. Esse tipo de transformação tem a ver com

escolaridade, com ambiente familiar, com hábitos culturais. Isso você não muda em

cinco anos como você muda a renda de uma família. Mas em termos de mercado, isso

teve sim um efeito que se reflete, por exemplo, no aumento da demanda que o Data

Popular enquanto instituto teve.

Nem todos os setores empresariais e varejistas tiveram, como parte de suas estratégias

de inserção de mercado, a mesma sensibilidade de atentar para esse novo segmento da

população. As empresas de bens de consumo de massa foram as primeiras a aderir ao discurso

da “nova classe média”, contratando os serviços do instituto para propulsionar seu escopo de

vendas. Empresas que comercializam itens como iogurtes, arroz ou café sentiram seus efeitos

de modo imediato. Nas palavras de um dos especialistas do instituto: “São produtos que todo

mundo consome, e qualquer variação na renda faz ali que o cara mude de marca, que o cara

compre mais ou menos”. Na mesma sequência vieram os bens de consumo duráveis, como

eletroeletrônicos e eletrodomésticos. Segundo o mesmo interlocutor,

As grandes empresas de varejo tiveram um reflexo muito rápido. Supermercados,

todas essas do varejo, foram as primeiras a demandar esse tipo de conhecimento,

porque elas foram as primeiras a achar que isso era um fenômeno importante que

impactava o negócio delas. Eletroeletrônicos, por exemplo, tinha uma demanda

reprimida imensa pra esse tipo de produto, né. Tinha milhões e milhões de domicílios

que não tinham máquina de lavar. E começa a ter aí 200 reais a mais por mês, a

primeira coisa que uma dona de casa quer é pegar uma prestação e comprar uma

máquina de lavar.

Uma segunda onda de setores a se interessarem pelo uso de pesquisas científicas

baseadas numa pretensa "nova classe média" incluiria, por exemplo, companhias aéreas e

indústrias de produção de veículos automotores:

As companhias aéreas passam a vender passagem em redes de varejo, umas com a

entrada de tapete vermelho; outras com um posicionamento mais popular, abrindo

algumas lojas em áreas populares, em lojas de rua, né. Passa a focar, por exemplo, em

migrantes que queiram visitar a família no nordeste, que passam quatro dias num

ônibus, pagam uma grana, pagam 250 reais numa passagem, sem contar que tem que

tomar banho no caminho, tem que comer no caminho, então passa a ver isso como um

público potencial também, né, paga um pouquinho a mais mas vai em quatro horas,

não em quatro dias.

Duas restrições principais são apontadas quando se trata de explicar tal diferença de

“timming”: de um lado, poder-se-ia tratar de segmentos de mercado diferentes — isto é, o

sujeito que adquire seus primeiros bens de consumo duráveis não é, potencialmente, o mesmo

que está preocupado com veículos de transporte pessoal ou aéreo. Por outro lado, essa distensão

temporal pode ainda ser justificada pelos receios e preconceitos de algumas empresas que

resistiam a abrir-se à nova classe média, sob o argumento de que os clientes mais rentáveis

eram os de renda média e alta. O setor financeiro, e a consequente abertura e ampliação da

oferta de crédito, seriam os maiores exemplos desses realinhamentos e reposicionamentos de

mercado.

A gente tem até trabalhos de levar algumas pessoas que trabalham em empresas pra

visitar uma casa de baixa renda. Pra que o cara veja melhor, consiga olhar, sair um

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pouco do ambiente, do escritório dele, e vá ver na prática, dar um choque de realidade

rápido pro cara se abrir à diferença que esse novo tipo de pessoa representa ao

interesse de mercado.

Os slides de apresentação do instituto, disponíveis na página

http://www.datapopular.com.br/home_empresa_pt.htm, reiteram essa perspectiva, ao sugerir

que há, entre o mundo corporativo e o universo do consumidor popular, uma “dissonância

cognitiva” [sic]. A desconsideração das diferenças culturais, educacionais, econômicas e

linguísticas estaria na origem dos fracassos das estratégias de marketing voltadas para

“conquistar” a “nova classe média”. Em outros slides, Renato Meirelles sugere um choque de

realidade aos empresários ainda excessivamente direcionados pela “lógica corporativa”: “passe

um dia trabalhando como corretor e você descobrirá que o que vale é explicar, não vender.

Aproveite para ver de perto as dificuldades do dia-a-dia dos corretores e saber o que o cliente

realmente precisa”; “vá ao Feirão da Caixa e fique na fila, esperando para ser atendido, como a

maioria da população brasileira. Troque uma ideia com as pessoas ao seu lado e você aprenderá

muito sobre o que a nova classe média está procurando”; “caminhe por um bairro tradicional

da baixa renda, como Ermelino Matarazzo ou mesmo no stand da Olá (Klabin Segal) em

Guarulhos, para desvendar o que é o sonho da casa própria. Enxergue além do óbvio!”; “Bem-

vindo ao Brasil de verdade”. De fato, a primeira página de apresentação, tanto do site quanto

dos slides, procura “fazer imergir” o leitor ou potencial cliente nessa “nova realidade”:

Bem-vindo ao mundo do carnê, do consórcio, do SPC.

Bem-vindo ao mundo do metrô, do buzão, da lotação, da CBTU, do seminovo zerado.

Bem-vindo ao mundo do vale-refeição, do PF e da marmita.

Bem-vindo ao mundo do supletivo, da escola de cabeleireiro e do curso de

computação.

Bem-vindo ao mundo do celular pré-pago, da megasena.

Bem-vindo ao mundo do trabalho informal, da pensão do INSS, do despertador pras

5, da mobilidade social.

Bem-vindo ao mundo do Ratinho, Raul Gil, Bruno & Marrone, Banda Calypso,

Calcinha Preta, MC Leozinho e da Rádio Tupi.

Bem-vindo ao mundo do supermercado com a família, da cervejinha gelada, da

macarronada com frango, do financiamento da Caixa.

Bem-vindo ao mundo surpreendente da economia da base da pirâmide.

De um ponto de vista organizativo, o instituto divide-se em dois departamentos, de

acordo como tipo de investigação realizada. Por um lado, os estudos quantitativos se realizam

a partir de dados secundários, como análise de informações do IBGE, do censo demográfico ou

ainda de amostragens do PNAD. De acordo com as demandas de cada cliente, o Data Popular

pode organizar pesquisas primárias, através da realização de surveys com dezenas, centenas ou

até milhares de entrevistados.

O departamento de pesquisa quantitativa trabalha de modo mais ou menos independente

em relação ao de pesquisas qualitativas – este último sendo conduzido por outra cientista social

com doutorado em antropologia. Nesses casos, o custo de uma pesquisa varia substantivamente,

de acordo com a amplitude, o escopo, e as necessidades do cliente; o leque de produtos

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ofertados inclui desde realização de grupos focais para teste de determinadas logomarcas,

produtos, comerciais, propagandas ou estratégias de marketing, até a realização de entrevistas

em profundidade com potenciais consumidores – para o que certos tipos de perfis são

selecionados aleatoriamente, de acordo com a região de vendas a ser atingida pelo cliente:

É pesquisa de sabão em pó? O cara ta querendo vender mais pro interior do nordeste?

A gente vai, pega um antropólogo que vai na casa de quatro ou cinco mulheres que

vivem no interior do nordeste, e vê como é que elas lavam roupa, se lavam roupa com

sabão em pó, ou sabão em pedra, o que ela acha que é bom de cada um, por que ela

faz aquilo... Podem inclusive levar junto o cliente. Se o cliente não tem

disponibilidade, a gente vai, depois a gente faz um relatório, e entrega isso como

resultado do trabalho. Como ela se relaciona com a roupa, como ela se relaciona com

o produto que é usado lá na limpeza da roupa.

