Antenor Pimenta - E o céu uniu dois corações

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    ...E o Cu Uniu Dois Coraes

    Drama em 5 Atos

    Antenor Pimenta

    1942

    Personagens

    Alberto

    Neli

    Perdinari

    SantaFernando

    Torre

    Francisco

    Juca

    VelascoBenevides

    Adlia

    Marli

    Inspetor

    CriadoGuardas

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    Primeiro Ato

    Bar. Balco a E. sup. Prateleira com garrafas, etc.

    A E. da porta, uma pequena mesa com rdio. A E.

    e D. mesas com cadeiras ao redor. Ao abrir a corti-

    na, est atrs do balco Velasco, dono do bar.

    Muito surdo. Entra em seguida Torre e FranciscoPereira, que vo sentar-se junto mesa da D.

    FRANCISCO

    (entrando) Afinal, por que me telefonaste que

    viesse imediatamente para aqui?

    TORRE

    J vais saber. (sentam-se, Velasco vai at eles)

    Sirva-nos alguma coisa.

    VELASCO

    (pondo a mo em concha no ouvido) Hein?

    TORRE

    (alto) D-nos qualquer coisa para beber!

    VELASCO

    (mais alto ainda) Hein?(Torre faz um sinal com

    o indicador e o polegar, que quer um clice com

    qualquer coisa para beber) Ah!... Sim!... (sobeao balco)

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    TORRE

    (a Francisco) Creio que hoje vamos ter um beloservio.

    FRANCISCO

    Se no for igual ao ltimo.

    TORRE

    No, este dar resultado. (Velasco trouxe as

    bebidas. Alto, a Velasco) Este whisky no falsi-

    ficado?

    VELASCO

    Hein?

    TORRE

    (mais alto) Este whisky no falsificado?

    VELASCO

    Ah!... Sou sim senhor.

    TORRE

    (admirado) Hein?!...

    VELASCOHein!?...

    TORRE

    (a Francisco, irritado) No h nada pior do que

    conversar com uma pessoa surda. (une a palavra

    ao gesto, indicando o ouvido)

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    VELASCO

    (a Francisco, apontando Torre) Ele surdo!... Ah,bom! (volta ao balco)

    TORRE

    Como eu ia dizendo...

    FRANCISCO

    Fale baixo.

    TORRE

    O homem surdo.

    FRANCISCO

    Bem, mas eu no sou. E pode entrar algum e

    ouvir e ento estaremos em maus lenes.

    TORRE

    No haver perigo. Ningum ter a ousadia de

    nos acusar. E depois, as autoridades no acredi-

    taro que ns, Manoel De La Torre e Francisco

    Pereira, dois cidados de bem, conceituados,

    sejamos ladres.FRANCISCO

    De La Torre, vou falar-te com franqueza. Tu ain-

    da s moo, cheio de vigor, mas eu j estou per-

    dendo a minha coragem. Depois, bem sabes,

    minha nica filha morreu, deixando-me ummenino que, por sinal, tem o mesmo nome meu,

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    Francisco. Preciso agora mudar de vida. Tenho

    medo de cair nas mos da polcia e de o meuneto vir a saber mais tarde que eu, seu av, fui

    um ladro.

    TORRE

    Ora... ora... Desde quando adquiristes estes ho-

    nestos sentimentos? Deixa de bobagens. Olha,

    meu caro, eu tenho uma idia, e tenho certeza

    de que ela vai receber a tua aprovao.

    FRANCISCO

    Qual ?

    TORRE

    Antes de tudo, devo dizer-lhe que ser um

    servicinho no qual no arriscaremos cousa ne-

    nhuma.

    FRANCISCO

    Onde?

    TORREAqui mesmo.

    FRANCISCO

    Aqui?! Como?

    TORRE

    Oua. Bem sabes que amanh ser o pagamentodo pessoal da fbrica do italiano Jos Perdinari.

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    FRANCISCO

    Sim, sei. TORRE

    Mas o que no sabes que ele amanh embar-

    ca para o Rio a fim de internar o filho num col-

    gio e realizar vultoso negcio de compra.

    FRANCISCO

    Bem.

    TORRE

    Ora, como o Banco aqui, onde ele tem todo o

    seu dinheiro depositado, no tem agncia no

    Rio, ele teria hoje que retirar a quantia necess-

    ria para fazer o negcio e para fazer os paga-

    mentos da fbrica.

