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A D IVERSIDADE DA G EOGRAFIA B RASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 6035 ANTROPOFAGIA PÓS-MODERNA OS PAITER SURUÍ E AS TECNOLOGIAS DO SÉCULO XXI Kelli Carvalho Melo 1 Rubia Elza Martins Sousa 2 Resumo: Os indígenas que vamos estudar são os Paiter Suruí, habitam a Terra Indígena Sete de Setembro, localizada no município de Cacoal/RO e município de Rondolândia/MT. O trabalho tem o objetivo de analisar o uso das tecnologias realizadas pelos Paiter Suruí, como tentativa de estratégia transcultural-territorial para o fortalecimento cultural-identitário e enfrentamento dos discursos pós- colonial. Na atualidade os Paiter Suruí se tornaram referência na luta incessante de reconhecimento cultural por meio de projetos grandiosos como o REED+ (Redução de Emissões por Desmatamento), Ecoturismo Paiter Suruí, e parceria com a Google Earth no desenvolvimento do mapa cultural Paiter Suruí. Palavras-Chave: Paiter Suruí, Tecnologias, Antropofagia. Abstract: Indigenous we will study are the Surui, inhabit the Indigenous Sete de Setembro, located in the municipality of Cacoal / RO and county Rondolândia / MT. The work aims to analyze the use of technology made by Surui, in an attempt to cross-cultural-territorial strategy for the cultural identity- building and addressing the post-colonial discourse. At present the Surui have become reference in the endless struggle for cultural recognition through grandiose projects such as REDD + (Reducing Emissions from Deforestation), Ecotourism Surui, and partnership with Google Earth in the development of cultural Surui map. Key-words: Surui, Technologies, Antropofagia. 1 - Introdução Os coletivos indígenas de Rondônia buscam sua sobrevivência, que se torna um desafio, essa é uma situação que não se diferencia em muito às demais etnias que se encontram em território brasileiro. Entre os múltiplos desafios encontram-se a luta para a demarcação do território; a superação dos impactos do colonizador na cultura, marcada em muitos casos pela discriminação étnica-racial. Todavia, a relação estreita com a natureza e os valores cosmogônicos e espirituais são 1 Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia UNIR/RO. Doutoranda em Geografia na Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD/MS 2 Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia UNIR/RO. Doutoranda em Geografia na Universidade Federal de Goiás UFG/GO

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ANTROPOFAGIA PÓS-MODERNA – OS PAITER SURUÍ E AS

TECNOLOGIAS DO SÉCULO XXI

Kelli Carvalho Melo1 Rubia Elza Martins Sousa2

Resumo: Os indígenas que vamos estudar são os Paiter Suruí, habitam a Terra Indígena Sete de

Setembro, localizada no município de Cacoal/RO e município de Rondolândia/MT. O trabalho tem o

objetivo de analisar o uso das tecnologias realizadas pelos Paiter Suruí, como tentativa de estratégia

transcultural-territorial para o fortalecimento cultural-identitário e enfrentamento dos discursos pós-

colonial. Na atualidade os Paiter Suruí se tornaram referência na luta incessante de reconhecimento

cultural por meio de projetos grandiosos como o REED+ (Redução de Emissões por Desmatamento),

Ecoturismo Paiter Suruí, e parceria com a Google Earth no desenvolvimento do mapa cultural Paiter

Suruí.

Palavras-Chave: Paiter Suruí, Tecnologias, Antropofagia.

Abstract: Indigenous we will study are the Surui, inhabit the Indigenous Sete de Setembro, located in

the municipality of Cacoal / RO and county Rondolândia / MT. The work aims to analyze the use of

technology made by Surui, in an attempt to cross-cultural-territorial strategy for the cultural identity-

building and addressing the post-colonial discourse. At present the Surui have become reference in

the endless struggle for cultural recognition through grandiose projects such as REDD + (Reducing

Emissions from Deforestation), Ecotourism Surui, and partnership with Google Earth in the

development of cultural Surui map.

Key-words: Surui, Technologies, Antropofagia.