Algumas empresas, mais estruturadas, com departamento de pesquisa próprio,

costumam solicitar demandas bastante específicas, que podem variar desde a simples aplicação

de grupos focais para testes de marcas ou produtos, até a execução de pesquisas já previamente

montadas. Pesquisas menos direcionadas geralmente implicam o acionamento do departamento

de pesquisas qualitativas:

Entre a seleção e de fato o antropólogo ir na casa, tem uma atividade que a gente

chama de recrutamento, que é uma pessoa responsável por encontrar essa casa. Então

essa pessoa diz: ‘eu preciso de quatro casos no interior, mulheres com esse perfil, essa

idade’. Aí essas mulheres que prestam esses serviços vão lá, veem bem a casa, veem

se ela tem condições de receber uma pessoa, se ela quer, né… Então é dado assim um

dinheiro pra pessoa receber, né, se por exemplo ela trabalha, ela tem que ficar em casa,

então você dá um determinado valor pra que ela aceite receber uma pessoa, fazer um

almoço pra uma pessoa, então isso é selecionado, e aí o pesquisador vai pra essa casa,

às vezes acompanhado do cliente, e passa lá o dia inteiro com um roteiro de perguntas,

né, fazendo as suas pesquisas. (...) Geralmente isso dura um dia, mas também varia

muito em função dos interesses do cliente. Já teve casos em que o pesquisador ficou

lá uma semana para dormir na casa da pessoa. Isso já aconteceu. O objetivo era mais

exploratório, então… Não se trata de entender o sabão em pó. É uma pesquisa

institucional pra uma determinada organização, e o objetivo é entender a realidade…

Todos estes “esforços” de “compreensão” da alteridade são mensurados, do ponto de

vista de seu produto final, em termos dos custos unitários de logística e realização. Nesse

sentido, uma pesquisa qualitativa, apesar de lidar com universos de pesquisa significativamente

menores que aqueles das abordagens quantitativas, desponta como o produto mais inflacionado

do instituto:

O custo unitário de uma pesquisa, de um entrevistado numa pesquisa qualitativa, é

infinitamente maior do que uma qualitativa. Por outro lado, uma pesquisa qualitativa

com oito, dez pessoas, você já consegue ter várias hipóteses, já consegue ter uma série

de insights bacanas sobre o seu tema de interesse. Então vá lá, dez casos, você passa

o dia inteiro ali vendo como elas trabalham com… lavando a roupa, você já tem uma

ideia. Numa pesquisa quantitativa isso é inviável. Você precisa de uma amostra que

te permita fazer inferências estatísticas. Senão você não consegue trabalhar. Você vai

precisar de pelo menos 120, 300, 500, dependendo da margem de erro que você vai

considerar aceitável. (...) Por outro lado, a pesquisa qualitativa tem as suas

peculiaridades, você sabe que não é trivial você ir conversar com uma pessoa com um

perfil completamente diferente, não é qualquer um… Têm técnicas pra conseguir

acessar o que ela quer dizer, então é superimportante mesmo.

Uma das questões mais curiosas, a partir desse duplo ponto de encontro antropológico,

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consiste em perguntar-se a respeito do caráter dessa diferença constantemente enunciada como

o marcador da alteridade, da fronteira entre o horizonte do pesquisador - ele próprio, muito

provavelmente, um sujeito de classe média mais ou menos afetado pela mobilidade social - e

dos grupos pesquisados. Neste ponto, a ideia de que algo como uma “dissonância cognitiva”

entre nós e eles pontue dissemelhanças irreversíveis é sugestiva de certos modelos de autoridade

“etnográfica” — daquilo que opera, no ato de realização da pesquisa, como ratificador da

legitimidade científica que o uso de metodologias qualitativas em pesquisas de mercado

permite. Mas igualmente relevante significa indagar-se sobre os diferentes públicos dessas

técnicas de escrita e produção do outro: quais Outros lerão ou apropriar-se-ão dessa alteridade

produzida pela expertise desses pesquisadores? Mais importante, que modelos de diferença

estão esses receptores aptos a enxergar como legítimos de sua própria condição de alteridade

(Strathern, 1987)?

Se consideramos que entre o pesquisador e seus leitores (na verdade, os consumidores

de suas idéias, isto é, os clientes do instituto) há uma extensividade de contexto — no sentido

de que a mesma imagem da “cultura popular” que me foi desenhada pelos profissionais do

instituto é, provavelmente, idêntica à que qualquer empresário esteja esperando ler em seus

relatórios de pesquisa (da mesma forma como havia uma ponte contextual entre Frazer e seus

leitores) – então a persuasividade ficcional da diferença, elaborada nos relatórios de pesquisa

entregues diante de clientes ávidos por decifrar algo que está distante, mas que nem por isso

pode permanecer indecifrável, deve ser encontrada num equilíbrio entre proximidade e

distanciamento ideais. A nova classe média, alvo constante desse escrutínio, não poderá ser

excessivamente próxima ao universo pesquisador/cliente – sob pena de este último considerar

dispensáveis os serviços de “descoberta do outro” prestados pelos expertos autorizados para

tanto pela ciência à serviço do mercado – mas também não deverá ser totalmente impenetrável,

vale dizer, selvagem, a tal ponto de tornar o serviço do primeiro, o pesquisador, sem sentido,

ou seja, o efeito de uma busca epistemológica (e não mercadológica) desse Outro. Pergunta-se,

então: que circunstâncias levaram à configuração de uma retórica da nova classe média, e como

esta se tornou um problema de gestão de marketing, para o qual uma série de grupos de varejo

estão dispostos a investir?

É Meirelles quem responde a isso, em um slide de sua apresentação dedicado

exclusivamente ao problema: “Precisamos repetir o óbvio: o consumo popular tem uma

participação importante na economia”. Vale dizer, o sujeito (da nova classe média) só existe ou

aparece como cidadão – livre para escolher – na medida em que se torna um consumidor cujas

práticas ou lógicas podem ser escrutinadas pelo saber econômico que cria esse próprio sujeito.

Ou seja, é porque a “economia” pode “crescer” que é preciso valorizar a particularidade e a

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liberdade desse sujeito, suas aspirações, desejos e expectativas; mas isto é também, novamente,

apenas verdade na medida em que este sujeito consuma – e é mais bem no ato de consumir que

sua liberdade, controlada pelo “mercado” e pelo “governo”, se materializa.

Refiro-me ao mercado enquanto instância reguladora de suas práticas, na medida em

que tal saber é produzido com base em um complexo e articulado regime de verdade que, como

vimos, está ancorado no refinamento dos métodos de apreensão e classificação da realidade

acerca de uma determinada população. Isso passa, como mostrei, pela pesquisa quantitativa e

qualitativa. Ademais, seu resultado, nos próprios materiais produzidos, está em propor uma

certa visão “multicultural” das classes sociais e dos grupos de interesse. Multicultural na

medida em que pretende valorizar certas especificidades, tidas como culturais ou determinantes

de um “povo”:

como trabalhamos: respeitando o conhecimento adquirido pelo cliente; contribuindo

para refinar as perguntas do cliente e entender o papel do estudo na tomada da decisão;

ajustando as metodologias ao problema, e não o problema às metodologias;

oferecendo um olhar multidisciplinar que permite uma análise diferenciada do

problema”.

Mas é, igualmente, multicultural, no sentido de que a valorização destas particularidades

implica a produção de essencialismos, “dissidências cognitivas” e fechamentos culturais.

Uma das premissas do mercado é a de que quem subestima a inteligência do

consumidor sai perdendo. As agências de publicidade que ainda acreditam que a

classe C deseja ser como as classes A e B se encaixam nesse equívoco. As referências

são completamente distintas, principalmente os padrões de beleza. Um exemplo é a

estética feminina. Nas classes altas, a magreza é vista como padrão ideal, já na classe

C as formas curvilíneas prevalecem. Cores fortes também são as preferidas da Nova

Classe Média, pois remetem a valores de brasilidade.

Em última instância, é isso que permite responder à pergunta sobre “como atingir esse

segmento?”. Ao propor que há certos valores como definidores de uma determinada

comunidade (Rose, 2007), o social torna-se comunitário, fragmentado pelas estratégias de

governamentalidade), a agência desses pesquisadores logra converter o “qualitativo” em

“quantitativo”, isto é, tornando-o apto a ser mensurável economicamente, fazendo sua

população-alvo emergir enquanto um número, ao mesmo tempo em que sugere valorizar suas

“especificidades” culturais. É nesse sentido que seu discurso é efetivo, persuasivo, e está

alinhavado à grande mídia – voraz por esse tipo de conhecimento numérico-centrado – e ao

governo, para quem o desafio está em atingir esses “segmentos”, transformando-os, na medida

em que se os produz como escopo de nação. Em outras palavras, como essa retórica da nova

classe média se converte num problema de gestão e de governo da nação?

