Antonio Xerxenesky - entre

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entre Antônio Xerxenesky Ilustrações por Samanta Flôor Porto Alegre – 2006 Financiamento: (inserir logotipo da Editora Movimento, do Fumproarte e da SMC)

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entre

Antônio Xerxenesky

Ilustrações por Samanta Flôor

Porto Alegre – 2006

Financiamento:(inserir logotipo da Editora Movimento, do Fumproarte e da SMC)

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para minha mãe,

por ser tudo aquilo que sempre quis ser.

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índice

introdução ou um pedido de desculpassobre a tênue linha entre uma parede e uma barreira

determinaçãopresos no fluxo da Avenidametafísica para as massas

o personagem ou metalinguagem para as massaso Seu rostoithica 27 9

urbepensamentos aleatórios de uma tarde banhada em tédio

sobre viagens no espaçomantras para serem repetidos ad infinitum ou um guia de

sobrevivência através da auto persuasão querido diário,

ondas curtassobre as máquinas

nosso pequeno campo de batalhaflerte#34

justaposição dimensionalesboço para um romance ambientado nos anos 60

querido diário, (parte 2)típica tarde tragicômica

entre

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(...) tudo, sempre, coletivamente, estivera caminhando

rumo àquela forma purificada latente no céu, aquela

forma sem surpresas, sem segundas oportunidades, sem

volta.

Thomas Pynchon,

O Arco-Íris da Gravidade

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introduçãoouum pedido de desculpas

Você poderia, neste instante, estar lendo um bom livro.

As histórias aqui contidas são apenas contos adolescentes bobocas. Como seria

diferente? Foram escritos entre os dezoito e os vinte anos do autor. Este pede desculpas

por não ser capaz de produzir uma obra-prima. Ele realmente queria ter feito algo

fantástico. Um primeiro livro é só uma declaração, um manifesto dos temas e idéias que

a pessoa quer trabalhar sobre no resto de sua vida, e não sobra espaço para sutilezas.

Parece que tem que se dizer tudo e de uma forma bem gritante e direta. O resultado são

exageros e obviedades. Só para avisar. O segundo, se existir, será melhor. Promessa.

Não se preocupe, o livro não é assustado, com pose de vítima, como esta

introdução. Para falar a verdade, ele chega a soar forte e corajoso, de tão sarcástico que

é. O escritor que é essa criancinha apavorada, com medo de que alguém possa se

ofender, com medo das prováveis críticas, (...).

Agradecimentos às bandas Godspeed You! Black Emperor, Mogwai e Explosions In The

Sky, que serviram de trilha sonora e inspiração para a criação deste livro.

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sobre a tênue linha entre uma parede e uma barreira

Eu. ---

Por que me esconder e narrar os fatos em 3ª pessoa? Já é de conhecimento

popular que a verdade depende do ponto de vista, então cabe a eu contar os

acontecimentos como meus olhos os perceberam. Eu poderia rechear este relatório com

floreios técnicos, mas acho que não interessaria a ninguém. Este pensamento é uma

mentira – interessaria a muitos – mas eu não gosto de pensar assim, pois não sou capaz

de produzir algo tão produzido. O fluxo de pensamento amarrou-me em cordas de náilon,

porque acho náilon o nome de tecido mais bonito. Se as coisas fossem diferentes, este

texto não existiria.

Eu estava sentado dentro do ônibus com um bloco de notas em uma mão e uma

caneta Bic em outra. Resolvi começar a carregar sempre comigo um bloco para anotar

boas idéias. Sempre surgiam nos momentos mais inesperados: estava no chuveiro e de

repente vinha uma muito boa. Talvez porque fosse o último lugar em que eu imaginaria

que minha imaginação imaginaria algo, ou talvez o fluxo da água conduzisse minhas

nuvens de sinapses. Quando girava a torneira no sentido horário para fechar o chuveiro e

sair do banho, estava embriagado pela felicidade da possibilidade da criação. Minhas

idéias vagavam pelo âmbito artístico como crianças inocentes que vemos em

propagandas de supermercado, explodindo de alegria. Não era aquela coisa estúpida de

virar famoso e tal, mas de emocionar alguém. Acho que mais do que com críticas

positivas escritas por acadêmicos entediados, sonhava em desacomodar um leitor, em

oferecer uma experiência única.

Existia ainda algum espaço para a originalidade no mundo? Quando se está

otimista, se acredita que é possível inventar algo nunca antes pensado, que as coisas

atuais não são apenas reciclagens das antigas, que tu és especial, porque tiveste uma

idéia que ninguém mais (ou pelo menos ninguém que obteve reconhecimento na mídia)

teve. E por um breve momento podes aproveitar esta ilusão1.

Um barulho horrendo me tirou dos delírios matinais naquela linha T82. Senti meu

corpo sendo jogado para frente e dei de cara contra o ferro dos bancos. A dor foi intensa

(minto, ela só começou quando percebi que sangrava). Perdi um dente e fiquei pensando

como deveria ser horrível perder um braço. Guardei o dente no bolso e fiquei vendo

mentalmente a cena de alguém tentando guardar um braço mutilado no bolso. Talvez

tenha sido o ‘levantar rápido demais’ que me causou aquela visão turva com tonalidades

de vermelho, mas o pior estava por vir, quando o foco voltou aos meus olhos: todos os

presentes no ônibus tinham sumido. Que diabos? Fui ver no que tínhamos batido. Era

uma parede preta, enorme. Aproximei-me do assento do motorista, agora vazia, para ver

mais de perto.

Era lisa, muito lisa. Parecia feita de nada. Tentei sair do ônibus, mas a tal parede

tinha criado um perímetro em volta dele. Estava em todos os lados, trancando a saída.

Na minha mente, um zoom out focalizava o absurdo da situação, comigo de costas, é

1 Para maiores informações, consultar o relato #34.2 Se os ônibus mugissem, o T8 seria um dragão. Mas ônibus não mugem. Nem dragões.

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claro. Depois, um close nos meus olhos para mostrar como eu estava angustiado e assim

por diante.

O primeiro dia na minha nova prisão foi um tanto quanto difícil. Dos meus

pensamentos incoerentes e estúpidos que apareceram devido ao pânico, destacarei os

seguintes, apenas por motivos ilustrativos: ‘nunca mais vou ver minha família’, ‘o que

acontecerá com o meu cachorro que esperava que eu desse ração para ele hoje?’ ‘eu

estou com uma puta fome’. Era a frustração de todos meus projetos artísticos também.

Mas aí pensei: eu tenho um bloco de notas vazio (e relativamente grande) e uma caneta

(com o que aparentava ser uma carga 98% cheia). Imagina se eu, neste tempo que

ficarei aqui até morrer de fome tento escrever uma obra genial da literatura? Já

imaginava as manchetes: “Garoto é encontrado morto preso em ônibus cercado por

barreiras imaginárias. Junto com ele estava o manuscrito do que pode ser considerada a

maior obra-prima da literatura contemporânea”.

Isso era justamente do que eu precisava. Então comecei a pensar e pensar.

Escrevia os rascunhos nas paredes do ônibus, mas não saía nada original. Culpava o fato

de, talvez, no fundo, estar sonhando mais com o estrelato do que com o idealismo todo

da arte. Complexo de culpa resolvido, percebi que não tinha nada a ver, que era

provavelmente uma questão de talento. Fiquei olhando tudo que tinha escrito: todas

aquelas idéias eu já havia tido antes. Continuei mesmo assim. Vi frases claramente

plagiadas de algum filme de que gostava, de um livro fantástico que tinha lido. Meu estilo

era uma cópia pura de Cortázar. Minhas tentativas de inovação, roubadas de “Ulisses”. O

pânico já (re)começava a me atingir, mas eu continuei em meu cego desespero pela

criação. Pelo meu relógio vi que estava lá há quatro dias: os quatro piores dias da minha

vida. Eu julgava que ficar no computador conferindo e-mails era uma péssima maneira de

gastar o tempo, mas nada se comparava a simplesmente cultivar minha mediocridade

aprisionado em um ônibus. Nada. Eu estava seco por dentro. Minha inspiração estava tão

baixa que, mais um pouco, conseguiria cumprimentar minha auto-estima.

Chorando convulsivamente, comecei a falar comigo mesmo. Eu gritava que não

acreditava que era uma pessoa tão limitada assim. Como poderia? Eu, um guri que via de

tudo, sabia de tudo. Lembrava daquela minha professorinha do primário que falou um dia

que eu teria um futuro brilhante. Da professora de matemática que disse que eu era um

gênio quando fui lá resolver uma equação exponencial tri complicada no quadro. Eu

decepcionei todos eles. Todos que algum dia esperavam alguma coisa de mim, se eles

pudessem me ver agora, chorando dentro deste ônibus, sentiriam essa decepção.

Reuni o que me restara de forças e tentei quebrar os vidros da prisão. Consegui,

após leves escoriações nos braços, cuja dor ignorei. Agora as barreiras. Desferi um pouco

de tudo contra elas: socos, chutes, cuspes, e elas não cederam. Finalmente, decidi

esquecer tudo, contentar-me com minha própria insignificância artística, minha ausência

total de criatividade e fiquei mudo ali, preso entre quatro limitações enormes e

assustadoras.

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determinação

-Eu posso passar por baixo? – disse para o cobrador, apontando para a roleta com

um movimento da cabeça.

-Não, sinto muito.

-Mas ô tio, tem um outro cara aí que sempre deixa meus amigos passarem por

baixo. – olhei para a janela, o ônibus tinha começado a se mover e já tinha andado quase

uma quadra desde o ponto onde o peguei.

-Não dá, guri! Eu não vou arriscar meu emprego porque um piá que nem tu não

trabalha para conseguir ganhar um dinheiro pra pagar a passagem! – o cobrador gritou,

[um rápido olhar pela janela, humm, duas quadras andadas] puxando a cordinha para o

ônibus parar na próxima parada, simbolizando que eu teria que descer à força.

-Ah, que merda mesmo – falei, saindo do ônibus que guinchava no seu grotesco

freio e forçando uma expressão triste que simplesmente não estava lá.

Olhei a rua. Hmmm, ainda na Avenida Protásio, mas pelo menos uma parada mais

adiante. O próximo ônibus vai demorar pouco e mais sete dessas e eu chego Lá.

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presos no fluxo da Avenida

A loja situava-se em um bairro residencial, não exatamente o melhor lugar para

ver os negócios prosperarem. Mais especificamente, ela estava na parte íngreme de uma

grande Avenida deste bairro. Era a única loja que se avistava por quadras e quadras, mas

isto não a tornava mais perceptível. Um pode achar que ser o peixe fora d’água vai

chamar atenção, mas neste caso não: os carros passavam voando na grande descida, e

os passageiros e motoristas não se prestavam a admirar a paisagem que os rodeava,

conscientes de que, se assim o fizessem, podiam se deparar com, adivinhe, prédios

residenciais.

O movimento naquele dia havia sido, como de costume, baixo. Estavam apenas

duas das vendedoras da loja de antiguidades. Uma delas comentou sobre como Isadora

estava demorando a voltar. “Ela saiu faz o quê, uma hora?”, disse Viviane olhando para o

relógio que marcava quatro horas.

- Quando ela saiu ainda tinha sol.

- E desde quando é noite?

- Não, é que, do nada, o dia ficou acinzentado. Poxa, não olha mais pela vitrine?

- Ah, tu sabes que o clima nunca foi meu assunto favorito. Prefiro guardar ele para

momentos de muito tédio.

Carmine deu um sorriso, onde ficou implícito que ele significava “Como assim?

Isto aqui deixou de ser entediante?”, e Viviane retribuiu este sorriso, deixando claro que

“Sim, isto foi uma piada”.

- Acho que vai chover em breve.

As duas quase começaram a rir da conversa, mas a monotonia impedia a quebra

de suas inércias. A porta se abriu e Isadora entrou.

- Finalmente! Por onde...

- Bah, tu não faz idéia do que aconteceu!

- Nossa, o quê?

- Deu um baita acidente ali embaixo.

- Embaixo aonde? Na Avenida?

- É, ali no final da descida.

A conversa foi interrompida pelo zunido agudo de duas ambulâncias em

velocidades exageradas.

- Bah, foi grave a coisa.

- Vocês não viram nada, outras ambulâncias, carro da polícia, do exército, sei lá,

‘tavam entrando pelas ruas transversais, que, por sinal, bloquearam para usarem só pra

isso.

- E a Avenida, bloquearam?

- Não, ainda não. Não tem nem um aviso, nada. Mais um pouco vai começar a

engarrafar...

- E daí só chegando lá embaixo que os carros vão perceber que a rua tá num caos

total?

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- Resumidamente... acho que sim.

- A gente tem motivos para comemorar então!

- Ah, não me diz.

- Mas é claro! Vamos levar todos os produtos para a vitrine.

Viviane e Carmine eram da escola de pensamento de que engarrafamento era

ótimo para os negócios, pois os carros parariam no meio da Avenida e seus motoristas

olhariam para os lados, reparando na loja. Isadora era mais idealista (ou ingênua) e

queria o bem de todos; por saber que engarrafamento era muito estressante, não

desejava isso para nenhum serzinho no universo.

O livro que Isadora estava escrevendo nas horas vagas estava ali, parado em cima

do caixa. Era um caderninho pequeno, onde mais esboçava idéias do que trabalhava

nelas. O trabalho sujo, ela dizia, melhor deixar para fazer no computador. Se o negócio

prosperasse, bem que eu podia me comprar um notebook.

- Vai voltar para o teu livro agora?

- Não, daqui a pouco. Vou ajudar vocês a arrastar essas coisas lá pra frente.

- Eu acho que vai começar a chover! Mais engarrafamento!

- Céu cinza não é sinônimo de chuva.

