_Antonio_Candido_e_Outros_-_A_personagem_de_ficção_(doc)(rev)[1]
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8/3/2019 _Antonio_Candido_e_Outros_-_A_personagem_de_fico_(doc)(rev)[1]
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A Personagem
de FicoAntonio Candido, Anatol Rosenfeld,
Decio de Almeida Prado e Paulo Emlio Sales Gomes
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http://groups.google.com/group/digitalsource
A Personagem de FicoDebates
por J. Guinsburg
Conselho Editorial: Anatol Rosenfeld, AnitaNovinsky, Aracy Amaral, Bons Schnaiderman, CelsoLafer, Gita K. Ghinzberg, Haroldo de Campos, RosaKrausz, Sbato Magaldi, Zulmira Ribeiro Tavares.
Antonio Candido Anatol Rosenfeld
Decio de Almeida Prado Paulo Emlio Sales Gomes
A Personagem de Fico
2a edio
Equipe de realizao: Geraldo Gerson de Souza, reviso; MoyssBaumstein, capa e trabalhos tcnicos.
Editora Perspectiva
So Paulo
1
1Este livro foi digitalizado e distribudo GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a inteno defacilitar o acesso ao conhecimento a quem no pode pagar e tambm proporcionar aos DeficientesVisuais a oportunidade de conhecerem novas obras.
http://groups-beta.google.com/group/digitalsourcehttp://groups-beta.google.com/group/digitalsource -
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PREFCIO
(pag. 5)
O livro seguinte reproduz, com o mesmo ttulo, o Boletim n.
284 da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da. Universidade de
So Paulo, publicado em 1964. Nascido de uma experincia de
ensino, julgo oportuno reproduzir a parte do Prefcio que explicava a
sua elaborao.
ste Boletim resulta das atividades do Seminrio
Interdisciplinar, iniciativa pela qual procuro dar aos cursos a meucargo o carter de interrelao com outros pontos de vista,
indispensveis ao estudo da Teoria Literria. Esta matria toca no
apenas em outros domnios do saber,como a Filosofia e a Lingstica,
mas na realidade viva das diversas artes. Da se encontrarem nesta
publicao, como se encontraram nas atividades do Seminrio,
estudiosos da Filosofia, da Literatura, do Teatro e do Cinema.
O curso de 1961 para o 4. ano versou Teoria e Anlise do
Romance; dentre os seus tpicos, foi selecionado o referente
Personagem (explanado no ms de abril), para os trabalhos do
Seminrio. Eles se estenderam de outubro a novembro, depois de
terminadas as aulas, constando de exposies sbre o problema geral
Se quiser outros ttulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, ser um prazerreceb-lo em nosso grupo.
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da fico pelo Professor Anatol Rosenfeld; sbre a personagem de
teatro, pelo Professor Dcio de Almeida Prado; sbre a personagem
de cinema, pelo Professor Paulo Emlio Sales Gomes. A seguir, vieram
outras atividades, como uma Mesa Redonda, com participao dos
alunos e dos quatro docentes, para balano e esclarecimento de
problemas; a projeo do filme La Dolce Vita, de Federico Fellini,
comentado pelo Professor Paulo Emilio Sales Gomes do ngulo das
tcnicas de caracterizao psicolgica; a representao da pea A
Escada, de Jorge Andrade, seguida de debate sbre a caracterizao
cnica, orientado pelo Professor Dcio de Almeida Prado, com a
participao central do encenador, Flvio Rangel, e a colaborao da
crtica de teatro Brbara Heliodora Carneiro de Mendona. Dessa
maneira, procurou-se pr os estudantes em contato com vrias faces
de um problema complexo, a fim de que a teoria e a anlise, do ponto
de vista literrio, ficassem o mais esclarecidas possvel pela
incidncia de outros focos.
Neste Boletim, recolhem-se as aulas sbre personagem do professor
do curso e as contribuies do Seminrio, redigidas especialmente
para o caso. Como se ver, as exposies crticas sbre o problema
no romance, no teatro e no cinema giram estruturalmente em trno
da exposio bsica sbre o problema geral da fico, embora cada
autor tenha escrito a sua contribuio independentemente e com
tda a liberdade.
Na presente edio, suprimiu-se a pequena bibliografia final, de
intersse meramente indicativo, e corrigiram-se alguns erros
tipogrficos.
So Paulo, 31 de janeiro de 1968
Antonio Candido de Mello e Souza
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Literatura e Personagem
(Pag. 9)
Conceito de Literatura
Geralmente, quando nos referimos literatura, pensamos no que
tradicionalmente se costuma chamar belas letras ou beletrstica.
Trata-se, evidentemente, s de uma parcela da literatura. Na acepo
lata, literatura tudo o que aparece fixado por meio de letras
obras cientficas, reportagens, notcias, textos de propaganda, livros
didticos, receitas de cozinha etc. Dentro dste vasto campo das
letras, as belas letras representam um setor restrito. Seu trao
distintivo parece ser menos a beleza das letras do que seu carter
fictcio ou imaginrio1. A delimitao do campo da beletrstica pelo
carter ficcional ou imaginrio tem a vantagem de basear-se em
momentos de lgica literria que, na maioria dos casos, podem ser
verificados com certo rigor, sem que seja necessrio recorrer a
valorizaes estticas. Contudo o critrio do carter ficcional ou
imaginrio no satifaz inteiramenente o propsito de delimitar o
campo da literatura no sentido restrito. A literatura de cordel tem
carter ficcional, mas no se pode dizer o mesmo dos Sermesdo
1 O significado dste trmo, no sentido usado neste trabalho, se esclarecer mais adiante, sem que haja
qualquer pretenso de uma abordagem ampla e profunda dste conceito tradicional, desde a antiguidade
objeto de muitas discusses. Contribuies recentes para a sua anlise encontram-se nas obras de 3.-P.
Sartre,LImagination eLImaginaire, Roman Ingsrden,Das literarische Kunstwerk(A obra-de-arteliterria) e Untersuchungen zur Ontol,ogle der Kunst(Investigaes acrca da ontologia da arte) M.Dufreune,Phnomnologje de lexprlence esthtique tdas baseadas nos mtodos de E. Husseri.
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Padre Vieira, nem dos escritos de Pascal, nem provvelmente dos
dirios de Gide ou Kafka. Ser fico o poema didtico De rerum
natura, de Lucrcio? No entanto, nenhum historiador da literatura
hesitar em eliminar das suas obras os romances triviais de baixo
entretenimento e em nelas acolher os escritos mencionados. Parece
portanto impossvel renunciar por inteiro a critrios de valorizao,
principalmente esttica, que como tais no atingem objetividade
cientfica embora se possa ao menos postular certo consenso
universal.
A Estrutura da Obra Literria
A estrutura de um texto qualquer, ficcional ou no, de valor
esttico ou no, compe-se de uma srie de planos, dos quais o nico
real, sensivelmente dado, o dos sinais tipogrficos impressos no
papel. Mas ste plano, embora essencial fixao da obra literria,
no tem funo especfica na sua constituio, a no ser que se trate
de um texto concretista. No nexo dste trabalho, ste plano deve ser
psto de lado, assim como tdas as consideraes sbre tendncias
literrias recentssimas, cuja conceituao ainda se encontra em
plena elaborao.
Como camadas j irreais por no terem autonomia ntica,
necessitando da atividade concretizadora e atualizadora do
apreciador adequado encontramos as seguintes: a dos fonemas e
das configuraes sonoras (oraes), percebidas apenas pelo
ouvinte interior, quando se l o texto, mas diretamente dadas
quando o texto recitado; a das unidades significativas de vrios
graus, constitudas pelas oraes; graas a estas unidades, so
(projetadas atravs de determinadas operaes lgicas, contextos
objectuais (Sachverhalte), isto , certas relaes atribudas aos
objetos e suas qualidades (a rosa vermelha; da flor emana um
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perfume; a roda gira). stes contextos objectuais determinam as
objectualidades, por exemplo, as teses de uma obra cientfica ou o
mundo imaginrio de um poema ou romance.
Merc dos contextos bjectuais, constitui-se um plano intermedirio
de certos aspectos esquematizados que, quando especialmente
preparados, determinam concretizaes especificas do leitor. Quando
vemos uma bola de bilhar deslizando sbre o pano verde,
vivenciamos um fluxo continuo de aspectos variveis de um disco
eliptide, de uma cr clara extremamente matizada; atravs dsses
aspectos variveis -nos dada e se mantm inalterada a percepo
da esfera branca da bola. Em geral, os textos apresentam-nos tais
aspectos mediante os quais se constitui o objeto. Contudo, a
preparao especial de selecionados aspectos esquemticos de
importncia fundamental na obra ficcional particularmente quando
de certo nvel esttico j que desta forma solicitada a imaginao
concretizadora do apreciador. Tais aspectos esquemticos, ligados
seleo cuidadosa e precisa da palavra certa com suas conotaes
peculiares, podem referir-se aparncia fsica ou aos processos
psquicos de um objeto ou personagem (ou de ambientes ou pessoas
histricas etc.), podem salientar momentos visuais, tteis, auditivos
etc.
Em poemas ou romances tradicionais, a preparao especial dos
aspectos bem mais discursiva do que, por exemplo, em certos
poemas elpticos de Ezra Pound ou do ltimo Brecht, em que a
justaposio ou montagem de palavras ou oraes, sem nexo lgico,
deve, como num ideograma, resultar na sntese intuitiva de uma
imagem, graas participao intensa do leitor no prprio processo
da criao (a teoria da montagem flmica de Eisenstein baseia-se nos
mesmos princpios).