Aqui, governar o social, a nação, implica converter uma determinada população (a

classe C) em escopo da nação, vale dizer, “num país de classe média”, para usar as palavras de

nossa atual Presidente da República. Ao mesmo tempo, isso implica tomar como “método” de

governo a retórica da “inclusão social” e do “estado multicultural” – ou ainda a ideologia do

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Estado neoliberal que, para Rose (2011), está, justamente, em propor uma racionalidade formal

baseada no exercício controlado da liberdade. Assim, o problema do governo de si emerge

como questão na medida em que esse novo sujeito de classe média desponta enquanto número

para os saberes econômicos e mercadológicos, encarregados de produzir uma determinada

versão do que seja essa nova brasilidade. Ao mesmo tempo, sugere novos critérios pelos quais

a vida nua (para usar um termo de Agamben, 2007) se converte em “viver bem”, ou “viver de

acordo com” – o que emerge, de fato, da ideologia da inclusão social, que transforma essas

populações, na medida em que se tornam consumidoras, em alvos de governo, cidadãos

integrados à nação, à economia e à (bio)política.

2. Os intelectuais e a nova classe média

Para além dos conflitos travados entre economistas acerca das leituras possíveis dos

recentes processos de mobilidade social nos termos de uma “nova classe média”, estou

interessado, aqui, particularmente, na atuação do sociólogo Jessé Souza enquanto articulador

de uma crítica ao tema. A escolha não é arbitrária, na medida em que ele conduziu diversas

experiências de pesquisa que dialogam com o conceito, e ademais tem desenvolvido acirradas

defesas acerca da retomada do conceito de “classe social” nos debates contemporâneos sobre o

entendimento do Brasil.

Para compreender o engajamento do sociólogo no debate sobre a nova classe média, é

preciso recuperar rapidamente dois economistas contra os quais se posiciona. Marcelo Neri e

Marcio Pochmann, são, muito provavelmente, os principais mentores e protagonistas

intelectuais desse debate. O estudo pioneiro de Neri (2008), talvez o maior responsável pela

cunhagem do termo “nova classe média” no Brasil, que se ampara no chamado “Critério

Brasil”10 para delimitar a sociedade brasileira, a secciona em quatro esferas de renda: classes

AB, C, D e E. Situando a faixa C entre os “remediados” e a “elite”, e baseando-se numa série

de critérios econométricos, como a “linha de pobreza”, que gravitam em torno do acesso à

renda, sua pesquisa, levada à cabo no âmbito da FGV, vale-se da noção estatística da mediana

para definir a classe média como o estrato mais representativo situado ao meio da pirâmide

10 Uma corrente crescente de estudos sobre o tema – incluindo as argumentações dos institutos de pesquisa – tem

se concentrado em salientar a insuficiência dos critérios baseados unicamente no consumo como marcadores de

distinção de classe. Um deles, o chamado Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), propõe um sistema

de classificação de preços ao público brasileiro que objetiva avaliar o poder de compra de grupos de consumidores

de acordo com a posse de determinados bens. Deixa de lado a pretensão de classificar a população em termos de

“classes sociais” e divide o mercado exclusivamente em classes econômicas. Outro critério, o da renda doméstica,

é apontado como igualmente impreciso, já que não faz distinção entre os diferentes modelos de família (nuclear,

individual, extensa, etc.). Institutos de pesquisa, como o próprio Data Popular, interessados no mapeamento da

nova classe, adotam o critério de renda per capita familiar (o mesmo aprovado recentemente pelo governo para a

formulação de políticas públicas para a nova classe média), embora sociólogos, mais afeitos à vertente weberiana,

constantemente questionem a legitimidade em fazê-lo exclusivamente pelo viés do consumo e da produção

econômicos.

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social, entre ricos e pobres e, por isso mesmo, sendo ilustrativo da sociedade brasileira como

um todo11 (Neri, 2008, p. 14-15). O estudo coordenado pelo economista Marcio Pochmann

(2012) questiona a pertinência do conceito de “nova classe média” para dar conta desses

processos recentes de mobilidade social. Baseando sua análise na estrutura de ocupações da

população, o autor sugere, desde uma perspectiva marcada pelo marxismo, que poucas

mudanças em termos de estratificação social foram efetivamente observadas ao longo da última

década no país12.

Mesmo com o contido nível educacional e a limitada experiência profissional, as

novas ocupações de serviços, absorvedoras de enormes massas humanas resgatadas

da condição de pobreza, permitem inegável ascensão social, embora ainda distante de

qualquer configuração que não a de classe trabalhadora. Seja pelo nível de

rendimento, seja pelo tipo de ocupação, seja pelo perfil e atributos pessoais, o grosso

da população emergente não se encaixa em critérios sérios e objetivos que possam ser

claramente identificados como classe média. Associam-se, sim, às características

gerais das classes populares, que, por elevar o rendimento, ampliam imediatamente o

padrão de consumo. Não há, nesse sentido, qualquer novidade, pois se trata de um

fenômeno comum, uma vez que trabalhador não poupa, e sim gasta tudo que ganha

[sic] (Pochmann, 2012:10)

Antes mesmo da entrada de Pochmann nessas disputas, Jessé Souza já havia publicado

duas obras em que analisa a fundo o tema (2009; 2010). A primeira delas, chamada

“provocativamente” – como assinalam algumas resenhas menos críticas – de “A Ralé

Brasileira” (2009), busca traçar o panorama “etnográfico” de uma classe de “excluídos” ou

“desclassificados”, que representaria um terço da população do país. O argumento é

providencial para empreender uma crítica às teorias do “atraso” que, desde Sérgio Buarque de

Holanda (1995), seriam reproduzidas, embora com novas roupagens, como a “grande verdade”

a respeito da brasilidade ou, alternativamente, do “caráter brasileiro”. Embora o livro sugira

que essa classe “é moderna”, e não mera continuidade de um passado distante, o faz apenas

para ressituar o caráter dessa diferença (em relação aos dominantes) a partir de uma ontologia

do presente, isto é, buscando na constituição familiar, afetiva, emocional e moral o fundamento

para a construção das distinções de classe.

11 Como se vê, para os defensores de uma definição de “nova classe média” como recurso explicativo capaz de ser

acionado para o entendimento dos recentes processos de mobilidade social ascendente de um estrato social

específico, até então considerado “popular”, “operário”, “trabalhador” ou simplesmente “pobre”, as razões que o

justificam estariam na incontestabilidade das estatísticas e dos números brutos — o que nos conduz ao interessante

da persuasividade dos números públicos. 12 As disputas argumentativas e institucionais entre Marcelo Neri e Marcio Pochmann constituem um bom ponto

de partida para a análise dos jogos de poder subjacentes à temática da classe média. Entre 2007 e 2012, Pochmann,

formado em economia pela Unicamp, ocupou a presidência do IPEA, após exercer alguns cargos políticos pelo

PT, como a Secretaria Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, durante o governo da prefeita

Marta Suplicy, em São Paulo. A saída de Pochmann da presidência coincidiu com a publicação de seu livro crítico

a respeito da classe média (2012), e ao anúncio de sua candidatura à prefeitura de Campinas, pelo PT, ao mesmo

tempo em que trouxe a nomeação de Marcelo Neri, formado em economia pela PUC-RJ, para o mesmo cargo.

Entre as habilidades que concorreram para sua escolha, estavam, de acordo com matérias jornalísticas, sua

expertise e “sensibilidade” analítica no que toca ao problema da classe média brasileira - tema que seria chave

para o governo federal a partir de então.

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Em “Os Batalhadores Brasileiros” (2010), o mesmo autor dá sequência às reflexões, ao

sustentar que a propalada “nova classe média” brasileira é, na verdade, uma “nova classe

trabalhadora” – visto que lhe faltaria, do ponto de vista dos capitais que caracterizariam a classe

média enquanto estrato, os principal deles, qual seja, o acesso privilegiado ao capital cultural,

técnico ou intelectual, essencial para a sua reprodução e legitimação tanto no mercado quanto

no Estado.

A vida dos "batalhadores" é completamente outra. Ela é marcada pela ausência dos

privilégios de nascimento que caracterizam as classes médias e altas. E, quando se

fala de "privilégios de nascimento", não se está falando apenas do dinheiro transmitido

por herança de sangue nas classes altas. Esses privilégios envolvem também o recurso

mais valioso das classes médias, que é o tempo. Afinal, é necessário muito tempo livre

para incorporar qualquer forma de conhecimento técnico, científico ou filosófico-

literário valioso. Os batalhadores, em sua esmagadora maioria, precisam começar a

trabalhar cedo e estudam em escolas públicas muitas vezes de baixa qualidade. Como

lhes faltam tanto o capital cultural altamente valorizado das classes médias quanto o

capital econômico das classes altas, eles compensam essa falta com extraordinário

esforço pessoal, dupla jornada de trabalho e aceitação de todo tipo de superexploração

da mão de obra. Essa é uma condução de vida típica das classes trabalhadoras, daí

nossa hipótese de trabalho desenvolvida no livro que nega e critica o conceito de

"nova classe média".

