Anti Édipo e Masoch

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Anti-Édipo - (per)versão masoquista de “Deus está morto”: o amor problema segundo Deleuze Anti-Oedipus – masochistic (per)version of “God is dead”: the love- problem according to Deleuze Resumo Trata-se de apresentar a leitura deleuziana da obra de Leopold von Sacher-Masoch, colocando em primeiro plano como a reflexão sobre o masoquismo encontra papel determinante na experiência intelec- tual de G. Deleuze, tanto na gênese de seu conceito de inconscien- te, quanto na sua posterior crítica à psicanálise a partir do combate contra a transcendência e a negatividade nas concepções de desejo. Para tanto, o artigo estabelece uma leitura cruzada entre Deleuze e psicanálise a partir da problemática masoquista, explicitando como Deleuze constrói outra leitura de Masoch a partir de suas apropria- ções da filosofia de Bergson e da teoria analítica de Jung. Résumé Cette article vise à présenter la lecture deleuzienne de l’œuvre de Léopold von Sacher Masoch, mettant en avant le rôle décisif que la réflexion sur le masochisme a dans l’expérience intellectuelle de De- leuze, à la fois dans la genèse de son concept de l’inconscient, comme plus tard, dans sa critique de la psychanalyse et sa lutte contre la transcendance et la négativité dans les concepts de désir. Ainsi, l’ar- ticle établit une lecture croisée de Deleuze et la psychanalyse à partir du problème masochiste, expliquant comment Deleuze construit une autre lecture de Masoch à partir de sa apropriation de la philosophie de Bergson et de la théorie analytique de Jung. *** A mulher, tal como a natureza a criou e como atrai o ho- mem atualmente, é seu inimigo e não pode ser para ele senão sua escrava ou tirana, nunca sua companheira. O que ela só poderá ser quando lhe for igual em direitos e valer por sua formação e trabalho. Por enquanto, só há uma alternativa: ser o martelo ou a bigorna. Leopold von Sacher-Masoch, A Vênus das peles Palavras-chaves Deleuze, masoquismo, psicanálise, desejo Mots-clés Deleuze, masochisme, psychanalyse, désir Bruna Martins Coelho USP, São Paulo, SP, Brasil Mestre em Filosofia pela USP/SP. Realizou estágio. brunamartinscoelho@ yahoo.fr Ipseitas, São Carlos, vol. 1, n. 1, p. 129-158, jan-jun, 2015

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Deleuze

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  • Anti-dipo - (per)verso masoquista de Deus est morto: o amor problema segundo DeleuzeAnti-Oedipus masochistic (per)version of God is dead: the love-problem according to Deleuze

    ResumoTrata-se de apresentar a leitura deleuziana da obra de Leopold von Sacher-Masoch, colocando em primeiro plano como a reflexo sobre o masoquismo encontra papel determinante na experincia intelec-tual de G. Deleuze, tanto na gnese de seu conceito de inconscien-te, quanto na sua posterior crtica psicanlise a partir do combate contra a transcendncia e a negatividade nas concepes de desejo. Para tanto, o artigo estabelece uma leitura cruzada entre Deleuze e psicanlise a partir da problemtica masoquista, explicitando como Deleuze constri outra leitura de Masoch a partir de suas apropria-es da filosofia de Bergson e da teoria analtica de Jung.

    Rsum Cette article vise prsenter la lecture deleuzienne de luvre de Lopold von Sacher Masoch, mettant en avant le rle dcisif que la rflexion sur le masochisme a dans lexprience intellectuelle de De-leuze, la fois dans la gense de son concept de linconscient, comme plus tard, dans sa critique de la psychanalyse et sa lutte contre la transcendance et la ngativit dans les concepts de dsir. Ainsi, lar-ticle tablit une lecture croise de Deleuze et la psychanalyse partir du problme masochiste, expliquant comment Deleuze construit une autre lecture de Masoch partir de sa apropriation de la philosophie de Bergson et de la thorie analytique de Jung.

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    A mulher, tal como a natureza a criou e como atrai o ho-mem atualmente, seu inimigo e no pode ser para ele seno sua escrava ou tirana, nunca sua companheira. O que ela s poder ser quando lhe for igual em direitos e valer por sua formao e trabalho. Por enquanto, s h uma alternativa: ser o martelo ou a bigorna.Leopold von Sacher-Masoch, A Vnus das peles

    Palavras-chaves Deleuze, masoquismo, psicanlise, desejoMots-cls Deleuze, masochisme, psychanalyse, dsir

    Bruna Martins Coelho

    USP, So Paulo, SP, Brasil

    Mestre em Filosofia pela USP/SP. Realizou estgio. [email protected]

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    O problema do inconsciente atravessa a obra de Deleuze1. Seu primeiro caso literrio: A Vnus das peles de Leopold von Sacher--Masoch, romance sobre o qual escreve um artigo em plena voga sadiana na Frana, tirando das sombras este escritor, bastante con-veniente - nem mas, nem porn 2, Leopold era bem quisto sua poca, at Krafft-Ebbing ter feito de seu sobrenome uma doena. Ao escritor, Deleuze dedica De Sacher-Masoch ao masoquismo, publi-cado em peridico sobre o Amor problema de 1961. Tanto neste artigo, quanto em sua longa Apresentao de Sacher-Masoch (1967) - uma centena de pginas introdutrias a Vnus das peles - Deleuze desenvolve pontos essenciais reformulao do conceito de incons-ciente, articulando crtica e clnica. So eles: conceber positivamente o desejo, reformular a noo de fantasma e fazer transbordar, na nosografia clnica, o contexto social, histrico e esttico de sua ela-borao. Reformular a noo de inconsciente exige, da parte de De-leuze, a constituio de uma ontologia, de sada concebida como um empirismo transcendental e, posteriormente, desenvolvida como um funcionalismo em Anti-dipo. De Sacher-Masoch ao masoquis-mo e Apresentao de Sacher-Masoch participam nesta dita primei-ra fase de sua produo: revindicadamente anti-hegeliana, herdeira da crtica de Bergson dialtica, to prxima da psicanlise quanto sua crtica, e, eticamente inspirada pela crtica nietzschiana cultura moderna. Estes textos, e o problema do inconsciente neles presente, tecem-se, ainda, sobre o fundo mais ou menos silencioso da psico-logia de Jung3: se aluses apenas discretas a ela so feitas em 1967, ela foi precedida pela explcita reivindicao de um junguianismo em 1961. Tambm outros textos da poca, Nietzsche e a filosofia (1962)1 e Proust e os signos (1964)2, fazem rpidas menes aos conceitos de arqutipo, Anima e individuao este ltimo sendo um conceito central psicologia de Jung. Rechaadas no meio intelectual francs, suas ideias no deixaram de influenciar as concepes de desejo, de repetio e de individuao de Deleuze, mesmo quando o filsofo aparenta estar o mais prximo possvel da psicanlise. Concordando, aparentemente, com a concepo de Theodor Reik relativa ao carter essencial do fantasma para a compreenso do masoquismo, Deleuze s pode se aliar a esta tese pela toro desta noo psicanaltica via Jung e Bergson. Veremos.

    O fantasmaPela primeira vez, neste caso literrio, o fantasma teorizado

    por Deleuze. Articulam-se a este conceito desejo, subjetivao, repe-tio, experincia do tempo e sentido: o masoquista distingue-se do sdico em sua forma de apreenso e constituio do mundo esttica

    1 Tese defendida em dissertao de mestrado intitulada O campo e os princpios de repetio ensaio sobre o inconsciente segundo Gilles Deleuze (1953-1968), que contou com financiamento do CNPQ e da FAPESP. Este artigo a reviso de um captulo nela presente.

    2 Segundo Rgis Michel, em seu Masoch avec Deleuze, Masoch era em suma um escritor muito conveniente, no sentido mais puro da conveno social (MICHEL, 2007, p.6).

    3 Kerslake trabalha a tese em Deleuze and Unconscious de que o pensamento de Deleuze sobre o inconsciente seria herdeiro, entre outros, de outra linhagem que no a freudiana: Janet Bergson Jung.

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    -, em sua forma de significao do mundo artstica e no mito narrado neste processo.. Neles pensar a constituio da objetividade do mundo e de sua temporalidade requereria a retomada do problema aberto pela esttica kantiana com a expulso do prazer, da dor, e do desejo aa primeira Crtica inviabilizando a descrio das experi-ncias de loucura e alucinao. Deleuze e Lacan so herdeiros deste mesmo problema. Para o psicanalista, o fantasma funcionaria como uma matriz quase transcendental de constituio do mundo dos ob-jetos de desejo, de submisso do diverso da experincia iden-tidade fantasmtica, dotando o mundo de consistncia e sentido, segundo Safatle (SAFATLE, 2004, s. p.); alguns pontos dele afastam Deleuze: para o filsofo, h foracluso do Nome-do-Pai no masoquis-mo, o que o leva ao conceito de arqutipo para pensar a constituio simblica de um mundo para o perverso, e a defender a autonomia estrutural entre sadismo e masoquismo. Enquanto Lacan anulava a partilha entre as estruturas sdica e masoquista os sdicos como masoquistas ingnuos 4-, para Deleuze, toda questo era saber se o mesmo sujeito pode participar de uma sexualidade sdica e de uma sexualidade masoquista (DELEUZE, 1967, p. 94); evitando as iluses do transformismo (idem, p. 95), compreender a estrutura que eles delimitam. Produtos de uma ciso, o masoquista um eu sem supe-reu, e o sdico, um supereu sem eu. Deleuze desenvolve, assim, a tese de Lagache de Psicanlise e estrutura da personalidade, alvo de se-minrio crtico de Lacan em 1960. Daniel Lagache recentemente in-sistiu sobre a possibilidade de uma tal ciso eu-supereu, diz Deleuze.

    ele os distingue, e se necessrio, ope o sistema eu-narcsico / eu-ideal ao sistema supereu / ideal de eu. Ou bem o eu se lana numa empresa mtica de idealizao, onde ele se serve da imagem da me como de um espelho capaz de refletir e mesmo de produzir um eu-ideal, enquanto ideal narcsico de toda a potncia ou, ainda, ele se lana numa empreitada especulativa de identificao, e se serve da imagem do pai para produzir um supereu capaz de prescrever um ideal do eu, como ideal de autoridade fazendo intervir uma fonte ex-terior ao narcisismo (DELEUZE, 1967, pp. 110-111).

    Embora estes polos (de dessexualizao), eu e supereu, pos-sam existir conjuntamente em uma estrutura, a aposta de Deleuze de que ainda mais importante a possibilidade destes dois polos de dessexualizao atuarem em duas estruturas diferenciadas ou dis-sociadas da perverso, em favor de uma ressexualizao perversa que confere suficincia estrutural a cada uma delas (idem, p. 111). Ainda, as experincias do tempo nos Umwelt5 sdico e masoquista seriam profundamente assimtricas: no masoquismo, a espera e o suspense encenam o fantasma, enquanto, no sadismo, a temporalidade de acelerao na somatria dos casos, submetida demonstrao lgica da Ideia de Mal.