Num quadro figurativo h s umaspecto para mediar os objetos, mas
ste de uma concreo sensvel nunca alcanada numa obra
literria. Esta, em compensao, apresenta grande nmero de
aspectos, embora extremamente esquemticos. O cinema e o teatro
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apresentam muitos aspectos concretos, mas no podem, como a obra
literria, apresentar diretamente aspectos psquicos, sem recurso
mediao fsica do corpo, da fisionomia ou da voz.
s camadas mencionadas devem ser acrescentadas, numa obra
ficcional de elevado valor, vrias outras as dos significados
espirituais mais profundos que transparecem atravs dos planos
anteriores, principalmente o das objectualidades imaginrias,
constitudas, em ltima nlise, pelas oraes 2.ste mundo fictcio
ou mimtico que freqentemente reflete momentos selecionados e
transfigurados da realidade emprica exterior obra, torna-se,
portanto, representativo para algo alm dle, principalmente alm da
realidade emprica, mas imanente obra.
A Obra Literria Ficcional
1) O problema ontolgico: A verificao do carter ficcional
de um escrito independe de critrios de valor. Trata-se de problemas
ontolgicos, lgicos e epistemolgicos.Como foi exposto antes uma das funes essenciais da orao a de
projetar, como correlato,um contexto objectual que transcendente
ao mero contedo significativo, embora tenha nle seu
fundamento ntico. Assim, a orao Mrio estava de pijama projeta
um correlato objectual que constitui certo ser fora da orao. Mas o
Mrio assim projetado deve ser rigorosamente distinguido de certo
Mrio real, possivelmente visado pela orao. Como tal, o correlatoda orao pode referir-se tanto a um rapaz que existe
independentemente da orao, numa esfera ntica autnoma (no
caso, a da realidade), como permanecer sem referncia a nenhum
mo real. Todo texto, artstico ou no, ficcional ou no, projeta tais
contextos objectuais puramente intencionais que podem referir-se
ou no a objetos nticamente autnomos.
Imaginemos que eu esteja vendo diante de mim o Mrio real;
evidente que na minha conscincia h s uma imagem dle, alis no
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notada por mim, j que me refiro diretamente ao Mrio real. Posso
chamar ste objeto o Mrio real de tambm intencional, visto
o mesmo existir no por graa do meu ato, mas ter plena autonomia,
mesmo quando visado por mim num ato intencional, como agora.
Todavia, a imagem dle, a qual o representa na minha conscincia
(embora no a note), puramente intencional, visto no possuir
autonomia ntica e existir por graa do meu ato. Posso reproduzi-la
at certo ponto na minha mente, mesmo sem ver o rapaz autnomo;
posso tambm transform-la merc de certas operaes
espontneas. bvio que as oraes s podem projetar tais
correlatos puramente intencionais, j que no lhes dado
tampouco como minha conscincia encerrar os objetos tambm
intencionais.
Ainda assim, as objectualidades puramente intencionais projetadas
por intermdio de oraes tm certa tendncia a se constiturem
como realidade. Se a orao Mrio estava de pijama apresenta o
mo pela primeira vez, ste torna-se portador do traje a ele
atribudo; portador graas funo especfica de sujeito da orao; e
portador de algo, em virtude da funo significativa da cpula. O
pretrito, apesar de em certos casos ter o cunho fictcio do era uma
vez, tem em geral mais fra realizadora e individualizadora do
que a voz do presente (O elefante pesano mnimo uma tonelada
pode ser o enunciado de um zologo sbre os elefantes em geral;
mas o elefantepesava no mnimo uma tonelada refere-se a um
elefante individual, existente em determinado momento). De
qualquer modo, a orao projeta o objeto Mrio como um ser
independente. Com efeito, ela sugere que Mrio j existia e j estava
de pijama antes de a orao assinalar ste fato. Ao seguir a
prxima orao: le batia uma carta na mquina de escrever, Mrio
j se emancipou de tal modo das oraes,. que os contextos
objectuais, embora estejam pouco a pouco constituindo e produzindo
o mo, parecem ao contrrio apenas revelarpormenores de um ser
autnomo. E isso ao ponto de o mundo objectual assim constitudo
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pelas oraes (mas que se insinua como independente, apenas
descritopelas oraes) se apresentar como um contnuo, apesar de
as oraes serem naturalmente descontnuas como os fotogramas de
uma fita de cinema. base das oraes, o leitor atribui a Mrio uma
vida anterior sua criao pelas oraes; coloca a mquina sbre
uma mesa (no mencionada) e o rapaz sbre uma cadeira; o conjunto
num quarto, ste numa casa, esta numa cidade embora nada disso
tenha sido mencionado.
Uma das diferenas entre o texto ficcional e outros textos reside no
fato de, no primeiro, as oraes projetarem contextos objectuais e,
atravs dstes, sres e mundos puramente intencionais, que no se
referem, a no ser de modo indireto, a sres tambm intencionais
(nticamente autnonios), ou seja, a objetos determinados que
independem do texto. Na obra de fico, o raio da inteno detm-se
nestes sres puramente intencinais, smente se teferindo de um
modo indireto e isso nem em todos os casos a qualquer tipo de
realidade extraliterria. J nas oraes de outros escritos, por
exemplo, de um historiador, qumico, reprter etc., as objectualidades
puramente intencionais no costumam ter por si s nenhum (ou
pouco) pso ou densidade, uma vez que, na sua abstrao ou
esquematizao maior ou menor, no tendem a conter em geral
esquemas especialmente preparados de aspectos que solicitam o
preenchimento concretizador. O raio de inteno passa atravs delas
diretamente aos objetos tambm intencionais, semelhana do que
se verifica no caso de eu ver diante de mim o mo acima citado,
quando nem sequer noto a presena de uma imagem interposta.
H um processo semelhante no caso de um jornal
cinematogrfico ou de uma foto de identificao. Trata-se de
imagens puramente intencionais que, no entanto, procuram omitir-
se para franquear a viso da prpria realidade. J num retrato
artstico a imagem puramente intencional adquire valor prprio, certa
densidade que fcilmente ofusca a pessoa retratada. Alis, mesmodiante de um fotgrafo despretensioso a pessoa tende a compor-se,
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tomar uma pose, tornar-se personagem; de certa forma passa a ser
cpia antecipada da sua prpria cpia. Chega a fingir a alegria que
deveras sente.
2) O problema lgico. Os enunciados de uma obra cientfica e, na
maioria dos casos, de notcias, reportagens, cartas, dirios etc.,
constituem juzos, isto , as objectualidades puramente intencionais
pretendem corresponder, adequar-se exatamente aos sres reais
(ou ideais, quando se trata de objetos matemticos, valores,
essncias, leis etc.) referidos. Fala-se ento de adequatio orationis
ad rem. H nestes enunciados a inteno sria de verdade.
Precisamente por isso pode-se falar, nestes casos, de enunciados
errados ou falsos e mesmo de mentira e fraude, quando se trata de
uma notcia ou reportagem em que se pressupe inteno sria.
O trmo verdade, quando usado com referncia a obras de arte ou
de fico, tem significado diverso. Designa com freqncia qualquer
coisa como a genuinidade, sinceridade ou autenticidade (trmos que
em geral visam atitude subjetiva do autor); ou a verossimilhana,
isto , na expresso de Aristteles, no a adequao quilo que
aconteceu, mas quilo que poderia ter acontecido; ou a coerncia
interna no que tange ao mundo imaginrio das personagens e
situaes mimticas; ou mesmo a viso profunda de ordem
filosfica, psicolgica ou sociolgica da realidade.
At neste ltimo caso, porm, no se pode falar de juzos no
sentido preciso. Seria incorreto aplicar aos enunciados fictcios
critrios de veracidade cognoscitiva. Sentimos que a obra de Kafkanos apresenta certa viso profunda da realidade humana, sem que,
contudo, seja possvel verificar a maioria dos enunciados individuais
ou todos les em conjunto, quer em trmos empricos, quer
puramente lgicos. Na obra de Knut Hamsun h uma viso profunda
inteiramente diversa da realidade, mas seria impossvel chamar a
maioria dos enunciados ou o conjunto dles de falsos. Quando
chamamos falsos um romance trivial ou uma fita medocre, fazemo-lo, por exemplo, porque percebemos que nles se aplicam padres do
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conto de carochinha a situaes que pretendem representar a
realidade cotidiana. Os mesmos padres que funcionam muito bem
no mundo mgico-demonaco do conto de fadas revelam-se falsos e
caricatos quando aplicados representao do universo profano da
nossa sociedade atual (a no ser que esta prpria aplicao se torne
temtica). Falso seria tambm um prdio com portal e trio de
mrmore que encobrissem apartamentos miserveis. esta
incoerncia que falsa. Mas ningum pensaria em chamar de falso
um autntico conto de fadas, apesar de o seu mundo imaginrio
corresponder muito menos realidade emprica do que o de qualquer
romance de entretenimento.
Ainda assim a estrutura das oraes ficcionais parece ser em geral a
mesma daquela de outros textos. Parece tratar-se de juzos. O que os
diferencia dos verdadeiros a inteno diversa isto , a inteno
que se dtm nas objectualidades puramente intencionais (e nos
significados mais profundos por elas sugeridos), sem atravess-las,
diretamente, em direo a quaisquer objetos autnomos, como
ocorre, no nosso exemplo, na viso do mo real. essa inteno
diversa no necessriamente visvel na estrutura dos enunciados
que transforma as oraes de uma obra ficcional em quase-juzos3.
A sua inteno no sria4.
O autor convida o leitor a deter o raio de inteno na imagem de
Mrio, sem buscar correspondncias exatas com qualquer pessoa real
dste mesmo nome5.
Todavia, os textos ficcionais, apesar de seus enunciados costumarem
ostentar o hbito exterior de juzos, revelam nitidamente a inteno
ficcional, mesmo quando esta inteno no objetivada na capa do
livro, atravs da indicao romance, novela etc. Ainda que a obra
no se distinga pela energia expressiva da linguagem ou por qualquer
valor especfico, notar-se- o esfro de particularizar, concretizar e
individualizar os contextos objectuais, mediante a preparao de
aspectos esquematizados e uma multiplicidade de pormenores
circunstanciais, que visam a dar aparncia real situao imaginria.