Souza é, provavelmente, o autor brasileiro mais bem sucedido no processo de

importação das teorias de Pierre Bourdieu (ver, por exemplo, 1998; 2001; 2005; 2006; 2007a)13

para a compreensão da sociedade brasileira. Interessantemente, boa parte de seus investimentos

críticos se dirigem a contestar autores que, antes dele, fizeram o mesmo, como Roberto

DaMatta, Sergio Buarque de Holanda, e por aí afora. Nesse caso, a indisposição recai sobre a

literatura histórico-sociológica brasileira que dá grande ênfase à problemática do “atraso”

desenvolvimentista, tomando como parâmetros de comparação os paradigmas estruturais,

econômicos e sociais que se desenvolveram nos grandes centros14.

Mas é, sobretudo, em artigo recente apresentado e “defendido” no 37º Encontro Anual

da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), em

setembro de 2013, que tais altercações taxonômicas se cristalizam. O texto é nitidamente um

convite à disputa – é escrito em tom coloquial e propositadamente provocativo, alfinetando

sucessivas vezes seus interlocutores para suscitar réplicas e tréplicas. Tudo se passa,

efetivamente, como se estivéssemos assistindo a um esporte excitante (Elias e Dunning, 1992)

ou, para usarmos outra terminologia, a um esporte de combate (Carles, 2001) – e certamente

sua visão acerca do papel crítico da ciência não é menos trivial nesse processo:

Aqui eu não quero apenas “dizer” a crítica. Eu quero enfrentar o desafio de

13 A apropriação de Souza (2000; 2003) da obra de Bourdieu parece se realizar, sobretudo, a partir de sua análise

da distinção no contexto francês (2008) – embora possa remontar, eventualmente, a outros livros, como a

Dominação Masculina (2007b) ou os escritos sobre Argélia (2006). Parecem menos presentes, contudo, as

reflexões tardias de Bourdieu, em torno dos múltiplos campos ou dos atos desinteressados (1996). 14 Sobre as apropriações recentes dessa literatura ver, por exemplo, Botelho e Schwarcz, 2009; Ricupero, 2008;

Roiz, 2010; Souza e Lamonier, 2010

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“comprová-la” com o meio típico do debate científico por excelência que é a

competição entre argumentos. Isso parece ser obvio, mas, infelizmente, nao é. Entre

nós confunde-se o tempo todo o poder interpretativo dos conceitos com as posições

políticas pessoais – ou, ainda pior, as posições partidárias – dos autores que as

enunciam com resultados previsivelmente lamentáveis. (...) Mas a confusão entre

pessoa e obra é fruto da pouca institucionalização da esfera científica e, portanto, da

fragilidade do mundo das ideias entre nós. Ainda hoje a imensa maioria dos nossos

intelectuais ainda pensa que quem tem uma boa ideia deve “realiza-la”, e torna-la

“prática” no Estado. Como se houvesse um abismo entre “ideia” e “prática”, quando

na verdade as ideias são “performativas”, ou seja, elas são em si “ação”, e “pensar” o

mundo de modo alternativo, ou contribuir no mundo das ideias para uma percepção

crítica deste mundo já é, em alguma medida variável, muda-lo. É por isso que o debate

de ideias científicas é primeira trincheira da luta política e da luta de classes (2013, p.

8).

Não deixa de ser curioso notar que, antes dessas palavras, contrariando sua própria

perspectiva acerca de como deva ser o “debate científico”, Jessé dedica um parágrafo ao que

parece ser um “acerto de contas” com Pochmann:

Ao ler o livro do Prof. Pochmann fui surpreendido com o fato de que este autor, tão

sério e competente, ter feito uma alusão ao meu livro “Os batalhadores brasileiros”,

como sendo um daqueles que teriam associado a assim chamada “classe C” ao

“conceito de classe média ascendente”. Em consideração a capacidade de

interpretação do Prof. Pochmann eu presumo que ele não leu o livro e sequer atentou

ao título, o qual já antecipa o debate precisamente contra essas mesmas interpretações

as quais ele me vincula, talvez, na ânsia de por todos os autores que escreveram sobre

o tema em uma mesma gaveta. Não existe uma só vírgula em todo o texto coletivo do

livro que possa ter levado Pochmann a essa conclusão. O contrário é o caso. (...) A

verdade é que antecipamos em 2010 a conclusão principal do trabalho do próprio Prof.

Pochmann dois anos mais tarde: ou seja, em suas próprias palavras, que a suposta

classe C na verdade “representa uma reconfiguração de parte significativa da classe

trabalhadora” (2013, p. 3).

O que Jessé deixa de perceber, com a mesma acuidade, entretanto, é que ele próprio é

peça-chave do jogo político-acadêmico subjacente às disputas taxonômicas em torno da nova

classe média. Sua crítica esboçada na primeira parte do artigo deixa isso claro: não se trata de

rechaçar de todo a abordagem economicista de Neri e Pochmann, apenas de situá-la numa

hierarquia moral dos saberes científicos, de acordo com a qual aos economistas caberia uma

primeira explicitação – um “campo a ser explorado” (p. 7) – e, aos sociólogos, desde longa data

imbuídos das ferramentas de problematização, as possíveis interpretações dos fenômenos de

classe.

Com efeito, a reivindicação de uma sociologia crítica, tal como proposta por Souza,

parece derivar de uma tentativa de monopolizar o debate desde a ótica da sociologia. Ou, para

dizê-lo de outro modo, há importantes consequências políticas quando o que está em jogo é a

possibilidade de reivindicação do monopólio do conceito de “classe”. A principal delas talvez

seja a própria ideia de que o conceito só se torna apreensível quando entendido a partir de um

rompimento epistemológico do pesquisador com a realidade – o que deslegitima quaisquer

outras tentativas de associação entre consumo e cidadania, como nas justificações produzidas

por intelectuais e agentes de mercado favoráveis à retórica da nova classe média. Mais

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importante ainda, a única via de legitimação possível, dessa perspectiva, consiste numa

retomada sociológica do conceito de classe – e, mais bem, não qualquer conceito de classe,

senão aquele capaz de descobrir o “véu” que torna os sujeitos “cegos” para as posições

estruturais que ocupariam na estrutura social. Seu efeito consiste em politizar as visões que

pretende combater – sugerindo que estas satisfazem a interesses difusos e nem sempre

nominados, mas que supõe-se, sejam os do “grande capital” (p. 1-2) –, ao mesmo tempo em

que se auto-arroga o estatuto de ciência total e, portanto, mais próxima de uma representação

legítima porque verdadeira do mundo social, na mesma medida livre de condicionantes

políticos tidos como externalidades ao processo argumentativo.

Pochmann não responde - na verdade nem sequer atenta - para o fato de que a questão

principal para o problema que ele próprio quer resolver é a questão acerca do “por

que?” precisamente “aquela classe” está condenada a exercer aquele tipo de ocupação

e quais são os fatores que a eternizam nela. Não são as ocupações que criam as classes

sociais, como parece pensar Pochmann, mas é o pertencimento a certa classe que pré-

decide a “escolha” por certo tipo de ocupação. (...) Assim, uma família de “classe

média”, que tem menos capital econômico que a “classe alta”, só pode assegurar a

reprodução de seus privilégios - como empregos de maior prestígio e salário seja no

mercado seja no Estado - se a família possui algum capital econômico para “comprar”

o “tempo livre” dos filhos, que não precisam trabalhar cedo como os filhos das classes

populares, para o estudo de línguas ou de capital cultural técnico ou literário mais

sofisticado (2013, p. 13 e 11, respectivamente).