1 - Introdução

Os coletivos indígenas de Rondônia buscam sua sobrevivência, que se torna

um desafio, essa é uma situação que não se diferencia em muito às demais etnias

que se encontram em território brasileiro. Entre os múltiplos desafios encontram-se a

luta para a demarcação do território; a superação dos impactos do colonizador na

cultura, marcada em muitos casos pela discriminação étnica-racial. Todavia, a

relação estreita com a natureza e os valores cosmogônicos e espirituais são

1 Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR/RO. Doutoranda em

Geografia na Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD/MS 2 Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR/RO. Doutoranda em

Geografia na Universidade Federal de Goiás – UFG/GO

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algumas das características que unem os coletivos entre si em sua forma de

apreensão e compreensão de mundo.

Os Paiter Suruí que se autodenominam de “Gente de Verdade” ou “Povo

Verdadeiro”, vivenciam um cenário que se encontra em constante processo de

novas representações e apropriações culturais, no entanto, alguns de seus rituais

permanecem ainda que tenham se adaptado a cultura e aos valores dos não

indígenas. Eles vivem na Terra Indígena Sete de Setembro (autodenominada

Paiterey Garah) nos municípios de Cacoal/RO e Rondolândia/MT, espacialmente

distribuídos, atualmente em 27 aldeias, ver imagem 1.

Figura 01: Localização da Terra Indígena Sete de setembro. Fonte: http://www.equipe.org.br/mapas_dentro.php?tipoid=5

Sua organização sociopolítica é ordenada por um sistema clânico de

parentesco e matrimônio, composto pelos Gameby (marimbondos pretos), Gabgir

(marimbondos amarelos), Makor (taboca) e Kaban (marindiba). Este último é

considerado parentes distantes dos demais clãs, pelo fato de serem originários de

um enlace entre uma indígena Cinta Larga e um Suruí.

Para compor essa estrutura estruturante social, a exogamia clânica é

fundamental. O casamento só é permitido entre clãs diferentes. A organização

política da chefia dos Paiter Suruí é muito generalizada, cada clã e aldeia possui um

chefe. A chefia é passada de pai para filho, além de poder ser transmitida a um

irmão no caso do chefe não possuir filhos do sexo masculino.

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1º SETOR – CONSELHO DE CLÃS -

Constituído por três representantes de cada clã

LABIWAY eSAGA - Indicado pelo

Conselho de clãs

10 LABIWAY - Sendo dois por

zona eleitos pelos clãs

2° SETOR ONGs indígenas (Associações

Clânicas)

3° SETOR ONGs indígenas e

ambientais (parceiros)

FUNDO PAITER SURUÍ

ZONA 01 - Cinco aldeias

ZONA 02 - Cinco aldeias

ZONA 03 - Cinco aldeias

ZONA 04 - Cinco aldeias

ZONA 05 - Sete

aldeias

Figura 01: Organização política da chefia dos Paiter Suruí e distribuição de poderes. Fonte: Cardozo (2011).

Assim, pode-se constatar duas formas de organização, a interna e a externa

que reflete as preocupações com a sociedade envolvente e que não estão

diretamente vinculadas ao contexto cosmogônico. Logo, as lideranças que atuam

externamente mudam de tempos em tempos, sendo que na atualidade os mais

jovens são escolhidos para chefiar devido à facilidade com a língua portuguesa.

É preciso asseverar que o contato com a sociedade envolvente fez com que

alguns rituais e valores fossem esquecidos, outros permaneceram, porém

sincretizados devido principalmente aos conflitos ideológicos, e interesses causados

pela inserção de religiões introduzidas na TIPG, configurando o que Sahlins (1997,

1997a, 2003 [1985]) conceitua como “mudanças e permanências”, e Galvão (1979)

entende como “encontro de sociedades”.

Anteriormente ao contato oficial, ocorreram contatos esporádicos, sendo que

alguns marcados por embates acirrados com outros povos indígenas, seringueiros e,

com os telegrafistas de Marechal Rondon, acontecidos nas primeiras décadas do

século XX. O primeiro contato oficial dos Paiter Suruí se deu em 1969. Após este

contato, cerca de metade da população veio a óbito devido a uma série de novas

doenças até então desconhecidas dos indígenas, de forma que no início dos anos

1980, contavam com uma população muito reduzida.