    FRANCISCO

    Ah... percebo... mas como soubeste disso?

    TORRE

    Eu no vivo dormindo. E tanto assim, que hoje,desde cedo, segui-lhes os passos. Agora tarde,

    ele retirou do banco vultosa quantia e, em se-

    guida, foi receber o aluguel de uma a uma de

    suas casas.

    FRANCISCOE da?

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    TORRE

    A ento foi que telefonei que viesses aqui paraencontrarmos o nosso homem. Pois esta casa

    tambm sua e ele vir receber o aluguel.

    FRANCISCO

    Bem, mas ele poder deixar o dinheiro em casa

    para depois vir.

    TORRE

    Ora, bem sabes que aquele desconfia da prpria

    sombra. O seu dinheiro s fica no Banco ou no

    bolso. Pois ele nem siquer confia que um em-

    pregado receba o aluguel de suas casas, com

    medo que fuja com os cobres. E o pagamento

    de seus operrios, ele mesmo quem faz.

    FRANCISCO

    Mas teremos que assalt-lo logo aqui? E disses-

    te que era um servicinho sem perigo.

    TORRESe as coisas no correrem como eu espero, ns

    vamos assalt-lo esta noite em sua casa. Mas se

    forem como eu desejo, dentro em pouco esta-

    remos com o cobre do italiano.

    FRANCISCOExplica-me logo o que temos a fazer.

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    TORRE

    No conheces o chofer da fbrica do Sr.Perdinari, que h pouco tempo atirou o auto-

    mvel contra um poste, ocasionando aquele ter-

    rvel desastre?

    FRANCISCO

    Como no? Chama-se Fernando.

    TORRE

    Esse mesmo. Ora, como sabes, nesse desastre

    Fernando perdeu a mulher, sua me ficou cega,

    s escapando ilesos ele e a sua filhinha. Devido

    a este acidente, foi despedido da fbrica, fican-

    do desempregado e est agora na maior mis-

    ria. Por isso, odeia de morte ao ex-patro. Toda

    a cidade sabe disso. De maneira que, se amanh

    o italiano aparecer assassinado e roubado, nin-

    gum duvidar que foi o seu ex-empregado. E

    alm de tudo, vamos instigar os dois a fim deque discutam; dessa discusso surgir um crime,

    no achas?

    FRANCISCO

    s vezes no.

    TORREEstando eu perto, forosamente o italiano mor-

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    rer. E na confuso, ns limparemos o cadver.

    FRANCISCOE depois?

    TORRE

    Acusaremos Fernando como assassino.

    FRANCISCO

    Mas onde fazer os dois se encontrarem?

    TORRE

    Aqui mesmo. Fernando tambm vir aqui hoje.

    No tardar. Vir com a me e a filhinha. Todos

    os dias vem almoar e jantar aqui. O homem

    do bar, o surdo, segundo eu soube, ficou com

    pena devido misria por que esto passando e

    lhes tem fornecido comida gratuitamente. O

    essencial que Fernando venha antes do italia-

    no, para termos tempo de baratin-lo. (entram

    Fernando, D. Santa e Neli (menina).

    FERNANDOBoa tarde.

    D. SANTA

    (quasi a um tempo) Boa tarde.

    TORRE

    A est o nosso homem.

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    VELASCO

    (que esteve distrado) Ol, Fernando! Ento sen-tem-se. (leva D. Santa para a mesa da E. Sen-

    tam-se) Daqui a pouco o empregado dever che-

    gar e mandarei servir-lhes o jantar. (Fernando

    agradece com um aceno de cabea)

    SANTA

    Que nobre corao!

    FERNANDO

    Se no fosse a generosidade desse homem, tal-

    vez passssemos fome. Nunca poderemos pagar

    tamanha caridade.

    SANTA

    Nem siquer com palavras podemos agradecer-

    lhe, pois um infeliz como eu. A mim, falta-me

    a luz dos olhos e no posso ver. A ele, falta-lhe a

    audio e no pode ouvir.

    FERNANDOParece incrvel! Um homem so, forte, ter que

    implorar a um surdo, por caridade, um prato de

    comida para matar a fome de minha me e de

    minha filhinha! Tudo por causa daquele maldi-

    to homem!