Como em todo debate que faz brotar ânimos em efervescência, os investimentos nas

críticas e depreciações – sejam elas de argumentos, disciplinas ou sujeitos – são

significativamente maiores que eventuais soluções ou propostas. E assim Souza segue na

apresentação de como as diferenças de classe devem operar na realidade social. Como se vê, a

atribuição de certos conjuntos de valores, habilidades e recursos a um estrato (neste caso,

médio) da sociedade não elimina o problema de sua arbitrariedade conceitual. Em última

instância, a crítica de Jessé – e tantos outros sociólogos que entraram nesse debate15 – ao

economicismo tem o fundamento implícito de uma deslegitimação interpretativa dos

economistas, e não o questionamento radical de seus critérios de corte. O fundamento da crítica

reside, essencialmente, nas fronteiras políticas entre diferentes disciplinas na produção do

conhecimento – é, portanto, menos uma questão técnica que de política acadêmica. Em resumo:

se a crítica de Souza, acertadamente, aponta para a construção de um sujeito universal ou

genérico subjacente aos modelos teóricos de Neri e Pochmann, não é menos verdade que sua

15 O argumento não é essencialmente novo, já que conclusões semelhantes são apresentadas por outros autores,

como é o caso de Xavier Sobrinho (2011). Note-se, contudo, a constância dos argumentos sacados tanto da parte

de economistas e sociólogos, seja para concordar ou detratar a “nova classe média”. O tom acalorado dos debates

não permite uma maior explicitação acerca da própria noção de classe social, tomando-a geralmente como algo

dado ou, alternativamente, importando-a como modelo configuracional gerado em outro contexto (geralmente

anglo-saxão). Note-se ainda que Scalon & Salata (2012) chegam a conclusões muito semelhantes a outros autores

na tentativa de definir esse novo estrato, chamado de “classe trabalhadora” (ver, a esse respeito, Scalon, Araújo,

Marques & Oliveira, 2009) — o que coloca a interessante questão do significado político e simbólico dessas

disputas semânticas.

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própria proposta difere apenas em reduzir o caráter dessa generalidade para estratos no interior

da sociedade, em que, supõe-se, sujeitos sejam igualmente homogêneos. Do homo economicus

ao homem das classes há uma diferença de grau, não de natureza epistemológica.

Do ponto de vista de uma antropologia da ciência 16 , a produção de evidências

argumentativas é tão mais interessante quanto for capaz de demonstrar sua performatização

concreta – o que, vale dizer, implica numa observação dos contextos de ação em que essas

ideias adquirem vida própria, são dramatizadas e celebradas. Nesse sentido, torna-se

especialmente relevante atentar para os eventos em que essas perspectivas são consolidadas e

assumem um corpus institucional, mais que teórico. O Seminário Temático (ST) “As Classes

Sociais no Brasil Contemporâneo" permitiu, assim, observar in locum as disputas taxonômicas

em torno do legado da nova classe média. Coordenado pelo próprio Jessé Souza, radicado na

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e por Carlos Sávio Teixeira, da Universidade

Federal Fluminense (UFF), o ST contou com a presença de pesquisadores de diferentes

instituições e de turmas de estudantes de graduação em Ciências Sociais – particularmente da

USP – o que transmitia a impressão de um ambiente bem frequentado. De acordo com seus

participantes, em conversas informais mantidas durante o evento, esta fora a primeira vez que

o grupo se reunia na ANPOCS, embora tivessem mantido certa regularidade em outros espaços.

Entre os apresentadores, havia professores vinculados a diferentes universidades de São Paulo,

Rio de Janeiro e Minas Gerais, embora a “estrela” da tarde fosse, nitidamente Jessé Souza.

Todos aguardavam sua presença com alguma ansiedade – sobretudo o co-coordenador da mesa,

Carlos, que procurava localizá-lo por telefone enquanto não chegava. O tom de abertura

demarcou que aquele ST tinha a pretensão de ser, mais que um simples espaço de troca de ideias

acadêmicas, a possibilidade de um manifesto a favor da recuperação das “classes sociais” como

problemática que permitiria o entendimento do Brasil contemporâneo — o único capaz de levar

a ciência a desempenhar a sua função mais legítima, qual seja, a de crítica social da realidade.

Carlos Sávio Teixeira: (…) Dando início à primeira sessão, dedicado à nova classe

média no Brasil, o tema da classe surgiu no Brasil nos últimos anos por conta da

temática da mobilidade social. Esta é uma das razões pelas quais nós estamos com

este ST na ANPOCS. Mas tem toda uma razão de fundo, que é o fato de as sociedades

humanas continuarem sendo sociedades de classes. Todas elas. E há uma confusão

entre um capítulo da história recente sobre a temática das classes, numa versão

16 Não pretendo referir, aqui, a uma antropologia das ciências exatas, tal como sugerida por Latour (2000) e já

bastante consolidada em diferentes programas de pesquisa no Brasil. Ainda que tal perspectiva conduza a

resultados interessantes – acompanhando especialistas em seus laboratórios, por exemplo – parece-me que o efeito

resultante dessas investigações acaba por “comprar” problemas de representação e poder clássicos da antropologia,

na medida em que pressupõe que, numa hierarquia moral das ciências, que caberia unicamente à antropologia, por

estar melhor “instrumentada”, o debate e problematização dos fundamentos de verdade subjacentes às ciências

(sempre exatas). O que está em jogo, aqui, é, antes, uma aproximação com a perspectiva de Neiburg acerca da

performação da economia (2004; 2010) – no entendimento de como certas ideias, intelectuais e instituições logram

condensar frentes discursivas altamente persuasivas na contemporaneidade, concentrando o potencial adscritivo

de fenômenos estratégicos.

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marxista mais ortodoxa, e a relevância geral do conceito. E essa ST tem por objetivo

também superar essa confusão, no sentido de que é possível se pensar a temática da

classe como inovadora, ultrapassando os limites dessa forma como o tema foi tratado

até aqui.

Jessé: Só para corroborar o que o Carlos disse, eu iria até um pouco mais adiante.

Porque a sociologia foi totalmente rasgada de seu potencial explicativo. (...) Há

questões que são principais, outras secundárias, e a questão principal é a questão de

como o poder social é articulado de tal modo a legitimar o acesso privilegiado de

alguns a todos os bens e recursos escassos, ideais e materiais, e a outros não. Essa

forma não é só injusta, essa forma é uma mentira, uma fraude. E caberia à ciência

aquilo que ela não faz; caberia à ciência exatamente compreender de que modo isso

se dá e denunciar isso. Eu acho que a ciência é isso. (...) Eu acho que muito mais do

que uma questão entre outras, ela é a questão, porque não tem nenhuma outra questão

que seja mais importante do que essa. Eu acho que isso tem a ver com o fato de que

o Brasil até hoje ainda é interpretado de modo tão superficial. (…) Nosso boas vindas

a todos, que é um boas-vindas ambicioso, né [grifos meus].

A primeira a apresentar foi Christiane Barbosa Elian Uchoa, que inicia colocando-se a

questão de para onde foram ou se deslocaram os assim chamados “pobres”. Seu título, bem

sugestivo, chama-se “em busca da nova classe média”. Trata-se de um estudo econômico acerca

das possibilidades de perceber nas tabelas e números o fenômeno evocado. Baseia-se nas

análises de Pierre Bourdieu e Thorstein Veblen acerca das preferências relacionadas à formação

do gosto. Sua abordagem parte da classificação proposta por Neri (2008), fazendo ainda uso de

dados da POF – Pesquisa de Orçamentos Familiares –, apenas para chegar ao inverso da

conclusão do economista. Não obstante, uma de suas frases deixa claro que não há grandes

distinções de metodologia, na medida em que salienta que os dados apontariam ou garantiriam

que sua pesquisa estaria “no caminho certo”, o que outra vez deixa claro a superioridade dos

números enquanto narradores próprios e demarcadores dessas certezas.

Apesar do esforço de Christiane, todos aguardavam pela apresentação de Jessé Souza,

que seguiu-se imediatamente à dela. Talvez por algum problema de ansiedade – ou exatamente

percebendo as expectativas que sobretudo os estudantes de graduação lhe imprimiam – Jessé

gaguejou bastante em suas palavras iniciais. O tom de seu discurso foi pontuado por palavras

de chamamento ao "combate" científico, numa crítica acirrada ao papel tido como "tradicional"

da ciência estabelecida que, em sua opinião, poderia ser comparado ao das grandes religiões

mundiais: "A ciência serve não pra descobrir coisas, mas para montar uma interpretação sobre

o mundo que fazem com que as forças que dominam este mundo possam continuar exercendo

esse papel. Isso não é só provocação, isso é fato". Na sequência, ele sugere que há duas correntes

principais tidas como pré-sociológicas — ideia, que como vimos, não é gratuita — a serem

superadas. De um lado estaria o "culturalismo" – sobre o qual não são dadas grandes

explicações, apenas associando-o a interpretações tradicionais acerca do Brasil e de seu vínculo

com o primeiro mundo, particularmente a Portugal durante o período colonial, derivadas,

segundo ele, de uma leitura equivocada de Weber. De outro lado, estaria o economicismo, que

seria igualmente pré-sociológico e obliterador da questão da classe como problema essencial.

