António Vieira o Homem, A Obra, As Ideias

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Biblioteca Breve SÉRIE LITERATURA ANTÓNIO VIEIRA: O Homem, a Obra, as Ideias

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  • Biblioteca Breve

    SRIE LITERATURA

    ANTNIO VIEIRA:

    O Homem, a Obra, as Ideias

  • COMISSO CONSULTIVA

    JACINTO DO PRADO COELHO Prof. da Universidade de Lisboa

    JOO DE FREITAS BRANCO

    Historiador e crtico musical

    JOS-AUGUSTO FRANA Prof. da Universidade Nova de Lisboa

    JOS BLANC DE PORTUGAL

    Escritor e Cientista

    DIRECTOR DA PUBLICAO LVARO SALEMA

  • JOS VAN DEN BESSELAR

    ANTNIO VIEIRA: o homem, a obra, as ideias

    MINISTRIO DA EDUCAO E CINCIA

  • Ttulo Antnio Vieira: O Homem, a Obra e as Ideias ___________________________________________ Biblioteca Breve /Volume 58 ___________________________________________ 1. edio 1981 ___________________________________________

    Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da Educao e Cincia ___________________________________________

    DIVISO DE PUBLICAES Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Praa do Prncipe Real, 14-1., 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao, reservados para todos os pases __________________________________________

    Tiragem 4500 exemplares ___________________________________________ Distribuio Comercial Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora Portugal __________________________________________ Composto e impresso nas Oficinas Grficas da Livraria Bertrand Venda Nova - Amadora Portugal Julho de 1981

  • NDICE

    NOTA PRVIA.................................................................... 6 SIGLAS ............................................................................... 7 I / A COMDIA DA SUA VIDA..................................... 8

    1. Anos de preparo............................................................ 9 2. Pela salvao da Ptria ............................................... 16 3. O Pai Grande dos ndios ......................................... 35 4. Silogismos e Cruzes ................................................... 45 5. Velhice e morte na Baa.............................................. 58

    II / A OBRA LITERRIA.................................................. 66 1. Os Sermes................................................................. 67 2. Os tratados profticos ................................................. 71 3. A correspondncia ...................................................... 77 4. Os pusculos............................................................... 79

    III / AS IDEIAS .................................................................. 81 1. O realista fantstico .................................................... 81 2. O instrumentrio do exegeta....................................... 86 3. O artista ...................................................................... 96 4. Um grande corao................................................... 103

    NOTAS ............................................................................. 107 BIBLIOGRAFIA .............................................................. 109

  • NOTA PRVIA

    difcil comprimir, num livrinho de pouco mais de cem pginas, a biografia e a anlise da obra de um autor to complexo como foi Antnio Vieira. Eis a maior dificuldade que tive de vencer ao redigir este pequeno trabalho. Como evitar, por um lado, uma superficialidade impressionista e, por outro lado, uma enumerao de dados, talvez interessantes, mas, por virem acumulados, estreis? Fiz o possvel para fornecer aos meus leitores informaes seguras e indispensveis, sem deixar de lhes apresentar um retrato do homem e do escritor um retrato inevitavelmente algo subjectivo, mas, espero, sincero e honesto. A crtica dever decidir se fui feliz ou no nesta minha tentativa.

    Em vez de colocar no fim do livro uma antologia de textos vieirianos, julguei prefervel dispers-los pelo corpo do texto.

    Jos van den Besselaar

  • SIGLAS

    Os trechos citados no presente trabalho sero indicados da seguinte maneira:

    CARTAS Cartas de A. Vieira, ed. J. L. de Azevedo, 3 vols. DEF. Defesa de A. Vieira perante o tribunal do Santo Ofcio,

    ed. H. Cidade, 2 vols. HF Histria do Futuro (Livro Anteprimeiro), ed. J. van den

    Besselaar, 2 vols. SERM. Sermes de A. Vieira, ed. G. Alves, 15 tomos. VAR. Obras Vrias (ed. A. Srgio e H. Cidade), nas Obras

    Escolhidas, 5 vols. VIDA Vida do apostlico Padre A. Vieyra, por Andr de

    Barros. CARTAS, II 67 Cartas, vol. II, p. 67; e assim por diante. HF, VIII 19-23 Histria do Futuro, cap. VIII, linhas 19 a 23. Indicaes bibliogrficas mais detalhadas encontram-se no

    captulo II e no final deste trabalho.

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    I / A COMDIA DA SUA VIDA

    Numa carta dirigida a um confrade, em 1658, Antnio Vieira resumia as vicissitudes da sua vida nestes termos: No h maior comdia que a minha vida; e quando quero ou chorar ou rir, ou admirar-me ou dar graas a Deus ou zombar do mundo, no tenho mais que olhar para mim (Cartas, III, 718).

    De facto, a vida do jesuta foi, no uma comdia, mas um drama cheio de peripcias. E do mesmo modo que ao espectador de uma tragdia clssica as calamidades representadas no palco no parecem totalmente alheias ndole do heri, mas antes de algum modo por ele mesmo provocadas, assim ns, ao passarmos em revista as aventuras e transtornos da vida de Vieira, no podemos subtrair-nos impresso de que a causa principal do seu destino turbulento foi o seu esprito irrequieto. A vida do nosso autor foi uma srie de transes crticos e perigosos. Longe de os evitar, parece que andava procura deles para poder mostrar o seu brio de lutador.

    A vida de Vieira um romance que vale a pena contar. Mas existe outro motivo ainda para no a despachar em poucas palavras. possvel tratar e comentar as obras de

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    alguns autores sem entrar nos pormenores da sua vida. No caso de Antnio Vieira, tal processo seria injustificvel, porque quase todos os seus escritos esto estreitamente ligados a determinadas circunstncias biogrficas. Estas explicam aqueles; aqueles comentam estas. Grande parte das suas obras h-de escapar-nos fatalmente, a no ser que tenhamos uma viso global das condies concretas em que o autor as concebeu e elaborou. Vieira no era um ermito a meditar verdades transcendentes num cubculo hermeticamente fechado. Era um autor activo e militante que pegava na pena para fazer propaganda das suas ideias, para interferir no mundo e para combater as opinies que considerava nefastas sociedade em que vivia. A palavra e a escrita eram, para ele, uma poderosa alavanca para levantar as massas inertes, mostrando-lhes o caminho para um futuro menos rotineiro e mais humano.

    1. ANOS DE PREPARO Antnio Vieira nasceu a 6 de Fevereiro de 1608 em

    Lisboa, filho primognito de um modesto casal burgus. Seu pai era Cristvo Vieira Ravasco, natural de Santarm; sua me, Maria de Azevedo, moradora de Lisboa. A famlia tinha sangue limpo: todas as diligncias feitas pelo Santo Ofcio no sentido de lhe indagar os rastos de uma ascendncia judaica ou moura mostraram-se improfcuas. Pelas mesmas investigaes se tornou provvel que a av materna do futuro orador fosse mulata. O nico retrato de Vieira com alguma pretenso de autenticidade trai, de facto, feies nitidamente africanas. O pai era escrivo num tribunal em

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    Lisboa. Em 1609, embarcou para o Brasil (Baa), onde ia exercer o cargo de escrivo na Relao, deixando a mulher e o pequeno Antnio no Reino. A me ensinava, em casa, o menino a ler e escrever, preocupao decerto fora do comum num modesto lar portugus do sculo XVII. Segundo tudo nos leva a crer, a criana cresceu num ambiente de trabalho e deciso para progredir na vida. As aspiraes de vir a ser algum na sociedade no lhe vieram de gente estranha.

    Regressado a Portugal em 1612, Cristvo morou algum tempo em Lisboa, onde lhe nasceu o segundo filho. Dois anos depois, partiu novamente para a Baa, desta vez levando consigo a pequena famlia. Uma vez estabelecido na ento capital da colnia brasileira, o menino cursou as humanidades no colgio dos Jesutas. De acordo com o relato de Andr de Barros, primeiro bigrafo de Vieira, o rapaz, apesar de todos os seus esforos, no conseguiu inicialmente resultados brilhantes; mas, graas s oraes fervorosas que regularmente fazia imagem da Virgem das Maravilhas na S baiana, teve de repente uma iluminao mental: o famoso estalo de Vieira, expresso que ainda hoje em dia, de vez em quando, se ouve no Brasil.

    Quando Antnio tinha os seus quinze anos, pediu aos Padres para ser admitido na Companhia (5 de Maio de 1623). Essa fuga do mundo, originada por um vigoroso sermo sobre os castigos infernais, teria encontrado sria resistncia por parte dos pais. possvel que houvesse alguma resistncia deles ante o imprevisto do caso, mas julgo que ela no foi muito sria nem de longa durao. Os Padres no admitiam menores no noviciado sem o consentimento dos pais, e estes, por sua vez, no deviam tardar em reconhecer que a carreira eclesistica

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    oferecia excelentes perspectivas a um menino da sua categoria social. Sem apoucarmos a sinceridade da sua propenso para o estado religioso, podemos dizer que as aspiraes do rapaz no divergiam muito das dos pais. Diz Andr de Barros: Determinou-se pois a alistar-se na Companhia de Jesus, onde para cultivar seu engenho tinha oportunidade, para empregar seu esprito, ocasio (Vida, p. 10).

    O jovem novio passou algum tempo numa aldeia de indgenas, dirigida pelos Jesutas, onde, impressionado pelo trabalho evangelizador dos Padres, se props dedicar a sua vida converso dos gentios. Mas no durou muito tempo a sua estada no serto. Teve que voltar para a capital a fim de poder receber a uma formao espiritual e intelectual mais adequada. Ao entrar no segundo ano do seu noviciado, assistiu brusca invaso dos Holandeses na Baa, tendo de refugiar-se no interior da Capitania juntamente com os demais Padres, o Bispo e grande parte da populao.

    Eram as foras herticas e diablicas descarregadas do inferno pelo Holands; era a guerra santa que Portugal o povo eleito dos tempos modernos tinha de fazer contra os inimigos de Deus. E por que razo permitia Deus essa calamidade? Para punir os pecados dos Portugueses, pois que estes, repetindo a histria de Israel, se mostravam indignos da proteco divina. nestes termos que o jovem jesuta, dois anos depois, encarregado pelos seus superiores de escrever a Carta nua ao Padre Geral em Roma, descreve os acontecimentos do ano calamitoso de 1624. Nessa altura no podia prever que os piratas da Holanda lhe haviam de absorver grande parte dos seus cuidados durante mais de 25 anos.

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    Em fins de Abril de 1625, os Holandeses viram-se forados a retirar-se da Baa. Poucos dias depois, Vieira fez os primeiros votos. Foi nomeado professor de retrica no colgio dos Padres em Olinda, onde permaneceu dois ou, quando muito, trs anos. Voltou de novo para a Baa com o fito de seguir os cursos de Filosofia e Teologia, vindo a ordenar-se sacerdote no dia 10 de Dezembro de 1634. O decnio que precede a sua ordenao -nos pouco conhecido nos pormenores. S sabemos que ele, nesse perodo, alm de se dedicar aos estudos e ao ensino, trabalhou entre os ndios e que comeou a adquirir a fama de notvel pregador. O seu primeiro sermo que chegou aos nossos dias data de 6 de Maro de 1633, quando ainda no era subdicono. O assunto era de guerra, porque a Baa tinha-se transformado numa escola de Marte: o Holands, expulso da capital, conseguira apoderar-se de Pernambuco (Janeiro de 1630), constituindo uma sria ameaa para a sobrevivncia da Capitania baiana.