- Para uma escritora, tu tinhas que ter um pouco mais de imaginação.

- Eu imagino que vem uma chuva de granizo – pareceu ter sido dito por Isadora

em um tom monocórdio, beirando o fantasmagórico, mas ninguém soube ao certo quem

foi que pronunciou a frase, ou se ela foi realmente dita.

Mudanças terminadas, Isadora foi sentar-se no banco do caixa e tirou a caneta do

bolso da camisa.

- Tu já pensou em ganhar dinheiro escrevendo?

- Acho meio difícil, né, ninguém ganha com isso.

- Ué, é só saber ganhar dinheiro com o negócio. Mas... como trabalhadora daqui,

não estou apta a dar discursos sobre o assunto.

- Os escritores que ganham dinheiro são os escritores de auto-ajuda, e esses não

precisam de dinheiro. Para ser escritor de auto-ajuda, precisa ser, antes de mais nada,

bem sucedido. Como ganhei minha fortuna. Como eu, que comecei com uma vendinha de

cachorro quente, tornei-me presidente desta megacorporação. Como ser feliz. Eu sei, eu

sou feliz. Como se dar bem na vida, no amor, no trabalho, no sexo, na família, com seu

médico, com seus comprimidos, com sua salada. Para os fracassados, infelizes e

dramáticos, sobra a literatura. E de fracassados e infelizes o mundo já está lotado. Não é

todo mundo que quer ler mais resmungos do gênero. Eu sou apenas mais uma

produzindo, e, como não sou nenhuma gênia, no máximo vou conseguir que uma ou duas

mulheres se identifiquem comigo e elogiem meu trabalho. Elas provavelmente estarão

mentindo ou não leram livros bons o suficiente – terminou Isadora com uma grande

inspiração, como se tivesse acabado de ler um texto enorme em uma palestra.

- Com esse ânimo todo, acho que quem precisa ler um livro de auto-ajuda és tu.

Isadora quebrou na risada.

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- Não ri, ora, é verdade! Tu fica esperando aqui que eu vá te dizer, não, não é

assim, por que tu é tão crítica contigo mesma, essas coisas? Já cansei dessa fase. Agora

vou fazer piadas. Se não der certo, vou começar a concordar contigo.

- Nossa, me considero ameaçada.

As três riram. Novamente o momento de descontração foi rompido por sirenes.

- Mais veículos. Não é possível. Deve ter caído um avião em cima de vinte carros.

- Bah, pelo jeito... deve ser o maior acidente da história.

- Vamo’ ali ver?

- Não compartilho dessa morbidez toda.

- É, e vai que é um assaltante que fez uma lotação de refém, algo assim. Vai que

sobra tiro para alguma de nós.

A caneta de Isadora finalmente tocou o papel. Deu um olhar para as outras duas,

sinalizando, me deixem em paz, agora a conversa é entre vocês, eu estou aqui no meu

mundinho.

- Impressionante como os carros de polícia conseguiram passar por todo esse

engarrafamento.

- É. A que horas que a gente vai sair daqui hoje, por sinal?

- Vendo esses carros amontoados e tortos, pelo jeito vamos ter que esperar

anoitecer, resolverem toda essa confusão, passar a hora do pique...

- Umas nove da noite?

- É. Viu isso, nossa escritora? Dá tempo de tu escrever Os Sertões duas vezes.

Isadora não respondeu, absorta em sua diversão. Viviane e Carmine saíram para

arrumar os artigos em exposição, dar uma leve embelezada neles. Depois buscaram mais

uma xícara de café e se sentaram à mesa.

- A Isadora anda triste, né? – cochichou Carmine.

- Ela sempre foi, não?

- É, mas tá pior.

- Isso significa que tu sabes por que ela tá assim né?

- Tenho tamanha fama de fofoqueira?

- Preciso responder?

- Tá bom, tá bom – deu uma pausa para criar suspense - Morreu o tio dela – disse

rapidamente, levantando as sobrancelhas, aguardando alguma expressão de espanto.

- Como tu sabe?

- Ah, minha prima é amiga do filho do tio dela.

- Aquela coisa de sempre.

- É. Ela não era muito ligada nesse tio, mas foi a primeira vez que ela foi num

cemitério, minha prima disse.

- Pô, ela nem é tão jovem.

- Ela tinha medo, sei lá. Foi a primeira vez. Deve ter sido um choque.

- Mas a avó dela já não tinha se ido também?

- Sim, mas foi o que eu disse, ela tinha medo, não teve coragem de ir no enterro.

- Poxa, e ela nem comentou nada com a gente.

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- Pois é.

- Vamos voltar ali pra frente, onde ela tá. Fazer uma companhia, não precisamos

forçar conversas nem nada.

Ao voltarem, viram através da vitrine que começava a cair os primeiros pingos

d’água.

- Só o que faltava. Além de engarrafamento, poças e piso úmido.

- Pelo menos não tem goteiras por aqui. Por sinal, tu não tava feliz que ia chover,

minutos atrás?

- Eu tô começando a ficar realmente preocupada com o acidente. Pena que não

tem tevê aqui, podia estar dando algo. E agora estamos ilhadas, nem sair dá. Essa chuva

fininha, a gente congela antes de descer a Avenida.

O silêncio adensou-se e ecoou pela loja. Parecia que um luto fluía pela Avenida,

uma dor e sofrimento que não remetia ao desespero, mas ao cansaço. O clima na sala

não respondia ao tipo de acidente que imaginavam; pensavam em catástrofes com

mortes trágicas, sangue jorrando e choros ensandecidos.

- Que estranha sensação que eu sinto. É como se eu quisesse dizer algo, pensasse

‘vou dizer isto’, e não conseguisse, com medo de que o silêncio não me permitisse uma

coisa dessas.

- É, eu também tô me sentindo estranha. Nunca percebi como essa Avenida era

sinistra a essa hora, com o sol se pondo.

Um tremor percorreu o local. Carmine imaginou que o coração das três havia

entrado em ressonância e começava a bater forte, unido. Como se ruídos subsônicos

estivessem penetrando pelas madeiras. Como se alguém estivesse tocando um baixo

elétrico desafinado, que soava ainda mais grave.

Melancólica, Viviane olhou para trás e contemplou o rosto de Isadora, muda,

escrevendo freneticamente. O tremor aumentou, tornando-se claro que não era uma

alucinação coletiva, estava lá, constante.

- Me digam que não sou só eu que estou escutando isso.

- Não é só tu. É horrível. Eu não sei o que é, mas me dá arrepios só de sentir.

- Não vou tentar descrever muito como é, porque a Isadora saberia dizer com

palavras mais bonitas. Mas... – e então pensou - É como se pulsasse um ritmo de

melancolia, e daí um baque grave de verdadeira tristeza, infelicidade declarada, luto.

Grave é uma boa palavra para definir.

Com o último ruído, a mesa de madeira balançou. Ele aproximava-se. Soava

marcial, como se um exército inteiro estivesse escalando a íngreme subida. Os carros

começaram a dispersar-se, evadindo-se pelas ruas transversais, agora abertas, e a

Avenida desobstruiu-se naquele trecho. “Podemos ir para a casa agora”, pensaram as

duas, mas não ousaram verbalizar tal coisa, porque não soaria sincero.

Vultos podiam agora ser vistos caminhando pelo meio da Avenida. Subiam

ordenadamente, de forma determinada. Marchando. Viviane e Carmine diferenciavam

machucados sérios nos rostos, expressões graves e infelizes, e uma cor indiferente por

natureza. Os Mortos possuíam um fluxo tão organizado e fechado, que qualquer

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movimento brusco perturbaria aquela procissão. As duas tiveram de ficar congeladas,

assistindo ao espetáculo, sem saber como se comportar. Pouco tempo atrás faziam

piadas, riam, agora não se arriscavam mais. Olhavam respeitosamente para eles, quase

os compreendiam. Não ousavam sentir pena, tentavam apenas entender. Nunca lhes

ocorreu ver o que Isadora fazia, ou sequer se ainda existia. A noção da Morte paralisava e

construía um perímetro ao redor da loja. A luz, acesa para chamar atenção, apagou-se, e

as duas decidiram que não era uma boa idéia tentar ligá-la novamente. E assim foi, até o

sol finalmente se pôr, a noite chegar e a manhã aparecer novamente. A procissão chegou

ao fim discretamente, como se não fosse acabar, como se houvessem mais corpos atrás

para seguirem juntos. Foi isto o que aconteceu naquele dia, talvez não na Avenida, mas

em ruas mais particulares, como no pequeno caderno que Isadora preencheu com uma

letra agressiva e nervosa.

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metafísica para as massas

“Dai glória ao Senhor vosso Deus, antes que ele

faça vir as trevas, e antes que tropecem vossos pés

nos montes tenebrosos; antes que, esperando luz,

ele a mude em sombra de morte, e a reduza à

escuridão”.

Jeremias 13:16

Resignação era a palavra do dia, pensei. Eu tinha dessas, ficava obcecado com

uma palavra que simplesmente definiria magicamente minha vida. Resignação era a de

hoje, porque hoje é o dia que mandarei tudo ao inferno, ou melhor, não mandarei nada –

eu me resignarei ao ridículo. O ridículo mais bem pago da história, pelo menos.

- Vamos começar as filmagens em 5! – me gritou o ajudante, mostrando os cinco

dedos da mão direita abertos no ar.

Ele tinha um jeito de Polyanna que me dava nos nervos. Nunca entendi qual era a

das pessoas animadas. Simbolizei um “tá bom” com a cabeça e mandei o garçom que

circulava ali pelo camarim mandar vir mais uma dose de uísque, afinal, qual a graça de

ser uma ES-TRE-LA da televisão, se não posso pedir bebidas no meu pseudocamarim?

- Então tu sabe direitinho sobre o que tu vai falar hoje para a platéia, né? O texto

bem ensaiado, né? Nenhuma dúvida... né? Crise existencial, alguma? – a diretora do

programa perguntou.

Pelo menos ela não precisava vestir-se da maneira estúpida como nós nos

vestíamos. Ela usava uma saia preta elegante e essas coisas de... sei lá, mulheres

elegantes. Tinha um celular bem pequeno. Cabelo curto. Pagou caro pelo corte. Hmm.

Não sei descrever ela. Nem eu. Nem ninguém, acho.

Eu nunca erro essas bobagens. Hoje é sobre curas, curas milagrosas. Citar nosso

Senhor Jesus Cristo dez vezes, abençoar uma meia dúzia de pobretões com dor nas...

- Não. Nenhuma dúvida. O público de hoje é exigente?

Minha frustração com a ética de meu trabalho deixava meu humor cada vez mais

corrosivo e cáustico. Pena que eu era muito óbvio e, visto de fora, soava patético. Não

esperava gargalhadas.

- Não ofende aqueles que te pagam – ela tinha me interrompido com uma voz

desnecessariamente autoritária. – O uísque que tu tá bebendo é um Johnny Walker e não

uma porcaria nacional por causa daquela multidão de fodidos e decepcionados com a

vida que vem aqui toda semana, na esperança que tu alegre a vida deles.

- Mas até tu tem que admitir o quanto toda esta coisa é ridícula. É tão kitsch que

parece que estamos fazendo uma paródia, mas ainda assim conseguimos fazer com que

as pessoas levem a sério.

- Eu não acho ridícula. A gente dá esperança para um povo inteiro em tempos de

caos – ela disse, sem perceber o papel de retardada que estava fazendo até mesmo para

a faxineira que passava a vassoura em uma sujeira invisível ali no canto.

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É, bom. Para um cara resignado, eu até que estava subversivo. Talvez fosse hora

de mudar a palavra do dia. Ou não. Seja como for, nunca tinha tido uma discussão dessas

com minha chefe. O que o tédio não faz. Não ouse subestimar o poder da monotonia.

Vi dois dedos do meu ajudante se levantarem, tinha que ir me encaminhando ao

palco. Muito altruísta essa minha diretora. Com certeza tem seu lugarzinho reservado no

céu e ainda vai receber uma harpa de ouro com detalhes em diamantes, para tocar ao

lado de anjos esbeltos e com abdômens tão bem definidos que podem “atuar” em

propagandas baratas de equipamento de ginástica.

O programa começa, a luz acende, dou uma breve olhada na platéia, puta que

pariu. Essa igreja é muito grande e quadrada que feio uma igreja tão quadradona assim

elas não deveriam ser cruzes tridimensionais não era essa a idéia de uma igreja hein

essas modernidades, pego a bíblia na mão e digo:

- Olá, meus fiéis espectadores, estejam vocês me assistindo pela tevê ou tenham

vindo aqui partilhar nossas preces. Neste programa, teremos entrevistas com jovens

perdidos no mundo cruel das drogas e que, após encontrarem nosso Senhor, tiveram

suas vidas mudadas para sempre. Inclusive chamaremos um deles que está na nossa

platéia – fiz um aceno com a mão direita para um guri cabeludo, ali na sétima fileira – e

contaremos com a participação de um grupo musical novo que...

Tive que interromper o texto inicial que já sabia de cor e salteado, que era capaz

de pronunciar todas as vírgulas e pontos com orgulho. Antes de enxergar, eu senti em

mim. Depois, é claro, eu enxerguei - deveria eu ter enxergado? Uma densa luz começou a

atingir meu olho esquerdo. Atravessando o teto cinza da igreja/teatro, a luz passou a

tomar forma. Era um prisma branco, que ficava cada vez mais parecido com alguma

coisa que eu não sabia ainda definir. Voltei os olhos à minha ó tão fiel platéia e vi que

eles estavam encarando fixamente em minha direção. Claro, eu estava paralisado,

olhando para o teto. "Enlouqueceu", devem ter pensado. Mas não adiantava, estava

congelado, não conseguia dizer absolutamente nada. A luz começou a criar uma forma de

boca e eu vi dentes, muitos dentes se multiplicando. A boca foi chegando cada vez mais

perto e me engoliu.