    4 Cf. SAFATLE, 2010, p. 177.

    5 Deleuze alude com este termo ao bilogo Jakob von Uexkll (DELEUZE, 1967, p. 37).

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    Os amores de Masoch encontram sua fonte nas obras de arte, a aprendizagem da cultura se faz com mulheres de pedra (DELEUZE, 1967, p. 61): Masoch, um amante da arte, mais que de suas mulhe-res (DELEUZE, 1967, p.61). Suas cenas so duplicatas de esculturas e quadros o cemitrio. Cemitrio-sonho, Masoch sonha e, acordado, enlameia de cultura os corpos-esttuas que compem seu mundo, alu-cinando, em suas carnes, referncias artsticas e mticas: petrificando--as. Drama colonizado por cenas clichs e povoado por mulheres--esttuas ou esttuas de mulher. Esculpindo no mrmore prprio cultura seus amores, as artes plsticas e os mitos impregnam de signos os dados sensveis, fantasmagorizando-os a fantasia como este vu ou o rastro agenciado e interposto pelo desejo na constituio dos ob-jetos sensveis do mundo. Masoch cr na arte, nas imobilidades e nas reflexes da cultura (idem, p.62). Na das artes plsticas, em especial: na renncia do movimento prpria a toda pintura que, do tema, con-gela um gesto, suspende uma atitude, exprimindo uma espera mais profunda, mais prxima das fontes da vida e da morte (idem, p. 62). Quem fala em espera, fala de uma relao com o tempo, o fantasma constituindo o mundo neste no-limite entre a percepo e a loucura seu sonho. O masoquista tem necessidade de crer que sonha mesmo quando ele no sonha (idem, p. 64). J o sdico no sonha: ele sabe. Demasiado lgico, tudo nele raciona. Cortaram-se as asas da imagi-nao to presente no masoquista como seu destino de sonhador e artista. Ao libertino, nada mais odioso que as artes plsticas: a demonstrao da Ideia de Mal a partir da submisso acumulativa dos corpos em sequncia tem de continuar e o quo detestvel no o artista a interromper este raciocnio sobre a maldade, parando-o, para dele extrair uma imagem?

    Na gnese da fantasia masoquista, o pai no tem funo: declinou crticas de Deleuze a Freud

    A verso moral do masoquismo de Freud mais uma verso moralizante, onde o retorno vai de par com a renncia. A conscincia infeliz, sentimento patriarcal de culpabilida-de, a solidria da represso cultural, empresa coletiva de sublimao. Assim se elabora, sob nossos olhos incrdulos, uma estranha nosologia que se chamar, rapidamente, de a perverso da perverso: o masoquismo puro. Purificado. Puritano. o Masoch sem sexo. Um culpado em sofrimentoRgis Michel, Masoch avec Deleuze

    De Sacher-Masoch ao masoquismo j acusava a clnica de Freud de ser to-s uma clnica das neuroses: a literatura a abrir-lhe uma brecha na compreenso das histerias, mostrando-se insuficiente o modelo do projeto, Sfocles; nem Sade, nem Masoch. De sorte que se de dipo ele parte, a dipo Freud chega quando no chega a dis-tinguir sadismo e masoquismo em suas etiologias, e os concebe como polos reversveis um no outro, tanto na manuteno do primado do sadismo, quanto ao fazer do pai o protagonista da fantasia de puni-o. S por um malabarismo, o psicanalista teria podido restituir ao

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    pai, sempre excludo da encenao masoquista, um papel: seu texto de 1919, Bate-se em uma criana, articula a gnese da fantasia de ser surrado ao escape do menino de seu amor homossexual pelo pai, a culpa a sendo descrita como o fator que transforma sadismo em masoquismo (CF. FREUD, 2010a, p. 96). Mas sadismo e masoquismo no so reversveis um no outro, e tampouco h culpa masoquista: o pai no tem fora de lei, insiste Deleuze. E acusa, ainda, outra perip-cia freudiana: quando perto de conceber um masoquismo originrio, o psicanalista t-lo-ia feito de modo demasiado real, concebendo-o como um retorno ao inorgnico a partir da pulso de morte noo que o filsofo no perder tempo em descentrar, grafando-a com o maisculo Instinto de morte, via o bergsonismo de Jung, como vere-mos. O masoquismo no tem em dipo sua estrutura, argumenta De-leuze. Nem encena o masoquista a ntima conexo entre lei e culpa-bilidade, presente no texto de Freud de 1919 e com desenvolvimento ulterior em O problema econmico do masoquismo. No se trata de, pela culpa, provar a existncia da Lei o que Jung j reprovava a Freud, como veremos. No se trata de ler neste sentimento o resulta-do da presso do supereu sobre o eu como um saldo necessrio dos processos de socializao do desejo e de represso o masoquismo moral de Freud6.

    No teatro da perverso masoquista, no so protagonistas nem a culpa, nem o pai, ou o supereu de instituio; a teoria psicana-ltica permitiria pensar as neuroses, mas no as neuroses prximas das psicoses o masoquismo tal como Deleuze o pensa em 1961 , nem tampouco a perverso (sua nova concepo do masoquismo de 1967). Esta crtica psicanlise ser retomada em O Anti-dipo, com Flix Guattari: denunciam a produo por meio de sua teraputica de discursos (e sujeitos a estes assujeitados) bem assimilados ao capita-lismo, denunciam a interpretao como dispositivo de sobrecodifica-o dos sofrimentos individuais a partir do cdigo edipiano prprio famlia burguesa e denunciam sua incapacidade em pensar as psico-ses. O esquizofrnico nada tem a ver com isso. Nem o perverso; o ma-soquista no perde tempo assassinando um pai desde sempre morto, no tem superego, segundo a tese de Lagache retomada por Deleuze. Mas como aparecem o sadismo e o masoquismo no texto de Freud?

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    No texto de 1915, As pulses e seus destinos, masoquismo e sadismo so trabalhados por Freud em sua tentativa de precisar o in-dispensvel conceito de pulso, at ento, obscuro conceito-limite entre a biologia, como sua fonte, e a psicanlise, como seu destino. Masoquismo e sadismo, no interior deste escopo terico, so modos de satisfao das pulses. Originrias de fontes orgnicas mltiplas e anteriores organizao genital do corpo, as pulses so indepen-dentes em seus modos de satisfao: ao incremento de excitao no aparelho psquico, elas respondem de modos to variveis quanto so suas origens. O objeto ao qual a pulso vincula-se para se satisfazer,

    6 Cf. SAFATLE, 2006, p. 47.

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    para que predomine a constncia energtica no psiquismo, regido pelo princpio do prazer, o que mais varia no instinto [na pulso7], no estando originalmente ligado a ele, mas lhe sendo subordina-do apenas devido sua propriedade de tornar possvel a satisfao (FREUD, 2010b, p. 43).

    Freud sustenta a tese de que as pulses so originariamente s-dicas no psiquismo: humilhar, subjugar e praticar a violncia so suas metas; um objeto buscado para serem agidas, a dor, inicialmente, nada tem a ver com isso at Freud aventar a hiptese de um maso-quismo ergeno. A criana sdica no leva em conta a imposio de dor e no tem esse propsito (idem, p.66), dizia Freud; o exerccio do poder descrever a qualidade ativa deste movimento pulsional (e, neste sentido, o psicanalista aproxima-se de Krafft-Ebbing).

    O verbo humilhar exige, por preconceito gramatical, algum feito objeto ou paciente de tal ato. Algum externo ao eu, em prin-cpio, at que o objeto da atividade da pulso torne-se o prprio eu devido a uma inverso dialtica (ou quase mitolgica, cujas causas o terico Freud no busca neste texto). A pulso no se exerce sobre o eu, sem que dela o eu padea, passivo. Corresponde a esta mudana objetal, portanto, uma mudana de meta: da atividade caracterstica do exerccio da pulso sdica passividade sofrida pelo eu masoquis-ta tornado objeto. Certa repartio de lugares no psiquismo pressu-posta por Freud, desenvolvida ulteriormente em O eu e o isso (1923) numa topologia que lhe permitir pensar uma instncia que age e ou-tra que padece: o supereu atuando sua pulso sdica sobre o eu. Aqui, o destino da pulso incidindo sobre o prprio eu nomeada neurose obsessiva e descrita por Freud como uma voz mdia reflexiva: a pulso da pessoa age contra a prpria pessoa. A nsia de atormentar se torna tormento de si mesmo, castigo de si, e no masoquismo. O verbo ativo no se transforma no passivo [sou atormentado], mas num mdio reflexivo (idem, p. 48). Finalmente, um terceiro estgio dos destinos sadomasoquistas da pulso: aps a mudana de objeto da pulso que, inicialmente exterior ao eu, torna-se o prprio eu e da meta ativa em passiva, convida-se um outro a exercer a atividade: um sujeito sdico para um masoquista seu objeto. Apenas este ter-ceiro estgio constituiria a experincia masoquista: o eu subjugado humilhado pelo sdico num feliz encontro.

    O essencial : mudana de objeto sem alterao da meta, o sa-dismo original sendo a via, na fantasia, de satisfao da pulso. A passividade sofrida no corpo-objeto do masoquista um fenmeno menor; ele no goza a, mas sim, na sua fantasia, para Freud, iden-tificado ao gozo ativo de seu carrasco, fruindo da fria contra sua prpria pessoa. Esta primeira hiptese aventada por Freud funda-se no poder (dominar, humilhar) e na atividade e passividade a regular os instintos, cega importncia dos sentimentos de prazer e dor nos destinos das pulses. A dor do masoquista transbordada em prazer, Freud disto dir um acontecimento secundrio: longe de ser a finali-

    7 Paulo Csar de Souza optou pela traduo de instinto; por isso que ao citar Freud, o conceito empregado ser instinto, enquanto que ao longo do texto empregamos o termo pulso.

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    dade da posio do sujeito na cena buscar a dor (o que o obrigaria a problematizar o prazer como um princpio) , ele j se sujeitava de modo masoquista antes de experiment-la. Uma vez vivida a passa-gem da dor intensa ao prazer, a ento, o masoquista poder eleg-la como meta (masoquismo ergeno). O destino da pulso est candi-dato agora a mais uma volta: estando a pulso ativa vinculada aos prazeres e s dores, pode-se explicar o prazer do sdico no apenas pelo exerccio ativo da dominao, mas pela sua identificao ao outro que goza sofrendo. Quando sentir dores se torna uma meta masoquista, pode surgir tambm, retroativamente, a meta sdica de infligir dores, que o prprio indivduo, ao suscit-la em outros, frui masoquistamente na identificao com o objeto sofredor (FREUD, 2010b, p. 48).

    Explicava-se, num primeiro momento, a satisfao masoquista pela identificao fantasmtica com a figura do sdico agindo sua agressividade via sadismo original; agora, tendo a dor aderido ao corpo, a satisfao sdica dialeticamente explicada pela identifi-cao fantasmtica ao dodo prazer masoquista. Mas Freud refreia a ideia da decorrente de um masoquismo originrio, encerrando o passe-passe dialtico. So restaurados os direitos do sadismo, a mais originria das metas: fruir a dor seria uma meta originalmente ma-soquista que, no entanto, s se tornaria uma meta instintual em al-gum originalmente sdico (idem, p. 48-49; negritos nossos). Deleu-ze o critica exatamente neste ponto:

    Freud invocava a hiptese de uma co-excitao libidinal, segundo a qual os processos e excitaes ultrapassando cer-tos limites quantitativos eram erotizados. Tal hiptese reco-nhece a existncia de um fundo masoquista irredutvel. por isso que, desde sua primeira interpretao, Freud no se contenta em dizer que o masoquismo o sadismo retorna-do; ele afirma, igualmente, que o sadismo o masoquismo projetado, j que o prazer do sdico reside apenas no prazer com as dores que faz sofrer o outro na medida em que ele viveu masoquistamente a ligao dor-prazer. Apesar disso, Freud no deixa de manter o primado do sadismo (DELEUZE, 1967, p. 91; itlicos e sublinhado nossos).