    Os Holandeses eram, no dizer de Vieira, abelhas colricas que, atradas pelo mel pernambucano, acometeram os canaviais do Brasil com fria mas consola-o a lembrana de que prprio das abelhas, em picando, carem mortas. Por enquanto, porm, o Brasil holands no dava nenhum sinal de enfraquecimento. Pelo contrrio, durante o governo enrgico e esclarecido de Joo Maurcio de Nassau (1637-1644), os intrusos chegaram a aumentar o territrio ocupado, conquistando grande parte das capitanias do Nordeste. Em 1638 fizeram grande esforo para reaver Baa de Todos os Santos, mas em vo. Ao cabo de quarenta dias tiveram de abandonar o seu intento. As perdas foram considerveis, sobretudo as sofridas em dois ataques nocturnos a uma

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    antiga trincheira portuguesa situada perto de uma capela de Santo Antnio, o qual, na expresso de Vieira, era pontual recuperador do perdido.

    Para celebrar a libertao da cidade de Salvador da Baa, Vieira proferiu dois sermes, dos quais o de Santo Antnio (Serm., VII 27-57) o mais interessante pela viva descrio das batalhas e pelas ousadas analogias que o pregador estabelece entre os sucessos recentes e os de tempos muito remotos, narrados pela Bblia. Tal relacionamento era coisa bastante comum entre os pregadores da poca, figurando com o nome de sentido acomodatcio de um texto bblico e, geralmente, aplicado sem a mnima pretenso de atingir o sentido histrico ou literal. No passava de um instrumento edificante e moralizador ou, ento, de um ornato meramente oratrio. Esses confrontos constituem um elemento quase integrante dos sermes vieirianos e parecem, por vezes, ter um significado mais profundo: os destinos de Israel repetem-se nos de Portugal, at nos pormenores.

    Um dos sermes mais famosos de Vieira o que pregou contra as armas da Holanda, quando, em Maio de 1640, o almirante Lichthart bloqueava cidade de Salvador. No dizer do enciclopedista Raynal, seria le discours le plus vhment et le plus extraordinaire quon ait jamais entendu dans une chaire chrtienne. , por assim dizer, uma tentativa de exorcismar a ira divina, em que o pregador se atreve a pedir contas a Deus pelos infortnios que ameaam sobrevir ao Brasil, e de O prevenir das calamidades irreparveis que sero consequncias inevitveis da vitria dos Batavos. Aqui bastar transcrever apenas um pequeno trecho do sermo:

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    Mas pois Vs, Senhor, o quereis e ordenais assim, fazei o que fordes servido. Entregai aos Holandeses o Brasil, entregai-lhe as ndias, entregai-lhe [] quanto temos e possumos (como j lhes entregaste tanta parte); ponde em suas mos o mundo, e a ns, aos Portugueses e Espanhis, deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos, acabai-nos! Mas s digo e lembro a Vossa Majestade, Senhor, que estes mesmos que agora desfavoreceis e lanais de Vs, pode ser que os queirais algum dia e que os no tenhais. []Abrasai, destru, consumi-nos a todos, mas pode ser que algum dia queirais Espanhis e Portugueses e que os no acheis. Holanda vos dar os pregadores evanglicos, que semeiem nas terras dos brbaros a doutrina catlica e a reguem com o prprio sangue; Holanda defender a verdade de vossos sacramentos e a autoridade da Igreja Romana; Holanda edificar templos, Holanda levantar altares, Holanda consagrar sacerdotes e oferecer o sacrifcio de vosso santssimo Corpo; Holanda, enfim, vos servir e venerar to religiosamente como em Amesterdo, Medelburgo e Flissinga e em todas as outras colnias daquele frio e alagado inferno se est fazendo todos os dias?! (Serm., XIV 311-312). Parece que Deus cedeu fora esmagadora desses

    argumentos: Salvador no caiu nas mos dos Holandeses. S num ponto o orador se enganou redondamente: trs sculos depois, quase mil padres holandeses estariam a trabalhar na vinha brasileira do Senhor.

    Um ms depois chegou Baa o Marqus de Montalvo, primeiro governador-geral do Brasil com o ttulo de Vice-Rei. No dia 2 de Julho, Vieira regalava-o com um sermo em que fustigava a incapacidade, a cobia e a corrupo dos magistrados vindos da metrpole e defendia, num repto de eloquncia admirvel, os direitos e interesses da colnia:

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    Desfazia-se o povo em tributos e mais tributos, em imposies e mais imposies, em donativos e mais donativos, em esmolas e mais esmolas (que at humildade deste nome se sujeitava a necessidade ou 1 se abatia a cobia), e no cabo nada aproveitava, nada luzia, nada aparecia. Porque? Porque o dinheiro no passava das mos por onde passava. Muito deu em seu tempo Pernambuco, muito deu e d hoje a Baa, e nada se logra; porque o que se tira do Brasil, tira-se ao 2 Brasil; o Brasil o d, Portugal o leva.

    Com terem to pouco do Cu os ministros que isto fazem, temo-los retratados nas nuvens. Aparece uma nuvem no meio daquela Baa, lana uma manga no mar, vai sorvendo por oculto segredo da natureza grande quantidade de gua, e depois que est bem cheia, depois que est bem carregada, d-lhe o vento e vai chover daqui a trinta, daqui a cinquenta lguas. Pois, nuvem ingrata, nuvem injusta, se na Baa tomaste essa gua, porque no choves tambm na Baa? Se a tiraste de ns, porque a no despendes connosco? Se a roubaste a nossos mares, porque a no restituis a nossos campos? Tais como isto so muitas vezes os ministros que vm ao Brasil, e a fortuna geral das partes ultramarinas. Partem de Portugal estas nuvens, passam as calmas da Linha, onde se diz que tambm refecem 3 as conscincias, e em chegando, verbi gratia, a esta Baa, no fazem mais que chupar, adquirir, ajuntar, encher-se (por meios ocultos, mas sabidos) e, ao cabo de trs ou quatro anos, em vez de fertilizarem a nossa terra com a gua que era nossa, abrem as asas ao vento e vo chover a Lisboa, esperdiar a Madrid. Por isso nada lhe luz ao Brasil, por mais que d; nada lhe monta e nada lhe aproveita por mais que faa, por mais que se desfaa. E o mal mais para sentir de todos que a gua que por l chovem e esperdiam as nuvens, no tirada da abundncia do mar, como noutro tempo, seno das lgrimas do miservel e dos suores do pobre, que no sei como atura tanto a constncia e fidelidade destes vassalos (Serm., IX 344-345).

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    No dia dos Reis de 1641 o pregador julgava-se capacitado para dizer ao Vice-Rei que a situao da colnia melhorara bastante: at os Holandeses encaravam atemorizados a nova fora moral e militar da Baa: Ah, Herodes holands! Ah, Jeroslima pernambucana! Como te vejo turbada e perturbada! (Serm., II 90).

    Se Vieira, nessa ocasio, tivesse sabido que Portugal se livrara do jugo castelhano, teria exultado muito mais. Mas a notcia da restaurao s chegou a Salvador em meados de Fevereiro. Duas semanas depois, o jesuta foi enviado a Lisboa como membro de uma delegao oficial, que devia render preito ao novo rei por parte da colnia brasileira.

    2. PELA SALVAO DA PTRIA Em Portugal comeava para o jesuta, que, com os

    seus 33 anos de idade trasbordava de energia, brio e iniciativas, uma carreira completamente nova. At ento no passara de um heri provinciano, que teria ainda de provar a sua capacidade de vencer na metrpole; dali em diante foi-se metamorfoseando numa figura de alcance nacional: como pregador nos plpitos da capital, como conselheiro do rei e at como enviado diplomtico. Este perodo mundano da vida de Vieira abrange, globalmente, os anos de 1641 a 1652. Foi uma poca turbulenta, cheia de triunfos momentneos e decepes duradouras, que podemos tocar aqui s de leve, visto que uma exposio minuciosa dos variados sucessos nos obrigaria a entrar a fundo nos diversos problemas complicados que o Portugal Restaurado teve que enfrentar nos primeiros anos da sua existncia.

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    Pouco tempo depois da sua chegada a Lisboa, Vieira foi apresentado a D. Joo IV, a quem agradou, desde o primeiro encontro, a lbia do jesuta. Entre os dois foi crescendo uma sincera amizade que nunca perigou. O monarca no tardou em convid-lo a pregar na capela real, onde ele proferiu o seu primeiro sermo no dia 1 de Janeiro de 1642. Dois anos depois foi nomeado pregador rgio. Nos numerosos sermes deste perodo da sua vida, Vieira no se cansava de animar o auditrio a perseverar na luta desigual com Castela, exortando-o a no poupar sacrifcios e prometendo um futuro glorioso ao Reino. No recuava em propor medidas concretas para a soluo dos problemas, inclusive algumas de ordem econmica. Alm de o estimar como pregador, o rei consultava-o em diversos assuntos, sobretudo em questes relacionadas com o Brasil, e defendia-o de vrios ataques.

    Quanto sua vida de religioso, podemos ser breves. Em 1644, Vieira proferiu os votos definitivos, depois de ter feito o terceiro ano de noviciado em Lisboa. O seu noviciado no podia correr normalmente: o jesuta devia estar oscilando entre o convento e o mundo. No de estranhar que o novo professo, ocupando uma posio excepcional entre os seus confrades, lhes causasse escndalo e at inveja, sobretudo depois das suas viagens ao estrangeiro, onde trocava a roupeta de jesuta pela gr de fidalgo. Por esses e outros motivos Vieira via-se ameaado, em 1649, de vir a ser expulso da Companhia, srio risco de que o queria salvar o rei, oferecendo-lhe uma mitra. Vieira recusou-a, escrevendo ao Secretrio de Estado: Que no tinha Sua Majestade tantas mitras em toda a sua monarquia, pelas quais ele houvesse de trocar a pobre roupeta da Companhia de Jesus; e que, se chegasse a ser to grande a sua desgraa que a Companhia o

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    despedisse, da parte de fora de suas portas se no apartaria jamais, perseverando em pedir ser outra vez admitido nela, seno para religioso, ao menos para servo dos que o eram (Vida, p. 25). Parece que esse protesto foi sincero: Vieira teve sempre um grande apego instituio religiosa a que aderira em menino. Seja como for, graas proteco de D. Joo IV o problema ficou resolvido e Vieira pde continuar na Sociedade.

    Ao chegar a Portugal, Vieira encontrou o Reino cheio de expectativas sebastianistas, no s entre os Padres da Companhia e a gente humilde, como tambm entre os prprios dirigentes da Restaurao. Um sebastianismo, sem dvida, diferente do tradicional, que teimava em esperar pelo regresso milagroso do rei cado em Alccer-Quibir, mas um sebastianismo adaptado s novas circunstncias, que identificava o Encoberto com a pessoa de D. Joo IV. Vieira, sempre patriota exaltado e convencido do papel histrico do povo portugus e, provavelmente, j antes vagamente sebastianista, perfilhou sem hesitar a nova verso do credo nacional. Os documentos em que os adeptos se baseavam, eram, alm do Juramento de D. Afonso Henriques, cuja autenticidade quase ningum punha em dvida, umas cartas apcrifas de So Bernardo, as profecias atribudas a So Frei Gil e as famosas trovas do Bandarra, o sapateiro de Trancoso. Com uma preciso que nada deixava a desejar, este ltimo teria predito o ano exacto da Restaurao e o nome do novo rei portugus:

    J o tempo desejado chegado, segundo firmal assenta. J se cerram os quarenta desta era que se ementa []

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    O rei novo levantado, j d brado, j assoma sua bandeira [] Saia, saia esse Infante bem andante! O seu nome Dom Joo (HF, VIII 164-178).