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Ele é pré-sociológico, dá a aparência de que explica, como o Marcelo Neri fez, né.

Você divide arbitrariamente, completamente arbitrário, as faixas de renda da

população, e depois você acha que isso explica alguma coisa sobre o Brasil, sobre o

comportamento das pessoas. Isso não explica literalmente nada, zero. Você não sabe

por que as pessoas da classe C têm comportamentos diferenciados da faixa B ou da

faixa D. É um informação inicial. Informação! Importante? Claro que é. Mas isso

não é interpretação!

Sua proposta para situar o debate acerca da nova classe média partiria, ao contrário, de

uma tentativa de entender os efeitos do capitalismo enquanto modo de produção hegemônico

no mundo contemporâneo. Desse ponto de vista, tanto a religião — nesse caso, sobretudo, o

neopentecostalismo — quanto a ciência ofereceriam gramáticas de justificação adequadas à sua

reprodução no tempo e no espaço, isto é, capazes de entronificar "trabalho" e "dignidade" como

valores a serem alcançados nesse processo de ajuste ao capitalismo. Assim, também, o

fenômeno da nova classe média não poderia ser entendido como algo essencialmente brasileiro:

Nós temos as mesmas massas com superexploração do trabalho, que é o que

caracteriza essa nova classe trabalhadora, não só no Brasil, na Tailândia, na Índia,

todo o sudeste asiático, na China, né. Você não vai ver isso na Alemanha ou na

França. Então é um fenômeno mundial, da forma de exploração do capitalismo.

E volta a fazer novo chamado em prol de uma concepção crítica de ciência — que

paradoxalmente se engaja a partir de um distanciamento epistemológico do mundo, perspectiva

que ganha tanto mais adeptos quanto seduz quem esteja ávido por "descobrir" verdades por

"debaixo dos panos" da realidade:

É a legitimação do mundo como ele é! É a legitimação com o selo da ciência! (...)

Nem Bourdieu colocou isso. Bourdieu pesquisou a Argélia, ele poderia ter percebido

a ralé como classe fundamental. Mas ele não percebeu. (...) Quem não é produtor

útil, no sentido do capitalismo, é menos do que gente. É nesse sentido que a gente

precisa voltar na ralé, nos estudos sobre a ralé. A ralé é o lixo, são os desclassificados

objetivamente. Não tem acho ou não acho, se voce encontrar alguém na calçada,

espumando de alcool, impedindo que as pessoas passem, alguém vai dizer “sai daí

senão eu vou chutar a sua cabeça, seu bêbado, louco”, quer dizer, é o desprezo.

Outros vao dizer, "não faça isso, você precisa de ajuda”, ou seja, a pena, a piedade.

O que une esses dois sentimentos morais é o desvalor objetivo dessas pessoas. A

pena é o outro lado da moeda do desprezo. (…) Eu chamei de ralé porque eu vi que

as pessoas nao gostavam disso, e eu disse ‘puxa, se não gosta é porque toca em

alguma ferida importante’.

Após a apresentação de Jessé, parte significativa das pessoas deixou o recinto. A terceira

fala concentrou-se na apresentação de dados quantitativos, levada a cabo por Gustavo Venturi,

sob o título de “Estratos Emergentes: nova classe média? Nova classe trabalhadora? Classes

sociais de perecimento e expressões de cultura política”. Não deixa de ser curioso que tanto

este quanto outros trabalhos apresentados na mesma sessão de Jessé realizem exatamente aquilo

que ele tenha configurado como alvo de críticas em sua exposição, ou seja, a impossibilidade

explicativa da realidade social tão somente através de dados quantitativos17. O que deflagra o

17 O enfoque deste trabalho, como se pode denotar, consiste em tentar captar os pertencimentos de classe a partir

de questionários, com categorias mais ou menos prontas que poderiam denotar essas vinculações. Trata-se,

segundo o autor, de pensar autopercepções acerca da mobilidade social, numa percepção crítica de classe. Com

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problema dos arranjos e alianças acadêmicas que permitem a coexistência dessas perspectivas

até certo ponto antagônicas; se não se pode dizer, propriamente, que o critério de aceitação seja

o de uma coerência teórica com a concepção de classe proposta por Jessé e por Carlos — como

seus discursos, não obstante, pareciam indicar — que outras chaves políticas podem estar em

jogo na formação desse grupo de interesses? Sem oferecer respostas definitivas a essa questão,

limito-me a indicar que, por menos homogêneos que fossem os trabalhos, ainda assim

cumpriam o importante papel de legitimação de um grupo de interesses comuns constituídos

sobre o tema — o que nos conduz ao problema da construção de suas fronteiras e limites.

No retorno do intervalo, iniciaram-se os debates. A primeira a falar foi a debatedora

propriamente dita, Veneza Mayora Ronsini (UFSM) que, pela primeira vez participava do

grupo e que, por isso mesmo, se sentia compelida a respeitar a hierarquia que parecia haver

entre ela e Jessé – que era frequentemente apontado como o grande inspirador e mentor teórico

de sua tese. Ainda assim, dirigiu críticas pertinentes ao sociólogo, entre elas o fato de que,

eventualmente, ele devesse pensar numa crítica à nova classe média pelo viés do consumo, e

não apenas, ou não simplesmente, o da produção e do trabalho. Além disso, sugeriu também

que pudessem ser feitos cruzamentos interpretativos de classe com outras categorias igualmente

relevantes, como gênero e raça. Formada novamente a mesa com os apresentadores, a resposta

de Jessé às provocações apenas fez reiterar sua própria perspectiva de trabalho.

Foi, sobretudo, a partir de uma nova rodada de perguntas abertas ao público, que o debate

adquiriu contornos mais exasperados. Roberto Grun, sociólogo radicado na Universidade

Federal de São Carlos, pesquisador de longa data de fenômenos econômicos, foi quem lançou

as maiores dúvidas a respeito da proposta de Jessé:

Me desculpe, mas eu não resisto, mas eu o que acontece é o seguinte: alguns acasos

da minha vida me levaram a discutir, em momentos diferentes da minha vida, um

conjunto de pesquisas que o Pochmann fez quando ainda estava em São Paulo, e

depois essa pesquisa do Amaury e do Bolívar. Espaços muito distintos do espectro

político, mas a vida nos leva a essas situações extremas [risos]. Mas o que eu quero

chamar a atenção aí é o seguinte: em ambos os casos, nos dois extremos, o que que

eles estão fazendo, quando eles estão fazendo essas pesquisas? Nenhum deles está

fazendo sociologia. Mas nem passa pela cabeça deles que eles estão fazendo

sociologia! O que eles estão fazendo, eles estão criando fatos públicos. Eles estão

perfomando, são enunciados performáticos. As pesquisas deles servem para chamar

a atenção para o que eles querem dizer, e o que eles querem dizer são enunciados

performáticos. Ele não dizem o que satisfaz, eles dizem o que eles querem que as

classes sejam. Tanto o Marcio quanto o Amaury [grifos meus].

efeito, todo o seu esforço consiste em separar os dados a partir de duas categorias distintas: aqueles entrevistados

que teriam tido mobilidade social nos últimos anos, e aqueles que teriam permanecidos estagnados. Há distinções

importantes em uma série de posicionamentos, a mais significativa situando-se no posicionamento político, com

uma maioria expressiva declarando-se favorável ao PT, da parte dos que tiveram mobilidade, enquanto que para

os outros esse percentual cai significativamente. Quando chegou a clássica pergunta acerca de qual classe social o

entrevistado se declarava, 75% ter-se-iam dito de classe trabalhadora, ao passo que apenas 20% de classe média;

o que, supostamente, validaria o argumento de Jessé.

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De minha parte, resolvi inquirir a mesa a respeito de possíveis interpretações do

entrecruzamento da problemática de classe e da recente entrada da Secretaria de Assuntos

Estratégicos da Presidência da República na questão — na esperança de que, em alguma

medida, pudessem ser feitas ilações políticas entre os jogos de alianças entre mercado, Estado

e ciência que pareciam subjazer a essa discussão. Jesse não respondeu à pergunta — na verdade

tampouco interessou-lhe tocar na provocativa questão levantada por Grun. Quem esboçou

alguma reação a isso foi Gustavo, que disse, entre outras coisas, que o governo estava

interessado numa discussão política desses critérios de classificação, ao contrário dos

sociólogos, que buscavam por uma definição de classe social da realidade – e o que essas

definições políticas tinham por efeito era justamente escamotear a verdadeira problemática que

interessava, que eram as clivagens de classe18.