    As consequncias tericas de tal gesto ressoam em escritos pos-teriores como Bate-se numa criana (1919). O incmodo de Deleuze menos com a manuteno do sadismo originrio, e mais com a pri-mazia do papel do pai nos dois tipos de fantasias de espancamento analisadas por Freud, tanto as construdas em anlise pelas meninas, quanto a relatada por seu nico caso do sexo masculino: nos dois casos a fantasia de espancamento deriva de uma ligao incestuosa com o pai (FREUD, 2010a, p. 240). Nos dois casos, to distintos como os gneros que constitui: o menino e sua sexualidade ma-soquista vinculada feminilidade, logo passividade (como quis a tinta aqui misgina de Freud), e a menina e sua sexualidade viril, vinculada atividade. Para estas sexualidades to diferentes, mas ex-pressas, igualmente, em fantasmas de punio, o psicanalista querer encontrar o mesmo fundo: o pai como primeiro o objeto de amor. Na fantasia, um carrasco: nela, traveste-se o pai de indivduo adulto ou de professor, para elas, e com vestes de mulher, chicotes e peles,

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    para eles esta interpretao da cena faz da me mera coadjuvante. Abstrao grosseira suspeitava Deleuze.

    Mas como Freud descreve estas fantasias? Vimos que o maso-quismo seria o terceiro estdio do desenvolvimento da pulso sdica em As pulses e seus destinos: a pulso sdica encontrou o no-eu como seu primeiro objeto, ativa; num primeiro passe dialtico, o ob-jeto alterado e ela toma o prprio eu como objeto, no se podendo diz-la verdadeiramente ativa, pois o eu (a prpria pessoa, o neu-rtico obsessivo) que exerce a ao sobre si, padecendo a ao da pulso reflexiva; e um terceiro momento, propriamente masoquista, em que a pulso de humilhao encontrou um carrasco para exercer sua atividade sobre o eu. Este movimento em seus trs momentos ser vinculado aos casos analisados por Freud em Bate-se numa criana, descrevendo os processos de constituio da fantasia masoquista nas cinco meninas por ele analisadas, e em seu nico caso masculino. Para elas, tanto quanto para eles, bater significa amar. A origem desta mistura? O cime.

    A menina ama o pai. O pai no deve, para ela, amar outras pes-soas, me e irmos. Ela odeia estes outros e viveria esta pulso sdica caso uma fora de origem social no a impedisse; recalca, ento, a agressividade, e a soluo encontrada pelo psiquismo abat-la sobre o eu: sou batida, ela, ento, formula ou melhor: algum bate em mim a menina formularia, caso no intervisse um novo recalque. No apenas o sadismo que ela dirigiria ao mundo exterior, agora volta recalcado contra si, mas o recalque atua tambm no objeto desta agressividade retornada: aquele em quem se bate eu desco-nheo; uma criana qualquer. At o ltimo movimento defensivo de mascaramento: um adulto do sexo masculino bate num ou em vrios meninos. Este adulto: o pai travestido; estes muitos meninos: a menina viril.

    Da anlise das meninas, Freud passa a dos meninos. O recalque neles no to forte: quando o menino formula que uma criana batida, sabe ser ele o punido. Mas o que que sua fantasia se esfora em esconder, simbolizando-o? A homossexualidade constitutiva do amor pelo pai. Para que a pulso sdica o tome como objeto tendo outro ator como sujeito, este ator no poder nunca ser o pai, objeto de amor e de cime. Colocar o pai em cena na concluso do fantasma - o pai bate em mim - explicitaria a demanda de amor. Quem deve, ento, bater? A me. A me ou outra figura feminina a quem o amor pode enderear-se sem ameaar a heterossexualidade do sujeito. A me quem bate; quando usa o chicote, no entanto, seus direitos punitivos so, para Freud, metforas do pai: ela faz como se. Deleuze no pode concordar com isso: se os direitos da me so metafricos no se sai de dipo, no se fora, na anlise do masoquismo, a pensar em um mito inteiramente outro ser via Jung que Deleuze tentar faz-lo. Veremos.

    O fetiche como procedimento cinematogrfico: toro na verleugnung freudiana

    O fetichismo, definido pelo processo de denegao e do sus-pense, pertence essencialmente ao masoquismo (DELEUZE, 1967, p.

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    29), diz Deleuze. Lacan o havia compreendido como a perverso das perverses (LACAN, Seminrio XI, p. 62), transformando a l-gica fetichista de produo de um objeto capaz de negar a castrao da mulher num paradigma que inclui o conjunto dos procedimen-tos perversos (SAFATLE, 2010, p. 168). Vinculando o desmentido produo do fetiche, para Deleuze, Lacan quem teria mostrado, meritoriamente, toda a importncia de analisar como as resistncias descritas por Freud, de modos diversos, implicam um processo de denegao (a verneinung, a verwerfung, a verleugnung) (DELEUZE, 1967, p. 28). Via Lacan o fetiche dito essencial ao masoquismo por Deleuze. Que, se por conta disso, aparenta alinhar-se compreenso estrutural das subjetivaes do desejo (neurose, psicose e perverso)8, no o faz sem descentrar completamente o conceito de fetiche do terreno psicanaltico. Tomando de Freud o mecanismo de renegao ou desmentido conceitualizado em O fetichismo (1927), ele o altera profundamente: se recusa a tom-lo por um smbolo cujo valor seria metonmico num inconsciente estruturado como uma linguagem. O fetiche imagem.

    Se at 1924, a Verleugnung descrevia nos textos freudianos tan-to a negao psictica da realidade quanto a negao perversa da ausncia na mulher do falo, a partir deste momento o uso do termo restringe-se a uma operao especfica de renegao da castrao da mulher9, acompanhada da produo de um fetiche, como no mini mito do garoto masoquista. poca de suas especulaes sobre a ori-gem dos bebs, da insuportvel percepo da diferena sexual vivida por ele quando visualmente confrontado falta de pnis na me ou irm equivalente em seu psiquismo possvel supresso do seu como a sada do menino no foi recalcar, esquecer isto que foi simbo-lizado, neurotizao normal imperativa ao se tomar a srio a ameaa de castrao, a expulso do percebido teve lugar. Sem que tivesse implicado um no saber sobre a castrao. Na perverso, saber e no saber podem coexistir conjuntamente, diz Vladimir Safatle (SAFA-TLE, 2006, p. 48), num humorado jogo entre saber e crena, como se dissesse o masoquista: eu sei bem, mas mesmo assim10. Mas no se renega uma percepo11 sem pagar um preo, e o compromisso assu-mido pelo eu ao defender-se substitu-lo por um fetiche, este subs-tituto do pnis da mulher [...] em que o menininho outrora acreditou e do qual bem sabemos o porqu, no quer de modo algum abdicar (FREUD, 2007, p. 162). Para desmentir com sucesso a castrao, neu-tralizando o perigo, devem ser preservados os direitos desta me, seu

    8 Ou das no-subjetividades, se considerarmos com Lacan que na perverso, jamais houve nascimento do sujeito (HAFNER), pois o masoquista logrou ser o falo da me, o objeto que lhe falta. O masoquista no outra coisa seno seu objeto de desejo.

    9 Cf. SAFATLE, 2006, p. 49.

    10 Frmula de Octave Manoni num texto clebre sobre a estrutura da crena fetichista (SAFATLE, 2006, p. 50).

    11 Percepo, comenta Safatle, um termo que sempre suscitou problema no interior dessa teoria do fetichismo j que, de uma certa forma, a castrao feminina, como ausncia do pnis, um fantasma, e no uma realidade que pode ser percebida. [...] Notemos que o fetichista tem um saber sobre a castrao. Ele sabe atualmente que a mulher castrada. Nesse sentido, contrariamente psicose, h uma primeira simbolizao (Bejahung) da castrao(SAFATLE, 2006, p. 49; negritos nossos).

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    falo. Renega-se, assim, a imagem que lhe mostrou o contrrio. Deste terror restam a suspenso da curiosidade sexual e a fixao da per-cepo imediatamente anterior ao trauma. Objeto sexual privilegiado, o fetiche sempre parte ou aspecto de um objeto (brilho no nariz, pe-los, botas). As peas de roupa ntima, to frequentemente escolhidas como fetiche, cristalizam o momento de despir-se antes ainda de a mulher ser destituda do falo (FREUD, 2007, p. 164). O fetiche seria a simbolizao material do saber que, das diferenas sexuais, nada quer saber, sendo simultneos a recusa e o reconhecimento da vacn-cia do membro. Smbolo encarnado das duas afirmaes incompa-tveis (a mulher ainda tem o pnis e meu pai castrou a mulher) (FREUD, 2007, p. 165). A castrao desacreditada; o valor simblico do rgo sua potncia e absoluta presena foi transferido a outra parte do corpo ou a um objeto, no sem que o fetichista disso no saiba. Ele sabe, ele sabe algo sobre a castrao, e a atualizao do momento do trauma por meio do fetiche nas posteriores encenaes, num movimento paradoxal, dizer-lhe ia do deficit peniano da femi-nilidade, desmentindo-o: as peles, o chicote, representam o falo ou o poder que se sabe ela no ter; outorga um poder quela que se sabe no. Simbolizao ou negao da negao do falo, diz Lacan: como o menino no alucina psicoticamente um pnis onde ali no h, a constituio do fetiche no se d a partir da foracluso, que implica-ria o retorno alucinatrio do que foi negado, mas da renegao, que implica uma primeira simbolizao, um primeiro saber daquilo em que no se quer crer como negao, a Verleugnung constitutiva do fetiche difere das defesas prprias neurose (verneinung) e psicose (verwerfung). Aparentemente alinhado teoria psicanaltica, Deleuze afirma que, pelo fetiche, o conhecimento da situao real subsiste, mas de alguma forma suspenso, neutralizado (DELEUZE, 1967, p. 29). At acrescentar em outra passagem: A forma de denegao feti-chista No, me no falta nenhum falo- no mais uma forma de denegao (DELEUZE, 1967, p. 109). Como Deleuze interpreta o desmentido, ento?

    o princpio de que derivam todas as outras figuras, a anu-lao do pai e a renegao da sexualidade (DELEUZE, 1967, p. 109). Um plano fixo e congelado, uma imagem parada, uma foto a qual voltamos sempre para conjurar as sequncias desagradveis de uma explorao, o fetiche, assim definido (DELEUZE, 1967, p. 29). Imagem e no smbolo. A renegao deve ser compreendida como um procedimento cinematogrfico, mais que como um meca-nismo psicolgico, sugere Geyskes com tinta deleuzo-bergsoniana (GEYSKENS, 2010, p. 108). Talvez a negao do carter simblico do fetiche expresse j em 1967 a recusa estruturao do inconsciente como linguagem ou cadeia significante: o inconsciente no procede por metonmias o fetiche que, tomando parte pelo todo, condensaria em si enquanto objeto ou parte do corpo duas afirmaes distintas, negando a negao do falo. Seguindo Freud e Lacan, Deleuze atribui noo de fetiche um papel estruturante no masoquismo at segunda ordem: ele a transforma radicalmente, e no toa a escolha do vo-cabulrio bergsoniano de imagem, como veremos. Distante da leitura lacaniana segundo a qual uma simbolizao primeira da castrao

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    (bejahung), correlata entrada do perverso na linguagem imerso alienante de sorte que o sujeito consegue instaurar o Nome-do-Pai a fim de se distanciar da me, exemplificada na presena evidente do pai no fantasma Bate-se numa criana (SAFATLE, 2010) -, Deleuze insiste na total independncia da estruturao do mundo simblico com relao ao pai ou simbolizao de uma Lei. Que a articulao entre fetichismo, desejo e constituio do fantasma deva-se a Lacan, para Deleuze, o fetiche nada tem a ver com a ameaa paterna freu-diana, nem com a castrao simblica lacaniana, isto , com uma negao que pressups um reconhecido simbolizado; o mundo onde o perverso se situa deve-se to-s sua aliana contratual com a me.