    Todos os elementos essenciais da f sebastianista de

    Vieira se encontram j, juntamente com a devida documentao, no seu Sermo dos Bons-Anos, de 1642, mas sem a meno explcita do Bandarra que, data da publicao dos sermes vieirianos, era mal aceite. Mas, como o leitor do trecho seguinte poder verificar, encontramos no sermo uma clara aluso ao celebradssimo ano de quarenta:

    So Frei Gil, religioso da sagrada ordem de So

    Domingos, naquelas suas to celebradas profecias, diz desta maneira: Lusitania sanguine orbata regio diu ingemiscet:

    A Lusitnia, o reino de Portugal, morrendo seu ltimo rei sem filho herdeiro, gemer e suspirar por muito tempo. Sed propitius tibi Deus: Mas lembrar-se- Deus de vs, Ptria minha, diz o Santo. Et insperate ab insperato redimeris: E sereis remida no esperadamente por um rei no esperado. E depois de assim remido, depois de assim libertado Portugal, que lhe suceder? Africa debellabitur: Ser vencida e conquistada frica. Imperium Ottomanum ruet: O imprio otomano cair sujeito e rendido a seus ps. Domus Dei recuperabitur: A casa santa de Jerusalm ser finalmente recuperada. E, por coroa de to gloriosas vitrias: Aetas aurea reviviscet: Ressuscitar a idade dourada. Pax ubique erit: Haver paz universal no mundo. Felices que viderint: Ditosos e bem-aventurados os que isto virem! [] No deixemos passar sem ponderao aquelas palavras misteriosas da profecia: Insperate ab insperato redimeris. De propsito reparei nelas, para refutar com suas prprias

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    armas aquela relquia, que dizem que ainda h daquela seita ou desesperao dos que esperavam por el-rei D. Sebastio, de gloriosa e lamentvel memria. Diz a profecia: Insperate ab insperato redimeris: Que seria remido Portugal no esperadamente por um rei no esperado. Segue-se logo, evidentemente, que no podia el-rei D. Sebastio ser o libertador de Portugal, porque o libertador havia de ser um rei no esperado [] e el-rei D. Sebastio era to esperado vulgarmente como sabemos todos [].

    As cousas que faz Deus e as que se ho de fazer bem feitas, no se fazem antes nem depois, seno a seu tempo. O tempo assinalado nas Escrituras para a circunciso era o dia oitavo. [] E por isso se circuncidou Cristo, sem se antecipar nem dilatar, aos oito dias: Postquam consummati sunt dies octo. [] Da mesma maneira se deu princpio redeno e restaurao de Portugal em tais dias e em tal ano, no celebradssimo de 40, porque esse era o tempo oportuno e decretado por Deus, e no antes nem depois, como os homens quiseram. Quiseram os homens que fosse antes, quando sucedeu o levantamento de vora; quiseram os homens que fosse depois, quando assentaram que o dia da aclamao fosse o primeiro de Janeiro, hoje faz um ano. Mas a Providncia Divina ordenou que o primeiro intento se no conseguisse, e que o segundo se antecipasse, para que pontualmente se desse princpio restaurao de Portugal a seu tempo. []

    Grande nimo, valentes soldados, grande confiana, valorosos Portugueses, que assim como vencestes felizmente estes inimigos, assim haveis de vencer todos os demais. [] Assim o contam as profecias, assim o prometem as esperanas, assim o confirmam estes felizes princpios, que a divina bondade se sirva de prosperar at os fins felicssimos que desejamos, que so os com que remata um sermo deste dia So Bernardo, cujas palavras tantas vezes tm sido profecias a Portugal: Multiplicabitur sane ejus imperium, ut merito Salvator dicatur pro multitudine etiam salvandorum, et pacis non erit finis 4. Para que nossas oraes

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    comecem a obrigar a Deus, no peo trs ave-marias, seno trs peties do Padre Nosso: [] Santificado e glorificado seja, Senhor, vosso nome. [] Venha a ns, Senhor, o vosso Reino; vosso, porque vosso o Reino de Portugal, que assim nos fizestes merc de o dizer a seu primeiro fundador, el-rei D. Afonso Henriques: Volo in te et in semine tuo imperium mihi stabilire 5. [] Fazei, Senhor, que faamos inteiramente vossa santa vontade (Serm., I 324-325; 327; 341-342.) Uma parte das profecias a relativa restaurao do

    Reino portugus j estava cumprida, e de uma maneira que no podia ser mais pontual. Ningum cujo corao no estivesse obcecado podia pr em dvida a realizao das profecias que prometiam a Portugal o Imprio mundial. Deus fiel nas suas promessas. Mas a garantia divina no justifica a inactividade humana. O messianismo de Vieira no suicdio em Deus. livre iniciativa de Deus deve corresponder, por parte do homem, uma obedincia incondicional e um esforo incessante e inteligente para transformar este mundo no Reino de Deus.

    Na primeira dcada da Restaurao, Portugal estava bem longe da transfigurao ardentemente desejada. Urgia prepar-la e, sendo possvel, acelerar-lhe o advento. Vieira via com pena e dor que Lisboa j no era o emprio dos reis venturosos do sculo anterior: uma grande parte das colnias roubada, o comrcio decadente, o povo sem iniciativas e os capitais exaustos. Para remediar a deplorvel situao era imprescindvel que o Reino se pudesse aproveitar dos recursos, tanto dos judeus portugueses refugiados no estrangeiro, como dos cristos-novos em Portugal. S assim o pas poderia manter a sua independncia e tornar a ser uma nao rica,

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    capaz de executar as grandes faanhas profetizadas. J em 1643 Vieira escrevia uma Petio em que aconselhava o rei a que deixasse retornar os judeus a Portugal. Defender os judeus, tal como Vieira os defendia, era um acto de bom senso, mas tambm um gesto corajoso e perigoso no ambiente mesquinho em que vivia. Seria injusto acus-lo de oportunismo, pois a defesa dos judeus, constantemente retomada, havia de custar-lhe o dio dos inquisidores e a suspeita dos fanticos. Sem dvida, o jesuta julgava que revocar os judeus era uma medida de s economia, e mant-los fora do pas revelava uma miservel pobreza de esprito. Mas, alm disso, entendia que a perseguio aos judeus era uma grande injustia, que contrariava a lei divina e humana. E, finalmente, era uma falta de confiana nas profecias do Bandarra, que dizia que os israelitas haviam de prestar um grande servio ao rei de Portugal na fundao do seu Imprio.

    Vejamos uns trechos desta notvel Petio:

    Ajudar-se- tambm Vossa Majestade da inteligncia e indstria destes homens, porque no s por sua indstria se podem trazer das naes estrangeiras por muito acomodado preo as cousas necessrias para a guerra, mas tambm por suas inteligncias secretas se podero saber os desgnios e granjear as notcias dos reinos estranhos, sem as quais se no pode bem governar o prprio. [] Admitindo-os Vossa Majestade, poder sustentar a guerra de Castela, ainda que dure muitos anos, como vemos no exemplo dos Holandeses que, fundando a sua conservao na mercncia, no s tm cabedal para resistir, como tm resistido, a todo o poder de Espanha, mas para senhorear os mares e conquistar provncias em todas as partes do mundo. Por falta de comrcio se reduziu a grandeza e opulncia de Portugal ao miservel estado em que Vossa Majestade o achou, e a restaurao do comrcio o caminho mais pronto de o

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    restituir ao antigo e ainda mais feliz estado. [] Primeiramente, favorecer aos homens de nao ou admiti-los neste Reino, na forma que se prope, no contra lei alguma, divina nem humana, antes muito conforme aos sagrados cnones, doutrina dos Santos Padres e resolues de muitos conclios gerais e particulares, que no ponho aqui, por no embaraar este discurso, e se alegaro, sendo necessrio. [] Finalmente, o Sumo Pontfice, Vigrio de Cristo, no s admite os que ns chamamos cristos-novos (entre os quais e os velhos nenhuma diferena se faz em Itlia), seno que, dentro da mesmo Roma e outras cidades, consente sinagogas pblicas dos judeus que professam a lei de Moiss. [] Pelas convenincias do comrcio, admite Portugal (como se v em Lisboa e em todas as cidades e portos martimos) muitos hereges de Holanda, Frana e Inglaterra. Que muito logo que se admitam e conservem homens de nao, sendo neles muito maiores as razes do nosso interesse? Tudo o que ganham os mercadores estrangeiros enriquece as suas provncias e ptrias, e o que negoceiam os Portugueses fica na nossa. [] Finalmente, a heresia das outras naes muito mais contagiosa que o judasmo, porque o que est mais distante pega-se menos; e o judasmo, como no confessa a Cristo, dista mais da f catlica que as seitas dos outros hereges, que todos O confessam. [] Se o dinheiro dos homens de nao est sustentando as armas dos hereges, para que semeiem e estendam as seitas de Lutero e Calvino pelo mundo, no maior servio de Deus e da Igreja que sirva este mesmo dinheiro s armas do rei mais catlico, para propagar e dilatar pelo mundo a lei e a f de Cristo? [] E no s nos gentios de nossas conquistas melhorar o partido da f, mas nos mesmos homens de nao, fugitivos deste Reino, porque certo que nos estranhos onde vivem com liberdade de conscincia, muitos deles so verdadeiros catlicos, nos quais, vivendo entre cristos, se aumentar a f e a piedade; todos os seus inocentes morrero baptizados e se salvaro tantas almas que por falta de baptismo se

  • 24

    perdem. E ainda os que interiormente foram infiis, vista dos bons exemplos e doutrina da Igreja, tero ocasio de se converterem a ela, o que entre os hereges lhes falta; porque, posto que a experincia tenha mostrado que fingida a cristandade de muitos, a mo de Deus no abreviada nem devemos desconfiar dos eficazes poderes de sua graa, pois sabemos que desta mesma nao h e houve em todas as idades da Igreja Catlica muitos homens santos e doutos, que com a pureza da vida e verdade da doutrina a ilustraram, e muitos que com o seu sangue a ajudaram a plantar e defender; porque, enfim, desta nao foram os apstolos e a Virgem Santssima. Este foi o sangue que o Filho de Deus se dignou tomar para preo da nossa redeno e unio da sua divindade, que uma razo que entre todas deve mover muito a clemncia de Vossa Majestade, para se compadecer da misria desta gente e procurar o remdio ou de sua inocncia nos bons, ou de sua cegueira nos maus, devendo-se esperar com muito fundamento que, por meio do favor de Vossa Majestade lhes fizer, se alcance deles o que pela severidade do rigor se no tem conseguido. Porque, alm de ser de f que toda esta nao se h de converter e conhecer a Cristo [Rom., 11, 25-26], as nossas profecias contam esta felicidade entre os prodigiosos efeitos do milagroso reinado de Vossa Majestade; porque dizem que ao Rei Encoberto viro ajudar os filhos de Jacob e que, por meio deste socorro, tornaro ao conhecimento da verdade de Cristo, a quem reconhecero e adoraro por Deus (Var., II 13-14; 16; 19-21; 23-24). Quatro anos depois, Vieira, j tendo conhecimento

    pessoal dos judeus em Ruo e Amesterdo, dirige a D. Joo IV, em nome dos cristos-novos, outra petio, contendo as queixas desta gente contra o modo de proceder do Santo Ofcio. O que os homens de nao desejam resume-se em trs pontos. Primeiro: querem abertas e publicadas, isto , querem que os rus conheam

