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    TRADUO E REVELAO: A RECEPODOS NOMES DIVINOS NA TRADUO

    DA ANTGONA DE SFOCLES POR HLDERLIN*

    Gabriel Lago de Sousa Barroso**Universidade Federal de Minas Gerais

    ABSTRACT: This paper aims to analyze the German poet FriedrichHlderlins reception of the Greek tragedy, by examining histranslations of two of Sophocles tragedies Oedipus the King and Antigone , which became a model for translation theory later on the20th century. It intends to demonstrate Hlderlins peculiar view of Greece, acknowledged in the background of his work, which is

    reflected on the religious patterns of his translation, as he emphasizesthe divine elements of Sophocles plays. This is more explicit in histransgressions of the original text, especially where he translates theGreek gods names.KEYWORDS: reception of classical Greece; Greek tragedy; Germanpoetry; translation theory; Friedrich Hlderlin.

    ste ensaio tem como objetivo analisar a recepo da tragdia gregana obra do poeta alemo Friedrich Hlderlin, principalmente a partirde uma anlise de sua traduo de duas das tragdias de Sfocles dipo Rei e Antgona e de alguns de seus escritos tericos, que lidamespecificamente com o problema da tragdia grega. Minha inteno observar omodo como se d essa recepo para, em seguida, discutir o

    * Uma verso prvia do presente trabalho foi apresentada no XVIII CongressoNacional de Estudos Clssicos da Sociedade Brasileira de Estudos Clssico(SBEC), realizado entre os dias 17 e 21 de outubro de 2011 na Universidade Federado Rio de Janeiro (UFRJ).** [email protected]

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    significado da Grcia Clssica para a Modernidade na obra de Hlderlin,bem como o sentido religioso da tragdia, que permite desvelar oslimites do humano em seu contato com o divino. Analisarei, com essafinalidade, algumas passagens da traduo da Antgona, em especial nosatos III e IV, que correspondem aos versos 781 a 805 e 944 a 987 dooriginal grego, na edio Oxford de Pearson.1

    Hlderlin nasce em 1770 na regio de Baden-Wrttemberg, nosul da Alemanha, e cursa o seminrio na cidade de Tbingen. L torna-se amigo de Schelling e Hegel, que se tornariam dois dos grandes nomesda filosofia alem no sculo XIX. Porteriormente, em 1794, Hlderlinsegue para Jena, onde frequenta as aulas do filsofo Fichte e entra emcontato em Weimar com Goethe e Schiller. O prprio Hlderlinprocura, nesse perodo, prosseguir na carreira acadmica, buscando,sem sucesso, um posto na faculdade de filosofia de Jena. Ele segueento sua vida como poeta e filsofo at 1806, quando mergulha emum estado de profunda perturbao mental, permanecendo em umaclnica na cidade de Tbingen por mais de trinta anos, at a sua morteem 1843. As tradues destas duas tragdias de Sfocles dipo Rei e Antgona foram, ao lado do romance Hyperion, as nicas obras publicadasem vida por Hlderlin, que permaneceu praticamente desconhecido

    na Europa at a reedio/ reviso de sua obra por Norbert vonHellingrath, iniciada somente em 1913. As tradues so publicadas em 1804, portanto pouco antes de

    sua internao, sob o ttulo de As tragdias de Sfocles ( Die Trauerspieledes Sophokles),2 e a recepo das piores possveis. A verso possuadiversos erros e buscava solues inexplicveis na traduo do gregopara o alemo. famosa a anedota em que Johann Heinrich Voss oclebre tradutor alemo daOdisseia e da Ilada expe a verso a Goethee Schiller, e Schiller d largas risadas ao ler a obra de Hlderlin. TambmHegel e Schelling, os amigos do poeta, consideram sua verso de Sfoclesa prova do avano da patologia que no demoraria a afet-lo.

    Entretanto, com a reedio de von Hellingrath, a desdita dastradues de Hlderlin toma outro rumo. Acompanhando o surto depopularidade de sua obra potica, as tradues passam a ser cada vezmais lidas e, inclusive, encenadas. Assim que, em 1923, Walter

    1

    Cf. Sophoclis. Fabulae. Recognouit breuique adnotatione critica instruxit A. C.Pearson. Oxonii: E. Typographeo Clarendoniano, 1961.2 Cf. Hlderlin, F.Smtliche Werke. Band 5: bersetzungen. Org. Friedrich Beissner.Stuttgart: W. Kohlhammer Verlag, 1954.

