Antonio Roberto Chiachiri Filho - o Sabor Da Imagem

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Antonio Roberto Chiachiri Filho

    O sabor das imagens

    DOUTORADO EM COMUNICAO E SEMITICA

    Tese apresentada Banca Examinadora

    como exigncia parcial para obteno

    do ttulo de Doutor em Comunicao e

    Semitica pela Pontifcia UniversidadeCatlica de So Paulo, sob a orientao

    da Professora Doutora Maria Lucia San-

    taella Braga.

    SO PAULO2008

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    Banca Examinadora

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    Dona Alzira,

    que me mostrou o mundo dos sabores

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    AGRADECIMENTOS

    Rita, ao Rafael e Luiza, a amada trade da minha vida, que me comple-

    ta, que me nutre, que me d fora, coragem e motivo para seguir.

    minha muito querida orientadora, Lucia Santaella, que cuida da gente

    com grande carinho e dedicao, e que no deixa apagar, nunca, o bri-

    lho que emana de seus olhos, pelos quais nos transmite toda sua sabedoria.

    Minha eterna gratido.

    professora Ana Zilocchi e ao professor Winfried Nth pela importante con-

    tribuio no exame de qualicao.

    Banca Examinadora composta pelos professores Edson do Prado Pft-

    zenreuter, Ana Maria Domingues Zilocchi, Srgio Roclaw Basbaum e Laan

    Mendes de Barros, pelo interesse na minha pesquisa e pela contribuio

    intelectual.

    Aos fotgrafos Diego Rousseaux, Humberto Medeiros, Sheila de Oliveira e

    produtora (food stylist) Maria Luiza Ferrari que com toda presteza e aco-lhimento me concederam as entrevistas que so parte fundamental deste

    trabalho de pesquisa.

    A todos os professores, amigos e colegas do programa de ps-graduao,

    em especial Priscila Borges, leitora incansvel de meus ensaios.

    Aos amigos do Centro Internacional de Estudos Peirceanos, pelos momen-

    tos de discusso e de trocas.

    Edna e Cida, que sempre esto l para nos suportar.

    Aos meus queridos amigos (so muitos) da Faculdade Csper Lbero, pelo

    apoio, estmulo e pacincia para me ouvirem. Hamilton, obrigado pela dia-

    gramao.

    PUC-SP e CAPES que custearam a maior parte desta minha pesquisa.

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    RESUMO

    No contexto da comunicao e cultura, esta pesquisa est voltada para

    os recursos utilizados pelos fotgrafos especializados na fotograa gastro-

    nmica, recursos estes responsveis pelos efeitos de sugesto sinestsicaproduzidos no receptor, a ponto de excitar-lhe o apetite por vezes de modo

    mais intenso do que um prato o faria. Pretendemos mostrar como um signo

    chapado, bidimensional, pode dar conta disso.

    Sabemos que o cenrio fotogrco, neste domnio, na realidade, envolve

    uma srie de recursos e de poderes simuladores capazes de insinuar del-

    cias, engatilhar e mesmo intensicar efeitos psicofsicos como o despertar

    do apetite, aguar os sentidos desencadeando num intrprete, tambm,

    reaes siolgicas (biofsicas, neurossensoriais, comportamentais etc), taiscomo salivar ou empreender imaginativamente o sabor peculiar daque-

    le alimento segundo seu prvio repertrio sgnico gustativo. Por meio de

    entrevistas realizadas com prossionais de produo e elaborao foto-

    grca gastronmica, anlises de trs reprodues fotogrcas de mdias

    impressas especializadas em gastronomia e estudos bibliogrcos, cremos

    que esta pesquisa, elaborada luz da semitica de Charles Sanders Peirce,

    apoiada em uma metodologia de anlise extrada da obra de Lucia Santa-

    ella e em estudos sobre o fenmeno da sinestesia, poder contribuir para acompreenso de um aspecto ainda pouco explorado da arte da comuni-

    cao fotogrca, a saber, o de tentar perceber como se estrutura e age a

    linguagem deste tipo de signo, por meio do qual os prazeres gustativos so

    evocados pela mensagem visual.

    Palavras chave: fotograa, gastronomia, comunicao, semitica, sineste-

    sia, mensagem visual.

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    ABSTRACT

    In the context of communication and culture, this study is focused on the

    resources used by photographers specialized in gastronomic photography.

    The so mentioned resources are responsible for the effects of synesthetic su-ggestion produced in the message recipient, to the extent of exciting their

    appetite at times more strongly than a real dish would do. The aim of this

    work is to show how a at and bidimentional sign can be able to do this. We

    are aware that, in this domain, photographic scenario actually concerns a

    number of simulating resources and powers capable of insinuating delights,

    triggering and even intensifying psychophysical effects, such as whetting the

    appetite and stimulating the senses, also causing in an interpreter physical

    reactions (biophysical, neurosensory, behavioral, etc), such as salivating orimaginably tasting the unique avor of a certain food according to their

    previous gustatory background. Based on interviews carried out with profes-

    sionals working in the production and preparation of gastronomic photogra-

    phy, on analyses of three photographic reproductions from press media spe-

    cialized in gastronomy and also on bibliographical studies, we believe that

    this research, carried out under the perspective of Charles Sanders Peirces

    semiotics, based on an analysis method taken from Lucia Santaellas work

    and studies on synesthesia phenomenon, can contribute to the comprehen-sion of a still unexplored aspect of the art of photographic communication,

    namely, trying to understand how the language of this type of sign, through

    which gustatory pleasures are evoked by visual message, is structured and

    works.

    Keywords: photography, gastronomy, communication, semiotics, synesthe-

    sia, visual message.

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    SUMRIO

    Resumo.................................................................................................................... 5

    Abstract................................................................................................................... 6

    ndice....................................................................................................................... 8

    Introduo............................................................................................................ 10

    Captulo I...............................................................................................................22

    Captulo II.............................................................................................................. 68

    Captulo III........................................................................................................... 122

    Consideraes nais..........................................................................................139

    Referncias......................................................................................................... 141

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    NDICE

    Introduo............................................................................................................. 10

    Cap. I Como eles fazem.................................................................................... 22

    Diego Rousseaux.............................................................................................. 22

    Humberto Medeiros......................................................................................... 27

    Sheila de Oliveira..............................................................................................40

    Maria Luiza Ferrari.............................................................................................47

    Cap. II A Matriz Visual na fotograa gastronmica.........................................68

    1. Formas no-representativas................................................................. 70

    1.1 A qualidade reduzida a si mesma: a talidade................................... 71

    1.1.1 A qualidade como possibilidade.........................................................71

    1.1.2 A qualidade materializada...................................................................71

    1.1.3 As leis naturais da qualidade............................................................... 72

    1.2 A qualidade como acontecimento singular: a marca do gesto.....72

    1.2.1 A marca qualitativa do gesto.............................................................. 72

    1.2.2 O gesto em ato......................................................................................73

    1.2.3 As leis fsicas e siolgicas do gesto..................................................... 73

    1.3 A qualidade como lei: a invarincia...................................................73

    1.3.1 As leis do acaso..................................................................................... 74

    1.3.2 As rplicas como instncia da lei........................................................ 74

    1.3.3 As abstraes das leis........................................................................... 74

    2. Formas gurativas.................................................................................. 75

    2.1 A gura como qualidade..................................................................... 75

    2.1.1 A gurasui generis................................................................................. 75

    2.1.2 As guras do gesto................................................................................ 75

    2.1.3 A gura como tipo de esteretipo...................................................... 76

    2.2 A gura como registro: a conexo dinmica.................................... 76

    2.2.1 Registro imitativo....................................................................................76

    2.2.2 Registro fsico..........................................................................................77

    2.2.3 Registro por conveno....................................................................... 77

    2.3 A gura como conveno: a codicao........................................ 77

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    2.3.1 A codicao qualitativa do espao pictrico.................................77

    2.3.2 A singularizao da convenes: o estilo.......................................... 78

    2.3.3 A codicao racionalista do espao pictrico............................... 78

    3. Formas representativas......................................................................... 78

    3.1 Representao por analogia: a semelhana....................................79

    3.1.1 Representao imitativa...................................................................... 79

    3.1.2 Representao gurada...................................................................... 79

    3.1.3 Representao ideativa.......................................................................80

    3.2 Representao por gurao: a cifra.................................................80

    3.2.1 Cifra por analogia................................................................................. 80

    3.2.2 Cifra de relaes existenciais...............................................................80

    3.2.3 Cifra por codicao............................................................................81

    3.3 Representao por conveno: o sistema........................................ 81

    3.3.1 Sistemas convencionais analgicos.................................................... 81

    3.3.2 Sistemas convencionais indiciais..........................................................81

    3.3.3 Sistemas convencionais arbitrrios...................................................... 82

    Anlises das reprodues fotogrcas..........................................................87

    Cap. III O que se fala sobre sinestesia...........................................................122

    1. Alguns tipos de sinestesia....................................................................129

    2. Somos, de alguma maneira, sinestetas?...........................................132

    3. A sinestesia e a semitica................................................................... 135

    Consideraes nais...........................................................................................139

    Referncias..........................................................................................................141

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    Introduo

    Manger est une pratique minemment culturelle. Elle rvle profon-dment un pays, le fonctionnement de sa socit, son histoire, sagographie, sa vision du monde. [] Les changes entre la sphre

    de la cuisine et celle de lart ont t incessantes. [] Art et cuisinesont une mme gourmandise, une mme jubilation des sens et delesprit. Ils sont tmoins de la vie, ils la clbrent.(Nathalie Demichel/ www.plumart.com)

    Nada melhor do que o cheirinho de uma cebola refogada, de um

    caf sendo coado. O calor do forno, do fogo lenha, o som da fritura,

    da gua fervente... Vozes e vida daquela cozinha aconchegante das boas

    conversas. Mas, s vezes, esse cheirinho, esse calor, esse som, trazem muitomais nossa mente do que somente o prprio paladar do prato que est

    sendo preparado. Isso tudo nos traz recordaes da infncia, da nossa av,

    da nossa me, da nossa famlia, da nossa casa, da nossa vida. So, talvez,

    essas fortes experincias - o inteiro resultado cognitivo do viver (IBRI, 1992,

    p.9) que fazem com que o sabor dos alimentos se torne para ns muito

    mais signicativo e palatvel.