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    os nomes dos denunciantes e os pontos de acusao para que se no vejam obrigados a defender-se s cegas, como era de praxe na Inquisio portuguesa. Segundo: querem que se isentem do fisco todos os cabedais que estiverem empregados no comrcio portugus (at ento, o Santo Ofcio costumava confiscar imediatamente todos os bens dos denunciados, esquecendo-se muitas vezes de lhos devolver, mesmo depois de absolvidos). Terceiro: querem que se extinga a odiosa distino entre cristos-antigos e cristos-novos, devendo a Inquisio fazer o exame pelo que toca f e no pelo que diz respeito ao sangue. Vieira no quer ir ao ponto de pedir para eles sinagogas pblicas ou liberdade de conscincia, ainda que para uma e outra coisa se pudessem aduzir bons exemplos e motivos. S pede justia. Pouco tempo depois, redige uma terceira petio em que, moderando os seus desideratos, se limita proposta de isentar do fisco o capital dos cristos-novos empregado no comrcio portugus. Ao que parece, a petio anterior fora demasiadamente audaciosa para ser aceitvel. Vieira no cessava de inculcar no nimo do rei a necessidade da iseno do fisco porque planeava a fundao de uma Companhia do Comrcio para o Brasil, da qual esperava a libertao de Pernambuco e a reanimao do comrcio de Portugal.

    A situao poltica e militar no era menos risonha do que a econmica. Portugal recuperara a independncia, mas o feliz sucesso era mais devido s dificuldades momentneas de Castela do que fora militar ou prosperidade de Portugal. Um dos primeiros actos do novo regime foi recorrer s numerosas potncias europeias que estavam em p de guerra com Castela; mas logo teve de reconhecer que, tratando-se de uma nao sem recursos, como era o caso de Portugal, no

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    bastava ser inimigo dos Espanhis para poder contar com socorros eficientes. Firmaram-se tratados de amizade com alguns pases, mas o auxlio efectivo reduzia-se a pouca coisa.

    Eram sobremaneira complicadas as relaes com a Holanda, que se aproveitara do domnio castelhano sobre Portugal para roubar a este pas uma parte considervel das suas conquistas no Oriente e no Ocidente. Os Estados-Gerais concluam, em Junho de 1641, um tratado de armistcio com o governo de Lisboa, ordenando a imediata suspenso de hostilidades entre as duas potncias na Europa e mandando um modesto auxlio militar a Portugal. Recusavam-se, porm, a restituir a rica presa colonial. No Brasil, a suspenso de armas havia de entrar em vigor depois de ali ter chegado a notcia da ratificao, facto que, por pouco apressado, se deu finalmente em Julho de 1642. A partir dessa data ambas as partes haviam de respeitar o status quo. Antes da data fatal, porm, os Holandeses, abusando traioeiramente daquela clusula, apoderaram-se do Cear e Maranho no Brasil, e de Luanda e So Tom na frica. Esses actos prepotentes, a que o governo de Lisboa s podia responder com protestos inteis, convenceram os Portugueses de que os seus aliados batavos agiam de m-f. Mas, passados trs ou quatro anos, os papis estavam trocados: eram os Estados-Gerais que punham em dvida a boa f de Lisboa. A populao de Pernambuco insurgira-se espontaneamente, como pretendia a diplomacia portuguesa contra os invasores. Ora, na Haia, era um segredo pblico que os rebeldes eram apoiados pelo governador da Baa, o qual, por sua vez, assim procedia com o conhecimento e colaborao da metrpole. As reiteradas queixas dos accionistas da

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    Companhia das ndias Ocidentais faziam que os Estados-Gerais se mostrassem cada vez menos dispostos a negociar a paz definitiva com o Embaixador portugus na Haia.

    Outra questo nevrlgica era o facto incmodo de que as naes europeias se iam reunir na Vesteflia para concluir a Paz Geral. O governo de D. Joo IV considerava a incluso de Portugal neste tratado como condio indispensvel para a sobrevivncia da autonomia portuguesa. Se Castela, no incomodada pela Frana e Holanda, tivesse as mos livres na Pennsula, decerto estariam contados os dias do Portugal restaurado. Era urgente que as Embaixadas portuguesas em Paris e Haia ficassem a par do que se pensava e pretendia em Lisboa, e que o governo portugus, por seu turno, ficasse bem informado do que ia pelas cortes do Norte da Europa.

    Foi por esses motivos que Antnio Vieira, em 1646, foi enviado a Frana e Holanda. A sua misso era para-diplomtica, no oficial. O jesuta devia actuar em segundo plano e em estreita cooperao com os ministros plenipotencirios nas duas cortes.

    Vieira chegou Haia no dia 18 de Abril de 1646, onde encontrou o Embaixador Francisco de Sousa Coutinho envolvido numa luta desesperada com os Estados-Gerais. As negociaes estavam praticamente paralisadas, cabendo a Vieira a tarefa de as pr de novo em andamento. Os Holandeses deviam ser convencidos de que D. Joo IV nada tinha a ver com os rebeldes pernambucanos mas no era menos importante que fossem induzidos a ceder Pernambuco por um preo razovel. Como, porm, reencetar as negociaes interrompidas? Durante as suas longas conversas com o

  • 28

    Embaixador, Vieira foi-se compenetrando de que o suborno era a nica soluo: o dinheiro portugus teria de correr pela Holanda. S ele acabaria por abalar aquela gente avara. Sousa Coutinho j tinha pronta a lista com os nomes de deputados e magistrados que decerto no resistiriam ao fascnio do ouro. Belos planos e, provavelmente, bem cogitados, mas fadados ao malogro se o governo portugus no corroborasse as promessas tentadoras com metal sonante. O que era essencial era pagar o preo exigido pelos donos efectivos da terra pernambucana e, alm disso, comprar a mesma compra. Com estas notcias Vieira regressou a Portugal, no Vero de 1646, e escreveu um relatrio no qual propunha a compra de Pernambuco aos Estados-Gerais pela quantia de trs milhes de cruzados, a pagar dentro de um prazo de cinco a seis anos, e mais cerca de meio milho para comprar as vontades dos Batavos mais poderosos. Com a minuciosidade de um guarda-livros, Vieira explica ao rei de que maneira se poder arranjar o dinheiro, chegando concluso animadora de que as despesas e as receitas estaro em perfeito equilbrio. Mais ainda: os mercadores portugueses poderiam tomar sobre si a fiana de fazerem esses pagamentos, no por sua pessoa, mas em cabea dos mercadores de Holanda. No fora sem razo que o jesuta entrara em contacto com os judeus de Ruo e Amesterdo.

    Foi um perodo de intensa actividade para Vieira. Alm de propor e calcular a compra de Pernambuco, sugeriu tambm a fundao de companhias mercantis e frisou a necessidade de mandar tropas para o Brasil, ampliar e modernizar a frota e a marinha, etc. Todos concordavam com ele em que as medidas propostas eram teis e at necessrias. Mas onde se poderia arranjar o dinheiro?

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    Como poderiam ser vencidas as suspeitas dos Estados-Gerais, que teimavam em no querer reabrir as negociaes com Francisco de Sousa Coutinho? Como evitar o isolamento do governo de Lisboa, agora que na Vesteflia os preliminares da paz entre a Holanda e Espanha j se achavam em fase adiantada? Como interessar os Franceses pela causa lusitana? Portugal parecia encontrar-se num beco sem sada; o desnimo do governo crescia dia a dia; o desespero ditava-lhe planos absurdos. Quem no perdia o nimo era Antnio Vieira. O rei ouvia-lhe os planos com muita benevolncia, mas no se atrevia a execut-los, porque todos eles implicavam uma mudana radical do estilo do Santo Ofcio e uma atitude completamente diferente para com os cristos-novos.

    Em Agosto de 1647, o jesuta foi pela segunda vez enviado Frana e Holanda. Em Paris devia sondar Mazarino sobre as possibilidades de um casamento do prncipe herdeiro, D. Teodsio, com a duquesa de Montpensier la grande demoiselle. O plano brotara, com toda a probabilidade, da mente inventiva de Vieira, mas fracassou rotundamente. Extremamente flexvel, o jesuta desistiu das suas tentativas casamenteiras e apressou-se a seguir para a Holanda, onde o esperava um sem-nmero de tarefas mais urgentes ainda. Ali devia comprar trigo e, coisa mais importante, navios para a frota portuguesa, destinados a entrar mais tarde em combate contra os prprios Holandeses; ali devia subornar e fazer subornar os altos funcionrios; ali devia induzir os Estados-Gerais a concluir o tratado de paz com D. Joo IV, oferecendo-lhes a entrega de Pernambuco sob certas condies; ali devia empenhar-se pela incluso de Portugal na Paz de Vesteflia. Vastos planos, mas impossveis de realizar sem

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    uma chuva de ouro. Para tal o jesuta contava com a ajuda de judeus ricos de Amesterdo, correspondentes dos cristos-novos em Portugal. Mal chegou Holanda, soube que a Inquisio, sem dvida para lhe contrariar os planos, prendera o cristo-novo Duarte da Silva, que era o principal credor da Coroa portuguesa. Desacreditado entre os mercadores de Amesterdo e no recebendo dinheiro de Portugal, Vieira quase nada conseguiu do que se propusera fazer na Holanda. E pior ainda: os Estados-Gerais, cada vez mais alarmados com as infaustas notcias sobre a rebeldia pernambucana, exigiam, alm da restituio integral e incondicional do Brasil holands, uma elevada indemnizao pelos danos sofridos e, ainda por cima, uma fortaleza na costa brasileira como garantia.