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    Benjamin, em seu famoso ensaio intitulado A tarefa do tradutor , erige atraduo de Hlderlin posio de arqutipos de sua forma (Urbilder ihrer Form).3 Bertolt Brecht prepara em 1948 uma montagem da Antgonatraduzida por Hlderlin adaptada s necessidade cnicas. Carl Orff compe em 1949 uma adaptao musical da tragdia de Sfocles a partida verso do poeta alemo. O prprio Hellingrath, em um belo elogios tradues, resume bem o significado que o projeto de Hlderlinteve para a crtica do sculo XX. A traduo demonstra, segundo ele:

    [U]ma estranha mistura de familiaridade com a lngua grega ecompreenso viva de sua beleza e de seu carter, com o desconhecimentode suas regras mais simples e uma total falta de exatido gramatical

    (...) Hlderlin como tradutor de Sfocles pode ser comparado quelesescavadores do solo grego, desprovidos de formao sistemtica, quese puseram a trabalhar com seus prprios recursos, com o coraocheio de entusiasmo e guiados por um grande instinto: extraviaram-se muitas vezes e destruram muita coisa, conseguiram, contudo,chegar at o fundo e pela primeira vez indicaram aos psteros ocaminho para as descobertas.4

    Qual a razo para uma discordncia to profunda da crtica a esta

    traduo, entre os juzos de escrnio do sculo XIX e os de elogio dosculo XX? Quais elementos tornam to polmica e especial a relaolingustica entre o tico de Sfocles e o alemo de Hlderlin?

    Certamente, Hlderlin procurou com suas tradues estabeleceruma relao diferente com o mundo grego representado nas tragdiasde Sfocles. A inteno de Hlderlin vai alm da inteno tradicionaldo tradutor a de, como afirma Walter Benjamin, tornar compreensvelo texto em lngua original em outra lngua, pela transposio maisexata possvel da forma e do sentido do original.5 Neste sentido,inaugura-se uma maneira muito especfica de se ver a recepo do mundogrego pelo mundo moderno, a qual Hlderlin trabalhar em sua poesia,mas que receber sua formulao mais evidente no projeto de traduzirSfocles. Essa recepo , portanto, o primeiro elemento a ser observad

    3 Cf. Benjamin, W. A tarefa do tradutor. In: Gagnebin, J. M. (org.). Escritos sobre mitoe linguagem (1915-1921). Trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. So Paulo:

    Duas Cidades/ Ed. 34, 2011, p. 118.4 Cf. Hellingrath, apud Campos, H. A arte no horizonte do provvel e outros ensaios. 3 ed.So Paulo: Perspectiva, 1975, p. 96-97.5 Cf. Benjamin,op. cit., p. 107.

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    na obra de Hlderlin para que se possa ento compreender o quepretendia com seu projeto de traduo.

    Com respeito inteno de Hlderlin, esta pode ser compreendidaem duas declaraes do poeta, colhidas poca da publicao das tradues:a primeira, em suas observaes sua verso de Antgona, afirma: devemosapresentar, em toda parte, os mitos de formamais demonstrvel;6 a segunda,em uma carta ao seu editor Friedrich Wilmans, em que diz:

    Eu espero apresentar a arte grega, que nos estranha em virtude daconvenincia nacional e dos erros com que sempre foi tratada, demodomais vivo (lebendiger ), mais vivo do que em geral se apresenta aopblico, na medida em que eu marcoo oriental que nela fora repudiadoe aprimoro seus erros artsticos onde eles tenham ocorrido.7

    Tornar o mito mais demonstrvel, mais vivo: essa a intenoque Hlderlin procura realizar por meio das tradues de Sfocles.Trata-se desde a origem de um projeto muito mais amplo que o deuma traduo convencional.