    O olfato pode ser o sentido que mais prepara nosso sistema diges-

    trio para receber os alimentos, ele forte e ativa nossa memria gusta-

    tiva de uma maneira mpar. O paladar tem de ser complementado pelo

    olfato, pois s est apto para sentir o salgado, o doce e o amargo. Porm,

    um outro sentido, talvez, nos faa chegar bem prximos desse resgate

    de memria gustativa, o sentido da viso. Uma viagem, ento, por um

    livro ou revista ilustrada de receitas culinrias, e mesmo em certas peas

    publicitrias de gastronomia, nos faz penetrar num mundo de sonhos, sen-

    saes e sabores que resgatam toda uma memria empreendendo ima-

    ginativamente prazeres gustativos. Quando dizemos prazeres gastronmi-

    cos ou gustativos nos referimos no somente ao gosto, mas a tudo aquilo

    que possa, diante de um signo visual, despertar num intrprete, sejam re-

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    aes siolgicas como gua na boca, sejam reaes de vontade, de

    despertar o apetite, de sosticao entre tantos outros.

    Instigados por esse motivo e tentando entender melhor a nossa per-

    cepo visual nesse terreno da gastronomia, fomos impulsionados a realizar

    essa pesquisa.

    O cenrio fotogrco, em especial o da fotograa gastronmica,

    embora parea e deva parecer verossmil, est, na realidade, envolto em

    uma srie de recursos e de poderes simuladores capazes de insinuar del-

    cias, engatilhar e mesmo intensicar a vontade de comer ou beber algo

    naquele momento. E na composio desse signo visual, gerar hbitos inter-

    pretativos capazes de desencadear e intensicar prazeres gustativos numa

    mente interpretadora, sabendo que esta mente traz consigo um repertrio

    cultural, intelectual, enm, uma experincia colateral que lhe peculiar.

    Pois bem, no modo como representa ou simula seu objeto, consegue agu-

    ar tais sentidos.

    Como possvel que uma imagem, xa, chapada, enm, bidimen-

    sional seja capaz de produzir no seu receptor reaes sinestsicas quase ou

    to mais fortes do que a percepo que o prprio fenmeno produziria?

    Melhor explicando, como e por que as imagens fotogrcas dagastronomia podem desencadear reaes gustativas to ecazes quanto

    aquelas que so produzidas quando estamos diante de um prato no ato da

    refeio, mesmo levando em considerao estarmos, neste ato, muito mais

    prximos do fenmeno com todas as caractersticas perceptuais de aroma

    e temperatura que lhe so prprias?

    Essa preocupao tambm est relacionada com o percurso de

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    pesquisa de mestrado no qual se buscou revelar o modo como as estrat-

    gias de sugesto da mensagem publicitria operam por meio do emprego

    de signos icnicos e das associaes mentais que estes so capazes de

    provocar no receptor. Tratamos de evidenciar a noo de cone e as asso-

    ciaes mentais que um receptor levado a realizar por meio destes signos.

    Vimos ainda que o conceito de signo icnico, especicamente por meio

    das estratgias da montagem, consegue tecer uma malha sgnica capaz

    de produzir o efeito de persuaso pretendido pela mensagem publicitria.

    Procuraremos agora, neste trabalho de doutorado, tendo como

    objeto a fotograa gastronmica, avanar nossa pesquisa no estudo dos

    efeitos interpretativos gerados pelos recursos utilizados na composio des-

    se signo visual capazes de desencadear e intensicar prazeres gustativos

    numa mente receptora.

    H certo consenso, na comunidade cientca da comunicao,

    que todo processo produtor de sentido efetivado por uma mente inter-pretadora. aceito tambm que cada mente interpretadora traz consigo

    um repertrio cultural, intelectual, enm, uma experincia colateral. Admi-

    te-se ainda que, segundo a teoria semitica peirceana, uma imagem fo-

    togrca se caracteriza por ser um sin-signo indicial dicente. Todo sin-signo

    traz embutido em si seus quali-signos peculiares, exercendo tambm uma

    funo icnica. Ora, a fotograa gastronmica tende a exacerbar essesaspectos quali-sgnicos icnicos em detrimento do aspecto que deveria ser

    dominante na fotograa, o indicial.

    No mbito desta pesquisa, o foco ser dirigido predominncia

    da composio, dos recursos e dos artifcios que levam o artista fotgrafo

    elaborao do aspecto icnico existente no cerne da dimenso indicial.

    Da optarmos pela teoria peirceana, particularmente sua teoria dos signos,

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    como embasamento metodolgico deste estudo. Esse embasamento ser

    empregado com o auxlio da teoria das modalidades da linguagem visual

    desenvolvida por Lucia Santaella em seu livroMatrizes da linguagem e pen-

    samento(2001) e, apoiados em autores que tratam o fenmeno da sineste-

    sia, tentaremos complementar nosso raciocnio no intuito de vericar como

    se processa a traduo de um sentido, no nosso caso o visual, em outros

    sentidos, como o paladar, por exemplo.

    O recorte do corpus de anlise compreender somente dois ve-

    culos da mdia impressa: a revista e o livro - nacionais e internacionais - es-

    pecializados em gastronomia. Deste modo elencamos exemplares destas

    mdias no Brasil e nos pases que se destacam por sua rica variedade gas-

    tronmica e hbitos culturais, e por aqueles que fazem da sua gastronomia

    uma verdadeira art de vivre.

    Uma das fontes que inspiraram nosso trabalho, alm da paixo pelo

    mundo da gastronomia, vem de um momento vivido h alguns anosnuma noite de m de outono, comeo de inverno, na cidade de Roanne,

    na regio da Borgonha, na Frana. Tivemos, nesta noite, o privilgio de po-

    der desfrutar os prazeres gastronmicos num templo da gastronomia fran-

    cesa, a Maison Troisgross Restaurant Gastronomique. Privilgio, pois fomos

    recebidos pelo seu proprietrio, o ChefPierre Troisgross, um dos criadores

    da Nouvelle Cuisine, que nos mostrou os bastidores deste templo, sua co-zinha. Como um maestro,MonsieurTroisgross regia sua equipe com peque-

    nos toques de verdadeira magia gustativa. L, em sua cozinha, tivemos a

    oportunidade de conhecer em detalhes todo o processo da criao desta

    arte culinria. Nos cortes dos alimentos, na alquimia do entrelaar de sabo-

    res, na beleza plstica da composio dos pratos. Isso tudo foi seguido, evi-

    dentemente, por um magnco jantar aos moldes da grande gastronomie

    franaise. Vivenciamos in loco uma experincia mpar. Mas como compar-

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    tilhar uma experincia deste tipo? Como fazer com que mais pessoas pos-

    sam viver momentos de prazer, pelo menos num cenrio da imaginao?

    Pensando no aproveitamento do estudo elaborado quando de nos-

    sa dissertao de mestrado em que, como j citado, trabalhamos com os

    signos icnicos, acreditamos que criar cenrios imagticos atravs de re-

    produes fotogrcas em revistas e livros um meio que pode aproximar

    esses cones s formas de sentimentos visuais, gustativos, olfativos, viscerais.

    Porm, supomos que oferecer uma imagem atraente de um prato, de uma

    bebida, de alimentos in natura, de um ritual gastronmico, no seja uma

    tarefa muito fcil. s vezes alguns alimentos, alguns ingredientes de uma

    receita e mesmo algumas j prontas para o consumo no conseguem por si

    s atrair nosso olhar. Cabe aqui, ento, a um outro artista criar recursos para

    que consigamos uma maior aproximao destas imagens (destes signos)

    com o universo sensorial que pretendemos estudar. Este artista o fotgrafo

    especializado em fotos gastronmicas. E a ns caber esmiuar os mean-

    dros destes recursos utilizados pelo fotgrafo. Este , pois, o trabalho queaqui propomos e que cremos de suma importncia para o avano do co-

    nhecimento de nosso objeto, pois nesta urdidura, neste caminho produtor

    que surgir la matire premirede nossa pesquisa.

    Embora no sejamos os nicos a nos preocupar com essa questo

    da comunicao por meio de um signo visual - muitos so os trabalhos nes-sa rea - acreditamos que nossa pesquisa se prope a estudar um aspecto

    ainda pouco ou no explorado que focalize a construo do signo visual e

    os efeitos sinestsicos que este pode produzir numa mente interpretadora.

    Em nossa procura pelo Estado da Arte sobre temas ligados imagem

    e gastronomia, poucas obras foram encontradas. Comer com os Olhos: Es-

    tudo das imagens da cozinha brasileira a partir da revista Claudia Cozinha

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    o ttulo da dissertao de mestrado de autoria de Helena Maria Afonso

    Jacob. A autora trabalha a questo da imagem da cozinha brasileira re -

    tratada pelas imagens criadas pela narrativa de Gylberto Freyre em suas

    obras Casa Grande&Senzala e Acar. Ela trata, em sua dissertao, da

    importncia de um sistema cultural gerado pela alimentao. Seu objetivo

    com a pesquisa explicar como se d a construo da imagem da comi-

    da e sua relao de representao com a cultura brasileira. A parte de seu

    trabalho que mais se aproxima do nosso, seja, talvez, quando a autora pro-

    cura mostrar como o processo de representao da comida elaborado e

    apresentado na mdia impressa e como se processa, em suas palavras, a

    troca comunicacional entre a cozinha e a mdia.

    Uma outra pesquisa, ainda em curso, da qual tomamos conheci-

    mento recentemente, a de Renata Raposo, que estuda como se d a

    mediao do sabor em diferentes mdias como TV, revista e jornais. No en-

    tanto, sua preocupao com a mediao, ou melhor dizendo, segundo

    a autora, com a reduo do cdigo no processo de mediao, e paraisso recorre a autores como Martn Barbero, Norval Baitello Jr., Harry Pross e

    Vilen Flusser.

    Podemos, tambm, citar alguns trabalhos que caminham pelo vis

    do discurso narrativo, que o caso, por exemplo, do trabalho do Prof. Ja-

    cques Fontanille da Universit de Limoges Frana intitulado: dgusterdes yeux. Notes smiotiques sur la mise em assiette. propos de la cuisine

    de Michel Bras. Em seu trabalho, por meio de fotograas dos pratos, procura

    nos mostrar, no entrelaamento de cores, formas e materialidade dos ele-

    mentos, a elaborao cuidadosa do cheffrancs Michel Bras na produo

    de um encaminhamento narrativo concernente composio de cada

    prato de seu cardpio. Como se pode perceber, professor Fontanille segue

    a linha da semitica discursiva.

