Antologia Para Aula - Bandeira 2015

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MANUEL BANDEIRA (1886-1968) EPÍGRAFE Sou bem-nascido. Menino, Fui, como os demais, feliz. Depois, veio o mau destino E fez de mim o que quis. Veio o mau gênio da vida, Rompeu em meu coração, Levou tudo de vencida, Rugia e como um furacão, Turbou, partiu, abateu, Queimou sem razão nem dó ─ Ah, que dor! Magoado e só, ─ Só! ─ meu coração ardeu. Ardeu em gritos dementes Na sua paixão sombria... E dessas horas ardentes Ficou esta cinza fria. ─ Esta pouca cinza fria... DESENCANTO Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto... Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente... Tristeza esparsa... remorso vão... Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração. E nestes versos de angústia rouca, Assim dos lábios a vida corre, Deixando um acre sabor na boca.

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Poesia Maria Lúcia

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MANUEL BANDEIRA (1886-1968)

EPGRAFE

Sou bem-nascido. Menino,Fui, como os demais, feliz.Depois, veio o mau destinoE fez de mim o que quis.

Veio o mau gnio da vida,Rompeu em meu corao,Levou tudo de vencida,Rugia e como um furaco,

Turbou, partiu, abateu,Queimou sem razo nem d Ah, que dor!Magoado e s, S! meu corao ardeu.

Ardeu em gritos dementesNa sua paixo sombria...E dessas horas ardentesFicou esta cinza fria.

Esta pouca cinza fria...

DESENCANTO

Eu fao versos como quem choraDe desalento... de desencanto...Fecha o meu livro, se por agoraNo tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso sangue. Volpia ardente...Tristeza esparsa... remorso vo...Di-me nas veias. Amargo e quente,Cai, gota a gota, do corao.

E nestes versos de angstia rouca,Assim dos lbios a vida corre,Deixando um acre sabor na boca.

Eu fao versos como quem morre.

ALUMBRAMENTO

Eu vi os cus! Eu vi os cus!Oh, essa anglica brancuraSem tristes pejos e sem vus!

Nem uma nuvem de amarguraVem a alma desassossegar.E sinto-a bela... e sinto-a pura...

Eu vi nevar! Eu vi nevar!Oh, cristalizaes da brumaA amortalhar, a cintilar!

Eu vi o mar! Lrios de espumaVinham desabrochar florDa gua que o vento desapruma...

Eu vi a estrela do pastor...Vi a licorne alvinitente!...Vi... vi o rastro do Senhor!...

E vi a Via-Lctea ardente...Vi comunhes... capelas... vus...Sbito... alucinadamente...

Vi carros triufais... trofus...Prolas grandes como a lua...Eu vi os cus! Eu vi os cus! Eu vi-a nua... toda nua!(Clevadel, 1913)

BERIMBAU

Os aguaps dos aguaaisNos igaps dos JapursBolem, bolem, bolem.Chama o saci: Si si si si! Ui ui ui ui ui! uiva a iaraNos aguaais dos igapsDos Japurs e dos Purus.

A mameluca uma maluca.Saiu sozinha da maloca O boto bate bite bite...Quem ofendeu a mameluca? Foi o boto!O Cussaruim bota quebrantos.Nos aguaais os aguaps Cruz, canhoto! Bolem... Peraus dos JapursDe assombramentos e de espantos!...

NO SEI DANAR

Uns tomam ter, outros cocanaEu j tomei tristeza , hoje tomo alegria.Tenho todos os motivos menos um de ser triste.Mas o clculo das probabilidades uma pilhria...Abaixo o Amiel!E nunca lerei o dirio de Maria Bashkirtseff.

Sim, j perdi pai, me e irmos.Perdi a sade tambm. por isso que sinto como ningum o ritmo do jazz-band.

Uns tomam ter , outros cocana.Eu tomo alegria!Eis a por que vim assistir a este baile de tera-feira gorda.