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paradoxalmente esta intensa aparncia de realidade que revela a
inteno ficcional ou mimtica. Graas ao vigor dos detalhes,
veracidade de dados insignificantes, coerncia interna, lgica
das motivaes, causalidade dos eventos etc.,
3. A expresso usada por Roman Ingarden em Das literarische
Kunstwerk. J.-P. Sartre, em LImagination, formula: Il y a l un type
daffirmation, un type dexistence intermdiaire entre les assertions fausses du rve
et les certitudes de la veille: et ce type dexistence est videmment celui des
crations imaginaires. Faire de celles-ci des actes judicatifs, cest leur donner trop
(p.137).
4. Quando da publicao de seus Buddenbrooks, Th. Mann foi violentamenteatacado devido ao retratamenso de pessoas e aspectos da cidade de Lbeck. Tais
incidentes so freqentes na histria da literatura. Num ensaio sbre o caso (Bilse
und ich), Th. Mann declarou: Quando fao de uma coisa uma orao que tem
que ver esta coisa com a orao? O fato que mesmo uma cidade realmente
existente torna-se fico no contexto fictcio, j que representa determinado papel
no mundo imaginrio. Isso se refere tambm s imagens de filmes tomadas no
ambiente real correspondente ao enrdo: o ambiente, embora em si real, situa-se
agora num espao fictcio e torna-se igualmente fictcio. Um enunciado como dois
e dois so quatro sempre verdico; mas quando preferido por uma personagem,
com inteno sria, esta inteno sria , por sua vez, fictcia; e quando ocorre na
prpria narrao, a inteno fictcia transforma o enunciado em quase-juzo,
embora em si certo. Quando, em Lio, de Ionesco, o professor e a aluna se
debatem com multiplicaes astronmicas, ningum pensaria em verificar os
resultados. A funo dos juzos aritmticos, no contexto fictcio, no esta.
5.A conscincia do carter ficcional no tem sido sempre ntida. Wolfgang
Kayser (em:Die Wahrheit der Dlchter A verdade dos Poetas)demonstra
que no sculo XVI os leitores de romance no tinham a noo ntida de que os
enunciados respectivos eram fictcios.
tende a constituir-se a verossimilhana do mundo imaginrio.
Mesmo sem alguns dstes elementos o texto pode alcanar tamanha
fra de convico que at estrias fantsticas se impem como
quase-reais. Todavia, a aparncia da realidade no renega o seu
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carter de aparncia. No se produzir, na verdadeira fico, a
decepo da mentira ou da fraude. Trata-se de um verdadeiro ser
aparencial (Julian Matias), baseado na conivncia entre autor e leitor.
O leitor, parceiro da emprsa ldica, entra no jgo e participa da no
-seriedade dos quase-juzos e do fazer de conta.
Uma orao como esta: Enquanto falava, a mulherzinha deitava
sbre o marechal os grande olhos que despediam chispas. Floriano
parecia incomodado com aqule chamejar; era como se temesse
derreter-se ao calor daquele olhar. . . (Lima Barreto, Triste Fim
de Policarpo Quaresma) revela de imediato, apesar do contexto
histrico, a inteno ficcional. O autor parece convidar o leitor a
permanecer na camada imaginria que se sobrepe e encobre a
realidade histrica.
3) O problema epistemolgico (a personagem). porm a
personagem que com mais nitidez torna patente a fico, e atravs
dela a camada imaginria se adensa e se cristaliza. Isto pouco
evidente na poesia lrica, em que no parece haver personagem.
Todavia, expresso ou no, costuma manifestar-se no poema um Eu
lrico que no deve ser confundido com o Eu emprico do autor. Sem
dvida, houve no decurso da histria grandes variaes neste campo.
No se devem aplicar os mesmos padres e conceitos a poemas da
Grcia antiga, a poemas romnticos e a poemas atuais. Parece,
contudo, que se pode negar em geral a opinio de que nas oraes
de poemas lricos se trata de juzos, de enunciados existenciais
acrca de determinada realidade psquica do poeta ou qualquer
realidade exterior a le. precisamente no poema que so
mobilizadas tdas as virtualidades expressivas da lngua e toda a
energia imaginativa.
No caso de versos como stes:
A chuva de outono molha
O pso da minha altura
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E tal rosa que desfolha
Tenho ptalas na figura 6
seria absurdo falar de juzos, mesmo subjetivos, referentes,
passo a passo, a estados psquicos reais da poetisa 7. perfeitamente
possvel que haja referncia indireta a vivncias reais; estas, porm,
foram transfiguradas pela energia da imaginao e da linguagem
potica que visam a uma expresso mais verdadeira, mais
definitiva e mais absoluta do que outros textos.
O poema no uma foto e nem sequer um retrato artstico de
estados psquicos; exprime uma viso estilizada, altamente simblica,
de certas experincias.
Mesmo em versos aparentemente confessionais como stes de Safo:
A lua se ps e as Pliades, pelo meio
anda a noite, esvai-se a juventude, mas eu estou deitada, szinha
no se deve confundir o Eu lrico dentro do poema com o Eu emprico
fora dle. ste ltimo se desdobra e objetiva, atravs das categorias
estticas, constituindo-se na personagem universal da mulher ansiosa
por amor. At um poeta como Goethe que, na sua fase romntica,
considerava a poesia a mais poderosa expresso da verdade, como
revelao da intimidade, chegou, j aos vinte anos, concluso de
Fernando Pessoa (o poeta finge mesmo a dor que deveras sente),
porque o poema , antes de tudo, Gestalt, forma viva, beleza.
Variando concepes de Plato, declara que a beleza no luz e no
noite; cre-
6 Lupe Cotrlm Garaude, Raiz Comum.
7.Tal , contudo, a opinio de Kaethe Hamburger emDie Logik der Dichrung (A
Lgica da Fico); segundo a autora, os enunciados de um poema lrico seriam
juzos existenciais, juzos subjetivos, mas juzos.
psculo; resultado da verdade e no-verdade. Coisa
intermediria. So quase os trmos com que Sartre descreve a
fico.
Contudo, a personagem do poema lrico no se define nitidamente.
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Antes de tudo pelo fato de o Eu lrico manifestar-se apenas no
monlogo, fundido com o mundo (A chuva de outono molha / O pso
da minha altura), de modo que no adquire contornos marcantes;
depois, porque exprime em geral apenas estados enquanto a
personagem se define com nitidez smente na distenso temporal do
evento ou da ao.
Como indicadora mais manifesta da fico por isso bem mais
marcante a funo da personagem na literatura narrativa (pica). H
numerosos romances que se iniciam com a descrio de um ambiente
ou paisagem. Como tal poderiam possivelmente constar de uma
carta, um dirio, uma obra histrica. geralmente com o surgir de
um ser humano que se declara o carter fictcio (ou no-fictcio) do
texto, por resultar da a totalidade de uma situao concreta em
que o acrscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaborao
imaginria. No nosso exemplo de Mrio seria possvel que as oraes
Mrio estava de pijama. ele batia uma carta na mquina de
escrever constassem de um relato policial que prosseguisse assim:
. . . quando entrou o ladro. . . Se o texto, porm, prosseguir assim:
Sem dvida ainda iria alcan-la. Afinal, Lcia decerto no podia
partir depois-de-amanh, sabemos que se trata de fico. Notamos,
talvez sem reconhecer as causas, que Mrio no urna pessoa e sim
uma personagem. Certas palavras sem importncia aparente nos
colocam dentro da conscincia de Mrio, fazem-nos participar de sua
intimidade: sem dvida, afinal, decerto, depois-de-amanh.
Tais palavras indicam que se verificou uma espcie de identificao
com Mrio, de modo que o leitor levado, sutilmente, a viver a
experincia dle. Mais evidentes seriam verbos definidores de
processos psquicos, como pensava, duvidava, receava, os
quais, quando referidos experincia temporalmente determinada de
uma pessoa, no podem, por razes epistemolgicas, surgir num
escrito histrico ou psicolgico. Numa obra histrica pode constar que
Napoleo acreditava poder conquistar a Rssia; mas no que,
naquele momento, cogitava desta possibilidade. S com o surgir da
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personagem tornam-se possveis oraes categorialmente diversas
de qualquer enunciado em situaes reais ou em textos no-fictcios:
Bem cedo ela comeava a enfeitar a rvore. Amanh era Natal
(Alice Berend, Os Noivos de Babette Bomberling); ... and of
course he was coming to her party to-night (Virgnia Woolf, Mrs.
Dallowcry); A revolta veio acabar da a dias (Lima Barreto, Triste
Fim de Policarpo Quaresma); Da a pouco vieram chegando da
direita muitas caleas. . . (Machado de Assis, Quincas Barba).
altamente improvvel que um historiador recorra jamais a tais
oraes. Advrbios de tempo (e em menor grau de lugar) como
amanh, hoje, ontem, da a pouco, da a dias, aqui, ali,
tm sentido smente a partir do ponto zero do sistema de
coordenadas espcio-temporal de quem est falando ou pensando. Se
surgem num escrito, so possveis smente a partir do narrador
fictcio, ou do foco narrativo colocado dentro da personagem, ou
onisciente, ou de algum modo identificado com ela. O amanh do
primeiro exemplo citado pe o foco dentro da personagem, cujo
pensamento expresso atravs do estilo indireto livre:
no caso, os pensamentos so reproduzidos a partir da perspectiva da
prpria personagem, mas a manuteno da terceira pessoa e do
imperfeito finge o relato impessoal do narrador. Seriam possveis
outros recursos:
Ela pensava: Amanh serNatal; Ela pensava que no dia seguinte
seria Natal; mas nenhum como o indicado (alis j usado na
literatura latina, na literatura francesa desde o sculo XII e com bem
mais freqncia no romance do sculo XIX, desde Jane Austen e
Flaubert) revela o carter categorialmente singular do discurso
fictcio. Em nenhuma situao real o amanh poderia ser ligado ao
era; e o historiador teria de dizer no dia seguinte j que no pode
identificar-se com a perspectiva de uma pessoa, sob pena de
transform-la em personagem.
