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O Matadouro Municipal (1959) [fig.159-160], apesar de se constituir
como uma peça mais pequena, organiza-se como um jogo mais variado do
ponto de vista espacial, volumétrico e compositivo. Também aqui Varela
parece reinterpretar as suas modulações modernistas dos Anos Trinta, no
uso de abóbodas de berço – tema recorrente do seu léxico formal –, e como
solução redentora deste programa, mas, neste caso, dentro do quadro
histórico de uma nova racionalidade, «rompendo» com os esquematismos
das composições simétricas e axiais de outrora, para optar por uma
disposição sequencial dos corpos funcionais e das dependências, onde a
diversidade da volumetria e do pé-direito se estabelece através da variação
de escala das abóbadas, estabelecendo variações de luz no interior. Este
recurso surge intercalado com coberturas planas, criando uma variação de
elementos que confere ao conjunto alguma diversidade plástica.
Já o caso do Mercado de Minde [fig.161-162] pode «geneticamente»
aparentar-se a exemplos mais antigos – como no caso do projecto para o
Mercado de Coimbra13 (1937). Mas neste caso a disposição das abóbadas
não segue a modulação em planta, e pelo contrário, parece mesmo
«contrariar» o sentido axial da volumetria e da organização do espaço
funcional, o que faz que, ao «cruzar» as duas partes da composição, resulta
numa diversidade bastante peculiar no panorama das obras do autor.
Parece, também, no geral, uma «reinvenção» do modelo axial e simétrico
proposto pelo Mercado de Coimbra, aqui «reconstruído» à luz de uma
combinação de elementos racionalistas característicos dos Anos Cinquenta.
13 Veja-se a este respeito 7.1.
Fig. 159 – António Varela, Matadouro Municipal da
Nazaré, planta, Nazaré, 1959.
Fig. 160 – António Varela, Matadouro Municipal da
Nazaré, cortes, Nazaré, 1959.
Fig. 161 – António Varela, Mercado de Minde, Minde,
planta, anos 50.
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Mas se o tema das «abóbadas» parece recriar-se neste novo período,
já a o recurso aos materiais tradicionais surge através do paradigma do
regionalismo crítico que se inaugura neste novo período. O recurso ao
sistema «Cavan»14 como mimetismo da estereotomia da pedra é
abandonado em favor da pedra natural, nomeadamente na composição dos
socos, muros ou fachadas inteiras do edificado. É certo que esta nova
opção define parte da estética de Cinquenta – maioritariamente inaugurada
por Keil do Amaral em numerosos projectos de equipamentos públicos e
não só. Varela «adopta» o novo léxico regionalista, reintegrando-o no
quadro dos seus esquematismos geométricos em torno do círculo e do
quadrado, mas também na procura de soluções geometricamente menos
puristas que parecem revelar outros caminhos da modernidade.
Neste caso, o projecto de ampliação do parque de campismo do
Monte Branco (Nazaré) [fig.163 a 167], revela-se como uma obra em que o
arquitecto terá procurado uma adequação dos materiais naturais à
linguagem moderna. Tal como nos equipamentos do Parque Florestal de
Monsanto desenvolvidos por Keil do Amaral na década anterior, aqui
Varela parece integrar a estética «adaptada»15 pelo colega para parques e
jardins, relacionando a estereotomia semi-regular da pedra escacilhada ou
14 Técnica de betão projectado que reproduz a esterotomia da pedra. Cf.7.1. 15 “A última viagem europeia que [Keil] realizou teve por objectivo alicerçar conhecimentos sobre parques e jardins, através de visitas aos espaços verdes públicos ingleses, alemães e (mais uma vez…) holandeses. Enquanto os parques ingleses se fundavam numa tradição multissecular e num «modo natural» de fazer com profundas raízes culturais e climáticas, difíceis de reproduzir em ambientes diversos, e os alemães testemunhavam uma organização e manutenção difíceis de igualar, o exemplo holandês era o que mais se aproximava do «caso portugês».” In TOSTÕES, Ana, AMARAL, Francisco Pires Keil do, MOITA, Irisalva, [coord. geral], Keil do Amaral: o arquitecto e o humanista, Câmara Municipal de Lisboa / Pelouro da Cultura, Lisboa, 1999, p.61.
Fig. 163 – António Varela, Ampliação do parque de
campismo do Monte Branco,
Nazaré, anos 50. Planta geral.
Fig. 162 – António Varela, Mercado de Minde, Minde, alçado frontal, anos 50. Note-‐se a «subtracção» de uma abóboda ao módulo central, por comparação
com o Mercado de Coimbra.
Fig. 164 – António Varela, Ampliação do parque de
campismo do Monte Branco, Nazaré, anos 50. Alçado da
entrada.
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bujardada com a plasticidade do betão, numa série de pequenos
equipamentos organizados em torno de um jardim elevado sobre o mar.
Sendo que o parque original se organiza dentro de um pequeno vale
segundo a linha de água que desce a encosta até a cidade da Nazaré, Varela
optou por estabelecer a ampliação no topo do monte16, articulando deste
modo o percurso rodoviário da estrada nacional, à entrada do parque, pela
colina e daí até à entrada da vila, num percurso arborizado intercalado com
pontos de observação sobre a encosta e o oceano.
16 Assinale-se que o nome Monte Branco advinha, inicialmente, do seu carácter árido. Desde a concepção destes equipamentos, há mais de meio século, até à actualidade, regista-se, no entanto, uma acentuada arborização, que oculta, em parte, a relação inicial deste espaço com a vila e com o mar.
Fig. 165 – António Varela, Ampliação do parque de
campismo do Monte Branco, Nazaré, anos 50. Edifício da administração (foto de 2009). Note-‐se a opção final da geometrização do vão , com base na quadratura de círculos – uma das «marcas» de Varela.
Fig. 166 – António Varela, Ampliação do parque de
campismo do Monte Branco, Nazaré, anos 50. Edifício da administração: planta,
alçados e cortes.
Fig. 167 – António Varela, Ampliação do parque de
campismo do Monte Branco, Nazaré, anos 50. Balneário:
planta, alçados e corte.
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No que respeita às suas últimas colaborações, regista-se ainda deste
período a sua participação no projecto de decoração do Cinema Império
(1947-52), de Cassiano Branco, onde Varela integrou uma equipa de
arquitectos da nova geração, tais como Raúl Chorão Ramalho e Frederico
George17. Sendo o projecto do cinema uma obra essencialmente de
Cassiano, assinala-se a sua intervenção ao nível da decoração,
nomeadamente na execução de revestimentos diversos na sala e em torno
do palco, assim como na concepção dos painéis do «foyer» e da bilheteira,
únicos elementos originais que ainda subsistem [fig.168-169].
A singularidade desta peças, do ponto de vista icónico, testemunham
das concepções abstracto-geométricas típicas do imaginário de Varela, e
também permitem estabelecer analogias com outros casos peculiares no
percurso do autor, nomeadamente o pórtico da Fábrica da A.E.L. de
Matosinhos18, ou o «óculo-vortice»19 da casa da rua de Alcolena, entre
outras referências que parecem indiciar uma interpretação dos arquétipos
da modernidade.
17 Enquanto que o projecto do Café Império é da autoria de Raul Chorão Ramalho, a concepção dos interiores do cinema é da autoria de Frederico George Afigura-se, deste modo, a acção de Varela neste projecto, enquadrada dentro deste último momento de intervenção. 18 Veja-se a este respeito 6.4.2.2. 19 Veja-se a este respeito 7.4.
Fig. 168 – António Varela, decoração de interiores do cinema Império. Aspecto actual da bilheteira [foto
de 2008].
Fig. 169 – António Varela, decoração de interiores do Cinema Império. (pormenor)
[foto de 2008].
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Em suma, o percurso de António Varela é, também, a seu modo,
demonstrativo da «travessia» da primeira geração moderna. Do período
formativo essencialmente alicerçado nos cânones das Belas Artes até às
pesquisas funcionalistas das décadas de Vinte e de Trinta, atravessando o
período de «compromisso» de Quarenta, surge Varela, nos Anos
Cinquenta, já como um «veterano» modernista. E se por um lado parece ter
demonstrado algum interesse às sínteses críticas da nova geração surgida
após o Congresso Nacional de Arquitectura de 1948, também é certo que
por essa altura já era tido como um «resistente», e, de certo modo, um
«não-alinhado». É certo que também terá procurado «reinventar-se» no
paradigma da nova década, através de experimentalismos diversos, onde o
empirismo, as revisões regionalistas da nova crítica da modernidade e as
recentes influências internacionais do pós-guerra parecem ter,
aparentemente, ocupado o lugar da «aventura» do período modernista, em
torno do neopitagorismo e de outras intenções simbólicas herdadas da
«geração do Orpheu». Mas é, apesar de tudo, nesse período final de Trinta
que se pode encontrar uma possível «centralidade» na obra de Varela, onde
a imagem e o «mito» se coaduna com a sua «arte» e a sua «persona».
Paradoxalmente, essa sua «centralidade» situa-se num período de
transição da arquitectura portuguesa, e talvez por isso, caracterize de um
modo mais exacto a figura do arquitecto em torno da reflexão entre
Modernidade e Tradição, num caminho que ficou marcado por uma obra
decisiva, paradigmática e fundamental: a Fábrica da Algarve Exportador
Limitada em Matosinhos.
234
235
TERCEIRA PARTE
O LEGADO DO “INVISÍVEL” UMA INTERPRETAÇÃO DA OBRA DE ANTÓNIO
VARELA
236
Fig. 170 – Lázaro Lozano, logótipo da empresa Algarve Exportador Limitada, (anos 30).
Fig. 171 – AEL, fachada da secção de fabrico, 1938 [foto de 1999].
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A FÁBRICA DE MATOSINHOS COMO OBRA FUNDAMENTAL
“a ordem como cânone e a máquina como metáfora”1
6.1. INTRODUÇÃO
A unidade fabril nº6 da empresa Algarve Exportador Limitada
marcou indubitavelmente o apogeu do modernismo no panorama nacional
da indústria conserveira. Assinala, de igual modo, um momento alto na
carreira de António Varela e pode talvez considerar-se, pelo seu
pioneirismo, como uma das obras mais emblemáticas deste arquitecto. Para
a sua compreensão houve necessidade de estudar a evolução das tipologias
arquitectónicas conserveiras, de modo a devidamente enquadrar a acção de
Varela no espaço e no tempo próprio, e compreender a razão das suas
opções de projecto, face ao programa de uma indústria cujas instalações
eram à época consideradas como obsoletas. Pela sua importância capital,
tanto no percurso do autor, como pela sua exemplaridade e relevância no
panorama histórico da arquitectura industrial portuguesa do século XX,
assim como pela sua complexidade e riqueza interpretativa, este capítulo
divide-se em três partes: 1) o estudo do paradigma oitocentista das
tipologias conserveiras, que designámos por «Contextualização»; 2) a
análise funcional e urbana da unidade de Matosinhos, como momento
histórico inovador, em torno do conceito de «Uso»; e 3) a análise dos seus
mecanismos de composição, em torno do conceito de «Representação»,
como leitura interpretativa e simbólica, com especial relevância para outras
obras do autor2.
José-Augusto França escreveu, em 1974, relativamente à
arquitectura portuguesa dos Anos Trinta e Quarenta, que “(...) esta
arquitectura industrial tivera, em 39, uma raríssima realização de mérito, 1 RODRIGUES, Maria João Madeira, O século XX e a aventura moderna, in Arquitectura, Quimera, Lisboa, 2002, p.88. 2 Veja-se a este respeito o Capítulo 7: Outras obras à luz de uma mesma interpretação.
CAPÍTULO 6
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Fig. 172 – Tóssain, ilustração publicitária para a revista Conservas, Algarve Exportador Limitada, (anos 40).
na fábrica de Conservas de Matosinhos, de António Varela.” (França,
1991, p.249)3
Apesar de serem escassas ou relativamente recentes as referências à
presente obra na temática da arquitectura portuguesa no século XX, a
fábrica de Matosinhos poderá eventualmente ser considerada, no entanto,
como um dos poucos exemplos existentes modernistas no panorama da
indústria nacional, como se pode ainda comprovar pelo que escrevem os
seguintes autores:
Em 1970 Nuno Portas referenciou esta fábrica dentro do
enquadramento de duas obras «notáveis»4 de António Varela: A Fábrica de
Matosinhos e a Farmácia Azevedo e Filhos5, no seu estudo A evolução da
arquitectura moderna em Portugal6.
Também José Manuel Fernandes a esta se refere como “(...) a
notável fábrica de conservas Algarve Exportador, em Matosinhos,
infelizmente demolida [sic]7, cuja rica diversidade de ângulos, em
articulação com o quarteirão, que preenchia totalmente, recorda a solução
da Casa da Moeda.”(Fernandes, 1993, p.121)
3 FRANÇA, J.-A., A Arte em Portugal no século XX (1911-1961), Bertrand Editora, , 3ª edição, Lisboa, 1991, p.249, [1ª ed., 1974]. 4 Segundo terminologia do autor. Cf. nota 4. 5 Esta última em colaboração com Jorge Segurado. Veja-se a este respeito 4.3.: A construção de um «espírito moderno» e a parceria com Jorge Segurado. 6 PORTAS, Nuno, A evolução da arquitectura moderna em Portugal in ZEVI, Bruno, História da Arquitectura Moderna, 2° vol., Lisboa, ed. Arcádia, 1970, tábua 107. 7 FERNANDES, José Manuel, Arquitectura modernista em Portugal, Gradiva, 1993, p.121. Ao contrário do que indica José Manuel Fernandes, convém rectificar que a fábrica não foi demolida. Tendo cessado de laborar em 1979 e votada ao abandono pelos seus últimos administradores no seguimento de um conturbado processo de falência, degradou-se ao longo das duas últimas décadas, tendo-se ainda registado dois incêndios pelo meio, encontrando-se actualmente em estado de ruína. Saliente-se que em 1988 a Câmara Municipal de Matosinhos solicitou a sua classificação como Imóvel de Interesse Concelhio (cf. Arquivo de documentação do Gabinete Municipal de Arqueologia e História da Câmara Municipal de Matosinhos). Rectifique-se igualmente que a fábrica não representa a totalidade do quarteirão e embora ocupe a sua maior parte, é confinante com a fábrica de conservas Rainha do Sado (também em estado de ruína) completando o mesmo, a sul. Do ponto de vista do desenho da fachada da secção de fabrico, pode notar-se que a fábrica de Matosinhos de Varela integra uma característica própria do estilo «Art Déco», pelo escalonamento dos frontões da secção de fabrico, também denominada à época, de «Estilo Atlante». Esta situação também foi apontada por José Manuel Fernandes: “Os elementos construtivos, com forma piramidal ou em denteado escalonado, foram outra «obsessão» deste estilo, em tudo ansioso por resolver o que antes se exprimia em linhas oblíquas ou curvas [entenda-se: o estilo «Arte Nova»]. A chamada «fachada-frontão», com uma forte cimalha «em escada», foi talvez a consubstanciação mais total deste gosto: em equipamentos de pequena dimensão (...) ou em armazéns e fábricas (em Matosinhos, as frentes da antiga Algarve Exportador, por António Varela, Praça Passos Manuel, n° 216).” Idem, ibidem, p.58.
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Fig. 173 – Tóssain, ilustração publicitária para a revista Conservas, Algarve Exportador Limitada, [anos 40].
Para além de António Varela, os arquitectos e os outros artistas
plásticos que levaram a cabo a presente obra, assim como a sua iconografia
e publicidade, pertencem a essa mesma geração de artistas da vanguarda
portuguesa que interpretaram a modernidade: António Varela, Lino
António, Lázaro Lozano [fig.170], Tóssain [fig.172-173] e João da Câmara
Leme, participaram, em momentos diversos, a vários níveis e em diferentes
áreas, no empreendimento da Algarve Exportador Limitada,
compartilhando o idealismo de seu fundador, Agostinho Fernandes8.
É possível considerar a fábrica de Matosinhos da Algarve
Exportador como um exemplo paradigmático da arquitectura industrial dos
anos trinta, sendo o mais significativo conjunto fabril do ramo da indústria
conserveira e um exemplo paradigmático num programa moderno que
teve pouca difusão neste período e no espaço português: a «arquitectura
das fábricas». Foi neste sentido que se abordou esta obra como um marco
importante, quando se sabe estarem sujeitos espaços de memória como este
a um eventual desaparecimento.
Segundo António Quadros, “uma arquitectura circunstancializada,
uma arquitectura nacionalizada, uma arquitectura existencializada, não tem
necessariamente que recorrer às formas e aos símbolos dos monumentos do
passado ou das construções regionais. Nacionalismo artístico não equivale
a passadismo” (Quadros, 1954)9. Por outro lado, e numa perspectiva
integracionista, Fernando Távora observa que “A individualidade não
desaparece com o fumo e se nós a possuirmos nada perderemos em estudar
a arquitectura estrangeira, caso contrário será inútil ter a pretensão de falar
em arquitectura portuguesa.” (Távora, 1947)10. Tendo presentes estas
ideias, procuraram-se estabelecer algumas considerações entre os
fundamentos do espaço moderno industrial, a arquitectura portuguesa e a
fábrica da Algarve Exportador em Matosinhos.
8 Agostinho Fernandes, o mesmo que fora patrono de António Varela e José de Almada Negreiros (v. supra, Cap.3.2: Leiria e a Escola do Porto, e infra, Cap.7.3: A casa de férias de Agostinho Fernandes (1938-42): uma aproximação mediterrânica à modernidade portuguesa). 9 QUADROS, António, Introdução a uma estética existencial, Lisboa, 1954. 10 TÁVORA, Fernando, O problema da casa Portuguesa, Lisboa, 1947.
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Como se pôde observar anteriormente, o estabelecimento dos
princípios modernos indica claramente a necessidade, para a época, de
criar uma nova ordem para um novo mundo: o mundo da máquina, no qual
o Homem deveria ser o principal beneficiário e não o escravo
condicionado. Dentro do mesmo espírito e a partir dos Anos Trinta, a
própria vanguarda europeia também incorpora as ideias da vanguarda
russa, e vêem-se as fábricas construtivistas como as novas catedrais de um
«admirável mundo novo». Em termos gerais, relembramos que o
desenvolvimento teórico e a produção que evoluia na Europa, inicialmente
no gabinete de Behrens, mais tarde na Bauhaus de Gropius, mas também
de Mendelsohn, de Mies van der Rohe e Le Corbusier, na vanguarda do
construtivismo russo, de Vladimir Tatlin às utopias de Chernikov,
Rotchenko, assim como nos Estados Unidos, com a Albert Kahn
Incorporated («Speed is the password for designing», era o seu lema…),
tudo isto, ou quase tudo, passava ao lado do «status quo» da arquitectura
industrial portuguesa, que se acomodava, num marasmo profundamente
marcado pela estagnação dos desgastados paradigmas oitocentistas. No
entanto, face a esse mesmo «impasse», considera-se, actualmente, graças a
um maior distanciamento histórico, a caracterização dos primeiros
vestígios de modernidade em Portugal através do esforço de uma primeira
geração, “geração de compromisso que não de manifesto” (DOCOMOMO,
1998, p.14)11.
11 Nas palavras de Manuel Mendes, trata-se de uma geração que “(...) produz obras delicadas na prospecção útil das novas convenções da invenção formal, no domínio vocabular da linguagem do moderno (mais de aceno que sintáctico)”, caracterizando-a como “(...) Acontecimento efémero. A passagem da tradição do novo sugere exercício de adaptação mais do que aceleração, espécie de estação estruturalmente inconclusa. Porque alcançada à força de braço, lanço a lanço, aproximação que sugere esforço musclado mais que impacto poético. Na transitoriedade ou na impossibilidade local para a interpretação prospectiva do paradigma formal da modernidade, – o edifício autónomo de arquitectura racionalista, o objecto – o sentido propositivo desta geração cedo evolui para a criação de um estilo português de arquitectura moderna pela investigação diletante do que considera permanências da tradição arquitectónica portuguesa ou valores da cultura nacional.” In MENDES, Manuel, Nós - uma modernidade de fronteira – nós para uma passagem inconclusa, in Arquítectura do Movimento Moderno – 1925-1965, Inventário do Docomomo Ibérico, edição do Docomomo Ibérico / Fundação Mies Van der Rohe / Associação dos Arquitectos Portugueses, 1998, pp.14 -16.