Mistura excelente de chs...Esta foi aafata...

_ No , foi arrumadeira.E est danando com ex-prefeito municipal: To Brasil!

De fato este salo de sangues misturados parece o Brasil...

H at a frao a incipiente amarela Na figura de um japons.O japons tambm dana maxixe:Acugel banzai!

A filha do usineiro de CamposOlha com repugnncia Para a crioula imoral.No entanto o que faz a indecncia da outra dengue nos olhos maravilhosos da moa.E aquele cair de ombros...Mas ela no sabe...To Brasil !

Ningum se lembra de poltica...Nem dos oito mil quilmetros de costa...O algodo do Seric o melhor do mundo? ... Que me importa ?No h malria nem molstia de Chagas nem ancilstomos.A sereia sibila e o ganz do jazz-band batuca.Eu tomo alegria!

PENSO FAMILIAR

Jardim da pensozinha burguesa.Gatos espapaados ao sol.

A tiririca sitia os canteiros chatos.O sol acaba de crestar as boninas que murcharam.Os girassisamarelo!resistem. E as dlias, reconchudas, plebeias, dominicais.

Um gatinho faz pipi.Com gestos de garom de restaurant-PalaceEncobre cuidadosamente a mijadinha.Sai vibrando com elegncia a patinha direita: a nica criatura fina na pensozinha burguesa.

O CACTO

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estaturia:Laocoonte constrangido pelas serpentes,Ugolino e os filhos esfaimados.Evocava tambm o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

Um dia um tufo furibundo abateu-o pela raiz.O cacto tombou atravessado na rua,Quebrou os beirais do casario fronteiro,Impediu o trnsito de bondes, automveis, carroas,Arrebentou os cabos eltricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de [iluminao e energia:

Era belo, spero, intratvel.

PNEUMOTRAX

Febre, hemoptise, dispnia e suares noturnos.A vida inteira que podia ter sido e que no foi.Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o mdico: Diga trinta e trs. Trinta e trs...trinta e trs...trinta e trs..._ Respire.

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O senhor tem uma escavao no pulmo esquerdo e o pulmo direito[infiltrado.

Ento, doutor no possvel tentar o pneumotrax? No. A nica coisa a fazer tocar um tango argentino.

PORQUINHO-DA-NDIA

Quando eu tinha seis anosGanhei um porquinho-da-ndiaQue dor de corao me davaPorque o bichinho s queria estar debaixo do fogo!Levava ele pra salaPra os lugares mais bonitos mais limpinhosEle no gostava:Queria era estar debaixo do fogo.No fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

O meu porquinho da ndia foi a minha primeira namorada.

EVOCAO DO RECIFE

RecifeNo a Veneza americanaNo a Mauritssatd dos armadores das ndias OcidentaisNo a Recife dos MascatesNem mesmo o Recife que aprendi a amar depois Recife das revolues libertriasMas o recife sem histria nem literatura Recife sem mais nadaRecife da minha infncia

A Rua da Unio onde eu brincava de chicote-queimado e[partia as vidraas da casa de Dona Aninha Viegas Totnio Rodrigues era muito velho e botava o pincen na ponta do narizDepois do jantar as famlias tomavam a calada com[cadeiras, mexericos, namoros, risadas

A gente brincava no meio da ruaOs meninos gritavam

Coelho sai!No sai!

A distncia das vozes macias das meninas politonavam:

Roseira d-me uma rosaCraveiro d-me um boto(Dessas rosas muita rosaTer morrido em boto...)