Antes que a sessão fosse encerrada, Christiane é convidada a explicar o processo de

seleção dos indicadores de classe que indiquem "pensamento no futuro" em sua pesquisa

quantitativa — que, segundo ela, seriam poupança, endividamento e previdência privada.

Assim, a escolha desta última se justificaria na medida em que "como é privada, ela é resultado

de um desejo seu, uma escolha sua, não há nada que te obrigue a ter uma previdência privada,

a não ser o seu desejo de se preocupar se quando vai ser velho querer ter cuidados". E, ainda

sobre o endividamento, a racionalidade é de que "se o sujeito tem despesas com juros,

empréstimos, cheque especial, é porque ele está se endividando, alguma coisa mais lá pra frente

vai acontecer. Ta comprometendo a capacidade de alocar recursos até para pensar no futuro!".

Enquanto falava, Christiane foi interrompida a todo o momento por Grun, que a questiona sobre

sua metodologia de trabalho: "Esse que é o teu problema, você ta sempre supondo, falando em

tendências… O que eu to sugerindo é que você trabalhe com classe média como um enunciado

performático". Já irritada pelas intromissões, Christiane retruca que "o que a gente ta sugerindo

exatamente é que são performances, porque como o sujeito vai estar preocupado com o futuro

se o sujeito não tem previdência, se o sujeito não poupa, se o sujeito ta endividado!".

Encerrada a sessão, ficava mais uma vez claro que, mesmo uma análise sociológica que

tripudiasse da falta de rigidez analítica de economistas — sugerindo inclusive que estariam

fazendo um debate "político" a partir dos números produzidos — esbarra no problema da

arbitrariedade dos modelos de classe subjacentes às pesquisas empíricas. Paradoxalmente, a

sociologia crítica de Jessé Souza encobre o próprio problema da reflexividade representacional,

na medida em que, sob o jugo da "ciência", despolitiza o debate ao propor certos modelos de

18 Sobre isso, novamente, é interessante perceber por onde passam as disputas pela verdade, pela legitimidade e

pela autenticidade do conceito de classe social; igualmente, o campo acadêmico da sociologia seria o único lócus

em que o debate acerca da classe poderia ser destituído de disputas políticas/eleitorais, isto é, onde as disputas não

seriam escondidas nem seus critérios tornados implícitos.

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conduta e valores que orientariam os fatores de corte entre classes. Na origem dessas

altercações, permanecem operando certos modelos de subjetividade imaginados como ideais

— na expectativa de que haja uma co-extensividade entre o mundo das ideias (na verdade, o

mundo tal como imaginado por certos intelectuais) e a realidade efetiva experimentada pelos

sujeitos apontados por essas pesquisas. A questão é, em última instância, como o próprio Jessé

anteviu, de ordem moral — não uma moral dos agentes, mas as dos próprios pesquisadores na

produção dessas subjetividades hiperreais.

3. A “Classe C” da antropologia brasileira

A sociologia crítica de Jessé Souza — que subsume grupos altamente diversos na cara

noção de "classes populares", sintetizando suas experiências de vida através de noções como

"ralé" ou "batalhadores" — soa particularmente perniciosa a qualquer antropólogo brasileiro

formado numa tradição de comprometimento moral, mesmo que indireto, mas garantido pelo

código de ética da disciplina, com essas mesmas populações. Pretendo, nesta última sessão,

sugerir algumas hipóteses que permitam jogar luz sobre o silêncio da antropologia no debate

acerca da nova classe média brasileira, tomando como ponto de partida, sobretudo, seus

compromissos políticos com os grupos estudados.

A sistemática ausência da antropologia no debate mais amplo sobre classes sociais já

foi sentida por outros intelectuais (ver, sobretudo, Fonseca, 2006). Se nos restringíssemos

somente à questão das classes médias, contaríamos apenas com a exceção da linha de pesquisa

inaugurada por Gilberto Velho (1973; 1987; 1994). Ainda aqui, a problemática ideia de classe

social sempre foi tratada como um recorte metodológico possível, ao invés de representar a

possibilidade de problematizá-la enquanto discurso classificatório e prática social: à maneira

dos antropólogos que privilegiam o trabalho na cidade – sem ocupar-se com a reflexão das

implicações de conduzir sua etnografia desde esse ponto de escuta e enunciação para o estudo

da cidade – os problemas empíricos de produção dessas categorias na própria lógica de

ordenamento do espaço e de produção de uma paisagem urbana são tão pouco explorados

quanto é naturalizada, para a sociologia e as ciências econômicas, a noção de classe social.

Neste ponto, um rápido contraste com o contexto argentino seria elucidativo. Além de

obras significativas que privilegiam as trajetórias das classes médias, vinculando-as a

determinados projetos nacionais (ver Adamovsky, 2010), há uma série de intelectuais que

constroem diferentes problemáticas de pesquisa a partir do ideário das classes médias,

resultando em encontros acadêmicos diversos, programas e grupos de estudos — como é o caso

do “Programa de Estudios sobre Clases Medias”, do Instituto de Desarrollo Económico y Social

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— e numa vasta produção intelectual sobre o tema (ver, sobretudo, Visacovsky e Garguin,

2009; Visacovsky, 2008; Adamovsky, Visacovsky e Vargas, 2014)

A antropologia brasileira, pensada em termos de seus ciclos de debate históricos, parece

ter reconfigurado ou diluído o debate das classes em outras esferas de discussão. Assim, é

possível constatar que, se durante o regime militar o que estava em jogo era o engajamento do

operariado, o período imediatamente após a redemocratização foi marcado por uma

reintrodução do "popular" como categoria de análise (Duarte, 1986; Fonseca, 2000; Magnani,

1984; Cardoso, 1986; Zaluar, 1985), rapidamente diluídas em outras questões que marcaram a

década de 1990 — tais como as temáticas da identidade, do consumo, da globalização e dos

estilos de vida. Se seguirmos as pistas fornecidas por Fonseca (2006), e argumentarmos a favor

de uma sobreposição crítica entre políticas etnográficas e os contextos sociais, econômicos e

políticos mais amplos de uma época — que, em última análise, conduziria ao papel de

intelectuais na formulação de projetos de nação —, seria preciso colocar, antes de tudo, a

pergunta sobre quem define o "popular", e a partir de quais configurações concretas ele emerge

como categoria privilegiada de entendimento da problemática de classes no contexto histórico-

político da antropologia brasileira. Ao escrutinar em torno das razões que levaram à dissolução

do "popular" enquanto categoria analítica antropológica, Fonseca (2006, p. 20) aponta:

Alguns pesquisadores pretendem que a realidade é que mudou, que os grupos

populares não são mais o que eram. Contudo, é igualmente possível que o

desaparecimento do "popular" reflita uma mudança das formas de organização

política e das ideologias políticas que as acompanham. (...) Já foi amplamente

comentado como, na época [anos 1980], o excesso discursivo levava os

pesquisadores a "ver" a cultura popular mesmo lá onde ela não existia. Entretanto,

cabe perguntar se, no atual clima de conciliação neoliberal, os pesquisadores não

fazem o oposto, tomando o silêncio discursivo em torno desse tema como prova da

ausência de qualquer realidade distintiva dos setores populares. Será que esses

setores deixaram de existir, será que esses indivíduos deixaram de compartilhar

experiências e um modo particular de viver quando as camadas dominantes passaram

a redefinir o alvo de suas atenções? (p.20).

Nessa mesma perspectiva, qual seja, a de que termos como "classe social" e "grupos

populares" são, antes de tudo, performances ou atos de instituição (nesse caso acadêmicos), é

preciso atentar aos não-ditos fundantes de cada campo de conhecimento intelectual. Se no caso

de Souza isso era válido quanto ao caráter e estatuto das classes médias — contra as quais ele

procurava definir, atributivamente, a "ralé" e os "batalhadores", algo semelhante se passa com

a natureza política e definitória do que sejam os "grupos populares" na abordagem de Fonseca19.