    A relao com o mito a recepo dos mitos gregos encontra-se no centro de seu projeto. Os mitos representados na tragdia noso para o poeta alemo um discurso estranho, longnquo, mas acristalizao de um elemento divino, da divindade que no deixa deexistir no transcurso da Histria.

    O que so precisamente para Hlderlin os deuses gregos, osdeuses que perpassam todo o entrecho trgico? Difcil decifrar esseenigma na obra do poeta. No entanto, pode-se dizer que em Hlderlinos deuses no so alegorias para os estados da alma humana, tampoucoimaginaes da fantasia, mas o prprio Ser, condensado em figurasobjetivas, que por diversos modos se apresentam e vo de encontro

    aos homens marcados pela finitude e pela necessidade.8

    J se comparoua posio do poeta ao pantesmo isto , a identificao entre deus e

    6 Cf. Hlderlin,op. cit., 1954, p. 292:Wir mssen die Mythe nmlich berall beweisbarer darstellen (trad. minha).7 Cf. Hlderlin, F.Smtliche Werke. Band 6 : Briefe. Org. Friedrich Beissner. Stuttgart: W. Kohlhammer Verlag, 1959, p. 464: Ich hoffe, die griechische Kunst, die uns fremd ist, durch Nationalkonvenienz und Fehler, mit denen sie sich immer herumbeholfen hat, dadurch leben als gewhnlich dem Publikum darzustellen, da ich das Orientalische, das sie verleugnet hatheraushebe, und ihren Kunstfehler, wo er vorkommt, verbessere (trad. minha).8 Cf. von Wiese, B. Die deutsche Tragdie von Lessing bis Hebbel. Hamburg: Hoffmannund Campe, 1983, p. 353.

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    mundo embora esse termo no seja o mais adequado para caracterizarseu pensamento. A verdadeira tarefa potica de Hlderlin captar deusem um mundo em que deus se cala em silncio e se encontra longe doshomens. Esse o retrato do tempo que se enuncia ao poeta alemo,nos albores da Modernidade. Hlderlin to necessrio a esse tempoquanto o padre necessrio no campo de batalha.

    Esse deus oculto se abre para os olhos do poeta, o que permite aHlderlin buscar na traduo algo mais que a transposio do texto gregopara a lngua alem. Esse carter divino da tragdia exposto por Hlderliem um escrito de 1799, intitulado Fundamento para o Empdocles:

    O poema trgico oculta ainda mais [que a ode trgica] a intimidade

    ( Innigkeit) na apresentao, a expressa em distines mais fortes,porque expressauma intimidade mais profunda,um divino mais infinito. (...)Tambm no poema trgico-dramtico se exprime, portanto, o divinoque o poeta sente e experimenta em seu mundo, tambm o poematrgico-dramtico para o poeta uma imagem do vivente que, paraele, e era presente em sua vida.9

    O divino presente no poema trgico-dramtico entreabre-se paraos olhos do poeta, pois o poeta encontra no trgico uma imagem

    semelhante ao divino de sua prpria interioridade e de sua prpria vida A iniciativa de Hlderlin, frente ao contexto literrio e filosficoda Alemanha de ento, principalmente no que concerne recepo datragdia grega, nica e original. De acordo com o crtico Benno von Wiese, grosso modo, podem-se observar nos sculos XVIII e XIX duasgrandes linhas de interpretao da tragdia na Alemanha. Por um ladoa especulao idealista, que pensa a tragdia a partir de uma viso dmundo racionalista e a encara como um problema tico, que encontra

    sua superao em uma filosofia do esprito. A interpretao da Antgonade Sfocles por Hegel seria um exemplo desse modo de ver a aporiatrgica. Por outro lado, a tradio romntica, que revaloriza na arte oselementos religiosos do perodo medieval e encara a tragdia a partir

    9 Cf. Hlderlin, F.Smtliche Werke. Band 4: Der Tod des Empedokles; Aufstze. Org.Friedrich Beissner. Stuttgart: W. Kohlhammer Verlag, 1962, p. 156: Das tragischeGedicht verhllt die Innigkeit in der Darstellung noch mehr, drckt sie in strkeren Unte aus, weil es eine tiefere Innigkeit, ein unendlicheres Gttliches ausdrckt. (...) Aucdramatischen Gedichte spricht sich also das Gttliche aus, das der Dichter in seiner Wund erfhrt, auch das tragisch dramatische Gedicht ist ihm ein Bild des Lebendigen seinem Leben gegenwrtig ist und war (trad. minha).