    Vieira, que dispunha sempre de muitos expedientes, maquinava e lutava quanto podia, mas em vo. Em fins de Agosto de 1648 foi chamado de volta a Lisboa em circunstncias que continuam um tanto misteriosas. Na capital portuguesa ps-se a redigir uma proposta, que ficou clebre sob a designao de O Papel Forte, nome que lhe foi dado pelo prprio rei. Dela tiramos aqui alguns passos significativos:

    Replica-se a isto [sc. ao plano de abandonar

    Pernambuco aos Holandeses] que aquelas terras eram nossas, por nos serem dadas pelos sumos pontfices e que os Holandeses no-las no podiam tomar com justia, por serem eles rebeldes a el-rei de Castela e el-rei de Castela intruso em Portugal. Responde-se que estas razes eram muito boas, se houveram de ser julgadas na Casa de Suplicao ou nos nossos confessionrios; e ainda ali tinham muito que pleitear e averiguar; mas o que d e tira os reinos no mundo o direito das armas, cujas leis ou privilgios so muito mais largos; e segundo este direito costumaram sempre capitular

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    os prncipes, principalmente quando um deles menos poderoso, e s servem as razes e opinies da justia para quando o que ficou leso se torna a ver em melhor fortuna. [] Desta maneira damos Pernambuco aos Holandeses, e no dado seno vendido pelas convenincias da paz, e no vendido para sempre seno a retro aberto, para o tornarmos a tomar com a mesma facilidade, quando nos virmos em melhor fortuna; que agora, querer perder isto e o demais. [] Finalmente, os Holandeses tm a sua indstria, o seu cuidado, a sua cobia, o seu amor entre si e ao bem comum; ns temos a nossa desunio, a nossa inveja, a nossa presuno, o nosso descuido e a nossa perptua ateno ao particular. [] Neste ponto se representam dois meios com que Vossa Majestade possa sustentar a guerra. O primeiro levantar Vossa Majestade companhias mercantis contra as de Holanda, que sero mais ricas e poderosas que as suas pelas comodidades de nossos portos e conquistas. [] O segundo meio extinguir as caravelas, navegar os acares em navios de fora, introduzirem-se comboios nas cidades martimas, sustentar Vossa Majestade oito navios de escolta, formar duas esquadras poderosas, que tragam os acares, as quais esquadras, indo uma e ficando outra, alternadamente, ficam tambm segurando os portos do Brasil e as costas de Portugal. [] Nesta maneira se podero introduzir as Companhias com mais segurana e proveito, e aumentar-se o comrcio, que s com a paz cresce e com a guerra se destri; reservando o que agora queramos fazer aos Holandeses para tempo mais oportuno, em que no s lhe tornaremos a tomar o que agora lhe restitumos, mas tudo o que to injustamente possuem nas nossas conquistas, e o uniremos com grande glria Coroa de Vossa Majestade, qual, no por esta seno por outra guerra, tem Deus guardado para possuir o Imprio do mundo (Var., III 39-40, 47, 73, 78-79, 106).

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    Sob o aspecto moral, o Papel Forte est longe de ser um escrito edificante, inspirado como por uma poltica ambgua e oportunista. No queremos ocultar nem defender o facto, limitando-nos a dizer que quem se mete na vida poltica, como Vieira se meteu, dificilmente fica com as mos limpas. O projecto do jesuta foi rejeitado pelo Conselho de Estado, certamente por motivos no de ordem tica, mas pragmtica: Luanda fora reconquistada em 1648 e os resultados da guerrilha pernambucana eram animadores. Vieira e o seu amigo Francisco de Sousa Coutinho ficaram com o apelido de Judas do Brasil. Muitos se escandalizaram com as palavras denegridoras relativas ao povo portugus que ocorriam no Papel Forte. O prestgio do jesuta foi declinando. O seu nico triunfo poltico foi a fundao da Companhia do Comrcio para o Brasil (1649), a qual no pouco contribuiu para a libertao definitiva de Pernambuco (1654). A despeito de todas as reclamaes do Santo Ofcio, o capital dos cristos-novos, empregado nessa Companhia, ficaria isento de confiscao. Por enquanto, os inquisidores nada podiam empreender contra o valido do rei, mas no lhe perdoavam o atentado ao seu poder e prestgio. Uns quinze anos depois haviam de vingar-se dele.

    Apesar de pouco proveitosas no plano diplomtico, as viagens de Vieira Holanda foram instrutivas e, at certo ponto, decisivas para a sua evoluo mental. Foi ali que teve a oportunidade de conhecer in loco as foras motrizes de uma sociedade burguesa, moderna para a poca. Inicialmente, vira nos Holandeses apenas hereges e piratas. Tambm depois das suas duas visitas s Provncias Unidas nunca se mostrou grande apreciador nem do pas nem do clima nem do povo, mas no pde

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    deixar de reconhecer que os Batavos tinham uma organizao social e econmica muito superior da sua ptria. Em que consistia a superioridade desses to temveis adversrios de Portugal? Tinham certas qualidades que faziam grande falta ao povo eleito dos tempos modernos: o esprito cvico e empreendedor, a solidariedade e, sobretudo, a tolerncia. Antnio Vieira, sempre disposto a aprender tambm com o inimigo, pretendia transplantar, num contexto diferente, essas boas qualidades para Portugal. O que sentia em relao aos Holandeses era, como dizem os Alemes, uma Hassliebe: amor e admirao misturados com sentimentos de averso e repdio.

    Na Holanda, Vieira teve ainda outra experincia que ele prprio julgava importantssima para a sua evoluo posterior: as discusses que sustentou, na sinagoga de Amesterdo, com o sbio judeu Menasse-ben-Israel. A este, o jesuta teria convencido de que o Messias, como autor da nossa salvao espiritual, j apareceu na pessoa de Jesus Cristo (afirmao difcil de endossar); Menasse teria induzido Vieira (o que parece fidedigno) a crer que o Messias devia aparecer pela segunda vez, agora para efectuar a nossa salvao temporal e, nomeadamente, para reconduzir Palestina as Dez Tribos da Disperso, que ele localizava nas Amricas. Vieira, por natureza sfrego de profecias apocalpticas, tinha a alma preparada para receber essa mensagem. Alm de lhe corroborar as suas prprias esperanas, patenteava-lhe a universalidade do messianismo. Sebastianista j de h muitos anos e firmemente convicto do papel histrico do povo portugus, o jesuta acrescenta uma nova dimenso ao seu messianismo. Apoiando-se nos livros apocalpticos da Bblia sobretudo, o livro de Daniel e a Revelao

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    de So Joo , d-lhe uma base bblica e torna-se milenarista ou quiliasta, integrando na sua nova viso da histria o sebastianismo lusocntrico e reservando ao povo eleito do Velho Testamento um lugar de maior destaque ainda. Nascera a ideia do Quinto Imprio. J em 1649 o encontramos ocupado com a redaco da Histria do Futuro, obra proftica de que havemos de falar mais adiante.

    Mas as circunstncias no lhe permitiram dedicar-se por muito tempo elaborao da grande obra projectada. Em Janeiro de 1650, o rei mandou-o a Itlia com o encargo de ali arranjar uma noiva para D. Teodsio, o prncipe herdeiro, que ento tinha quase dezasseis anos; sendo possvel, devia tambm desviar de Portugal a diligncia dos Castelhanos, tentando promover em Npoles motins contra eles, sempre com a devida discrio. A misso falhou por completo. Ante as ameaas do embaixador de Filipe IV em Roma, Vieira viu-se forado a fugir apressadamente da Cidade Eterna sem ter conseguido nem o casamento nem os motins.

    Regressado a Lisboa, verificou, no sem amargura, que a sua influncia na Corte diminura bastante, embora o rei continuasse a estim-lo como amigo. Desiludido ou, talvez melhor, desenganado do mundo, lembrou-se do seu velho ideal, que era o de evangelizar os ndios do Brasil. Apresentou-se-lhe uma boa oportunidade: os Jesutas, apoiados moral e financeiramente pelo rei, iam restaurar as suas antigas misses no Maranho, abandonadas a contragosto por eles alguns anos antes. Vieira, amigo pessoal de D. Joo IV, era a pessoa indicada para dirigir a empresa. Assim ficou resolvido: o ex-diplomata e conselheiro do rei metamorfoseou-se em simples e humilde missionrio.

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    Uma mudana radical? Radical, sim, quanto escolha dos meios, mas nem tanto quanto meta final. No devemos esquecer que o fim transcendente do seu perodo mundano fora sempre preparar as grandes faanhas do Encoberto. Falhara como poltico. Embora o fracasso lhe magoasse o amor-prprio, no fazia mal. Tambm do outro lado do Oceano poderia prosseguir a sua grande tarefa histrica e, provavelmente, com resultados melhores: cumpria que os ndios fossem integrados no Quinto Imprio; e, quem sabe, lhe seria dado encontrar entre eles os restos das Dez Tribos perdidas, de que lhe falara Menasse em Amesterdo? Para um corao como o de Antnio Vieira, as decepes podem ser fecundas. No seu caso, deram origem a uma certa interiorizao, da qual ele prprio tinha conscincia, escrevendo a D. Teodsio logo depois da sua chegada a So Lus: Eu agora comeo a ser religioso e espero na bondade divina [] que acertarei a o ser, e verdadeiro padre da Companhia (Cartas, I 301).

    Assim, em fins de 1652, Vieira deixou o Reino para ir dirigir os trabalhos missionrios da Companhia no Maranho. H quem diga que o deixou mau grado seu, mas, creio eu, sem argumentos suficientes. mais provvel que fosse contrariando a vontade do rei que Vieira saiu de Portugal.

    3. O PAI GRANDE DOS NDIOS Ensinado mas no quebrado pelas experincias da sua

    vida turbulenta, Antnio Vieira lanou-se imediatamente ao trabalho no Maranho com a energia habitual. O seu esprito no perdera nem a elasticidade nem a inventividade, continuando a ser polmico e combativo.

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    Multiplicando-se, desenvolveu inmeras actividades a favor dos indgenas, que lhe deram o honroso apelido de Paiau, isto , Pai Grande.

    Dirigia os trabalhos dos confrades, na sua qualidade de superior. Fazia extensas e incmodas viagens pelo rio Amazonas para visitar as aldeias, onde baptizava, confessava e dirigia as cerimnias religiosas. Aprendia os idiomas das diversas tribos ndias, tornando-se capaz de escrever um conciso catecismo em seis lnguas diferentes. Como ainda dispunha do seu ordenado de pregador rgio, aplicava-o generosamente em ddivas para as misses, fornecendo no s clices e custdias como tambm:

    muitos sinos, muitas imagens de Cristo e de Nossa

    Senhora e de vrios santos, umas de pintura para os retbulos e outras de relevo estofadas, assim maiores para os altares, como menores para as procisses; e at mscaras e cascavis para as danas das mesmas procisses, para mostrar aos gentios que a lei dos cristos no triste. E assim mesmo todo o aparato dos baptismos para se fazerem com grande pompa, necessria igualmente aos olhos da gente rude, que s se governa pelos sentidos; muitas resmas de papel, tintas e latas para os sepulcros, e imagens da Paixo para as procisses da Quaresma e Semana Santa, que tudo se introduziu desde logo para ficar mais bem fundado e estabelecido entre aqueles novos-cristos, sendo matria de grande devoo ver derramar por amor de Cristo e vestidos de disciplinantes portuguesa, muitos daqueles mesmos que poucos meses antes se fartavam de sangue e carne humana; sendo raro o que naqueles dias no fizesse esta penitncia, e para verem da mesma maneira com os olhos o mistrio do nascimento de Cristo, cuja solenidade fazia [eu] celebrar com dilogos na sua lngua, representados por seus prprios filhos (Var., IV 166-167).

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    O trecho citado, de pouco valor literrio, mas de grande autenticidade, revela-nos a grande abertura mental de Vieira que, adaptando-se o mais possvel ao estdio cultural dos seus nefitos, tudo fazia para lhes mostrar que a lei dos cristos no triste. Neste ponto, seguia o mtodo, infelizmente no incontestado, que os jesutas aplicavam nas suas terras de misses, no s no Brasil, como tambm na China e na ndia. S podemos lastimar que os catecismos e os dilogos de Natal, escritos por Vieira, no tenham chegado aos nossos dias.