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Fig. 174 – cartaz da exposição Arqueologia Industrial /
Indústria conserveira, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989.
Avançando para além dos modelos dos edifícios industriais
conserveiros projectados na época, o caso da Fábrica de Matosinhos da
Algarve Exportador, constituindo grande parte de um quarteirão
homogéneo, apresenta a particularidade de adaptação de uma linguagem
formal moderna ao velho sistema secular das indústrias de conservas de
peixe. Não se tratava, neste caso, de conceber um edifício industrial a
partir de novas indústrias emergentes, mas de reformular radicalmente o
velho modelo da unidade fabril de conservas de peixe, largamente utilizado
nas décadas anteriores, numa nova proposta que respondesse não só a
todos os factores de produção (armazenamento, evisceração, cozedura,
enlatação, azeitamento, cravação e distribuição), mas que também pudesse
responder a novos níveis de salubridade e de bem estar dos trabalhadores
num ambiente adequado.
A obra foi divulgada numa revista especializada da época e
aplaudida com grande entusiasmo por diversas entidades12. O resultado,
ainda hoje, é um exemplo paradigmático do funcionalismo moderno
[fig.174] aliado a uma imagem marcadamente forte de organização e
produtividade industrial, mas onde se permite “individualizar esse
substancial desejo de renovação” (DOCOMOMO, 1998, p.14)13, sem no
entanto esquecer a sua contextualização nesse “estilo português de
arquitectura moderna” (id., ibid., p.16)14, no quadro de uma “investigação
das permanências da tradição arquitectónica portuguesa ou valores da
cultura nacional” (id., ibid., p.16).
12 Cf. Arquitectura Portuguesa e Cerâmica / Reunidas, n° 40, 3° série, Julho de 1938. 13 SEDLMAYR, Hans Verlust der Mitte, segundo PIZZA, António A arquitectura da fábricas como Zeitstil da modernidade, Cap. 5 – Comércio e Indústria, in Arquitectura do Movimento Moderno 1925-1965 – Inventário do Docomomo Ibérico, edição do Docomomo Ibérico / Fundação Mies Van der Rohe / Associação dos Arquitectos Portugueses, p.14. 14 MENDES, Manuel, Nós – uma modernidade de fronteira – nós para uma passagem inconclusa, in Arquítectura do Movimento Moderno – 1925-1965, Inventário do Docomomo Ibérico, edição do Docomomo Ibérico / Fundação Mies Van der Rohe / Associação dos Arquitectos Portugueses, 1998. p.16.
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6.2. CONTEXTUALIZAÇÃO – O PARADIGMA OITOCENTISTA DAS
FÁBRICAS CONSERVEIRAS: A PRIMEIRA GERAÇÃO
Em termos de funcionamento, as edificações do período conserveiro
que antecederam ao período moderno em Portugal remontam, em parte, a
um modelo com práticas milenares, em que o interior era concebido como
um espaço que pudesse integrar as diversas etapas de tratamento do
pescado15. Segundo Jorge Custódio16, a arquitectura da indústria
15 A importância da indústria conserveira romana encontra-se bem atestada pela presença de numerosos vestígios de oficinas ou fábricas pelo litoral português. As cetárias romanas são conhecidas um pouco por toda a bacia mediterrânica e só em Portugal conhecem-se mais de quarenta estações arqueológicas deste tipo. A este número podem acrescentar-se largas dezenas de fábricas existentes nas vizinhas regiões da costa atlântica marroquina, mauritânia, na costa meridional espanhola, assim como na costa norte (golfo da Biscaia). A investigação sobre a localização de cetárias romanas em Portugal não é abundante, exceptuando o caso de Tróia, sendo este o maior complexo industrial conserveiro algumas vezes encontrado em território português. A arquitectura conserveira romana encontra-se bem estudada através da observação de dois casos bem preservados: Cotta, na costa da Mauritânia, e Bello, em Cádiz, assim como em algumas estações do estuário do Sado. Com base nos estudos de alguns autores, estabelece-se uma possível descrição deste modelo de estabelecimentos industriais: “Consistiam geralmente em construções regulares, localizadas perto da margem, apresentando alguns cuidados construtivos (opus pseusidomun com revestimento de opus signinum). Em muitos dos casos podemos afirmar que todos os detalhes da construção dão a ideia de um trabalho bem concluído e concebido para ser durável. A área de salmoura, propriamente dita, localizava-se na parte central do edifício. Era em volta deste conjunto de tanques que giraria toda a actividade da oficina. Oficina que possuía, ainda, o impluvium que recolhia as águas da chuva, um reservatório enterrado ou cisterna, um edifício de aquecimento (necessário para o aquecimento da água quando se pretendia acelerar o processo de produção), e armazéns. Os tanques, agrupados no pátio interior da fábrica, eram regra geral de construção cuidada e resistente, de boa alvenaria e revestimento em opus signinum liso, espesso e de grande homogeneidade. Completamente impermeáveis, esses tanques, ou tinas, não tinham esgoto, mas apresentam na maioria dos casos uma ligeira depressão no fundo de um dos lados, prevista para a limpeza. De formas rectangulares e quadrangulares, de arestas arredondadas, estes tanques possuem dimensões diversas de comprimento e largura, por vezes dentro da mesma oficina. Também as dimensões de profundidade são variáveis, embora geralmente possuam mais de um metro, atingindo mesmo, por vezes, alturas superiores a dois metros (é o caso de alguns tanques de Tróia, Grândola). Surgem contudo, junto destas profundas tinas, outras mais pequenas destinadas, provavelmente, não tanto à salmoura mas antes à recuperação dos resíduos e entranhas dos peixes (...). Estes tanques, apesar de se localizarem em pátios, encontrar-se-iam abrigados por uma cobertura que os protegiam da chuva e eventualmente do sol. No caso de Tróia, onde foram encontradas telhas no enchimento das salgadeiras, os grupos de tanques, delimitados por muros, apresentam vestígios de pilares de secção transversal quadrangular que suportariam a cobertura.” In CLETO, Joel, A indústria de Conserva de Peixe no Portugal Romano – O Caso de Angeiras (Lavra, Matosinhos), in Matesinus n° 112 – 1995/6, p.26, com base no estudo de Ponsich para o caso de Bello. No que respeita ainda ao funcionamento destas oficinas refira-se o mesmo estudo interpretativo para o caso de Bello, segundo PONSICH, Michel, À propos d'une usine antique de salaisons à Bello, in Mélanges de la Casa de Velasquez, 1976, pp.75-77. Como na maioria dos casos, a fábrica encontra-se instalada paralelamente à costa, a uma cota que a coloca ao abrigo das marés atlânticas. Pensa-se que a ausência de portas nos seus acessos confirmaria um aprovisionamento directo a partir da praia. Veja-se BERNARDO, Hernâni de Barros, A localização da Indústria Conserveira – Alguns problemas geográficos, in Indústria Portuguesa, Ano 19, n°224, Outubro de 1946, p.26. Convém ainda realçar o trabalho fundamental de Jonathan C. Edmonson, Two Industries in Roman Lusitania: mining and garum production, BAR International Serie, p.362, Oxford, 1987 e alguns acrescentos à mesma obra, por ALARCÃO, Jorge de, Recenções (a Edmonson, 1987), Conímbriga, nº28, Coimbra, pp.236-243, assim como outros contributos para o estudo das regiões romanas coincidentes com o actual território português, in CENTENO, Rui, A Dominação Romana, in História de Portugal [dir. José Hermano Saraiva], Vol.1, Lisboa, 1984, Alfa, pp. 149-211, CLETO,
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conserveira portuguesa pode definir-se entre dois períodos: 1) um período
inicial, com uma arquitectura «feita por engenheiros», segundo modelos
importados para esta indústria emergente; e 2) um segundo período, de
uma arquitectura «feita por arquitectos», influenciada pelo Movimento
Moderno, recorrendo a tentativas de estruturação de um modelo próprio.
O estabelecimento desta síntese em dois períodos históricos anuncia
uma ordem e permite-nos compreender a evolução desta arquitectura de
carácter industrial. Deste modo, tendo presente que a fábrica de
Matosinhos da AEL se enquadra no segundo período, seria no entanto
importante observar o primeiro, que decorre da conjuntura da revolução
industrial portuguesa de oitocentos. Este recuo no tempo também permite
uma visão do «estado da arte» à época, e uma contextualização da resposta
de Varela na sua acção inovadora.
Joel, e SANTOS, Vítor, Novos tanques romanos descobertos na Praia de Angeiras, [artigo] in O Tripeiro, 7a série, vol. X (5), Porto, 1991, pp. 161-165, BARATA, Clara, Tanques de Salga (...) descobertos em Cascais, [artigo] in Público Local Porto, 3 de Novembro de 1992, p.58, FERREIRA, Octávio da Veiga, Algumas considerações sobre as fábricas de conservas de peixe na antiguidade encontradas em Portugal, [artigo], arquivo de Beja, n° 23-24, Beja, 1967, pp. 123-134, SANTOS, Maria Luísa Estácio da Veiga A., Arqueologia Romana no Algarve, dissertação para a licenciatura em Ciências Históricas apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa, Vol. 1., Lisboa, 1971. Pouco se sabe sobre estas explorações no território português, sendo da opinião geral que muito ainda haverá por fazer, particularmente na região do Algarve. No entanto, ressalvam-se os casos do Tejo e do Sado como referências comuns na bibliografia especializada: “De facto, a imponência das ruínas de Tróia, por um lado, e as diversas intervenções na arqueologia urbana, por outro, têm vindo a lançar alguma luz nos nossos conhecimentos. (...) [Tróia] é, sem dúvida, o maior complexo industrial conserveiro romano em território português depois de Bello (Cadiz), em toda a Península Ibérica. De resto, será mesmo um dos maiores centros produtores da antiguidade romana.” [CLETO, p. 28]; a este respeito o autor reporta-se à obra de André de Resende, De Antiquitibus Lusitaniae, a às primeiras investigações arqueológicas feitas por Carlos Ribeiro no século XIX, assim como a escavações que datam do início do século XX, dirigidas por Inácio Marques da Costa: “A este investigador se ficam a dever muitas informações a testemunhos entretanto desaparecidos. Nos anos 30, por exemplo, este arqueólogo ainda observou e descreveu uma fiada de casas de dois pisos e reproduziu os desenhos dos frescos que lhes adornavam as paredes e os tectos.” [Idem, ibidem, p.28]. Veja-se ainda a respeito das tipologias e funcionamento das cetárias, Michel PONSICH e TARRADEL, Miguel, Garum et Industries Antiques de Salaison dans la Mediterranée Occidentale, Paris, 1965, PUF, pp. 9-37, COSTA, A.. I. Marques da, Estudos sobre algumas estações da época luso-romana nos arredores de Setúbal III, in O Arqueólogo Português, Vol. XXVII, Lisboa, 1929, Museu Etnológico Português, pp.165-181 e ainda TAVARES, Carlos e SILVA, Joaquina Soares da, Arqueologia da Arrábida, col. Parques Naturais n°15, Lisboa, 1986. 16 Segundo Jorge Custódio, esta imagem parece veicular a ideia de um primeiro período caracterizado por uma edificação pragmática e empírica, por vezes adaptada ao local mas essencialmente reproduzindo modelos construtivos segundo os raros desenhos técnicos à época (veja-se o caso do modelo de Opperman, essencialmente vulgarizado a partir de cópias de plantas) –, por oposição a um segundo período (anos Trinta) correspondente a uma outra maturação e já com bases teóricas de cariz funcionalista, com uma intervenção dos arquitectos no processo de concepção em série e em cadeia, e um outro nível de cuidado no partido estético e de integração do edifício fabril em termos urbanísticos e arquitectónicos.
243
Interessa, portanto, compreender de que modo cada um destes
períodos se organizou e como se estruturou a sua evolução, desde o
período da década de 188017 até à época de implantação da fábrica de
Matosinhos (1939) (como modelo exemplar deste segundo período).
Considerámos, para o efeito, como primeiro período, o surgimento das
primeiras instalações da década de 1880 até ao «boom» de novecentos, e
daí em diante em grande proliferação até à década de 1930; já o segundo
período corresponde à fase moderna, dos anos 1930 até 1950.
17 Conviria ainda referir os antecedentes históricos que precederam esta fase: antes do aparecimento das modernas fábricas de conservas de peixe já esta actividade se exercia com base nos denominados armazéns de salga que remontam à Antiguidade Clássica. Será preciso não esquecer que esta indústria se encontrou estreitamente ligada a esta actividade que já existia desde os períodos mais remotos no território português: será necessário referir, como é evidente, que para além da matéria-prima (o pescado), também o sal, tratado nas salinas, foi outra matéria-prima indispensável que contribuiu para o desenvolvimento deste tipo de indústria: “Os estabelecimentos ou fábricas de salga de peixe são na sua forma mais comum, um conjunto de pequenos tanques contíguos, quadrados ou rectangulares, de dimensões varáveis, em geral construídos nas praias, sobre os rochedos, mas sempre vizinhos ao mar. Interiormente são revestidos de cimento romano [opus signinum] e têm os ângulos rebatidos e reforçados por caneluras convexas que correm a toda à volta do fundo. Muitos deles apresentam no seu solo uma cavidade circular ou «concha», para facilitar o escoamento do produto e de sua limpeza. Muitos deles apresentam no seu solo uma cavidade circular ou «concha», para facilitar o escoamento do produto e de sua limpeza." in SANTOS, Maria Luísa Estácio da Veiga A, Arqueologia Romana no Algarve, dissertação para a licenciatura em Ciências históricas apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa, Vol.1., Lisboa, 1971, p.62. Recorde-se que este modelo, apesar de apresentar uma evidente analogia com as antigas cetárias romanas, decorre igualmente da importação para Portugal, durante o século XIX, da indústria de salga tradicional existente em Itália, assim como na Grécia, que entretanto também evoluiu a partir do mesmo modelo paradigmático romano. Idem, ibidem, p.62. No que respeita a tipologia dos armazéns de salga, observa-se uma disposição do espaço que não parece diferenciar-se muito do modelo das antigas cetárias registadas arqueologicamente um pouco por todo o litoral: estes consistem, sinteticamente e no que respeita ao seu funcionamento, numa delimitação de espaço, entre uma área de limpeza do pescado, uma área de salga e uma área de armazenamento, debaixo de um telheiro de madeira, suportado por paredes de argamassa, e um embasamento em alvenaria de pedra: “Os estabelecimentos ou fábricas de salga de peixe são na sua forma mais comum, um conjunto de pequenos tanques contíguos, quadrados ou rectangulares, de dimensões varáveis, em geral construídos nas praias, sobre os rochedos, mas sempre vizinhos ao mar. Interiormente são revestidos de cimento romano «opus signinum» e têm os ângulos rebatidos e reforçados por caneluras convexas que correm a toda à volta do fundo. Muitos deles apresentam no seu solo uma cavidade circular ou «concha», para facilitar o escoamento do produto e de sua limpeza.” Idem, ibidem, p.62. Convém referir que este modelo, apesar de apresentar uma evidente analogia com as antigas cetárias romanas, decorre igualmente da importação para Portugal, durante o século XIX, da indústria de salga tradicional existente na Itália, assim como na Grécia, que entretanto também evoluiu a partir do mesmo modelo paradigmático romano.
244
6.2.1. A primeira fase (1880-1930)
É por volta das últimas décadas do século XIX que se pode
considerar, em termos cronológicos, a implementação das primeiras
fábricas de conservas de peixe em Portugal. A escassez de sardinha que
nessa época se verificou nas costas da Bretanha, onde se concentrava
grande parte da indústria francesa de conservas de peixe, levou os
industriais da região a procurarem outras paragens para aquela indústria.
Terá sido esta uma das razões principais para a implantação de fábricas
estrangeiras em Portugal.
Observam-se registos de finais de oitocentos e princípios de
novecentos, de uma primeira fase de domínio desta indústria, em Portugal,
por parte de gregos e italianos, que trouxeram esta indústria para portos
pesqueiros onde abundavam o atum, o biqueirão e outras espécies, e
principalmente no sul do país18. É a partir deste período que se começa a
enlatar o pescado, sendo o fabrico da lata assegurado por uma unidade de
solda em anexo ou por compra dos componentes da lata a terceiros: nesta
situação podem indicar-se os casos exemplares da fábrica de Hubert de
Ouizille (Setúbal, 1880) assim como da fábrica de conservas de atum em
lata S. Francisco de Francisco Rodrigues Tenório (Vila Real de Santo
António, 1880).
Por outro lado, o fabrico de conservas de peixe em lata surge
integrado, como processo de conservação inovador, nas grandes unidades
francesas que fabricavam todo o tipo de conservas pelo método de
Appert19 (como os usualmente designados «boiões» estanques).
18 Veja-se a este respeito os casos de Lagos, Olhão, Vila Real de Santo António, assim como do outro lado da fronteira, no litoral costeiro espanhol [casos de Ayamonte e Cádiz]. Refira-se que nos respectivos espaços portuários destas cidades surgem, por vezes, em documentação antiga, alguns nomes de industriais italianos ou gregos, como proprietários de fábricas de conservas em sal, como nos foi possível observar in situ. 19 “Na modesta fábrica de Massy, elaborando as primeiras conservas esterilizadas de carnes e legumes muito antes de Pasteur ter formulado a justificação científica do processo, Appert desvendou a rota de uma grande indústria moderna em que Portugal pôde tomar posição relevante, graças aos seus vastos recursos piscatórios.” BERNARDO, Hernâni de Barros, Breve História da Indústria de Conservas de Peixe em Portugal, [artigo], in Indústria Portuguesa, Ano 25, n°289, Março de 1952, p.75. Convém referir que, entretanto, na Noruega, assim como nos Estados Unidos,
245
Com estas primeiras fábricas também chega um grande número de
operários, assim como as novas tecnologias de conservação. No entanto,
não é certo que tenham sido estas fábricas estrangeiras as primeiras a trazer
o processo de enlatamento para o país, pois, segundo Sebastião Ramires, já
funcionava em Peniche, em 1864, uma pequena fábrica de conservas de
“sardinha em latas”20. Embora não seja de relevo para o presente estudo a
determinação da primeira fábrica, importará antes assinalar essa década de
1880 como o início do ciclo de desenvolvimento deste tipo de indústria
através da construção das primeiras fábricas, num Portugal que despontava
tardiamente para a «sua» revolução industrial. Convém acrescentar que não
foi apenas por iniciativa de empresas ou de empresários estrangeiros que a
indústria de conservas em lata se desenvolveu no país. Noutras localidades
do território, Figueira da Foz, Aveiro, Porto ou Olhão, vão surgindo
empresas nacionais que começam lentamente a desenvolver-se por
iniciativa de industriais portugueses21.
principalmente no estado do Maine, começam a desenvolver-se outras indústrias situadas na vanguarda dos aperfeiçoamentos fabris, tornando possível a multiplicação de iniciativas produtoras que, desde cedo, recolhem um fulgurante êxito. Contudo, a França, apesar da nova concorrência, continuou a manter-se na dianteira, beneficiando do que Appert lhe assegurara no princípio do século: “Em 1880 estavam em actividade nesse país cerca de 200 fábricas de conserva de peixe e dela irradiavam para outros, entre os quais Portugal, as iniciativas produtoras nesse ramo, trazendo à economia alimentar desses povos mais adiantados possibilidades que até então se ignoravam.” Idem, ibidem, p.75. Por outro lado, sabe-se que em 1865 já existia em Vila Real de Santo António uma fábrica de conservas de atum em azeite e que em 1879 desenvolvia ali valiosas actividades a fábrica Santa Maria, da firma Parodi e Roldan. Em 1880 foi fundada a fábrica São Francisco, de Francisco Rodrigues Tenório, que alcançou rapidamente grande prestígio pela alta qualidade do atum em lata que fornecia aos mercados internos e externos. Por seu lado, Hubert de Ouizille fala de um industrial francês, de nome Delory, que terá aportado em Setúbal, em 1880. Com base neste testemunho é possível considerar ter sido esta a primeira fábrica de conservas de sardinha a ser fundada em Portugal, seguida pela iniciativa de outros empresários franceses que fugiam da recessão dos cardumes das suas costas atlânticas. Veja-se a este respeito CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial”, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.26. 20 Veja-se a este respeito RAMIRES, Sebastião, Indústrias Portuguesas in Feiras de Amostras nas Colónias Portuguesas, Lisboa, 1923, in BERNARDO, Barros, Indústria Portuguesa, n° 224, 1946, p.74. Também se pode confirmar, segundo Barros Bernardo, pelas estatísticas industriais do distrito de Leiria. Cf. idem, ibidem, p.74 21 Em 1864, Peniche: notícias de uma pequena fábrica de conservas de “sardinhas em lata”; em 1865, Vila Real de Santo António: fábrica de conservas de “atum em azeite em lata”; em 1879, Vila Real de Santo António: fábrica de conservas Santa Maria, da firma Parodi e Roldan; em 1880, Vila Real de Santo António: fábrica de conservas de atum em lata S. Francisco, de Francisco Rodrigues Tenório; em 1880, Setúbal: fábrica de conservas “de sardinha em azeite, por iniciativa de um industrial francês”; em 1880, Espinho: fábrica de conservas de peixe em sal, da empresa Santos, Cirne & C. in idem, ibidem, p.74
246
Com base num apontamento de Hernâni de Barros Bernardo, poder-
se-á sintetizar em seis períodos toda a evolução desta indústria no território
de Portugal22: 1) um ciclo de salga, abrangendo o período luso-romano e
que predominou até ao séc. XV; 2) um ciclo de fumagem, que predominou
nos séc. XVI e XVII, do qual, segundo o autor, não se encontram quase
nenhuns vestígios; 3) um ciclo de molhos e de prensagem, mal definido,
cuja existência pode ser atestada após o séc. XVI; 4) um ciclo de conservas
em azeite, óleos, ou molhos, já mais definido no séc. XIX e que persiste no
século XX; 5) Um ciclo de conservas enlatadas, de variadas espécies, que
principiou na segunda metade do séc. XIX e que atingiu o seu apogeu nas
grandes indústrias da primeira metade do séc. XX; 6) um ciclo de
congelação, a partir da segunda parte do séc. XX23.