Embora tais formas no surjam nem na poesia lrica, nem na
dramaturgia, e no necessriamente na literatura narrativa, o
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fenmeno como tal extremamente revelador para todos os tipos de
fico, j que a anlise dste sintoma da fico indica, ao que
parece, estruturas inerentes a todos os textos fictcios, mesmo nos
casos em que o sintoma no se manifesta. O sintoma lingstico
evidentemente s pode surgir no gnero pico (narrativo), porque
nle que o narrador em geral finge distinguir-se das personagens, ao
passo que no gnero lrico e dramtico, ou est identificado com o Eu
do monlogo ou, aparentemente, ausente do mundo dramtico das
personagens. Assim, smente no. gnero narrativo podem surgir
formas de discurso ambguas, projetadas ao mesmo tempo de duas
perspectivas: a da personagem e a do narrador fictcio. Mas a
estrutura bsica do discurso fictcio parece ser a mesma tambm nos
outros gneros.
O sintoma lingstico, bvio nos exemplos apresentados, revela,
precisamente atravs da personagem, que o narrar pico
estruturalmente de outra ordem que o enunciar do historiador, do
correspondente de um jornal ou de outros autores de enunciados
reais. A diferena fundamental que o historiador se situa, como
enunciador real das oraes, no ponto zero do sistema de
coordenadas espcio-temporal, por exemplo, no ano de 1963 (e na
cidade de So Paulo), projetando a partir dste ponto zero, atravs do
pretrito plenamente real, o mundo do passado histrico igualmente
real de que le, naturalmente, no faz parte. Ao sujeito real
(emprico) dos enunciados corresponde a realidade dos objetos
projetados pelos enunciados (e s neste contexto possvel falar de
mentira, fraude, rro etc.). Na fico narrativa desaparece o
enunciador real. Constitui-se um narrador fictcio que passa a fazer
parte do mundo narrado, identificando-se por vzes (ou sempre) com
uma ou outra das personagens, ou tornando-se onisciente etc. Nota-
se tambm que o pretrito perde a sua funo real (histrica) de
pretrito, j que o leitor, junto com o narrador fictcio, presencia os
eventos. O pretrito mantido com a funo do era uma vez, mero
substrato fictcio da narrao, o qual, contudo, preserva a sua funo
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de posio existencial, de grande vigor individualizador, e continua
fingindo a distncia pica de quem narra coisas h muito
acontecidas. A modificao do discurso indica que na fico (e isso se
refere tambm poesia e dramaturgia) no h um narrador real em
face de um campo de sres autnomos. ste campo existe smente
graas ao ato narrativo (ou ao enunciar lrico, dramtico). O narrador
fictcio no sujeito real de oraes, como o historiador ou o qumico;
desdobra-se imaginriamente e torna-se manipulador da funo
narrativa (dramtica, lrica), como o pintor manipula o pincel e a cr;
no narra de pessoas, eventos ou estados; narra pessoas
(personagens), eventos e estados. E isso verdade mesmo no caso
de um romance histrico 8. As pessoas (histricas), ao se tornarem
ponto zero de orientao, ou ao serem focalizadas pelo narrador
onisciente, passam a ser personagens; deixam de ser objetos e
transformam-se em sujeitos, sres que sabem dizer eu.
8. Kaethe Hamburger, na obra citada, estuda
agudamente os vrios problemas envolvidos.
A rainha se lembrava neste momento das palavras que
dissera ao rei tal orao no pode ocorrer no, escrito de um
historiador, j que ste, nos seus juzos, smente pode referirr-se a
objetos, apreendendo-os exclusivamente de fora, mesmo nos casos
da mais sutil compreenso psicolgica, baseada em documentos e
inferncias. Smente o criador de Napoleo, isto , o romancista
que o narra, em vez de narrar dle, lhe conhece a intimidade de
dentro.
A personagem nos vrios gneros literrios e no
espetculo teatral e cinematogrfico.
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Em trmos lgicos e ontolgicos, a fico define-se
nitidamente como tal, independentemente das personagens. Todavia,
o critrio revelador mais bvio o epistemolgico, atravs da
personagem, merc da qual se patenteia s vzes mesmo por meio
de um discurso especificamente fictcio a estrutura peculiar da
literatura imaginria. Razes mais intimamente poetolgicas
mostram que a personagem realmente constitui a fico.
A descrio de uma paisagem, de um animal ou de objetos quaisquer
pode resultar, talvez, em excelente prosa de arte. Mas esta
excelncia resulta em fico smente quando a paisagem ou o animal
(como no poema A pantera, de Rilke) se animam e se
humanizam atravs da imaginao pessoal. No caso da poesia lrica,
atravs da fuso do Eu, do foco lrico, com o objeto. No fundo, isso
que Lessing pretende dizer no seu Laocoonte ao criticar um poema
descritivo por lhe faltar o que chama segundo a terminologia do
sculo XVIII a iluso (Taeuschung), ou seja, a impresso da
presena real do objeto. Tal iluso smente possvel pela
colocao do leitor dentro do mundo imaginrio, merc do foco
personal que deve animar o poema e que lhe d o carter fictcio.
No poema isto conseguido, antes de tudo, atravs da fra
expressiva da linguagem, que transforma a mera descrio em
vivncia duma personagem que erradamente se costuma confundir
com o autor emprico. Mas, enquanto a poesia, na sua forma mais
pura, se atm vivncia de um estado, o gnero narrativo (e
dramtico) transforma o estado em processo, em distenso temporal.
Smente assim se define a personagem com nitidez, na durao de
estados sucessivos. A narrao mesmo a no-fictcia , para no
se tornar em mera descrio ou em relato, exige, portanto, que no
haja ausncias demasiado prolongadas do elemento humano (ste,
naturalmente, pode ser substitudo por outros sres, quando
antropomorfizados) porque o homem o nico ente que no se situa
smente no tempo, mas que essencialmente tempo 9.
Se Lessing recomenda, no ensaio acima citado, a dissoluo da
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descrio em narrao porque a palavra, recurso sucessivo, no pode
apreender adequad amente a simultaneidade de um objeto,
ambiente ou paisagem (que a nossa viso apreende de um s
relance), o que no fundo exige a presena de personagens que
atuam. Homero, em vez de descrever o traje de Agamenon, narra
como o rei se veste, e em vez de descrever o seu cetro, narra-lhe a
histria desde o momento em que Vulcano o fz. Assim, o leitor
participa dos eventos em vez de se perder numa descrio fria que
nunca lhe dar a imagem da coisa.
Antes de abordar, mesmo marginalmente, a fico dramtica,
convm ressaltar que verbos como dizer, responder etc.,
desempenham na fico em geral funo semelhante aos que
revelam processos psquicos (recear, pensar, duvidar),
particularmente quando
9. Pode-se escrever e j se escreveram contos sbre baratas. Mas h
de se tratar, ao menos, de uma baratinha. O diminutivo afetuoso desde logo
humaniza o bicho. O mais terrvel na Metamorfose de Kafka a lentadesumanizao do inseto. As fbulas e os desenhos cinematogrficos baseiam-se
nesta humanizao. O homem, afinal, s pelo homem se interessa e s com ele
pode identificar-se realmente.
acompanham uma fala em voz direta, referida a momentos
temporais determinados (determinados no tempo irreal da fico).
Tais verbos indicam em geral a presena do foco narrativo no campofictcio. Ademais, personagens, ao falarem, revelam-se de um modo
mais completo do que as pessoas reais, mesmo quando mentem ou
procuram disfarar a sua opinio verdadeira. O prprio disfarce
costuma patentear o cunho de disfarce. Esta franqueza quase
total da fala e essa transparncia do prprio disfarce (pense-se no
aparte teatral) so ndices evidentes da oniscincia ficcional.
A funo narrativa, que no texto dramtico se mantm
humildemente nas rubricas ( nelas que se localiza o foco), extingue-
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se totalmente no palco, o qual, com os atres e cenrios, intervm
para assumi-la. Desaparece o sujeito fictcio dos enunciados pelo
menos na aparncia , visto as prprias personagens se
manifestarem diretamente atravs do dilogo, de modo que mesmo o
mais ocasional disse le, respondeu ela do narrador se torna
suprfluo. Agora, porm, estamos no domnio de uma outra arte. No
so mais as palavras que constituem as personagens e seu ambiente.
So as personagens (e o mundo fictcioda cena) que absorveram
as palavras do texto e passa a constitu-las, tornando-se a fonte delas
exatamente como ocorre na realidade. Contudo, o mundo mediado
no palco pelos atres e cenrios de objectualidade puramente
intencionais. Estas no tm referncia exata a qualquer realidade,
determinada e adquirem tamanha densidade que encobrem por
inteiro a realidade histrica a que, possivelmente, dizem respeito. A
fico ou mimesis reveste-se de tal fra que se substi tu ou
superpe realidade. talvez devido velha teoria da iluso da
realidade supostamente criada pela cena, devido, portanto, ao
altssimo vigor da fico cnica, que no se atribui ao teatro o
qualificativo de fico.
Contudo, o dilogo tem na dramaturgia a mesma funo do
amanh era Natal.Compe-se, para o pblico, de quase-juzos,
embora os atres se comportem como se se tratasse de juzos, j que
as personagens levam os enunciados a srio. Embora seja
apresentado ao pblico em forma semelhante s condies reais, o
dilogo concebido de dentro das personagens, tornando-astransparentes em alto grau. verdade que, no teatro moderno, esta
conveno da franqueza dialgica ficou abalada ao ponto de se tornar
temtica (Tchecov, Pirandello, Th.Wilder, Ionesco, Beckett etc.).
Temos aqui uma das razes para a mobilizao de recursos picos,
narrativos. Quando Brecht pede ao ator quenose identifique com a
personagem, para poder critic-la, pe um foco narrativo fora dela,
representado pelo ator que assume o papel de narrador fictcio. Issoindica claramente que a identificao do ator com a personagem
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significa que o foco se encontra dentro dela: a aparente ausncia do
narrador fictcio, no palco clssico, explica-se pelo simples fato de que
ele se solidarizou ou identificou totalmente com uma ou vrias
personagens, de tal modo que j no pode ser discernido como foco
distinto. por isso tambm que, o palco dssico depende
inteiramente do ator-personagem, porque no pode haver foco fora
dle. O prprio cenrio permanece papelo pintado at surgir o foco
fictcio da personagem que, de imediato, projeta em trno de si o
espao e tempo irreais e transforma, como por um golpe de magia, o
papelo em paisagem, templo ou salo.