    Era infatigvel em defender os direitos dos ndios. Sem dvida, havia diversas leis que os regulavam. Os ndios no podiam ser escravizados a no ser em casos expressamente estipulados, por exemplo, quando se tratava de resgatar cativos aprisionados por outros ndios ou de cativos destinados a serem comidos por uma tribo inimiga ou, ainda, de ndios presos numa guerra justa, previamente autorizada pelo governo. Na prtica, porm, as leis eram pouco respeitadas. Os governadores regionais no dispunham de meios eficazes para refrear a cobia dos colonos ou estavam de conivncia com eles ou, pior ainda, apoiavam-nos abertamente. Antnio Vieira, que chegara ao Maranho munido de plenos poderes para criar aldeias ndias sob a direco espiritual e temporal dos Jesutas, contentava-se inicialmente apenas com trs aldeamentos. Mas no tardou a ter srias brigas com os colonos, que se opunham ferozmente aos planos da Companhia, considerados desastrosos para a vida econmica da provncia.

    Em Outubro de 1653, viajou at Belm, onde encontrou uma situao pior ainda. De volta a So Lus, escreveu diversas cartas a D. Joo IV, propondo-lhe medidas drsticas, capazes de pr termo ao escndalo da

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    explorao dos indgenas. Escreveu tambm uma carta ao Padre Provincial do Brasil, na qual lhe d a sua verso da famosa expedio do bandeirante paulistano Raposo Tavares, no hesitando em classific-la de incurso depredatria e homicida, indigna de um reino catlico. Finalmente, chegou uma carta do rei ao Maranho; mas, por s conter resposta a uma situao j ultrapassada, de nada servia para resolver os problemas actuais.

    Foi com o fim de informar pessoalmente o rei do que se passava na colnia que Vieira se resolveu a ir ao Reino, esperando conseguir a uma legislao justa para os indgenas e adequada s circunstncias existentes no Maranho. Embarcou a furto no dia 14 de Junho de 1654. Na vspera da sua partida pregara, na igreja de So Lus, o seu notvel sermo de Santo Antnio. um sermo pregado aos peixes, j que os homens no querem aproveitar a doutrina clara, slida e verdadeira que o pregador muitas vezes lhes apresentou. Dirigindo-se ento aos peixes, Vieira louva-lhes virtudes e censura-lhes vcios. Entre estes figura o de se comerem uns aos outros:

    A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vs,

    que vos comeis uns aos outros. Grande escndalo este, mas a circunstncia o faz ainda maior. No s vos comeis uns aos outros, seno que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrrio, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, no bastam cem pequenos, nem mil, para um s grande. [] Olhai, peixes, l do mar para a terra! No, no: no isso que vos digo. Vs virais os olhos para os matos e para o serto? Para c, para c! Para a cidade que haveis de olhar. Cuidais que s os Tapuias se comem uns aos outros? Muito

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    maior aougue o de c, muito mais se comem os brancos. Vedes vs todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer s praas e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as caladas; vedes aquele entrar e sair sem quietao nem sossego? Pois tudo aquilo andarem buscando os homens como ho de comer e como se ho de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miservel a despeda-lo e com-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatrios, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos rfos e os dos defuntos e ausentes; come-o o mdico, que o curou ou 6 ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-o a mesma mulher, que de m vontade lhe d para a mortalha o lenol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o no comeu a terra, e j o tem comido toda a terra. J que os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matria de sentimento. Mas para que conheais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que tambm os homens se comem vivos assim como vs. [] Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o esto comendo. Come-o o meirinho, come-o o escrivo, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda no est sentenciado, j est comido. So piores os homens que os corvos. O triste que foi forca, no o comem os corvos seno depois de executado e morto; e o que anda em juzo, ainda no est executado nem sentenciado, e j est comido. E para que vejais como estes comidos na terra so os pequenos e pelos mesmos modos com que vs comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: Cuidais que no h de vir tempo em que conheam e paguem o seu merecido aqueles que cometem a maldade? [Salmo, 13, 4]. E que maldade esta, qual Deus

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    singularmente chama maldade, como se no houvera outra no mundo? E quem so aqueles que a cometem?

    A maldade comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem so os maiores que comem os pequenos, [que devoram o meu povo como um pedao de po] (Serm., VII 260-262). A travessia do Oceano no se deu sem numerosas

    aventuras, de modo que Vieira s chegou a Lisboa no final de 1654. Encontrou D. Joo IV gravemente enfermo, o que devia pr prova o seu sebastianismo, que via na pessoa do monarca doente o futuro Imperador do Mundo. Aguardando as melhoras do rei, que de facto no demoraram muito, Vieira no passou em ociosidade a sua estada em Lisboa. Alm de visitar os seus amigos e frequentar as chancelarias reais para obter despacho pronto e favorvel, proferiu nesse perodo em Lisboa dois sermes que so dos melhores entre os que nos deixou: o Sermo da Sexagsima e o Sermo do Bom Ladro. Pregou o primeiro, na capela real, sobre o texto evanglico do domingo: O semeador saiu a semear a sua semente. Este sermo divide-se nitidamente em duas partes. Na primeira, Vieira defende-se das ms-lnguas que comentavam com malcia o seu regresso prematuro vida confortvel da Corte, e explica-lhes que h casos em que se justifica um regresso temporrio do semeador para lhe possibilitar um melhor xito na execuo da sua tarefa. Na segunda parte, que muito mais extensa, Vieira fala das qualidades que os ouvintes, o pregador e o sermo devem ter para que a semente do semeador a palavra de Deus possa frutificar. um pequeno tratado sobre a arte de pregar, cheio de vida, finas observaes psicolgicas e remoques satricos.

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    Tencionamos voltar a este sermo no captulo III do presente estudo.

    O Sermo do Bom Ladro, pregado na igreja da Misericrdia por ocasio da sexta-feira santa de 1655, flagela impiedosamente os vcios dos poderosos deste mundo, quer na metrpole, quer nas colnias. Nele ocorre um clebre trecho sobre a conjugao omnmoda do verbo rapio (= roubar):

    Encomendou el-rei D. Joo o Terceiro a So Francisco

    Xavier o informasse do estado da ndia por via de seu companheiro, que era mestre do prncipe; e o que o santo escreveu de l, sem nomear ofcios nem pessoas, foi que o verbo rapio na ndia se conjugava por todos os modos. A frase parece jocosa em negcio to srio; mas falou o servo de Deus como fala Deus, que em uma palavra diz tudo. [] Dicuntur satrapae, quia satis rapiunt []: Chamam-se strapas, porque costumam roubar assaz, e este assaz o que especificou So Francisco Xavier, dizendo que conjugam o verbo rapio por todos os modos. O que eu posso acrescentar, pela experincia que tenho, que no s do Cabo da Boa Esperana para l, mas tambm das partes daqum se usa igualmente a mesma conjugao. Conjugam por todos os modos o verbo rapio; porque furtam por todos os modos da arte, no falando em outros novos e esquisitos, que no conheceu Donato nem Despautrio 7. Tanto que l chegam, comeam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informao que pedem aos prticos, que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como tm o mero e misto imprio, todo ele aplicam despoticamente s execues na rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem todos, os que no mandam no so aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as cousas desejadas aos donos delas, por cortesia

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    sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta s que ajuntem a sua graa para serem, quando menos, meeiros na ganncia. Furtam pelo modo potencial, porque sem pretexto nem cerimnia usam de potncia. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permisses. Furtam pelo modo infinitivo, porque no tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre l deixam razes em que se vo continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras quantas para isso tm indstria e conscincia. Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente (que o seu tempo) colhem quanto d de si o trinio; e para inclurem no presente o pretrito e futuro, do pretrito desenterram crimes de que vendem os perdes e dvidas esquecidas de que se pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o cado e no cado lhes vem a cair nas mos. Finalmente, nos mesmos tempos no lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plusquamperfeitos e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar se mais houvesse. Em suma que o resumo de toda esta rapante conjugao vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quando eles tm conjugado assim toda a voz activa, e as miserveis provncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes servios, tornam carregados de despojos e ricos; e elas ficam roubadas e consumidas (Serm., V 71-73). O rei sarou; e, pouco tempo depois da Pscoa, foi

    assentado o novo regime dos ndios no Maranho. Proibia-se qualquer guerra ofensiva contra eles sem a autorizao prvia do rei; as aldeias seriam dirigidas directamente pelos Jesutas, inclusive no que dizia

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    respeito s coisas temporais; em Lisboa ficaria instituda uma Junta das Misses sob a presidncia de D. Andr Fernandes, bispo titular do Japo, amigo e confrade de Vieira; e, finalmente, Andr Vidal de Negreiros, o heri de Pernambuco, era nomeado governador do Maranho, sendo tambm ele amigo de Vieira.

    Foi uma vitria espectacular para o jesuta mas quem estivesse bem a par da situao existente no Maranho podia prever que o triunfo no era decisivo nem seria de longa durao. Naquele tempo, o brao forte do governo central no alcanava muito longe. Os meios de comunicao entre a metrpole e as colnias eram muito deficientes; e as medidas governamentais, quer boas quer ms, podiam fcil e impunemente ser sabotadas pelos colonos, que se julgavam os donos das provncias ultramarinas. Sem dvida, Vieira conseguiu, depois do seu regresso ao Maranho, alguns bons resultados: em certa altura, o nmero de aldeias dirigidas pela Companhia elevava-se a 51. Mas a proteco aos ndios exasperava os brancos senhores da terra, que se viam privados de mo-de-obra barata e exigiam que os Padres se limitassem direco espiritual das aldeias. Houve insinuaes, acusaes e peties; at rebentou um motim do povo de So Lus contra os urubus, motim habilmente teleguiado pelos fazendeiros interessados. Alguns Padres da colnia, nomeadamente os Carmelitas, tomaram abertamente o partido dos colonos. Negreiros, decepcionado, regressou a Pernambuco: fora capaz de chefiar a insurreio pernambucana contra os Holandeses, mas sentia-se incapaz de fazer respeitar a lei no Maranho. Em 1656 falecia D. Joo IV. Trs anos antes morrera D. Teodsio, de modo que D. Lusa, a viva do monarca

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    defunto, assumiu a regncia. Ela, apesar de favorecer os Jesutas, no pde intervir com energia nos negcios da colnia, porque teve de enfrentar na metrpole alguns graves problemas que lhe absorviam toda a ateno. Alm disso, morrera em 1660 D. Andr Fernandes, o grande amigo de Vieira.

    Seria incompatvel com o escopo deste trabalho determo-nos na exposio dos acontecimentos destes anos tumulturios. Basta dizermos que Vieira lutou at ao fim pelos direitos dos ndios, sem desnimo e sem hesitao. Em Setembro de 1661 foi forado a embarcar, com diversos dos seus confrades, num navio que os devia repatriar. L chegou em Novembro do mesmo ano.

