Antigo Regime Nos Trópicos Fragoso

4
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, 473 pp. Com um prefácio impecável de A. J. R. Russell-Wood, chega-nos uma obra coletiva inovadora que une pesquisadores lusos e brasileiros. Não se tra- ta de mais uma publicação que acompanha o crescimento do mercado edito- rial sobre os tempos coloniais, embalado pela comemoração dos descobri- mentos, mas de uma contribuição definitiva para a revisão do chamado “antigo sistema colonial”. Lá se vão pouco mais de vinte anos desde que Ciro Flama- rion Cardoso chamou a atenção, de forma ensaística, para a preocupação ob- sessiva com a extração de excedentes pela metrópole na historiografia colo- nial brasileira. Ao cabo deste período, a pesquisa acadêmica tomou fôlego e trouxe novas evidências empíricas para a cena do debate. A historiografia portuguesa, independentemente das discussões acerca da autonomia do modo-de-produção escravista colonial que marcou profun- damente os estudos brasileiros, também se renovou com o revisionismo de seu Antigo Regime, particularmente sobre o fracasso das reformas pombali- nas, o crescimento industrial gorado com a Independência brasileira e o ques- tionamento sobre a centralização do poder pelo Estado monárquico lusitano. Ambos os percursos historiográficos se amalgamam nesse livro, nos dan- do uma visão ampla e diversificada sobre a complexidade do que foi o Impé- rio luso, tendo como elemento catalizador o controvertido “pacto colonial”. O primeiro bloco de ensaios, através da pesquisa de múltiplas fontes pri- márias manuscritas e inéditas, traça a trajetória da elite econômica e política da capitania do Rio de Janeiro. João Fragoso, Antonio Carlos Jucá de Sam- paio e Helen Osório vão abrir o conjunto de doze artigos, situando a praça FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Afonso de Alencastro Graça Filho Universidade Federal de São João del Rei Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, nº 44, pp. 555-558 2002

description

resumo introducao

Transcript of Antigo Regime Nos Trópicos Fragoso

  • Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001, 473 pp.

    Com um prefcio impecvel de A. J. R. Russell-Wood, chega-nos umaobra coletiva inovadora que une pesquisadores lusos e brasileiros. No se tra-ta de mais uma publicao que acompanha o crescimento do mercado edito-rial sobre os tempos coloniais, embalado pela comemorao dos descobri-mentos, mas de uma contribuio definitiva para a reviso do chamado antigosistema colonial. L se vo pouco mais de vinte anos desde que Ciro Flama-rion Cardoso chamou a ateno, de forma ensastica, para a preocupao ob-sessiva com a extrao de excedentes pela metrpole na historiografia colo-nial brasileira. Ao cabo deste perodo, a pesquisa acadmica tomou flego etrouxe novas evidncias empricas para a cena do debate.

    A historiografia portuguesa, independentemente das discusses acercada autonomia do modo-de-produo escravista colonial que marcou profun-damente os estudos brasileiros, tambm se renovou com o revisionismo deseu Antigo Regime, particularmente sobre o fracasso das reformas pombali-nas, o crescimento industrial gorado com a Independncia brasileira e o ques-tionamento sobre a centralizao do poder pelo Estado monrquico lusitano.

    Ambos os percursos historiogrficos se amalgamam nesse livro, nos dan-do uma viso ampla e diversificada sobre a complexidade do que foi o Imp-rio luso, tendo como elemento catalizador o controvertido pacto colonial.

    O primeiro bloco de ensaios, atravs da pesquisa de mltiplas fontes pri-mrias manuscritas e inditas, traa a trajetria da elite econmica e polticada capitania do Rio de Janeiro. Joo Fragoso, Antonio Carlos Juc de Sam-paio e Helen Osrio vo abrir o conjunto de doze artigos, situando a praa

    FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVA,

    Maria de Ftima (orgs.).

    Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa

    (sculos XVI-XVIII). Afonso de Alencastro Graa Filho

    Universidade Federal de So Joo del Rei

    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 22, n 44, pp. 555-558 2002

    moonb_000Realce

  • mercantil carioca no centro de uma vasta rede de operaes abrangendo ro-tas no ultramar africano e asitico, bem como as linhas do abastecimento domercado brasileiro da poca. Atuao que caracterizou a elite mercantil degrosso trato daquela cidade pelo menos at os anos de 1830 e que se consoli-da no setecentos (Fragoso, p. 333).