É especificamente com base no quinto ciclo, relativo à indústria de
conservas de peixe em lata, que este estudo se delimita. Situando a fábrica
nº 6 da firma Algarve Exportador Lda no seu tempo histórico, poderemos
considerar este exemplo como marcante do princípio do fim do período
áureo da indústria de conservas de peixe em Portugal.
22 Esta estrutura foi elaborada com base no apontamento de BERNARDO, Barros, Indústria Portuguesa, n° 224, 1946, p.74. 23 Este sexto período de congelação, enunciado pelo mesmo autor, refere-se à transição da conservação provisória do pescado pelo sal (método tradicional), para uma fase de armazenamento frigorífico do produto. Esta medida, entre muitas outras com as quais se começa seriamente a confrontar esta indústria a partir dos anos sessenta, não foi suficiente para fazer sobreviver de forma satisfatória a indústria de conservas em Portugal, pelo que nos reportamos a um estudo efectuado em 1967-68, sobre a viabilidade da empresa Algarve Exportador Lda face ao novo mercado, à época, emergente, e onde se enumeram as medidas necessárias para a sobrevivência desta indústria nacional para os anos vindouros, sendo uma dos quais a necessidade urgente da criação de uma «rede nacional de frio», que permitisse armazenar o pescado, transformando uma indústria que era tradicionalmente sazonal e sujeita às irregularidades da faina numa indústria activa durante todo o ano. Seria esta, entre outras, uma das iniciativas que poderiam renovar as conserveiras portuguesas, e lhes permitissem competir com os novos mercados estrangeiros, que começaram a competir directamente com a indústria nacional logo a seguir à Segunda Guerra Mundial. Veja-se ainda a este respeito CERQUEIRA, Nuno Nazareth Fernandes de, A viabilidade de uma empresa, Instituto Superior Técnico, Lisboa, 1968, e CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, pp. 49-51.
247
Fig. 175 – Real Fábrica de Conservas de Matosinhos Lopes,
Coelho Dias & Cª Lda.
6.2.2. O modelo adaptado do sector agrícola industrializado24
Para além da indústria de salga, surgem nas últimas décadas do
século XIX algumas unidades fabris que integravam os mais variados
processos de fabrico e produção de conservas de todo o tipo25.
O facto do processo de enlatamento surgir no contexto destas
fábricas com produção variada, também se pode explicar pelo acentuado
poder económico que estas primeiras empresas detinham, surgindo
isoladamente como autênticos colossos industriais, tendo sido estas as
primeiras beneficiárias de novas tecnologias importadas do estrangeiro,
coisa que as pequenas empresas de iniciativa privada ainda não possuíam,
o que comprova que o fabrico de conservas em lata surge numa primeira
fase integrado nas unidades de fabrico de conservas de todo o tipo, e
demonstra que ainda não existia um edifício especializado na produção
exclusiva de conservas de peixe em lata.
Um dos exemplos mais significativos destas primeiras unidades foi
uma fábrica de conservas de peixe em sal em Espinho, da empresa Santos
Cirne e C.ª, com sede no Porto. Esta empresa possuía uma outra fábrica,
denominada a Luso-Brasileira, a qual se dedicava a preparação de
conservas de fruta e azeitonas26. Assim, no que respeita à região norte,
Espinho constituiu-se desta forma como o primeiro centro conserveiro,
embora não especializado. Será também neste local que, em 1894, graças à
aplicação de capitais de origem brasileira, se irá implantar a primeira
fábrica da empresa Brandão Gomes & C.a. Esta fábrica obtém, um ano
mais tarde, o alvará de fornecedora da Casa Real e em 1899 a mesma
empresa abre uma outra unidade em Matosinhos. Também a Lopes, Coelho
Dias & C. [fig.175] é inaugurada em Matosinhos em 1900. Segundo José
24 Segundo terminologia utilizada por José Salgado, citado por CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989. 25 Esta fase inicial ainda não corresponde ao modelo mais divulgado da fábrica de conservas de peixe, no sentido em que não existia uma produção limitada à conserva de peixe em lata, sendo que estas primeiras fábricas produziam uma grande gama de conservas, desde as conservas de carne a uma enorme diversidade de conservas de vegetais, para além de variedades de peixes, produzindo-se também molhos variados, «picles», comercializando também azeite e vinagre. 26 CORDEIRO, ibidem, p.26.
248
Lopes Cordeiro, esta duas empresas irão beneficiar, na época, da
inexistência de concorrência na região norte, “(...) transformando-se muito
rapidamente em autênticos colossos industriais” (Cordeiro, 1989, p.26)27.
Segundo várias descrições, todo este conjunto de actividades com
funcionamentos diversos, assim como o seu aspecto formal, mais lhes
conferia o aspecto de granjas agrícolas [fig.175].
Segundo alguns autores, estas primeiras fábricas de conservas de
peixe foram construídas com base nos modelos adaptados do sector
agrícola. Na verdade, seriam soluções fortemente inspiradas nas primeiras
explorações agrícolas industrializadas, com um acentuado contraste entre o
interior e o exterior, como descreve José Salgado28.
Estas primeiras fábricas conserveiras não eram muito diferentes de
outras unidades industriais oriundas de outros ramos emergentes: podemos
citar, como exemplo, a Companhia Vinícola Portuguesa, instalada na zona
sul de Matosinhos, em 1899, enorme complexo industrial com 11.000
metros quadrados de área, em relação ao qual Joaquim Leitão
escreveu:“(...) não é um traçado de arquitectos (...), é um enorme plano de
batalha, com toda a estratégia que a suprema e invencível divisão do
trabalho contém”(Id., ibid., p.20)29.
27 Idem, ibidem: o autor refere ainda que estas duas fábricas "[...] constituíam sem dúvida duas das mais importantes unidades industriais daquele sector, facilmente testemunhado pela capacidade, qualidade a diversidade de sua produção, organização empresarial e apetrechamento tecnológico, a ainda, pela sumptuosidade de das suas instalações fabris". Esta "sumptuosidade", nos termos expostos pelo próprio, remete para a questão da "monumentalidade” com que se revestia a arquitectura desta primeira geração de fábricas. Este carácter "monumental" será mais tarde um dos principais temas de debate do Movimento Moderno, numa procura dos sintomas da “velha arquitectura”, debilitada e desfasada em relação aos programas industriais. Cordeiro, ibidem, p.26. Veja-se ainda a este respeito GIEDION, Siegfried, Space, Time & Architecture: the growth of a new tradition, 1941 – Harvard University Press, 5th edition, 2003, e Mechanization Takes Command: a contribution to anonymous history, Oxford University Press, 1948. 28 Segundo José Salgado: “(...) uma solução fortemente inspirada nos modelos das primeiras explorações agrícolas industrializadas, com um acentuado contraste entre o exterior e o interior.” In CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.20. Este último relembra ainda que esta fábrica, instalada na zona sul de Matosinhos, “(…) foi a primeira unidade industrial a ocupar aquela zona constituindo um foco de atracção para futuras indústrias.” in LEITÃO, Joaquim, Guia ilustrado da Foz, Matosinhos, Leça e Lavadores, Livraria Magalhães & Moniz Editora, Porto, 1907, p.20, in CORDEIRO, ibidem, p.26. 29 Segundo José Salgado, citado por CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.20.
249
Fig. 176 – Gravura da filial de Matosinhos da conserveira Brandão Gomes.
Ainda segundo a opinião de José Salgado, acentuando o carácter
fortemente diferenciado entre o aspecto exterior da fábrica e o seu interior,
comenta:
“(…) grandes cobertos em telha apoiados em pilares e travejamentos em madeira, as altas paredes em pedra, a clara distinção entre os corpos a que correspondiam diferentes funções, tudo sugere uma granja: só que aqui, celeiros, adegas, lagares, etc., estão concentrados, criando um volume compacto que não unitário. A finalidade do edifício talvez seja um elemento decisivo para interpretar esta forma, já que estas instalações não eram fábrica no sentido restrito do termo: funcionavam mais como armazéns onde se procedia à análise química laboratorial, à rotulagem, embalagem e expedição de um produto natural que não era ali totalmente transformado.” (Cordeiro, 1989, p.21)30.
Esta descrição refere-se à Companhia Vinícola, em Matosinhos, mas
poderia ser facilmente adscrita à primeira geração das indústrias
conserveiras, como fábricas de conservas de todos os géneros. Com efeito,
reencontram-se as mesmas características neste sector: um espaço de
laboração, específico, fechado ao exterior, e uma volumetria que
delimitava rigorosamente o espaço da produção [fig.176]: “Tudo o que se
passa no interior da fábrica é agora vedado aos olhos do público”
(Cordeiro, 1989, p.23), nas palavras de José Lopes Cordeiro, mas também
relembrando que é esta é uma das principais características dos modelos da
arquitectura industrial que surgem com a Revolução Industrial:
“(…) com a definição de um espaço fechado e especializado, do qual estão excluídas todas as actividades que não estejam propriamente ligadas à produção. A sua relação com o espaço urbano reduz-se a um simples muro que delimita o espaço de produção, ou a uma fachada por vezes decorativa que não só não nos fornece nenhum elemento sobre o que se passa no seu interior, como por vezes desempenha um papel de dissimulação dessa actividade.” (Id., ibid., p.23) [fig.175].
Em síntese, estas duas situações descritas permitem compreender
que por volta de 1880 – encontrando-se o processo de conservação em lata
numa fase bastante experimental –, surgem, nesta primeira fase duas
situações: 1) uma tipologia semelhante à utilizada na indústria de salga, ou
seja, uma unidade autónoma de fabrico inteiramente manual, sem a
assistência de máquinas, e assistida por uma unidade dita de «vazio», onde
os soldadores fabricavam as latas, sendo esta unidade integrada no mesmo 30 SALGADO, José, in CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.21.
250
edifício ou, situação mais comum, num edifício à parte; 2) uma produção
de conservas de peixe em lata integrada numa grande unidade de fabrico de
todo o tipo de conservas (carnes, legumes, frutas cristalizadas), onde o
processo de fabrico de conservas de latas ainda coexistia com esses outros
processos mais antigos de conservação de alimentos, nos quais o método
de Appert (ou appertização) era também utilizado.
Para uma perspectiva global das origens do modelo da fábrica de
conservas de peixe em lata tal como foi posteriormente desenvolvida no
Século XX, surgem aqui dois modelos paradigmáticos, e que parecem, à
partida, contraditórios: 1) o modelo dos estabelecimentos ou fábricas de
salga (paradigma: as cetárias, no litoral, desde a Antiguidade Clássica); 2):
o modelo agrícola (paradigma: a granja de produção variada, século XIX).
No entanto, se por um lado, como o indica José Lopes Cordeiro31, a
primeira produção de latas de conserva terá surgido experimentalmente no
modelo agrícola, não podemos esquecer que a produção de conservas de
peixe encontra o seu paradigma mais antigo no seu meio natural: o
litoral32.
A crescente massificação da produção e o seu rápido crescimento
observado no final de oitocentos, levaram à procura de uma organização
exemplar do pessoal, através do método de organização que já no Século
XIX se podia observar nas granjas multifuncionais, as quais, embora não
31 Idem, ibidem, p.23. 32 A geografia humana ensina-nos que a evolução das actividades humanas quase sempre se fez do litoral para o interior, e raramente no sentido inverso. Por essa ordem de ideias, deverá encarar-se com a maior reserva o estabelecimento de um modelo de fábricas de conservas em lata, que se observaram sempre no litoral, a partir de um modelo agrícola (que surge no interior). Pode mesmo considerar-se que existe uma relação de continuidade no espaço físico entre os pontos de estabelecimento das actividades conserveiras da Antiguidade e o estabelecimento das fábricas de conservas de peixe em lata de finais de oitocentos, o que se pode facilmente observar pela evolução da dinâmica dos portos pesqueiros no litoral português, da Antiguidade aos nossos dias, através das condicionantes naturais do espaço físico envolvente (recursos naturais marinhos, acessos fluviais, etc.), encontrando-se patentes por todo o território numerosos exemplos de sucessivas estratificações no mesmos espaços ao longo do tempo. De facto, a fábrica de conservas de peixe em lata integra os mesmos objectivos das milenares cetárias (a conservação do peixe). Nesse sentido, representa a evolução de uma indústria especializada num determinado produto (monoprudutora), ao contrário do paradigma das granjas agrícolas, que eram constituídas por uma série de espaços articulados mas independentes nas suas produções variadas (multiprodutora).
251
possuindo uma especialização, eram tidas como exemplos de organização
laboral.
Algumas das primeiras conserveiras apresentam situações em
analogia com a granja, através da tipologia das fachadas, do sistema de
construção, a organização em volta de um pátio central, etc. Mas o edifício
de fabrico conserveiro caracteriza-se, contudo, pela sua unidade em volta
do mesmo sistema de produção, o que origina uma tipologia própria assim
como um sistema construtivo.
Nesse sentido, o modelo da fábrica de conservas de peixe em lata,
também parece aproximar-se do modelo paradigmático dos primeiros
edifícios industriais; ou seja, no que respeita a estabelecer uma possível
estrutura do modelo da fábrica de conservas de peixe em lata, dever-se há
considerar os dois modelos acima descritos (as cetárias e a granjas
agrícolas), como paradigmas elementares para o correcto entendimento do
modelo da fábrica de conservas de peixe em lata.
Por um lado, tudo leva a crer que se pode considerar o paradigma da
milenar «fábrica de salga de peixe», no que respeita a um método peculiar
de organizar o espaço e o sistema de produção especializado (indústria
monoprodutora). Por outro lado, a sua organização massificada e a sua
escala integram uma organização hierarquizada do pessoal, inspirada no
modelo agrícola (indústria multiprodutora).
Consideramos que o facto destas fábricas de conservas em lata
nascerem, a partir do último quartel do Século XIX, como edifícios
projectados de raiz e não como construções que decorriam de um método
empírico de utilizar o espaço, é mais revelador dos estudos tipológicos
efectuados sobre o programa da fábrica de conservas de peixe, no contexto
da arquitectura industrial do Século XIX, e elaborados por «engenheiros-
construtores», do que de uma analogia do modelo agrícola adaptado ao
litoral, o que consideramos poder ser equacionado, ainda que como
influência particular e não determinante.
252
6.2.3. Características das fábricas de conservas de peixe em
lata no início do Século XX: o estabelecimento do modelo de
Opperman.
Dentro de um quadro geral, partindo do paradigma do primeiro
modelo de uma fábrica da Idade Contemporânea, do qual a fábrica de
fiação de John Lombe (Séc. XVIII), pode ser considerada como o
paradigma original, observa-se uma série de estudos, durante o século
XIX, no que respeita ao estabelecimento de modelos de arquitectura
industrial, dos quais destacamos um estudo efectuado na Grã-Bretanha
pelo engenheiro Opperman. Devido à crescente especialização e o
desenvolvimento geral das indústrias no quadro da evolução da revolução
industrial britânica, Opperman, através de uma análise de vários exemplos
observados na época, estabelece uma série de modelos para diferentes
edifícios industriais, tendo em conta uma melhoria do existente, dos quais
destacamos um modelo que este engenheiro inglês desenvolveu para a
industria de conservas de peixe em particular.
Registam-se em Portugal, a partir de novecentos, toda uma série de
aplicações do modelo de Opperman levadas a cabo por alguns dos seus
seguidores, às quais não são alheios alguns edifícios das maiores empresas
conserveiras portuguesas que se estabeleceram nesses mesmos portos
pesqueiros do litoral, entre os quais destacamos algumas unidades que
podem servir como modelos exemplares do início do Século XX: a fábrica
de conservas Lopes Coelho Dias a C.a Lda. (Matosinhos); a fábrica de
conservas Brandão Gomes, (Matosinhos); a fábrica de conservas Santa
Maria, da firma Parodí e Roldan, (Vila Real de Santo António); a fábrica
de conservas de atum em lata São Francisco de Francisco Rodrigues
Tenório (Vila Real de Santo António), a fábrica de conservas Feu y
Hermanos, (Portimão); a fábrica de conservas Santo António, da firma
Júdice Fialho e C.a (Portimão).
253
Estas fábricas caracterizavam-se essencialmente por uma visível
unificação dos edifícios em grandes quarteirões fechados, marcando a
passagem da primeira fase, de adopção do modelo agrícola, para uma
segunda fase, com um modelo próprio, caracterizado por um espaço
fechado e especializado que, pouco a pouco, irá substituindo a organização
inicial da unidade industrial pela simples adição de volumes.
Tal não significa que este modelo fabril (organizado em torno de um
edifício principal caracterizado por um espaço fechado ao exterior), não
tenha sido sujeito a ampliações diversas ao longo do tempo, o que se
explica facilmente pela expansão comercial desta indústria emergente das
primeiras décadas do Século XX.
Uma outra característica desta arquitectura reside na tipologia das
fachadas e na sua implementação em espaço urbano: será preciso não
esquecer que muitas destas primeiras fábricas eram construídas em
arrabaldes, faixas do litoral ou ribeirinhas limítrofes às zonas urbanas,
tendo sido, aos poucos, absorvidas pela expansão do tecido urbano dos
centros portuários. Simultaneamente, foram em muitos casos centros
geradores desses mesmos novos espaço urbanos, das quais a tipicidade
toponímica de «rua da fábrica» é suficientemente esclarecedora.