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    No que diz respeito aos recursos de iluminao na preparao da

    fotograa culinria encontramos um excelente trabalho em Hicks & Schultz

    (1995), na edio francesa da obra Photo Culinaire, em que nos apresentam

    58 fotos com todos os detalhes desta tcnica. Podemos observar todo apa-

    rato tcnico, luzes, mesas, telas, aparelhos fotogrcos entre outros, tentan-

    do colocar o signo mais prximo possvel do objeto fotografado. Nada mais

    exemplar para ilustrar esta idia do que um comentrio feito por um destes

    fotgrafos: La salade devaid sembler apptissante et dune incomparable

    fracheur(p.70). Este livro nos brinda com as tcnicas de iluminao da fo-

    tograa gastronmica em suas 151 pginas, percorrendo um universo culi-

    nrio que comea por um glossrio do campo da iluminao fotogrca e

    destina a maioria dos outros captulos para uma vasta temtica da cozinha.

    So captulos que detalham em tcnicas as fotos de petiscos e entradas,

    sopas, legumes, ingredientes, peixes e frutos do mar, mesas preparadas e

    sobremesas.

    Outras referncias encontradas, que tratam das tcnicas fotogr-cas em gastronomia, so alguns stios eletrnicos internacionais que pouco

    puderam nos auxiliar, pois, como j citado, so referncias muito tcnicas

    para contribuir com nossa pesquisa.

    Por no termos encontrado, embora tivssemos procurado, um

    material signicativo para podermos subsidiar nosso trabalho, conclumosque esse o Estado da Arte at o momento e, por isso, o adicionamos

    nesta introduo. Para preencher essa lacuna, realizamos entrevistas com

    aqueles que produzem fotos de gastronomia, como ser apresentado

    mais frente.

    No podemos, entretanto, deixar de falar de gastronomia e de fo-

    tograa, mesmo que resumidamente, pois, nesse caso a literatura muito

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    vasta. Por isso, selecionamos apenas o que julgamos mais pertinente.

    Feliz o homem que come comida, bebe bebida, e por isso tem alegria.(Fernando Pessoa)

    Falar sobre gastronomia nos leva a um mundo de sabores e de sa-

    beres. Talvez no d para separar a histria da gastronomia com a prpria

    histria do homem. Desde que o homem se apia em dois ps e tem suas

    mos livres para colher frutos em rvores, criar instrumentos de caa e pes-

    ca, - e estamos aqui falando j do homem pr-histrico seu modo de se

    alimentar toma rumos diferentes. A descoberta do fogo, a domesticao

    de animais e a agricultura fazem com que aquele homem nmade busquexar sua morada, pois nessa permanncia em um lugar determinado que

    vai descobrir e desenvolver diversas maneiras para preparar seu alimento.

    O homem aprende a cozinhar, fato que o diferencia dos outros animais.

    Lembramos, aqui, na obra de Claude Lvi-Strauss O cru e o cozido(1964)

    que trata do mito da origem da culinria, do fogo para cozer, das plantas

    cultivadas para alimentao, da carne de caa. O homem tambm crianovos hbitos, faz nascerem as aldeias, o comrcio e as cidades.

    Surgiram os utenslios de cermica para armazenar e conservar osalimentos. Com isso, a alimentao humana cou bem mais va-riada, pois as vasilhas possibilitavam ferver os lquidos e manter osslidos em temperatura constante. O homem, ento, pde iniciar-se na culinria propriamente dita, cozinhando os alimentos e con-dimentando-os com ervas e sementes aromticas, para melhorar eativar o gosto. (LEAL, 2004, p.19)

    De fato, a inveno desses utenslios vem dar incio arte culi-

    nria. O homem, ento, deixa de se alimentar somente de razes e de

    frutas e passa a utilizar os utenslios para cozinhar os alimentos - prin-

    cipalmente as carnes - tornando-os mais digerveis, mais palatveis e

    mais saborosos. Passa a viver em sociedade e a partilhar os alimentos.

    A essa partilha foi dado o nome de refeio, que repleta de smbolos.

    uma ritualizao. ACKERMAN (1992, p.64) nos oferece um trecho que

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    ilustra bem o que queremos dizer:

    Nosso amigo oferece-nos, em primeiro lugar, comida e bebida. ato simblico, gesto que signica: este alimento nutrir seu corpocomo nutrirei sua alma.

    Da mesma forma nos diz Franco (2004, p.26):

    O homem cerimonioso no comer. Tem com relao ao alimentoatitude complexa. No come somente para saciar a fome. Paraele, o alimento se reveste tambm de valor simblico e, eventual-mente, se transforma em objeto ritual.

    Ritos que se fazem presentes mesa. Essa passagem nos remete,

    tambm, a um outro livro de Claude Lvi-Strauss intitulado A origem dos

    modos mesa(1968), que faz um percurso na culinria incluindo, a, no

    somente o ato de comer, mas o modo de viver em sociedade.

    Gastronomia , ao contrrio do que se possa deixar entender, no

    sinnimo de culinria - que dela parte integrante - mas vai muito alm.

    todo um conjunto de fatores que se entrelaam (preparo da refeio, pes-

    soas, lugares, arrumao, decorao, ambiente etc.) para fazer daquele

    momento da refeio, um momento muito especial, pois os prazeres da

    mesa convidam outros prazeres. No s os prazeres do gosto, mais os pra-

    zeres da vida. Faz-se do ato de comer, um ato de celebrao, de come-

    morao.

    Diane Ackerman (idem, p.164), nos deixa tambm um interessante

    depoimento sobre gastronomia:

    Dizemos comida, como se fosse algo simples, absoluto, como a pe-dra ou a chuva, que temos como certeza. Mas, para muitas vidas, grande fonte de prazer, um mundo complexo de satisfao tantosiolgica quanto emocional, que guarda grande parte das lem-

    branas de nossa infncia.

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    No se deve confundir gastronomia somente com requinte, nobre-

    za, festas, enm, algo de to especial que se distancia da grande maio-

    ria. Pelo contrrio, gastronomia a boa comida, aquela que bem-feita,

    com ingredientes frescos e da estao (BRAUNE e FRANCO, 2004, p.79).

    aquela que deve estar ao alcance de todos.

    Decidimos, ento, pensar um pouco nesses prazeres da refeio

    por meio de um signo visual que sga muito facilmente a nossa ateno. A

    fotograa.

    Folle ou sage? La photographie peut tre lun ou lautre : sage sison ralisme reste relatif, temper par de habitudes esthtiques ouempiriques (feuilleter une revue chez le coiffeur, le dentiste) ; folle,

    si ce ralisme est absolu, et, si lon peut dire, originel, faisant revenir la conscience amoureuse et effraye la lettre mme du Temps:mouvement proprement rvulsif, qui retorune le cours de la cho-se, et que jappellerai pour nir lextase photographique.(BARTHES,1980, p.183)

    Talvez, devssemos pensar a fotograa como os efeitos que este

    signo pode vir a produzir no seu receptor. O poder mgico da imagem

    fotogrca. A foto uma imagem em trabalho, e como diz Dubois (1990,

    p.15),

    um verdadeiro ato icnico [...] uma imagem-ato, estandocompreendido que esse ato no se limita trivialmente apenas aogesto da produo [...], mas inclui tambm o ato de sua recepoe sua contemplao.

    Juntando a gastronomia com a fotograa, entrando nesse mundo

    da representao gastronmica por meio deste signo visual, acreditamos

    que possamos percorrer um caminho para melhor compreendermos essa

    produo de sentidos, ou melhor, essa transformao de um estmulo visual

    num outro sentido, o palatvel.

    No captulo I desta tese de doutorado procuraremos, por meio de

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    entrevistas que realizamos com prossionais da fotograa, mostrar o seu

    modo de fazer. Para isso, entrevistamos 3 fotgrafos especializados em

    culinria e uma produtora fotogrca de alimentos (food stylist). Nesse per-

    curso poderemos vericar o grau de envolvimento de cada um dos pros-

    sionais, os recursos por eles utilizados na construo de um signo visual e

    a inuncia da sua histria de vida transportada de maneira agrante na

    realizao de cada clique efetuado. Relatos que nos mostraro o nvel

    de complexidade, que varia das mais simples interferncias aos mais ela-

    borados atos do pensar, do agir e da deciso do fazer. Resolvemos, ento,

    intitular esse primeiro captulo de Como eles fazem.

    No captulo II,A Matriz Visual na fotograa gastronmica, partiremos

    para anlises minuciosas de 3 peas fotogrcas gastronmicas a primei-

    ra de uma Entrada, a segunda de um Prato Principal e a terceira, de uma

    Sobremesa -, baseando-nos em algumas modalidades e sub-modalidades

    da Matriz Visual extrada da obra de Lucia SantaellaMatrizes da Linguagem

    e Pensamento: sonora, visual, verbal, matrizes essas derivadas da teoria se-mitica de Charles Sanders Peirce. Evidentemente, apresentaremos um bre-

    ve percurso nas 9 modalidades e 27 sub-modalidades, que nos apresenta

    Santaella, para podermos melhor entender o trabalho analtico por ns efe-

    tuado, o qual se utilizar apenas daquelas modalidades e submodalidades

    que julgamos pertinentes s anlises. Estas procuram sustentar nossas hip-

    teses e, principalmente a hiptese primria, que aquela em que supomosque so os recursos semiticos de produo da fotograa gastronmica os

    responsveis por desencadear e intensicar prazeres gustativos numa men-

    te interpretadora.

    Sinestesia ser o assunto tratado no captulo III. Da mesma forma

    que no captulo II, num breve e sucinto relato, tentaremos apresentar este

    fenmeno e qual a sua relao no processo da semiose (ao do signo).

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    Queremos entender como um estmulo sensorial pode despertar ou mesmo

    aguar outro(s) sentido(s). Certamente a questo da sinestesia no vai es-

    gotar o assunto tamanha a complexidade do estudo deste fenmeno, mas,

    talvez saiamos, depois da leitura desta tese, um pouco mais conhecedores

    desse mundo to intricado que envolve nossa percepo e nossa mente.