Fui acordado pela diretora. Olhei e ainda estava no palco. A luz tinha

desaparecido. Ela me sussurrou apressada no ouvido:

- Continua com o programa como se nada tivesse acontecido. Pra falar a verdade,

nem quero saber o que diabos aconteceu. Seja lá o que for, tu nunca mais vai tomar um

uísque antes de fazer o programa. Vamos lá, levanta logo. Eles estão olhando. Inventa

algo. Qualquer merda.

Ainda completamente grogue, me levantei e tentei explicar. Como poderia

explicar? Podia dizer: uma dor na perna, é foi isso, eu tô com um problema no joelho e

ele me falhou agora por isso caí no chão, mas e os olhares para o teto? Hum. Por que

diabos estou pensando este tipo de coisas depois da experiência que acabei de ter? Esta

revelação não seria mais importante do que a manutenção das aparências? Ou, é claro,

estou esquizofrênico. Mas não. Eu não sou. Eu nunca tive isso. Flashback de um LSD que

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nunca tomei? Cancelei mentalmente meu humor e resolvi falar a verdade, que nem eu

sabia bem qual era.

- Senhoras e senhores, eu acho que acabo de ter uma epifania. Eu vi Deus. Eu

juro. Ele me engoliu.

Ai.

Olhares apreensivos.

Um homem se levantou na platéia, subiu no banco e começou a gritar:

- Chega de mentiras! Eu venho aqui toda semana para ver nosso povo brasileiro

enganado por esses desgraçados!

Quanto drama. Bem coisa de brasileiro. Adora fazer uma cena, especialmente se

envolve alguma forma de demagogia. Todo caso, eu não conseguia acreditar. Foi a

primeira vez que vi algum crente se levantar contra a igreja. E ele ganhou apoio ainda

por cima. Gritos de “é isso aí!”, “falou tudo!”, ecoavam pelo salão. Eu tentei dizer ao

microfone alguma coisa como “Mas isto é verdade! Eu juro!”, mas não deu. A multidão,

então, decidiu levantar e caminhar em direção à saída. O tumulto foi se expandindo, as

pessoas berravam quase em uníssono. O formigueiro esvaziava-se rapidamente. A

diretora gritou vários “Corta! Corta!” para os responsáveis pela edição. Saí (ou fugi)

completamente atordoado do palco e fui em direção ao camarim onde busquei o meu

revólver que não tinha e imaginei como seria disparar contra meu cérebro e pintar a

parede de vermelho. Mas a palavra de hoje era resignação, nunca vou esquecer. Preferi

voltar para casa e dormir.

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o personagemoumetalinguagem para as massas

“Eu não sei se sou infeliz porque não sou livre,

ou se não sou livre porque sou infeliz.”

Personagem de Jean Seberg no filme Acossado, de

Jean-Luc Godard.

Repentinamente, o personagem tomou consciência de si. Sou um personagem,

pensou. Sinto que alguém está me escrevendo. Existe um grande autor determinando

minha vida.

O choque da descoberta levou a uma revolta deste curioso personagem. Terei que

tomar alguma atitude. Gritou com o autor para ver se ele o ouvia. Sim, ele o ouvia.

"Escuta aqui. Saber que eu sou um personagem é algo... horrível”.

"Por quê?”

"Oras! Tu me deixa com poucas escolhas religiosas!"

"Como..."

"Eu estava pensando em ser niilista. Ou agnóstico. Tava com um livro do

Nietzsche embaixo do braço agora mesmo. Mas não posso mais. Descobri que tenho um

Deus. E o contato com ele não é uma linda coisa transcendental, mas bastante

enfadonha".

"O diálogo com seu criador é monótono? Tu não sabes nada sobre mim!"

"Mas tu tem que ser um sujeitinho bem escroto para criar um personagem tão

bidimensional como eu. Ou um escroto ou um total amador. Não sei o que é pior, na

verdade."

“É melhor assim. Quer dizer, eu gosto de personagens rasos, eu me sinto mais

distanciado deles. Posso matá-los sem dó nem piedade. Pense no filme Comando para

Matar, com o Schwarzenegger. Sempre que ele quebra o pescoço de um guarda/vilão tu

acha tri normal. Por quê? Porque tu não sabe nada sobre o sujeito. Será que ele tinha

família, filhos? O que ele estava pensando/sentindo antes de ser atacado? Também não

sei. Mas não doeu para o escritor matar aquele personagem”.

“Que desculpa esfarrapada”.

O criador sorriu, e depois soltou uma leve gargalhada. Foi perguntado porque

estava rindo.

"Eu pensei agora na tua liberdade”.

"E qual o problema dela?"

"Bom, tu não tem livre-arbítrio”.

"Eu sei. Uma merda, não?"

"Não! Esse é um problema filosófico que muita gente fica batendo a cabeça para

tentar resolver, quando na verdade não há solução, só a possibilidade de aceitar a...

dúvida”.

"Ah. Muito obrigado por me poupar disto”.

Page 19: Antonio Xerxenesky - entre

"Mas é realmente fantástico!"

"Humm. Talvez nem tanto. Vê só: eu estou sendo escrito por uma pessoa que vive

no mundo supostamente real. Minha ficção depende da realidade, do teu lápis me

riscando na folha, do teu pensamento, de ti, fisicamente falando. E, na realidade, há

essas dúvidas. Tu, o autor, continua sujeito a esses questionamentos existenciais. Por eu

ser seu produto... Bom, o que quero dizer é que, conseqüentemente, na minha

ficcionalidade, essas pragas também existem. Ficcionalidade... existe essa palavra? Poxa,

eu tinha que ser logo um personagem que não sabe porra nenhuma de português”.

"Ah, esse teu defeito é culpa minha. Mas quanto às tuas respostas... hã... pode

ser. É o que digo. Mas eu não vejo as coisas assim. Pelo menos não quero pensar nisso

agora, de tão feliz que sinto por ter um total controle sobre ti”.

"E se eu tentasse me revoltar? E se eu me recusasse a ser desenvolvido, a

dialogar com outros personagens, a tomar ações que algum leitor pode achar

interessante? E se eu for bem...”

"Acho que isto não é possível. És meu. Existes por minha causa. Neste teu

universo, eu sou Deus. O único. E este é um prazer belíssimo”.

"Pois eu acho que tu deveria ir se

--

Menos um personagem insuportável no mundo da literatura.

Page 20: Antonio Xerxenesky - entre

o Seu rosto

Começara como uma piada, igual a tudo na vida. Nunca pôde se traçar a origem

da teoria, pois seus primórdios encontravam-se estampados em uma mesa verde-clara

de uma sala de aula qualquer, em algum colégio, situado em algum lugar. Foi escrito,

rabiscado, desenhado ou profetizado com canivetes, ou facas, ou qualquer objeto dotado

de uma ponta afiada. O esquema esculpido era mais ou menos o seguinte:

JESUS – homem – cromossomos XY

VIRGEM MARIA – mulher – cromossomos XX

Ela ofereceu seu cromossomo X para Jesus, então, alguém tem de ter oferecido seu Y.

Deus, claro. Mas quem disse que ele era humano?

Bom, e de quem Jesus puxou seu fenótipo? Ele não era um clone de sua mãe. Ele era a

mistura física de sua mãe com seu pai. Portanto, fazendo uma análise cuidadosa, vendo o

que tem de semelhante com sua mãe e o que não tem, poderemos descobrir qual é o

rosto de Deus.

Bagunçado e incoerente assim (talvez exatamente por isso), despertou o interesse

de um aluno que cutucou o outro que por sua vez deu uma cotovelada no outro que por

sua vez tirou uma foto da mesa que por sua vez foi enviada para um primo que por sua

vez comentou com todos os colegas de trabalho que por sua vez se interessaram de

verdade e, quando se viu, estava no jornal. As pessoas sérias, ah, elas não dão bola para

isso. Nenhum gênio da biologia decidiu colocar os dados em um programa de

computador e calcular as semelhanças baseadas nas imagens que temos dos dois, da

mãe e do filho. Restou a ciência nada científica do boca-a-boca, composta de pesquisas

intermináveis do tipo:

“E o nariz? Tu acha que ele puxou da mãe ou do pai?”

A Igreja protestou, mas nada fez para seriamente impedir esta discussão, afinal,

Deus estava na moda novamente. Mal aquilo não faria, no máximo arrastaria um

punhado de fiéis à igreja, para que estes, com bloquinhos de notas em mão, ficassem

olhando detalhadamente as imagens de JC.

Por todos os cantos do mundo, inúmeras pessoas se disseram criadoras da teoria.

Foi então que os desenhos passaram a pipocar na mídia. Cada Deus era diferente,

englobando variadas raças, bocas, queixos e orelhas.

Um matemático logicamente justificou que cada um usava como base Jesus(es) e

Maria(s) diferentes, gerando então resultados díspares. Um psicólogo afirmou que os

desenhistas estavam realizando imagens com traços característicos de seus pais. Outro

disse que todos estavam SE desenhando. Um pós-graduado em semiótica afirmou que a

história era muito mais complexa do que isto, mas não foi bem-sucedido em explicar

como se daria esta tal complexidade. Citou meia dúzia de ensaístas, todo caso.

A mania (que parecia não ter fim) sumiu sem muitos alardes, antes mesmo de

gerar um filme em Hollywood. O autor do que havia se tornado o desenho mais popular

Page 21: Antonio Xerxenesky - entre

(10.000 acessos em um dia no website), morreu subitamente de, adivinhe, morte súbita.

Boatos de ira divina espalharam-se como mijo em tapete persa, e rostos novos cessaram

de aparecer na mídia. Em jornal algum estava escrita, talvez devido a sua obviedade, a

causa do fim. Não era mais possível imaginar Deus como uma pessoa normal, daquelas

que se vê caminhando pelo centro da cidade, comprando cachorro-quente barato.

Restava uma idéia de que Ele, agora, era uma força enorme, descomunal, absurda e

irritada, que atacava impiedosamente toda aquela massa de humanos sedentos por

fantasias, que pensavam blasfêmias, que ousavam sonhar sobre como seria Seu rosto.

Page 22: Antonio Xerxenesky - entre

ithica 27 9

Por que diabos meu pai não me deixa tomar algum remédio para dormir? Na

verdade eu sei a resposta para esta pergunta, mas é que eu sinceramente não agüento

mais uma noite dessas de insônia. Elas me recordam da primeira vez que vi aquele filme

chamado Além da Imaginação, o filme mesmo, a refilmagem malfeita de quatro episódios

da série conhecida como Twilight Zone para os que não precisam sofrer por causa de

tradutores incompetentes. Nunca vou me esquecer do monstro verde com cara

assustadora que aparecia na janela do avião, para o pavor do John Lithgow, durante o

último segmento do longa-metragem. Foi de uma forma curiosa como cheguei a ver esta

cena. Meus pais tinham recém ligado a tevê e as imagens eram de uma pessoa gritando

que tinha algo na asa do avião, um homem, um macaco, sei lá. Eles pensaram que era

uma comédia. Eles me falaram, "acho que isso é uma comédia". "Se lembra? Tinha

aquelas Histórias Incríveis, algo assim. Acho que é que nem isso". O que é uma comédia

para dois adultos, não necessariamente será para um pirralho de dez aniversários. As

aeromoças achavam aquilo engraçado, viam o passageiro como um completo maluco. A

sombra na asa parecia cada vez mais próxima. Então o monstro finalmente apareceu na

tela, bruscamente, colando o rosto contra o vidro, e eu não conseguia desgrudar os olhos

da televisão. Apertei minhas unhas no cobertor e permaneci hipnotizado pela imagem.

Por que ele abriu a janela do avião? Por que ele não conseguiu se acalmar? Devia ter

desistido dessa história. Se eu visse um monstro do lado de fora, fecharia aquela droga,

antes que sua cara estivesse quase junta ao meu rosto. Por que ninguém acreditou nele?

Por que só ele via o bicho, duende, seja lá qual classe de ser aterrorizante ele faça parte

de?

Mas isso foi há cinco anos atrás. Depois do incidente, nunca mais consegui dormir

olhando para algum lado que não o da janela do meu quarto. Alguém tinha que ser o

guardião do quarto, não? Tal ritual já era automático para mim, me deitava virado para a

direita sem nem me lembrar o porquê de tal ação. Porém nesta semana sofri

freqüentemente de insônia, o que me trouxe à memória toda esta história. Esta noite é

uma versão piorada desta regra: a minha persiana encalhou lá em cima e não desce de

jeito nenhum. Sempre que a empregada a puxava demais, trancava. Geralmente alguém

consertava antes da noite, mas isto não ocorreu. Não hoje. Isso significa que eu posso ver

árvores se mexendo e criando sombras sinistras projetadas no meu armário, ou seja,

reflexos dos monstros que aguardam do lado de fora. Adicione uma semana mal dormida

no jogo e verás como é fácil confundir a realidade com a fantasia.

Sinto-me sem saídas. Afinal, se tentasse dormir em outro lugar, lá também teria

janelas. Como as do avião. O que pode se dizer sobre uma pessoa que se sente mais à

vontade em um local hermeticamente fechado do que num quarto com vista para a

cidade? Qualquer janela é como a do avião, pequenas portas de entrada para uma

paranóia infundada. Dormir ali no meinho dos meus pais, naquela confortabilíssima

cama? Afastei essa possibilidade desde que eles me reduziram a pedacinhos, dizendo

que eu já não tinha mais idade para fazer uma coisa estúpida destas. Este evento foi há

Page 23: Antonio Xerxenesky - entre

três anos atrás. Então... vou tentar manter uma relação mais racional com minha janela –

ficar me assegurando mentalmente de que ficar em pânico devido a um trauma de

infância envolvendo um filme de terror é bastante patético e, é claro, que monstros não

existem.