19 Não é demais lembrar que Fonseca (2006) está absolutamente correta em apontar para os modos como a pobreza

é tratada como moralmente degradante a ser superado, no modo como militantes, políticos, assistentes sociais,

etc., se referem a ela. O que estou sugerindo, apenas, é que nao se deve descurar que a antropologia se engaja de

modo semelhante nesse debate, isto é, como mais uma vertente a falar dos e em nome dos pobres, na medida em

que pretende a uma aproximação epistemológica que tem por efeito produzir narrativas (mais ou menos

comprometidas) sobre a pobreza e os grupos populares.

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Tudo se passa como se houvesse um compromisso não questionado com a fidedignidade da

experiência e a lógica êmica desses grupos — a tal ponto que se confunde com a experiência

do próprio antropólogo em campo, num movimento espiralado de sobreposição epistêmica20.

Prova disso é a discussão empreendida pela autora (2006, p. 23-30) acerca das implicações

analíticas da explicitação dos compromissos militantes de Scheper-Hughes (1995) e Wacquant

(1996) que — embora tenha o mérito de apontar para os perigos da espetacularização da

pobreza —, acaba por configurar certos modelos de narração da pobreza e dos grupos populares

como mais legítimos que outros: "Estamos, antes, tentando exemplificar diferentes estilos de

análise — uns mais, outros menos fiéis à agenda etnográfica, com sua forma particular de

empirismo" (p. 29). Por conseguinte, somos levados a crer que há modos socialmente mais bem

aceitos de colocar a pobreza e os grupos populares num discurso antropológico — e que tais

formas obedecem a compromissos políticos tornados, de alguma forma, implícitos no modo

como a "agenda etnográfica" é acionada como recurso de legitimação descritivo pretensamente

"neutro" à medida que for mais "denso" ou mais próximo das perspectivas êmicas.

O silêncio da antropologia ao tratarmos de estratos sociais reflete, nesse sentido, o

profundo esvaziamento analítico de um modelo que, de alguma forma, edificou-se sobre

paradigmas teóricos que estabelecem gradações entre dominantes e dominados — e se limitou,

de formas variadas, a propor distintas perspectivas "de baixo para cima" (cf. Ortner, 1994, apud

Fonseca, 2006). Não é à toa que a própria ideia de classe média foi tida, por muito tempo, como

sinônimo da despolitização por excelência — já que, sobretudo nos EUA, país apontado desde

longa data como de "classe média", acabaria por desdenhar a existência de conflitos motivados

por desigualdades sociais (Vincent, 1993 apud Fonseca, 2006).

Tudo isso tem por efeito visível a formulação de verdadeiras hierarquias morais entre

vidas (e posições, subjetividades, instituições, classes, agências) que merecem ser mais bem

entendidas que outras. Tal qual os sujeitos da "nova classe média" se tornam alvos de pesquisas

e intervenções para institutos de marketing e agências de mercado na mesma medida em que

são produzidos e nomeados como tais, assim também a recusa antropológica à entrada no debate

constitui-se no sinal evidente dos usos políticos do método etnográfico em favor de

comprometimentos prévios que deflagram políticas e acordos de escrita e interesses

acadêmicos. A questão, portanto, não é tanto se os grupos populares de ontem são a nova classe

média de hoje, mas, antes, por onde passam, efetivamente, as disputas taxonômicas pela

20 Seríamos tentados mesmo a afirmar que, se para Jessé Souza há um nítido rompimento epistemológico na

definição da "ralé" e dos "batalhadores" (que implica, inversamente, uma proximidade com o universo imaginado

da classe média como medida contrastante de referência), na perspectiva que toma as “classes populares” como

paradigma central observa-se esse mesmo rompimento epistemológico operando no entendimento dos agentes dos

chamados "campos up", em favor de uma proximidade epistêmica para com os primeiros.

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classificação desses sujeitos hiperreais — que deixam entrever jogos de classificação e noções

morais na origem do interesse e desinteresse pela produção de alteridades. Escrever sobre a

(nova) classe média, dentro deste quadro de tradições morais da disciplina, implicaria afastar-

se na mesma medida de comprometimentos políticos por demais valiosos — da antropologia

com o conceito (mais que com as pessoas) de grupos populares, da antropologia com sua

tradição insurgente e de resistência (já que a nova classe média parece oferecer engajamentos

econômicos e políticos pouco contestatórios ou alternativos aos padrões hegemônicos para uma

descrição "etnográfica"), enfim, da antropologia com uma parte importante de si própria.

Considerações Finais

O objetivo geral deste artigo — e, poder-se-ia emendar, da tese, ainda em andamento

— consistiu em produzir evidências que auxiliem a entender os modos pelos quais certas

categorias de sujeitos são definidas como pontos centrais de ancoragem de debates mais amplos

— sobre o Brasil, sobre as desigualdades, sobre as mobilidades, e por aí afora — e acabam por

funcionar, por conseguinte, como chaves diacríticas que oferecem justificações mais ou menos

persuasivas para esses mesmos eventos. Para entender de que modo as disputas taxonômicas

associadas à retórica da nova classe média ganharam forma, debrucei-me, num primeiro

momento, na análise etnograficamente embasada do Instituto Data Popular. Compreender o

papel desempenhado por essas agências de pesquisa de mercado é essencial no entendimento

dos processos de formação de saberes e alianças políticas entre mercado, ciência e governo.

Apesar de concentrar-me na trajetória de um desses institutos — não por acaso aquele que tem

tido maior exposição midiática no debate dramatizado na grande mídia — seria preciso, aqui,

ainda, estender o leque de problemáticas para dar conta da formação e legitimação de sua

posição no concorrido mercado de ideias, através de uma incursão pela história da propaganda

e do marketing no contexto brasileiro pós-ditadura. Ainda mais importante, seria preciso

reconstituir seu campo de agência - o que inclui, por exemplo, as tensas relações de

concorrência com outros institutos, como Plano CDE e A Ponte Estratégia, que emergiram de

dentro do Data Popular a partir de disputas internas, bem como examinar a pertinência das

críticas que lhe são frequentemente dirigidas, seja quanto à metodologia e idoneidade dos dados

produzidos, seja quanto às cadeias de relações (não tão evidentes) com clientes e outros

mediadores desse mercado dependente de consultorias e grandes investimentos de pesquisa —

questões para as quais este artigo ofereceu uma primeira aproximação.

Em seguida, concentrei-me no papel de certos intelectuais acadêmicos nesse debate.

Sem descurar da atuação de economistas, na origem da proposição de uma nova classe média,

dediquei especial atenção a sociólogos e antropólogos. Entre outras razões, porque oferecem

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um contraponto acadêmico à configuração do mercado em rearranjo. Nesse sentido, concentrei-

me na sociologia crítica tal como proposta por Jessé Souza, no intuito de mapear a estruturação

desses debates a partir de um selo "científico". Além de retomar parte de trajetória de pesquisa,

dediquei especial atenção aos espaços legítimos de enunciação dessas críticas — os eventos

inerentes ao campo acadêmico — a partir da ideia, desde uma antropologia da ciência, de que

tais argumentos adquirem vida e forma através dos eventos que os performatizam. Também

neste caso, seria preciso ainda investigar as repercussões e circulações desses saberes na

mediação para outros campos — não apenas com o mercado, mas sobretudo com a formulação

de políticas públicas para a nova classe média, outro ponto de toque da tese em andamento.

Por fim, é preciso ainda uma nota de conclusão a respeito do trabalho etnográfico com

fragmentos de evidências empíricas — numa espécie de múltiplas colagens de saberes,

argumentos, tensões, sujeitos e instituições. Há, nisso tudo, mais do que a simples constatação

de que o trabalho do antropólogo não pode ser pensado como circunscrito a fronteiras

facilmente delimitáveis no ou a partir do “campo” — e de sua consequência mais evidente, que

sinaliza para uma agência autoral explícita nos modos de recorte e formulação de

problemáticas, que colocam o antropólogo como autor e parte do conjunto de evidências que

compõem a problemática que pretende aclarar. Há, da mesma forma, a constatação de que o

processo de elaboração e produção de justificações que tomam por referencial mais ou menos

implícito a nova classe média opera de modo igualmente difuso e fragmentado; ou, para dizê-

lo de outro modo, não seria possível observar os caminhos delineados por esse debate — que

equivale a atentar para as diferentes apropriações dessas justificações — sem perceber que esta

é uma retórica móvel e adaptável às diferentes circunstancialidades evocadas pelos fenômenos

em jogo. No acompanhamento etnográfico desses rastros, o antropólogo é convidado a dirigir

sua atenção para os excedentes não percebidos e não ditos que são transferidos nessas operações

de transubstanciação ideológica.

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