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    Captulo 1

    Captulo I

    Como eles fazem

    O que se pode extrair a partir do depoimento dos produtores e fo-

    tgrafos por ns entrevistados so inferncias, ndices de como uma lingua-

    gem fotogrca pode ser elaborada.

    Nesta parte vamos poder observar, por meio de depoimentos de fo-

    tgrafos especializados em fotos gastronmicas e prossionais de produo

    fotogrca para gastronomia food stylist-, os modos de executar esse tra-

    balho de fotografar que requer uma complexidade no pensar, no agir, para

    compor um signo, ou seja, no processo de criao de um signo, que visa a

    despertar no receptor da imagem/mensagem efeitos por vezes sinestsicos,

    seja resgatando memrias, aguando sabores ou despertando prazeres.

    Para iniciar, acreditamos ser bem ilustrativo o depoimento a ns con-

    cedido, em 2006, por Diego Rousseaux, fotgrafo argentino radicado no Bra-

    sil, colunista da revista Fotgraphose professor de fotograa em So Paulo:

    Vejo a fotograa em seu entorno. Fotografar, para mim, no apenasfocar ou enquadrar o objeto e clicar naquela delimitao. Componhoa fotograa mesmo antes do clique. O cenrio criado em minhamente, cenrio este prenhe de memrias de experincias vividas. Sefor a luz das 10 horas que tem de compor um ambiente fotogrco, jsei com esta luz, j conheo as qualidades que compem esta luz, j

    sei em que orientao encontro esta luz. Cada fotgrafo v diferenteo objeto fotografado (ou a fotografar). Busco sempre enriquecer meurepertrio com fontes que vm do passado e com a atualizao diriados acontecimentos, das leituras... No fotografo para mim mesmo,isto muito raro, fotografo porque essa a minha prosso, ento,nunca paro de trabalhar, pois a todo momento, o mundo ao meu re-dor matria prima para as minhas fotograas. Nunca fui Grcia ou Frana, mas daquilo que conheo sobre esses pases, daquilo que jvi ou ouvi falar deles, componho o cenrio para a fotograa.

    Na revista Fotgraphos, na sua edio de nmero 09 (outubro de

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    Captulo 1

    2006), Diego nos mostra como fotografou um prato de Penne Mediterrneo

    (g.1). Como dito em seu depoimento, nunca esteve na Grcia, mas procu-

    ra representar as imagens do Mediterrneo por meio de informaes adquiri-

    das naquilo que j pesquisou ou de que ouviu falar. A gura 1, abaixo, uma

    cpia da reproduo publicada na revista.

    Figura 1: Foto Penne Mediterrneo

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    Captulo 1

    Essa gura 2, ao lado, nos

    mostra todo o aparato e como

    foi montada a produo da foto,

    o que procuraremos descrever a

    seguir.

    De acordo com Rousse-

    aux, o espao para a compo-

    sio da foto era bem restrito

    essa foto foi feita em seu apar-

    tamento ento, solues criati-

    vas e prticas tiveram de ser en-

    contradas para que o resultado

    fosse satisfatrio. O primeiro pas-

    so era criar um clima que traduzisse as cores, os tons e sabores do Medi -

    terrneo. Para isso, a luz a protagonista dessa linguagem. O clima des-

    sa imagem requer uma iluminao mais discreta e bem cuidada, pois,para ele, o excesso de claridade pode gerar interferncias indesejveis.

    As portas e as janelas so vedadas com pano escuro e, ento, a luz

    controlada somente pelas posies de seus reetores. A mesa, sobre a

    qual se assenta o prato com a massa, constituda por dois pedaos

    de madeira rstica; o cu, que foi colado na parede de seu aparta -

    mento, representado por uma cartolina branca pintada com algumaspinceladas de tinta azul num tom aproximado ao que lhe parece o cu

    do Mediterrneo. Inspirado nas paisagens das Ilhas gregas, Rousseaux

    simulou um muro de concreto mal acabado com cimento e cal com um

    lenol branco estendido sobre um cano e apoiado em duas cadeiras. E,

    para quebrar um pouco o espao entre o cu e o muro, presos por

    umas garrinhas conhecidas como jacar, alguns galhos de arbustos fo-

    ram pendurados. Com jacar tambm foi preso o garfo que sustenta o

    Figura 2: Montagem para a foto Penne Mediterrneo

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    Captulo 1

    pennecomo se estivesse sustentado por uma mo. Uma garrafa e uma

    taa com vinho branco tambm ali foram colocadas. A massa, o penne,

    com um leve cozimento e guarnecida com pedaos de tomates e chei-

    ro verde, so a essncia da razo da foto.

    Todas as artimanhas lanadas pelo fotgrafo na montagem do

    objeto a ser fotografado constituem um caminho criador de linguagens

    e um envolvimento profundo do fotgrafo para tentar aproximar o es-

    pectador de uma realidade que se quer mostrar. compor a foto antes

    do clique nal. Mas, para o registro desse cenrio no se pode esquecer

    de um elemento, talvez o mais importante, que a cmera fotogrca.

    atravs desse equipamento que se congelam as imagens de uma re-

    alidade que se cria, ou melhor, que se pretende criar. Segundo Arlindo

    Machado (1984, p. 54) ... a imagem que nos d a cmera sempre

    essa co petricada na pose..., no caso de uma foto como essa que

    estamos tratando, talvez o melhor seja substituir a palavra pose, citada

    por Machado, e em seu lugar utilizarmos composio cnica(no que-

    rendo dizer que isto no ocorra em outros tipos de fotograas, mas para

    ns, pose est mais relacionada com a postura, no fotografar, da gu-

    ra humana), composio essa que sempre tratada em seus detalhes.

    Melhor explicando, a insero de elementos e ajustes de luz que vo

    compondo o imaginrio do fotgrafo para que, atravs de seu olhar

    pela cmera, possa simular uma determinada cena que chegue maisprximo de um real que se quer representar. ... a cmera tem um poder

    transgurador do mundo visvel que chega a ser devastador nas suas

    conseqncias (MACHADO, idem). De fato, os objetos ali colocados

    so articulados para constiturem uma representao que pode ser simu-

    lada pelo ato fotogrco. E ainda citando Machado (1984, p.56):

    Ningum melhor que os fotgrafos que trabalham com publici -dade conhecem essa tcnica de transgurar o referente para

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    Captulo 1

    aumentar o poder de convico de sua imagem. Os produtosvistosos e sensuais que a publicidade forja em seus painis icono-grcos [...] constituem verdadeiras reconstrues, s vezes atmesmo distintas dos objetos a que visam aludir.

    O lenol vira uma gura desfocada remetendo seu signicado a

    um muro; a cartolina, ao cu; pedaos de tbua, a uma mesa rstica; a

    luz, ao ambiente mediterrneo. No entanto, a percepo dessas ima-

    gens fotogrcas requer um repertrio cultural para sua eccia inter-

    pretativa.

    E, por m, repetindo Rousseaux, ele xa a cmera num trip para,

    na hora do clique, no tremer de fome. E parece ser esse mesmo osentido de fotografar. No caso de foto de gastronomia, o envolvimento

    do fotgrafo tamanho que ele deve estar mergulhado, imerso naquela

    realidade que est por produzir.

    Nosso prximo relato ser a entrevista que zemos com um outro

    fotgrafo, este de Niteri, com grande experincia em fotos de gastro-

    nomia.

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    Captulo 1

    Em 2007, tivemos a oportunidade de conversar com Humberto Me-

    deiros, um fotgrafo uminense, que, entre outros, foi um dos responsveis

    pelas belas fotos que ilustram a coleo de livros da gastronomia regional

    produzida pela editora SENAC. Coleo com belos ttulos, tais como: Pan-

    tanal, sintonia de sabores e cores; Sabores e cores de Minas Gerais; Dos co-

    mes e bebes do Esprito Santo; A doaria tradicional de Pelotas. Nessa nossa

    conversa, que durou bons momentos, cou ainda mais claro para ns que a

    tarefa de fotografar exige no somente habilidade tcnica, conhecimento

    dos equipamentos, como tambm, e muito importante, um repertrio cul-

    tural, uma sensibilidade e gozo por aquilo que se faz. se nutrir, numa busca

    constante e incessante, de inuncias e referncias culturais. Vejamos um

    trecho de seu depoimento:

    . Qualquer pessoa ligada uma rea cultural, tem conhecimentode ler, de buscar inuncias, de buscar referncias visuais, n? En-to isso acontece com fotograa, todo mundo assim, n? A gen-te, a gente quando passa a gostar do assunto, passa a ver, a gente

    passa ver o que que as pessoas fazem para descobrir solues,e isso no s de fotograa,... , como que vem acontecendo

    com a histria do visual no mundo, no ? Ento a gente meioinserido nessa coisa, nessa... ento todas essas referncias, de cor,do que interessa disso, do que funciona melhor assim, so coisasque so da histria da cultura, so, histria da arte. J esse a umassunto que j foi discutido e pensado h milnios...

    Medeiros evidencia tambm, em sua fala, que o fotgrafo um

    praticante de uma arte que no apenas a arte fotogrca, mas uma arte

    visual, uma esttica que a existe e est pronta para ser trabalhada que

    est a pra gente pegar. Ns somos leitores dessa coisa. E leitores dessa

    coisa sinnimo de ver a fotograa como uma forma de expresso orga-

    nizada em linguagem, em elementos de linguagem cujo domnio possibili-

    ta a escolha de determinadas solues que melhor expressam aquilo que

    se queira passar como mensagem. Uma forma de linguagem, explicada

    por Medeiros, a composio. Ressalta, ainda, que as cores formam uma

    composio, uma linguagem. De fato, a cor, que no tem uma existncia

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    Captulo 1

    material, que pura qualidade, que rica em possibilidades qualitativas,

    quando posta em cena, quando manejada para compor signicados, tor-

    na-se um formidvel meio de projeo de sentimentos, conhecimentos,

    magia e encantamento (Pedrosa, 2003, p.21). Tambm, para Barros (2006,

    p. 15):

    Todos aqueles que trabalham com imagem, criao de cenrios ecomunicao visual sabem disso. A cor representa uma ferramen-ta poderosa para transmisso de idias, atmosferas e emoes, epode captar a ateno do pblico de forma forte e direta, sutil ouprogressiva, seja no projeto arquitetnico, industrial (design), gr-co, virtual (digital), cenogrco, fotogrco ou cinematogrco,seja nas artes plsticas.