No que se refere ao cinema, deve ser concebido como de carter
pico-dramtico; ao que parece, mais pico do que dramtico.
verdade que o mundo das objectualidades puramente intencionais se
apresenta neste caso, semelhana do teatro, atravs de imagens,
como espetculo percebido (espetculo visto e ouvido; na verdade
quase-visto e quase-ouvido; pois o mundo imaginrio no
exatamente objeto de percepo). Mas a cmara, atravs de seu
movimento, exerce no cinema uma funo nitidamente narrativa,
inexistente no teatro. Focaliza, comenta, recorta, aproxima, expe,
descreve. O close up, o travelling, o panoranomizar so recursos
tipicamente narrativos.
Em tdas as artes literrias e nas que exprimem, narram ou
representam um estado ou estria, a personagem realmente
constitui a fico. Contudo, no teatro a personagem no s constitui
a fico mas funda, nticamente, o prprio espetculo (atravs do
ator). que o teatro integralmente fico, ao passo que o cinema e
a literatura podem servir, atravs das imagens e palavras, a outros
fins (documento, cincia, jornal). Isso possvel porque no cinema e
na literatura so as imagens e as palavras que fundam as
objectualidades puramente intencionais, no as personagens.
precisamente por isso que no prprio cinema e literatura ficcionais as
personagens, embora realmente constituam a fico, e a evidenciem
de forma marcante, podem ser dispensadas por certo tempo, o que
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no possvel no teatro. O palco no pode permanecer vazio.
stes momentos realam o cunho narrativo do cinema. A imagem
(como a palavra) tem a possibili dad de descrever e animar
ambientes, paisagens, objetos. Estes sem personagem podem
mesmo representar fatres de grande importncia. A fita e o romance
podem fazer viver uma cidade como tal. Ademais, no teatro uma s
personagem presente no palco no pode manter-se calada; tem de
proferir um monlogo.
Uma personagem muda no pode permanecer szinha no palco. J no
cinema ou romance, a personagem pode permanecer calada durante
bastante tempo, porque as palavras ou imagens do narrador ou da
cmara narradora se encarregam de comunicar-nos os seus
pensamentos, ou, simplesmente, os seus afazeres, o seu passeio
solitrio etc. o homem centro do universo. O uso de recursos picos
o cro, o palco simultneo etc., so recursos picos indica que o
homem no se concebe em posio to exclusiva.
A pessoa e a personagem.
A diferena profunda entre a realidade e as objectualidades
puramente intencionais imaginrias ou no, de um escrito, quadro,foto, apresentao teatral etc. reside no fato de que as ltimas
nunca alcanam a determinao completa da primeira. As pessoas
reais, assim como todos os objetos reais, so totalmente
determinados apresentando-se como unidades concretas, integradas
de uma infinidade de predicados, dos quais smente alguns podem
ser colhidos e retirados por meio de operaes cognoscitivas
especiais. Tais operaes so sempre finitas, no podendo por issonunca esgotar a multiplicidade infinita das determinaes do ser real,
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individual, que inefvel. Isso se refere naturalmente em particular
a sres humanos, sres psicofsicos, sres espirituais, que se
desenvolvem e atuam. A nossa viso da realidade em geral, e em
particular dos sres humanos individuais, extremamente
fragmentria e limitada.
De certa forma, as oraes de um texto projetam um mundo bem
mais fragmentrio do que a nossa viso j fragmentria da realidade.
Uma expresso nominal como mesa projeta o objeto na sua
unidade concreta, mas isso apenas formaliter, como esquema que
contm apenas potencialmente uma infinidade de determinaes.
Atravs das funes significativas da orao posso atribuir (ou
retirar) a essa unidade uma ou outra determinao (a mesa azul,
alta, redonda, bem lustrada); mas por mais que a descreva ou lance
mo de aspectos especialmente preparados, capazes de suscitar o
preenchimento imaginrio do leitor (a mesa era um daqueles mveis
tradicionais em trno do qual, antes do surgir da televiso, a famflia
costumava reunir-se para o jantar), as objectualidades puramente
intencionais constitudas por oraes sempre apresentaro vastas
regies indeterminadas, porque o nmero das oraes finito. Assim
psmiagemde um romance (e ainda mais de um poema ou de uma
pea teatral) eum configurao esquemtica, .tanto no sentido fsico
como psquico, emboraformaliterseja projetada como um indivduo
real, totalmente determinado.
ste fato das zonas indeterminadas do texto possibilita at certo
ponto a vida da obra literria, a variedade das concretizaes,
assim como a funo do diretor de teatro, chamado a preencher as
mltiplas indeterminaes de um texto dramtico. Isso, porm, se
deve variedade dos leitores, atravs dos tempos, no variabilidade
da obra, cujas personagens no rnutabilidade e a infinitude das de de
seres humanos reais. As concretizaes podem variar, mas a obra
como tal no muda.
Comparada ao texto, a personagem cnica tem a grande vantagem
de mostrar os aspectos esquematizados pelas oraes em plena
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concreo e, nas fases projetadas pelo discurso literrio descontnuo,
em plena continuidade. Isso comunica representao a sua fra de
presena existencial. A existncia se d smente percepo (o
fato de que o mundo imaginrio tambm neste caso no
prpriamente percebido quase negligencivel). Isso naturalmente
no quer dizer que a representao no tenha zonas mdeterminadas
caractersticas de tdas as objectualidades puramente intencionais.
Os atres, stes sim, so reais e totalmente determinados, mas no
os sres imaginrios de que apresentam apenas alguns aspectos
visuais e auditivos e, atravs dles, aspectos psquicos e espirituais,
O fato que a pea e sua representao mostram em geral muito
menos aspectos das personagens do que os romances, mas stes
poucos aspectos aparecem de modo sensvel e contnuo, dando s
personagens teatrais um poder extraordinrio. ste poder no
diminudo pelo fato de no teatro clssico (por exemplo, Racine) as
personagens terem o carter quase de silhuetas, porque se
confrontam com poucas personagens, aparecem em poucas situaes
e se esgotam quase totalmente nos aspectos proporcionados pela
ao especfica da pea, de modo que seria difcil imagin-las fora do
contexto desta ao peculiar. J nas peas de cunho mais aberto
pico pense-se em diversas obras de Shakespeare as figuras
adquirem maior plasticidade, podendo ser imaginadas fora da
pea. Tais diferenas, porm, no implicam um juzo de valor. Trata-
se de outros estilos.
O curioso que o leitor ou espectador no nota as zonas
indeterminadas (que tambm no filme so mltiplas). Antes de tudo
porque se atm ao que positivamente dado e que, precisamente
por isso, encobre as zonas indeterminadas; depois, porque tende a
atualizar certos esquemas preparados; finalmente, porque costuma
ultrapassar o que dado no texto, embora geralmente guiado por
le.
De qualquer modo, o que resulta que precisamente a limitao da
obra ficcional a sua maior conquista. Precisamente porque o
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nmero das oraes necessriamente limitado (enquanto as zonas
indeterminadas passam quase despercebidas), as personagens
adquirem um cunho definido e definitivo que a observao das
pessoas reais, e mesmo o convvio com elas, dificilmente nos pode
proporcionar a tal ponto. Precisamente porque se trata de oraes e
no de realidades, o autor pode realar aspectos essenciais pela
seleo dos aspectos que apresenta, dando s personagens um
carter mais ntido do que a observao da realidade costuma a
sugerir levando-as, ademais, atravs de situaes mais decisivas e
significativas do que costuma ocorrer na vida. Precisamente pela
limitao das oraes, as personagens tm maior coerncia do que as
pessoas reais (e mesmo quando incoerentes mostram pelo menos
nisso coerncia); maior exemplaridade (mesmo quando banais;
pense-se na banalidade exemplar de certas personagens de Tchecov
ou Ionesco); maior significao; e, paradoxalmente, tambm maior
riqueza no por serem mais ricas do que as pessoas reais, e sim
em virtude da concentrao, seleo, densidade e estilizao do
contexto imaginrio, que rene
os fios dispersos e esfarrapados da realidade num padro firme e
consistente. Antes de tudo, porm, a fico nico lugar em
trmos epistemolgicos em que os sres humanos se tornam
transparentes nossa viso, por se tratar de seres puramente
intencionais a sres autnomos; de sres totalmente projetados por
oraes. E isso a tal ponto que os grandes autores, levando a fico
fictciamente s suas ltimas conseqncias, refazem o mistrio do
ser humano, atravs da apresentao de aspectos que produzem
certa opalizao e iridescncia, e reconstituem, em certa medida, a
opacidade da pessoa real. precisamente o modo pelo qai p autor
dirige o nosso olhar, atravs de aspectos selecionados de certas
situaes de aparncia fsica e do comportamento sintomticos de
certos estados ou processos psquicos ou diretamente atravs de
aspectos da intimidade das personagens tudo isso de tal modo que
tambm as zonas indeterminadas comeam a funcionar
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precisamente atravs de todos sses e outros recursos que o autor
torna a personagem at certo ponto de nvo inesgotvel e
insondvel.
A valorizao esttica
A exposio do problema da fico foi numerosas vzes
ultrapassada por descries que de fato j introduziam certas
valorizaes estticas. Quando, por exemplo, foi afirmado que os
grandes autores tendem a refazer o mistrio humano, o campo dalgica ficcional, assim como os aspectos puramente epistemolgicos
e ontolgicos, foram abandonados em favor de consideraes
estticas; a mesma falta de rigor se verificou na abordagem da
vibrao verbal da poesia do problema da verdade ficcional (que
no fundo de ordem esttica) e da questo dos aspectos
esquemticos especialmente preparados para suscitar
preenchimentos determinados do leitor. A preparao de taisaspectos depende em alto grau da escolha da palavra justa,
insubstituvel da sonoridade especfica dos fonemas, das conotaes
das palavras, da carga de suas zonas semnticas marginais, do jgo
metafrico, do estilo ou seja, da organizao dos contextos de
unidades significativas e de muitos outros elementos de carter
esttico. stes momentos inerentes s camsdsas exteriores da obra
literria esto, naturalmente, relacionados com a necessidade deconcretizar e enriquee a camada das objectualidades puramente
intencionais, e de dar a ste piano imaginrio certa transparncia ou
iridescncia em direo a significados mais profundos, em que se
revela o sentido, a idia da obra. No pocesso da criao stes
planos mais profundos certamente condicionaram, de modo
consciente ou inconsciente, o rigor seletivo aplicado s camadas mais
externas (embora num poema todo o processo criavo possa iniciar-
se a partir de uma sequncia rtmica de palavras).