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    da revelao do mundo cristo. Por essa via, a tragdia chega a serencarada sob um vis religioso, mas predomina o elemento cristo,que dissolve a aporia trgica.10

    Hlderlin, a partir de uma viso muito prpria da naturezareligiosa da tragdia, consegue compreender Sfocles de modo maiscomplexo, e encontrar uma via original ao mundo grego. Como afirmao fillogo Karl Reinhardt, isso leva Hlderlin a traduzir Sfocles demodo religioso, isto , Hlderlin procura ressaltar o elemento divinopor ele visto na tragdia, e por isso ele pode pretender tornar o mitomais provvel, mais vivo para seus contemporneos.11

    Naturalmente Hlderlin percebe que a era moderna em muitodifere do mundo grego. Se a tragdia prova para ele que no mundogrego o homem se encontrava s voltas com o divino, que os deuseseram ento prximos ao homem, o mundo moderno se encontra emoposio quela realidade. A histria do mundo lida por Hlderlinconforme essa dade: h o tempo da proximidade de deus e o tempo dodistanciamento de deus. Segundo afirma Wiese, os deuses podem estarperto, e isso significa uma intensificao e elevao da vida, cujo verdadeiro nexo, que de outro modo permaneceria oculto, somenteassim se torna visvel. Na proximidade dos deuses, o homem penetrado

    pelo Esprito, o qual o coloca no eternamente vvido, na real essnciado Ser, seja de modo abenoado, seja de modo ameaador. Eles podem,no entanto, estar tambm longe, e isso no significa que no estejamdisponveis, mas que em determinadas eras eles esto ausentes e ocultos. A vida ento vivida pelos homens na inevitabilidade de suascontradies e cises, e rechaa todo aquele vicejar espirituoso que aunidade com o esprito do Ser lhe garante.12

    No a proximidade dos deuses, mas a distncia caracteriza ostempos modernos. No a plenitude, mas a escassez do divino o traomarcante de seu tempo. Somente ao poeta parece ainda se desvelaresse mundo de deuses de que falava a tragdia grega. Apenas o poetapode ascender a estas alturas e admir-las e, com seu canto, tentar traz-las de volta a esse mundo desdivinizado.

    Observando esses traos fundamentais da viso de mundohlderliniana, suas tradues de Sfocles assumem uma nova amplitude.

    10

    Cf. von Wiese,op. cit., p. 350-351.11 Cf. Reinhardt, K.Tradition und Geist. Gesammelte Essays zur Dichtung. Gttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1960, p. 382.12 Cf. von Wiese,op. cit., p. 353.

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    No se trata aqui de um projeto humanista ou filolgico. Esse contatodireto entre o poeta e o trgico permite a Hlderlin tentar traduzir astragdias de Sfocles por dentro, e transpor seu sentido imanentepara o texto da traduo, revivificando na poesia da lngua alem toda essncia originria da poesia grega.

    Tambm a polmica relao entre antigos e modernos aquireformulada: no se trata mais de imitao ou de disputa com o mundogrego, mas de aprender no contato com esse mundo que aquilo que prprio ao tempo do poeta deve ser por ele revelado. Como afirma emuma carta de dezembro de 1801 ao poeta e amigo Casimir UlrichBoehlendorff: Tenho elaborado desde h muito essa questo, e seiagora que no devemos tentar igualar nada aos gregos, a no ser o quetanto para os gregos quanto para ns, deve constituir o mais elevado, asaber, a relao da vida e o destino.13

    A carta de Hlderlin ao poeta Boehlendorff pode ser interpretada,por um lado, como a superao do classicismo, como quer PeterSzondi.14 Por outro lado, demonstra uma identidade original com omundo grego, que pode ser recuperada, ainda que por uma via diversada imitao ( Nachahmung), proposta por Winckelmann.