    As cores, retomando Medeiros, comunicam e ajudam a criar e orga-

    nizar espaos. Somos, na verdade, criadores de espao, diz o fotgrafo.

    Em verdade, se pensarmos na fotograa de maneira geral, pode-se perce-

    ber que os elementos que ali esto sendo arranjados para a composio do

    cenrio fotogrco, incluindo as cores e os jogos de luzes, alm de objetos

    mais tangveis, criam e recriam espacialidades construindo e reconstruindo

    signicados. Ou seja, criando uma representao. E a fotograa culinria,

    que em tese no tem nada a ver com a foto jornalstica, por exemplo que

    tambm uma forma de representao -, essencialmente construo.

    Constroem-se espaos mentalmente e depois se ajeita na prtica. Esses es-

    paos so produtos da nossa prpria cultura. evidente que essa prpria

    cultura nutrida pela incessante busca de repertrio, de trocas de informa -es e de aquisio de competncias nos mais diversos campos, relacio-

    nados ou no com o trabalho que se pretende realizar. O que queremos

    dizer que, no caso da fotograa de gastronomia, que o nosso objeto de

    anlise, no basta ter conhecimentos apenas das tcnicas fotogrcas, do

    universo culinrio, mas, a integrao com os costumes, com os hbitos e

    com o prprio conjunto cultural de uma dada populao, por exemplo. A

    representao fotogrca de uma bela feijoada, que, para ns brasileiros,

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    Captulo 1

    pode provocar gua na boca, talvez para um chins, que no tenha tido

    contato com essa iguaria brasileira, possa despertar certo repdio ou mes -

    mo no provocar nada; j, uma foto de um crebro cru de um certo tipo

    de macaco, prato apreciado pelos chineses, pode nos causar asco.

    A elaborao de um livro de gastronomia regional um bom exem-

    plo de como a inuncia cultural condio primordial para uma eccia

    dessa tarefa. Como nos conta Medeiros, organizar tal livro requer uma es-

    trutura e um trabalho de equipe que comea com a denio do projeto,

    discusses a respeito do tema e uma srie de reunies para acerto dos

    detalhes, que sempre so revistos. A equipe rene-se em torno desse pro-

    jeto, divide os papis de cada um, comea um trabalho de pesquisas e,

    no caso do fotgrafo, e do diretor de arte, a tarefa aquela de organizar

    a visualidade. Evidentemente essa organizao no nasce do nada. Esses

    prossionais possuem bagagem tcnica e cultural que lhes confere aptido

    para tal realizao. So experincias que vm de diversas reas, que no

    so somente da fotograa culinria, mas que se interligam para compor assolues criativas daquele trabalho. E dessa forma, vo produzindo situa-

    es e cenrios para a construo do livro. Observemos mais um trecho do

    depoimento de Medeiros:

    A gente sabe que um livro um conjunto de muitas fotos. E nesselivro a gente tem de ter a noo do que est fazendo no individuale tambm no conjunto. Ns precisamos ter um repertrio que nos

    permita fazer esse conjunto atrativo e no todo igual. Ento, a gen-te tem de ter elementos de variedade. Saber que a gente j temdeterminadas coisas e repeti-las no vale a pena. Ento, o traba-lho da gente lidar com um repertrio muito grande. A gente temde ter muitas opes para no ser cansativo, no ser sempre igual.E, quando voc est trabalhando com fotos que vo ser vistas emconjunto, voc tem de trabalhar com diversidade.

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    Captulo 1

    Ainda nos relata Medeiros que uma tcnica comum que utiliza-

    va quando trabalhava com fotos analgicas era a de, paralelamente,

    fotografar com Polaroid (fotos instantneas), pois isso facilitava na hora

    de escolher as fotos para a revelao. ... a gente ia fazendo o livro

    nessas viagens e ia botando as Polaroids organizadas na parede [...]

    ento, a gente tinha uma noo do que estava acontecendo. Esse,

    em verdade, j era um caminho criador de uma narrativa visual em au-

    xl io s futuras escolhas. Isso possibil itava saber, por exemplo, que tipo de

    abordagem j havia sido utilizada, que tipo era mais indicada e assim

    por diante. Hoje, com a fotografia digital, tudo ficou mais rpido e mais

    prtico. A parede cedeu lugar tela do microcomputador, ou at mes-

    mo do visor da cmera fotogrfica. As fotos que no servem so quase

    que de imediato descartadas. E ainda conta-se com a facilidade decertossoftwarespara trabalhar o resultado mais prximo do desejado.

    Figura 3: O fotgrafo Humberto Medeiros em seu escritrio

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    Captulo 1

    O conjunto do livro, no entanto, sempre discutido por antecipao

    com o diretor de arte. A abordagem utilizada na elaborao do livro

    sobre a Amaznia, por exemplo, que uma regio na qual, quanto mais

    se penetra, mais se descobre sua riqueza, foi a sua diversidade que leva

    a todo um conjunto harmnico. Conjunto harmnico, porm com uma

    infinita variedade de coisas com as quais se deve prestar uma enorme

    ateno para no deixar escapar os seus detalhes. E se meter com

    muitas coisas trabalho de saber como organiz-las. De acordo com

    Medeiros, saber organizar a confuso parte do seu trabalho. Ento,

    ns perguntamos a ele: - O que a organizao da confuso? Vejamos

    o que nos disse:

    ... eu quero que fique confuso, mas no quero que fique incom-preensvel, embaralhado. A gente faz intervenes na confu-so, no caos. s vezes so intervenes sutis, que no se per-cebe. Essa interveno, porm, a guia para se compreendero caos. Compreender a confuso. No fugir da confuso; saber organizar a confuso sem deixar de ser confuso, j queexiste um interesse que se mostre muita coisa, muita coisa, n?

    Essa confuso relatada por Medeiros, como podemos perceber,

    no sinnimo de baguna ou de objetos espalhados por todo lado;

    , se bem compreendemos o que disse, a organizao do caos provo-

    cado pela enorme diversidade de possibilidades que aquela temtica

    oferece. o interesse que muita coisa seja mostrada e conectada para

    gerar significados. Essa organizao do caos requer um trabalho ex-tremamente reflexivo e cansativo. Cansativo, sobretudo mentalmente,

    pois o tempo todo tem de ser dedicado busca de solues que este-

    jam integradas e que sejam, de certo modo, inditas ou, pelo menos, j

    no tenham sido muito utilizadas. Isso voc imagina com 50, 60 fotos,

    comea a ficar muito importante, mas voc vai atrs dos caminhos, vai

    atrs dos caminhos..., palavras do nosso fotgrafo.

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    Captulo 1

    E como se vai atrs desses caminhos? Como se arrumam essas

    solues? Essa foi a indagao que fizemos a ele. Bom, com nossa ex-

    perincia, responde. E ainda continua:

    Com o saber ver as coisas e com a capacidade de organizaressas coisas. So vrias reunies, antes de iniciarmos a viagem,para determinar um plano de trabalho. Depois so tantas fotos,tantos lugares e vrias conversas com o pessoal local. Ento,a gente organiza uma produo e decide que, por exemplo,X fotos sero feitas num restaurante local, outras tantas ao ar

    livre ou at mesmo num estdio reservado que a gente vai l emonta. A gente quando viaja, viaja com um estdio. So, apro-

    ximadamente, 100 kg de equipamentos. bastante coisa, n?

    Um outro profissional importante para o bom andamento do tra-

    balho aquele responsvel por toda a produo da foto. No caso da

    foto de gastronomia aquele que hoje chamamos de Food Stylist(que

    veremos com mais detalhes depois dos depoimentos dos fotgrafos).

    Esse profissional est sempre uns passos frente do restante da equipe.

    Na elaborao de um livro regional, por exemplo, ele viaja 3 ou 4 dias

    antes do restante da equipe, rene as pessoas do lugar, visita casas,

    museus, igrejas, associaes, clubes, entre outros, e procura recolher

    todo tipo de tralha. s vezes so trs ou quatro cmodos cheios de

    objetos emprestados. A primeira coisa que a equipe faz quando che-

    ga ao local olhar tudo que foi recolhido e tentar separar o que pode

    servir para compor os cenrios a serem fotografados. , na realidade,

    uma selva de objetos culturais, portanto de objetos que contm in -

    tenes determinadas, como aponta bem Vilm Flusser emA Filosofia

    da Caixa Preta (2002, p. 29). So realmente intenes determinadas,

    pois, cada objeto escolhido traz uma ligao, por mnima que seja,

    com aquilo que se quer fotografar. Melhor explicando, tudo ali est

    para contribuir na construo do significado. As fotos so feitas, classi-

    ficadas, numeradas e depois passam por um processo de escolha deacordo com a abordagem que se quer dar. Isso um trabalho de classi-

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    Captulo 1

    ficao prvia. Embora uma foto tenha de ser bem esmiuada, pois,

    nesse ato, percebe-se o que est faltando, o que est em excesso, no

    se pensa mais to somente nela individualmente, mas no conjunto que

    vai compor a temtica do livro. Medeiros ainda nos conta:

    Existe, por exemplo, em alguns lugares uma foto de estdio-, como j fizemos vrias vezes, a gente fica num hotel, reneas coisas nesse hotel, normalmente num quarto, e comea atrabalhar nisso. As comidas chegam - muito comum a gentetrabalhar, no SENAC, por exemplo, que tem um restaurante eum chefligado ao assunto. Ento, muito comum, a gente pre-parar tudo e chamar o chefpara discutir a melhor maneira defotografar o prato, ou seja, o melhor momento, o melhor nguloetc. A discusso com o chef essencial para a boa qualidade

    da foto.

    Um outro caminho para esse tipo de foto executar o trabalho

    fora do estdio. Embora o local escolhido j tenha sido, em alguns

    casos, previamente visitado, sempre ocorrem surpresas. s vezes agra-

    dveis, s vezes nem tanto, como relata Medeiros. Quando se vai foto-

    grafar na Natureza, por exemplo, as idias pr-estabelecidas ganhamuma outra dimenso. As coisas, que se encontram na Natureza, e que

    fazem parte daquele ambiente, so elementos que se inter-relacionam

    e aderem ao prprio significado daquela representao fotogrfica.