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    SANTA

    preciso compreender, meu filho, que ele tinhaas suas razes. Cassada a tua carta de chofer,

    serias para ele um empregado intil.

    FERNANDO

    Mas no devia deixar-me desamparado, saben-

    do que eu tinha me e filha para sustentar. Fui

    sempre um empregado cumpridor dos meus

    deveres. (noutro tom) No posso compreender

    por que ele fez isso. Parecia um bom homem.

    SANTA

    Depois da tempestade, por certo vir a bonana.

    FERNANDO

    E enquanto esperamos essa bonana, temos que

    implorar um prato de comida, se no quisermos

    morrer de fome.

    SANTA

    Escuta, meu filho. Por que no fazes como eu jte falei? Bem sei que ser para ns muito cruel

    essa resoluo, mas infelizmente a nica.

    FERNANDO

    Mame, peo que no fale mais nisso.

    NELIO que , hein vov?

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    FERNANDO

    A fim de que eu possa trabalhar, tua av, Neli,quer que eu a interne num asilo de cegos e te

    entregue a alguma famlia bondosa para cuidar

    de ti.

    NELI

    No, vov! Eu ficar longe de minha avozinha e

    de meu pai? No. Ento a senhora no gosta

    mais de ns?

    SANTA

    Se gosto? Adoro-os!

    NELI

    Ento?

    SANTA

    Mas, minha filha, assim, cuidando de ns, seu

    pai no poder trabalhar.

    TORRE

    (a Francisco) Vamos agir. (a Fernando) SenhorFernando! Faa um favor. Faa o obsquio de

    sentar-se. (Fernando senta-se junto a eles) Creio

    que me conhece.

    FERNANDO

    Sim, Sr. De La Torre.

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    TORRE

    Eu e meu amigo, Francisco Pereira, ouvimos o queconversavam e creia que ficamos profundamente

    penalizados. Parece incrvel o que fez o seu ex-

    patro. Despedi-lo de sua fbrica, assim...

    FRANCISCO

    Mas ele tinha motivos para fazer isso?

    FERNANDO

    Vou contar-lhe o que se passou. Como sabem,

    eu era chofer do Sr. Perdinari. Era um domingo.

    Eu estava em casa, conversando alegremente

    com minha esposa e minha me, quando, de

    repente, vimos Neli, minha filhinha, caminhan-

    do em nossa direo, cambaleando, com as duas

    mozinhas na garganta, respirando com gran-

    de dificuldade. Estava sufocada. Parecia que sua

    garganta queria fechar-se. Ficamos como lou-

    cos. Precisava lev-la imediatamente a um m-dico. Eu morava perto da fbrica e como tinha

    comigo a chave da garage, corri e trouxe um

    carro para levar minha filha. Fomos todos. Cor-

    ri a toda velocidade casa do Dr. Gouveia. Ele

    ministrou menina uma injeo e ela logo me-lhorou. Voltvamos ento satisfeitos porque Neli

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    estava fora de perigo. Conversvamos a respei-

    to quando, de repente, o auto bateu num pos-te. Foi um choque tremendo. O poste caiu sobre

    ns, no lado onde estava minha infeliz esposa,

    que perdeu a vida instantaneamente. Minha

    me, com o abalo, perdeu as duas vistas. Eu e

    minha filhinha escapamos milagrosamente. Foi

    aberto inqurito pelas autoridades policiais. E

    ento foi cassada a minha carta de chofer e fui

    condenado a pagar Empresa de Luz os estra-

    gos causados pelo desastre. Recorri ao meu pa-

    tro. Mas como eu havia ocupado o auto sem

    sua ordem e sem ser a servio da fbrica, ele

    recusou-se a auxiliar-me. O pouco dinheiro que

    eu tinha economizado, gastei-o com os funerais

    de minha pobre mulher. Meu patro, no se

    importando com a desgraa que j me pesava,

    despediu-me da fbrica.FRANCISCO

    No resta dvida, foi um ato desleal de um pa-

    tro para com um bom operrio. Esse homem

    no deveria ficar impune.

    FERNANDOAinda no pude arranjar um emprego. Desde

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    rapazote sou chofer. No aprendi outra coisa.

    Agora, cassaram-me a carta, de maneira que seme tornou difcil uma colocao.

    TORRE

    Meu amigo, a sua narrao cortou-me o corao.