    A passagem da elite agrria dos fundadores da Guanabara para o predo-mnio dos homens de negcios na hierarquia social marcada pela crise daeconomia aucareira que acompanhou a reativao mercantil do Rio de Ja-neiro, causada pelo impacto da minerao e o controle carioca no abasteci-mento das Minas Gerais. Tambm a subordinao da economia sulista ao do-mnio dos capitais mais elevados dos negociantes guanabarinos fica patentenos dados de arrematao dos impostos sobre as mercadorias rio-granden-ses, estudados por Helen Osrio.

    Os trs artigos iniciais vo sublinhar as estratgias de enriquecimentodentro de uma economia chamada do bem comum, dominada pelas me-lhores famlias da terra. Nessa economia de distribuio de benesses e privi-lgios, as alianas familiares e clientelistas so decisivas para acumulao defortunas. Nota-se a influncia, entre outras, da abordagem de Giovanni Levi,Braudel e Polanyi, para a anlise da reciprocidade dos favores entre famlias eo mercado pr-capitalista imperfeito, bem como do mtodo genealgico dasfamlias, propalado por Adeline Daumard e Jacques Dupquier, imprescind-vel para a reconstituio dos mecanismos de formao dos patrimnios pri-vados nas sociedades pr-industriais.

    Talvez, neste bloco inicial e ao longo do livro, o leitor sinta a falta de tra-balhos que cuidassem mais detidamente da participao das demais capita-nias no sistema complexo das rotas mercantes e no funcionamento adminis-trativo dos vice-reinados, notadamente da Bahia, Pernambuco, Minas Gerais,So Paulo e Gro-Par. Embora esse desejo pudesse soar excessivo ao planoque alinhava a obra, o do esforo de anlise dos aspectos centrais do AntigoRegime lusitano revisto pelo papel desempenhado pelas instituies e elitescoloniais, com nfase na praa do Rio de Janeiro.

    Nas duas sees seguintes, a diversidade de assuntos partilha de um de-nominador, o das relaes de poder na administrao do Mare Lusitano. A fi-gura de um regime colonial centralizado no poder da Coroa substituda pe-la imagem de um espao de negociao, que edifica as relaes mutualistas ousimbiticas entre a grande autonomia das cmaras municipais, instituieseclesisticas ou senhoriais e o poder real, que se beneficiava do bom andamen-to dos negcios coloniais (ver artigos de Maria Fernanda B. Bicalho, AntonioManuel Hespanha, Nuno Gonalo F. Monteiro e Maria de Ftima S. Gouva).Afinal a economia poltica dos privilgios, institucionalizada pelas monar-quias do Antigo Regime nas colnias, estava assentada numa cadeia de nego-ciaes entre redes pessoais e institucionais do poder local e o trono metro-

    556

    Afonso de Alencastro Graa Filho

    Revista Brasileira de Histria, vol. 22, n 44

    moonb_000Realce

    moonb_000Realce

    moonb_000Realce

  • politano, hierarquizando os homens e o acesso obteno das benesses impe-riais. O outro lado desta realidade seria a coeso poltica necessria para o go-verno do Imprio. Antonio Manuel Hespanha, investigando as regras formaispara a atuao das instituies coloniais diante do poder real, indicar as in-consistncias da suposta uniformidade da estrutura jurdica do Imprio, co-mo corolrio da idealizao do centralismo do poder do monarca. Trabalhan-do comparativamente com a diversidade de situaes entre a organizao dajustia em Goa, Bahia e Rio de Janeiro, Antonio Hespanha torna visvel a plu-ralidade dos laos de polticos que iriam se estabelecer entre o poder local e aCoroa a partir das distncias e realidades da conquista, nas quais o direito co-lonial moderno se ajustava e os nativos estabeleciam suas prticas legislativasprprias. Portanto, a centralizao no poderia ser efetiva sem um quadro le-gal uniforme e o poder restrito ao mando dos oficiais metropolitanos.

    A experincia da evangelizao tratada por Ronald Raminelli e Hebede Mattos. O primeiro, enfatizando as diferentes estratgias missionrias noCongo, Brasil e Japo, que pretenderam unir povos diversos sob a defesa daf crist. O projeto missionrio que cimentava a conquista, ao criar a identi-dade cultural entre povos subjugados e os valores metropolitanos, continhaelementos para a sua corroso ao se manter dentro dos limites da desigualda-de representada pela excluso dos gentios no corpo social hierarquizado.