    Todas as figuras derivam do fetichismo como um procedimen-to de corte: a renegao fetichista tira a mulher do movimento da sexualidade genital e a isola num mundo imaginrio de fotografias congeladas (GEYSKENS, p. 109), diz Geyskens. A renegao do ge-nital feminino produz, em primeiro de tudo, uma idealizao da mu-lher como deusa-mulher fria sem desejo, que no quer nada (idem, p. 108), aproximada por Freud em Sobre o narcisismo de 1914, do charme de certos animais que parecem no se preocupar conosco, como os gatos e uma grande quantidade de animais de rapina. A sexualidade genital menos extinta por este procedimento, Deleu-ze insiste, que suspensa, aguardada para sempre: espera sem fim, constitutiva do romance. A castrao , portanto, imagem, no sim-bolizada, cristalizada no fetiche e produtora de outras imagens: ela reconduz ao arqutipo original da me este, sim, estruturante do fantasma do sujeito.

    Nem pai, nem culpa, nem dipo: foracludo o supereu de instituio, o masoquista contrata

    O pai, como porta-voz da castrao, nunca esteve, nunca teve fora de Lei. O pai fraco; sua fraqueza em mim que deve ser expiada, diz o masoquista, imaginariamente identificado a ele, que inexiste simbolicamente como Lei. A identificao no ocorre com a me castrada para a qual se apresentaria como falo destinado a cobrir-lhe o furo, angustiando-a ao fazer-se objeto de seu desejo, ocupando simultaneamente as duas posies12, como teorizou Lacan; e, sim, com o pai castrado. Pai, aqui, no Nome de famlia. No nomeia as organizaes sociais, nem seus interditos institucionais; escrito em minscula, nunca teve fora de Lei tudo menos dipo. Tudo menos dipo, pois, nas cenas masoquistas onde Freud esforou--se por reintroduzir o pai ausente dos contedos manifestos como elemento da fantasia inconsciente, Deleuze insiste na inexistncia da funo paterna para o filho. Quando insiste que no para apaziguar a culpa que um escravo se faz batido por uma senhora, por que na fantasia masoquista sequer h culpa a ser expiada; no h vontade de transgresso da Lei representada por uma figura paterna diante da qual o masoquista se sentiria culpado, no h desejo de incesto com a

    12 O fetiche como elemento estruturante do fantasma masoquista suportaria a ciso constitutiva do perverso, pela qual ele imaginariamente identifica-se tanto com a me castra-da quanto com o falo que lhe faltaria Cf. SAFATLE, 2006, p. 50.

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    me condicionado pelo interdito do qual a figura paterna seria porta--voz. O masoquista no perde tempo assassinando um pai h muito tempo morto. Sem culpa, o que ele faz bater em si sua semelhana fisiolgica ao pai, o pnis herdado, nas cenas masoquistas no qual nem ele, nem sua me ou a mulher sdica acreditam: o pai que o culpado no filho, e no o filho com relao ao pai (DELEUZE, 1967, p. 88). Quem bate no o supereu no eu, resultante para Freud da internalizao da identificao paterna; quem bate no o supereu no eu travestido de mulher para que o perverso fuja de sua homosse-xualidade hiptese de Bate-se em uma criana. O masoquista no tem supereu, o sdico no tem eu Deleuze retomava a hiptese de Lagache; uma primeira simbolizao da Lei, como quis Lacan, no houve. Houve sim, ao contrrio, foracluso do Nome-do-Pai, e por isso que, no romance, a figura paterna a personific-la aparece ape-nas de forma alucinatria o grego que, em Severin, bate. Se h pai para alm deste evento alucinatrio, apenas como objeto de iden-tificao imaginria para o masoquista: fazer castrar-se pela me dele se diferenciar, condio do incesto contratado.

    Deleuze diverge da psicanlise ao pensar a relao entre castra-o e Lei. Na grande revoluo masoquista, quando corporificada no papel da dominatrix, a Lei nada interdita. Destinada a regular o gozo no mundo patriarcal (hiptese repressiva que vai de par com o con-ceito de sublimao, odioso para Deleuze), a Lei aqui parodiada: as restries enunciadas pela dominatrix so, na verdade, clusulas con-tratuais, previamente acordadas entre iguais. Longe de reprimirem o desejo, provocam ereo. No tendo havido uma primeira simboli-zao de Lei, pois foi o masoquista a foracluiu hiptese que afasta Deleuze de Lacan (para o psicanalista, no teria havido este tipo de denegao caracterstica da psicose) , contratar torna-se urgente. Embora reconhea o valor da profunda lei de foracluso formulada por Lacan, Deleuze acusa seu erro em consider-la original, inde-pendente de toda etiologia materna: a desfigurao do papel da me seria, sobretudo, o efeito, da anulao do pai pela foracluso, e no sua causa.

    H de se espantar quando se v a psicanlise, nas suas ex-ploraes mais avanadas, vincular a instaurao da ordem simblica ao Nome-do-pai. Isso no o mesmo que manter a ideia, to pouco analtica, de que a me da ordem da na-tureza, e o pai, o nico princpio de cultura e representante da lei? (DELEUZE, 1967, p. 56).

    Piera Aulagnier , para Deleuze, quem teria parecido restituir me certo papel de agente simblico ativo em suas Observaes sobre a estrutura psictica. Mas para compreender o mito encenado pelo fantasma masoquista em suas amarras contratuais constitu-tivas da armao simblica de seu mundo, preciso considerar a importncia da linhagem bergson-junguiana no pensamento de De-leuze, magistralmente explorada por Cristian Kerslake em Deleuze and Unconscious.

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    Os contratos de Leopold von Sacher-Masoch8 de dezembro de 1869: Contratam mutuamente o cavaleiro

    Leopold von Sacher-Masoch e a madame Fanny Pistor Bagdanow, por seis meses, comeando e terminando segundo o capricho da so-berana. L-se no documento por ele redigido.

    Pela sua palavra de honra, o senhor Leopold de Sacher-Ma-soch compromete-se a ser o escravo de Madame de Pistor e a executar absolutamente todos os seus desejos e ordens [...] Em contrapartida, Madame de Fanny no lhe solicitar nada de desonrante [...]. Alm disso, ela dever deixar-lhe seis horas por dia para seu trabalho, e jamais olhar suas

    cartas e escritos [...] O sujeito obedecer sua soberana com uma submisso servil e acolher seus favores como um dom alegrador. Ele no ter nenhuma pretenso a seu amor, nem direito algum a ser seu amante. Em contrapartida, Fanny compromete- se a vestir peles o mais frequentemente poss-vel e, sobretudo, quando ela for cruel para com ele (Contrat entre Mme. Fanny de Pistor et Leopold de Sacher-Masoch in DELEUZE, 2007, p. 255-6).

    1870: Contratam Sacher-Masoch e Wanda von Dunajew (pseu-dnimo de Angelika Aurora Rmelin, sua futura primeira esposa, dcil, exigente e antiquada (DELEUZE, 1967, p. 8)). O objeto do contrato a escravido de Leopold, sem prazo de expirao: se acontecer a voc de no mais poder suportar minha dominao, escreve Wanda, e que suas correntes se tornem demasiadamente pesadas, ser necessrio matar-se: eu nunca lhe darei a liberdade (Contrat entre Wanda et Sacher-Masoch in DELEUZE, 1967, p. 257). As clusulas foram endurecidas, as honras de homem e de cidado de Leopold no mais lhe pertencem, tampouco suas seis horas dirias de trabalho das quais Fanny contratara ausentar-se: no h mais a propriedade do nome, o Nome-do-Pai, a defender enquanto escritor. Em contrapartida, Wanda nada deve. Tudo o que lhe acordar de agradvel e de feliz, as crueldades vestidas de estopas e casacos de peles, sero por graa. A lei fetichista do primeiro contrato (obriga-toriedade de cobrir-se de peles) no vigora aqui; para Wanda, nada interditado. J Sacher-Masoch, redige ela,

    dever cumprir tudo o que eu pedir, para o bem ou para o mal, e se eu exigir- lhe um crime, voc dever tornar-se um criminoso para obedecer a minha vontade. Sua honra me pertence, como seu sangue, seu esprito, sua potncia de trabalho. Sou sua soberana, senhora de sua vida e de sua morte (Contrat entre Wanda et Sacher-Masoch in DELEUZE, 1967, p. 256-7).

    Leopold hesitou assinar, segundo as Confisses de Wanda. O motivo, escreveu Masoch: Na sua carta de ontem, voc foi ainda mais longe; voc foi longe demais ao declarar que no me daria ja-mais minha liberdade, enquanto voc se deu o direito de me aban-donar a qualquer momento (Contrato reproduzido em SCHLICHTE-GROLL, 1968, p. 62).

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    O romance de adestramento como caso literrio de Deleuze.1870, ano de publicao do romance A Vnus das peles:

    Enquanto escravo de Madame von Dunajew, ele dever chamar-se Gregor, satisfazer todos os desejos desta dama, obedecer a cada uma de suas ordens, submeter-se a sua se-nhoria e considerar cada um dos signos de seus favores como uma graa extraordinria (). A madame pode castigar seu escravo a seu bel-prazer, pela menor negligncia ou menor falta , maltrat-lo da maneira que mais lhe agradar de acordo com seu humor ou por distrao -, tem, at mesmo, o direito de mat-lo - se isto lhe agradar; ou seja: ele torna--se sua inteira propriedade. Em contrapartida, Madame von Dunajew promete, enquanto sua senhora, aparecer sempre que possvel vestida com peles, particularmente quando ser cruel para com seu escravo (DELEUZE, 1967, p. 195).

    Severin e Leopold, protagonista e autor, tingiram de negro o papel, assinatura a tornar-lhes coisa destituda de vontade, pura ma-tria, sangue sem esprito posto a trabalhar: propriedade do outro. Renunciaram vontade como vida: Recopiei vivamente algumas linhas que faziam de mim um suicidado e dei-as a Wanda (SACHER--MASOCH, 1967, p. 197). Fazer-se coisa, suicidar-se pelas mos e pa-lavras do outro... Agora me d seu passaporte e seu dinheiro (idem, p. 197), exigia a ento constituda senhora ao Cristo Leopold recm--nascido Gregor. Resta saber se o masoquista, quando contrata, s est fazendo arte, ou se sua renncia finda ao levantarem-se as cor-tinas (isto , com a apario alucinatria de um terceiro elemento na cena, o grego, antes foracludo de seu mundo simblico pelo acordo com a me).