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A dificuldade de abordar o fenmeno da fico sem recorrer a
valorizaes estticas indica que ste problema e o do nvel esttico
no mantm relaes de indiferena. Sem dvida, h fico de baixo
nvel esttico, de grande pobreza imaginativa (clichs), com
personagens sem vida e situaes sem significado profundo, tudo isso
relacionado com a inexpressividade completa dos contextos verbais
(que por vzes, contudo, so afetados e pretensiosos, sem economia
e sem funo no todo, sem que sua exagerada riqueza corresponda
qualquer coisa na camada imaginria e nos planos mais profundos).
Todavia a criao de um vigoroso mundo imaginrio, de personagens
vivas situaes verdadeiras, j em si de alto valor esttico, exige
em geral a mobilizao de todos os recursos da lngua, assim como
de muito outros elementos da composio literria, tanto no plano
horizontal da organiza das partes sucessivas, como no vertical das
camadas; enfim, de todos os rneios tendem a constituir a obra-de-
arte literria. De outro lado, a mobilizao plena dsses recursos dar
obra, mesmo a despeito da inteno possivelmente cientfica ou
filosfica, um carter seno imaginrio, ao menos imaginativo, que
a aproximar at certo ponto da fico. Exemplos caractersticos
seriam os dilogos de Plato (que, em parte, podem ser lidos como
comdias), certos escritos deKierkegaard, Pascal, Nietzsche, a obra
de Schopenhauer (cuja vontade metafsica se torna quase
personagem de uma epopia) etc. Deve-se admitir, na delimitao do
que seja literatura no sentido restrito, amplas zonas de transioem
que se situariam obras de grande poder e preciso verbais, na
medida em que se ligam agudeza da observao, perspiccia
psicolgica e riqueza de idias.
Na descrio da estrutura da obra literria em sentido lato (pp. 2-3)
verificou-se que, em essncia, se trata da associao de camadas
mais sensveis (das quais a nica realmente foi posta de lado) e de
planos mais profundos projetados por aquelas. Esta estrutura
fundamentalmente a de tdas as objetivaes espirituais (todos os
produtos humanos) e, em especial, de tdas as obras de arte. Em
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tdas as objetivaes espirituais associam-se a uma camada
material, sensvel, real, uma ou vrias camadas irreais, no
apreendidas diretamente pelos sentidos, mas mediadas pelos
exteriores.
Entretanto, graas ao material em jgo no caso de uma sinfonia, de
um quadro ou de uma apresentao teatral, evidencia-se a sua
inteno esttica, mesmo que no se tenha cristalizado em relevante
obra de arte. No. caso da literatura, bem ao contrrio, o material em
jgo a lngua tanto pode servir para fins tericos ou prticos
como para fins estticos. a isso que Hegel se refere quando chama
a literatura (as belas letras) aquela arte peculiar em que a arte...
dissolver-se..., passando a ser ponto de transio para a prosa do
pensamento cientfico. Principalmente neste campo, portanto, surge
o problema de diferenciar entre prosa comum e arte.
A diferena entre um documento literrio qualquer e a obra-de-arte
literria reside, antes de tudo, no valor diverso da camada quase-
sensvel das palavras (sensvel quando o texto lido a viva voz). ste
plano quase-sensvel das palavras e de seus contextos maiores tem
na literatura em sentido lato funo puramente instrumental: a de
projetar, como vimos, objectualidades puramente intencionais que,
por sua vez, sem serem notadas como tais, se referem aos objetos
visados. O que importa so os significados que se identificam com os
objetos visados, no os significantes. stes ltimos ai palavras
se omitem por completo (da mesma Forma que as objectualidades
puramente intencionais); podem ser substitudos por, quaisquer
outros que constituam os mesmos significados. A relao entre a
camada quase-sensvel e a camada espiritual , portanto,
inteiramente convencional. A inteno do leitor passa diretamente ao
sentido e aos objetos visados.
Na obra-de-arte literria, esta relao deixa de ser convencional,
apresenta necessidade e grande firmeza e consistncia. Em casos
extremos (particularmente na poesia), a mais ligeira modificao da
camada exterior (e na poesia concretista, mesmo da distribuio dos
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sinais tipogrficos) destri o sentido de tda a obra, devido ao valor
expressivo das palavras, agora usadas como se fssem relaes de
cres ou sons na pintura ou msica. A camada verbal adquire, pois,
valor prprio e passa a fazer parte integral da obra. Isso vale
particularmente para contextos maiores, que passam a constituir o
ritmo, o estilo, o jgo das repeties e associaes e que se tornam
momentos inseparveis do todo, de modo que a modificao da
estrutura das oraes e da maneira como se organizam os
significados afeta profundamente o sentido total da obra (imagine-se
uma edio de Proust com as oraes simplificadas!) ao passo que
num texto cientfico ou filosfico as mesmas teses podem ser
mediadas por contexto diversos de oraes (isso no se refere a
filsofos como Heidegger; mas neste caso a prosa comum do
pensamento cientfico abandonada em favor de especulaes
teosficas que requerem o uso da arquipalavra admica). isso
que Lessing tem em mente
quando chama o poema um discurso totalmente sensvel ou
quando Hegel, num sentido mais geral, define a beleza como o
aparecer (luzir) sensvel da idia.
O significado disso que os planos de fundo (os mais
espirituais) se ligam na obra de arte (literria ou no)
de um modo indissolvel ao seu modo de aparecer, concreto,
individual, singular. a isso que Croce chama de intuio.
O sentimento do valor esttico, o prazer especfico em que se anuncia
a presena do valor esttico, refere-se precisamente totalidadeda
obra literria ou, mais de perto, ao modo de aparecer sensvel
(quase-sensvel) dos objetos mediados. As camadas exteriores
impem a sua presena em virtude da organizao e vibrao
peculiares de seus elementos. O raio de inteno, ao atravessar estas
camadas exteriores, conota-as, assimila-as no mesmo ato de
apreenso das camadas mais profundas. Isso, em parte, se verifica
tambm em virtude de uma atitude diversa em face de escritos de
valor esttico.
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Na vida cotidiana ou na leitura de textos no-estticos, a nossa
inteno geralmente atravessa a superfcie sensvel devido
imposio de valores prticos, vitais, tericos etc. O raio da inteno,
sem deter-se nas exterioridades sensveis, dirige-se diretamente ao
que interessa, por exemplo, s atitudes e palavras, amabilidade,
clera, disposio geral do interlocutor (a no ser que se trate de
pessoa de grande encanto fsico, dificilmente nos lembramos de seus
traos e jgo fisionmico) ou topografia de um bosque (quando o
observador um engenheiro de estradas de ferro) ou ao valor til das
rvores (quando se trata de um negociante de madeiras) ou teoria
dos genes (exposta num tratado de gentica). A experincia esttica,
bem ao contrrio, desinteressada, isto , o objeto j no meio
para outros fins, nada nos interessa seno o prprio objeto como tal
que, em certa medida, se emancipa do tecido de relaes vitais que
costumam solicitar a nossa vontade. o fenmeno da moldura que,
nas vrias artes, de modo diverso, isola o objeto esttico, como rea
ldica, de situaes reais (s quais, contudo, pode referir-se
indiretamente). Esta atitude desinteressada j condicionou a
elaborao do objeto e a configurao altamente seletiva das
camadas exteriores. A experincia do apreciador adequado,
atendendo s virtualidades especficas do objeto, se caracterizar por
uma espcie de repouso na totalidade dle. le no se ater apenas
idia expressa, nem smente configurao sensvel em que ela
aparece, mas ao aparecer como tal, ao modo como aparece; ao
todo, portanto. No primeiro caso, um atesta seria incapaz de apreciar
Dante ou um antimarxista, Brecht. No segundo caso, tratar-se-
provvelmente de um crtico que s examina fenmenos tcnicos,
sem referi-los ao todo. Nem aqules, nem ste apreendero o objeto
com aquela peculiar emoo valorizadora do prazer esttico, que se
liga a atos de apreenso referidos ao objeto total.
ste tipo de apreciao, facilitado pelo isolamento em face de
situaes vitais, permite uma experincia intensa, quase arcaica, das
objectualidades mediadas (particularmente quando se trata de
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objectualidades imaginrias), que se apresentam com grande
concreo, graas aos aspectos especialmente preparados e forte
co-apreenso dos momentos mais sensveis. A apreenso do mundo
fictcio acompanhada de intensas tonalidades emocionais, tudo se
carrega de mood, atmosfera, disposies anmicas. Em obras de
inteno filosfica ou cientfica, ste cunho esttico pode representar
fator de perturbao, j que desvia o raio de inteno da passagem
reta aos objetos visados. Contudo, mesmo na obra fictcia, ste
retrocesso a tipor mais puros e intensos de percepo e
emocionalidade no realmente, uma volta a fases mais primitivas
no provoca tiros contra o palco ou a tela. As prprias lgrimas tm,
por assim dizer, menos teor salino. Ao forte envolvimento emocional
liga-se, no apreciador adequado, a conscincia do Contexto ldico, da
moldura. Mantm-se intata a distncia contemplativa. O prazer
esttico no modo de aparecer do mundo mediado integra e suspende
em si a participao nas dores e mgoas do heri. ste prazer
possvel smente porque o apreciador sabe encontrar-se em face
de quase-juzos, em face de objectualidades puramente intencionais,
sem referncia direta a objetos tambm intencionais.