254
Fig.179 – Fábrica de conservas Feu y Hermanos, Portimão; planta geral; em cima: secção de vazio (demolida); em baixo, do outro lado da estrada: secção de fabrico, armazéns de cheio e cais de desembarque.
Fig.177 – Fábrica de conservas Feu y Hermanos, em Portimão; em cima: alçado da secção de vazio (demolida); em baixo: secção de fabrico e armazéns de cheio.
Fig.178 – Fábrica de conservas Feu y Hermanos, Portimão; corte transversal com a rua, a secção de fabrico, e o cais junto ao rio Arade.
6.2.4. Características espaciais e funcionamento geral
O edifício é projectado em extensão sempre que possível,
procurando ocupar, a maior parte das vezes, quarteirões inteiros,
constituindo-se geralmente de um só piso na zona de fabrico, destacando-
se um volume de dois a três pisos na zona de escritórios, de forma a ser
facilmente identificável [fig.175-176]. Estas características são comuns à
maior parte dos edifícios conserveiros construídos, nesta primeira fase da
indústria, pelo país todo no início do Século XX, assim como no caso de
Matosinhos, pela maior parte dos edifícios fabris que vão ocupar a zona a
sul do porto de Leixões, futuro complexo industrial33.
Deste modo é possível sintetizar as características gerais das fábricas
desta primeira geração: 1) um edifício projectado em extensão (fig.157),
ocupando por vezes quarteirões inteiros [fig.179], quando integrado no
tecido urbano; 2) um espaço fechado ao exterior, dividido por funções,
com um pátio em comunicação e articulação das várias secções [fig.179],
integrando por vezes um cais de desembarque, quando a fábrica se
encontrava à beira-mar ou à beira-rio [fig.178-179]; 3) uma zona de
fabrico, geralmente não excedendo um piso de altura, e uma zona de
administração com dois a três pisos facilmente identificável, surgindo
integrada, na maior parte das vezes, no mesmo edifício, mas procurando
33 No caso de Matosinhos, trata-se do sítio que ainda no século XIX se designava por Areal do Prado. Veja-se a este respeito o presente capítulo: 5.3.3.1. Origens do desenvolvimento urbano de Matosinhos.
255
quase sempre destacar-se pela sua expressão formal, no exterior e/ou no
interior [fig.175-176]; 4) um sistema construtivo composto geralmente por
paredes auto-portantes em alvenaria de pedra, tijolo, ou de argamassas
diversas; um travejamento dos pisos em madeira, assim como pilares,
também em madeira, quando fosse necessário vencer um vão [fig.179]; 5)
a proximidade do edificado junto a uma linha de água, exterior ou
subterrânea, permitindo o fácil escoamento dos detritos [fig.178]; 6) a
inclusão, por vezes, de uma linha-férrea, com ligação directa aos ramais de
distribuição.
6.2.5. Sistema de produção
O sistema de produção de uma fábrica de conservas em lata, tendo
variado ao logo do tempo, caracteriza-se, em termos gerais, por um
primeiro momento de uma produção em série inteiramente manual, sendo
igualmente o fabrico da lata efectuado manualmente por soldadores, como
classe operária distinta, demarcando-se do operariado conserveiro,
exclusivamente composto por mulheres, e distinguindo-se também no
espaço físico, por possuir uma unidade de solda integrada na unidade de
fabrico ou noutro edifício em anexo [fig.179], (a secção de «vazio»34).
Noutros casos, o ofício da solda afirmava-se como actividade independente
da conserveira e constituía-se então como uma indústria monoprodutora
própria35. As sucessivas invenções, decorrentes de uma crescente
acentuação dos processos mecanizados, vieram contribuir para um cada
vez mais rigoroso sistema de fabrico em cadeia e em série, com o qual se
tomará mais fácil introduzir maquinaria cada vez mais especializada. Por
exemplo, o processo de azeitamento, que tradicionalmente é realizado
manualmente numa tina, passa a ser efectuado por máquinas automáticas
(as azeitadeiras,). Outro ainda é o caso do fecho da lata, tradicionalmente
efectuado pelos soldadores com recurso ao chumbo, (e que mais tarde veio
a ser abandonado devido ao seu caráter tóxico), tendo sido totalmente
34 Designou-se por secção de «vazio», porque decorria do facto de nesse determinado espaço a lata ainda se apresentar vazia. 35 Muito embora dependente das flutuações do mercado conserveiro.
256
Quadro 3 – Esquema de funcionamento de uma conserveira: a fábrica recebe, a montante, a lata vazia vinda da secção de vazio, assim com o peixe conservado em sal (I.); na secção de fabrico (II.), procede-‐se em primeiro lugar ao descabeço e limpeza do peixe, sendo este de seguida lavado (1), passando à cozedura (2) e ao seu enlatamento nas latas recebidas da secção de vazio (3), sendo a operação efectuada pelas operárias nas várias bancadas; passa para a secção de azeitamento (4), sendo aqui o processo manual ou mecânico (executado pelas azeitadeiras); a lata é de seguida fechada nas cravadeiras (5), seguindo para a esterilização, efectuada por processo de autoclaves (6), sendo de seguida lavada (7), donde segue finalmente para o armazém de cheio, a jusante (III), onde se procede à verifição de cada lata (8), antes do seu embalamento (9) e armazenamento (10). [Note-‐se que este esquema se irá manter no caso da fábrica de Matosinhos de António Varela, assim como noutros projectos de sua autoria: a fábrica da Afurada e a remodelação da unidade de Lagos da AEL].
substituído pelas cravadeiras automáticas, como no caso da Fábrica da
Algarve Exportador, e assim por diante, etc.
Deste modo é possível apresentar o esquema de produção de uma
fábrica de conservas de peixe em lata [quadro 3]. Contudo, tendo em conta
que o processo sofreu inúmeras variações tanto no espaço como no tempo,
é-nos impossível, no enquadramento geral deste trabalho, indicar todas as
suas variações, pelo que se apresenta uma breve síntese do sistema de
produção de base. Este sistema varia na disposição e articulação interna
das várias funções nos primeiros espaços fabris. Mais tarde, com o esforço
de racionalização decorrente de uma maior intervenção dos arquitectos nos
projectos das fábricas da segunda geração, é possível observar-se uma
semelhança cada vez maior entre este esquema abstracto e o espaço real
projectado, nomeadamente no que diz respeito à organização da secção de
fabrico, em série e em cadeia, como se poderá observar no caso da fábrica
da Algarve Exportador em Matosinhos [v. infra, 6.2].
I. SECÇÃO ou “ARMAZÉM DE VAZIO” Descarga da matéria
prima (peixe)
Fabrico ou armazenamento
da lata
II. SECÇÃO DE FABRICO 1. Salga, limpeza e lavagem 2. Cozedura 3. Enlatamento 4. Azeitamento 5. Cravação 6. Esterilização 7. Lavagem da lata
III. SECÇÃO ou “ARMAZÉM DE CHEIO” 8. Verificação 9. Embalamento 10. Armazenamento
257
Em conclusão: alguns destes critérios, tanto a nível do sistema
construtivo como do funcionamento, irão manter-se no decurso da segunda
geração de fábricas, a partir dos Anos Trinta e Quarenta e na qual a Fábrica
nº 6 da Algarve Exportador se integra. No entanto, se por um lado esta
primeira geração se caracteriza por uma grande produção de latas de
conservas por todo o território litoral, verifica-se, já na segunda geração,
uma aproximação diferente no que respeita ao cuidado dos projectistas face
a uma indústria que se especializava, através de um maior rigor funcional,
dos sistemas construtivos e de uma sintaxe formal mais próxima do
paradigma moderno.
Estes melhoramentos também contribuíram para um progressivo
restauro e alguma remodelação das fábricas da primeira geração, que por
vezes chegam até aos nossos dias com evidentes indícios de diferentes
momentos construtivos, assim como a nível do funcionamento interno e
das aplicações de elementos mais recentes.
É ainda possível considerar, de algum modo, que se a primeira
geração «produziu latas», a segunda terá «produzido fábricas»... Esta
imagem, apresentada por Jorge Custódio, poderá servir para distinguir os
dois tempos na história da indústria conserveira: um primeiro tempo em
que se apostou na quantidade, face a uma crescente exportação, e um
segundo tempo em que se acentuou a qualidade, não só do produto, mas
também no aperfeiçoamento das unidades fabris, o que passou
obrigatoriamente por uma reflexão tipológica ao nível da arquitectura.
A primeira geração, que situamos entre 1880 e os primeiros anos de
novecentos, caracterizou-se por uma predominância de produção da região
centro (Lisboa, Setúbal, Sines, Peniche, Nazaré) e da região sul do país
(Lagos, Portimão, Olhão e Vila Real de Santo António), enquanto que a
partir de meados da década de Trinta começou-se a estabelecer uma clara
hegemonia na região norte, em parte devido ao aumento de escassez dos
bancos sardinha nas costas mais a sul.
258
Fig.180 – Lázaro Lozano, ilustração publicitária para a Algarve Exportador Limitada,1926.
Este novo dinamismo centrou-se em Matosinhos e foi assegurado
pelo porto de Leixões, primeiro porto de pesca do país. A cidade de
Matosinhos passa então a ser considerada, a partir de 1937, como o
principal centro de uma indústria com uma característica maioritariamente
exportadora, no limiar da Segunda Guerra Mundial36.
Deste modo e para compreendermos o caso particular da fábrica nº6
da empresa Algarve Exportador Limitada, é necessário compreender a
evolução desta empresa no espaço e no tempo e pelo que justificou a
implantação desta última unidade fabril, pertencente à segunda geração
tipológica, no norte do país.
6.3. CONTEXTO, PROGRAMA E ORGANIZAÇÃO DE UM
CONJUNTO FABRIL INOVADOR
6.3.1. A Algarve Exportador Limitada: caracterização e
estratégia de implementação urbana e territorial
Tendo em conta o anteriormente mencionado, desde a abordagem
histórica e tipológica das antigas conserveiras à concepção de uma novo
modelo industrial com a fábrica de Matosinhos da A.E.L., seria necessário,
para poder permitir uma boa compreensão do significado desta fábrica,
enquadrar a empresa no seu espaço e no seu tempo próprio [fig.180], na
conjuntura que antecedeu o momento desta última edificação. Esta
conjuntura encontra-se intimamente ligada ao percurso do fundador da
empresa: o industrial/coleccionador e patrono de António Varela:
Agostinho Fernandes37.
36 CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.48. 37 Agostinho Fernandes, empresário industrial e mecenas das artes (1896-1973), nasceu na Mexilhoeira Grande (Algarve), oriundo de uma família humilde cujo único filho viu sobreviver a uma elevada mortalidade infantil. Vai para Lisboa em 1900, aos catorze anos e com a antiga quarta classe, começando por empregar-se nos Armazéns do Grandela como paquete. Um pouco mais tarde entra para uma empresa inglesa de exportação de esteios (tipo de escoras) de pinho para a Grã-Bretanha, local onde as suas qualidades anunciadas despertam a atenção de Harold Edwin Oakley, o proprietário, que vendo as possibilidades e o potencial do seu empregado, decide-se a pagar-lhe o
259
A Algarve Exportador Lda. já possuía, antes da construção da
fábrica de Matosinhos, outras fábricas localizadas estrategicamente nos
principais centros portuários e conserveiros do país. A empresa foi
progressivamente estabelecendo unidades fabris ou representações da
firma pelos portos pesqueiros nacionais de maior relevância, através de
dois sistemas: quer por compra e aquisição de fábricas que existiam
anteriormente e procedendo a obras de remodelação, quer por aquisição
dos terrenos estratégicos, com vista à elaboração de raiz de uma nova
unidade fabril. Este modo de intervenção da empresa era característico das
empresas de maior envergadura e foi determinante, numa época anterior à
criação dos Planos Directores Municipais, para a organização e a
caracterização urbana das principais cidades portuárias do país.
prosseguimento dos estudos. Este aprende vários idiomas ao mesmo tempo que trabalha, tendo chegado a tirar o curso de contabilidade. Facto notório numa época impregnada de um certo colonialismo saxónico reinante, terá ido substituir um contabilista inglês na Archer, assumindo funções de ajudante de gerência. Depois de ter passado por uma empresa portuária de máquinas, associou-se, de seguida a outros portugueses, entre os quais se destacam os irmãos Álvaro e Mário de Sousa, constituindo a Portuguese Corporation, uma empresa com muitos associados que detinha o monopólio da importação do carvão de Inglaterra, para além de cereais de várias origens [refira-se que os irmãos Sousa comprariam mais tarde o Banco Fonsecas, Santos e Viana, que tomaria mais tarde o nome de Banco Fonsecas e Burnay actualmente integrando o Banco Português do Investimento], e para cuja sociedade convidaram Agostinho Fernandes, tendo este declinado a proposta devido às suas «firmes convicções» de industrial. A Algarve Exportador Limitada é fundada em 1920 por vários associados, entre os quais o próprio Agostinho Fernandes, nessa altura com trinta e quatro anos de idade e com estatuto de sócio maioritário. Inicialmente é uma empresa especializada na importação de material destinado à indústria de conservas, nomeadamente da folha de Flandres, matéria prima de base destinada ao embalamento da conserva de peixe em lata. Compra-se um cerco (uma embarcação pesqueira de tonelagem superior à traineira), mas o negócio revela-se desastroso. Agostinho Fernandes negoceia então o resto das outras acções da firma, e, adquirindo o total, compra a fábrica conserveira «Canelas» em Lagos, que se torna a fábrica n° 1 da Algarve Exportador Limitada. É já com sólida reputação como industrial do meio que o seu único proprietário e gerente, beneficiando de bons contactos estrangeiros, estabelece para a A.E.L uma parceria exclusiva de exportação para a Casa «Vimer», uma empresa alemã importadora de produtos conserveiros. Durante os anos de 1920 passa à exportação por venda directa, com representantes a agentes por todo o continente, viajando pela Europa e Médio-Oriente, tendo sido criados escritórios próprios em Bordéus, servindo a França e a Holanda, e em Londres, servindo grande parte dos países anglo-saxónicos, incluindo os Estados Unidos, ainda antes da Segunda Guerra Mundial. Noutro quadrante, embora não menos importante, convém ainda referir que Agostinho Fernandes foi igualmente sócio-fundador da Contemporânea, da Portugália Editora e do Museu Malhoa, nas Caldas da Rainha (da autoria de Paulino Montês), entre outras múltiplas actividades, e patrono de alguns artistas, poetas e escritores da geração moderna, entre os quais convém apenas sumariamente destacar, a título do presente estudo, José de Almada Negreiros e António Varela. Veja-se a este respeito AMARO, Luis, Agostinho Fernandes, as Portugálias, pp-11-40, e CASTRO, Laura, Agostinho Fernandes (1886-1972) – Apontamentos para uma cronologia, pp.-103-135, in SANTOS, José da Cruz [coord.], Agostinho Fernandes – um industrial inovador, um coleccionador de arte, um homem de cultura – fotobiografia, Portugália Editora S.A., Lisboa, 2000.
260
Fig.182 – ilustração publicitária da Algarve Exportador Limitada para o mercado francófono, [s.d.]. Note-‐se a indicação dos seis unidades conserveiras da empresa.
Fig.181 – Aspecto de parte da frota pesqueira da empresa Algarve Exportador Limitada, sediada no porto de Leixões, [s.d.].
Para além de especialização na produção de conservas de peixe, esta
empresa possuía frotas pesqueiras em vários portos [fig.181], funcionando
ao mesmo tempo como armadora, o que era prática corrente dos grandes
consórcios conserveiros nacionais, como era o caso também da Feu Y
Hermanos, da Júdice Fialho, da Vasco da Gama ou ainda da Sebastião
Ramires. Surgiam, por vezes, situações em que estas frotas eram afectas a
um determinado porto pesqueiro, descarregando o pescado na lota sob
coordenação de uma representação de vendas da empresa no mesmo local.
Deste modo, as frotas serviam para assegurar a venda do pescado nas lotas
de cada porto, independentemente de sua empresa possuir – ou não –, uma
unidade local. Era este o caso, por exemplo, da frota da A.E.L. de
Portimão, que embora aí não possuísse nenhuma fábrica, negociava o
pescado na lota, ou alugava a sua logística a outros consórcios38.
Em 1939, a Algarve Exportador Limitada atingia um total de seis
fábricas de conservas de peixe [fig.182] com características de unidades
autónomas, distribuídas pelo centro, sul e norte do território nacional:
Lisboa, Lagos [fig.184], Setúbal, Peniche [fig.183], Nazaré, e por fim
Matosinhos, na procura de uma hegemonia do território nacional.
Tendo em conta a divisão dos centros conserveiros do território entre
a Região Centro, a Região Norte e a Região Sul, é possível evidenciar a
disposição estratégica da empresa, somente igualável em número, logística
e dimensão aos outros grandes consórcios da época (Júdice Fialho, Feu y
Hermanos, Lopes Coelho Dias e C.ª, Ramires): no caso da AEL, as 38 Por vezes, também se criavam sistemas de dependência entre os vários armadores e conserveiros, em convergência de interesses de negócio: no caso de Portimão, por exemplo, era prática corrente ver as embarcações da A.E.L. em doca seca nos seus estaleiros junto à fábrica Feu y Hermanos, no rio Arade, junto ao Convento de São Francisco. Já no caso de Lagos, Setúbal e Peniche, a empresa A.E.L. possuía frota e fábricas funcionando em conjunto. Também no caso de Matosinhos, a produção desta fábrica era assegurada por uma frota própria, de modo que o ritmo de actividade não era prejudicado nem dependia das numerosas flutuações da compra de pescado na lota a terceiros, como sucedia às empresas que não possuíam frota própria. Surgiam, assim, em cada grande porto pesqueiro da época, três situações distintas, não só no caso da AEL em particular, mas no quando geral dos grandes consórcios da indústria conserveira da época: 1) uma unidade fabril que comprava o pescado na lota a terceiros; 2) uma frota que vendia o pescado a terceiros; 3) uma ou várias unidades fabris da mesma empresa apoiadas directamente pela frota da mesma empresa e no mesmo local.
261
Fig.183 – Fábrica de Peniche da Algarve Exportador Limitada (Anos Vinte), com remodelações posteriores de António Varela nos anos 40 (foto de 1999).
unidades de Lisboa, Lagos, Peniche e Nazaré foram remodelações de
fábricas anteriores, enquanto que nos casos de Setúbal e Matosinhos foram
projectos de raiz, encontrando-se todas, actualmente, bastante degradadas
ou em estados de ruína mais um menos avançados39.
Se excluirmos a fábrica de Matosinhos, as cinco primeiras fábricas
da empresa incluem-se na primeira fase da arquitectura conserveira. Estas
são significativas, tanto pelas suas características formais e organização do
espaço, assim como pelo seu sistema construtivo, de soluções anteriores à
segunda geração, que se inicia no final dos Anos Trinta e se acentua nos
anos Quarenta, na qual a fábrica de Matosinhos, da autoria de António
Varela, surge como um modelo exemplar da aplicação dos princípios do
funcionalismo moderno.
39 A segunda fábrica, de Lisboa, foi demolida em 1940, aquando das obras de aterro portuário pela Associação dos Portos de Lisboa. Refira-se ainda que, para além da fábrica de Matosinhos, a maior parte destas fábricas se encontram actualmente ou em ruína, ou em avançado estado de degradação; são estas: Matosinhos (em estado de ruína); Nazaré (desactivada); Peniche (desactivada); Lisboa (demolida); Setúbal (adaptada como local de estacionamento fechado); Lagos (demolida, embora com uma recente manutenção e subsequente aproveitamento do muro de delimitação da propriedade).
Fig.184 – António Varela, planta de remodelação da
fábrica da Algarve Exportador
Limitada de Lagos, 1942
262
Fig.185 – António Varela, perspectiva da AEL a partir da entrada de gaveto junto à praça Passos Manuel, 1938.