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O Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil –

POLONOROESTE foi um dos principais responsáveis pelas mudanças sociais,

políticas e territoriais entre os Paiter Suruí, isto porque os indígenas perderam

significativa parte de seu território original para os migrantes que foram beneficiados

com lotes de terras doados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária – INCRA, além da abertura de novas estradas próximas à TIPG causaram

intensos e constantes impactos sociais e ambientais.

O contato provocou mudanças que são vistas e sentidas pelo povo Paiter

Suruí, sendo que as pressões sofridas contribuíram para diversas e novas

representações internas. Este povo ainda mantém muito de seus valores culturais e

cosmogônicos, que se relacionam ambos, com a cultura de outros Tupi Mondé.

O trabalho tem o objetivo de analisar o uso das tecnologias realizadas pelos

Paiter Suruí, como tentativa de estratégia transcultural-territorial para o

fortalecimento cultural-identitário e enfrentamento dos discursos pós-colonial.

Na atualidade os Paiter Suruí se tornaram referência na luta incessante de

reconhecimento cultural por meio de projetos grandiosos como o REED+ (Redução

de Emissões por Desmatamento), Ecoturismo Paiter Suruí, e a parceria com o

Google Earth no desenvolvimento do mapa cultural Paiter Suruí.

O uso de objetos tecnológicos para o desenvolvimento desses projetos se

tornou regular na terra indígena, o que faz com que os Paiter Suruí passem por um

processo de transculturalidade, em que a própria identidade se ressignifica no

espaço/território. Para entendermos esse processo de ressignificação utilizamos no

trabalho do conceito de antropofagização, ou seja, o devorar dos objetos externos a

sua cultura, como as tecnologias e os projetos. Para entendermos os conceitos de

transculturalidade, identidade e antropofagização na pós-modernidade utilizaremos

os autores, Rolnik (1998), Haesbaert (2008, 2011), Mondardo e Haesbaert (2010).

2 - Os Paiter e o século XXI

Alguns períodos importantes ajudaram no desenvolvimento da região

Amazônica, e consequentemente tiveram impacto sobre os povos indígenas, e

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provocaram mudanças em seus modos de vida, bem como redução de seus

territórios ancestrais.

A Amazônia, desde o início de sua colonização, sofreu fluxos migratórios

oriundos diretamente dos ciclos econômicos, como os ciclos da borracha, da

mineração, e ainda devido aos assentamentos do INCRA, que geraram povoados e

cidades (OLIVEIRA, 1991).

Os coletivos indígenas em Rondônia até o início da década de 1970 foram

massacrados pelos seringalistas, isso devido à ascensão da borracha que tinha

grande valor. Com o fim do ciclo da borracha, outros atores se fizeram presentes no

território rondoniense, como os assentados pelo INCRA.

Através dos projetos de assentamentos como os PICs (Projetos Integrados de

Colonização), colocaram o Estado como o grande indutor de transformações sócio-

espaciais, esses projetos foram implantados pelo Governo Militar na década de 1970

e foi instrumento geopolítico importante para a ocupação de Rondônia. Esses

instrumentos tiveram impactos nas terras indígenas e ocasionaram em embates

emblemáticos.

O Estado de Rondônia ainda apresenta uma diversidade grande de povos

indígenas, o que leva as discussões de demarcação e ampliação de suas terras. A

demarcação e ampliação de reservas ainda é uma questão debatida, isso porque

causa impactos na atividade agrícola do Estado.

As demarcações coincidiram com o período da chegada de grande

contingente de migrantes em busca de oportunidades e espaços para produzir,

ampliou e gerou conflitos interétnicos, além do aumento do desmatamento e das

queimadas, cuja finalidade voltou-se para a agropecuária.

Os Paiter Suruí é um dos coletivos que compõem o mosaico indígena no

estado de Rondônia e Mato Grosso. Faz-se necessário o reconhecimento da

organização como atores da construção territorial como ocorrem o diálogo das suas

relações históricas dentro de sua área de convívio.