    Tudo que ali est pode gerar para o fotgrafo novas idias, novos cami-

    nhos. Uma gota dgua, um pedao de galho de rvore, uma folhinha

    verde, uma pedra, enfim, fenmenos da Natureza compondo o todo

    fotogrfico. Vejamos abaixo (Fig. 4) uma foto feita com recursos, princi-

    palmente os cromticos, que a Natureza oferece:

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    Captulo 1

    Quando o ambiente escolhido um restaurante, a abordagem

    j um tanto quanto diferente. A tendncia trabalhar com o que oestabelecimento oferece. s vezes, o restaurante cheio de detalhes

    que fazem parte da cultura local. Neste caso, o fotografar ganha com

    a riqueza dos objetos ali dispostos. As coisas tornam-se mais fceis. As

    idias se harmonizam e o trabalho rende bastante. O chef, quando

    se interessa, ajuda muito e trabalha tambm com muito afinco. Em

    pouco tempo muitas fotos so executadas. A esse respeito, Medeiros

    relata:

    ...existem lugares onde a gente j foi [...] um excelente exem -plo desse e o de um restaurante em Olinda. Um chefmaravi-lhoso! Um dos mais famosos do Brasil. O restaurante dele emOlinda belssimo. Cheio de detalhes [...] ele, o chef, com umacompreenso muito boa do que o trabalho da gente [...] foiassim, fizemos muitas fotos e rapidamente. Em quatro horas detrabalho fizemos dez fotos. Isso um resultado e tanto!

    Figura 4: Vatap na vegetao regional

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    Captulo 1

    Mas, s vezes, o trabalho no flui como se espera. Vejamos

    mais um trecho de Medeiros:

    No dia anterior a gente tinha ido num outro restaurante, co-mercial... um bom comercial, mas mais comum em termos de

    decorao. No tinha grandes objetos. Naquele dia, o tra -balho foi bem curioso. Deu um trabalho enorme, pois a gentetinha de criar imagens a partir do nada. Tnhamos de sair paraarrumar uma flor, por exemplo, para criar um clima [...] Deumuito mais trabalho porque a gente tinha menos coisas mo[...] rendeu pouco. Num dia de trabalho de doze horas, a gen-te s conseguiu fazer sete fotos. complicado. No quer dizerque voc no possa fazer, at porque voc tem de extrair uma

    imagem e voc no tem muito de onde extrair. tirar leite depedra. O ideal pra gente trabalhar com muitas opes.

    Trabalhar com muitas opes poder escolher aquilo que ser-

    ve para o momento mais conveniente. Grosso modo, na composio

    de uma foto culinria, segundo Medeiros, acontecem dois momentos,

    porm dois momentos interligados. Melhor dizendo, acontece o que

    est dentro do prato e acontece o que est fora do prato. So duas

    composies diferentes, porm, repetindo, interligadas. No se pen-

    sa uma coisa e depois a outra. No se abandona a idia geral, mas

    se pensam as coisas com funes diferentes. A composio dentro do

    prato tem o intuito de chamar para o prato; a composio fora do

    prato tem o intuito de localizar o prato, ou seja, localizar culturalmen-

    te, resgatar uma memria. So referncias. Referncias de qualquer

    coisa que se ligue temtica daquela foto. Tem a ver com o projetode um livro de gastronomia, tem a ver com a origem do prato, tem a

    ver, ento, com a histria que aquela foto quer contar. A foto abaixo

    (fig.5), de uma delcia tpica do Sul do Brasil, ilustra bem o que acaba-

    mos de relatar.

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    Captulo 1

    Um outro exemplo de composio fotogrca, que nos mostra Me-

    deiros, o que ele chama de foto esquemtica. Para ele, este termo refere-se foto simplicada. Ou seja, com poucos elementos, ela pode remeter

    a uma culinria comum a qualquer parte. O que se destaca a receita,

    o prato. Os adereos, o cenrio, contribuem com um valor menor nessa

    composio. A foto que vemos abaixo (g.6) uma foto de um doce tpico

    com recheio de nozes oferecido em festas de casamentos e que pode ser

    encontrado em qualquer parte do pas. Chama-se camafeu. smbolo decasamento.

    O cultural/regional apresenta-se com menor fora nessa foto; o que

    fala mais alto a prpria essncia dessa guloseima, tpica sim, de festas de

    enlaces matrimoniais.

    Figura 5: Pudim tpico da regio Sul do Brasil

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    A foto que vem abaixo (g. 7) o que Medeiros denomina de fotoambiente. Foi feita no prprio ambiente de origem, ou melhor, numa rea

    externa transformada em estdio.

    Voc tvendo, aqui, nesse caso em particular dessa foto? Essa

    uma foto num ambiente, t vendo? Existe o prato e esse prato iluminado como num estdio, mas a foto no ambiente. Ento agente faz uma integrao, em determinadas situaes... Com luzmesmo. Mas, estamos no local, n? , uma rea externa transfor-

    mada em estdio, n? Bloqueado pra fazer a luz no interferir mui-to, mas deixa o fundo com a luz dele, tal, n? ... e a gente procurano interferir muito.

    Figura 6: Doces de nozes camafeus

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    De tudo isso que nos mostrou Humberto Medeiros nesse percurso de

    seu depoimento, o que faz questo de ressaltar que os recursos primor-

    diais para o sucesso de sua foto, evidentemente, aqui ele trata do seu olhar

    como fotgrafo, so luz e composio.

    O recurso maior a luz sem dvida nenhuma. Luz e composio.... eu nem gosto muito de usar essas coisas de efeito de brilhinho...Eu prero uma comida que voc v e acredita to natural que fazcom que se tenha vontade de com-la.

    Para fecharmos esta parte de nossa leitura do depoimento de Me-

    deiros deixaremos mais algumas de suas fotos que tanto representam aqui-

    lo que nos disse.

    Figura 7: Foto de uma guloseima de Pernambuco (Bolo Souza Leo)

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    Captulo 1

    Figura 8: Marmeladade Minas Gerais

    Figura 9: Bolinho de arroz dosPampas gachos

    Figura 10: Maxixadado Centro-Oeste

    Figura 11: Rabada do Agreste

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    Captulo 1

    Entrevistamos tambm, em seu estdio em So Paulo, chamado Em-

    prio Fotogrco, a fotgrafa Sheila de Oliveira. Sheila exerce essa prosso

    desde 1995 e vem se especializando em fotos culinrias,still lifee outras mo-

    dalidades. Evidentemente, falamos sobre o assunto que mais nos interessa-

    va para a pesquisa, seu savoir faire em fotos de gastronomia. No diferente

    dos outros fotgrafos que j havamos entrevistado, Sheila procura entrar

    em suas produes fotogrcas de corpo e alma: ... eu procuro trazer na

    minha fotograa essa coisa da qualidade de vida, do bem estar. Acho que

    isso que bacana [...] que, o essencial na hora de comer estar feliz.

    Fotgrafa de estdio, nos conta como todos os detalhes so impor-

    tantes para a realizao de um trabalho bem feito. Recolhe tudo que pen-

    sa ser til para a elaborao de uma foto. Nos disse que pega coisas do lixo,

    que freqenta Brechs e feiras de antigidade. Por trabalhar essencial-

    mente em estdio, tudo tem de estar mo para no perder muito tempo

    na hora da produo. Seu arsenal tem de ser tambm bastante variado

    porque na hora do clique sempre um elemento, por menor que seja, podefazer toda a diferena.

    Figura 12 Estdio Emprio Fotogrco So Paulo

    Figura 13Detalhe doEstdio

    Figura 14 Parte do

    arsenal

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    Captulo 1

    O ato de fotografar, para Sheila, comparado ao ato de cozinhar,

    pois, o prazer em fazer as duas coisas acaba se materializando, seja no

    prato que ser servido e saboreado, seja na foto que ser vista e tambm

    saboreada. Ou seja, o envolvimento e a dedicao, a alquimia na escolha

    dos ingredientes, nas dosagens dos temperos e no arranjo dos alimentos, no

    ato de cozinhar para tornar um prato apetitoso, gostoso, bonito e atraente

    equivalente ao arranjo, composio, escolha da luz e dos materiais no

    ato de fotografar para tornar a foto igualmente apetitosa, gostosa, bonita

    e atraente. O prato se come com a boca, as fotos, com os olhos.

    Bastante inuenciada pelas artes plsticas, a fotgrafa relata que,

    na maioria das vezes, v os pratos a serem fotografados com uma verdadei-

    ra obra de arte: tem pratos que so verdadeiras esculturas. O que acon-

    tece, s vezes, que tem muitos alimentos que funcionam, para a fotogra -

    a, melhor que outros. Muitas vezes o prato em si no apetece, enquanto

    que, quando fotografado, chama bastante a ateno. Um exemplo, que

    nos coloca Sheila, de um prato que se chama Azul Marinho, feito compeixe e banana verde. um prato que visualmente no bonito, tem a es -

    tranheza de ser azul. O papel, ento, da fotograa neste caso, aquele de

    despertar a curiosidade e a vontade de comer. A cabe equipe de produ-

    o e ao fotgrafo a tarefa de tornar o prato apetitoso atravs de um signo

    visual. Os recursos so basicamente luz e composio cnica. A oxidao

    da banana verde a torna externamente azul, ento, parte-se a banana aomeio e aproveita o contraste da cor amarelada do interior da fruta; o peixe,

    por conseqncia, ca tambm azulado externamente, ento, parte-o em

    pedaos para contrastar com o seu branco da parte interna; acrescenta-

    se uma farofa de tom amarelado, acrescentam-se temperos frescos como

    cheiro verde, por exemplo, trabalha a luz para criar um clima de dia en -

    solarado de praia, enm, cria condies favorveis ao despertar de uma

    curiosidade gustativa. Vejamos a foto do Azul Marinho, logo a seguir.

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    Como podemos observar, os elementos que compem o cenrio

    fotogrco so de extrema relevncia, pois, tentemos imaginar os pedaos

    de banana, ou mesmo os do peixe, separadamente. A aparncia, talvez,no fosse nada agradvel aos olhos; no teria a fora de despertar um

    apetite ou um desejo gustativo.

    O que contribui muito para o sucesso representativo de uma foto-

    graa, e isso no nenhuma novidade, a sua capacidade de atrair e

    tocar o seu receptor. Para isso, no caso das fotograas de gastronomia,os ingredientes so coadjuvantes com a importncia de protagonistas, ou

    Figura 15 Foto Azul Marinho

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    seja: tm valor na composio cnica equivalente ao assunto principal.