A obra-de-arte literria ficcional
Os momentos descritos so de importncia na valorizao
esttica da obra literria fictcia. Na fico. em geral, tambm na decunho trivial, o raio de inteno se dirige camada imaginria, sem
passar diretamente s realidades empricas possivelmente
representadas. Detm-se, por assim dizer, neste plano de
personagens, situaes ou estados (lricos), fazendo viver o leitor,
imaginriamente, os destinos e aventuras dos heris. Boa parte dos
leitores, porm, pe o mundo imaginrio quase imediatamente
referncia coma realidade exterior obra, j que as objectualidades
puramente intencionais, embora tendam a prender a inteno, so
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tomadas na sua funo mimtica, como reflexo do mundo emprico.
Isto , em muitos casos, perfeitamente legtimo; mas esta apreciao,
quando muito unilateral, tende a deformar e empobrecer a apreenso
da totalidade literria, assim como o pleno prazer esttico no modo
de aparecer do que aparece.
Na medida em que se acentua o valor esttico da obra ficcional o
mundo imaginrio se enriquece e se aprofunda, prendendo o raio de
inteno dentro da obra e tornando-se, por sua vez, transparente a
planos mais profundos, imanentes prpria obra. S agora a obra
manifesta tdas as virtualidades de revelao revelao que no
se deve confundir com qualquer ato cognoscitivo explcito, j que
em plena imediatez concreta que o mediado se revela, na
individualidade quase-sensvel das camadas exteriores e na
singularidade das personagens e situaes. Neste sentido, a
cogitatio pode de certa forma ser contida na apreenso esttica,
mas ela ultrapassada por uma espcie de visio, ou viso intuitiva,
que ao mesmo tempo superior e inferior ao conhecimento cientfico
preciso. Tampouco deve-se comparar o prazer desta revelao ao
prazer do conhecimento. esttico integra e suspende a distncia da
contemplao, o intenso envolvimento emocional e a revelao
profunda; pode manifestar-se mesmo nos casos em que o contedo
desta revelao se ope a tdas as nossas concepes (bem tarde T.
S. Eliot reconheceu isso com referncia a Goethe e Shakespeare,
visceralmente contrrios sua concepo do mundo).
Seria tautolgico dizer que essa riqueza e profundidade da camada
imaginria e dos planos por ela revelados pressupem uma
imaginao que o autor de romances triviais no possui, assim como
capacidades especiais de observao, intuio psicolgica etc. Tudo
isso, porm, adquire relevncia esttica smente na medida em que
o autor consegue projetar ste mundo imaginrio base de oraes,
isto , merc da preciso da palavra, do ritmo e do estilo, dos
aspectos esquemticos especialmente preparados, sobretudo no que
se refere ao comportamento e vida ntima das personagens;
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aspectos stes cujo preparo, por sua vez, se relaciona mntimamente
composio estilstica e camada sonora dos fonemas.
Na medida em que a obra ficcional tambm uma de obra-de-arte,
estas camadas exteriores so co-percebidas com muito mais fra
do que ocorre em geral. Se, na obra cientfica, a inteno atravessa
estas e a camada objectual, sem not-las, para incidir sbre os
objetos exteriores obra (que, como tal, quase no notada, j que
ela apenas meio) e na obra de fico em geral h certo repouso
na camada objectual, na obra-de-arte ficcional h, alm disso, ainda
certo repouso nas camadas exteriores; h como que um
fraccionamento do raio (sem que isso afete a unidade do ato de
apreenso), em virtude do fascnio verbal e estilstico. Falando
metafisicamente, o raio adquire certo effet e, graas a isso, maior
capacidade de penetrao nas camadas mais profundas da obra.
Na cena do sonho do heri deA Morte em Veneza(Thomas Mann),
o acmulo de certos ditongos faz-nos ouvir as flautas e o ulular do
squito dionisaco; as oraes assindticas, as aliteraes, o ritmo
acelerado, os aspectos tteis e olfativos apresentados que
sugerem um mundo pnico e primitivo reforam a impresso do
xtase e da presena embriagadora do Deus estranho, assim como
a sugesto de todo um plano de fundo arcaico, de evocaes mticas,
j antes suscitadas por trechos de prosa que tomam, quase
imperceptivelmente, o compasso dactlico do hexmetro. O enrdo
a camada imaginria trata do amor de um escritor envelhecido por
um formoso rapaz. As camadas exteriores retiram a ste tema algo
do seu aspecto melindroso por cerc-lo de atmosfera grega,
colocando-o, de certo modo, numa constelao mais universal e
numa grande tradio. o estilo, atravs das sugestes arcaicas por
ele mediadas, que nos leva a intuir os planos mais profundos, o
significado das objectualidades puramente intencionais: o perigo de
retrocesso arcaico que ameaa o homem, particularmente o artista
fascinado pela beleza, pelo puro aparecer, independentemente do
que aparece; o perigo, portanto, da existncia esttica. H nisso
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uma parfrase levemente irnica da expulso dos artistas do Estado
platnico ironia que se anuncia na grecizao do estilo, no uso de
palavras homricas (tambm Homero deveria ser expulso do Estado
platnico).
Seria fcil prosseguir na interpretao da novela, atravs da
anlise da organizao polifnica das camadas; todavia, em
determinado ponto a interpretao deve deter-se. A grande obra de
arte inesgotvel em trmos conceituais; stes s podem aproximar-
se dos significados mais profundos. O essencial revela-se, em tda a
sua fra imediata, smente prpria experincia esttica.
O Papel de Personagem
Se reunirmos os vrios momentos expostos, verificaremos que
a grande obra-de-arte literria (ficcional) o lugar em que nos
defrontamos com sres humanos de contornos definidos e definitivos,
em ampla medida transparentes, vivendo situaes exemplares de
um modo exemplar (exemplar tambem no sentido negativo). Como
sres humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores
de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, poltico-social e tomam
determinadas atitudes em face dsses valores. Muitas vzes
debatem-se com a necessidade de decidir-se em face da coliso de
valores, passam por terrveis conflitos e enfrentam situaes-limite
em que se revelam aspectos essenciais da vida humana: aspectos
trgicos, sublimes, demonacos, grotescos ou luminosos. Estes
aspectos profundos, muitas vzes de ordem metafsica,
incomunicveis em tda a sua plenitude atravs do conceito,
revelam-se, como num momento de iluminao, na plena concreo
do ser humano individual. So momentos supremos, sua maneira
perfeitos, que a vida emprica, no seu fluir cinzento e cotidiano,
geralmente no apresenta de um modo to ntido e coerente, nem de
forma to transparente e seletiva que possamos perceber as
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o determinam. O fato de os valores morais representados numa
tragdia serem mais elevados do que os de uma comdia no influi
no valor esttico desta ou daquela. O valor esttico aparece nas
costas (expresso usada por Max Scheler e Nicolai Hartmann) dstes
outros valores, mas o nvel qualitativo dste valor no condicionado
pela elevao dos valores morais ou religiosos em choque, nem pela
interpretao especfica do mundo e da vida. O valor esttico
suspende o peos real dos outros valores (embora os faa aparecer
em tda a sua seriedade e fra); integra-os no reino ldico da fico,
transforma-os em parte da organizao esttica lhes d certo papel
no todo.
A isso corresponde o fenmeno de que o prazer esttico integra no
seu mbito o sofrimento e a risada, o dio e a simpatia, a
repugnncia e a ternura, a aprovao e a desaprovao com que o
apreciador reage ao contemplar e participar dos eventos. Tanto a
nobre Antgone como o terrvel Macbeth sucumbem; as emes com
que participamos de seus destinos so profundamente diversas. Mas
o prazer suscitado pelo valor esttico, pelo modo como aparecem
stes destinos diversos, tal prazer, como que consome estas
emoes divergentes; nutrindo-se delas, ele as assimila; e embora
no renegue a variedade das emoes que contribuem para fund-lo
e que o tingem de tonalidades distintas, o prazer como tal, na sua
qualidade de prazer esttico e na sua intensidade, tende a convergir
em ambos os casos.
Quanto ao valor cognoscitivo que como tal no pode ser
plenamente visado por quase-juzos substitudo pela revelao e
vivncia de determinadas interpretaes profundas da vida humana,
pela contemplao e participao de certas possibilidades humanas.
Todavia, a profundeza e coerncia dessas interpretaes no tm
valor por si, como teriam numa obra filosfica, mas smente na
medida em que so integradas no todo esttico, tomando se viso
e vivncia, enriquecendo o prazer esttico. O extraordinrio que
podemos, de certo modo, participar destas interpretaes por mais
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que na vida real nos sejam contrrias, por mais que as combatamos
na vida real. evidente que h, nesta apreciao esttica, limites. Ao
que esta descrio visa expor o fenmeno esttico como tal na sua
mxima pureza. Contudo, no existe o Homo aestheticus. Mesmo
dentro da moldura da rea ldica no ocorre a suspenso total das
responsabilidades. Normalmente, o homem um ser incapaz de
valorizar apenas estticamente o mundo humano mesmo quando
imaginrio; a literatura no uma esfera segregada. Glorificar a arte,
maneira de Schopenhauer, como quietivo ou entorpecente da
nossa vontade, resulta em desvirtuamento da funo que a arte
exerce na sociedade.
Isso, porm, no exclui, antes pressupe que a grande obra de arte
literria nos restitua uma liberdade o imenso reino do possvel
que a vida real no nos concede. A fico um lugar ontolgico
privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, atravs
de personagens variadas a plenitude da sua condio, e em que se
torna transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se
imaginriamente no outro, vivendo outros papis e destacando-se de
si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condio fundamental de ser
autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si
mesmo e de objetivar a sua prpria situao. A plenitude de
enriquecimento e libertao, que desta forma a grande fico nos
pode proporcionar, torna-se acessvel smente a quem sabeater-se,
antes de tudo, apreciao esttica que, enquanto suspende o pso
real das outras valorizaes, lhes assimila ao mesmo tempo a
essncia e seriedade em todos os matizes. Smente quando o
apreciador se entrega com certa inocncia a tdas as virtualidades da
grande obra de arte, esta por sua vez lhe entregar tda a riqueza
encerrada no seu contexto.