    No podemos concluir este episdio da vida de Vieira sem mencionarmos um facto que para ele teria consequncias gravssimas, mas no momento completamente imprevistas. Numa das viagens pela selva amaznica, o missionrio escreveu uma carta a D. Andr Fernandes (1659), em que, baseando-se nas profecias do Bandarra, lhe predizia a ressurreio de D. Joo IV mediante o seguinte silogismo:

    O Bandarra verdadeiro profeta. O Bandarra profetizou

    que el-rei D. Joo IV h de obrar muitas coisas que ainda no obrou, nem pode obrar seno ressuscitando. Logo, el-rei D. Joo IV h de ressuscitar (Var., IV 29). Com todos os seus trabalhos apostlicos e com

    todas as suas lutas contra a cobia dos colonos, o missionrio no estava esquecido do seu velho sonho messinico. A carta custou-lhe caro. Copiada e comentada por amigos e inimigos, deu azo a uma terrvel vingana dos inquisidores que, rancorosos contra ele pela fundao da companhia mercantil, procuravam um

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    pretexto para lhe causar a runa. Nos primeiros anos da Restaurao, Bandarra fora um profeta nacional, invocado e elogiado por todos, inclusive por alguns inquisidores. Mas agora o Bandarrismo passava por heresia perniciosa que cheirava a hebrasmo.

    4. SILOGISMOS E CRUZES Em Portugal, o jesuta foi bem recebido pela rainha-

    regente, que o convidou a pregar, no Dia dos Reis, na capela real. Vieira, acedendo ao convite, dirigiu uma violenta invectiva contra o que, a seus olhos, constitua uma ignbil traio ao sagrado dever do povo portugus de cristianizar a Amrica. Mas os interessados no desenvolvimento da vida econmica do Maranho conseguiram, ajudados pelos seus cmplices na metrpole, que os Jesutas no fossem restaurados na colnia. No Vero do mesmo ano deu-se o golpe do prncipe D. Afonso VI, ou antes, o do conde de Castelo Melhor. A Companhia perdeu a sua influncia na Corte. Vieira foi relegado para o Porto e, pouco tempo depois, para Coimbra (Fevereiro de 1663).

    Foi ento que se ps a trabalhar de novo e desta vez, febrilmente na elaborao sistemtica da sua Histria do Futuro, obra iniciada em 1649, mas logo em seguida abandonada devido a outras actividades. O tempo urgia. Estava-se aproximando o ano de 1666, data considerada por muitos como decisiva para o destino da humanidade, no s em Portugal, como tambm em outros pases da Europa, sobretudo nos meios influenciados pela Cabala. Alguns prediziam o fim do mundo para este ano. Vieira, baseando-se em

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    especulaes cabalsticas, combinadas com caprichosas interpretaes do Apocalipse, aguardava para 1666 a instalao do Imprio Consumado de Cristo no mundo. Vivendo nesta expectativa, trabalhava quanto podia, por medo de se darem os acontecimentos antes que sasse o livro, e lhe tirarem toda a graa.

    As circunstncias em que redigia a sua obra eram pouco risonhas. Perdera a influncia na corte, no passando de um pobre relegado, hostilizado por muitos e vigiado pelo Santo Ofcio. Parece que, naquela poca, o desprestgio pouco o incomodava. Agora que a interveno divina na histria da humanidade estava iminente, a sua participao directa na vida poltica e social tornara-se de somenos importncia. Acompanhava, sim, com grande interesse os sucessos polticos, mais, porm, com o intuito de interpret-los profeticamente do que com o desejo de dirigi-los pessoalmente. Embora detestasse o clima de Coimbra, ao qual imputava as suas constantes enfermidades, chegou a considerar a sua estada na Atenas Portuguesa no como um desterro mas como um passeio pelo Paraso. Na biblioteca do colgio dos Jesutas, de cuja reorganizao ficou encarregado, encontrava muitos tesouros de que um entendido em assuntos apocalpticos podia tirar grande proveito. No se contentando com os tesouros existentes nessa biblioteca, pedia aos seus confidentes que lhe enviassem de outros lugares textos no encontrados em Coimbra, sobretudo textos profticos. Assim passava Vieira os dias, ou no colgio da cidade ou na chcara Vila Franca, s consigo e com os livros.

    Vivendo com os livros e constantemente meditando na obra projectada, Vieira podia dar-se por contente, se no fosse to precrio o estado da sua sade. Era-lhe

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    impossvel consagrar-se com todo o afinco execuo da grande tarefa. Perpetuamente enfermo, esteve em 1663 vrios meses de cama, com risco de morte: trs vezes morto, trs vezes vivo, e os dois anos seguintes no lhe correram melhor. Esgotando a cincia dos mdicos, que praticamente se resumia em submet-lo a purgas e sangrias, sofria por ver os dias passando e o trabalho paralisado. Em Fevereiro de 1665 escrevia a um amigo: Eu apresso o livro quanto posso, por sinal que, escarrando vermelho, como avisei V. Ex., o encubro, s porque os mdicos me no tirem a pena da mo (Cartas, II 124-125). Nos raros intervalos de convalescena, empregava todo o tempo disponvel na composio da Histria do Futuro. Gostaria de poder confiar a matria a outra pessoa, mas no achava ningum em cujo talento se pudesse fiar desta empresa.

    Alm desses incmodos, Vieira padecia outras vexaes ainda, no menos graves. O Santo Ofcio declarara-lhe a guerra. Em 1663, j antes de se abrir oficialmente o processo contra ele, foi por duas vezes interrogado pelos inquisidores acerca da carta que, estando no Maranho, dirigira a D. Andr Fernandes. No dia 3 de Outubro do mesmo ano, foi declarado ru e, depois de vrios interrogatrios em que teimava em sustentar a sua inocncia, pediu licena Mesa inquisitorial, no para defender ou justificar as teses controversas, mas simplesmente para lhes explicar o seu fundamento e verdadeiro sentido, visto que as censuras apresentadas no lhe pareciam corresponder ao que havia escrito, sujeitando-se, desde j, ao juzo dos senhores inquisidores, como filho obediente da Igreja Catlica. O pedido foi deferido (Abril de 1664). Mas a recada em febres, tosses e expectorao impediu-o por longo tempo

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    de trabalhar na defesa prometida. Alis, parece que o ru no andava muito preocupado com a redaco da sua apologia. O que lhe interessava muito mais, nos escassos perodos de alento, era o andamento da poltica europeia e nacional, ou a visita de um cometa aos pases mediterrnicos e ao Brasil. Interessava-o tambm prosseguir a redaco da sua Histria do Futuro, que seria a sua melhor apologia.

    A 23 de Dezembro de 1664, decorrido um espao de mais de oito meses depois do ltimo interrogatrio, Vieira teve de comparecer de novo perante o tribunal com os papis que tivesse prontos. Em rigor, Vieira no tinha nada pronto da sua defesa, podendo mostrar Mesa apenas os rascunhos da sua Histria do Futuro, uns trinta cadernos de folha de papel, alguns acabados de escrever, outros s principiados. Invocando as suas doenas, Vieira pediu a prorrogao do prazo, que lhe foi concedida at Pscoa, e levou os papis para casa. O que nestes trs meses se adiantou no foi a solicitada apologia, mas, sim, a Histria. Foi nesse perodo que lhe ocorreu a ideia de escrever um livro introdutrio a ela, intitulado Livro Anteprimeiro, no qual trabalhou como possesso. Duas semanas antes de se extinguir o prazo fatal, escrevia ao seu amigo D. Rodrigo de Meneses que, cedendo preso exercida sobre ele pela Corte, mandara um pequeno retalho da pea para Lisboa, evidentemente com o fim de aliciar a Corte a comprar o pano inteiro. O retalho designava uns doze captulos do Livro Anteprimeiro, e o comprador visado era, obviamente, Castelo Melhor, o ministro omnipotente do rei semi-analfabeto D. Afonso VI. Mas a Corte no deu nenhum sinal de se interessar pelo pano inteiro. No tomou a defesa do livro nem do

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    autor. A obra chegou a ser publicada, mas s em 1718, vinte anos depois da morte do autor.

    Poucos dias depois da remessa, Vieira adoeceu gravemente, ficando impossibilitado de comparecer perante o tribunal. A doena foi-se prolongando at Julho, impedindo-lhe a continuao da obra e mal lhe deixando a energia necessria para escrever algumas linhas aos seus confidentes. Mas, depois de recuperado, no se apressou a redigir a defesa prometida e limitou-se a mandar atestados de enfermidade ao Santo Ofcio. Entretanto foi-se esgotando a pacincia dos inquisidores. Em Setembro foi intimado a entregar, sem demora, os cadernos no estado em que estivessem, prontos ou no. O que Vieira fez entregando, no dia 14, onze maos ao tribunal que, desta vez, no lhos devolveu, mas com eles iniciou a pasta de documentos referentes ao processo de Vieira, ainda hoje conservados na Torre do Tombo. Nos maos 5 e 7 se encontram alguns captulos mais ou menos concludos da Histria do Futuro propriamente dita; em dois outros maos, matria relacionada com o Livro Anteprimeiro.

    Parece que Vieira s ento reconheceu a gravidade da sua situao. Escreveu uma petio ao Conselho Geral da Inquisio, acompanhada de uma carta pessoal destinada a Diogo Velho, o secretrio. Era tarde. Sem ter recebido uma resposta sua petio, foi recolhido custdia do Santo Ofcio no dia 1 de Outubro. Encarcerado, escreveu ali, entre 16 de Novembro e 23 de Julho do ano seguinte, duas largas Representaes, obra notvel, da qual dir, no fim da sua vida, que a escreveu sin libro alguno, y solo con papel y pluma. Com efeito, ao redigi-lo, apenas tinha ao seu dispor a Bblia (sem uma concordncia) e o brevirio. Podemos considerar as duas Representaes como

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    a sua apologia, tantas vezes prometida e nunca posta por escrito, ou tambm como o compndio da sua Histria do Futuro. Um compndio sem flores literrias, sem ampliaes retricas nem citaes eruditas prova convincente de que Vieira tinha na cabea todos os elementos essenciais da sua tese, e revelando tambm que a sua ndole inquieta necessitava de alguma coaco externa para poder delimitar um determinado assunto, sem se perder em divagaes.

    Apesar dessas grandes qualidades, as Representaes no granjearam os louvores de Frei Filipe da Rocha, o qualificador do escrito. Este s lhe olhava os defeitos, dizendo que o autor, cego de tanta soberba e presuno, cuida que remedeia com o que representa, e concluindo que Vieira, tendo despendido trs silogismos em declarar o Bandarra profeta, gastaria melhor em fazer trs cruzes: a primeira na testa, para que Deus o livrasse de tais motivos e pensamentos; a segunda na boca, para que o livrasse de to mal sonantes palavras; a terceira no peito, para que o livrasse da afeio ao Bandarra e aos judeus (Var., IV p. LII).

    O ano de 1666 decorreu sem trazer os grandes acontecimentos profetizados. Vieira no se deu por vencido: desmentido pelos factos num ponto apenas acessrio, manteve-se fiel essncia da sua tese, s disposto a abandon-la quando lhe comprovassem que fosse contrria doutrina da Igreja. Julgava-se mal compreendido e queixava-se de no ter a oportunidade de esclarecer as suas opinies em discusso franca com os inquisidores. Estes informaram-no, em 1667, de que Sua Santidade perfilhava as censuras da Mesa inquisitorial. A notcia abalou-o, porque sempre fizera questo de ser filho obediente da Igreja; confundiu-o tambm, porque

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    continuava sem saber em que residia a sua falta de ortodoxia. Escreveu mais uma Defesa, desta vez muito mais sucinta, em que apontava, um por um, os fundamentos bblicos e teolgicos das opinies emitidas, suplicando que se lhe emendassem os possveis erros. O tribunal, na sesso de 18 de Outubro de 1667, nem sequer lhe quis receber este opsculo que se conservou igualmente entre os documentos do seu processo e que, para ns, sobremaneira interessante por causa dos numerosos dados autobiogrficos que contm.