Uma olhada no relógio, aperto o botão que acende a luzinha. 2:22, dou uma breve

risada, sempre que olho o relógio vejo horas engraçadas assim. O riso nervoso de um

insone medroso.

Engulo fundo, pois juro que vi alguma coisa passar rapidamente pela janela.

Poderia ser um pássaro, um morcego, mas não para mim. Levanto-me da cama e vejo

realmente um vulto agachado na árvore em frente ao meu prédio. Não chego nem a

pensar em tudo que poderia ser, pois, a meu ver, era claro, óbvio. Em vez de correr para

a sala, a cozinha, o quarto dos meus pais, me enfio na cama (em vez de sair, entro) e

aguardo, pois cedo ou tarde ele iria aparecer, então que fosse hoje mesmo, penso,

apertando cada vez mais os cobertores e afundando dentro deles. Eu sabia o que me

esperava, mas não queria raciocinar sobre o assunto. Isso faria com que visse a cena de

fora: um guri com quinze anos na cara, morrendo de medo de um sujeito vestido numa

estúpida roupa de borracha que me apavorou em um filme assistido há um século atrás.

Ridículo.

Mas eu juro que ele apareceu. Ele levantou a janela e entrou no meu quarto. Era

tão verde que chegava a brilhar, e tinha aquela cara de um duende que acabou de

cheirar meio quilo de cocaína (um rápido flash da cara do Al Pacino em Scarface). Poderia

descrever o que sucedeu, mas nunca ficou realmente claro para mim - nunca soube

encontrar na minha memória imagens dos eventos que se passaram, ou sequer a

sensação, que hoje em dia imagino ter sido de perda. O que me restou de objetivo foi

uma análise posterior, feita na manhã seguinte. Descobri que ele, o duende, o monstro

verde e feioso, tinha levado meia dúzia de brinquedos meus. Uma reclamação comum de

meus pais era de que um garoto da minha idade não deveria mais ficar brincando com

essas porcariazinhas de criança. Foram bem aqueles de que eu mais gostava. Talvez seja

sempre assim. Eu pago até hoje um psiquiatra charlatão por causa disso. Mas pelo menos

agora consigo dormir olhando para o teto, e, de vez em quando, até para o lado da porta.

Nunca vou me esquecer que, naquele avião, o passageiro, e apenas ele, via o monstro.

Page 24: Antonio Xerxenesky - entre

urbe

“The devil poured his concrete/

'Cross all our empty fields”

The Silver Mount Zion Orchestra & Tra-la-la Band

Para Ieve

Cena: dois amigos, jovens, olhando o sol se pôr no mar de uma belíssima praia

paradisíaca em alguma ilhota hipotética qualquer (eu não sei o nome dessas coisas para

citar exemplos). Eu sei que tu, leitor, estás imaginando que os dois jovens são membros

da classe média, afinal é um tanto óbvio falar sobre a burguesia com uma "ironia

mordaz", como algum (qualquer) crítico adora escrever. Infelizmente acertastes, são de

classe média. Não os chamo de burgueses, pois não estamos em um filme italiano da

década de 60. Mas bom, como tu achas que eles estariam lá nessa praia paradisíaca?

Não foi fazendo carreto.

Peço perdão pela divagação inútil e tentativa de comédia absolutamente

frustrada, e continuo. O que segue, basicamente, é o diálogo entre os dois.

- Nossa. Como é lindo esse pôr-do-sol. Eu acho que eu vou tirar umas fotos,

garotos.

Essa foi a mãe de um deles. Desculpa não ter avisado sobre esta terceira

personagem. Ela abandona o cenário.

- Eu não vejo graça nenhuma nesse tipo de fotografia. Todo mundo já viu alguma

foto assim. É uma das coisas mais batidas do universo. Todo mundo vê uma paisagem

"linda" e tira várias fotos. Daí, anos depois, revê as fotografias, pulando bem rapidamente

pelas imagens desse tipo e querendo logo olhar as pessoas.

- Que, por sinal, estão sempre com sorriso congelado e pose.

- É.

- Isso é parte de uma conspiração, sabia?

- Ah, claro. Das empresas de filmes de máquina, para que possam nos vender

mais?

- O.K., eu estava brincando. Mas pensa só. Deve haver algum interesse externo,

para que esse tipo de coisa acabe se tornando banal.

- Hmmmm. Acho difícil. Pois pense só: esse monte de fotos e vídeos e filmes com

fotografia premiada só por filmar locações exóticas deve alimentar muito o turismo.

Quantos não saíram por aí para ver essas coisas? Veja a tua mãe, por exemplo.

- Mas será que em algum momento até mesmo a classe média com a mente mais

fechada possível não vai encher o saco? A mídia está saturando demais essa coisa toda.

- Hmm. Acho que agora começo a entender onde tu quer chegar, mas isso até que

não me irrita. O que realmente me irrita é a poesia.

- A poesia?

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- É. Quer dizer. Noventa porcento das poesias falam sobre o mar, o vento que leva

as coisas embora, o rio que corre e nunca é o mesmo, o sol que brilha como um ‘sei lá o

quê, a lua, o luar que se espelha na imensidão do oceano. As estações! Quantas

metáforas sobre como depois do inverno vem a primavera e assim por diante... Mas é

muito mais raro ler poesia... urbana. E pessoas como nós não conseguimos nos identificar

com toda essa coisa natural. Nós chegamos aqui nessa praia e não conseguimos ter a

mesma epifania que poetas séculos atrás tiveram. Porque parece que estão cobrando

algo de nós. Parece que cobram nossa estupefação, nossas fotografias, nossos gritinhos

de admiração.

- A gente tá fugindo do assunto quase por livre associação, mas eu tô me

divertindo. Então, diz aí, como as coisas deveriam ser?

- Talvez, se fizessem mais poesias urbanas, sobre sei lá, prédios. Neon. Outdoors.

Poluição.

- Mas fazem. E é sempre a mesma merda. Aquela coisa que fica criticando a vida

capitalista, a tecnologia desumana e todo aquele blablablá social-democrata.

- Exato, porque eles não enxergam a beleza nas coisas. A beleza da falsidade

total. Do pregador televisivo cobrando o dízimo. Do telemarketing e seus atendentes

quase robóticos. Uma vez que a pessoa captar a aura do declínio da vida urbana com um

olhar de admiração, as coisas, aí sim, poderão começar a mudar.

[breve silêncio]

- Mas é um tanto difícil ver a beleza nisto.

- Mas não é exatamente isso. É ver a beleza no curso da coisa toda. Nas regras do

jogo, não nas peças em si. No fato de que estamos participando de algo importante, a

queda de um Império, mesmo que abstrato. O planeta vai ser recapado. Por que nunca

escreveram sobre isso? Eu me esqueço às vezes o que tem por baixo do concreto.

Caminha-se pela cidade e se esquece o que há por baixo, porque não se vê mais a terra,

a rocha, ou seja lá o que for. Só o concreto ou o asfalto. E se sabe diferenciar os dois

facilmente, com a maior naturalidade. E isso, meu caro, é a coisa mais linda da história.

Estamos nos entregando. Não há batalha, e se houve, já perdemos. A beleza está na raça

humana seguir o caminho da entropia, pelo menos a civilização ocidental. Parece que

estamos cumprindo nosso destino, fazendo o que sempre deveria ser feito. As coisas

parecem certas.

- Encontraremos a felicidade na desordem.

- Não a felicidade. Mas um sentimento de ... de... prender a respiração. A

felicidade seria depois.

Depois?

Voltam para o hotel e tentam dormir um pouco. Um diálogo tão inverossímil assim

cansa.

Todo caso. Depois? A questão:

Mas. Onde está o deslumbramento?

- É isso o que eu quero dizer. Que quando cantarmos a beleza deste declínio,

vermos que sim, este é um grande momento na história, muita coisa está acontecendo,

Page 26: Antonio Xerxenesky - entre

somos partes de algo tão grande, a união de todos nossos países pela mesma causa, a

caminhada rumo ao fracasso... algum dia alguém irá dizer: hum, tipo, hum, tu se lembra?

Existe um mar, um sol, o luar dos amantes que se beijam seminus, paisagens de tirar o

fôlego, sentimentos, um sentimento, e daí vamos nos sentir deslumbrados, ficaremos

estupefatos, porque estaremos redescobrindo, e afinal é tudo isso que nós queremos,

redescobrir.

Page 27: Antonio Xerxenesky - entre

pensamentos aleatórios de uma tarde banhada em tédio

ICONOCLASTIA

Se fosse para apagar um conceito, apagaria o de “utilidade”. O desgraçado está

acabando com toda a graça da divagação.

HARMONIA

A noção de um ‘movimento harmônico simples’ é uma idealização. Aparentemente na

vida real tal coisa não existe, pois o fio possui uma massa não-desprezível, a partícula

não é uma esfera perfeita, sem contar o maldito atrito na corda. A harmonia e a

simplicidade foram destinadas a existir apenas na abstração. Como alguém ainda

consegue sonhar em ser cientista assim?

UMA IMAGEM – UMA PEQUENA NOTA SOBRE CRIATIVIDADE

Um homem pulando sobre um tubo de pasta de dente, esperando que algo ainda saia de

lá.

DECEPÇÃO

A maior fonte de traumas do homem moderno é a descoberta de que tu não conseguirás

viver fazendo o que gostas. Se rende dinheiro, muito provavelmente é enfadonho.

Trabalhos chatos e burocráticos são estáveis. Escritores na praia, teclando em

computadores portáteis, são lendas. Como esperam que um adolescente saiba o que

quer fazer no seu primeiro vestibular? Ainda há aquela ingenuidade de imaginar que os

advogados gritam ‘Eu protesto!’, do altruísmo dos médicos, por mais que todos digam

que não é assim que funciona, aquela lengalenga do ‘lá fora é uma selva’, ‘ó mundo

cruel’. Aceitar que precisas trabalhar é um passo importante para a maturidade, leia-se,

para se tornar um pouco mais insensível. Aponte-me quem adora arquivar processos, que

lhe mostro um pintor rico.

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sobre viagens no espaço

I.

Um relato como o meu não pode ser contado de uma forma padrão, convencional.

Ele se encaixa tão bem na poesia, que deveria ser narrado assim. Quase como um épico,

pensando bem, como um épico. Remete à mitologia, com seu heroísmo e...

Eu nunca fui muito bom em mitologia.

Nem em poesia.

II.

[tentativa número 1]

Nós estávamos no espaço

Estávamos (iríamos para)

Vamos atrás do motivo para um motivo

alguém falou para alguém que falou para alguém, até que caiu em nossos ouvidos a frase

‘o universo funciona como um arco-íris’

te lembra das histórias?

no fim do arco-íris

o que tinha (jazia) lá?

tesouro (beleza)

então que isto tudo começou com ela me dizendo

(e ela me disse)

assim:

chegando ao fim das 7 cores encontraríamos.

encontraríamos (mas o fim não era o fim, mas o centro)

&

que se algum dia chegarmos ao centro do universo

encontraremos Deus

e é claro que eu acreditei

porque tu pensa só

o centro da Via Láctea é repleto de matéria escura

que atrai tudo, tipo um buraco negro, eu acho que é um

buraco negro por sinal, mas eu não tenho certeza.

II[b].

Isto está ridículo. Já que detesto os parnasianos com seus sonetos em versos

alexandrinos e rimas ricas, acho que qualquer bobagem organizada de forma

desorganizadamente organizada é poesia. Não sei em quem botar a culpa, o Haroldo de

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Campos é um cara legal, não quero ofendê-lo. Posso culpar meus pais, mas seria um

tanto óbvio e sem sentido (talvez por isso óbvio). Decido por quebrar este parêntese e

retornar ao meu relato.

III.

POR CONSEGUINTE se o centro de nossa mísera galáxia é uma coisa tão forte assim

(buracos negros, devido a sua enorme massa, têm uma gravidade tão forte que não

deixam a luz escapar, ou seja, a Vescape > 3x10 na quinta potência [em km/s]), imagina

como deve ser o centro do universo, e aí iniciamos nossa jornada.

Porque Deus deve estar nas coisas mais marcantes do universo. Deve ser o

espetáculo que todos nós esperávamos. Nebulosas multicoloridas fotografadas pelo

Hubble que saem nos cadernos de ciência dos jornais (que ninguém lê, mas acha bonito

quando folheia por cima) são uma pequena prova disto. Deus será o maior

acontecimento, o maior espetáculo, mesmo que nos deparemos com um buraco negro e

sejamos espaguetificados em frações de milésimos.

Peço desculpas pelo vocabulário técnico-esquizofrênico. E pelas digressões e

tentativas poéticas fracassadas. Eu acho que isto tem um motivo: quero convencer os

que agora lêem este relato a acreditarem que a coerência é a maior vilã de todas. Pois,

se nos deixarmos vencer pela coerência, nunca vamos acreditar. E, para acreditar,

precisamos nos ajoelhar perante o desconhecido? Não, perante a beleza. Porque é isso

que é, no fim das contas, nosso transcender, é o último prazer estético (!). Nesta busca,

temos que ser desconexos. Mas eu não sei se acredito nisso. Crises de fé ocasionais,

geralmente solucionadas pelo humor exagerado e histérico. Mas não.

Tentarei ser mais convencional ao contar minha história, peço mil desculpas,

desta vez pela minha indecisão. Meu nome é

IV.

(na verdade isso não interessa) e era/sou um cientista. E adorava dizer que era um

cientista, pois imaginava que todo mundo imaginava que todo mundo imaginava que

todo mundo imaginava que cientistas eram aqueles caras que nem nos desenhos

animados, com cabelo desarrumado e tubos de ensaio na mão. Eu era, talvez, esse cara.