6.3.2. Enquadramento histórico do projecto
Em 1938 a Algarve Exportador Limitada beneficiava de uma larga
fatia no mercado de exportação nacional. No que respeita à implantação da
unidade de Matosinhos, não é estranho o facto desta cidade, importante
centro conserveiro beneficiando da proximidade do porto de Leixões, o
segundo porto do país, ter adquirido, em 1937, o estatuto de primeiro
centro conserveiro do país40. A data do projecto para a unidade de
Matosinhos da AEL, da autoria de António Varela, remonta a princípios de
1938 [fig.185-187], tendo sido aprovado em sessão de câmara a 9 de Abril
do mesmo ano. Para avaliar da justeza de tal momento por parte da
empresa, será preciso compreender que esta terá feito uma jogada de
antecipação: a empresa tinha perfeito conhecimento da falta de peixe que
se fazia sentir com bastante frequência no centro e no sul nos últimos anos,
com uma migração dos bancos de sardinha cada vez mais para norte. Tais
factos podem ser comprovados através de um artigo publicado em Agosto
de 1941 numa publicação especializada do sector conserveiro, a
Conservas, e intitulado Como progride a Indústria Conserveira do Norte.41
40 Cf. CORDEIRO, José M. Lopes, “A indústria conserveira em Matosinhos - exposição de arqueologia industrial”, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.48. 41 “Esta importante firma [a A.E.L.] já possue outras fábricas em Lisboa, Setúbal, Lagos, Peniche e Nazareth, mas a sua organização, uma das mais completes de Portugal, ressentia-se da falta de pesca de que sofreu o centro e Sul do país nos últimos anos e entenderam os seus dignos administradores que a solução prática estava em instalar-se também no Norte, sendo Matosinhos o lugar agraciado com a instalação da nova fábrica.” In Conservas, n° 68, Agosto de 1941.
263
Fig.186 – Quarteirão da Fábrica nº6 da AEL e da Rainha do Sado, Matosinhos; vista para sul; cruzamento da avenida da República com a rua Heróis de França.
Fig.187 – António Varela, Fábrica nº6 da AEL, perspectiva, 1938.
Tal como se pode comprovar pelo tom do artigo, parece evidente que
a firma terá actuado de forma estratégica. Convém mencionar a este
respeito: a) o tempo de planificação da empresa segundo uma estratégia
preestabelecida para decidir uma implantação na região norte; b) a
aprovação do projecto numa região da juridição do Grémio dos Industriais
de Conserves de Peixe do Norte, região essa que rivalizava
economicamente com o centro e o sul, ao qual a Algarve Exportador
Limitada era naturalmente identificada42; c) o tempo da mesma aprovação,
respectivas autorizações e licenças diversas para ser posto em prática o
plano preestabelecido, até serem activados os mecanismos de um processo
de tal envergadura junto das autoridades autárquicas; d) o tempo de
encomenda de um projecto desta dimensão e o tempo necessário à sua
elaboração por parte do projectista (neste caso, tratando-se de António
Varela); e) o tempo de emissão dos diversos alvarás para poder dar início à
obra.
Em suma, formalizando toda um processo legal perante diversas
entidades, a acção da firma Algarve Exportador Limitada enquadra-se na
progressiva hegemonia da região norte, tendo procedido António Varela à
elaboração do projecto de base em 1937. Deste modo, e com vista à
compreensão do espaço urbano caracterizado pelo quarteirão composto
pela Fábrica da Algarve Exportador Limitada / Rainha do Sado [fig.186],
conviria ainda referir alguns dados importantes sobre a evolução histórica
da expansão urbana de Matosinhos.
42 Será preciso acrescentar que Agostinho Fernandes assumia na época funções de Presidente do Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro.
264
6.3.3. Contextualização urbana
6.3.3.1. Origens do desenvolvimento urbano de Matosinhos
O concelho de Matosinhos, tal como se estabelece actualmente, é de
constituição recente, e remonta a um processo de reorganização territorial
que apenas se iniciou no lento despertar para o desenvolvimento industrial
correspondente ao último quartel do Século XIX.43
“Com a aproximação do final do século surgem grandes transformações na economia e na sociedade do concelho. O início da construção do porto de Leixões, inicialmente projectado apenas para porto de abrigo, e o aparecimento das primeiras fábricas, nomeadamente de duas grandes fábricas de conservas, desempenharam um papel um papel de destaque nesse conjunto de profundas transformações. A agricultura e a pesca, ocupações dominantes até então, começam a ser substituídas pelas actividades do sector secundário e, timidamente, do sector dos serviços.” (Cordeiro, 1989, p.11).
Neste contexto o crescimento populacional e o desenvolvimento
urbanístico, particularmente, da freguesia de Matosinhos, provoca
profundas alterações à paisagem tradicional predominantemente agrícola,
com a implantação sucessiva de inúmeras instalações industriais,
possivelmente – segundo apontam algumas fontes –, com um plano de
urbanização previamente elaborado pela Companhia Edificadora44. Seja
como for, é certo que a definição da estrutura urbana que em grande parte
se conservou até à actualidade deve-se ao plano da autoria de Licínio
Guimarães e que remonta a 1880, onde surgem já demarcados os principais
arruamentos que mais tarde se viriam a configurar45 [fig.188]. Neste
documento é possível observar a peculiar inflexão entre a malha antiga a
norte e o traçado ortogonal a sul, onde se destaca a implantação do
Hipódromo de Matosinhos, (posteriormente demolido). É a partir deste
43 “Até ao final do século Matosinhos vai ser alvo de uma reorganização territorial: em 1871, a freguesia de Labruge, é de novo integrada no conselho de Vila do Conde; a abertura da estrada da Circunvalação, em 1895, tem como consequência a integração das freguesias de Nevogilde, Aldoar e Ramalde nos limites territoriais do Porto. Em 1909, a designação de «conselho de Bouças» carecia de sentido face ao não desenvolvimento daquele lugar comparativamente ao de Matosinhos. Por esse motivo, a Câmara Municipal enviou uma representação ao governo solicitando uma alteração ao nome do conselho, o qual se passou a designar por «conselho de Matosinhos», a partir de 6 de Maio daquele ano.” In CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.8. 44 Cf. Idem, ibidem, p.11. 45 Cf. Idem, ibidem, p.11.
265
Fig. 188 – Planta Projecção Horizontal de parte da Vila de
Matosinhos, compreendida entre
a praia dos banhos e o forte do
Queijo, da autoria de Licínio Guimarães, década de 1880. Note—se a inflexão para sul do eixo da rua de Brito Capelo e a sobreposição da nova malha ortogonal sobre os terrenos do antigo hipódromo a norte.
momento que o velho centro histórico começa a perder importância e a
Rua de Brito Capelo se torna o centro da vila de Matosinhos, no seu
prolongamento para sul46.
É nesta vasta área plana que daí em diante, e já na viragem do
século, numerosas empresas conserveiras e de salga viriam a requerer
alvarás nos terrenos do Hipódromo de Matosinhos e do «elegante e
burguesíssimo Jockey-Club47» localizado no areal do Prado. Neste
contexto de «Belle Époque», Matosinhos e principalmente Leça da
Palmeira começavam a perder progressivamente o seu carácter de estâncias
de repouso e lazer da burguesia portuense que até aí então desempenharam,
sendo que a própria relação funcional entre as duas – ou seja, a
predominância do papel de centro turístico e balnear que garantia maior
importância a Leça –, começa a alterar-se significativamente em favor do
desenvolvimento industrial de Matosinhos, acelerado pela construção do
porto de Leixões que se inicia em 1884.
Pela mesma via, as linhas de caminho de ferro, em articulação com
as ligações às novas fábricas, a construção de novas estradas, assim como o
surgimento dos transportes públicos estabelecendo uma ligação regular
com a cidade do Porto e outros centros urbanos, contribuíram para o
crescimento urbano, predominantemente para sul. A estrada de 46 Cf. SÉREN, Maria do Carmo, Mitologias da pesca e pescadores de Matosinhos, in Uma cidade assim, Câmara Municipal de Matosinhos, [catálogo], Matosinhos, 1996, p.35. 47 Segundo referência de José Lopes Cordeiro. Aqui se construiriam os armazéns de vinho da Companhia Vinícola Portuguesa em 1899, ocupando uma área de 11.000 metros quadrados. Cf. CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.16.
266
circunvalação, inaugurada em 1895, substitui o tradicional trajecto através
da estrada da Azenha de Cima, assim como as pontes de madeira (1882),
ligando a Rua Nova do Arnado (Leça) ao Juncal de Baixo (Rua Roberto
Ivens, Matosinhos), e da ponte metálica (1887), permitindo a sua utilização
pelos recém-chegados transportes públicos.48
Segundo José Lopes Cordeiro, o desenvolvimento industrial de
Matosinhos, ocorrido a partir dos finais de oitocentos, possui três
características essenciais: ter-se desenvolvido muito tardiamente;
apresentar uma distribuição irregular, sofrendo a influência da proximidade
de um grande centro urbano (a cidade do Porto); e evidenciar muito
precocemente um sector dominante, o da conservação e conserva de peixe,
“o que se justificava pela abundância da matéria-prima nele utilizada e pela
facilidade existente de exportação do produto acabado” (id., ibid., 1989,
p.20).
Contudo, o atraso verificado no arranque industrial do conselho
resulta em grande parte do próprio atraso que o país neste domínio
apresentava. No entanto, a partir do momento em que se inicia a instalação
das primeiras fábricas, verifica-se que este processo se desenvolve num
ritmo bastante acelerado, “constituindo algumas dessas fábricas, pelo
significado da sua produção e pelas suas instalações, empresas de primeiro
plano na vida económica nacional” (id., ibid., p.20)49.
Em suma, Matosinhos constitui-se, à viragem do século, como o
quarto porto piscatório do país, tendo passado para a liderança nacional a
partir da década de 1930. É também nesta década que Salazar permite a
abertura de um porto comercial “mantendo reservas sobre o seu excessivo
48 Cf. CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, pp.13-14. Refira-se que estas pontes foram demolidas no primeiro quartel do século XX, aquando da construção da Doca nº1 do porto de Leixões. 49 “As fábricas de conservas Lopes, Coelho Dias (1899), Brandão Gomes (1900), filial da de Espinho, constituíam sem dúvida duas das mais importantes unidades industriais portuguesas daquele sector, facilmente testemunhado pela capacidade, qualidade e diversidade da sua produção, organização empresarial e apetrechamento tecnológico, e ainda, pela sumptuosidade das suas instalações fabris.” Idem, ibidem, 1989, p.20).
267
tamanho” (Séren, 1996, p.27) e que se irá edificar um bairro de pescadores,
no quadro das acções urbanísticas do Estado Novo.
É ainda possível considerar que a estas duas fases de
desenvolvimento económico muito se devem as duas fases de expansão do
sector conserveiro, e parecem corresponder, de igual modo, às duas
grandes fases de expansão urbanística da cidade de Matosinhos, centradas
na primeira metade do Século XX: a primeira, que se inicia em finais de
oitocentos e se prolonga nas primeiras décadas de novecentos, e a segunda,
na substantiva proliferação de unidades fabris durante a década de Trinta
Pertence justamente a esta segunda fase a Fábrica da Algarve
Exportador de António Varela, reconhecendo-se este como o «período
áureo» da história da indústria conserveira, não só em Matosinhos, como
em todo o país.
268
Fig. 190 [à esq.] – Localização da fábrica: planta com sinalização das conserveiras e das fábricas de conservas pelo sal de Matosinhos em 1937 (dois anos antes da construção da AEL) note-‐se a inflexão da malha urbana entre a zona antiga [a norte] e a zona industrial [a sul]; o lote de implantação da AEL encontra-‐se assinalado a cheio; a doca de pesca do porto de Leixões encontra-‐se a poente. Em cima [fig. 191]: fotografia aérea de 1996, onde se pode observar o enquadramento da fábrica em torno da praça Passos Manuel e no sentido do eixo da avenida da República, em direcção à doca de pesca do porto de Leixões [o tracejado é nosso].
Fig. 189 – Fábrica nº6 da AEL, vista para sudoeste sobre a praça Passos Manuel, com o cruzamento da avenida da República com a rua Roberto Ivens. Ao fundo, o mar e o porto de Leixões.
6.3.3.2. Contextualização urbana da Fábrica da Algarve
Exportador Limitada
O terreno comprado pela firma AEL inclui-se num quarteirão
triangular no centro de Matosinhos, afigurando-se claramente como um
momento de rotação na malha ortogonal projectada [fig.190]. Deve-se este
facto a uma inflexão resultante da articulação entre a área urbana mais
antiga de Matosinhos, situada a norte, com o desenho urbano da zona
industrial para sul36, de acordo com o planeamento de finais de oitocentos
[fig.188], consequente da crescente industrialização do sector conserveiro.
O quarteirão é delimitado a norte pela avenida da República, a
nascente pela rua Roberto Ivens (à data do projecto com o nome de rua Dr.
Alves da Veiga), e a poente pela rua Heróis de França (à data do projecto
com o nome de rua João Chagas) [fig.192-195].
269
Fig. 194 – AEL, vista da Praça Passos Manuel; em primeiro plano, a administração e a habitação do encarregado no piso superior.
Fig. 193 – Fachada da secção de fabrico da AEL, em continuidade com o eixo da avenida da República.
Fig. 192– vista aérea para norte do quarteirão formado pela AEL [1938] e a conserveira Rainha do Sado [1941]. Ao centro , a Praça Passos Manuel no eixo da Avenida da República; a poente, a praia de Matosinhos.
No entanto a principal artéria era – e ainda continua a ser –, a
avenida da República, importante eixo do traçado urbano de Matosinhos,
conjuntamente com a praça Passos Manuel. Esta avenida foi projectada
desde os limites da cidade a nascente, em direcção à cidade do Porto, e
para poente, desembocando junto à praia de Matosinhos e ao porto de
pesca a sul da doca de Leixões [fig. 190-191], sendo esta percorrida pela
grande fachada correspondente à secção de fabrico da A.E.L. [fig.189-
193].
A praça Passos Manuel, intercalada na avenida, serve de eixo de
distribuição entre o seu lado nascente, em direcção à cidade do Porto e seu
lado poente, diminuindo de cota em direcção ao mar, até à praia de
Matosinhos e ao porto de pesca (zona sul do porto de Leixões) [fig. 190-
191].
Esta praça serve de culminar sul da avenida Serpa Pinto, pertencente
à malha mais antiga e que nasce na doca n°1 do Porto de Leixões. Serve
igualmente de eixo de distribuição entre a zona norte da Rua Roberto
Ivens, desde a Doca n°1 do porto de Leixões, rematando mais a sul na
Praça Cidade do Salvador, em direcção à cidade do Porto, pela Foz ou pela
Estrada de Circunvalação inaugurada em 1895. Como se pode comprovar
pela planta de 1937 [fig.190], evidencia-se a estratégica localização desta
nova unidade da AEL, implantada no centro urbano de Matosinhos, entre o
porto de pesca e a malha que se desenvolveu mais tarde para o interior.
270
Fig. 195 – vista aérea para poente do quarteirão formado pela AEL [1938] e a conserveira Rainha do Sado [1941]. Apesar do avançado estado de ruína, a continuidade das fachadas contribui para a homogeneidade do conjunto.
Esta localização estratégica é reforçada pela sua organização
volumérica junto à praça, à qual António Varela parece ter dedicado
especial atenção [fig.186-189-194], pois parece evidente que se tenha
apoiado no desenho urbano preexistente para a génese do projecto, o que
se comprova pelo testemunho escrito do próprio (v. infra, 6.3.4.).
6.3.4. Descrição da fábrica: as várias fases projectuais
A fábrica surge referenciada pela primeira vez no mesmo ano de
conclusão do projecto, na revista Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e
Edificação / Reunidas50, de Julho de 1938. Publicação especializada da
época, com imagem na capa referente a uma perspectiva assinada por
António Varela, e que consta do conjunto de peças desenhadas que deram
entrada na câmara para aprovação do projecto. Transcrevemos o artigo,
tendo em conta a sua relevância para vários pontos de interesse deste
estudo:
50 Cf. A Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e Edficação / Reunidas (A.P.C.E./R), n° 40, 3° série, Julho de 1938.
271
Fig. 196 – AEL, interior da secção de fabrico, vista sobreelevada a partir da administração.
Fig. 197 – Capa da publicação A arquitectura portuguesa e
cerâmica e edificação reunidas, nº40, Julho de 1938, e perspectiva de António Varela para a primeira versão da fábrica de Matosinhos da AEL.
“Publicamos hoje alguns trabalhos de um distinto arquitecto: António Varela. Formado pela Escola de Belas Artes do Porto, pertence à nova geração mas tem-se afirmado como dos mais marcantes e seguros; deve ser dos que mais novos concluíram o seu curso, pois aos 24 anos era já arquitecto. É actualmente professor de Ensino Técnico, na Escola Industrial Machado de Castro e deu a sua valiosa colaboração, em mais de um ensejo ao notável artista Jorge Segurado, designadamente no plano de urbanização da Praia do Cabedelo (...)51. Demos estas páginas a um seu interessante projecto para uma fábrica que a firma Algarve Exportadora Limitada, pretende construir em Matosinhos. Já lá vai o tempo em que na construção de uma fábrica se dispensavam cuidados estéticos; hoje, projectar um estabelecimento fabril é estudar um conjunto que deve também mostrar-se harmonioso. Para mais, o terreno onde está será executada a construção está situado em artéria importante. O arquitecto António Varela tem neste projecto um trabalho de superior inteligência; as gravuras que publicamos elucidam-no suficientemente, mas não queremos deixar de referir o vasto Hangar com cobertura sem apoios intermediários, com a fachada francamente aberta à luz, e com um módulo de construção determinado, de que resultou uma fachada de belo ritmo moderno, a que a altura do entablamento (necessário para evitar poeiras no interior) dá certo ar de grandiosidade. No mais, a atenção do leitor encontrará méritos evidentes, que confirmam o alto conceito já granjeado por este artista.” (A.P.C.E./R, 1938).
Aqui são destacados, através de uma breve descrição das soluções
adoptadas, os princípios inerentes ao posicionamento de António Varela
face às soluções aportadas pelos estudos dos modelos técnico-
funcionalistas no que respeita à arquitectura industrial. Termos como “o
vasto hangar com cobertura sem apoios intermediários”, “fachada
francamente aberta à luz”, e “módulo de construção determinado” referem-
51 V. infra, 4.3.1.
272
Fig. 198 – AEL, interior da secção de fabrico, vista a partir da secção de cheio.
se directamente a princípios de composição típicos do funcionalismo
moderno [fig.196-198-199].
Parece no entanto evidente que terá sido António Varela um dos
primeiros arquitectos no panorama nacional a ter posto em prática estes
valores modernos no que respeita aos princípios inerentes à arquitectura
fabril.
Contudo, este artigo é referente ao projecto e data como sendo
anterior à construção (1938). No que respeita a alguns comentários sobre a
qualidade do espaço construído em 1939 a resultantes do projecto de
António Varela, referira-se ainda o artigo da revista Conservas (1941), no
qual se pode igualmente comprovar o valor da novidade desta fábrica no
seu meio e na sua época, e alguns comentários no que respeitava o seu
funcionamento:
“Registámos anteriormente nestas colunas várias notas representativas do Progresso da nossa indústria ao referirmo-nos às novas instalações das firmas Lagos, Ferreira & C.a L.da e Lopes da Cruz & C.a L.da, em Vila do Conde , e a Brandão a C.a L.da, em Matosinhos, esta última transformando a sua antiga fábrica da Avenida Serpa Pinto a dando-lhe exteriormente aspecto digno do seu nome. Hoje cabe a vez de nos referirmos à Algarve Exportador L.da, exclusivamente [...]. As fotografias que ilustram estas notas darão melhor ideia do que quanto nós pudéssemos dizer com respeito à excelente
273
Fig. 199 – AEL, interior da secção de fabrico, vista sobreelevada a partir da administração. Ao fundo e em elevação: o monta-‐cargas de acesso à açoteia.
tendência que vimos observando nos industriais, ou seja o de dedicar todos os cuidados à higiene das suas instalações.” (Conservas, 1941)52.