    O contrato um dispositivo paradoxal e toda a operao ma-soquista consiste em desvel-lo: exigindo as assinaturas de homens livres e iguais ( assinado entre dois masoquistas e no entre um sdico e um masoquista, segundo Deleuze), por livre vontade, o con-trato permite acordar a paradoxal anulao de uma das partes. O complicado da coisa masoquista que a parte escrava no efetiva-mente anulada; sussurra ao carrasco aquilo a que deve lhe submeter. O carrasco, igualmente masoquista e por que masoquista -, deixa-se adestrar. Resta saber se o protagonista no tremer diante da possi-bilidade no mais fantasmtica de sua morte esta senhora absoluta que recusa ser parodiada pelo chicotinho. Severin, personagem de Masoch, tremeu; Masoch, o escritor, hesitou.

    O personagem obedecia ao contrato at que Wanda pareceu lhe preterir a outro homem, forte e viril. De doce, Wanda tornou-se cor-tes, vulgar (!). Ele, que queria ser um filho da me, a boa, no se admitiria como um filho da outra. Severin, o ento escravo Gregor, foge, rompendo o contrato. Sem passaporte, nome, um tosto sequer. Mas como deixar Florena?, pergunta-se. Mais vale a pena men-digar honestamente do que comer o po de uma cortes (idem, p. 233). A deusa amada havia, para ele, rebaixado-se. Desacreditando de seu argumento, hesita: o contrato, sua palavra, sua honra. Oh, que vergonhoso! Eu quero fugir e no posso (idem, p. 232). Retor-nando casa, pensa: ela pode me matar, eu no; no entanto, j no quero viver mais (idem, p. 234). Ela pode, ele no. Ele no pode fu-

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    gir; o suicdio ele tambm no pode quer ser o suicidado dela, que ela queira suicid-lo. Ele no pode quebrar o contrato; o contrato o garante de sua existncia simblica Deleuze insiste neste ponto.

    Passado um tempo do retorno de Severin casa, aparente re-conciliao entre eles ocorre. Do grego forte e viril j no se fala mais, o cime est ausente. Voc sabe que hoje estou muito apaixo-nada por voc?, murmura Wanda, e afasta os fios de cabelo sobre os olhos de Severin, beijando-os. Como so belos seus olhos! Foram sempre o que mais me seduziu em voc, mas hoje, literalmente, me entorpecem. Eu sucumbo (idem, p. 240). Mais doce do que nunca, Wanda dirigia-se a ele, at que...

    O Grego entra em cena. A fantasia evanesce. Mesmo Severin tendo assinado que suas vontades no so seno as de sua soberana, nada tendo - virtude, honra, trabalho intelectual -, seno o que concedido pelo desejo dela, quando o definitivo exerccio das vonta-des de Wanda se realiza, quando ela escapa do adestramento e quer para fora do desejo de Severin, ordenando ao grego Ento o chico-teie!... isto Severin no podia imaginar! No podia imaginar que ao lhe prometer o mximo de prazer (idem, p. 242), puni-lo seriamente para intensificar sua paixo por ela (idem, pp. 240-241) que ela entre-garia o chicote a seu rival (idem, p. 242), tendo com ele pactuado. Severin ameaa gritar por socorro: Me solte! Eu digo furioso. Me solte! Eu digo ameaando desta vez, seno... eu traciono as cordas (idem, p. 243). Severin ordena ao grego que no o toque - Eu no suportarei nada de voc!- e dirige um Bruta! a Wanda (idem, pp. 243-244). Quanta revolta em algum to submisso! Eu sonhei, por um instante, em me vingar, em mat-lo. Mas eu estava vinculado a este miservel contrato: nada podia fazer seno manter minha pala-vra e apertar os dentes (idem, p. 246).

    Foracluso e mundo sem Outro: da necessidade do contrato

    O sucesso deste livro que, depois dele, todo mundo falou do contrato masoquista, enquanto antes era um tema puramente acessrioGilles Deleuze em carta a Arnaud Villani, de 29 de dezembro de 1986

    Retomou-se o texto de Masoch, pois, deste caso literrio, Deleu-ze parte. Os rituais masoquistas so institudos por contrato: excluem--se a espontaneidade e o acaso, tudo o que acontecer prescrito. Normalmente concebido em data precisa e com durao determinada, nunca eterno diferentemente do segundo contrato assinado pelo escritor , a essncia deste dispositivo jurdico moderno reside no livre acordo entre os sujeitos, na reciprocidade: o contrato funda-se no reconhecimento do desejo entre iguais homens, nas sociedades modernas patriarcais. O caso do masoquismo sua implementao mais paradoxal. Se, numa sociedade patriarcal, as relaes entre me e filho, tidas como naturais, fogem expresso contratual o contra-to fundaria as relaes hierrquicas entre homens de associao e de troca de mulheres e objetos o masoquista subverte esta lgica: ele instala a mulher no corao de uma relao de autoridade a partir

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    de um duplo pardico e subversivo do contrato de casamento (KA-ZARIAN, 2009, pp. 114-115). Portador de uma inteno paradoxal, o contrato de escravido de uma das partes concebido pela vtima, a parte viril (DELEUZE, 1967, p. 80) - o masoquista empreende um grande trabalho de convencimento; sem o que, Wanda no teria abandonado o estado inicial de receio em malograr corresponder ao desejo de Severin, de ser cruel para com ele.

    Digno, o masoquista contrata perder sua dignidade nas ence-naes restritas espao-temporalmente, ritualizadas. Como contra-partida, Wanda deve vestir peles. Deste modo, o prprio masoquista o responsvel por sua anulao e a mulher, aparentemente, seu instrumento. A mulher amada no , de forma alguma, sdica por natureza, mas lentamente persuadida, adestrada para sua funo (DELEUZE, 2007, p.1). Sacher-Masoch: o frio e o cruel lido como um romance de adestramento na reviso crtica de Deleuze, mostra de Severin seu outro lado, uma criatura desconhecida: o outro Masoch (MICHEL, 2007, p. 5). Frio e cruel no seria muito mais ele, a costu-meira vtima, como bem notou Rgis Michel?

    A dupla funo do contrato : adestrar13 a mulher para cor-responder a um ideal constitudo na oscilao entre as imagens da me fria e da devoradora , isto , adestr-la para encarnar, do-cemente, a crueldade e a frieza atravs da obediente execuo das prescries contratuais, sem satisfazer-se com seus genitais a tor-tura no deve ser sdica, nem sexual, mas sentimental; e perpetuar a foracluso paterna pela inverso revolucionria de seu papel na sociedade patriarcal.

    Sobre a idealizao da mulher via dispositivo jurdico, interes-sa bastante a intuio de Deleuze de que a mulher s se presta ao adestramento por ser, ela mesma, masoquista. A mulher-carrasco escapa de seu prprio masoquismo tornando-se masoquizante nesta situao, diz Deleuze. Se na perverso distinguirmos o sujeito (a pessoa) e o elemento (a essncia), podemos compreender como uma pessoa escapa de seu destino subjetivo, mas de forma apenas parcial, mantendo um papel na situao que lhe apraz (DELEUZE, 1967, p. 38; itlicos nossos). Sem dedicar mais uma s linha a esta indita distino entre sujeito e essncia neste texto de 67, este vocabul-rio metafsico s ganha sentido se remetido a seu emprego anterior em Proust e os signos, de 1964. Nele, mobilizava-se o conceito de essncia para pensar o processo de individuao como a atualizao de um tema transindividual nas relaes amorosas pelas quais os sujeitos se constituem. Tambm designado por Deleuze: arqutipo. Se negligenciada a influncia, ora mais explcita, ora menos, de Jung

    13 Com esta interpretao acaba se aproximando num ponto da descrio do maso-quismo por Krafft-Ebbing. Para o psiquiatra, o masoquismo realizava uma relao de poder essencialmente fundada na inverso dos sexos, a mulher dominadora, e o homem assujeitado. Mas quem fala em pedagogia, em adestramento, no fala, necessariamente, em poder e em submisso?Talvez seja para fugir disso que Deleuze e Guattari redefinem o que entendem por adestra-mento em Reapresentao de Sacher-Masoch (1989). O adestramento daquela que dever transmitir as foras animais adquiridas s foras inatas do homem (DELEUZE, 1997, p. 65) permitindo-lhe atingir uma zona de indeterminao, uma intensidade, que no se pode ligar aos significantes ou homem ou mulher ou animal.

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    no pensamento de Deleuze, perde-se a possibilidade de compreender esta etiologia alternativa ao masoquismo que ele elabora.

    Quanto a sua insistncia em uma identificao entre os maso-quistas como fundamento do contrato devido a uma regresso a um mesmo arqutipo, como veremos , podemos l-la no texto literrio a partir da simetria das posies de Wanda com relao ao grego, e de Severin face a ela.

    Eu no posso mentir ela responde, docemente, aps um instante de silncio. Ele me causou uma impresso que no posso compreender. Sofro e tremo. uma impresso que encontrei retratada pelos poetas, que vi encenada, mas que tomava por uma viso da imaginao. Oh! um homem se-melhante a um leo forte, belo, orgulhoso e, no entanto, sensvel. Ele no rude como os homens de nossos pases nrdicos. Tenho piedade de voc, acredite em mim, Severin; mas preciso que eu o possua, ou melhor, preciso que eu me d a ele se ele quiser isso de mim (SACHER-MASOCH, 2007, p. 230).

    preciso que eu, Wanda, me faa objeto do grego, do gozo deste outro que, simetricamente idealizao de Severin face mulher, oscila entre duas imagens: sua fora, orgulho e beleza felinas, por um lado equivalentes crueldade e frieza por Severin constitutivas do Ideal de mulher e sua sensibilidade equivalente doura. A este espelhamento nas posies Deleuze alude rapidamente, distante de qualquer teorizao sobre projees ou intersubjetividade; talvez porque, tendo sido o Nome do Pai foracludo, ao participarem da mesma essncia ou arqutipo da me devoradora, os masoquistas ex-perimentem um mundo sem Outro, como sugere Geyskens, com efeitos severos na percepo, no desejo e na sexualidade. O Umwelt masoquista desumanizado e desestruturado: o Outro e sua opacida-de foram perdidos. No ocorreu uma primeira simbolizao da Lei, o fetiche no smbolo da castrao, mas imagem que atualiza o ar-qutipo da Me devoradora, como veremos. No mundo masoquista,

    o objeto perde sua significao, pois o Outro destrudo. A senhora [dominatrix], no masoquismo, no um outro su-jeito. O masoquismo no uma relao intersubjetiva. Na perverso, o outro no funciona como um Outro que estrutu-ra um mundo como um mundo de possveis perspectivas. A perverso uma dessubjetivao radical do outro, queda: de um mundo estruturado passa-se a um mundo dessubjetivado de foras e elementos, a uma ertica fotogrfica de intensi-dades puras (GEYSKENS, 2010, p. 115).

    Sobre a foracluso, segundo mecanismo assegurado pelo con-trato, Deleuze a reconhece na ltima cena do romance na qual Se-verin chicoteado por seu rival. O contrato no inclua o grego; o pai expulso retorna, esfacelando a fantasia e o mundo simblico de Severin. O pai no retorna de uma maneira simblica, distorcida na fantasia masoquista, como em uma neurose, mas seu retorno alucinatrio o fim da fantasia. Por sua conta, Deleuze enuncia a profunda Lei de Lacan: a denegao simblica do Pai implica seu re-torno alucinatrio no Real. Tal como Lacan a definiu, a foracluso, Verwerfung, um mecanismo que se exerce na ordem simblica e que

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    se exerce essencialmente sobre o pai, ou, sobretudo, sobre o Nome--do-Pai, diz em nota (DELEUZE, 1967, p. 57). Longe de ser a verdade do masoquismo, diz o filsofo,

    longe de selar sua aliana com o sadismo, o retorno ofensivo da imagem do pai marca o perigo sempre presente que amea-a do exterior o mundo masoquista, e que faz ruir as defesas que o masoquista construiu como condies e limites de seu mundo perverso simblico (DELEUZE, 1967, p. 58).