Só que sem os tubos de ensaio. Na verdade, a vida científica é bastante entediante.

Ficamos só na abstração de cálculos e nunca realmente vemos o que importa. Por quê?

Porque estamos sendo científicos. E a verdade, eu descobri, ela não vem junto com a

ciência. Vou mais adiante e vos digo que a ciência está repelindo o que realmente

merece importância, sua atenção, coisa que talvez os intelectuais nunca perceberão [eles

dançarão no grande baile que seu ranço acadêmico organizará no final do ano].

Por isso decidi abandonar a lógica.

Para encontrar a ordem na ausência desta.

Page 30: Antonio Xerxenesky - entre

O que realmente aconteceu: estou aqui nesta nave em direção ao centro do

universo para encontrar minha maior realização, que não será bem minha, pois é algo

superior, algo sagrado e essas coisas todas.

V.

Tivemos um começo turbulento, nave decolando, contagem regressiva comprida

demais, por que não começaram a partir do dez?... fiz bem em pular as partes chatas. Eu

prometo que agora tu vais gostar. Pois sabes o que acaba de acontecer? Consigo ver o

planeta Terra cada vez mais longe, à medida que nossa nave vai se afastando deste

bobinho lugar. Ó, que vista. Minha tripulação (sim, eu sou le grand capitão, é claro,

consegues me imaginar de outra maneira?) é formada por pessoas como eu, apenas mais

bonitas e maquiadas. Claro, não tão inteligentes. O silêncio aqui dentro é tão barulhento

que meus nervos se emaranham quando penso nas chamas que nos propelem pelo

espaço. Para conseguirmos atingir uma velocidade adequada, teríamos que pegar um

atalho no espaço-tempo, não ir mais rápido que a luz, mas ir num... nesse atalho. Ou

talvez poderíamos gerar um wormhole que nos enviasse em uma viagem pelo tempo.

Como chegaremos a nosso destino? Nunca cheguei à conclusão alguma, elas me

pareciam inúteis. Quando a hora chegar, saberei o que fazer e todos obedecerão com

uma cega confiança. Algo me diz que a hora chegou.

XXXXXXXXXXXXXXX Além do propulsor, das peças metálicas batendo com a

perda da gravidade, de todos os sons que nos lembram metais, o metal, o metálico, o

futuro, havia os das pessoas, a minha estimada tripulação, e esses se perdem e chegam

enroscados no meu ouvido, permitindo que eu escute apenas barulhos do que parece ser

uma estranha estática. Se tivessem desistido aí, jogado a toalha, se não fizessem

sentido, ah. As interferências destas ondas sonoras, em suas destruições & construções,

acabaram criando uma mensagem, e a mensagem me assusta. Era um padrão repetido

de pequenos blocos de ruídos, meu pequeno código Morse para iniciantes, Morse

figurativo, Morse icônico, que lembrava um giz riscando o quadro negro. Esta seqüência

me foi interpretada como: "Não há centro do Universo. Ele é homogêneo. Isotrópico.”

VI.

A memória foi cravada assim (tão de repente). Aquela aula de física, quando

descobri que o céu não era para ser escuro: o fato dele ser assim é um grande mistério,

um paradoxo. Nesta mesma aula me disseram que o Universo não tinha centro. E o Big-

Bang, e tudo aquilo? Acho que já entediei vocês o bastante com tantos jargões, nem me

darei ao trabalho de explicar. Afinal, estou deprimido demais para tal. Minha missão

é/será/foi (confuso o tempo por aqui, não?) arruinada pela razão, novamente.

VII.

Page 31: Antonio Xerxenesky - entre

Minha gargalhada adquire um volume inapropriado e o fracasso me enche de

angústia. Por que voltar para a realidade, por quê? As paredes da nave, eu noto como são

malfeitas, e isso me irrita. São as pequenas coisas que quebram minhas ilusões, as

minúsculas, as microscópicas, não!, desculpa, errei, errei, quis dizer, quis dizer, as

pequenas em outro sentido, no sentido de que, depois que as percebi, não mais as

consigo ignorar, a imagem da porcaria real me volta, me volta. Joguei uma cadeira contra

a parede. Ela rasgou-se facilmente, mostrando ser feita apenas de papelão, cartolina e

umas folhas de alumínio. Caminhei, praguejando, em direção a ela, e olhei através do

buraco recém-formado. As luzes da câmera me ofuscaram, lembrei-me dos flashes dos

jornalistas, eu acho que alguém tá achando graça nisso tudo, tirem essa porra de luz da

minha cara. Não tiraram. Não permitiram que focasse direito minha visão no diretor, que

aparentemente estava ocupado discutindo o roteiro com alguém. Conversar com ele teria

sido legal, será legal, foi legal, é legal. Não.

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mantras para serem repetidos ad infinitumouum guia de sobrevivência através da auto persuasão

Ele não agiu por mal.

Ele está apenas fazendo o seu trabalho.

Ele não faria uma coisa dessas.

Toda forma de paranóia tem raízes no egocentrismo, de achar que tudo gira em torno de

nós, apenas nós. Nenhuma paranóia é real.

Essas mudanças de temperatura são normais. Nossos pais é que são esquecidos e

inventam histórias que na época deles as coisas eram diferentes.

Aposto que isto tem um sentido, nós é que não sabemos qual é.

A vida não é de toda ruim.

Relações humanas não são cíclicas.

Relacionamentos amorosos podem ter finais felizes.

A existência tem sentido, ou melhor, por que me preocupar com isso?

Eu sou capaz de realizar meus sonhos, apenas não acredito em mim.

Preciso elevar minha auto-estima.

Preciso pensar em coisas alegres.

Preciso me imaginar na praia, olhando o mar e sentindo aquela deliciosa brisa.

..

A culpa é toda minha.

No final tudo vai ficar bem.

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querido diário,

A festa já havia começado quando eu cheguei. Acho que fui um dos últimos a

aparecer por ali, afinal, nenhum conhecido meu parecia estar faltando. Todos, todos,

todos estavam lá. Com tantas pessoas por metro quadrado é de se imaginar que a

cerveja estaria em falta, mas ela parecia infinda.

A atmosfera de prazer e alegria beirava o palpável, como se um grande calor

humano formasse uma esfera ao redor do salão. Estava assim, desde o momento em que

cheguei até agora, umas três ou quatro horas depois. Sinceramente não agüento mais,

quero ir para casa, mas não posso, pois prometi dar carona para meio mundo, e agora

não tenho coragem de dizer ‘tomem um táxi’, até porque provavelmente estão sem

dinheiro. Já era para estar amanhecendo, de acordo com meus cálculos. Esqueci o

relógio, e o resto dos convidados pelo jeito também: fui perguntando um a um e ninguém

tinha. Celular com relógio? Deixaram em casa. Todos.

‘Toma uma cerveja’. Não posso. ‘Por quê?’. Tô tomando remédio e dirigindo, vai

dar merda se eu beber. Será que vou encontrar alguma pessoa triste nessa porcaria? Não

tem ninguém sentado no canto emburrado. Os que costumavam ficar assim hoje estão

embriagados. Talvez daqui a pouco tudo isso termine e daí dê para ir para casa dormir.

Fico andando em círculos, embasbacado com a quantidade de pessoas conhecidas que

vou encontrando perambulando pela festa. Todos me perguntam o que aconteceu, mas

ninguém realmente presta atenção, pois estão demais absortos com sua própria

descontração, mergulhados até o nariz na aura esférica de felicidade. Essa atmosfera

cresce de tal forma que me torno invisível dentro daquele sistema. Posso lançar um

míssil contra meus próprios pés, que nada será perturbado ou sequer percebido.

O salão era em uma cobertura, e debruçando-me, olhando a cidade, finalmente

localizo um relógio na rua. Estava no topo de um poste, era daqueles que indicavam

também a temperatura. De que me adianta, ele está parado, pensei. Há um tempão

mostrando que são 3:40 da madrugada. O tempo escorre viscosamente, era o que

sempre me diziam, porém a realidade provou ser muito pior do que isto. Mais horas

transcorreram e não amanheceu, nunca. O tempo, como o conhecemos, cessou de

existir. Restou a ilusão de movimento aplicada à dimensão temporal.

Cogito uma série de possibilidades do que poderia estar acontecendo, e concluo

que devo estar no inferno. O inferno não são ‘os outros’, é a diversão dos outros.

Agachado neste canto eu assisto a vida passar, sei que está ocorrendo uma grande festa,

mas não posso participar dela, não consigo. Também não posso me embriagar, me

desligar, esquecer. Estou condenado a passar a eternidade aqui, em qualquer lugar,

desde que fora, longe, distante, sem interação com o interior, onde algo acontece. Flutuo

aqui, consciente & inerte, no limbo, na ausência das ações & reações.

Para meu falso entretenimento, i.e., para minha total desgraça, a esfera é

transparente. Serei sempre este voyeur, que por mais esforço que faça, o máximo que

conseguirá será colar o rosto na tela, acreditando que talvez assim, que talvez

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empurrando forte, que talvez esperneando e gritando, que talvez um dia, que talvez um

momento, faça parte.

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ondas curtas

Para Douglas Dickel,

que me convenceu a não apagar a história.

Foi em uma das noites mais frias daquele ano que Davi se viu sozinho. Tinha

chovido fortemente durante o dia, só acalmando com a chegada das estrelas que não

chegaram (estava muito nublado, mas elas estavam lá, podiam ser sentidas ((ou

imaginadas) ou sonhadas))). Ainda assim, quando olhava para um poste de luz,

percebiam-se finas gotas de chuva traçando uma trajetória imprevisível.

Todos na parada pareciam estar tão consumidos pelos seus pensamentos que

eram capazes de perder seu ônibus, se a chegada deste não causasse tamanha

estranheza. Eram quase como fantasmas. Davi observava a luz de seus faróis

percorrerem as finas poças do piso molhado e, só depois deste ritual, olhava para cima

para tentar distinguir o nome da linha. O seu finalmente chegou, mas, curiosamente,

estava com o letreiro apagado. “Houve um problema”, informou o cobrador pela janela,

pouco antes de dizer qual era a linha.

Davi pensou no ônibus como um moderno trem, de tão rápido que ele percorria a

vazia cidade. Imaginou a chuva levando embora tudo e todos, dos ratos aos humanos,

das baratas aos pedaços de metal, forçando-os a se recolherem em seus aposentos

abaixo da terra. Ninguém mais ia para os altos. Aquele ar congelado, aquela atmosfera

de filme noir, tudo indicava que era quase uma nova cidade, que nada tinha a ver com o

ontem, onde o sol surpreendeu e desnudou os habitantes, que saíram pelas ruas exibindo

suas mangas curtas com uma certa alegria.

“Só Porto Alegre para ter um clima louco desses”, comentou o cobrador. Davi viu

pelo espelho retrovisor que o motorista havia assentido com a cabeça. Com o rosto quase

grudado ao vidro, perdeu-se em pensamentos até o fim da viagem, sentida como

horrivelmente curta.

Foi no elevador que sua solidão escapou da área do negável. Ia ser a primeira vez

que dormiria sozinho em anos.

Sua janela tinha vista para uma boa parte do Centro. Caminhar em sua direção foi

seu primeiro ato após largar as chaves. De lá, viu sombras e vultos refletidos em prédios,

de dinossauros percorrendo as calçadas. Podia, inclusive, sentir o pulsar do som de seus

passos ressoando nos vidros da janela.

Buscou sua câmera fotográfica e entreteve-se disparando fotos, mantendo o

obturador aberto por quinze segundos. As luzes dos carros formavam um desenho que

lhe tocava como absurdamente familiar.

O tédio parecia uma entidade física, que surgia como um tipo de iluminação (ou

uma ausência de iluminação) que nadava pelo apartamento. A vida era uma questão de

saber como matar o tempo, pensou Davi.

Olhou para o lado e viu fios metálicos enrolados na janela. Seguiu-os visualmente,

até fixar-se em seu rádio de ondas curtas, que havia comprado semanas atrás em uma

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cidade do interior. “Por que alguém ia querer uma velharia dessas?”, perguntou-se em

voz baixa o antigo dono, surpreso que Davi havia demonstrado interesse de compra no

objeto.

Estes rádios de ondas curtas são famosos por captar estações de diversos pontos

do planeta. Claro que tal fato só era possível depois de escutar-se muita estática na

tentativa de sintonizá-lo. Na esperança de enganar o tempo, para que este não parecesse

tão pesado e imponente, foi exatamente o que Davi pôs-se a fazer. Como imaginado, os

ruídos de estática surgiram, abafando os passos de dinossauros e preenchendo o

apartamento com seu sutil estalido ritmado.

Passou por uma rádio alemã que, pelo teor histriônico das vozes, deveria estar no

momento dos comerciais, depois por uma japonesa ou chinesa, da qual não pôde deduzir

nada sobre o que estava sendo dito, e finalmente parou em uma que parecia ser inglesa.

Supôs ser desta nacionalidade pelo sotaque. Desde a infância, como todos os jovens, foi

bombardeado por inúmeras músicas dos Beatles, portanto reconhecer o sotaque

britânico era uma tarefa quase natural.

O que escutava parecia um informe do governo, pelo tom solene e pela repetição

de frases sobre “o futuro do país”. Começou a escutar com mais atenção depois de

perceber a palavra “confidential” sendo repetida pela segunda vez. Aparentemente, um

grande perigo havia sido descoberto pelos laboratórios de uma universidade.