    Observemos a foto abaixo (g. 16):

    Nesta foto, em que os tomates so os protagonistas (alis, como diz

    Sheila: ... o tomate um fruto privilegiado pelo seu desenho e por suas co-

    res) ocupam a posio central na fotograa, no entanto, esto circunda-dos de ingredientes (temperos) que ajudam a resgatar sabores e as inme-

    ras variaes que se podem efetuar na preparao desse fruto no universo

    culinrio.

    Outra foto que retrata bem o que nos disse Sheila: fotografar er-

    vas, especiarias, tentar fazer exalar o cheiro desses ingredientes, a que

    veremos abaixo. Esta foto foi realizada para um catlogo especial de tem-

    Figura 16 Tomates Foto para o restaurante Viena Delicatessen

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    peros. No cabe aqui, neste momento, fazermos uma anlise semitica da

    foto, porm podemos vericar que os elementos ali colocados - a tbua de

    carne em madeira, o papel amassado, a colher de pau e as prprias quali-

    dades cromticas deste tempero, que para quem o conhece apresentam

    todas as caractersticas do Curry (tempero de origem indiana composto

    por 11 ingredientes de sabor e cheiro marcantes como pimentas, canela,

    cravo, coentro entre outros), no intuito de completar, por meio dessas quali-

    dades e desses ndices, o resgate de cheiro e de sabor rstico e quente

    dessa especiaria.

    Figura 17 Curry

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    Captulo 1

    Cada elemento na fotograa tem sua simbologia. No somente o

    conjunto forma a simbologia, mas cada elemento tem sua prpria compe-

    tncia simblica. Cada pea tem o poder de produzir um signicado. Tem

    o poder de criar um espao, de criar uma narrativa visual. Na gura que ve-

    remos a seguir (g. 18) Sheila nos conta que, sendo uma foto encomenda-

    da por uma restaurante de culinria japonesa, sua realizao, levando em

    conta todo o processo fotogrco de produo etc., foi de fcil soluo.

    O prato camaro, porm camaro no comida tpica japonesa (dela

    faz parte). O que vai contar para o receptor que esse um prato japons

    so os adereos que formam toda a composio desse cenrio. O dis-

    creto posicionamento do Hachi(palitos que servem de instrumentos para os

    orientais no ato da ali-

    mentao, como os

    talheres, para os oci-

    dentais), a barqui-

    nha feita de bambu

    que abriga os cama-

    res, o nabo ralado

    (este sim, tpico da

    culinria japonesa) e

    mesmo a cor averme-

    lhada do guardanapo

    sob o prato. Tudo lem-bra Japo. Tudo, aqui,

    tenta resgatar o sabor

    peculiar da cozinha

    japonesa por meio

    desse signo visual.

    Figura 18: Foto para o restau-rante Nakombi

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    Captulo 1

    O que tambm foi falado, comum a todos os outros fotgrafos, a

    questo da iluminao. Sem luz, obvio, no h fotograa. Sheila prefere

    a luz natural, no entanto, como fotografa basicamente em estdio, tem de

    simular esse efeito de luz natural por meio de recursos de lmpadas, ltros,

    rebatedores e outros instrumentos do aparato fotogrco. Pra mim, a co-

    mida tem de ter luz natural; a no ser que voc esteja em um momento

    romntico e s a voc tem uma luz mais quente. A luz traz o clima que

    tambm tem grande inuncia na interpretao da foto. Para fotografar

    uma xcara de caf, por exemplo, Sheila nos diz que procura fazer uma

    luz que v salientar a sensao de vapor saindo, ou seja, a sensao do

    quente. No tem como fotografar um caf frio e fazer como se estivesse

    quente. O recurso, ento, fazer com que a prpria luz consiga ressaltar o

    vapor da fumaa do caf. A vem o caf quentinho, a eu clico.

    Como j comentado anteriormente, no o fotgrafo sozinho, em-

    bora exera talvez a maior inuncia, o grande responsvel pelos efeitos

    interpretativos que uma fotograa possa despertar. H toda uma equipe depesquisa e produo que age ativamente para a realizao desse traba-

    lho fotogrco.

    Aps termos percorrido os depoimentos desses fotgrafos que nos

    ilustraram o seu fazer simulador em imagens por meio de seu olhar, de sua vi-

    vncia e, claro, de seu clique, conheceremos agora o fazer de uma outragura, uma gura no menos importante para o resultado que se quer com

    a elaborao e eccia representativa desse signo fotogrco. o pro-

    dutor culinrio. Um produtor que deve trabalhar em consonncia com o

    fotgrafo e que tenha o mesmo gosto e o mesmo prazer pela gastronomia.

    E a esse produtor culinrio food stylist- que vamos dedicar as prximas

    pginas.

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    Por exemplo, a feijoada normalmente, pra voc fazer uma foto

    de feijoada, a gente tem que ter assim, no tem que usar orelha,aquelas coisas feias, no, voc parte pra lingia, pro paio, praum pedao de costela, que so assim, mais, mais gostosos, e ofeijo, por exemplo, que cozido, depois tem l um, voc separa

    os gros todos, tem um outro que cozido at dar um creminho,

    que normalmente o feijo d. E isso a gente ca tudo e na hora demontar, vai montando o feijo e vai colocando esse creminho, vaipondo depois por cima, at voc, normalmente se voc tiver uma

    vasilha muito grande, voc pe um isopor assim na parte de cima,pra poder ver que t cheio e para evitar fazer uma panela inteira,n? A vem colocando pra poder tambm o caldo no ir embora,ele tem que ter um apoio na parte de baixo, n? A voc vai pon-do, vai colocando aquilo ali. Depois na hora da foto a gente vemcom o pincel, ou pincela com o caldo ou com leo, depende do

    que o fotografo quer n? Mas tudo, oh, voc, voc v que, no

    bem arrumado, uma coisa que arrumada e desarrumada. Mas

    a receita, a receita mesmo.

    O trecho acima se refere ao incio de uma conversa que tivemos,

    no nal de 2006, com Maria Luiza Ferrari, mineira radicada no Rio de Janeiro

    e que possui uma vasta experincia em produes de fotos culinrias para

    livros, publicidade e revistas.

    Figura 19: Feijoada preparada para ser fotografada

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    Nessa nossa conversa, Maria Luiza nos falou de alguns truques -

    como ela gosta de dizer -, na tentativa de fazer com que a fotograa se

    aproxime daquilo que os fotgrafos pretendem simular como real. Iremos,

    ento, mostrar nas pginas que se seguem, alguns desses truques e, para

    tal, pedimos a pacincia do leitor para nos acompanhar nesses relatos que

    tentaremos descrever, ora com as prprias palavras de Maria Luiza, ora con-

    tando com nossa interpretao.

    Em verdade, como dizem Hicks e Shultz (1995, p.13) sobre o objeti-

    vo da foto gastronmica: A la base, cest avant tout de donner aux gens

    lenvie de consommer la nourriture. ( base , antes de tudo, fazer com

    que as pessoas tenham vontade de consumir o alimento).

    Alguns alimentos necessitam de um cozimento diferente do que se

    faz habitualmente para ingeri-los. O tempo de cozimento, dos legumes prin-

    cipalmente, tem de ser controlado (tem de cozinh-los um pouco menos

    do que o habitual). A cenoura, por exemplo, nos conta Maria Luiza, tem depassar pelo processo de branqueamento, que consiste em jogar essa raiz

    em gua fervendo e logo em seguida, em gua bem gelada. Isso vai fazer

    com que a cenoura que com consistncia e aparncia bem vistosa, o que

    fundamental para uma boa foto. O mesmo ocorre com o macarro. Tem

    de ser cozido antes do al dentee seu processo de cozimento deve ser

    interrompido mergulhando-o tambm em gua gelada. Ela tambm acon-selha preparar tudo de vspera, pois as improvisaes de ltimo minuto so

    bem mais laboriosas e, s vezes, podem no dar certo.

    Ih, eu j sofri muito quando a gente foi fazer um livro de um diretor

    de arte famoso. Ele me fez cozinhar tudo na hora. Era um lugar emque o fogo era pequeno e que inferno! Aquela gua no fervia,no cozinhava. Maior bobagem. Eu cozinho tudo de vspera, po-nho leo e ca tudo perfeito.

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    Captulo 1

    Conta tambm, que, h alguns anos, numa ocasio em que tinha

    de preparar uma mesa de natal para ser fotografada para um comercial

    da Coca-Cola, quando estudava os elementos que iriam compor a foto,

    percebeu que o panetone no se encontrava facilmente para ser compra-

    do naquela poca do ano em que a foto estava sendo feita, ento tinha

    de improvisar de alguma forma; uma improvisao pensada, pois ainda

    se tratava do estudo do projeto da fotograa:

    E na foto de Natal, no tinha panetone naquela poca para com-prar, como tem o ano inteiro hoje. Eu, mineira que sou, peguei umalata assim, dessas de mantimento e z uma rosca dura. Ficou igual.Foi assim que simulamos um panetone. E so coisas, como essa,

    que fao de minha cabea. Da minha experincia.

    Fotografar sorvete, por exemplo, requer um trabalho todo especial.

    Na realidade, o que se est fotografando uma mistura de banha hidro-

    genada (alguns preferem manteiga, margarina) com corantes e acar e

    mais um outro segredo que Maria Luiza preferiu no nos revelar.

    Fao com frmula falsa. Consigo fazer bem igual ao produto. Umabola de sorvete sabor mamo com papaia, um produto novo daKibon, que todo manchado eu fao igual, eu consigo fazer igual,eu mancho ele todo com anilinas especiais e sai igualzinho. O depistache perfeito... voc jura que de pistache mesmo.

    Mas, s vezes, somente essa manipulao no cumpre um papel

    suciente para sugerir aquele efeito de verossimilhana. A simulao de

    um sorvete de chocolate, nos relata, de extrema diculdade. A mistura

    embaa a manteiga, a margarina, a banha, seja l o que estiver usando,

    ento ela no d aquele brilho que imprime vida ao produto [...] se voc

    tem uma calda pra jogar, ou uma castanha, a ele d uma segurada. Voc

    olha e d vontade de comer.