    O arqutipo da me devoradora na etiologia do masoquismoContra a depreciativa inflao do papel paterno na etiologia

    do masoquismo por Freud, Deleuze vincula esta perverso regresso a uma imagem transcendental atuante nas camadas menos superfi-ciais e individualizadas do inconsciente (DELEUZE, 2007, pp. 5-7). Esta neurose prxima psicose dever-se-ia atualizao desta imagem original que ultrapassa toda a experincia - contanto que, sugere Deleuze em De Sacher-Masoch ao masoquismo (1961), a interpretemos maneira de Jung, como um arqutipo das camadas profundas do inconsciente (idem, pp. 5-7). Todavia, nenhuma refe-rncia explcita ao psiclogo feita seis anos depois em Apresenta-o de Sacher-Masoch, salvo a primazia atribuda imagem materna na gnese do masoquismo. Trata-se de uma referncia quase-secreta, pois o arqutipo no aparece mais como um conceito, mas dissol-vido na trade das imagens maternas: a me oral ou devoradora, a hetairica e a edipiana. Esta trade articula o mito do renascimento descrito por Jung teoria da histria de Bachofen, conhecida pelo psiclogo. Para Jung, as etiologias da neurose e da psicose no seriam determinadas por um vivido traumtico sexual passado, mas por uma exigncia de adaptao do indivduo ao presente, a partir da qual se atualiza uma imagem originria no desenvolvimento tanto individual como da espcie humana. Qual seja: a imagem materna.

    O masoquismo a percepo da imagem materna ou da me devoradora (DELEUZE,1967, p. 8), diz Deleuze. Atualiz-la a fun-o dos ritos sexuais, requerida pelo Instinto de morte: a mulher sdi-ca adestrada para desempenhar este papel, o sofrimento suportado para ela. Regresso fantasmtica pela qual o masoquista capturado em outra ordem do tempo: tudo aparece-lhe suspenso em uma espera mais profunda, mais prxima das fontes da vida e da morte (DELEU-ZE, 1967, p. 62) - por isso o carter dito por Deleuze transcendental, vinculado experincia do tempo, do Instinto de morte. Veremos. Compreender a sexualidade como intrinsecamente regressiva era es-sencial para Deleuze, nesta poca at Diferena e repetio, comenta Kerslake (KERSLAKE, 2007, p. 2).

    Regride-se pela encenao fantasmtica e contratada do mito de devorao e renascimento, descoberto nas anlises de Jung em Transformaes e smbolos da libido: o heri entra no mar negro da morte do ventre materno e renasce no crepsculo. Mito cuja emer-gncia fantasmtica tanto mais forte quanto o peso atrelado imagem materna como imagem do passado (KERSLAKE, 2007, p. 81): nas memrias e na fantasia imerso, ou a natureza animizada pelo indivduo, a psictica regresso primeva simbolizao, ou o

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    homem se torna profundamente doente, um fantasma em vida, praticamente morto, pois experimenta em seu corpo o bloqueio do desenvolvimento do instinto sexual.

    Jung recusa o postulado freudiano da libido como sexual e, numa veia bergsoniana, subsume o conceito de energia psquica ao mais amplo de energia vital, como sugeriu Kerslake. No indiv-duo, como na espcie, esta energia se desenvolve: inicialmente vital e no sexual, a energia torna-se desejo psicolgico, obedecendo aos imperativos de reproduo da espcie. fase pr-sexual nutritiva, primeiro momento do desenvolvimento biolgico do organismo na qual imperativa a reproduo de seu prprio corpo individual, se seguiria a fase de sexualizao da libido, na qual torna-se imperativa a reproduo da espcie e o instinto sexual sentido, psicologica-mente, como desejo14. E se a transformao da libido evolutiva, h iminente risco de involuo: ambos os casos descritos por Deleuze do homem assolado pela imagem materna, tanto no masoquismo como na psicose prxima neurose, determinam-se pela regresso da libi-do a um estgio no sexual, por sua dessexualizao.

    *

    Para Jung, as psicoses seriam ocasio que nos fora a pensar no apenas na perda do princpio de realidade, mas em como se d a constituio da realidade para um sujeito15. E se Freud, na anlise de Schreber, atribua a gnese de sua psicose regresso da libido, sempre sexual, a uma fase anterior no desenvolvimento psquico, de-vido falha em fixar-se num objeto heterossexual aps o narcisismo (isto , aps a unificao das pulses, antes polimorfas, na eleio do eu como objeto); se o problema da perda do princpio de realidade para o psictico, Freud resolve decretando como causa sua fuga da homossexualidade16, para Jung, esta a ocasio privilegiada para se pensar a constituio da realidade nas neuroses, articulando o de-senvolvimento individual e psquico ao do pensamento na espcie. Transformaes e smbolos da libido tem como subttulo: uma contri-buio histria da evoluo do pensamento. Indagar-se pela gnese do princpio de realidade na individuao indagar-se pela evoluo do pensamento, neste livro bizarramente estruturado no qual osci-lam descries histricas, escavaes mitolgicas e etimolgicas. Para Jung, aquilo que nos aparece como realidade sofreu um processo de desanimizao: que, na modernidade, o pensamento e o conhecimen-to da realidade sejam marcados pela objetividade, isto se segue do abandono da simbolizao mgica e animista, repleta de associaes

    14 Se a descrio do desenvolvimento do organismo e de suas funes ancora-se num evolucionismo ou numa metafsica, isto fica vago no texto junguiano, segundo Kerslake. Cf. KERSLAKE, 2007, p. 75.

    15 Cf. KERSLAKE, 2007, p. 75.

    16 No livro Jung de ruptura com Freud, Transformaes dos smbolos da libido, de 1912 (traduzido como Psicologia do inconsciente) so criticadas: a etiologia freudiana das psicoses, pensada no caso Schreber como perda do princpio de realidade devido regresso da libido fase sdico-anal, e a compreenso da libido como sexual, os desejos e prazeres infantis es-tando evolutivamente agrupados em fases (oral, anal, genital), tendo no narcisismo seu telos. Cf. KERSLAKE, 2007, p. 72.

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    desde ento consideradas fantasiosas e onricas. Ao perguntar-se so-bre a origem desta primeira forma de simbolizao, o psiclogo a atribui represso da libido sexual vinculada me: o princpio de realidade decorre da represso do desejo incestuoso isto nada tem a ver com a caricatura de um Jung espiritualista, como aponta Ker-slake (idem).

    No poderia jazer a origem do fogo, exemplifica Kerslake, no redirecionamento da libido incestuosa reprimida na perfurao rit-mada de buracos na madeira, ou no ato de esfregar os galhos um con-tra o outro, produzindo o fogo como um subproduto? (KERSLAKE, 2007, p. 77). Friccionar sexualmente a matria encontrada, devido represso da energia sexual ligada me, tem como efeito a desco-berta dos poderes da realidade junto emergncia dos smbolos a esta imagem vinculados. Se a realidade originalmente aparece como animista, dotada de poderes mticos, isto se deve ao fato de derivar da represso da imagem da me, comenta Kerslake: A realidade ento imediatamente simblica, e um subproduto da libido inces-tuosa represada (KERSLAKE, 2007, p. 77). O porqu desta represso ambivalente no texto de Jung, como nota Kerslake17 -, no decorre da proibio do incesto, como em Freud.

    *

    Da presena histrica do tabu do incesto nas diferentes cul-turas, desta lei como um fato universal nas associaes humanas, Freud prova que o contedo por ela interditado a precedia: o desejo do incesto condiciona a existncia da lei. Ela causada pelo desejo supostamente anterior. O segundo movimento lgico identificar a aplicao da lei represso. Jung ope-se a esta ideia e se enderea em carta ao psicanalista: O incesto proibido no porque deseja-do. O incesto proibido por que a ansiedade livre flutuante ativa regressivamente o material infantil e transforma-o numa cerimnia de expiao (como se o incesto tivesse sido ou pudesse ter sido dese-jado) (JUNG apud Cf. KERSLAKE, 2007, p. 77). O incestuoso no est necessariamente presente no material infantil, mas na ativao deste material por uma ansiedade livre e na represso da decorrente sob a forma disponvel de um tabu. Mesmo argumento repetido no Anti--dipo, citado por Kerslake:

    A lei nos diz: voc no deve casar com sua me e no deve matar seu pai. E ns, docemente sujeitos, dizemos a ns mes-mos: ento era isso que eu queria! age-se como se fosse possvel concluir, diretamente, da represso psquica a natu-reza do reprimido, e das proibies, a natureza do proibido (DELEUZE e GUATTARI apud KERSLAKE, 2007, p. 204)

    Diferentemente de Freud, para Jung, a constituio de um prin-cpio de realidade no se explica pela sublimao do desejo inces-tuoso prprio sexualidade infantil ps-ameaa de castrao, isto , pela entrada em uma fase de latncia do desejo; mas se explica

    17 Cf. KERSLAKE, 2007, p. 77.

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    pela transformao da libido voltada me, ps-represso, em uma energia no mais sexual: o smbolo materno , ento projetado na Natureza. Reprimida quando sexual, a libido transforma-se dotando a natureza de smbolos e de uma consistncia ontolgica a realidade, para aquele que nela se individua. A transformao da libido, diz Kerslake, produz uma transformao correspondente no modo como o mundo aparece para o ser humano primitivo (KERSLAKE, 2007, p. 76). Jung compreender, ento, a perda do princpio de realidade nas psicoses pela regresso no a um estgio infantil j sexual, como Freud, mas a uma etapa prvia da individuao enquanto membro da espcie humana, a outro modo de pensar como sua herana filogen-tica. Fora da realidade, o psictico regride a um simbolismo inter-nalizado nas camadas mais profundas do inconsciente algo desta descrio ressoa em O Anti-dipo: um feiticeiro, um conjurador das foras, o esquizofrnico est o mais prximo possvel da matria, de seu centro intenso e vivo (DELEUZE & GUATTARI, 1972, p. 26). Ne-nhum sintoma teria, para Jung, sua causa suficiente na sexualidade.

    Sem negar, todavia, a participao da sexualidade nos sintomas, relativizando sua centralidade como determinante destes efeitos no psiquismo, o psiclogo mira as etiologias das neuroses elaboradas por Freud, tanto a do trauma sexual, como a teoria substitutiva do aprs coup. Motivada pela descrena do psicanalista na verdade dos relatos de suas neurticas, esta substituio terica do trauma pro-blemtica da fantasia provaria, para Jung, a fraqueza da hiptese freudiana de uma infncia j sexual; se a simbolizao de um evento passado ocorre apenas no segundo tempo da puberdade, aprs coup, por que atribuir aos vividos da infncia um carter sexual apenas posteriormente experimentado? Tampouco ele teria suficientemente explicado o porqu de haver um recalque no primeiro tempo da in-fncia, se uma instncia moral repressora s constituda posterior-mente. Jung critica o peso determinante desta memria supostamente sexual, recalcada, nas fantasias presentes. Os sintomas atuais no so determinados por uma experincia sexual passada, ento esque-cida, mas por uma regresso motivada pela urgncia de adaptao ao presente. Deve-se ao imperativo de resoluo de um problema atual a abertura para o futuro, sua criao que convoca, do passado, a memria e a virtualidade para atuarem imagtica e simbolicamente no presente. Se no h motivo para a represso sexual na infncia, comenta Kerslake,

    ento, no devemos olhar para outros traumas no nvel infan-til, mas para a possibilidade de que condies retrospectivas tem que ser preenchidas para o evento ser visto como traum-tico. O simbolismo do evento anterior deve ser relevante ao problema atual [...] Pode ser uma falha de adaptao no pre-sente que reativa a memria adormecida. A regresso psicol-gica deve ser vista, em primeiro lugar, como uma regresso na vida real motivada por um problema adolescente ou adulto. No estamos determinados por traumas originais, como diz Freud; se o trauma existe no passado, ele s pode exercer sua influncia na ressonncia com o problema corrente no

    presente (KERSLAKE, 2007, p. 80).