    O projeto de Hlderlin de traduzir Sfocles , nesse sentido,

    coerente tanto com a funo proftica que atribui ao poeta quanto coma viso proftica que, enquanto poeta, ele antev no futuro. Essa viso exposta em poemas comoWie wenn am Feiertage... (Como quando emdia de festa...) e Ermunterung(Exortao). O poeta permanece em contatocom o divino, mesmo que seu tempo se tenha afastado dos deuses. Seucanto tem a finalidade de guardar essa herana, mas tambm de anunciaum novo tempo.

    Assim conclui no poema Exortao(primeira verso):

    esperana! breve, breve no cantaro sozinhosos bosques o elogio dos deuses, pois vem j o tempoem que da boca dos homens a alma,divina, de novo seja proclamada.

    13 Cf. Hlderlin,op. cit., 1959, p. 456: Ich habe lange daran laboriert und wei nun, da audem, was bei den Griechen und uns das Hchste sein mu, nmlich dem lebendigenund Geschik, wir nicht wohl etwas gleich mit ihnen haben drfen (trad. minha).14 Cf. Szondi, P. berwindung des Klassizismus: Der Brief an Bhlendorff vom 4Dezember 1801. In: Bollack, J.et alii (org.)Schriften I . Frankfurt a.M.: Suhrkamp Verlag, 1978, p. 358.

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    Em que nossos dias de novo, como flores sejam,onde, distribudo em rotao,o calmo Sol sua imagem do cu veja, efeliz nos felizes a luz se conhea.

    Em que amoroso, em unio com os mortais,o elemento ento viva e ento somente baste,no agradecer de crianas piedosas, a forada terra, que, infinita, se desenvolve,

    e ele, que reina sem palavras, e o futurodesconhecido prepara, o deus, o espritona palavra humana, em belos dias,outra vez com nomes, como outrora, seja dito.15

    EmComo quando em dia de festa..., fica claro que a tarefa do poeta uma tarefa ligada ao seu tempo e tambm ao seu povo, que iluminadopor suas palavras:

    Pensamentos do esprito comum estoem silncio se acabando, na alma do poeta,

    desde longo tempo conhecida do infinito,subitamente tocada se estremece com a recordao,e a ela, inflamada pelo sagrado raio,fruto nascido do amor, obra de deuses e homens,o canto, que a ambos testemunha, alcana.... E por ele agora os filhos da terrabebem sem perigo o fogo celeste.

    mas cabe a ns, poetas!,permanecer com a cabea descobertadebaixo das tormentas de deus,

    15 Cf. Hlderlin, F.Smtliche Werke. Band 2: Gedichte nach 1800. Org. Friedrich Beissner.Stuttgart: W. Kohlhammer Verlag, 1953, p. 34-35:O Hoffnung! bald, bald singen die Haine nicht/ Der Gtter Lob allein, denn es kommt die Zeit,/ Da aus der Menschen Munde die/ Seele, die gttliche, neuverkndet.// Da unsre Tage wieder, wie Blumen, sind,/ Wo, ausim Wechsel, ihr Ebenbild/ Des Himmels stille Sonne sieht und/ Froh in den Frohen das Lichkennet,// Da liebender, im Bunde mit Sterblichen/ Das Element dann lebet und dann erst re Bei frommer Kinder Dank, der Erde/ Kraft, die unendliche, sich entfaltet,// Und er, der spra waltet, und unbekannt/ Zuknftiges bereitet, der Gott, der Geist/ Im Menschenwort, am schTage/ Wieder mit Namen, wie einst, sich nennet(trad. minha).

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    empunhar com nossas prprias moso raio mesmo do pai eentregar ao povo, envoltono canto, o dom celeste.16

    Somente a partir do conhecimento das funes que Hlderlinatribui ao poeta pode-se compreender sua carta ao editor, em que afirmaprocurar marcar o oriental que fora repudiado na tragdia grega.Oriental aqui no se refere ao Oriente geogrfico como por ns hojecompreendido o Oriente-Mdio, a ndia etc. O oriental possui emHlderlin o sentido de originrio, prximo de deus, imediato, que eleprocurarmarcarem sua poesia, de modo a tornar o mitomais vivo.