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No século XIX os Paiter Suruí teriam emigrado de Cuiabá para Rondônia,

fugindo da perseguição de não indígenas, o que ocasionou choque com outros

grupos indígenas e consequentemente batalhas acirradas. O início do século XX foi

marcado por várias intervenções estratégicas que provocaram mudanças no

território rondoniense. O ciclo da borracha, a construção da estrada de ferro

Madeira-Mamoré e a instalação das linhas telegráficas, o que culminou num

crescente fluxo migratório para essa região, e os efeitos nas populações indígenas

foi de diminuição substancial ocasionado por conflitos interétnicos (OLIVEIRA,

1991).

As migrações forçadas que os Paiter Suruí realizaram ajudaram na

demarcação da sua terra, entretanto, com excessivos movimentos migratórios pelos

Estados de Rondônia e Mato Grosso a fixação do seu território não compreende sua

porção original.

O primeiro contato foi feito pela expedição oficial da FUNAI, chefiada pelo

sertanista Francisco Meirelles, em sete de setembro de 1969. Daí o nome dado à

Terra Indígena, que primeiro deu nome a uma das aldeias dos Paiter Suruí. Após

este contato, cerca de metade da população veio a óbito devido às doenças

transmitidas pelos colonizadores, de forma que nas décadas seguintes, a partir dos

anos 1980, os indígenas contavam com uma população muito reduzida. Uma

redução na população de cerca de 5.000 para 250 indivíduos (CARDOZO, 2011).

O choque com o colonizador causou impactos tanto nas estruturas físicas,

como doenças adquiridas que levaram a óbito grande parte dessa população, como

também nas representações do coletivo. A redução drástica desses indígenas, a

impotência diante de tamanha pressão que se apresentou de distintas formas.

No entanto, os Paiter Suruí conseguiram se firmar nesse contexto de

insegurança, de (o)pressão, conseguiram reverter ao seu favor as consequências

inevitáveis do sistema capitalista. Discursos do tipo que os indígenas são parados

no tempo, primitivos, não se aplicam nos dias atuais, os Paiter Suruí são exemplos,

hoje são os indígenas mais bem organizados do Brasil política e economicamente, o

uso das tecnologias se tornou cotidiano na Terra Sete de Setembro.

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Tecnologias que são utilizadas justamente como forma de proteção do seu

território ancestral, fortalecimento cultural, e afirmação identitária da luta indígena.

Com o uso das tecnologias ao seu favor, os Paiter Suruí propagam o discurso do

“desenvolvimento sustentável”, pois, os projetos que atualmente são desenvolvidos

em sua terra estão pautados no conceito de “economia verde”.

A nova geração de lideranças com o atual Labiway E-Saga (chefe maior)

Almir Narayamoga Suruí, levaram a luta indígena ao um patamar antes impensável.

Hoje os indígenas têm suas próprias associações que os representam, buscam suas

parcerias com ONGs tanto nacionais quanto internacionais. Os Paiter Suruí

conseguirem se posicionar no século XXI com o advento da globalização do modo

capitalista de viver. Eles possuem projetos grandiosos como o Carbono Florestal

Suruí, pautado no REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação),

o objetivo desse projeto é aumentar sua renda e proteger a floresta e

consequentemente a cultura.

Segundo Romero (2014) esse projeto foi validado em 2012 sob o Padrão de

Carbono Verificado (VCS) e o Padrão Ouro de Clima, Comunidade e Biodiversidade

(CCB), que são os principais para creditar projetos que visam reduzir as emissões

de gases do efeito estufa produzidos pelo desmatamento e pela degradação

florestal.

Outro projeto que está sendo desenvolvido é o Mapa Cultural Suruí em

parceria com o Google Earth. A parceria já é de longo prazo, mas de 7 anos. O

objetivo foi usar o gigante da tecnologia e informação Google, e tudo que oferece ao

seu favor, de forma, a expressarem sua cultura à sociedade envolvente que nunca

tiveram um contato com povos indígenas, ou o contato é raro. Essa parceria se

mostra muito promissora, porque ao mesmo tempo que os Paiter Suruí valorizam

sua cultura eles a protegem, protegendo o território, que está totalmente

georeferenciado. O mapa mostra pontos essências para se entender a cultura

desses indígenas.