    FERNANDO

    (consigo, revoltado) Mas esta situao no pode

    continuar. No possvel! Um homem como eu

    mendigar!

    TORRE

    Tem razo. Eu vou dar-lhe um emprego, com

    um ordenado bastante para viver comodamen-

    te. (Velasco sai)

    FERNANDO

    (numa exploso de alegria) Oh! Senhor, agra-

    decer-lhe-ei imensamente. Creia que serei seu

    escravo. Graas, meu Deus! Encontrei finalmen-

    te um corao generoso que vem desafogar aminha situao.

    TORRE

    Bem, ento comear amanh. Sabe onde

    moro?

    FERNANDOSim, senhor.

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    TORRE

    Procure-me ento s 11 horas. Creia, vai gostardo servio.

    FERNANDO

    Pois bem. Amanh estarei l s 11 horas em pon-

    to! (corre me numa alegria indizvel) Mame!

    Ouviu, mame? O senhor De La Torre arranjou-

    me um emprego! (beija-a)A senhora no preci-

    sa ir para o asilo, mame. (beijando-a e abra-

    ando Neli) Minha filhinha no precisa ir para

    casa de estranhos!

    SANTA

    V, meu filho, eu no disse que depois da tem-

    pestade viria a bonana?

    FERNANDO

    verdade, mame.

    FRANCISCO

    (A Torre) O que vais fazer agora?TORRE

    Veja. (tira dois revlveres) Este est com uma

    bala deflagrada. E no precisarei mais do que

    uma. (guarda-os)

    FRANCISCOPara que isso?

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    TORRE

    Vers. SANTA

    Deus nunca esquece os que Dele se lembram,

    meu filho.

    TORRE

    Fernando! (Fernando vai a ele) Daqui eu vou

    com meu amigo a uma reunio. Tenho comigo

    um revlver e como no quero ir armado, peo-

    lhe que o guarde e o leve amanh minha casa.

    FERNANDO

    Pois no, senhor. (guarda o revlver)Agradeo-

    lhe a confiana. (entra Perdinari)

    PERDINARI

    (italiano que se esfora para falar em portugus,

    est com uma pasta) Boas tardes, senhores.

    TORRE E FRANCISCO

    Boa tarde.TORRE

    A est o italiano.

    PERDINARI

    O Sr. De La Torre e o Sr. Francisco por aqui?!

    TORREPassamos por acaso e entramos para tomar qual-

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    quer coisa. Est servido?

    PERDINARIObrigado. Eu no bebo. Mas, onde est essa

    gente do bar?

    FRANCISCO

    O surdo est l dentro.

    PERDINARI

    Eh!... Vamos mal... Se o empregado no est, o

    seu Velasco vai dar muito trabalho para com-

    preender que eu vim buscar o dinheiro do alu-

    guel da casa.

    TORRE

    Por que, Sr. Perdinari?

    PERDINARI

    O homem mais surdo do que uma porta! Do

    licena. Eu vou sentar aqui porque estou com as

    pernas modas.

    TORREAndou muito?

    PERDINARI

    Muito! Tenho que deixar tudo arrumado, por-

    que amanh embarco para o Rio.

    TORREPerdoe a minha indiscrio, mas que vai fazer

    ao Rio?

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    PERDINARI

    Vou levar meu filho para um colgio. Podia es-tudar aqui. Mas l tenho um amigo que tem uma

    poro de filhos. L ele ter companheiros.

    Aqui... coitadinho... Se tivesse me viva ou se

    tivesse irmo, v l...

    TORRE

    Tem razo.

    PERDINARI

    Sim!... Ele precisa estudar porque tudo o que

    eu tenho j passei para o seu nome. Ele precisa

    saber dirigir os negcios.

    FRANCISCO

    Ento passou toda a sua fortuna para o filho?

    PERDINARI

    Sim, passei. Mas com uma condio. Ele s po-

    der tomar posse de tudo, no dia em que casar.

    TORREPor que essa condio?

    PERDINARI

    Sim, porque uma fortuna dessa na mo de um

    solteiro um perigo. Esbanja tudo. No tem

    responsabilidade. (fala baixo)SANTA

    (a Fernando) Quem est a?

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    FERNANDO

    O Sr. Perdinari. SANTA

    (apreensiva) Ento vamos sair daqui, Fernando.