Prossegue o artigo, com uma alusão a uma visita ao interior da
fábrica:
“Na nossa rápida visita impressionou-nos em primeiro lugar o asseio que presidia em todas as secções. A nave destinada ao enlatamento é grande, elegante, airosa, cheia de luz. O solo é de mosaico e o conjunto formado pelos cofres de coser e de esterilizar, com as suas chaminés de corte vistoso, dá o aspecto agradável de um salão dos velhos tempos senhoriais. A distribuição do azeite é teoricamente perfeita e tem, precisamente, a novidade do aperfeiçoamento. Destaca-se uma soberba «açoteia» para utilizar na secagem da sardinha e servida por um ascensor que prova os bons desejos da «Algarve Exportador Lda.» em servir os seus clientes da América do Norte. Reflectem também desejos ferventes de harmonizar com os tempos, os departamentos destinados a vestiários a refeitórios, onde a simplicidade se conjuga com o bom gosto, assim como o que se destina a banhos de chuveiro, onde nada falta para o bom serviço dos operários. O mármore e o mosaico são, não somente belos materiais, mas também dos mais fáceis de limpar, e o mosaico e o mármore são empregados nesta fábrica em todas as dependências em que o trabalho diário obriga a uma limpeza permanente (...).” (Ibid.).
Após uma série de congratulações pelo evento à firma AEL, “pelos
seus brios a pela contribuição que presta ao desenvolvimento da indústria
portuguesa de conservas” (ibid.), segue-se um último parágrafo dedicado a
António Varela:
“Não podemos deixar de nos referirmos ao arquitecto Dr. António Varela [sic], da Escola de Belas Antes do Porto, autor da primorosa obra, espírito juvenil com brilho próprio e um elemento novo digno de ser consultado quando houver que tratar-se de futuras instalações ou mesmo modificações das actuais, porquanto a austeridade de linhas e o delicado detalhe interior revelam o artista que sabe engalanar sem perder de vista as necessidades práticas, que cria beleza sem prejudicar o útil. Oferecemos-lhe os nossos sinceros parabéns com o pressentimento de que não será esta a última vez que Conservas lhe rende o tributo de carinhosa admiração, ainda que pese a sua reconhecida modéstia.” (Ibid.).
Note-se que a revista Conservas terá dado como certas futuras
intervenções de António Varela, o que se veio a comprovar mais tarde. De
facto, embora pese significativamente o projecto inicial de António Varela
de 1938, a fábrica foi objecto de ampliações e remodelações ao longo do
tempo.
52 Conservas, n° 68, Agosto de 1941.
274
Com excepção de pequenas intervenções diversas realizadas
posteriormente, existem outros dois momentos construtivos bastante
importantes para a compreensão do conjunto. O primeiro, datado de 1941,
refere-se à construção de armazéns de estiva, da autoria de António Varela;
o segundo, datado de 1946, refere-se a uma ampliação do edifício do pátio
para mais um piso situado por cima do andar térreo, mas aparentemente já
sem intervenção de António Varela, pois o projecto consta como sendo da
autoria do arquitecto Agostinho Ferreira de Almeida.
Pode, deste modo, concluir-se existirem três momentos construtivos,
intervalados por espaços de tempo relativamente curtos. Primeira fase:
projecto da fábrica de conservas da Algarve Exportador Limitada, autor:
António Jorge Rodrigues Varela (1938); segunda fase: projecto de
armazéns de estiva a construir nos terrenos da fábrica em anexo, autor:
António Jorge Rodrigues Varela (1941); terceira fase: projecto de
ampliação e remodelações do edifício do pátio; autor: Agostinho Ferreira
de Almeida (1946).
Da primeira à segunda fase vão dois anos de intervalo. Já da segunda
à terceira vão cinco.
As duas primeiras são as mais importantes e significativas. A
primeira, por razões óbvias, abrange a maior parte do edificado, e consiste
na fábrica propriamente dita; a segunda, porque marca a última intervenção
de António Varela, revestindo-se por isso da maior importância para se
poder seguir as suas variações no espaço e no tempo, face ao seu modo de
projectar, na mesma obra; já a terceira, da autoria de Agostinho Ferreira de
Almeida, veio adulterar, em certa medida, o traçado original do conjunto
idealizado por António Varela, como se poderá confirmar53. Observe-se
então, sequencialmente, cada um destes três momentos construtivos.
53 v. infra, 6.3.
275
Fig. 200 – António Varela, desenho perspectivado da AEL, 1938 [pormenor sobre a entrada da administração]. Note-‐se a primeira versão do frontão da secção de fabrico.
6.3.4.1. Primeira fase: projecto da fábrica de conservas
Algarve Exportador Limitada54
Transcrevemos uma parte da introdução da memória descritiva do
projecto elaborada por Varela e referida pelo próprio como Do Terreno e
do Partido da Composição:
“O terreno adquirido pela firma Algarve Exportador Limitada, para instalação da sua fábrica, na vila de Matozinhos, tem a forma trapezoidal, e contorna-se a Nascente, com a rua Dr. Alves da Veiga, formam os arruamentos uma pequena praça circular, o que motiva, naquele cruzamento o corte do ângulo, por um arco de circunferência.” (A.C.M.M., 1938)55
Como se pode comprovar pelas suas palavras, este cruzamento irá
desde logo revestir-se da maior importância no conjunto global do
projecto, pois é a partir deste desenho da praça que se estabelece o espaço
pare a administração, sendo esta uma das analogias apontadas por José
Manuel Fernandes quando refere a sua “rica diversidade de ângulos
[fazendo lembrar] a Casa da Moeda” (Fernandes, 1993, p.121) [fig.105-
110].
Convém considerar que o motivo gerador desta forma de gaveto foi
a praça (espaço «causal»), tendo dado origem à superfície côncava da
fachada (espaço «consequente» e forma «subtractiva») [fig.200-201]. Esta
solução não parece contrariar a homogeneidade do projecto. É a resolução
de um espaço edificado consequente do «vazio» causal da praça, e em
analogia directa com a solução adoptada por Jorge Segurado para a
resolução do gaveto entre a rua João Crisóstomo e a rua da Estefânia no 54 Autoria de António Varela; data de aprovação camarária: 9 de Abril de 1938. 55 Algarve Exportador Limitada, memória descritiva de António Varela, processo do Arquivo da Câmara Municipal de Matosinhos (A.C.M.M.), Matosinhos, 1938.
276
Fig. 201 – AEL, vista da entrada de gaveto da administração [s.d., anos 40]. Note-‐se a alteração aa altura do frontão da secção de fabrico em relação ao projecto de 1938.
edifício da Casa da Moeda em Lisboa, projectada uns anos antes
[fig.105]56.
Convém assinalar que a entrada principal (n° 216 da avenida da
República, endereço oficial da fábrica) que dá acesso directo à
administração, se encontra virada para o antigo edifício da Câmara
Municipal de Matosinhos na rua Brito Capelo. Isto poderá comprovar uma
intenção propositada em situar o centro de estatuto da empresa face ao
centro do poder local57.
Esta postura que se revela ao observador pode ser reconhecida
noutros exemplos, na disposição dos corpos administrativos das outras
grandes fábricas da mesma época, como a Pinhais, a Ramires, a Lopes,
Coelho Dias a C.a (demolida), a unidade da Júdice Fialho (idem), ou a
Brandão Gomes (idem), o que confirma uma necessidade constante por
parte dos grandes pólos geradores de riqueza de se localizarem
estrategicamente face ao poder e reclamando notoriedade para si mesmos.
É bastante evidente, para quem se predispuser a observar, como este
gaveto junto à praça se traduz num espaço de memória do lugar e de toda a
cidade. Hoje em dia, apesar de nos encontrarmos perante uma ruína, é
ainda notável pela presença que imprime no olhar de quem passa,
encontrando-se bem patente na memória colectiva da população mais
idosa, que a recorda com o saudosismo de um passado próspero e
«glorioso»58. A tudo isto não terá sido alheia toda a atenção que António
Varela colocou na sua resolução:
“(…) No partido da composição, pretendemos conciliar, a valorização da Praça Circular, dar a cada um dos arruamentos, fachadas de harmonia com a importância dos mesmos, quer sob o ponto de vista estético, quer sob o ponto de vista da importância da circulação, sem que por essa razão deixasse
56 V. supra, 4.2. 57 Gesto por si só simbólico, dado o edifício da antiga câmara se encontrar alguns quarteirões acima, fora do eixo visual e somente observado em planta, mas reflexo de uma postura de afirmação típica, à época, dos consórcios privados… 58 “Era a maior e a mais bela de todas”: no que respeita a memória local sobre a A.E.L. e outras antigas fábricas de Matosinhos, foi este o traço mais comum que reunimos em depoimentos por entre a população local, onde se incluem numerosas ex-operárias e «gentes do mar» que recordam a fábrica com saudade e afecto. Sobre o imaginário dos espaços de memória matosinhenses, veja-se ainda as figuras 174-212.
277
de ser cumprido rigorosamente o programa que nos foi fornecido, o racional aproveitamento do terreno, e a distribuição da luz julgada conveniente para cada uma das secções que constituem o todo da fábrica. E assim, projectamos a Secção de Gerência confinando com a Praça Circular numa constituição de um só pavimento, com a cobertura horizontal, e com o desenvolvimento da fachada em seguimento da circunferência concêntrica da Rotunda conseguindo arranjo gracioso e praticamente, um aumento do raio da mesma Rotunda [a praça Passos Manuel] o que dará a esta o aspecto sempre agradável de desafogo.” (Id. ibid.).
Observa-se, pela ênfase concedida, todo o cuidado essencial que o
autor quis dar a esta parte do projecto, no sentido de querer conjugar o
projectado com o existente. Não se sabe, porém, se a escolha desta parte do
terreno para o posicionamento da administração terá sido de António
Varela ou se terá partido da vontade de Agostinho Fernandes.
Parece, no entanto, afigurar-se invariavelmente como o
posicionamento estratégico ideal, tanto pelas razões citadas, como por
confluência de opiniões, se tivermos em conta o bom entendimento entre
António Varela e o seu cliente, (que para além de sócio-gerente, também
fora seu patrono)59.
Por outro lado evidencia-se a preocupação do autor em “dar a cada
um dos arruamentos, fachadas de harmonia com a importância dos
mesmos”. A observação do lugar confirma a memória descritiva: existe de
facto uma hierarquia própria, que serve tanto os aspectos funcionais da
fábrica como a sua relativa correspondência à importância dos eixos. Já
observámos como procedeu em relação à praça da avenida da República;
veja-se em relação ao resto:
“Ao longo da Avenida da República, com eixo longitudinal no sentido Nascente/Poente projectamos a secção de fabrico num vasto Hangar com cobertura sem apoios intermediários, com a fachada francamente aberta à luz do norte, e com um módulo de construção determinado do que resultou uma fachada, de ritmo harmonioso e a que a altura do entablamento (necessário para evitar poeiras no interior) dá certo ar de grandiosidade.” (Id. ibid.).
Para além de se encontrar esta frase no original, retomada pelo artigo da
Arquitectura Portuguesa, é possível constatar desde logo que, a respeito da
hierarquia dos espaços e dos eixos, Varela não deixa margem para dúvidas:
59 Ver supra, 3.2.
278
é o eixo da avenida da República, no seguimento da praça, que orienta e
estabelece a hierarquia dos espaços projectados. Isto demonstra a
continuação da mesma linha de raciocínio do autor, antes manifestada em
relação à praça. Para mais, a procura de uma qualidade lumínica mais
«neutra» aliada à ventilação da secção de fabrico («a luz de norte») parece
revelar a sensibilidade do «arquitecto-funcionalista» mas também do
«pintor-esteta». Continua António Varela:
“Ao longo da rua Dr. Alves da Veiga projectamos o armazém, chamado de cheio num edifício de proporções mais modestas mas a que também um módulo de construção, a relação entre os cheios e as aberturas, a altura total, e a elevação da parte destinada à habitação do encarregado juntamente com a empena do Hangar da secção de Fabrico que lhe serve de fundo dão motivo de sã harmonia e sério aspecto.” (Id. ibid.).
É notória a preocupação do autor em colocar em evidência a
harmonia das partes com o todo: através do equilíbrio dos cheios com os
vazios, do jogo de volumetria entre os diferentes módulos, enfatizando o
aspecto cenográfico entre a “parte destinada à habitação do encarregado” e
a “empena do Hangar da Secção de Fabrico”, jogando como pano de
fundo. Esta empena era realçada em termos cenográficos pela colocação de
um poste de bandeira, o que lhe acentuava a imponência frente à praça e ao
lugar que ocupava.
“(...)Finalmente confinando com a rua João Chagas, lado do trapézio com ângulos diferentes de 90° instalámos os serviços de abastecimento da fábrica, em edifícios de proporções adequadas às suas funções com as respectivas zonas mortas (de serviço) independentes da rua, limitadas por um muro de vedação que define o alinhamento. A racional distribuição destes serviços engendrou uma fachada movimentada em dentes de serra, a que a vedação de cada uma das zonas dá unidade. O efeito sempre desagradável, da solução vulgar com sutamentos, foi evitado com este arranjo (...).” (id., ibid.).
279
Fig. 203 – AEL, acessos da [secção de vazio e pátio: o escalonamento dos módulos facilita a acessibilidade rodoviária [pormenor da planta geral].
Fig. 202 – esquema de acessibilidades de Ernst Neufert [Architect’s data, 1936].
Fig. 204 – AEL, secção de gerência, com vista sobre a secção de fabrico.
Note-se que esta «racional distribuição» da fachada movimentada
em «dentes de serra» é uma solução tipicamente funcionalista e moderna,
apontada por Ernst Neufert, na sua obra Architect’s data60 (1936), no que
se refere à relação da fábrica moderna com os seus acessos. Colaborador
de Gropius na Bauhaus e iminente teórico do funcionalismo moderno,
Neufert comenta que as circulações ocupam muito espaço devido aos raios
mínimos das curvas, referindo que “os terrenos mais convenientes são os
de via oblíqua” (Neufert, 1996, p.280) e “não sendo assim, convém adoptar
a disposição oblíqua para os edifícios” (id. ibid.) [fig.202].
É possível estabelecer uma comparação entre o modelo de Neufert, e
a articulação dos módulos dos armazéns de vazio da fábrica da A.E.L.
[fig.203]. Estas soluções formais decorriam de uma preocupação
eminentemente funcional no processo de concepção do espaço, sendo,
nessa época, inovadoras em Portugal. António Varela finda a introdução à
memória descritiva considerando que face à sua obrigação como autor do
projecto terão os desenhos que o constituem a faculdade de fornecer todas
as indicações necessárias para que fique “dada a ideia exacta da obrigação”
(A.C.M.M., 1938) à qual se propôs:
“(...) ao termos o honroso encargo, de elaborar o projecto da Fábrica que a firma Algarve Exportador Limitada pretende construir na vila de Matosinhos e que foi a de projectarmos uma construção digna da importância da indústria de conservas, do valor comercial da firma Algarve Exportador Limitada, e que contribui para valorizar ainda mais o valioso centro industrial onde vai ser realizada.” (Id., ibid.).
Prossegue a memória descritiva relativamente ao funcionamento da
fábrica, e clarifica-se numa análise paralela à planta geral, que se optou por
numerar, com vista à sua correlação sequencial [fig.205].
60 NEUFERT, Ernst, Arte de projectar em arquitectura, Ed. Gustavo Gili do Brasil, São Paulo, 11ª ed., 1996, p.280 [Architect’s data, segundo a versão original alemã Bauentwurfslehre, 1936].
280
Fig. 205 – AEL: organização do espaço interno da fábrica segundo o projecto original: verifica-‐se em planta a funcionalidade do sistema em cadeia que progride de forma linear, e de modo semelhante ao esquema apresentado na figura 7; (I. SECÇÃO DE VAZIO; II.
SECÇÃO DE FABRICO; III.
SECÇÃO DE CHEIO): a numeração representada corresponde à numeração da memória descritiva de António Varela: (1) gerência a acesso à habitação do encarregado; (2) secção de fabrico; (3) armazém de cheio; (4) armazém de vazio e depósito de sal; (5) entrada de serviço; (6) garagem; (7) depósito de água em elevação; (8) creche, vestiário, refeitórios e balneários; (9) habitação do encarregado; (10) galeria na secção de fabrico. Em termos funcionais, é ainda possível observar a localização do núcleo constituído pela casa das caldeiras/motor/autoclaves, depósito de guano, chaminé, casa do azeite, oficina, garagem, pátio e armazém para instituto [fiscalização]
No que diz respeito à secção administrativa, e segundo a memória
descritiva de Varela, evidencia-se a necessidade de centralizar este espaço
como «charneira», articulando duas «frentes» simultaneamente: o espaço
de fabrico e o espaço exterior.
“A gerência localizada na parte do terreno que confina com a rotunda, tem o acesso pela mesma rotunda, e compõe-se de uma sala para exposições de mercadoria, uma sala de receber, vestiários, instalações sanitárias e escritórios com o respectivo expediente. Do escritório comunica-se directamente com a secção de fabrico e com o armazém de cheio. O acesso à habitação do encarregado, independente de qualquer dependência da fábrica faz-se também pela rotunda, no diedro formado pela parede norte do armazém de cheio e a parede nascente da secção gerência” (Id. ibid.).
Saliente-se que deste espaço do escritório a vista panorâmica sobre a
secção de fabrico é total, o que permitia uma vigilância constante sobre o
processo de fabrico e os trabalhadores [fig.204]. Este modo de conceber o
espaço traduz, simbolicamente, uma certa lógica de hegemonia do
patronato, um pouco à imagem da Casa da Moeda de Segurado, com os
seus «pontos de observação» sobre os operários, mas também à
semelhança de outras indústrias onde a necessidade de vigília era uma
constante.
281
Fig. 206 – AEL, interior da secção de fabrico, vista sobreelevada a partir da açoteia [foto de 1938]. Nota-‐se o sistema de asnas treliçadas em ferro, permitindo o vencimento de um grande vão de 26 metros de envergadura sem apoios intermédios. Á direita: as chaminés dos autoclaves; à esquerda: a fachada para a avenida da República e a retícula janelar de betão armado que integrava o sistema de caxilharia oscilante destinada à ventilação; em cima: a grande clarabóia; ao fundo, as janelas e o acesso da administração.
Fig. 207 – AEL, automatização do sistema em série, aspecto do produto final [foto de 1977].
A secção de fabrico da A.E.L. [fig.206-208-209] constituía-se em si
mesmo como o espaço principal de todo o conjunto, sendo o «coração» da
fábrica. O seu funcionamento obedecia ao sistema de produção em série e
em cadeia, ou seja:
Recebia, a poente, a lata vazia vinda da secção de vazio [fig.205; I.],
e o peixe já salgado; na secção de fabrico [fig.205; II.], onde se procedia
em primeiro lugar ao descabeço e à limpeza do peixe, donde de seguida se
lavava e se cozia, passando-se ao seu enlatamento, nas latas recebidas da
secção de vazio, sendo a operação efectuada nas várias bancadas pelas
operárias; de seguida passava para a secção de azeitamento, onde o
processo mecânico era executado pelas máquinas «azeitadeiras». A lata
era, então, fechada nas «cravadeiras», seguindo para a esterilização
efectuada nos autoclaves, e daí finalmente para a secção de cheio, situada a
nascente [fig.205; III.].
282
Fig. 208 – AEL, interior da secção de fabrico, vista sobreelevada a partir da açoteia [foto de 1977 – uma das últimas imagens da fábrica em laboração].