    Quanto a preparar as carnes para foto, Maria Luiza continua

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    com suas dicas. Umsteakou um bife pode ser preparado normalmente

    algumas horas antes de ser fotografado, pois na hora do clique, bastam

    algumas pinceladas de leo ou melado de cana, por exemplo, que a

    aparncia de fresquinho volta a ressaltar. Pode-se utilizar, tambm, o

    maarico utilizado para crme brule (uma deliciosa sobremesa fran-

    cesa feita com creme de leite, ovos, acar e baunilha, com uma cros-

    ta de acar queimado por um maarico) para dourar a carne, dando

    a ela uma aparncia de carne na brasa. Ou ainda, utiliza-se uma es -

    pcie de serpentina de metal e amianto que, quando muito aquecida,

    vai imprimir no steakou no bife aquelas listras caractersticas de carne

    grelhada. Para se fotografar hambrgueres, prefere, ela mesma faz-

    los, e os faz maior do que um tamanho habitual para adequ-los ao

    tamanho do po e isso feito, fora do fogo, com a ajuda de um maa-

    rico. ... fao maior do que o tamanho e vou com o maarico diminuin-

    do cada um deles, fora do fogo, porque desta forma eu os ponho do

    tamanho do po. Por falar em po (po de hambrguer), o que nos

    disse Maria Luiza que nele ela no mexe. O po, segundo ela, tem demanter o aspecto de po fresco, portanto tem de estar fresco. O mxi-

    mo que se pode fazer guard-los bem fechados, por algumas horas,

    para no perderem aquele aspecto de po fresquinho. Ele fosco e

    deve manter-se fosco nenhum brilhinho artificial pode ser colocado.

    Tem de ser po comprado de uma fbrica ou de padaria, pois, nesse

    tipo de po ... a nica coisa que fao cortar e aparar a beiradinha.Ningum consegue fazer aquele po em casa igualzinho ao que se uti-

    liza em hambrgueres.

    E para preparar as aves? Isso pareceu-nos uma pouco mais dif-

    cil, ento, vamos tentar entender com as palavras de Maria Luiza:

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    Captulo 1

    ...uma das coisas mais importantes pra mim foi ter ido aos EstadosUnidos e aprender a fazer aves. Porque voc vai fazer, nessahistria, um peru muito grande, que ele tem que ficar bonito,por mais, mesmo que voc o pincele, com acar de um lado,porque voc tem um problema que a asa doura primeiro e ooutro no t bonito. Ou seno o peito fica, como ele ta na

    frente, tem que ficar sempre passando laminado e tudo, e eraum problema, porque no ficava aquela coisa bonita que, queno a realidade mesmo.( A propaganda da Sadia, da Per-digo, aquela coisa toda dourada). E l a gente aprende deoutra maneira. Eu aprendi l que voc coloca a ave no forno,toda j recheada com papel, tem uns grampos especiais, prapoder esticar a pele, pra ajeitar, botar a asinha toda no lugar,e a perninha ou pra cima ou pra baixo, dobrada enfim, e a vaiao forno. E quando ele vai ao forno voc v que ele deu aque-la cor assim, que ele, voc v que parece que ele tcozido,

    retira e pincela com um produto que eu tambm trouxe dos

    Estados Unidos. So produtos at ligados gastronomia, molhono sei do que, voc vai pintando e tem que ter, srio isso,

    porque se pintar demais ele escurece, porque como t quente,

    ento tem que fazer ele bem clarinho e na hora da foto, o fot-grafo fez a primeira foto, iluminou, ah, mas ainda tmuito claro,a tem como retocar... Que em fotografia, do escuro pra claro difcil. Claro pra escuro mais fcil, n? Pra poder retocarou com computador, n? Pega um pedacinho que ta coloridoaqui, ta bonitinho l.

    Depois de nos ter passado algumas dicas na preparao dos ali-

    mentos para fotograa, Maria Luiza comea a nos mostrar algumas fotos

    j realizadas em livros e por ela produzidas, nos contando as etapas para a

    elaborao dos projetos desses livros.

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    A reproduo fotogrca que vemos acima a ilustrao de uma

    receita de bacalhau com castanhas e batatas. Foi uma receita criada por

    Maria Luiza na poca do Natal. Essa receita foi criada devido grande in-

    uncia portuguesa no Brasil. Ela nos conta que foi uma produo relativa -

    Figura 20: Maria Luiza mostrando foto para livro de receita de bacalhau

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    mente fcil. O mais importante aqui foi a escolha criteriosa dos ingredientes,

    sobretudo o bacalhau, que no podia ter a coluna torta ... no pode ter

    escoliose [...]. Por isso muito importante conhecer bem o seu fornecedor.

    O peixeiro j sabe o que necessito, o que eu quero. As castanhas e as ba-

    tatas tambm foram escolhidas dedo. Nem muito perfeitinhas, nem muito

    deformadas. Nem to perfeitinhas para no tirar a autenticidade do pra-

    to, nem to deformadas para no deixar o prato esteticamente feio. O pra-

    to foi feito normalmente sem nenhum truque especial. Somente as batatas

    e as castanhas foram carameladas, o que tambm fazia parte da receita

    e, na hora de fotografar, bastaram algumas pinceladas de leo para ressal-

    tar o brilho que lhe devolveu a vida.

    Um outro livro que produziu, em So Paulo, foi para o fotgrafo de

    culinria, Srgio Pagano, s sobre sopas. Um livro, ela nos conta, que teve

    um trabalho intenso, pois foram muitos utenslios utilizados na produo da

    foto. Alm de utilizar elementos do que j possua em seu arsenal pessoal,

    teve de emprestar uma grande parte da louaria de lojas especializadasem utilidades domsticas, pois o que mais enriquecia o prato era todo o

    ambiente que se criava em torno dele. Ento, a louaria quase a prota-

    gonista nesta composio cnica. Maria Luiza faz questo de ressaltar, (e

    fazemos questo de registrar, pois estamos tentando mostrar o labor exigido

    para a realizao de uma produo fotogrca em gastronomia), que um

    belo resultado fotogrco nessa rea de culinria requer pesquisas e mui-to e muito trabalho braal. [...] Nossa! foi uma doideira. Foi muito trabalho.

    Fiquei dois dias devolvendo coisas em So Paulo, ela relata.

    Um dos trabalhos de que Maria Luiza nos fala com mais entusiasmo

    e carinho - ... como, claro, sou mineira, todas as minhas mineirices coloquei

    a. (a produo do livro de receitas culinrias regionais do SENAC intitulado

    Sabores e Cores das Minas Geraise cujo fotgrafo foi Humberto Medeiros).

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    Trata-se de um livro que mostra a cozinha mineira atravs do Hotel Senac

    Grogot. Situado em Barbacena, Minas Gerais, foi o primeiro hotel-escola

    da Amrica Latina. Daqui para a frente ela vai nos relatar muita coisa so-

    bre esse livro, que vamos tentar reproduzir.

    A gura baixo uma reproduo da capa desse livro.

    Como se tivesse saboreando cada uma das receitas retratadas no

    livro, a cada pgina virada, Maria Luiza vai apontando essas delcias com

    tamanho prazer que nos deixa realmente com gua na boca.

    Tudo comeou em Betim. Uma das primeiras etapas foi tentar reunir

    Figura 21: Foto da capa do livro Sabores& Cores das Minas Gerais

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    tudo que podia em termos de artesanato. Para isso, Maria Luiza comeou

    sua viagem uns dias antes do restante da equipe. Em Betim visitou o Pal-

    cio das Artes e l, com o auxlio de um historiador local, conseguiu um rico

    material para a produo das fotos. No Palcio das Artes peguei tudo de

    Minas Gerais, de Minas inteiro, pra poder fazer o livro.

    Passou em seguida por uma fazenda em Borda do Campo, onde

    hospedavam Jos Bonifcio e Dom Pedro II, para recolher mais alguns ob-

    jetos e, sobretudo, para se inspirar e ganhar mais repertrio com a histria

    e a beleza do local. Abaixo podemos ver uma montagem retratando um

    pedao da fazenda.

    Continuando a folhear o livro, deparamo-nos com uma foto que

    auxilia a contar um pouco da histria das Minas Gerais no auge da lavra doouro. uma foto de um tabuleiro de doces de leite enrolados na palha de

    milho que eram vendidos pelas quituteiras negras e mulatas. Vejamos como

    Medeiros conseguiu retratar esse tabuleiro e a produo feita por Maria

    Luiza. Reparemos no detalhe da or feita em palha:

    Figura 22: Montagem fotogrca da fazenda em Borda da Mata MG para olivroSabores & Cores das Minas Gerais

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    Eu gosto mesmo da tradio de Minas. No gosto da moderni-

    dade na comida mineira. Sou mesmo da tradio. s vezes o chefquer

    fazer umas modernidades que eu no gosto. Maria Luiza se refere a uma

    foto da receita de Tutu de Feijo Bbado(g. 24), que ilustramos abaixo,

    em que o chefquis imprimir um toque, segundo ela, mais artstico, mais

    moderno. Em sua opinio, o que faz a fotograa trazer o gostinho mineiro

    o pedao autntico de Minas que a acompanha. Logo abaixo, tambm,

    veremos mais duas reprodues fotogrcas: uma de lingia feita pelo paide Maria Luiza (g. 25), que ela fez questo de incluir no livro, e a outra, de

    uma autntica feijoada mineira (g. 26), como ela gosta de dizer.

    Figura 23: Doce de leite enrolado em palha. Foto para o livroSabores & Cores das Minas Gerais

    Figura 24: Composio feita para foto do Tutu de Feijo Bbado

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    Tvendo aqui. Eu adoro esta foto. Olha a a feijoada. Ela tcolo-cada... isso aqui minha foto. Se voc quiser pincelar com leo,voc pincela, seno, no h tanta necessidade assim. A feijoadano tcom brilho, mas os pedaos, olha l, a lingia que cozinheie cou preta [...] e a eu botei, eu usei, em vez de usar barro, eu useiessas vasilhas de alumnio, porque Minas tambm alumnio. Notcom cara de que voc acabou de botar na mesa?

    Figura 25: Lingia tpica caseira

    Figura 26: Autntica feijoada Mineira

  • 7/22/2019 Antonio Roberto Chiachiri Filho - o Sabor Da Imagem

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    Ora-pro-nbis o nome de um prato mineiro feito com carne bovi-

    na, tomate e um tempero especial de Minas. um prato de sim