    Num dos artigos mais polmicos da coletnea, Hebe de Mattos vai se con-trapor s motivaes de ordem econmica utilizadas pela historiografia brasi-leira para explicar o estabelecimento do regime escravista nas Amricas, taiscomo a falta de braos para as tarefas da colonizao ou a lgica mercantilistadas monarquias modernas. A construo de justificativas religiosas para a es-cravido, a exemplo da guerra justa para a salvao dos gentios, no foi foradapela lgica mercantil da expanso. Ao contrrio, antecederia a empresa ultra-marina e teria fabricado as referncias mentais e polticas, de fundo corporati-vo e religioso, que permitiram a aventura colonial, inclusive em sua dimensomercantil. A escravido seria a mola propulsora para os colonos portuguesesmotivados pela possibilidade de se afidalgarem no alm-mar, conquistando ostatus de senhores de homens e terras. Camos, assim, na polmica das deter-minaes histricas e poderamos nos perguntar se no deveramos separar asmotivaes das razes impostas pelas necessidades da experincia da coloniza-o. Ou ainda, distinguir as aspiraes que moviam os colonos e as estratgiasda Coroa para o seu enriquecimento, dentro da lgica mercantilista do Estadomoderno. De qualquer maneira, deixemos o leitor tomar partido.

    A ltima parte do livro vincula mltiplos aspectos da obra construoda noo de uma economia colonial tardia, que se define pela hegemonia docapital mercantil residente no Rio de Janeiro, e se constituiria na nova eliteeconmica da Amrica portuguesa. Joo Fragoso persegue um modelo expli-cativo para a economia colonial j definido em sua tese de doutorado (Ho-

    557

    FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVA, Maria de Ftima (orgs.)

    Dezembro de 2002

    moonb_000Realce

    moonb_000Realce

    moonb_000Realce

    moonb_000Realce

  • mens de grossa aventura), e do qual alguns trabalhos aqui apresentados lheso tributrios. Por conseguinte, modelo forjado no programa de histriaagrria da UFF, sob a batuta de Maria Yedda Linhares. Nele, a autonomia daeconomia colonial sustentada, com base numa cuidadosa pesquisa empri-ca, diante das flutuaes externas e do poder da metrpole. A hegemonia eco-nmica dos negociantes do Rio de Janeiro meticulosamente recuperada porfontes cartoriais e arquivsticas diversas. Neste novo livro, Fragoso procuraremontar seu estudo ao momento da transformao da acumulao de capi-tais pela economia da plantation em direo constituio de uma elite mer-cantil colonial, que se mostrar autnoma e capaz de amealhar sua fortunanas redes do comrcio interno e ultramarino. As implicaes dessas constata-es so imensas para a historiografia brasileira, ainda no explorada de todonas suas dimenses polticas e sociais.

    E, finalmente, os textos de Roquinaldo Ferreira e Lus Frederico Dias An-tunes ajudam a fundamentar os argumentos de Fragoso. Ambos, com rique-za de detalhes, reconstroem os circuitos intra-ultramarinos do comrcio ca-rioca com a costa africana e Goa. Negociantes do Rio, da Bahia e Pernambucoso identificados com freqncia nos portos indianos, participando ativa-mente do comrcio de tecidos asiticos (Lus Antunes). As trs praas tam-bm usufruam da vantagem do comrcio direto com Angola, com a presen-a de suas embarcaes representando cerca de 85% de toda a movimentaoporturia de Luanda entre 1736 e 1770 (Roquinaldo Ferreira). Do Brasil par-tiam os panos asiticos reexportados, as cachaas (geribitas), plvora e ar-mamentos para as trocas no serto angolano, especialmente os escravos. Enesse trfico novamente o Rio de Janeiro se destaca, absorvendo 48,5 % dosnavios negreiros que zarparam de Luanda na dcada de 1760 (Idem).

    Ao concluirmos nossa leitura, no mnimo podemos afirmar que se os ar-gumentos no convencerem os mais cticos, a profuso de indcios e as com-provaes empricas, especialmente sobre a vinculao da praa carioca coma navegao de longa distncia e suas triangulaes de mercadorias com aCosta da Mina, Angola e Goa, alteram em definitivo a percepo do pactocolonial, reafirmando a autonomia que o capital mercantil sediado nas col-nias ousou possuir ante o poder metropolitano. prova tambm de que a his-tria econmica e das estruturas se renova, sem esgotar as suas possibilidadesde contribuio para o saber histrico. Aqui, os resultados das pesquisas re-gionais se sintonizam e dialogam com uma totalidade revisitada, o Impriocolonial portugus. Aguardamos ansiosos pelas controvrsias que o livro cer-tamente causar no meio acadmico.

    558

    Afonso de Alencastro Graa Filho

    Revista Brasileira de Histria, vol. 22, n 44

    Resenha recebida em 09/2002. Aprovada em 10/2002.

    moonb_000Realce

    moonb_000Realce

    moonb_000Realce

    moonb_000Realce