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    O arqutipo e suas fontes: o instinto bergsoniano e o transcendental kantiano

    Os arqutipos so percepes internas das imagens originais ativadas pelo instinto afirma Deleuze, parafraseando uma passa-gem-chave da conferncia Instinto e inconsciente, proferida por Jung em 1919. Este conceito junguiano, segundo Kerslake, tem suas fontes tanto na teoria do instinto de Bergson, como na teoria kantiana da imaginao produtiva - qual Jung alude, confusamente, no artigo O papel do inconsciente de 1918 (Cf. KERSLAKE, 2007, p. 2). Desig-nando uma imagem inata e a priori, o arqutipo funde o conceito bergsoniano de instinto s condies a priori da produo do fantas-ma: o tempo e o espao como formas da intuio. Em Apresentao de Sacher-Masoch, quando Deleuze torce a noo de pulso de morte conceitualizando-a como Instinto de morte contra a psicanlise bastante ocupada em acentuar seu carter cultural, tecido entre o bio-lgico e o psquico no outra coisa a visada por ele: distanciando--se da compreenso freudiana da pulso de morte como retorno ao inorgnico (duramente criticada em Diferena e Repetio), uma das acepes que a ele interessa neste conceito a compulso repetio o masoquista repete, ritualisticamente, as cenas , vinculando-a atualizao de um arqutipo, como veremos.

    preciso compreender que a repetio, tal como Freud a con-cebe em seus textos geniais, Deleuze alude a Para alm do princpio do prazer, , ao mesmo tempo, sntese do tempo, sntese transcen-dental do tempo, numa s vez, repetio do antes, do agora e do depois. Ela constitui, no tempo, o passado, o presente, e mesmo o futuro (DELEUZE, 1967, p. 99). Como o arqutipo, o Instinto de mor-te dito transcendental. Pelas repeties compulsivas, contratadas e ritualizadas no masoquismo, snteses do diverso, operadas sob o fundo desta imagem original, constituem o mundo para um sujeito e a experincia do tempo como espera. A atualizao deste arqutipo se d sob as repeties prprias ao Instinto de morte. Pervertendo Jung quem nunca analisou o masoquismo , ao vincular a compulso de repetio atualizao de um arqutipo, Deleuze retoma a apropria-o junguiana do conceito de instinto em Bergson, definido como um tipo de conscincia sonmbula intuitiva que, mediante atualizao de uma imagem, conduz ao.

    Processo inconsciente, semelhante a uma percepo incons-ciente, o instinto visa os objetos sem ser acompanhado por uma conscincia representativa. Remontando a Cuvier, a Schopenhauer e a Fabre tradio a qual Deleuze, em Instintos e instituies, d voz contra o darwinismo , em Evoluo criadora, Bergson define o ins-tinto como uma espcie de conscincia no-intelectual, que ignora suas visadas. Cnscia da ao que realiza, ela ignora os porqus, como um sonmbulo. A ao, inconsciente, no representada, s possvel mediante a atualizao de uma imagem. Assim definido, o instinto acompanhado de uma espcie de conscincia que s in-consciente no sentido restrito de que inconsciente ao pensamento representativo (KERSLAKE, 2006, p. 2). Tambm so articulados, por Bergson, instinto e intuio na anlise da simpatia adivinhadora dos

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    insetos, o que Jung saudava como uma renovao no conceito da-rwinista de instinto, hegemnico poca (Cf. KERSLAKE, 2006, p.1).

    No mundo dos insetos, Bergson examina certa espcie de ves-pa. Com preciso cirrgica, ela pica nove vezes nem mais, nem menos os centros motores de sua presa como se a finalidade fosse no mat-la, mas paralis-la; conduz, em seguida, a lagarta um paraltico depsito de comida fresca s suas recm-nascidas lar-vas. Por instinto, a vespa age como se soubesse, d mostras de um impressionante conhecimento interespecfico. Uma vez definida a divergncia nas evolues do instinto e da inteligncia (esta facul-dade de fabricar e empregar instrumentos organizados), Bergson nomeia intuio esta conscincia prpria ao instinto e mostra, se-gundo Kerslake,

    que a conscincia inteligente no esposa o gnero [inteiro] da conscincia, e que a existncia de uma conscincia de direi-to que Deleuze chamar de uma pura conscincia inde-pende do funcionamento da inteligncia. O instinto discerne uma situao de dentro, de outra forma que por um pro-cesso de conhecimento, por uma intuio (vivida, mais que representada). Os instintos so sentidos, mais que pensados. No se trata, assim, de pensar em um inconsciente absoluto (pois, assim, no seria intuitivo), mas em um inconsciente relativo inteligncia (KERSLAKE, 2006, p.3).

    A ao desta conscincia sonmbula deve-se atualizao de uma imagem virtualmente presente em uma memria comum a am-bas as espcies, porque anterior diferenciao especfica. Devido s presses do ambiente, esta memria orgnica subjacente s espcies distintas chamada a atualizar-se em uma Imagem.

    H uma histria interna da natureza, uma perspectiva da natureza de dentro, paralela aos tipos de comportamentos instintivos. Assim, o himenptero parece dotado de um tipo de memria orgnica, graas a qual ele pode reativar, sob a forma de uma imagem, uma linha filogentica da qual parente! Sob presso de uma necessidade urgente, o ins-tinto pode regredir forma de artrpode que lhes comum, que ele partilha com sua vtima potencial, e ter a intuio da localizao anatmica dos gnglios motores desta ltima (KERSLAKE, 2006, p.3).

    Esta funo biolgica ou vital de resposta prtica s demandas do ambiente, nomeada por Bergson de ateno vida, define em sua filosofia, como na psicologia de Jung, uma noo de inconsciente: no a partir do recalque de representaes das quais nos tornaramos conscientes apenas pelos seus representantes, mas, negativamente, com relao atividade caracterstica da conscincia. O incons-ciente sempre inconsciente com relao a um ego ativo, a um eu orientado para o futuro, comenta Kerslake (KERSLAKE, 2007, p. 83).

    Fantasma, histria e mito: para alm de dipo, Cristo, Caim e a teoria da histria de Bachofen

    O fantasma constitui o mundo de objetos e a espera masoquis-ta. Nele participam os signos da cultura, amor(te) se apresenta nes-te processo. Para desempenhar os papis derivados da arte, mulheres

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    so adestradas. Masoquistas, elas tanto quanto os homens, com eles contratam, persuadidas, compulsivamente: garantem suas existncias simblicas necessidade de adaptao ao presente. Por instinto de morte, os ritos atualizam a imagem da me devoradora, presente nas camadas mais profundas do inconsciente. Mas qual a narrativa ence-nada? Como se distribuem os papis, o contrato, o chicote, as peles, o frio, o doce e o cruel? Qual histria eterniza o pintor alemo com sua paleta de cores no retrato de Severin pisado pela Vnus das peles?

    *

    Elemento supra-pessoal18 ou essncia no qual participam os masoquistas, a narrativa mtica tudo, menos dipo. Toda a potncia arquetpica e partenogentica da me devoradora, menos a castrao. Sua histria no visa a trgica cegueira de dipo; (com)trata-se de criar num rebento o dia, um novo homem para um novo mundo a comuna , degradado que est o patriarcado falogocntrico. Tudo, menos a interdio do incesto. Para nascer de novo, o masoquista todinho devorado pela me, completamente submergido no mar negro de seu ventre. Amor(te). O incesto no diz respeito a um desejo infantil reprimido, mas smbolo estruturante do mundo masoquis-ta mundo este que colonizado regressivamente pela imagem da me, inerente a um primeiro simbolismo, como vimos. A morte deve ser compreendida como uma morte simblica, e o retorno matria, como um retorno morte simblica; tudo smbolo no inconscien-te, dizia Deleuze em De Sacher-Masoch ao masoquismo. H de se fazer engolir pela me, morrer, para tornar-se homem ou realizar o Ideal de eu neste corpo que, de homem, no : o pnis nele no fa(-)lo; a semelhana ao pai est: negada.

    O masoquista dela abjurou, ou da sexualidade que a heran-a dela, e recusa, ao mesmo tempo, diz Deleuze, a imagem do pai como autoridade repressiva que regulamenta essa sexualidade, e que serve de princpio ao supereu. Ao supereu de instituio, ele ope a aliana contratual do eu com a me oral (DELEUZE, 1967, p. 111). Um filho da me. Insolente por obsequiosidade, revoltado por submisso (DELEUZE, 1967, p. 78), o masoquista, aparentemen-te to dcil em sua relao Lei, na tangente, pelo excesso de zelo para com ela, no explicita seno seu absurdo: os golpes de chicote, por exemplo, longe de punir ou provocar uma ereo, a provocam, a asseguram (idem). Donde o humor. Sem supereu de instituio, estourando de rir da Lei, tornar-se homem no algo, contudo, que se possa fazer s: requer um parto nascido de um. Renascer por par-tenognese termo empregado por Jung e retomado textualmente por Deleuze nascer de uma s parte, sem fecundao, nem sexo: na concepo deste novo homem ou homem ideal no participam pai, nem Deus. Um filho da me. Para Deleuze, o mesmo arqutipo da me devoradora, descoberto nas escavaes mticas de Jung, atravessa as narrativas bblicas de Cristo e Caim, os dois grandes personagens da obra de Masoch.

    18 Cf. DELEUZE, 1967, p. 88.

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    Eva faz aliana com Caim primeiro episdio -, Maria entrega Cristo cruz: smbolos do contrato, sem interveno do terceiro, o pai. Que Caim seja punido pelo Pai, isto marca seu retorno ofensivo, seu retorno alucinatrio [devido foracluso]. Segundo episdio: o Cristo. A semelhana ao pai de novo abolida (Por que me abando-naste?), diz Deleuze.

    E a me que coloca pessoalmente o filho na cruz: contribui-o da virgem ao fantasma masoquista, verso masoquista

    de Deus est morto. E, colocando-o na cruz, num signo que o religa ao filho de Eva, ela persegue a mesma empresa da deusa-me, da grande Me oral: ela assegura ao filho uma ressurreio como segundo nascimento partenogentico (DE-LEUZE, 1967, p. 84; itlicos nossos).