A organização da secção de fabrico da AEL de Matosinhos foi –
deste período e não só –, aquela em que melhor se aperfeiçoaram as
qualidades do espaço funcional no sector conserveiro, estruturando-se de
forma clara e simples, de modo a optimizar o sistema de fabrico em cadeia
e em série, e resultou do esforço de pesquisa de Varela face a um programa
bastante vasto e complexo. Segundo as suas palavras:
“Esta secção localizada ao longo do lado norte do terreno compôe-se de um vasto Hangar destinado ao arrumo dos apetrechos e maquinaria necessários ao fabrico das conservas de peixe. Todas as dependências complementares desta secção – nichos para os cofres de cozimenta, esterilização, casa do azeite, casa do motor, casa das caldeiras, depósito de guano, e instalações sanitárias para serviço do pessoal, ficam adossadas à parede sul do Hangar, em comunicação directa com este e são servidas por um vasto páteo que corre no sentido nascente poente do terreno e separa todas as secções de fabrico da parte destinada à vida dos operários fora das horas de trabalho – creche, vestiários, refeitórios e balneários (...).”(Id. ibid.).
Aqui se demonstra o cuidado de Varela na «parte humana», no zelo
que teve em separar o espaço de fabrico do espaço de apoio à vida dos
operários fora do horário laboral., sendo que o pátio é o espaço que separa
estes dois momentos (trabalho/descanso),que sempre existiram na vida das
fábricas. Volumétricamente, também é interessante compreender que este
«vazio» é importante como momento de «silêncio» na articulação das
partes da composição, entre a fábrica («labor-interior») e o pátio («lazer-
exterior»).
283
Fig. 210 – AEL, armazém de cheio, com saída para a rua Roberto Ivens. Por cima: a habitação do encarregado [foto de 1999].
Fig. 209 – AEL, interior da secção de fabrico, vista sobreelevada a partir da açoteia [foto de 1999].
O armazém de cheio [fig. 210] dividia-se em dois espaços distintos:
por um lado o armazém propriamente dito, onde se verificava
manualmente o vácuo da lata numa operação manual efectuada pelas
apelidadas «verificadeiras»61, e por outro, um espaço necessário à
fiscalização, que procedia a vistorias periódicas do produto acabado,
servindo de escoamento do produto pela rua Roberto Ivens situada a
nascente:
“Este armazém localizado no lado nascente do terreno é dividido em duas partes, por uma parede que corre transversalmente, destinando-se uma, à mercadoria para o instituto, outra, para a mercadoria da fábrica. O seu acesso com o exterior é feito por dois portões com dimensões que permitem a passagem das camionetas. O armazém para o instituto comunica interiormente com o da fábrica, e este directamente com a secção de fabrico.” (Id. ibid.).
No que respeita ao armazém de vazio62 [fig.211-213-214-218-219], é
importante considerar – para além da sua descrição funcional e interna,
patente na memória descritiva de Varela –, a sua relevância como parte
expressiva do exterior. Em relação a este (e ao depósito de sal, incluído
nesta área), prossegue a memória descritiva:
61 Apelidam-se de «verificadeiras» as operárias com a função de verificar o vácuo no interior das latas, antes do embalamento no armazém de cheio, fazendo-se este processo batendo manualmente umas nas outras, distinguindo deste modo, e pela sonoridade, o correcto fecho da lata. 62 Recorde-se que se designa por «secção de vazio» a área destinada ao fabrico das latas de conserva.
284
Fig. 211 – AEL, “torre” de vigia e entrada da secção de vazio [s.d.]. Ao fundo: as chaminés e o depósito de água. em elevação.
Fig. 213 – AEL, “torre de vigia” e secção de vazio [foto de 1999].
Fig. 214 – António Varela, acesso do armazém de vazio [desenho nº9: corte longitudibal – pormenor ].
Fig. 212 – Álvaro Siza Vieira, desenho,caneta sobre papel, [s.d.]
“Este armazém localizado no ângulo do terreno formado pelos alinhamentos dos lados norte e poente comunica interiormente com a secção de fabrico, e com o exterior por intermédio de um cais próprio separado da rua por um muro de vedação. O depósito de sal, situado no prolongamento do armazém de vazio tem como este para serviço de abastecimento um cais próprio igualmente separado da rua por um muro de vedação, e comunica interiormente com a secção de fabrico”. (Id. ibid.).
António Varela não menciona o acesso vertical à açoteia por uma
escada que acompanha a forma cilíndrica integrada na torre. Mas este topo
poente da fábrica, denominado localmente pela população de «torre» ou «o
torreão da Algarve Exportador», ficou indelevelmente no imaginário
colectivo da cidade [fig.212]. Assumia efectivamente as funções de uma
torre de vigia, visto encontrar-se marcadamente virada para a doca e para o
mar, e permitia observar a movimentação portuária, avistar o regresso das
embarcações pesqueiras e accionar a sirene que convocava ao trabalho.
Do ponto de vista do desenho urbano, este elemento «resolve» o
gaveto entre a avenida da República e a rua Heróis de França, enquanto
que ao nível da fachada remata a horizontalidade da secção de vazio com o
seu movimento dinâmico e vertical.
Embora não seja mencionada por Varela, que se remete ao seu
silêncio para além das justificações funcionais, esta também é uma
situação original e bastante invulgar na arquitectura conserveira,
revestindo-se não apenas de um carácter funcional, mas também como um
exercício metafórico e simbólico: a torre de vigia, vista do exterior, parece
assumir-se no mais puro formalismo modernista, na sugestão do «espírito
da máquina», além de dar a ideia de uma «fortaleza impenetrável»
[fig.211-213], enquanto que interiormente marca os limites do percurso
interno através da verticalidade, com uma «ascensão» em direcção à luz e
ao céu [fig.218-219].
285
Fig. 219 – AEL, escada de acesso à “torre de vigia” na secção de vazio [foto de 1999].
Fig. 217 – Yakov Chernikov, die arkhitekturnye fantasil, Leningrado, 1933.
Fig. 218 – AEL, laje em consola na“torre de vigia” [foto de 1999].
Fig. 215-‐216 – Labayen e Aizpurua, Clubhouse, San Sebastian,Espanha, 1929. Planta e fotografia.
Podendo evidenciar-se como «momento poético», em tom de
«promenade architecturale», a sua forma em «quilha» é uma marca típica
do apelidado «estilo boat» [fig.215-216], que Varela, à imagem de outros
arquitectos modernistas, à época muito acalentava. Aqui a metáfora poderá
submeter-se à analogia directa da proa de um navio, como representação
icónica e arquetípica do léxico do modernismo «heróico». Há que ter em
conta os exemplos de utilização da forma cilíndrica como expressão da
estética dos anos 20-30 em torno do mítica industrial, bastante presente nas
primeiras obras dos precursores modernistas, como no caso de Mendelsohn
ou Le Corbusier, assim como em algumas ilustrações visionárias de
Chernikov [fig.98-217] ou Sant’Elia [fig.99]. Este elemento da composição
de Varela recorda também algumas analogias morfológicas de Le
Corbusier, em Vers une Architecture63.
António Varela tinha conhecimento de algumas obras dos
arquitectos modernistas estrangeiros, contudo sabe-se que a informação
chegada a Portugal sobre as evoluções dos «modernismos», nos anos
Trinta, apesar de mais abundante do que na década anterior, não era
suficiente, para fazer amadurecer um verdadeiro carácter doutrinário, tal
como o considera Nuno Portas64. Seria talvez mais a proximidade da
dinâmica gerada em torno da «primeira geração moderna» e a sua parceria
com Jorge Segurado, a ter influenciado o imaginário de António Varela na
produção de «imagens» da modernidade. Aqui as analogias serão mais
directas, revelando o recurso à forma da «quilha», como no caso do
63 “Les éléments de la nouvelle architecture se peuvent reconnaître dans les produits industriels: bateaux, avions et automobiles.” In LE CORBUSIER, Vers une Architecture, Paris, 1923, veja-se ainda a este respeito BENÉVOLO, Leonardo, História de la arquitectura moderna, 78 edição, 2ª tirada, Editora Gustavo Gili, Barcelona, 1996, pp. 456-464. 64 Ver supra, 3.3.2.
286
Fig. 220 – AEL, entrada de serviço dos soldadores pela rua Heróis de França [actualmente murada] [foto de 1999].
Fig. 221 – AEL, seccção de fabrico: entrada de serviço pelo pátio [foto de 1999]. Note-‐se as pilastras octogonais e os «óculos».
Fig. 222 – AEL, garagem no fundo do pátio [foto de 1999].
mercado de Coimbra, da Mirante ou da Casa de São Francisco, ou ainda
noutros projectos com Segurado.65
No que respeita a entrada de serviço dos operários, a garagem e a
localização do depósito de água em elevação, prossegue Varela:
“Esta entrada foi localizada quasi no extremo sul do lado poente do terreno e no eixo do muro de vedação do páteo, por ela se faz a entrada do pessoal e todo o abastecimento da secção de fabrico e dos seus indispensáveis anexos (…)”(Id. ibid.) [fig.219].
À semelhança da hierarquia de acessos da Casa da Moeda, aqui
também estes têm uma clara separação, opondo a entrada da administração
à entrada dos operários, e estes maioritariamente, por uma questão de
tradição neste tipo de indústria, divididos por sexos segundo as suas
funções: neste caso a entrada dos homens fazia-se pelo portão da secção de
vazio [fig.220] (para o trabalho de soldadura da folha de flandres), e a das
mulheres pelo pátio e daí para o interior da secção de fabrico e demais
serviços [fig.221].
No caso da garagem [fig.222], localizada ao fundo do pátio, foi
estabelecida “em alpendre encostado à parede poente do armazém de
cheio, e ocupa transversalmente toda a sua largura” (Id. ibid.) [fig.223-
224]. Convém assinalar que este espaço foi mais tarde dividido em dois,
sendo sido em parte fechado e utilizado como nova creche, quando a
primeira foi demolida, com vista à comunicação da fábrica com os
armazéns de estiva da segunda fase (1941). Quanto ao depósito de água em
altura, foi localizado “no ângulo formado pelos lados do terreno poente a
sul, neste ângulo projectou-se um alpendre destinado a possíveis serviços
futuros que não possam ser feitos a céu aberto.”66 (Id. ibid.) [fig.225].
65 V. supra, 4.3.3. e 5.2. 66 Embora António Varela tenha assinalado o espaço onde este elemento se iria localizar, não se sabe se terá sido implantado no seu local original, ou se foi construído directamente no espaço que ainda ocupa actualmente (a uns escassos metros a sul, já nos terrenos da ampliação), ocupando lateralmente um canto gerado pelo encosto do corpo do armazém de 1941, do lado da rua Heróis de França.
287
Fig. 225 – António Varela, módulo de apoio destinado a creche, vestiário, refeitórios e balneários; ao lado, o depósito de água [desenho perspectivado, 1938, pormenor].
Fig. 223 – António Varela, creche [planta geral, 1938, pormenor].
Fig. 224 – AEL, pátio com acesso pela rua Heróis de França [actualmente murado]e entrada de serviço da secção de fabrico [foto de 1999].
No que respeita a creche, os vestiários, os refeitórios e os balneários
[fig.222-223], refere António Varela:
“Estas instalações situadas no lado sul do terreno, compõem-se: A creche; de uma vasta sala, com a entrada recatada e separada do pátio por um muro de vedação, baixo e em alegrete, os vestiários refeitórios; de dois grupos, um para homens, outro para mulheres, análogos mas de dimensões diferentes, proporcionada ao número de operários de cada sexo. As construções projectadas para estes serviços são de aspecto simples, mas alegre, como convém, e o seu arranjo interior será feito de molde a permitir a sua utilização quotidiana, com ordem e perfeito estado de asseio. A iluminação e ventilação são asseguradas pelas grandes superfícies envidraçadas e pelo vasto pátio que as separa das outras secções da fábrica” (Id. ibid.).
Registamos, segundo o testemunho de antigos operários, que este
espaço do pátio com os seus serviços de apoio (creche, vestiários,
refeitórios e balneários) era um local que servia exemplarmente as suas
funções, onde foi possível, mais tarde, com a ampliação para um piso
superior, instalar uma enfermaria, permitindo o apoio para cuidados e
assistência médica privada [fig.225].
Referimos anteriormente que o pátio é o espaço que separa estes dois
momentos que sempre existiram nas fábricas: o tempo de trabalho e o
tempo de descanso: podemos observar que este pátio possui uma escala
mais «humana», o que parece contribuir para o seu carácter mais privado,
por oposição à frente da Avenida da República, explicitamente
monumental e em «diálogo» permanente com o exterior.
288
Fig. 226 – António Varela, AEL, habitação do encarregado e aposentos da administração, com terraço por cima da secção de gerência [desenho perspectivado, 1938, pormenor].
Fig. 227 – António Varela, AEL, habitação do encarregado e aposentos da administração, com terraço por cima da secção de gerência: a sala de refeições estabelece a comunicação entre as duas áreas [planta de cobertura, desenho nº3,1938, pormenor].
Por comparação, convém referir que não era possível atingir esta
qualidade do «privado» nos grandes pátios das conserveiras mais antigas,
esses «enormes planos de batalha»67 onde a necessidade de circulação e de
todo o funcionamento da fábrica era prioritário. Neste caso o espaço não é
desvirtuado por funções de trabalho, parecendo antes funcionar como
“contraponto” à secção de fabrico.
No que diz respeito à habitação do encarregado68 [fig.226-227], esta
situava-se sobre o lado norte do armazém de cheio, e compunha-se, na
realidade, de duas partes distintas: uma destinada ao encarregado da
fábrica e outra privativa da administração:
“[…] A primeira é formada pelo hall de saída da escada, sala de jantar, cozinha, três quartos e instalações sanitárias; a segunda, por uma pequena sala de refeições, um amplo quarto, e respectiva instalação sanitária. Esta parte da habitação tem comunicação com o terraço da cobertura da secção gerência”. (Id. ibid.).
Por fim, António Varela ainda menciona uma galeria «em elevação»
na secção de fabrico [fig.228]: “Esta galeria prevista no projecto destina-se
a uma possível instalação do vazio, que de futuro se poderá tornar uma
necessidade, não fazendo portanto parte da construção inicial”69 (Id. ibid.).
Convém referir que esta galeria nunca chegou a ser construída, como se
pode verificar pela observação das paredes da ruína, que não aparentam
nenhum tipo de fixação70.
67 V. nota 28 do presente capítulo. 68 Trata-se, de facto, do gerente da fábrica. 69 Este elemento é visível no alçado norte da secção de fabrico, assim como no desenho n°7 do processo de licenciamento. 70 O mesmo também nos foi confirmado por antigos funcionários da fábrica ao afirmarem desconhecer tal situação.
289
Fig. 228 – António Varela, a galeria periférica por cima da secção de fabrico [não executado] [corte transversal, desenho nº7, 1938, pormenor ].
Pela observação do desenho n°7 [fig.228], assim como do desenho
n°8, relativos, respectivamente, ao corte transversal e ao corte longitudinal
da secção de fabrico, verifica-se que esta galeria tenha sido projectada para
poder percorrer toda a secção de fabrico pela periferia e em altura, por duas
frentes distintas: por um lado a sul, pela parede que faz a ligação com as
instalações de apoio à secção de fabrico (casa do azeite, casa das
máquinas, etc,) e por outro, a norte, correndo toda a grande fachada
envidraçada junto à avenida da República. No entanto, poderá existir uma
razão para a galeria nunca ter sido construída:
Tendo em conta a descrição de António Varela, esta galeria “não
fazendo parte da construção inicial”, estaria destinada a uma possível
ampliação da secção de vazio, ou seja, da parte destinada ao fabrico de
latas de conserva. Foi possível apurar, no entanto, segundo alguns ex-
funcionários da fábrica, que toda a secção de vazio foi transferida, por
volta de finais dos Anos Sessenta, para o armazém nascente, devido às
ampliações da fábrica em 1941. Neste sentido, e considerando que estes
armazéns (da segunda fase) foram construídos imediatamente três anos
após a inauguração da fábrica (a primeira fase), é possível concluir que
nunca terá sido necessária a ampliação da secção de vazio para uma galeria
num segundo andar, por cima da secção de fabrico, tal como Varela
previra.
290
Fig. 230 – A fábrica de conservas Rainha do Sado, 1941,confinante com os armazéns da AEL [foto de 1999].
Fig. 229 – António Varela, AEL, armazéns de ampliação, 1941.
6.3.4.2. Segunda fase: projecto dos armazéns de ampliação
da fábrica71
Este edifício destinava-se ao armazenamento e estiva de produto
para exportação, devendo-se a sua construção a um aumento exponencial
da produção da empresa, face à encomenda massiva no contexto bélico da
Segunda Guerra Mundial. Não foi possível apurar se o terreno
correspondente à edificação dos armazéns já pertencia à firma Algarve
Exportador Limitada ou se foi comprado depois da aquisição do terreno
inicial no qual a firma construiu a unidade fabril, três anos antes, pois a
nada disto se refere o processo camarário. No entanto, segundo o que se
pode concluir pelas datas de entrada dos relativos processos na autarquia,
consta o registo de uma aprovação relativa à construção da fábrica de
conservas de peixe da firma Rainha do Sado [fig.230], datada de Janeiro de
1941, situada mais a sul, no extremo triangular do quarteirão. Deste modo,
conclui-se que o espaço «sobrante» entre o lote da Rainha do Sado e o lote
da AEL foi aquele onde se edificou o armazém de ampliação desta mesma,
por António Varela.
Os usos destes armazéns variaram com o tempo. António Varela não
especifica claramente as diferentes funções dos seus três espaços
diferentes, a não ser o central, destinado à estiva:
71 Autoria de António Varela; data de aprovação camarária: 29 de Maio de 1941.
291
Fig. 231 – AEL, armazéns de ampliação da AEL, 1941, alçado sul [foto de 1999].
“O terreno tem a forma trapezoidal (trapézio rectângulo) e os seus eixos medem: o transversal 15.60 m. e o longitudinal 61.00 m., o lado menor das ângulos de 90° confina com a rua Dr. Alves da Veiga e o lado menor dos ângulos diferentes de 90° com a rua João Chagas, os lados paralelos ao eixo longitudinal são definidos por construções já existentes [...]”.(Id. ibid.).
Estas «construções já existentes» são, a norte, a própria AEL, de
1938-39, do próprio Varela, e a sul, a Rainha do Sado, edificada no
princípio de 1941. Por outro lado, António Varela também sublinha a
necessidade de continuação do desenho de fachadas, em harmonia com o
seu projecto anterior:
“De harmonia com o programas estabelecido a para conseguirmos uma ligação correcta com o existente, situamos as construções como se segue: a) um armazém, com acesso pela rua Dr. Alves da Veiga e cuja fachada abrange todo o alinhamento, com a profundidade de 21.00 m.b) uma construção destinada à estiva com as dimensões de 11.00 x21.00 m. Esta construção é servida por um páteo com a largura de 4.00 m. e com o comprimento de 11.00 m. c) Um armazém com as dimensões de 21.00 x 15.60 m. cuja fachada fica recuada da rua João Chagas, entrepondo-se-lhes um páteo de forma trapezoidal que ficará em comunicação directa com o da fábrica existente. A vedação que confina com a rua João Chagas segue no enfiamento da existente e é de traçado igual.” (A.C.M.M., 1941) 72.
Veremos na última parte deste capítulo73 a importância da métrica
destes módulos no traçado geral de António Varela e de que forma estes se
articulam em continuidade com o primeiro traçado geral do projecto,
datado de 1938. Por enquanto, e seguindo a observação dos vários
momentos construtivos da A.E.L., referimos ainda a última intervenção na
fábrica.
6.3.4.3. Terceira fase: projecto de ampliação do edifício de
apoio ao pessoal da fábrica74
Pese embora o facto de esta fase não ser da autoria de António
Varela, consideramos de importância a sua referência no sentido de se
compreender a quebra operada ao nível da métrica e da composição, como
consequência do aumento da volumetria [fig.232], em altura, que se operou
no módulo original de António Varela, e destinado ao apoio ao pessoal da
72 Algarve Exportador Limitada – armazéns a construir em Matozinhos, memória descritiva de António Varela, processo do Arquivo da Câmara Municipal de Matosinhos (A.C.M.M.), Matosinhos, 1941. 73 V. infra, 6.4.2.4.4. 74 Autoria de Agostinho Ferreira de Almeida; data de aprovação camarária: 29 de Junho de 1946.