    Essa conexo direta com os aspectos divinos da tragdia resultana traduo de Hlderlin, em diversastransgresses do original grego,intensamente polmicas para os fundamentos da traduo de sua pocaForam essas transgresses do texto grego aliadas, claro, ao fato dque Hlderlin tinha um conhecimento regular da lngua grega quecausaram o julgamento to negativo de sua poca, manifesto no riso deSchiller. Por outro lado, tambm essas transgresses, juntamente aoexperimento potico de traduzir a tragdia para a forma dehinocaracterstica da poesia de Hlderlin, tornaram suas tradues deSfocles to clebres no sculo passado.

    Ressaltaremos aqui apenas um dos traos da traduo deHlderlin, em que fica evidente a originalidade de sua verso. Refiro-me s tradues dos nomes dos deuses gregos, que Hlderlin alterapropositalmente em sua verso, de modo a revelar a sua essncia, emconformidade com sua viso de mundo religiosa.

    Nos versos 781 e 782 da Antgona de Sfocles, o coro de anciestebanos canta o amor de Hmon por Antgona, entoando o nome de Eros. No original encontramos:

    16 Cf. Hlderlin,op. cit., 1953, p. 123-124: Des gemeinsamen Geistes Gedanken sind,/ Stilendend, in der Seele des Dichters,// Da schnellbetroffen sie, Unendlichem/ Bekann Zeit, von Erinnerung/ Erbebt, und ihr, von heilgem Strahl entzndet,/ Die Frucht geboren, der Gtter und Menschen Werk,/ Der Gesang, damit er beiden zeuge, glcktdaher trinken himmlisches Feuer jetzt/ Die Erdenshne ohne Gefahr./ Doch uns gebGottes Gewittern,/ Ihr Dichter! mit entbltem Haupte zu stehen,/ Des Vaters Strahl,mit eigner Hand/ Zu fassen und dem Volk ins Lied/ Gehllt die himmlische Gabe z(trad. minha).

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    Eros, invencvel em combate, Eros, que cai sobre a riqueza...17

    Hlderlin faz a seguinte traduo do mesmo trecho:

    Esprito do amor, contudo em combate,sempre vencedor! Tu, Esprito da Paz, que cochilassobre o comrcio.18

    Como se v, Sfocles se refere duas vezes a Eros, mas Hlderlin vai propositalmente alm do texto, traduzindo o nome do deus ora porEsprito do amor, ora por Esprito da paz.

    Em outro trecho mais notrio, nos versos 947-950, tambm da Antgona, o coro invoca Zeus ao falar do infortnio da condenao de Antgona por Creonte, comparando-a com Dnae. Cito:

    E era ela de estimadalinhagem, filha,e de Zeus guardava o tesouro,a semente cada em chuva de ouro.19

    Hlderlin modifica ou revela o original em sua traduo:

    Embora de nobre linhagem, filha,ela contava ao Pai do Tempoo bater das horas, o dourado.20

    Hlderlin subverte completamente o original de Sfocles,conscientemente, para atender s finalidades de sua traduo. Substituio nome de Zeus por Pai do Tempo, e reinterpreta o mito de Dnae,colocando-a no como guardi da semente de Zeus, mas como aquela

    que conta cada um dos batimentos dourados das horas. Em suas observaes traduo de Antgona, Hlderlin justificaexpressamente sua escolha, como modo de aproxim-la de seu modode representao. E afirma:

    17 Antgona, v. 781-782: ros ankate mkhan,/ ros, hs en ktnesi ppteis (trad. minha).18 Cf. Hlderlin,op. cit., 1954, p. 259:Geist der Liebe, dennoch Sieger/ Immer, in Streit! Du Friedensgeist, der ber/ Gewerb einnicket (trad. minha).19 Antgona, v. 947-950: Katoi ka genei tmios, pa pa,/ ka Zens tamieeske gons khrysortou(trad. minha).20 Cf. Hlderlin,op. cit., 1954, p. 266:Obgleich an Geschlecht edel, o Kind!/ Sie zhlete demVater der Zeit/ Die Stundenschlge, die goldnen (trad. minha).