    Cristo pintado pelo romancista no semelhana de Deus, mas crucificado: sem amor sexual, sem propriedade, sem ptria, sem querela, sem trabalho (DELEUZE, 1967, p. 87). Sem nada. Sem su-perego de instituio: tradio, famlia, propriedade. Nem Capital. E por isso que, novinho em folha, sem papel dinheiro, nem identidade no romance, Severin reconhece-se sem passaporte e sem nenhum tosto quando escravo de Cristo a Caim o novo homem um co-munista. Sonha acordado com o comunismo, o masoquista tem nisto seu Ideal. De uma ponta a outra da obra de Masoch, o sonho do comunismo agrcola, que inspira seus contos azuis da felicidade (DELEUZE, 1967, p. 83), diz Deleuze. O que propriamente maso-quista, diz Deleuze,

    a fantasia regressiva pela qual Masoch sonha em se servir do patriarcado nele mesmo para restaurar a ginocracia, e da ginocracia para restaurar o comunismo primitivo (DELEUZE, 2007, p. 3; negrito nosso).

    *

    Perspectivas histricas estranhas fornecem uma estrutura ide-olgica para o fantasma masoquista, sugere Deleuze. o caso da narrativa pica da substituio do matriarcado pela Lei Flica as-cendente na Grcia e em Roma. Se desconsideradas, esta perverso se torna incompreensvel, defende o filsofo, aventando a hiptese19 das influncias do grande etnlogo e jurista hegeliano Bachofen em Sacher-Masoch, supostamente seu vido leitor. Estranha teoria da histria que a mesma fonte de... Jung20.

    Em todos os lugares nos antigos mitos e lendas, Bachofen en-contrava traos de conflitos entre o matriarcado e o patriarcado (GEYSKENS, 2010, p. 111), servindo a Sacher-Masoch de tela de proje-o de sua fantasia pessoal num mito impessoal. A histria dividida por Bachofen em trs perodos: o hetairismo primitivo, a ginocracia dois primeiros momentos nos quais predominava o matriarcado e o patriarcado moderno. No incio, poca da bela natureza, a relao

    19 Contestada errnea por Homero Santiago e defendida como plausvel por Tomas Geyskens, Kazarian e Kerslake.

    20 Cf. KERSLAKE, 2007, p. 77.

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    entre o homem e a mulher tinha na igualdade sua nica lei, inces-tuoso mundo de Afrodite. Houve uma catstrofe glacial, os modos de vida mudaram, findou o incesto no por conta de uma suposta represso, mas de uma alterao na organizao social ps-incidente climtico. No estabelecimento de uma sociedade agrcola, inicia-se a poca de Demter e o governo das amazonas sobre os homens poca de precrio esplendor e perfeio! Na figura de Demter, a deusa do segundo perodo matriarcal, comenta Geyskens, Masoch descobre o ideal de uma fria, severa Me, cuja frieza resiste ao alegre paganismo de Afrodite e cuja maternidade vai contra a ordem pa-triarcal, estabelecendo, da por diante, a identidade entre a me, a estepe e a natureza (GEYSKENS, 2010, p. 111). Esta poca, perfeita aos olhos do masoquista, foi superada fora com a lei patriarcal, que da em diante probe o incesto com a me sob a ameaa da castra-o (KERSLAKE, 2007, p. 78). Incio da modernidade, contra a qual Deleuze, com Sacher-Masoch, ope prognsticos junguianos: Aquele que desenterra Anima saber como torcer as estruturas patriarcais em seu benefcio e redescobrir a potncia da me devoradora (DELEUZE, 2007, p. 3; negrito nosso).

    Herdada por Sacher-Masoch de Bachofen, esta identificao da natureza fria e severa com a Me que, glacial, acolhe seus filhos, no deve ser lida como uma projeo do escritor da imago materna na natureza, como quis Freud em seu Problema Econmico do masoquis-mo, para quem todos aqueles que atribuem os acontecimentos deste mundo Providncia, a Deus, ou a Deus e Natureza, na verdade, enxergam esses poderes extremos e longnquos de forma mitolgica e se creem ligados a eles por liames libidinosos, como se se tratasse de seus pais. A natureza no metfora da me. No so as alcovas da histria pessoal de Masoch os determinantes de seus sintomas, mas estes gozam de um carter impessoal, arquetpico. Meus sintomas agora repetem traos fora do tempo da natureza. A obsesso pessoal de Masoch torna-se expresso de uma afinidade eterna entre paixo e crueldade (GEYSKENS, 2010, p. 112).

    Trabalho sobre o corpo e revoluo: no se mede mais o desejo pelo prazer

    Deleuze desde sua segunda leitura de Sacher-Masoch (1967) ar-ticula o fantasma masoquista e este ideal de eu a um projeto poltico, fazendo do componente revolucionrio a verdade da patologia. Para alm da finalidade ertica no contrato com a dominatrix, ela mes-ma oprimida pelo frio deste mundo patriarcal ps-catstrofe glacial (KAZARIAN, 2009, p. 112), a revoluo. Participando da opresso moderna enquanto seu ator alienado, o projeto masoquista trans-formar tanto a si como mulher pelos rituais contratados sobre seu corpo 21. Ele sofre da dor no processo, sem que isto seja o essencial.

    O essencial o trabalho de dessexualizao do corpo, que o genital deixe de organiz-lo nas relaes que estabelece, abrindo es-pao circulao de uma energia neutra. Apresentada em 1967, esta concepo vinculada ao conceito de corpo-sem-rgos (CsO)

    21 Cf. KA ZARIAN, 2009, p. 113.

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    em seu Mil Plats, escrito com Guattari em 1980 - o masoquista no goza com o pau: Voc comea a costura, voc coze o buraco da glande, a pele em torno deste na glande, impedindo-o de tirar a parte superior, voc costura o saco pele das coxas (DELEUZE, 1996, p. 11). O masoquista no goza com o pau; nem no texto de Deleuze de 1961, nem no de 1967, nem no produto de parceria em 1980. As ima-gens e cenas criadas nele gozam, artista: bloquear o fluxo de esperma ou impedi-lo necessrio ao acontecimento, pois o masoquista nem bem tem trabalho, propriedade ou ptria, to diminuto! No mais do que a ausncia de pnis no falta de falo, sua presena no posse do falo, ao contrrio (idem, p. 60). Que ele seja castrado, seu rgo sexual negado enquanto presena flica, hereditariedade pa-terna, isto condiciona a aliana me, impedindo o gozo flico: um gozo. No texto de 1980, o processo cirrgico empreendido pela obe-diente carrasca constitui um CsO, um plano intensivo, previamente conceitualizado em O Anti-dipo.

    Neste livro, recusava-se a proposta lacaniana de que o desejo sexual no sentido especfico de que essencialmente construdo em torno de uma falta primordial (KERSLAKE, 2007, p. 74). Para Deleu-ze, Lacan amputava o desejo ao conceb-lo como sempre desejando a, um desejo aspirante, por que apartado, na dupla seta que constitui o alvo como objeto da futura satisfao para um sujeito faltante. Correlativa a esta transcendncia inscrita no corao do desejo era a ideia de que adquirido o objeto, a satisfao seria breve e de que, como inesgotvel fonte, o desejo, assim, renova-se sem cessar. So trs os axiomas: 1. Voc faltar a cada vez que desejar. 2. Voc no esperar seno descargas. 3. Voc perseguir o impossvel Gozo, co-menta David-Mnard (DAVID-MNARD, 2005, p. 31). Trade qual respondem: a negatividade inscrita no corao do sujeito, uma ener-gtica que falha em explicar porque, das experincias locais de satis-fao, passamos ao prazer como princpio regulador do psiquismo e a sacralizao da transcendncia do objeto (DAVID-MNARD, 2005, p. 32). Antes mesmo, portanto, destas concepes apresentadas em o Anti-dipo e em Diferena e Repetio - que liberava o prazer das imagens da satisfao graas ao conceito de diferena (DAVID--MNARD, 2005, p. 33) -, j se realizava em Apresentao de Sacher--Masoch um primeiro combate contra a transcendncia e a negativi-dade nas concepes de desejo.

    O que quer o masoquista desvincular o desejo do prazer como sua medida (DAVID-MNARD, 2005, p. 33), tornar secundrios o prazer e o objeto, seu sofrimento serve a isso. E no, como pensava Freud, para apaziguar uma profunda angstia obtendo indiretamente satisfao, ou expiar a culpabilidade pela desejada e incestuosa in-frao. O que deseja o masoquista mergulhar na espera como um fundo de diferenas intensivas. Ele deseja outra maneira de gozar do sexual. Nem dor nem prazer, diz Michel, o que deseja o masoquista no da ordem do afeto. Mas da intensidade (MICHEL, 2007, p. 7). Esta articulao do desejo em termos de intensidade, regressivamente dessexualizada, mais uma vez, no est muito longe da teoria jun-guiana da energia psquica, sugere Kerslake.

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    Por um lado, eles condenam Jung por seu desvio idealista da verdade descoberta por Freud: a primazia da sexualidade no inconsciente. Por outro lado, em geral eles esto felizes usando o termo desejo (como Jung primeiramente sugere), e, em muitos exemplos que fornecem de um desejo intensivo, eles recusam interpret-lo em termos de sexualidade (KERS-LAKE, 2007, p. 74).

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    Notas

    i Deleuze recorre a Jung para precisar o sentido da tipologia nietzschiana, e tambm noutras passagens. V-se onde Nietzsche quer chegar, anuncia Deleuze: fazer uma psi-cologia que seja realmente uma tipologia, fundar a psicologia sobre o plano do sujeito.), acrescentando em nota que fundar uma psicologia sobre o plano do sujeito uma expresso familiar a Jung, quando ele denuncia o carter objetivista da psicologia freudiana. Ele men-ciona, ainda, a admirao de Jung por Nietzsche por ter, primeiro, instalado a psicologia sob o plano do sujeito, isto , t-la concebido como uma verdadeira tipologia (DELEUZE, 1983, p. 134). Ainda, sobre a relao entre os dois tipos, o senhor e o escravo, Deleuze refere-se ao Arqutipo da dvida a condicion-la: A cultura dota a conscincia de uma nova faculdade [...]: a memria. Mas a memria de que se trata aqui no [...] anterior mesma s origens de qualquer organizao social[...], ela serve de modelo aos complexos os mais grosseiros. no crdito, e no na troca, que Nietzsche v o arqutipo da organizao social (DELEUZE, 1983, p. 166).Uma memria anterior s origens de qualquer organizao social; uma memria a-histrica que serve de modelo aos complexos: um arqutipo, estrutura inata e a priori, por Jung arti-culada noo de instinto. Em outro momento, Deleuze faz referncia a Anima, outro con-ceito de Jung. Comentando a imagem do labirinto em Nietzsche , que designa, primeiro, o inconsciente, o si, diz que apenas a Anima capaz de nos reconciliar com o inconsciente, de nos dar um fio condutor para sua explorao (DELEUZE, 1983, p. 215). O quo estranho no soa esta afirmao pela identificao do si com o inconsciente, se formos fiis s dicotomias abertas em Nietzsche e a filosofia - o inconsciente, vinculado grande razo do corpo, e o si ou a conscincia de si como reatividade, nada mais que um sintoma de uma transformao mais profunda das atividades de foras, de uma ordem distinta da espiritual (DELEUZE, 1983, p. 44). O inconsciente era dito todo o outro do si. que Jung, quase-secretamente, est nas entrelinhas de sua leitura de Nietzsche: certa ideia de que a individuao, conceito presente em Jung e retomado por Deleuze para falar do apolneo, diz respeito reconcilia-o do indivduo com seu si. O comentrio de Deleuze sobre o aforismo II de A origem da tragdia, texto em que abunda o principium indivituationis, ressoa o comentrio junguiano de Tipos psicolgicos (1927). A contradio, na Origem da tragdia, diz Deleuze, aquela da unidade primitiva e da individuao, do querer e da aparn