Tentou aumentar o volume, mas não ousou mexer na sintonia, temendo perder a

estação. Era algo incrivelmente sério e preocupante, e isto estava impresso até mesmo

na voz quase robótica do locutor. Uma avalanche de dados científicos surgiu, desabando

pelas ondas sonoras, das cristas aos vales, com muita intensidade. Mesmo com seu

conhecimento básico do assunto, o que compreendeu, assustou-o de maneira tal que sua

garganta secou e seus pêlos eriçaram-se como os de um felino.

Em um ímpeto exagerado, bateu no botão de ‘desligar’. Passou a andar em

círculos, roendo furiosamente as unhas, tentando organizar suas idéias. O que a estação

inglesa anunciara era sério, muito sério, e ninguém acreditaria em Davi. Por que ele

deveria crer também? Poderia ser uma piada. Lembrou-se da história que seu pai lhe

contou sobre o Orson Welles, que havia lido trechos de “Guerra dos Mundos” na rádio e

com isto fez que muitos acreditassem que alienígenas haviam desembarcado aqui. O

fator que diferenciava aquele caso do seu é que parecia que as palavras transmitidas

pelo rádio sempre estiveram dentro dele, como um segredo que preferia esconder até de

si mesmo.

Um planeta não muito distante foi detectado estando em blueshift. Para poder

analisar o movimento de planetas distantes, é realizada uma análise espectroscópica,

onde se costuma encontrar astros com um deslocamento para o vermelho, o chamado

redshift, que significava que este estava se distanciando de nós. Portanto, um blueshift

representaria o exato oposto: um planeta vindo em nossa direção, sabe-se lá de que

tamanho. Atravessando o Universo e colidindo logo aqui. Nunca lhe passou pela cabeça a

incoerência destas informações: percebia a notícia como esperada, como se a sintonia

encontrada no aparato fosse a freqüência de suas próprias sinapses.

Page 37: Antonio Xerxenesky - entre

Sua tarefa, tão clara que era, o fez ignorar tudo que era superficial e dançar cada

ato de modo preciso. Nada de pausas para gastar tempo com o nada, goles de chá

gelado que não lhe ofereceram muito, conferir o e-mail que nunca chegou. Sabia que

precisava dormir como meio para um fim, o de sonhar. Ingeriu no seco o Valium

guardado na gaveta e esperou com os olhos fechados.

A espera pôde ser considerada desprezível. Quando olhou novamente para cima já

estava no sonho, observando o planeta no céu. Caminhou pelas redondezas de seu novo

habitat, seu novo mundo, procurando detalhadamente por detalhes, mas não os

encontrou. Perambulava por uma superfície rugosa, sem cor, dotada de um padrão

infalível e simples, e este se expandia até onde a luz permitia enxergar. A fonte desta

luminosidade era o corpo celeste em blueshift que o mirava, retribuindo a confusão em

seu olhar. Nada mais seria o mesmo. Admitindo para si mesmo que não sabia como agir,

decidiu sentar-se para admirar a entrada deste intruso na superfície de sua nova casa.

Esperava um espetáculo de cores, esperava coisas, esperava muitas, esperava

mudanças, esperava algo, fogos de artifícios não artificiais, chuvas de humores, cometas

fazendo loopings, uma lógica diferente, uma forma diferente, melhor ou pior, diferente.

Reclinou-se mais, deitando, e permaneceu inerte, assistindo calmamente àquele mundo

tornar-se parte do seu.

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sobre as máquinas

Trabalhar em um motel não é um trabalho deprimente como todos imaginam,

disse Arthur. É até emocionante, falou, pensando no número trinta e quatro, segurando

um copo de cerveja, enquanto se espremia no meio de uma multidão que lotava a festa.

A garota à sua frente manteve o olhar de asco que havia adquirido segundos antes.

Nunca revelar onde se trabalha, pensou Arthur, ou pelo menos nunca afirmar que é legal.

É engraçado o lugar onde tu acabou indo trabalhar hein? Logo tu, que não é

exatamente um Don Juan, hein? Essa era sua colega de trabalho falando, Raquel, não a

moça com ele conversava numa festa (com quem foi infelizmente sincero na sua

resposta “com o que tu trabalha”). Foi um pequeno fast-forward (FFWD em certos

controles remotos) não anunciado. Voltando à Raquel, ela era uma faxineira aspirante à

psicóloga, como todas. Desde que os dois se conheceram no tal motel, a moça insiste em

conhecer todos os detalhes da vida privada de Arthur. Este insiste que nada há de

interessante nela. Não viveu nenhuma grande paixão. Não sabe como agradar as

mulheres. Não, ele não se interessa por homens. Não, ele não é obcecado pela sua mãe.

Sua virgindade se deve à conjunção de inúmeras coincidências e um punhado de azar.

Raquel gostava de se considerar uma secretária, pois suas atividades não se restringiam

à limpeza dos quartos. Entregava champanhe, camisinhas e outros brinquedos eróticos

nos passadores, e, é claro, limpava o que chamava de ‘a diversão alheia’.

Faxineira/secretária/psicóloga, ela concordaria que era um bom resumo.

Arthur estava cansando dessa intimidade estranha que estava criando com sua

colega de trabalho. Nunca se relacionou bem com mulheres, mesmo sem segundas

intenções. Havia uma certa dificuldade de dialogar com o sexo oposto que o deixava

constantemente constrangido, e essa garota absurdamente feia, ele pensava, ainda vem

aqui me atrapalhar mais a vida com suas infindas perguntas. Arthur se lembrou, do nada,

de um acontecimento no mínimo inusitado que ocorrera algumas semanas antes. REW.

Qual é a tua principal insegurança hein? Tu acha que teu troço é pequeno, é isso? No

meio da pergunta ela colocou de solavanco sua mão na virilha de Arthur. Ele a empurrou

com os pés. Ela voltou. Ela tentou abrir o fecho da calça dele. Arthur correu. Literalmente.

“Como uma criança”, ela gritou pra ele. E se um cliente ouve? Que merda. Da onde

surgiram meus traumas? Eu tento lembrar da infância, mas é tudo enevoado. Na

verdade, acho que não tive nada de especial. Na verdade colocar a culpa em outros

fatores é besteira. Tudo sempre é minha culpa. Se não fossem meus medos, eu não seria

mais virgem. Meus medos fizeram com que me relacionasse com as mulheres erradas. E

eu sento e analiso meus medos. E quando eu digo, “é isso, eu descobri”, daí semana que

vem eu descubro outra coisa que invalida a anterior. Mas digo, “essa é mais profunda”. E

vou nessa espiral de abstração. Eu mergulho nela, seguindo as curvas sempre iguais,

mas cada vez mais distantes. Cada vez mais subjetivo, cada vez mais profundo. Sempre

vai haver um medo mais em baixo. Eu nunca vou descobrir a fonte de tudo. Eu devo a)

aceitar isso e aprender a lidar com esse fato ou b) continuar reclamando da vida. Escolhi

b), com certeza. Eu não sou uma pessoa a). Nunca vou ser. Nunca.

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Voltando pra Raquel, voltando ao mundo da 3ª pessoa. Ela disse que tudo

começou quando trabalhava em um grande consultório de psiquiatria. No horário do

almoço, um certo médico não tinha tempo para ir até em casa e voltar, então sempre

almoçava no consultório junto com Raquel. Ele tentou explicar os prazeres da tentativa

de entender a mente humana, utilizando-se de um vocabulário simples e uma entonação

de um pai contando uma história. Raquel foi demitida três meses depois, por acusações

de roubo de três obras do Freud. Ainda bem que nunca perceberam que eu levei O

homem e seus símbolos, do Jung, disse ela. Acho que esse eles nunca deram muita bola,

mas minha mãe adorou as coisas que eu contei, que eu li pra ela.

Arthur! Hmm? Tu já viu Taxi Driver? Não, o que é isso? É um filme. O Fredy,

quando trabalhava aqui, uma vez me disse que tu era igual ao carinha do filme, que no

final acabou se matando e vendo uma anja no seu táxi, ou algo assim. Ah bom. Arthur era

responsável pelas reservas, cadastros, entregas de chaves e outras questões chatas do

gerenciamento do motel. Também era responsável por atender os telefonemas, atualizar

o site na internet e assim por diante. Pelo menos paga bem, ele ficava se repetindo

mentalmente, tentando acreditar nessa bobagem. O motel basicamente consistia

daquela mesinha com duas cadeiras, um computador e um telefone, e o resto eram

praticamente apenas corredores e portas. Hoje eu vou ter que sair mais cedo, ela disse.

Acho que a guria do próximo turno só vai chegar daqui a uma meia hora.

Era tudo que Arthur precisava ouvir. Ele andava muito obcecado com o quarto de

número 34 já há alguns meses. Ele sempre via o mesmo homem chegando, cada dia com

mulheres diferentes e escolhendo sempre o número 34. Qual é o segredo desse cara,

pensava. Não eram prostitutas, ou pelo menos não pareciam. Toda noite. Como? Talvez

ele tenha bastante dinheiro (quem pode pagar um motel diariamente, só pode ser rico),

mas ele não parecia rico (se fosse, provavelmente iria a algum lugar mais chique), dirigia

um carro popular, e as mulheres não pareciam, sei lá, interesseiras, pelo menos era o

que Arthur pensava. Ver aquele sujeito ordinário (ele parecia quase cinza, de acordo com

sua imaginação), pegando a chave do 34 sempre pelas 22 horas intrigava Arthur a um

ponto que qualquer pessoa que não ele conseguiria imaginar.

REW. Semana passada, quando caminhava pelas ruas ensolaradas, viu um aviso

de aparelhos de investigação. “Suspeita do seu marido/namorada /colega de trabalho?

Por apenas R$150...” foi o que leu. Tinha os 150 reais. “O trabalho paga bem”, repetiu

mentalmente pela quinta vez no dia. O kit era composto de um grampo telefônico e um

sistema de escuta, que era o que mais interessava. A curiosidade matou o gato?

Aconteça o que acontecer, perder o emprego pode vir a ser lucro. FFWD. No dia anterior,

quando Raquel disse que ia ao banheiro fazer o número dois, o que costumava demorar

quinze minutos, Arthur tirou os equipamentos da embalagem terrivelmente brega, entrou

furtivamente no quarto 34, olhou a cama redonda perfeitamente arrumada e escondeu a

escuta embaixo dela. Saiu de lá girando a chave prateada no dedo. “Hoje eu vou ter que

sair mais cedo”, disse Raquel, depois de empestar o banheiro de serviço provavelmente

por horas. As coisas não podiam ser melhores. Assim que Raquel bateu a porta e apenas

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ele ficou ali cuidando do setor, colocou os fones de ouvido (que tinha escondido em uma

gaveta do balcão), e ligou o pequeno aparelho rádio-transmissor.

Será que essa droga tá com defeito? Barulheira dos infernos. A primeira

interpretação que criou sobre as ondas sonoras que ouviu - pertence a um grande

monstro. Sim. É isso. Eram gritos guturais ritmados, que poderiam ser usados em um

filme de terror. Esse cara é o demônio. Um pensamento um tanto retardado, cogitou. Sua

compreensão posterior do áudio foi de que, na verdade, escutava máquinas trabalhando.

O vai-e-vem dos pistões de fábricas. O típico barulho que se ouvia/sentia de noite

passeando pela zona industrial da cidade. REW. Sozinho no local, às quatro e meia da

manhã, os ruídos fantasmagóricos tiveram um efeito aterrorizante em Arthur, que tirou

os fones o mais rápido possível e aguardou, tremendo, a chegada da outra ‘secretária’

para poder ir para casa.

FFWD. No dia seguinte, Arthur chegou nervoso ao trabalho. Raquel já estava lá e

disse “tá agindo estranho hoje, hein”. Por quê? Porque sei lá, o teu jeito de caminhar.

Escuta, Raquel, o que tu acha do cara do 34? O mulherengo? É. Por que tu quer saber? Tu

não costuma me fazer perguntas. Tem algo estranho aí. Arthur sentiu um arrepio subir

pelos seus braços. O que tu acha dele, ora, é uma pergunta tão simples, não sei o que

tem demais, isso não significa que eu esteja agindo de forma estranha, ora bolas. Calma,

só perguntei! Ué, sei lá o que eu acho dele. Mas tu entende da cabeça das pessoas, não?

Sei lá, acho que é viciado em sexo, qual o crime disso? Mas como ele consegue tantas

garotas? E eu vou saber?

[Uma breve pausa]. Só acho uma coisa. Deve ser repetitivo pra caramba, né?

Como assim? Oras, uma guria diferente de cada vez. Mais um pouco todas vão parecer a

mesma. Uma boneca inflável futurista. A experiência vai se tornar repetitiva, sem graça.

Eu, sabendo dessa vida ativa dele, nunca me meteria a trepar com o cara. Bom, talvez

uma vez, por curiosidade. Mas ele deve ser igual a um operário numa fábrica, apertando

botõezinhos, e eu não gosto da idéia de ser um pedaço de metal.

“Como trabalhar numa fábrica” ecoou na sua cabeça. Arthur resistiu à tentação de

contar para ela sua suposta alucinação, então engoliu suas palavras e permaneceu

quieto até a saída de Raquel. Ué, não vai embora? Não, vou esperar, fazer hora extra. Se

o chefe souber que eu fiquei até de manhã talvez eu ganhe um aumento, sei lá. Tô sem

sono. Tem café aos baldes aqui. Raquel fez uma cara de “hm, tá bom”, sacudiu os

ombros e foi em direção à porta. Té amanhã. Divirta-se.