De repentenos longes da noiteum sino

Uma pessoa grande dizia:Fogo em Santo Antnio!Outra contrariava: So Jos!Totnio Rodrigues achava sempre que era So Jos.Os homens punham o chapu saam fumandoE eu tinha raiva de ser menino porque no podia ir ver o fogo

Rua da Unio...Como eram lindos os nomes das ruas da minha infnciaRua do sol(Tenho medo de que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)Atrs de casa ficava a Rua da Saudade......onde se ia fumar escondidoDo lado de l era o cais da Rua da Aurora....... onde se ia pescar escondido

Capiberibe Capibaribe

L longe o sertozinho de Caxang Banheiros de palhaUm dia eu vi uma moa nuinha no banhoFiquei parado o corao batendoEla se riuFoi o meu primeiro alumbramento

Cheia! As cheias! Barro boi morto rvores destroos redomoinho sumiuE nos peges da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em [jangadas de bananeiras

NovenasCavalhadasEu me deitei no colo da menina e ela comeou a passar a mo nos meus cabelos

Capiberibe Capibaribe

Rua da Unio onde todas as tardes passava a preta das bananasCom o xale vistoso de pano da CostaE o vendedor de roletes de canaO de amendoimque se chamava midubim e no era torrado era cozido

Me lembro de todos os preges:Ovos frescos e baratosDez ovos por uma patacaFoi h muito tempo....

A vida no me chegava pelos jornais nem pelos livrosVinha da boca do povo na lngua errada do povoLngua certa do povoPorque ele que fala gostoso o portugus do BrasilAo passo que nsO que fazemos macaquearA sintaxe lusadaA vida com uma poro de coisas que eu no entendia bemTerras que no sabia onde ficavam

Recife...Rua da Unio...A casa de meu av...Nunca pensei que ela acabasse!Tudo l parecia impregnado de eternidade

Recife...Meu av morto.Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu av

POEMA TIRADO DE UMA NOTCIA DE JORNAL

Joo Gostoso era carregador de feira livre e morava no[morro da Babilnia num barraco sem nmero.Uma noite ele chegou no bar Vinte de NovembroBebeuCantouDanouDepois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

PROFUNDAMENTE

Quando ontem adormeciNa noite de So JooHavia alegria e rumorEstrondos de bombas luzes de BengalaVozes cantigas e risos Ao p das fogueiras acesas.

No meio da noite desperteiNo ouvi mais vozes nem risosApenas balesPassavam errantesSilenciosamenteApenas de vez em quandoO rudo de um bondeCortava o silncioComo um tnel.Onde estavam os que h poucoDanavamCantavamE riamAo p das fogueiras acesas?

Estavam todos dormindoEstavam todos deitadosDormindoProfundamente*Quando eu tinha seis anosNo pude ver o fim da festa de So JooPorque adormeci

Hoje no ouo mais as vozes daquele tempoMinha avMeu avTotnio RodriguesTomsiaRosaOnde esto todos eles ? Esto todos dormindoEsto todos deitadosDormindoProfundamente.

VOU-ME EMBORA PRA PASRGADA

Vou-me embora pra PasrgadaL sou amigo do reiL tenho a mulher que eu queroNa cama que escolhereiVou me embora pra Pasrgada

Vou-me embora pra PasrgadaAqui eu no sou felizL a existncia uma aventuraDe tal modo inconsequenteQue Joana a Louca de EspanhaRainha e falsa dementeVem a ser contraparente Da nora que nunca tive

E como farei ginsticaAndarei de bicicletaMontarei em burro braboSubirei no pau-de-seboTomarei banhos de mar!E quando estiver cansadoDeito na beira do rioMando chamar a me-d'guaPra me contar as histriasQue no tempo de eu meninoRosa vinha me contarVou-me embora pra Pasrgada

Em Pasrgada tem tudo outra civilizaoTem um processo seguroDe impedir a concepoTem telefone automticoTem alcalide vontadeTem prostitutas bonitasPara a gente namorar

E quando eu estiver triste Mas triste de no tiver jeitoQuando de noite me derVontade de me matar L sou amigo do rei Terei a mulher que eu queroNa cama que escolhereiVou-me embora pra Pasrgada.

COSSANTEOndas da praia onde vos vi,Olhos verdes sem d de mim,Ai Avatlntica!