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    De forma determinada ou indeterminada, Zeus que deve ser dito.Com seriedade, preferencialmente: Pai do tempo ou Pai da terra,porque o seu carter consiste em, por oposio eterna tendncia,inverter a aspirao de abandonar este mundo em direo ao outrona aspiraode passar do outro mundo para este. preciso, de fato, apresentar o mitosempre da forma maisdemonstrvel. O devir, em seu fluxo dourado,significa o raio de luz, que tambm a Zeus pertence, na medida emque o tempo, que ser marcado, calculvel por meio de tais raios. Assim ser sempre quando o tempo for contado na dor, porque entoo nimo pode seguir, com simpatia, a mudana do tempo, e assimcaptar a simples passagem das horas, livre do entendimento que sconclui do presente para o futuro.21

    O carter descrito seria a essncia de Zeus, e por isso seu nomedeve ser dito Pai do Tempo. Por meio de seus raios de luz, Zeus liga-se ao tempo, que calculvel mediante esses raios. No o tempo doentendimento, que Hlderlin critica, mas o tempo contado nosofrimento, o verdadeiro compreender do tempo, que o capta comosimples curso das horas, o dourado bater das horas.

    No cabe, neste momento, discutir o contedo da revelao deHlderlin da essncia de Zeus. Sua inteno potico-proftica: ele

    no pretende se prender s linhas do texto, mas procede por meiodessa revelao da essncia original.22 Procura, sim, a partir de uma viso pressuposta da tarefa da poesia, recuperar o divino perdido nomundo moderno por meio da ligao reveladora do poeta com o divino

    21 Cf. Hlderlin,op. cit., 1954, p. 292: Im Bestimmteren oder Unbestimmteren mu woh Zevs gesagt werden. Im Ernste lieber: Vater der Zeit oder: Vater der Erde, weil sein Cder ewigen Tendenz entgegen, das Streben aus dieser Welt in die andre zu kehren zu einem

    Streben aus einer andern Welt in diese . Wir mssen die Mythe nmlich berall beweisbardarstellen. Das goldenstrmende Werden bedeutet wohl die Strahlen des Lichts, die a gehren, insofern die Zeit, die bezeichnet wird, durch solche Strahlen berechenbarer aber immer, wenn die Zeit im Leiden gezhlt wird, weil dann das Gemt vielmehr dem Zeit mitfhlend folget, und so den einfachen Stundengang begreift, nicht aber der VGegenwart auf die Zukunft schliet(trad. e grifo meus).22 Antoine Berman parece compreender as tradues de Hlderlin tambm nessesentido, e por isso fala de uma verdade da traduo. As tradues de Hlderlino seriam nem transformao literria das obras traduzidas, nem reproduo, materiam como finalidade atualizar o conflito que a vida destas obras. Essa serilio deixada pelo poeta reflexo do tradutor (cf. Berman, A. A traduo e a letra, ou,O albergue do longnquo. Trad. Marie-Hlne Catherine Torres, Mauri Furlan, AndriaGuerini. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 89).

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    Belo Horizonte, v. VIII, n. 1, jan.-jun. 2012ISSN: 2179-7064 (impresso) - 1983-3636 (online)

    da tragdia. O nico meio possvel para isso se a traduo se converterem algo mais que traduo, isto , se ascender a revelao. Somenteisso autoriza Hlderlin a transgredir o texto: transgredir para expor oque nele se encontra oculto. A tarefa do tradutor do mito torna-se umatarefa possvel somente quele que traduz para revelar ao poeta cabedesvelar o divino da tragdia.

    Na obra de Hlderlin em especial nas tradues de Sfocles o prprio conceito de recepo levado a um limite radical, vez que opoeta traa uma linha direta de ligao com o mito grego. A recepono se resume ao aspecto externo, recepo de obras fechadas em si,em que se reconhece a alteridade da cultura grega frente ao mundomoderno. As tradues de dipo Rei e Antgona ao contrrio devemrecuperar o divino em um mundo desdivinizado; recuperar o nome dedeus em um mundo que j no pode diz-lo. Por isso, no se trata deum aspecto marginal da obra de Hlderlin, ou mesmo secundrio dapoesia moderna, mas de um ponto central, em que o reencontro com aGrcia e a tragdia alcana sua forma mais profunda.

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  • 7/22/2019 Antigona Holderlin

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