O Plano de Negócio de Turismo do Povo Indígena Paiter Suruí é fruto de três

anos de pesquisas e discussões participativas, com vários estudos e levantamentos

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de campo para a implantação do Ecoturismo Indígena. Faz parte das atividades do

Projeto Garah Itxa – Corredores Etnoambientais na Amazônia Brasileira. O objetivo

desse projeto é fortalecer as ações dos indígenas e suas associações, assim

consistindo em uma estratégia de conservação baseada no conceito de corredores

etnoambientais.

Esse plano de turismo, é apenas um plano que os Paiter Suruí esperam

implantar em seu território, é uma iniciativa que está a buscar apoios municipal,

estadual, nacional e internacional. O Ecoturismo Paiter Suruí com os apoios

necessários vai se configurar como geração de renda, e consequentemente como

uma forma de visualização cultural o que vai fortalecer sua identidade diante da

sociedade envolvida.

A incorporação desses projetos ressignificados a sua cultura, com o uso das

tecnologias, e até da própria língua portuguesa brasileira é uma forma de

protagonismo. Essas incorporações são estratégias antropofágicas, que auxiliam no

fortalecimento do coletivo Paiter Suruí.

Dessa forma, as transformações advindas da incorporação das tecnologias,

celulares, computadores, internet, e-mail, GPS, até mesmo de projetos e conceitos

não-indígenas, como “economia verde”, “desenvolvimento sustentável”, ocorre a

transculturação identitária. Ao entendemos a identidade como um conjunto de

práticas sociais vivenciadas entre os membros de um grupo, e quando há a inserção

desse conjunto de tecnologias se territorializando no meio dessas práticas sócias já

existentes, ao invés de enfraquecer fortalece o grupo e a luta.

Entendemos que os reflexos dessas estratégias antropofágicas utilizadas

pelos Paiter Suruí são para o fortalecimento transcultural-sócio-ambiental-político-

territorial e que dará cada vez mais autonomia e liberdade ao coletivo e, que não

tem pretensão de ser modelo único aos demais povos indígenas, mas serve para

reflexão e estratégia.

3 - Antropofagia pós-moderna

As relações que se apresentam na atualidade nas mais diferentes dimensões,

política, econômica, cultural, ambiental, vem sempre atreladas aos discursos

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culturalistas de dimensão identitária. A questão da identidade se tornou um fator

preponderante nas discussões de políticas públicas, ainda mais relacionadas às

minorias étnicas.

Os povos indígenas tem grande importância nesses discursos culturalistas

identitários, uma vez que suas novas articulações em suas terras indígenas tomam

outras proporções, estes se tornaram protagonistas, realizando suas próprias

articulações políticas, nos fazendo pensar a identidade indígena, ou melhor, o que é

a identidade na pós-modernidade.

Entendemos a identidade como algo não folclórica. Ou identificado por

aspectos particulares como no senso comum. Mas, enquanto práticas sociais

vivenciadas cotidianamente pelas pessoas. De acordo com Carvalho (2009, p. 5),

“(...) a visão do índio defendida por muitos leigos é a “mítica”, a qual o índio “puro”

deve viver nu, morar nas matas, usar adereços constantemente, pintar o corpo, falar

línguas ou dialetos diferentes etc”. Essa visão equivocada de isolamento não faz

mais parte dos grupos indígenas, pois estes mantêm relações com a sociedade

envolvente e nem por isto, perdem sua identidade.

A identidade que caracteriza os grupos humanos é importante para leitura da

organização e lutas, pois cada vez mais as lutas se dão não apenas pelas

organizações de classe, mas por grupos étnicos, como fazem os Paiter Suruí.

Em nosso trabalho vamos abordar a identidade relacionada ao conceito de

antropofagização. É a partir da metáfora “antropofagia” utilizada e discutida por

Rolnik (1998) que vamos pensar essas estratégias dos Paiter Suruí. Esse conceito

colabora como ferramenta estratégica para o entendimento de questões territoriais e

indentitárias no contexto que os grupos étnicos vivenciam na atualidade.