Ondas da praia onde morais,Olhos verdes intersexuais.Ai Avatlntica!

Olhos verdes sem d de mim,Olhos verdes, de ondas sem fim,Ai Avatlntica!

Olhos verdes, de ondas sem d,Por quem me rompo, exausto e s,Ai Avatlntica!

Olhos verdes, de ondas sem fim,Por quem jurei de vos possuir,Ai Avatlntica!

Olhos verdes sem lei nem reiPor quem juro vos esquecer,Ai Avatlntica!

TESTAMENTO

O que no tenho e desejo que melhor me enriquece.Tive uns dinheiros perdi-os...Tive amores esqueci-os.Mas no maior desespero.Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.Por outras terras andei.Mas o que ficou marcadoNo meu olhar fatigado,Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianas:No tive um filho de meu.Um filho!... No foi de jeito...Mas trago dentro do peitoMeu filho que no nasceu.

Criou-me, desde eu meninoPara arquiteto meu pai.Foi-se-me um dia a sade...Fiz-me arquiteto? No pude!Sou poeta menor, perdoai!

No fao versos de guerra.No fao porque no sei.Mas num torpedo-suicidaDarei de bom grado a vidaNa luta em que no lutei!

BELO BELO

Belo belo minha belaTenho tudo que no queroNo tenho nada que queroNo quero culos nem tosseNem obrigao de votoQuero queroQuero a solido dos pncarosA gua da fonte escondidaA rosa que floresceuSobre a escarpa inacessvelA luz da primeira estrelaPiscando no lusco-fuscoQuero queroQuero dar a volta ao mundoS num navio de velaQuero rever PernambucoQuero ver Bagd e CuscoQuero queroQuero o moreno de EstelaQuero a brancura de ElisaQuero a saliva de BelaQuero as sardas de AdalgisaQuero quero tanta coisaBelo beloMas basta de lero-leroVida noves fora zero

O bicho

Vi ontem um bichoNa imundcie do ptioCatando comida entre os detritos.Quando achava alguma coisa,No examinava nem cheirava:Engolia com voracidade.

O bicho no era um co,No era um gato,No era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

NOVA POTICA

Vou lanar a teoria do poeta srdido.Poeta srdido:Aquele em cuja poesia h a marca suja da vida.Vai um sujeito.Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito[bem engomada, e na primeira esquina [passa um caminho, salpica-lhe o palet[ou a cala de uma ndoa de lama: a vida.

O poema deve ser como a ndoa no brim:Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Sei que a poesia tambm orvalho.Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que [envelheceram sem maldade.

ELEGIA DE VERO

O sol grande. coisasTodas vs, todas mudaves!(Como esse mudaves,Que hoje mudveis.E j no rima com aves.)

O sol grande. Zinem as cigarrasEm Laranjeiras.

Zinem as cigarras: zino, zino, zino...Como se fossem as mesmasQue eu ouvi menino.

veres de antigamente!Quando o Largo do BoticrioAinda poderia ser tombado.Carambolas cidas, quanto de mormao:gua morna das caixas dgua vermelhas de ferrugem;Saibro cintilante...

O sol grande. Mas, cigarras que zinis,No sois as mesmas que eu ouvi menino,Sois outras, no me interessais...

Dem-me as cigarras que eu ouvi menino.

SATLITE

Fim de tarde.No cu plmbeoA Lua baaPairaMuito cosmograficamenteSatlite.

Desmetaforizada,Desmitificada,Despojada do velho segredo de melancolia,No agora o golfo de cismas,O astro dos loucos e dos enamorados,Mas to-somenteSatlite.

Ah, Lua deste fim de tarde,Demissionria de atribuies romnticas,Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,Gosto de ti assim:Coisa em si, Satlite.A ONDA

a onda anda aonde andaa onda?a onda ainda ainda anda ainda anda aonde? aonde?a onda a onda