292
Fig. 232 – AEL, ampliação do edifício de apoio, 1946 [foto de 1999].
fábrica. Da memória descritiva do arquitecto Agostinho Ferreira de
Almeida consta o seguinte: “a parte a edificar destina-se à creche,
vestiário, consultório, sala de espera e W. C., para o pessoal da fábrica. A
construção projectada fica instalada no primeiro andar (2° pavimento) de
parte do edifício existente, sendo estes ligados por uma escada de acesso.”
(A.C.M.M., 1946)75
Esta terceira e derradeira intervenção destinou-se a uma nova
localização da creche, do vestiário, assim como da criação de um
consultório médico com sala de espera e instalações sanitárias próprias.
Compreende-se a necessidade deste aumento devido à produção massiva
da fábrica durante a década de Quarenta. O conjunto de serviços foi
organizado num módulo acrescentado por cima do edifício de apoio
original projectado por António Varela, (a primeira fase de 1938),
constituindo-se em altura um edifício que anteriormente era apenas térreo.
O piso superior liga-se ao inferior por uma escada de acesso de dois lanços
(actualmente em estado de ruína), que foi criada a partir da subdivisão do
espaço de refeitório do piso térreo. Para além de se elevar por cima do
existente, este novo módulo confina na sua parede a sul com a parede dos
armazéns de ampliação de Varela (a segunda fase projectual, de 1941).
Refira-se que este apoio médico, que veio completar os serviços de
apoio ao pessoal da fábrica, foi bastante indicado por antigos operários da
fábrica como sendo dos mais eficientes de todas as conserveiras da mesma
época. Esta forma de assistência social privada terá sido, porventura, o
derradeiro e decisivo passo para a fábrica se tornar uma referência do
meio, o que se pôde concluir tanto pelos relatos da imprensa especializada
da época, como pelos testemunhos de vários ex-operários e familiares de
Agostinho Fernandes.
Já no que respeita ao aspecto formal desta última fase, Agostinho
Ferreira de Almeida não seguiu a métrica de Varela, tendo-lhe imprimido
75 Algarve Exportador Limitada – projecto de ampliação do edifício de apoio ao pessoal da fábrica, memória descritiva de Agostinho Ferreira de Almeida, processo do Arquivo da Câmara Municipal de Matosinhos (A.C.M.M.), Matosinhos, 1946.
293
Fig. 233 – ARS arquitectos, modelo teórico de uma fábrica de conservas, in Conservas de peixe, 1946.
uma caracterização própria, tendo resultado desta intervenção uma
descontinuidade que, embora pontual face ao vasto projecto de Varela, é
suficiente para desarmonizar o conjunto espacial do pátio: não só na
métrica dos vãos, mas também desequilibrando a articulação volumétrica
entre este edifício com os módulos da secção de fabrico e dos armazéns de
1941.
6.3.5. O modelo teórico do atelier ARS arquitectos publicado
em 194676
No crescente esforço de racionalização de meios através da busca de
uma arquitectura que se queria cada vez mais funcional e do qual a fábrica
de Varela surge como uma resposta pioneira, seria contudo interessante
referir um artigo intitulado Uma Fábrica de Conservas Moderna, do atelier
ARS Arquitectos, publicado na revista Conservas de Peixe em 1946, como
proposta de um modelo teórico de fábrica de conservas [fig.233].
“Até ainda bem pouco tempo ninguém se preocupava com o desenvolvimento racional das instalações para uma Fábrica de Conservas. Erguiam-se grandes barracões mais ou menos amplos semeados de pilares, instalavam-se lá dentro os maquinismos irremediavelmente condicionados à
76 Referimos «publicado» no que diz respeito, propriamente, ao artigo. No que respeita à elaboração do modelo teórico pelo atelier ARS (constituído por Fortunato Cabral, Morais Soares e Fernando Cunha Leão, autores, entre outras obras modernas, do Mercado do Bom Sucesso, Porto, 1949-1952), não nos foi possível apurar a data exacta de sua concepção: parece, e apenas isso, que terá sido realmente elaborado já no período do pós-guerra e com o propósito expresso de publicação na imprensa, pelo que se depreende do tom geral do artigo.
294
rigidez dos apoios intermédios e à disciplina da construção, desprezando em absoluto as exigências do fabrico. Grande parte das actuais Fábricas de Conservas ainda é caracterizada por uma certa desordem perturbadora na secessão natural das diferentes fases de produção. A disposição desastrada dos edifícios e dos acessos interrompendo a continuidade das operações, só serve de pretexto a inconsoláveis passeios do pessoal e a longos percursos sem vigilância na circulação das matérias primas e dos produtos, diminuindo o rendimento dos maquinismos e aumentando a fadiga dos operários. Uma regra se pode opor a esta desordem coordenando todas as coisas no tempo e no espaço – O FUNCIONAMENTO EM CADEIA – como verdadeiro sistema imposto ao fabrico para manter a continuidade e contiguidade das operações e solidarizar todas as suas fases. A sequência das operações ordenada segundo uma linha continua, verdadeira via de transporte em sentido único, desde a entrada das matérias primas passando pelos locais de preparação, onde se ramifica de modo a servir cada máquina, até ao armazém dos produtos terminados e de expedição, reproduz as fases de um circuito sanguíneo de um corpo organizado. Ficamos assim longe da confusão pelo entrecruzamento e sobreposição da circulação dos produtos, dos operários e dos quadros. A juntar a esta disposição racional há que ter em consideração o progresso realizado no equipamento industrial nos últimos anos, no sentido de se obter maior produção por unidade de tempo sem prejuízo da qualidade do produto” (Conservas, 1946)77.
Citam os autores, seguidamente, toda uma série de equipamento
industrial inovador, “maquinismos com que já estão equipadas algumas
fábricas modernas” (id., ibid.), assim como a questão da higiene das
instalações “hoje objecto de louvável preocupação dos modernos
industriais” (id. ibid.): Seria importante notar que em 1946 já era possível
confirmar a existência, para além da fábrica da AEL de Matosinhos (1939),
de outras unidades fabris com essas mesmas características modernas e que
considerámos como a segunda geração de fábricas conserveiras, iniciada
com a fábrica da A.E.L., e das quais ainda se podem destacar a fábrica de
Benito Garcia (1943), na Afurada, também da autoria de António Varela, e
a fábrica de Januário Godinho, em Matosinhos, já no pós-guerra, como
estabelecimento e plena afirmação de um modelo que terá sido ainda
pioneiro com o exemplo da fábrica da AEL, no fim da década de Trinta.
77 In Uma fábrica de conservas moderna, artigo do atelier ARS Arquitectos, Conservas de peixe, 1946.
295
De facto, tornam-se patentes no discurso de 1946 do ARS
Arquitectos, certos princípios de ordem característicos do Movimento
Moderno, e que já tinham sido anteriormente postos em prática por
António Varela no projecto da fábrica da AEL, sete anos antes:
“Trata-se de cerrar o trabalho das condições normais da natureza, de Sol, espaço e limpeza, como meio natural que preside à longa e minuciosa formação do ser humano. Só assim se conseguem transformar radicalmente as condições de trabalho, dando conforto e uma certa alegria a esta parte mais longa e mais dura da vida. A todos estes factores, ideias e regras tem de se atender na elaboração dum projecto para uma fábrica de conservas moderna para rasgar novos horizontes à produção desprezando os usos rotineiros. De acordo com estes princípios se elaborou o desenho que a gravura representa, que como se verifica, não tem a pretensão de ser um projecto, mas sim um esquema estrictamente funcional da parte mais importante de uma Moderna Fábrica de Conservas. À roda desta zona gravitam todas as secções subsidiárias que não vale a pena enumerar por serem do conhecimento geral. Adoptá-lo é uma questão de ética, uma decisão do espírito, a aceitação de um ponto de vista. Os meios estão todos ao alcance e à disposição de quem queira elaborar o plano” (Id., ibid.).
Em resumo, e num quadro histórico alargado, relembramos que no
que respeita a evolução do modernismo na arquitectura portuguesa, foi
indubitavelmente a década de Trinta o tempo do surgimento das novas
oportunidades. O Estado Novo começou lentamente a tomar forma e a sua
edificação, inseparável do pensamento político salazarista, realizou-se com
a criação da União Nacional, em 1932, com a Constituição, o Estatuto do
Trabalho Nacional e os Sindicatos Nacionais, em 1933, o que permitiu,
nesta fase primordial, o relançar da economia e da indústria78. Nesta
década de Trinta, onde os arquitectos da nova geração moderna ainda
«acreditou» numa possível reforma geral da arquitectura feita através da
aplicação de princípios modernos, pela relativa liberdade geral com que
alguns arquitectos ainda exerceram a sua arte, antes do retrocesso geral da
década de Quarenta79. Esta arquitectura passou, mais tarde, nessa década,
78 Cf. PORTELA, Artur, Salazarismo e Artes Plásticas, Biblioteca Breve/Volume 68, ed. Instituto da Cultura e da Língua Portuguesa, Divisão de Publicações, Lisboa, 1982, pp.76-77 [1ªed. 1987]. 79 Idem, ibidem. Veja-se ainda a este respeito FRANÇA, J.-A., Terceira Parte – os Anos 40 e 50, in A Arte em Portugal no século XX, Bertrand Editora, 3ª edição, Lisboa, 1991 [1ªed. 1974].
296
para uma «arquitectura de resistência», devido à inevitável e consequente
cristalização do regime80.
Foi no contexto da década anterior, no princípio de um novo impulso
económico mas ainda sem uma nova ideologia de regime completamente
consolidada, que a Algarve Exportador Limitada se expandiu
maioritariamente e embora possuindo, desde a sua fundação em 1920, uma
unidade em Lagos, seguida da de Lisboa e, mais tarde, Setúbal, Peniche e
Nazaré, procedeu à construção de raiz de uma sexta fábrica, sedeada em
Matosinhos, passando a assegurar estrategicamente o território nacional de
norte a sul. O seu projecto foi encomendado a António Varela, e demarca-
se das anteriores por ser das primeiras em Portugal onde surge um cuidado
entre a organização de um espaço eminentemente funcional, conjugada a
uma imagem empresarial moderna no quadro de procura de uma «estética
industrial».
Isto significa que a fábrica de Matosinhos, para além de ter sido,
desde cedo, reconhecida pela utilização dos novos processos de fabrico,
assim como pela qualidade de seus produtos, assume-se como um exemplo
para a época, pelo refinamento e o carácter inovador de uma linguagem
moderna, pouco vista no ramo, tendo reforçado a imagem da própria
empresa no panorama nacional e internacional. É o que transparece, no
cuidado do traçado das fachadas, de sua iconografia e de sua publicidade,
sendo a imagem e a essência como um todo indivisível, cristalizado
iconograficamente no seu logotipo.
José Manuel Fernandes, no Inventário do Docomomo Ibérico
Arquitectura e Movimento Moderno, comentando esse tempo da primeira
geração do modernismo português, refere:
“(…) um tempo inicial, entre 1920 e 1930, necessariamente experimental, [de quando nos] ficam preciosidades, obras com linguagens díspares, espaços e formas radical ou moderadamente modernizantes. Da década turbulenta dos anos 40, são testemunho projectos que tentam denodadamente «romper» a pesada cortina política, nacionalista e autoritária que impregnava
80 Idem, ibidem.
297
os dois estados ibéricos – é o começo e a glória de uma arquitectura de resistência” (DO.CO.MO.MO., p.6)81.
Neste sentido, a fábrica de Matosinhos parece ilustrar o
anteriormente citado, podendo-se situá-la entre estes dois tempos, sendo,
em essência, um exemplo de um período de transição. E se é verdade que
esta unidade integra uma raiz modernista e funcionalista – tendo sido, a seu
tempo e no meio em que se implementou, um projecto radicalmente
inovador –, mais do que isso, parece também revelar – mesmo através das
suas ruínas, – o valor e a complexidade de um «estilo português de
arquitectura modernista». Deste modo, reveste-se também de referências a
um sistema cultural próprio e distingue-se da produção exclusivamente
funcionalista do mesmo período.
Procurou-se assim, na primeira parte deste capítulo, observar a
fábrica de Matosinhos de Varela no que respeita essencialmente o seu
«uso». Foi necessário estabelecer um enquadramento prévio da história das
tipologias da indústria conserveira para se conseguir compreender o caso
particular desta fábrica, e que traduz invariavelmente o pensamento em
acção do seu autor.
No entanto, as suas qualidades como obra arquitectónica parecem
não se restringir unicamente ao seu «uso», à sua funcionalidade e à sua
leitura histórica, mas também na sua capacidade de «representação», numa
metodologia de composição que revela uma idealização própria.
Foi essa idealização que se procurou compreender na parte seguinte.
81 FERNANDES, José Manuel, Apresentação do Docomomo Ibérico, in Arquitectura do Movimento Moderno – 1925-1965 – Inventário do Docomomo Ibérico, ed. Docomomo Ibérico / Fundação Mies Van der Rohe / Associação dos Arquitectos Portugueses, 1998, p.6.
298
Fig. 234 – AEL, pórtco de entrada da administração [foto de 1941, familiar de Agostinho Fernandes].
299
Fig.235 – AEL, entrada da administração [foto de 1946, familiar de Agostinho Fernandes].
6.4. COMPOSIÇÃO, TRAÇADO E SIMBÓLICA: UMA INTERPRETAÇÃO
6.4.1. Introdução
“Pour l’admirer, il faut lever les yeux.”82
Maurice Guinguand
O estudo da representação é o estudo do lugar ou dos elementos
arquitectónicos enquanto portadores de uma função simbólica implícita.
Foi a partir deste prisma que estabelecemos o método de observação do
desenho da fábrica, que parecem reveladoras das intenções e dos princípios
de composição do autor.
Em primeiro lugar, o estudo dos traçados reguladores da fábrica de
António Varela pode ser objecto de pesquisa do cânone, enquanto estudo
da métrica, das razões e das proporções. Por outro lado, o estudo do seu
significado procura estabelecer analogias com outros exemplos. Este
estudo deverá ser objecto de pesquisa do ícone, enquanto sistema de
observação da similaridade (similis) por transferência de arquétipos ou de
formas arquetípicas.
O estudo do cânone estabelece comparações de dados concretos
entre si, tendo-se mantido o seu estudo na estrita observação da fábrica,
com base no desenhos que constam do projecto de António Varela, sempre
que possível, assim como por outro lado, na observação da construção no
seu espaço físico, quando a esta foi necessário recorrer, por comparação
com o projecto original, como por necessidade práctica, por ausência de
documentação que não consta do mesmo.
O estudo do ícone é metafórico, enquanto observação dos mesmos
fenómenos arquetípicos, permitindo estabelecer analogias com outros
exemplos que, embora nem sempre possam corresponder ao mesmo 82 GUINGAND, Maurice, L’or des Templiers, Robert Laffont, Paris, 1973, p.215.
300
Fig.236 – AEL, pórtco de entrada da administração [actualmente murada] [foto de 1999).
período da fábrica de Varela, parecem ser demonstrativos dos mesmos
processos mentais face a diferentes situações projectuais.
Para poder ser compreendida a presente composição, houve que ter
em consideração estes dois critérios, que se revelaram complementares,
tanto na sua forma como no seu conteúdo, através de certos princípios
mentais de consciência operativa.
6.4.2. Estudo dos princípios de composição da fábrica da
A.E.L.
6.4.2.1. Observação e considerações gerais
No decorrer da observação geral do edifício foi possível encontrar
algumas analogias entre o traçado que preside à elaboração do sistema
construtivo em planta e o traçado do vão de entrada da administração,
junto à praça Passos Manuel [fig.234-235-236].
Entrada «nobre» da fábrica, por excelência, constitui-se como um
pórtico simbólico e marca, em termos de iconografia explícita, o estatuto
da empresa.
Com base no estudo que se segue, será possível considerar que terá
existido uma intenção consciente por parte de António Varela ao relacionar
esta parte com o todo, através de um sistema de analogias comensuráveis.
Não foi possível encontrar os desenhos do autor no que respeita esta
pormenorização, pelo que recorremos à observação directa no edificado83,
tendo sido efectuado um levantamento no local em 1999 [fig.239-240-
241]. No entanto, dois factores levam a encarar com alguma prudência as
considerações que se seguem:
83 Consta do processo camarário da fábrica um alçado do conjunto junto à praça Passos Manuel. Este alçado contém uma porta apenas, sem bandeira, mas tudo leva a crer que o desenho do conjunto do pórtico, com a respectiva bandeira, fez parte dos desenhos de pormenorização que desapareceram juntamente com outros de António Varela. Contudo, toda a sua composição aponta para uma assinatura tipicamente «vareliana», por comparação com outros projectos do autor.
301
a) O facto do conjunto do pórtico supostamente simétrico,
como se pode observar no desenho do alçado de pormenor da entrada
da administração apresentar alguns desfasamentos nas suas cotas
máximas.
b) O facto da moldagem em cimento da caixilharia que forma o
seu desenho apresentar algumas variações de amplitude, da ordem
máxima de 3 cm., entre alguns módulos, que no entanto aparentam ser
iguais.
Existem várias razões para estas imperfeições:
a) primeira hipótese:
Como bem se sabe, uma obra nunca é perfeita e somente no papel os
traçados sugerem uma perfeição abstracta que faz parte da essência do
projecto. O rigor da construção já não depende unicamente do projectista
mas de inúmeras variantes, em grande parte da responsabilidade daquele
que constrói e das condições em que constrói.
Somos levados a pensar que embora a execução aparente bastante
rigor no cuidado da aplicação dos materiais, já quanto à métrica ela
apresenta, embora muito pontualmente, alguns ligeiros assentamentos,
colocando-se a hipótese de estes serem originários da construção: neste
caso, põe-se ainda a pergunta de estes terem sido propositados ou
meramente casuais.
b) Segunda hipótese:
Tendo em conta a ruína a que dois incêndios o submeteram e devido
ao abandono a que foi votado84, o edificado revela, apesar de tudo, um
relativo bom estado, em parte devido à sua concepção com materiais de
primeira qualidade. No entanto, foi cedendo na sua estrutura,
considerando-se natural que sessenta anos decorridos após a sua
construção, apresente alguns assentamentos.
84 Veja-se a este respeito a nota 7 do presente capítulo.
302
Não tendo sido efectuado um estudo do estado geral das condições
da construção, será difícil determinar exactamente o grau de
descompensações que o conjunto sofreu ao longo dos tempos.
Contudo, já no que diz respeito ao caso específico deste pórtico, a
sua observação à vista desarmada permite concluir que as
descompensações que o vão no seu total terá sofrido são mínimas em
relação à estrutura, mas suficientes para poder induzir uma margem de erro
para o estudo da métrica de alguns pormenores que julgámos importantes.
Em conclusão:
Ou estas variações decorrem de pequenas imperfeições na execução,
ou decorrem do progressivo assentamento geral do edifício, ou ainda – o
que tudo leva a crer ter sido o mais provável –, do conjunto destas duas
hipóteses.
No entanto, a hipótese de descompensação será talvez a mais
importante, mas como já foi dito, sem um estudo rigoroso in situ será
impossível confirmá-lo plenamente.
Já no que diz respeito em particular o desenho da bandeira do
pórtico, todo em cimento, será possível considerar, por simples observação
à vista desarmada, que o molde no qual foi executado impossibilitaria
melhor acabamento.
Deste modo, consideraram-se negligenciáveis as imperfeições
observadas tanto na bandeira em particular, assim como no conjunto do
pórtico no geral, sendo possível estabelecer, sem condicionantes externas,
algumas relações entre a representação em desenho deste espaço em
particular e o desenho de conjunto de todo o edificado.
As medições efectuadas no terreno permitiram localizar esses erros
por forma a não serem tidos em consideração no que respeita ao estudo das
relações entre o pórtico e o traçado total da planta da fábrica, por