    Exausto pelos interrogatrios, desesperado por no encontrar justia e ignorando como e de que se defender, Vieira submeteu-se finalmente, sem restries, deciso dos seus juzes impiedosos. A 23 de Dezembro de 1667 foi-lhe lida, na sala da Inquisio de Coimbra, a sentena final, em cuja leitura se gastaram duas horas e um quarto: era condenado a recluso num colgio ou casa da Companhia, onde para sempre ficaria privado de voz activa e passiva e da faculdade de pregar; era-lhe severamente proibido voltar a apregoar aquelas proposies herticas, temerrias, mal soantes e escandalosas.

    Foi-lhe designada para residncia a casa do noviciado da Cotovia, em Lisboa. Mas no lhe durou muito tempo a recluso. Logo no ano seguinte, graas a um golpe de Estado promovido por D. Pedro II, Vieira recuperou a liberdade mas no o prestgio nem a influncia dos tempos idos. Tinha, sem dvida, alguns amigos na Corte, que o favoreciam e apoiavam, mas nem estes estavam em condies de lhe arranjar um emprego que estivesse altura dos seus talentos. O prncipe-regente mantinha-se a uma distncia reservada do jesuta, atitude que podia revelar indiferena ou desconfiana. Para captar as boas

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    graas de D. Maria Francisca Isabel, a esposa de D. Pedro, Vieira redigiu um sermo em que a adulava profusamente; no chegou a proferi-lo, provavelmente por estar doente no dia marcado. O sermo, indigno do gnio de Vieira, foi publicado por um amigo e admirador mas a publicao no surtiu o efeito desejado. O prprio autor teve a prudncia de o no incluir na edio das suas homilias.

    Vieira sentia-se preterido e postergado em Portugal. Contara com a sua reabilitao; o que obteve foi apenas a liberdade. A reabilitao to ardentemente desejada no se deu. Era uma injria. Quando diplomata e conselheiro de D. Joo IV, tinha sido difamado na sua honra de patriota; quando missionrio, fora sem cerimnia expulso do Maranho; agora se via vtima de uma sentena inquisitorial que o comprometia como telogo ortodoxo, sem que ningum se preocupasse em revog-la. Traumatizado, Vieira passava por uma das crises mais graves da sua vida. No era da madeira que se talha para dar um santo. Por outro lado, no era to mesquinho que s se deleitasse em tirar vingana dos seus adversrios. O que pedia era justia para si e para a sua causa.

    Achando-se nesta situao, no de estranhar que Vieira saudasse com alegria o dia em que pde sair de Portugal para se dirigir a Roma, onde devia pleitear a canonizao do jesuta portugus Incio de Azevedo que, em 1570, com outros companheiros fora lanado ao mar por calvinistas franceses, perto da costa brasileira. O assunto no lhe tomou muita ateno nem muito tempo. O que lhe parecia muito mais importante era obter do papa a reviso do seu processo e a reabilitao da sua fama como telogo de insuspeita ortodoxia.

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    Para tal esperava poder contar com o apoio do Padre Geral dos jesutas, Joo Paulo Oliva, que de facto, logo depois de conhecer o padre portugus, deu diversas provas de o apreciar. Apresentou-o a vrias pessoas de destaque na Cidade Eterna; exortou-o a estudar a fundo a lngua italiana de modo que, dominando-a, pudesse brilhar nos plpitos romanos. Mas no estava disposto a ir to longe como Vieira desejava: tinha medo de que uma reviso do processo viesse a complicar ainda mais as relaes j pouco cordiais entre a Inquisio e a Companhia em Portugal. Temia represlias.

    Vieira passou quase seis anos em Roma (1669-1675). Tornou-se um pregador de renome no s entre os membros da pequena colnia portuguesa como, algum tempo depois, tambm entre os Italianos apreciadores da homiltica barroca. Os seus sermes eram ouvidos e admirados pelos entendidos na matria: leigos e prelados, entre os quais se achavam tambm alguns cardeais da Cria. Cristina da Sucia, a culta mas caprichosa ex-rainha, que em 1668 se estabelecera em Roma, convidou-o a pregar na sua capela, onde o jesuta deliciou o auditrio com uma srie de cinco sermes sobre as Pedras de David. Admitido no seu palcio, Vieira foi desafiado a defender, numa contenda literria com o Padre Jernimo Catneo, as lgrimas de Heraclito contra o riso de Demcrito. O portugus defendeu-as vitoriosamente, provando ser o riso do abderita coisa inepta, impiedosa e desumana.

    Aparentemente, tudo corria s mil maravilhas para o jesuta, cujo palco era agora um dos grandes centros internacionais da cultura europeia. Poderamos facilmente imagin-lo voltando as costas ingrata ptria. Na realidade, porm, no se sentia feliz. Vivia em Roma, mas

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    o seu corao estava em Portugal. Considerando a sua estada ali como um desterro, acompanhava com muito interesse os acontecimentos no Reino, ansioso por influenci-los de longe. J em 1671 se lhe oferecia uma oportunidade para intervir nos negcios pblicos de Portugal. Cometera-se, nesse ano, um roubo sacrlego no mosteiro de Odivelas, praticado, como mais tarde se evidenciou, por um ladro ordinrio, mas que os fanticos desde logo teimavam em imputar aos cristos-novos. Houve uma terrvel exploso de anti-semitismo, que induziu o prncipe-regente, pouco seguro ainda do seu poder e desejoso de ganhar a simpatia do povo, a ameaar a mpia gente com castigos rigorosssimos: confisco dos bens, expulso do pas, etc. Medidas que, alm de injustas eram insensatas, e que no chegaram a ser efectivamente tomadas porque no as aprovava a prpria Inquisio, receosa de perder a sua rendosa jurisdio sobre aquela gente mpia. Em Roma, Vieira, ainda no a par deste novo rumo, levantou a voz para protestar contra as medidas desumanas num papel a favor dos cristos-novos, do qual tiramos este trecho:

    Pois no razo que assim to levemente se creia o que

    no consta, porque no h cousa mais contrria sabedoria, como disse Ccero, que a crueldade. E ainda depois de constar a verdade, necessrio que considere Vossa Alteza que, se bem pela inocncia de poucos costuma Deus perdoar a muitos, no isto o que os cristos-novos pretendem, seno que pelo delito de poucos no sejam castigados e punidos todos, mas cada um pague por seus pecados (Var., II 79). Tambm nos anos seguintes teve mais de um ensejo de

    quebrar lanas pela gente de nao. Chegara a Roma o Padre Baltasar da Costa, provincial dos jesutas no

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    Malabar. Foi este que, em longas e repetidas conversas, exps a Vieira a situao lamentvel do Imprio Portugus no Oriente, cada vez mais corrodo pelos Holandeses e, de longe, ameaado pelos Ingleses e (suspeitava-se) tambm por Lus XIV da Frana. A nica soluo dos males da ndia parecia-lhe ser a fundao de uma companhia mercantil, semelhante que D. Joo IV em 1649 fundara para o Brasil, mas bastante diminuda nos seus privilgios depois da morte deste monarca. Vieira reencetou com entusiasmo uma das suas velhas ideias predilectas, que lhe parecia talhada no s para restaurar o Imprio Portugus na ndia, como tambm para integrar a gente israelita na expanso da ptria. Tambm na nova companhia devia entrar o capital dos cristos-novos, isento do fisco. Algum tempo depois, o Provincial seguiu para Lisboa, onde entregou ao prncipe-regente uma proposta neste sentido, acrescentando-lhe uma srie de medidas em favor da gente de nao: um perdo geral, a substituio dos estilos da Inquisio portuguesa pelos romanos, etc. Logo em seguida, de acordo com um entendimento previamente feito, os cristos-novos mandaram uma delegao a D. Pedro II, oferecendo-lhe grandes servios financeiros para a salvao da ndia em troca das mercs j propostas pelo Padre Baltasar da Costa. O prncipe parecia inclinado a aceitar-lhes as condies; mas, indeciso e medroso, e no s em questes concernentes aos judeus, no se atrevia a anuir sem ter consultado previamente os diversos rgos consultivos do Reino: as Cortes, o bispado e as Universidades. Com a nica excepo da Universidade de vora, dirigida pelos Jesutas, todos eles se opuseram acirradamente s propostas, cuja aceitao poderia

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    parecer, num ambiente menos fantico, uma simples questo de bom senso e de amor cristo.

    Era natural que Vieira, um dos principais promotores da questo, se fizesse ouvir na discusso apaixonada sobre os prs e os contras das medidas propostas. Participou na discusso, sem dvida, levado pelo desejo de enfraquecer uma instituio de que se sentia vtima inocente, mas no menos pelo motivo patritico de desfanatizar Portugal e pelo seu sonho messinico do Quinto Imprio, no qual os judeus haviam de ocupar um lugar muito especial. Fez tudo para desmascarar os processos brbaros da Inquisio portuguesa, querendo com isso impressionar a Cria romana, a que muita gente de nao recorria para pleitear a sua causa. Encontrava-se em Roma naquele tempo um certo Pedro de Lupina Freire, ex-secretrio do Santo Ofcio de Portugal e dele despedido e degredado. Foi com ele que Vieira colaborou para redigir as Notcias Recnditas, documento que nos fornece material abundante sobre os mtodos abominveis que a Inquisio portuguesa aplicava aos seus presos (1673). Este requisitrio, junto com as numerosas queixas dos cristos-novos suplicantes em Roma, contribuiu muito para que o papa Clemente X, em 1674, promulgasse um breve pontifcio em que suspendia os autos-de-f, julgamentos, processos e penas por cumprir. O Santo Ofcio obedeceu s em parte s ordens do papa: pararam as penas capitais, mas os processos continuaram. S houve queimas em efgie.

    Foi ento que Vieira escreveu o seu Desengano Catlico, em que lemos as seguintes palavras, que exprimem bem o teor do opsculo:

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    Adverte-se que a f catlica, por ser romana, e que cismtico desatino resistir ao Sumo Pontfice com pretexeto e pretenso de ser mais catlico que o Vigrio de Cristo, se que Portugal no quer seguir o caminho de Inglaterra. certo que todos os contrrios de Portugal e parciais de Castela contradizem e impugnam o intento da gente de nao, persuadindo-se que s assim tratam da sua convenincia e da runa de Portugal. Oh! quem pudera retumbar em Portugal com uma voz de trovo, para despertar aos Portugueses adormecidos com o ditame seguinte: ou Castela ou Frana procuram o seu proveito com dano de Portugal, ou no. Dizer que no, loucura muito grande; conceder que sim e procurar o mesmo que os inimigos procuram, delrio que se acha unicamente na poltica portuguesa (Var., II 113-114). Sabia-se em Lisboa que quem trabalhava em Roma por

    detrs dos bastidores a favor dos judeus era Antnio Vieira, o antigo condenado pelo Santo Ofcio e seu inimigo implacvel. D. Pedro II, que agora apoiava os Inquisidor