A antropofagia é a seleção de elementos potenciais, daqueles que chamam a

atenção, que consiste segundo Rolnik (1998, p. 2) “deixar-se afetar por estes outros

elementos desejados a ponto de absorvê-lo no corpo, para que partículas de sua

virtude se integrassem à química da alma e promovessem seu refinamento”. O

pensamento antropofágico considera que todos os elementos culturais são

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potencialmente equivalentes enquanto fornecedores de recursos para produzir

sentidos, sem hierarquia cultural. De acordo com o mesmo autor,

Esta estratégia do desejo definida pela justaposição irreverente que cria uma tensão entre mundos que não se roçam no mapa oficial da existência, que desmistifica todo e qualquer valor a priori, que descentraliza e torna tudo igualmente bastardo – esta estratégia do desejo põe em funcionamento um modo de subjetivação que chamarei de “antropofágico”(Rolnik, 1998, p.7).

Dessa forma o espaço se apresenta como “esfera da possibilidade da

existência da multiplicidade, no sentido de pluralidade contemporânea (...) no qual

distintas trajetórias coexistem” (Massey, 2008, p. 29), o espaço é produto das inter-

relações dos sujeitos, é no espaço que as reinvenções se fazem, reinvenção do

território e da territorialidade. Pensamos o território Paiter Suruí como uma entidade

aberta, possibilitando encontros, desencontros e confrontos, que se dão na

estratégia de antropofagização dos projetos como o REED, Mapa Cultural e o Plano

de Negócio de Turismo.

Diante do sistema capitalista e dos processos globalizantes há uma maior

circulação das pessoas, mercadorias e informações, o que leva a uma grande

interação entre as culturas. Levando um processo de transculturação dos grupos

étnicos, isto é, o contato com outras culturas diferentes da sua, mas sem a perda de

sua identidade.

Segundo Young (2005\1995), Haesbaert (2011), existe uma autoconsciência

e segurança identitária, mesmo ao aderir elementos externos, o faz para

fortalecimento do grupo e como estratégias de resistência, como no processo

antropofágico. Assim os Paiter Suruí, ao apropriarem do discurso de

“desenvolvimento sustentável e economia verde”, que os levam a gerir a floresta de

outras formas possíveis, é uma antropofagização de estratégia, resistência,

manutenção e divulgação de sua cultura.

Esses projetos são estratégias de fortalecimento cultural/identitária para o

indígena do/no século XXI. Os Paiter Suruí como qualquer outra etnia indígena, faz

uso da antropofagia pós-moderna, “devora” os elementos e territórios pertencentes a

outros grupos culturais, tornando de alguma forma “seu”, mas de um jeito do “Gente

de Verdade”.

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4 - Considerações Finais

Esse trabalho teve por objetivo analisar o uso das tecnologias realizadas

pelos Paiter Suruí, como tentativa de estratégia transcultural-territorial para o

fortalecimento cultural-identitário e enfrentamento dos discursos pós-colonial do

indígena como atrasado, bárbaro, primitivo. A colonialidade ainda existe, por mais

que o colonialismo não se apresente nos moldes do século XIV, e a quebra desses

discursos homogeneizadores se fazem necessária.

Entendemos que as estratégias antropofágicas utilizadas pelos Paiter Suruí,

são uma quebra desses discursos, e ainda cria um ambiente mais autônomo e

preparado para enfrentar as demandas que o futuro impõe aos povos indígenas. As

utilizações das tecnologias auxiliam na autonomia, e em um não assistencialismo do

Estado Brasileiro em relação a esse povo indígena e que torna uma alternativa a ser

seguida por outros indígenas.

Essa transculturação ocasionada pela antropofagização reforça a alteridade

do coletivo tanto no contexto sócio-ambiental-político-territorial, pois suas políticas

superam o avanço do desmatamento e do agronegócio. Questões essas que nos

colocam a pensar a identidade na pós-modernidade.

5 - Referências Bibliográficas

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