Neste sentido pode-se dizer com Ernst Cassirer que
afastando-se da realidade e elevando-se a um mundo simblico o
homem, ao voltar realidade, lhe apreende melhor a riqueza e
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profundidade. Atravs da arte, disse Goethe, distanciamo-nos e ao
mesmo tempo aproximamo-nos da realidade.
A PERSONAGEM DO ROMANCE
(pag. 51)
Geralmente, da leitura de um romance fica a impresso duma
srie de fatos, organizados em enrdo, e de personagens que vivem
stes fatos. uma impresso prticamente indissolvel: quando
pensamos no enrdo, pensamos simultneamente nas personagens;
quando pensamos nestas, pensamos simultneamente na vida que
vivem, nos problemas em que se enredam, na linha do seu destino
traada conforme uma certa durao temporal, referida a
determinadas condies de ambiente. O enrdo existe atravs das
personagens; as personagens vivem no enrdo. Enrdo e
personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a viso da
vida que decorre dle, os significados e valores que o animam.
Nunca expor idiasa no ser em funo dos temperamentos e dos
caracteres1. Tome-se a palavra idia como sinnimo dos
mencionados valores e significados, e ter-se- uma expresso
sinttica do que foi dito. Portanto, os trs elementos centrais dum
desenvolvimento novelstico (o enrdo e a personagem, que
representam a sua matria; as idias, que representam o seu
significado, e que so no conjunto elaborados pela tcnica), stes
trs elementos s existem intimamente ligados, inseparveis, nos
romances bens realizados. No meio dles, avulta a personagem, que
representa a possibilidade de adeso afetiva e intelectual do leitor,
pelos mecanismos de identificaes, projeo, transferncia etc. A
personagem vive o enrdo e as idias, e os torna vivos. Eis uma
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imagem feliz de
Gide: Tento enrolar os fios variados do enrdo e a complexidade dos
meus pensamentos em tmo destas pequenas bobinas vivas que so
cada uma das minhas personagens (ob. cit., p. 26).
No espanta, portanto, que a personagem parea o que h de mais
vivo no romance; e que a leitura dste dependa bsicamente da
aceitao da verdade da personagem por parte do leitor. Tanto
assim, que ns perdoamos os mais graves defeitos de enrdo e de
idia aos grandes criadores de personagens. Isto nos leva ao rro,
freqentemente repetido em crtica, de pensar que o essencial do
romance a personagem, como se esta pudesse existir separada
das outras ralidades que encarna, que ela vive, que lhe do vida.
Feita esta ressalva, todavia, pode-se dizer que o elemento mais
atuante, mais comunicativo da arte novelstica moderna, como se
configurou nos sculos XVIII, XIX e como do XX; mas que s adquire
pleno significado
1. Gide, Journal des Faux-Monnayeurs, 6.me dition, Gallmard, Pule1927, p. 12.
no contexto, e que, portanto, no fim de contas a construo
estrutural o maior responsvel pela fra e eficcia de um romance.
A personagem um ser fictcio, expresso que soa como paradoxo.
De fato, como pode uma fico ser? Como pode existir o que no
existe? No entanto, a criao literria repousa sbre ste paradoxo, e
o problema da verossimilhana no romance depende desta
possibilidade de um ser fictcio, isto , algo que, sendo uma criao
da fantasia, comunica a impresso da mais ldima verdade
existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes
de mais nada, num certo tipo de relao entre o ser vivo e o ser
fictcio, manifestada atravs da personagem, que a concretizao
dste.
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Verifiquemos, inicialmente, que h afinidades e diferenas essenciais
entre o ser vivo e os entes de fico, e que as diferenas so to
importantes quanto as afinidades para criar o sentimento de verdade,
que a verossimilhana. Tentemos uma investigao sumria sbre
as condies de existncia essencial da personagem, como um tipo
de ser, mesmo fictcio, comeando por descrever do modo mais
emprico possvel a nossa percepo do semelhante.
Quando abordamos o conhecimento direto das pessoas, um dos
dados fundamentais do problema o contraste entre a
continuidade relativa da percepo fsica (em que fundamos o
nosso conhecimento) e a descontinuidadeda percepo, digamos,
espiritual, que parece freqentemente romper a unidade antes
apreendida. No ser uno que a vista ou o contato nos apresenta, a
convivncia espiritual mostra uma variedade de modos-de-ser, de
qualidades por vzes contraditrias.
A primeira idia que nos vem, quando refletimos sbre isso, a de
que tal fato ocorre porque no somos capazes de abranger a
personalidade do outro com a mesma unidade com que somos
capazes de abranger a sua configurao externa. E conclumos,
talvez, que esta diferena devida a uma diferena de natureza dos
prprios objetos da nossa percepo. De fato, pensamos o
primeiro tipo de conhecimento se dirige a um domnio finito, que
coincide com a superfcie do corpo; enquanto o segundo tipo se dirige
a um domnio infinito, pois a sua natureza oculta explorao de
qualquer sentido e no pode, em conseqncia, ser aprendida numa
integridade que essencialmente no possui. Da concluirmos que a
noo a respeito de um ser, elaborada por outro ser, sempre
incompleta, em relao percepo fsica inicial. E que o
conhecimento dos sres fragmentrio.
Esta impresso se acentua quando investigamos os, por assim dizer,
fragmentos de ser, que nos so dados por uma conversa, um ato,
uma seqncia de atos, uma afirmao, uma informao. Cada um
dsses fragmentos, mesmo considerado um todo, uma unidade total,
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no uno, nem contnuo. le permite um conhecimento mais ou
menos adequado ao estabelecimento da nossa conduta, com base
num juzo sbre o outro ser; permite, mesmo, uma noo conjunta e
coerente dste ser; mas essa noo oscilante, aproximativa,
descontnua. Os sres so, por sua natureza, misteriosos,
inesperados. Da a psicologia moderna ter ampliado e investigado
sistemticamente as noes de subconsciente e inconsciente, que
explicariam o que h de inslito nas pessoas que reputamos
conhecer, e no entanto nos surpreendem, como se uma outra pessoa
entrasse nelas, invadindo inesperadamente a sua rea de essncia e
de existncia.
Esta constatao, mesmo feita de maneira no-sistemtica,
fundamental em tda a literatura moderna, onde se desenvolveu
antes das investigaes tcnicas dos psiclogos, e depois se
beneficiou dos resultados destas. claro que a noo do mistrio dos
sres, produzindo as condutas inesperadas, sempre estve presente
na criao de forma mais ou menos consciente, bastando lembrar
o mundo das personagens de Shakespeare. Mas s foi
conscientemente desenvolvida por certos escritores do sculo XIX,
como tentativa de sugerir e desvendar, seja o mistrio psicolgico
dos sres, seja o mistrio metafsico da prpria existncia. A partir de
investigaes metdicas em psicologia, como, por exemplo, as da
psicanlise, essa investigao ganhou um aspecto mais sistemtico e
voluntrio, sem com isso ultrapassar necessriamente as grandes
intuies dos escritores que iniciaram e desenvolveram essa visona
literatura. Escritores como Baudelaire, Nerval, Dostoievski, Emily
Bronte (aos quais se liga por alguns aspectos, isolado na segregao
do seu meio cultural acanhado, o nosso Machado de Assis), que
preparam o caminho para escritores como Proust, Joyce, Kafka,
Pirandello, Gide. Nas obras de uns e outros, a dificuldade em
descobrir a coerncia e a unidade dos sres vem refletida, de
maneira por vzes trgica, sob a forma de incomunicabilidade nas
relaes. ste talvez o nascedouro, em literatura, das noes de
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verdade plural (Pirandello), de absurdo (Kafka), de ato gratuito (Gide),
de sucesso de modos de ser no tempo (Proust), de infinitude do
mundo interior (Joyce). Concorrem para isso, de modo direto ou
indireto, certas concepes filosficas e psicolgicas voltadas para o
desvendamento das aparncias no homem e na sociedade,
revolucionando o conceito de personalidade, tomada em si e com
relao ao seu meio. o caso, entre outros, do marxismo e da
psicanlise, que, em seguida obra dos escritores mencionados,
atuam na concepo de homem, e portanto de personagem, influindo
na prpria atividade criadora do romance, da poesia, do teatro.
Essas consideraes visam a mostrar que o romance, ao abordar as
personagens de modo fragmentrio, nada mais faz do que retomar,
no plano da tcnica de caracterizao, a maneira fragmentria,
insatisfatria, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos
nossos semelhantes. Todavia, h uma diferena bsica entre uma
posio e outra: na vida, a viso fragmentria imanente nossa
prpria experincia; uma condio que no estabelecemos, mas a
que nos submetemos. No romance, ela criada, estabelecida e
racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa
estrutura elaborada, a aventura sem fim que , na vida, o
conhecimento do outro. Da a necessria simplificao, que pode
consistir numa escolha de gestos, de frases, de objetos significativos,
marcando a personagem para a identificao do leitor, sem com isso
diminuir a impresso de complexidade e riqueza. Assim, em Fogo
Morto, Jos Lins do Rgo nos mostrar o admirvel Mestre Jos
Amaro por meio da cr amarela da pele, do olhar raivoso, da
brutalidade impaciente, do martelo e da faca de trabalho, do remoer
incessante do sentimento de inferioridade. No temos mais que sses
elementos essenciais. No entanto, a sua combinao, a sua repetio,
a sua evocao nos mais variados contextos nos permite formar uma
idia completa, suficiente e convincente daquela forte criao fictcia.
Na vida, estabelecemos uma interpretao de cada pessoa, a fim depodermos conferir certa unidade sua diversificao essencial,
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sucesso dos seus modos-de- -ser. No romance, o escritor estabelece
algo mais coeso, menos varivel, que a lgica da personagem. A
nossa interpretao dos sres vivos mais fluida, variando de acrdo
com o tempo ou as condies da conduta. No roma