Barulho de carro. Arthur, afobado, olhou pela janela da entrega de chaves e viu o

sujeito do 34, coberto em sombras. Uma ruiva ao seu lado, que não aparentava ter mais

de 18 anos. Não é como se pedissem carteira de identidade, mesmo. Aguardou 10

minutos, entre tremidas de pernas e roídas de unhas, e colocou os fones de ouvido. O

mesmo som, na mesma intensidade, no mesmo ritmo. Isso não é defeito, isso não é

defeito. Horas antes tinha testado os fones e eles funcionavam normalmente. Uma

imagem da fábrica que existia ao lado de sua casa quando era criança lhe veio à mente.

REW. Lembrava-se da noite, da insônia infernal, de sair no pátio e ficar escutando as

máquinas, de pensar naquela grande estrutura de concreto e metal como um organismo

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vivo, exalando os ruídos que seriam, ou sua respiração, ou seu batimento cardíaco. Sua

curiosidade estava rompendo limites dos quais nunca tinha tomado conhecimento.

FFWD. Como num transe, Arthur controlou as pernas, calmamente procurou a

chave reserva do quarto 34 embaixo do balcão, e começou a andar pelo corredor mal

iluminado. Subiu as escadas sem acender a luz, mas não tropeçou em momento algum.

Ao enxergar a placa com o número 34, finalmente recordou-se do pavor da noite anterior,

mas achou que era tarde demais para voltar atrás. Reuniu o que restou de coragem e foi

até a frente da porta. Tentou antes olhar através da fechadura, mas tudo a que viu foi o

metal prateado da chave nela cravada. Com a mão tremendo freneticamente, encaixou a

chave reserva e destrancou a porta. Seus olhos estavam acesos de lágrimas. Escancarou

a porta e viu o futuro.

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nosso pequeno campo de batalha

“Então, você não pode reescrever, porque reescrever

é enganar e mentir, você trai seus próprios

pensamentos.

Repensar o fluxo e o ritmo, the tumbling out of the

words, é uma traição, um pecado.”

Do filme Naked Lunch, dirigido pelo Cronenberg e

baseado no livro homônimo do William Burroughs.1

> > não2

acordar é um saco em especial quando uma guerra está ocorrendo por aqui.

pela minha janela assisto aos helicópteros pretos descarregarem caras vestido de preto

que descem por rapel e pela minha janela assisto caras vestidos de preto descendo por

rapel de helicópteros pretos

esta é a frente da minha casa, seja bem-vindo

esta é a frente da tua casa, como tu não notou?

Eles não estão atrás da gente, não. Eles querem o que está atrás da casa. Por isso eles

vão ter que atravessar por aqui pelo meio estuprando nossa privacidade. É a única

maneira de pegar os alienígenas que pousaram ali no quintal, nos fundinhos. Onde uma

nave espacial redonda e fininha pousou, de onde saíram serzinhos cinzas & cabeçudos.

Todos eles com armas de raio laser desintegrador, as armas são armas que tem círculos

e círculos multicoloridos e formato retrô [esses marcianos estão na moda].

ser marciano é in, me disseram. ser porco é out.

e eles querem travar uma batalha que vai ocorrer aqui nesta central de resistência, é um

saco estar entre entre entre entre

é um saco acordar, eu não quero

eles tentaram me vender roupas eles tentaram me vender armas eles tentaram me

vender

eu não me vendo não, eu disse.

1 Não sei se a citação existe no livro. Pode ter preconceitos comigo, eu deixo, eu VI O FILME, mas não li o livro. Processem-me.2 Não. Sempre foi uma das minhas palavras favoritas. Tanto pelo seu significante quanto pelo seu significado. Pena ser tão difícil de dizer. Não não não não n - pelo menos é fácil de digitar.

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eu não me vendo não, disse minha esposa.

Mas!

Eles são imbatíveis, indetíveis, inparáveis [e outras palavras que não existem no

dicionário].

Eles estão abrindo malas & malas mostrando mais e mais coisas, mas a gente tá é de

saco cheio como eu já disse antes, a gente não quer nada, tente entender.

Marcianos para operadores de telemarketing, que tal? Eu gostei, mas eu sou meio

bobinho. Espero que você não seja, espero que você tenha preconceito contra ficção-

científica B, com arminhas laser, que ache isso tudo uma bobagem. Que você seja sério e

só goste de arte com questões psicanalíticas no meio. Que você deteste o nonsense o

fluxo de consciência os caras que não colocam vírgula quando deveriam os caras que não

gostam de usar crase nem trema espero que você tenha vinte livros pesados pra caralho

de gramática e não use nenhum como apoio de mesa. Espero que você ache ficção-

científica B um lixo. Porque eu não acho, porque os marcianos realmente estão aqui, os

policiais não param de disparar contra eles, e do que adianta se as balas não perfuram

seus corpos cinzas? Do que adianta adiantar adianta adiantar adiantar o relógio umas

horas antes e voltar a REdormir para talvez quando eu REacordar não tenha marciano no

quintal ou policial na frente. Mas eu tava tendo um pesadelo tri ruim eu não quero repetir

isso talvez voltar um pouco mais talvez mudar talvez sonhar o que eu quiser, talvez

controlar meu sonho, talvez controlar minha realidade, talvez re|sonhar talvez re|acordar

talvez re|ver o mundo talvez talvez mudar a realidade para o que eu quero que ela seja,

talvez sonhar com isso, talvez sonhar que eu possa mudar a realidade conforme meu bel-

prazer mas talvez não sirva para nada talvez os marcianos não vão embora talvez eles

tenham vindo para ficar e talvez eu nem esteja tão aí quanto a isso porque talvez soe

natural para mim afinal os marcianos, eles sempre estiveram aqui no meu quintal, desde

que eu nasci eu vejo os marcianos, na tevê, no rádio, é normal, oi marciano, tranqüilo?

Vai uma cerveja? Os policiais, eles sim, eles não existem, eles podem sumir com um

piscar de olhos, vai ser uma coisa a menos, não vai ter um campo de batalhas, vão ser só

marcianos passeando pela minha casa mijando no meu banheiro brincando com o meu

cachorro assistindo a tevê no meu sofá. FILHOS DA PUTA! Eu quero AAAAAA AAAAAA AAA

XXXXXXXXXXX

RETARDADOS||| COMO EU DETESTO

VOU DESLIGAR O TELEFONE NA CARA DELES HAHA ISSO SERIA BEM CRUEL.

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flerte

Uma vez eu conheci uma garota

que flertava com o surrealismo.

(que) nunca tinha lido Breton, nem eu.

Não sabia o que Eles diziam que era, nem eu.

Mas ela flertava e seu flerte era o único verdadeiro.

Passava a maior parte do seu tempo nele.

Quando rejeitada, recebia o choque.

Tão acostumada com a (i)lógica do sonho, seus curtos exílios na realidade eram um

baque.

Diziam que ela deveria se preocupar com o social.

Diziam que ela deveria se preocupar com a nação.

Diziam que tinha gente passando fome enquanto ela

rabiscava e dançava.

Diziam que ela não podia passar a vida Lá.

Diziam que isso não era viver.

Pois eu discordo.

Eu quero que ela seja sempre assim.

Seu romance com o irreal era mais puro e intenso que qualquer patético e histérico

sentimento terreno possível de se ter.

Ela não usava máscaras, nem ele (A sinceridade transcendia rostos cobertos por sacolas

de papel pardo padronizado ppp).

Afastá-la desta pureza seria como .............

Não devem.

Vou lutar para impedir que Eles façam isso.

Vou colocá-la embaixo de minha asa e vou perpetuar seu flerte, nunca deixarei que

desviem seu olhar.

Porque eu não sou imparcial na história.

Porque às vezes eu me sinto igual a ela.

E eu gosto disso.

A vida é curta demais, e geralmente não proporciona as melhores vistas para o mar.

Só nessa veia poderemos nos expandir e criar ramos e ramos e ramos e ramos.

Eles nunca nos vencerão, enquanto tivermos lápis de cor o suficiente na caixa. E eu olho

para baixo e vejo que esta desce rumo a algo, talvez tudo.

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#34

Jabilowahlubiuagarramrrambrafwarrg.

(sinta-se livre para inserir uma citação do Baudrillard).

Tudo é uma cópia de uma cópia de uma cópia [ainda não].

A palavra que digitei ali em cima provavelmente nunca foi digitada antes. Ela contêm 34

caracteres. O alfabeto possui 26 letras. Não me lembro como se faz análise combinatória.

Mas seria algo como 26 x 26 x 26..., 34 vezes, pois posso repetir (e repeti) os caracteres.

Acho que mais ou menos 26 na 34ª potência. Isso daria, mais ou menos, 1,28 x 1048.

Existe uma chance de repetir essa coisa em um vírgula vinteoito vezes dez na

quarenteoito. A possibilidade, então, de alguém que deseja digitar uma palavra

incoerente de 34 caracteres, teclar a mesma palavra que eu, é absurdamente pequena.

Porque aquele número lá em cima é grande pra cacete. E quantas pessoas no mundo se

prestam a ficar espancando o teclado em busca de palavras novas? Poucas. E quantas

criariam logo uma de 34 caracteres? Menos ainda. Agora... dessas pessoas, será que

alguma vai digitar:

Jabilowahlubiuagarramrrambrafwarrg.

?

É minha minha minha minha.

Minha criação, só minha, eu posso olhar para ela e ver que sou original, que fiz algo

nunca antes pensado, digitado, escrito, lido. Estou oferecendo, definitivamente, uma

experiência única ao leitor. As frases? Se repetem. As idéias. Mais ainda. Agora Jabilo…

não. Provavelmente nunca foi feita antes. Eu quero abraçá-la bem forte, aproximá-la de

meu coração, trepar a noite toda com ela, porque ela é minha só minha só minha só

minha ainda existe originalidade no mundo e eu sou um ser com um dom, um dom para a

criatividade inovadora (pioneira? Revolucionária? Subversiva? Catártica? Apoteótica?

[patética?]

(não seria melhor apagar isso tudo?).

-não existe mais nada para ser criado!

-talvez seja por pensar isso que tu não consegues escrever um livro bom.

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justaposição dimensional

I.

R., pingando de suor e olhando o relógio, decidiu entrar naquele prédio. Ficou no

lobby, esperando o porteiro se distrair. O sujeito de meia-idade tinha um olhar perdido

que dava a impressão que dormia de olhos abertos. Abaixou-se para pegar algo,

escondendo-se atrás do balcão. Esse é o momento, pensou R., e caminhou em direção ao

elevador com um passo indeciso e nervoso. Estava de porta aberta, ali no térreo, apenas

aguardando a entrada de algum passageiro. Panorâmico, R. apenas invadia prédios com

elevadores panorâmicos. Apertou os botões 12, 13 e 14.

O sol ainda estava longe de nascer. A cidade transpirava naquela que parecia ser

uma das noites mais quentes do verão. Um líquido viscoso escorria pelas laterais dos

prédios. Os arranha-céus tocavam as nuvens, as provocavam, na esperança de

convencê-las a fazer chover.

A cada andar que parava, um ruído exagerado saía dos mecanismos da porta que

abria e, naquele momento, R. tinha a possibilidade de vislumbrar um corredor escuro e

vazio, e, no fim de cada, duas portas. Chegando ao décimo quarto piso, apertou os

botões 15, 16 e 17.

II.

Insone, L. passeava pelo seu apartamento propositalmente mal-iluminado.

Percorrendo a sala de jantar, ela se perdia no escuro a cada cinco passos, e se via na luz

novamente a cada outros três. Sentou-se no sofá, cansada. Ficaria bêbada, se não fosse

uma atividade tão trabalhosa e chata. Pensou no marido dormindo na cama de casal,

respirando com dificuldade, emitindo sons nojentos, mas não era mais casada, não

morava mais acompanhada, não havia ninguém na cama, e isso não era motivo de

tristeza. Ainda assim, imaginou ele ali. Pensou ter escutado o elevador parando no andar

de baixo. Com o silêncio daquela noite, todo som era amplificado. Instantes depois, o

mesmo ruído, só que mais alto. Morava no único apartamento do prédio que ocupava um

andar inteiro. O elevador, portanto, havia parado ali. Viu pelas frestas da porta que as

luzes do corredor foram acesas. Empurrou os calçados e caminhou, descalça, até a porta.

Tocou na chave, cogitou trancar a porta. Escutou uma respiração a poucos metros de

distância. Ainda assim, não encontrou forças para chavear a porta, selar a entrada.

Assistiu a um grampo passear de forma afobada pela fechadura. A maçaneta girou

lentamente, como governada por um fantasma, e a porta abriu, empurrando L. para o

chão.

III.

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Havia uma mulher atrás da porta. Eu acabei empurrando-a pro chão, e olha que

não abri com muita força. Deve ser leve ou frágil ou ambos. Havia uma mulher atrás da

porta, assim como tinham câmeras espalhadas pela entrada do prédio. No final das

contas, quem se importa?

IV.

Havia um homem estranho entrando em meu apartamento. Eu tinha caído de

fraca, e estava ali, com cara de idiota, olhando para ele. Eu não gritei, e nem quis. Havia

um estranho no meu apartamento, assim como havia outra mulher no apartamento do

meu ex-marido. No final das contas, quem se importa?

V.

R. nunca tinha feito isso antes. Ele passou toda sua vida esperando que algo

fantástico acontecesse, e esse momento nunca chegou. É adequado dizer que toda sua

existência girou em torno do tédio: como enganá-lo, fingir que ele não existe, e assim por

diante. Todas suas ações foram nada mais do que uma lenta (e perdida) luta contra a

monotonia. Nos últimos três meses, passara as noites acordado, perambulando pela nada

segura cidade. Começou a invadir prédios, especialmente os com elevadores

panorâmicos. Subia até o último andar e ficava contemplando a cidade. Adorava os dias

de chuva. Tentava, ocasionalmente, fotografar os raios e relâmpagos, mas não havia

clique seu que fosse rápido o suficiente. Toda a vida fora da cidade era uma ilusão,

cenários montados em estúdios. Nunca tinha ido ao campo ou saído da cidade, nem

conhecia alguém que tivesse feito tal coisa. Os prédios sempre existiram, e sempre

tocaram as nuvens. Nada havia fora da cidade. Imaginou que, talvez, alguma noite

invadiria um prédio tão alto que passaria por cima das nuvens e que lá, então, estaria

tudo que existe fora da cidade.

VI.

L. não sabia que morava na cidade, pois sempre morou no apartamento.

Acreditava que, à saída do prédio, tudo que encontraria seriam outros apartamentos.

Estava convicta de que a imagem vista do elevador panorâmico era uma projeção

holográfica.

Quando R. apareceu em sua porta, L. pensou que seria ele quem a levaria para

conhecer a cidade.

VII.

Quando viu L. jogada no chão, R. pensou que seria ela quem o levaria para longe

da cidade.

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esboço para um romance ambientado nos anos 60

Temos nosso protagonista, a quem chamaremos de OSVALDO (um nome sério e

respeitável). Ele anda paranóico em relação à famosa bomba. Bomba A. Ainda não sabia

sobre a bomba H. Tem pesadelos constantes sobre vazamentos de radiação em usinas

nucleares. Entrou em pânico quando encontrou uma pilha AA guardada numa gaveta há

dois anos, coberta de um líquido verde gosmento. OSVALDO é amigo de um sujeito tri

legal, o sr. CARLINHOS (um nome descolado e popular). CARLINHOS é um adolescente

bastante diferente de nosso protagonista. Em vez de ficar preocupando-se com possíveis

desastres, com a União Soviética e com outros países com nomes difíceis de pronunciar,

quer “curtir a vida”, o que na visão estereotipada que restou da época significava

“experimentar de tudo”.

CARLINHOS decide tomar ácido lisérgico, apesar de OSVALDO tentar convencê-lo

do contrário. Vendo que CARLINHOS não mudaria de idéia tão cedo, decide pelo menos

estar junto dele, ser o “cara responsável” e sóbrio para cuidar do amigo, evitar que ele se

jogue na frente dos carros e todos os demais desastres que imaginou como possíveis.

É aí que entramos na parte principal do romance: o senhor CARLINHOS ingere sua

dose e começa a sofrer alucinações. Nosso protagonista está suado, preocupado com o

amigo, quase tendo um ataque de nervosismo, afinal achava que tudo poderia acontecer,

sem contar que seus nervos já eram desregulados por natureza. Lembro-me agora de

avisar que a narrativa deve ser em primeira pessoa, para poder transmitir um verdadeiro

sentimento de pânico. Eis que CARLINHOS passa a descrever as coisas que percebe. Suas

visões tratam-se de explosões, luzes fortes entrando pela janela. OSVALDO, nosso

estereótipo de paranóico começa a compartilhar da viagem de nosso querido

personagem bidimensional hippie, i.e., vivencia a realidade deturpado de CARLINHOS.

OSVALDO começa a achar que está acontecendo o apocalipse nuclear, e suas

certezas vão aumentando a cada descrição de CARLINHOS. Pensando bem, talvez isto

ficasse melhor em um conto, mas quem escreveria de forma que não ficasse ridículo? As

visões prosseguem, passando por homens de duas cabeças, lesmas gigantes, e culminam

no pior: CARLINHOS disse que começou a ver OSVALDO como um mutante, igual àqueles

exibidos em capas de livros de ficção-científica pulp e de filmes B de terror da época.

Bom, esta história carece de um final. O que nosso protagonista poderia fazer? Uma

possibilidade era transformar este fim em um começo da história da vida de OSVALDO,

que teve sua percepção alterada para sempre. Ou seja, agora ele se crê um mutante, e

tem que aprender a lidar com tudo que isso acarreta, do se olhar no espelho até o ato de

sair na rua. Muito óbvio e sem muito para onde ir, acho melhor não. Ou podemos suicidar

o personagem. Mais óbvio ainda. Ou suicidamos OSVALDO e fazemos a história continuar

pela narração de CARLINHOS e seu sentimento de culpa. Podemos fazer um final

surpresa, com uma revelação bombástica feita por CARLINHOS, onde ele conta aos

prantos ter fingido suas alucinações só para fazer uma brincadeira com OSVALDO, pois

não achava que ele levaria tão a sério, quanto mais compartilharia de suas visões. Agora

CARLINHOS está para sempre manchado pela culpa e lembra-se dos anos 60 com muito

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pesar. Tornou-se um cara chato que fez Direito e passou em um concurso que o levou a

realizar trabalho burocrático 8 horas por dia até a aposentadoria. De qualquer maneira,

eu nunca saberia escrever essa história. Ainda bem, talvez.

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querido diário, (parte 2)

Pulávamos ao ritmo da música. Não.

Na verdade estávamos fora do ritmo. Não. Na verdade não pulávamos, fazíamos

algo estranho. Não. Na verdade, nos movíamos da maneira que parecia ser a correta de

acordo com o que restava dos nossos instintos. Há pouco, nossos sentidos estavam

exagerados (nos agarramos como se um cometa fosse atingir a Terra em questão de

segundos – não ocorreu). Agora nossos instintos estavam exaustos, o fim do mundo não

tinha chegado e talvez nunca fosse chegar, porque eu e tu bem sabíamos que nunca

teríamos coragem de causar o fim do mundo (e ele só depende de nós). No final das

contas, era deprimente nos assistir, pois embora meu corpo estivesse em movimento, eu

via pelo reflexo dos olhos dos outros que meu corpo era apenas uma projeção (fora de

foco) na pista de dança. E era triste nos ver, e me deixou com um gosto amargo prestar

atenção ao fato de que não conseguia prestar atenção, não, não, de tão desnorteado que

estava. A música parecia não ter fim, e talvez não tivesse mesmo. A batida podia mudar,

a melodia também, mas ela continuaria e nossos corpos tentariam em vão acompanhar.

Se abalássemos nossos sentidos um pouco mais, poderíamos acreditar que estávamos

conseguindo, que venceríamos, que estávamos nos adequando ao ritmo. O equilíbrio é

tão fino – ser estúpido o suficiente para não ficar triste, esperto o bastante para querer

continuar assim – nunca aprender ou nunca tentar se mover.

Tem certos momentos em que acho que não vou mais agüentar. Esse é um deles.

Sinto que estou deslizando, me afastando do equilíbrio (que talvez só tenha existido na

minha racionalização fútil, para não dizer idiota), porque talvez eu só queira achar um

sentido em todos os locais onde esse não existe, i.e., em todo lugar. A lógica é formal

demais para a vida, o fluxo de pensamentos nunca se adequará a ela, pelo menos o meu,

e tenho que conviver com isso, [ou] pensar as coisas com calma, não sei, na verdade não

quero, não posso e decidi que não vou parar, nunca.

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típica tarde tragicômica

Catorze anos não é uma idade legal. O governo deveria incluir no seu orçamento

um apoio psiquiátrico para pré-adolescentes, já que oferecem tantos serviços para idosos

e aposentados. Não é como se sofrêssemos menos. Se bem que deixa pra lá, nos

psiquiatras também não tenho muito mais fé. No final das contas, é algo muito superior,

e ninguém realmente vai conseguir te ajudar. Das poucas coisas que aprendi escutando

histórias do meu avô é que ninguém entende como eu me sinto. Para aquela geração,

tudo era óbvio e simples, dos pseudonamoros ao redor da praça até o catar de goiabas

bichadas nas árvores do quintal.

Não sei o que se passa com meu filho. Eu realmente quero entendê-lo, o senhor

sabe. Por que ele não se abre? Ele é tão conversador e simpático com todos que às vezes

acho que ele finge ter problemas apenas para chamar a atenção. Boas notas. O que inicia

isso tudo? Perco algumas noites de sono pensando nisso.

Mas exatamente o que...

É que eu temo o pior, sabe.

Meu pai acha que eu vou tentar me matar, ou algo assim, o que é um pensamento

bastante estúpido, uma vez que meus problemas situam-se no pólo oposto.

O problema do seu filho, se quiserem chamar assim, não tem relação alguma com

a morte, mas com a vida. Ele tem medo, sabe, de se soltar, sabe? Mas confiem em mim,

acho que estamos progredindo bastante na terapia. É uma questão de tempo até ele

confiar em mim para realmente expor o que há dentro dele que tanto o preocupa.

O psicólogo não consegue me acalmar. Essa normalidade é que me assusta.

É conhecida a história de um homem que ao entrar no elevador não percebeu que

este não estava em seu andar e caiu no poço, estatelando-se no chão. Demoraram dias

para encontrar seu corpo, o que só foi possível quando o cheiro se tornou forte demais. É

conhecida a história de um jovem que corria de kart quando seu cabelo prendeu no

motor traseiro, que sugou todo o seu couro cabeludo, junto é claro, com pedaço de seu

cérebro. Fico imaginando a expressão no rosto de seus pais (que nem sei se estavam

presentes) assistindo à cena. Tudo se passou em poucos segundos. Imagine sua criação

mais estimada, sendo grotescamente consumida na sua frente, sem que possas fazer

nada.

Tu acha que isso tudo é hipocondria?

Não, essa fase já passou. Doenças não são mais sua preocupação.

É conhecida a história de um casal de namorados que circulava pela cidade de

carro à noite, procurando um lugar para trepar. Foram seqüestrados por dois homens

com capuzes na cabeça, e o namorado foi forçado a assistir àquela pessoa a quem tinha

feito tantas juras de amor ser estuprada e torturada até a morte. Para logo depois, é

claro, também ser torturado e morto. É conhecida a história...

Eu achava que os pais se preocupavam com essas coisas. “Ai meu filho isso, ai

meu filho aquilo”. Se agasalha, não fale com estranhos, não beba do copo de mais

ninguém, cuida para ver se ninguém coloca nada na tua bebida...

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Essa eu nunca entendi, a da bebida. Deve ter acontecido uma vez na história.

Como se os malvados que existem pelo mundo afora gostassem de desperdiçar suas

drogas em manés como a gente.

O psicólogo dele me disse hoje que, quando ele vai ao consultório, os dois

conversam normalmente sobre os amigos, jogos de computador, etc. Ele raramente

demonstra essa paranóia que a gente tem.

... a mulher atropelada por um caminhão, cuja roda esmagou seu crânio...

Mas isso não pode culminar em um surto, algo assim?

... a televisão caiu na banheira de modo que...

Exatamente o que te preocupa?

Não sei direito...

Filho.

Oi.

Isso não é necessário.

Confiem em mim, é.

Fala com a gente.

O filho começava a pregar tábuas de madeiras na porta. Havia compras no chão,

sacolas e sacolas cheias de comida enlatada.

Filho, isso é tudo na tua cabeça, isso não vai adiantar, é um movimento ridículo

frente à vida.

Mas que papinho bem estúpido. Parece um psicólogo de televisão, ou ator de

novela falando.

A cena não era furiosa, a discussão não era em voz alta. O silêncio na casa que

era.

Vocês vão ter que confiar em mim.

Ele passou para a fase de tapar as tomadas elétricas. Como se define uma cena

dessas, pensou o pai. Beira o ridículo, o patético, mas como rir estando amarrado e

realmente vivenciando tal absurdo?

A vida definitivamente exige certas restrições. A geração anterior, a de vocês, é

que é lenta e ainda não percebeu. Não dá mais para andar pela pracinha de noite ou

caminhar pelo centro. Tu, pai, tu tá com esse sorriso no rosto, não por muito, tenho fita

ali para tapar essa boca, tu deverias me escutar, vocês dois, por que vocês não são como

pais normais, que são obcecados pela segurança do filho? Eu que tenho que me

preocupar com tudo? Caiam na realidade, finquem os pés no chão, a vida pode não ser a

mais divertida, mas ainda é a única que temos, por isso temos que protegê-la a todo

custo. Eu soltaria vocês, se me ajudassem a pregar essas tábuas na porta. Que tal esse

acordo?

Mas isto não aconteceu, exceto na imaginação diária do garoto de catorze anos,

quinze anos,

dezesseis anos,

dezessete anos,

dezoito anos,

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[...]

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entre

> pode ser um convite de entrada, um convite para compartilhar certo mundo e tudo que

esta palavra ou sensação acarreta.

> pode ser a noção de que nunca se é algo separado, diferente;

sempre estaremos fazendo parte: sempre estaremos entre uma coisa e outra, > sempre

se estará <preso> entre duas coisas, sejam elas parênteses, colchetes, chaves, flechas,

pedaços de madeira, palavras, sinapses,

ou barreiras.

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sobre os autores

Antônio Xerxenesky é um porto-alegrense nascido no fim de 84, estudante fracassado de

Física com destino incerto. Escreve desde os dezesseis, mas nunca realmente descobriu

como se faz isso. Suas principais influências são James Joyce, Philip K Dick, Julio Cortázar,

Jorge Luis Borges e Thomas Pynchon. Ama o cinema, onde é um fã de Jodorowsky, Sergio

Leone, Dario Argento e Wong Kar-Wai. Tenta tocar guitarra há anos, mas se dá pior do

que na prosa. Sério.

Detesta escrever em terceira pessoa. Seu vegetal favorito é o brócoli. Sinta-se livre para

enviar comentários ou spam para este endereço: [email protected]

Samanta Flôor é natural de Porto Alegre, mas considera-se pelotense. Atualmente tem 25

anos, mas faz desaniversário a cada 6 meses. É formada em arquitetura, mas não é

arquiteta. Prefere a forma à função e adora chocolate. Gosta de contar estórias através

de desenhos e rabisca como quem respira. Não consegue viver sem música. Atualmente

planeja uma fuga pra terra do nunca, mas isso é segredo.

Seu site pessoal é www.cornflake.com.br