    FERNANDO

    No, mame.

    PERDINARI

    (os trs riem com o que acabara de dizer)Agora

    mesmo fui ao cartrio para fazer o documento.

    (abre a pasta para retir-lo, aparece muito

    dinheiro) Aqui dentro deste envelope lacrado

    esto os papis que declaram meu filho Alberto

    dono de tudo quanto tenho no dia do seu

    casamento.

    TORRE

    Dizem que o senhor vai realizar no Rio impor-

    tante negcio, verdade?

    PERDINARISim! Vou gastar uns dez milhes de cruzeiros

    em mquinas modernas para a fbrica.

    TORRE

    (intrigante, a meia voz) Pena que muitas vezes

    um industrial gasta uma fortuna em umamquina, para entreg-la a operrios sem a

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    mnima noo de responsabilidade.

    PERDINARI verdade.

    TORRE

    (indicando Fernando ) Haja visto esse que est,

    Fernando.

    PERDINARI

    Quem? Fernando? No, no!... Esse no!...

    (confidencial) Se todos os operrios fossem

    cumpridores dos seus deveres como o Fernando,

    ns, industriais, estaramos bem servidos.

    FRANCISCO E TORRE

    Como?!

    PERDINARI

    Sim!... Bom homem est ali.

    TORRE

    E por que o senhor o despediu?

    PERDINARIPorque desrespeitou os regulamentos da fbri-

    ca. Tirou o automvel da garagem sem ordem.

    No podia ficar sem punio. Mas j estou satis-

    feito, foi boa lio. E sabem que eu estou satis-

    feito por encontr-lo aqui? Vou convid-lo a vol-tar para a fbrica. Estava mesmo sua procura.

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    TORRE

    Mas como? Ele perdeu a carta de chofer!PERDINARI

    Ele no ser mais chofer. Ser agora chefe de

    uma das sees da fbrica. E tenho certeza que

    estarei bem servido.

    TORRE

    (venenoso) Dizem por a que ele jurou mat-lo.

    PERDINARI

    Quem? O Fernando? Aquele ali no mata nem

    mosca com Detefon. E depois da lio que teve,

    estou certo que nunca mais cometer falta al-

    guma. (Entra Velasco.)

    VELASCO

    Oh! Sr. Perdinari!... Boa tarde.

    PERDINARI

    Boa tarde. Senhor Velasco... Bem, primeiro d

    um copo dgua.VELASCO

    (com a mo em concha, junto ao ouvido) Hein?

    PERDINARI

    Ai, ai, ai!... (grita-lhe ao ouvido) Um copo

    dgua!...

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    VELASCO

    Ah!... O dinheiro? J est prontinho. (sai)PERDINARI

    Bonito!... (a Torre) Se eu pedisse o dinheiro era

    capaz de trazer gua. Bem, foi melhor assim.

    (Velasco traz o dinheiro, que Perdinari vai con-

    tando enquanto fala) Vejam que cara farabuto!

    Eu o conheo desde que vim para o Brasil. Era

    pequeno assim. Jogvamos biroca juntos. Lem-

    bra?(voltando-se para Torre) Ele no lembra,

    surdo. (riem os trs, acaba de contar) Eh! Fal-

    tam cem cruzeiros!

    VELASCO

    (pondo a mo em concha) Hein?

    PERDINARI

    Ai, ai, ai, ai, ai!... (grita) Faltam cem cruzeiros!

    VELASCO

    Ah! Sim! (sai)PERDINARI

    Per la Madonna! Toda vez que venho aqui e o

    empregado no est, assim. Me deixa quasi

    louco! (entra Velasco, trazendo gua) Eh!... no

    estou falando?... (apanha o copo, pe sobre a mesae, quasi desesperado) Faltam cem cruzeiros! (pau-

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    sa) Cem fiorins!! (pausa) Cem massones!!! (corta.

    Rpido para Torre) Que que eu vou falar mais?TORRE

    Fala-lhe por sinais.

    PERDINARI

    (abrindo as duas mos) Faltam cem cruzeiros!

    No foi isso que eu pedi. Faltam cem cruzeiros.

    VELASCO

    Ah! Dez copos dgua? (vai a sair e Perdinari

    segura-o)

    PERDINARI

    No! (explica a frase mais com gestos do que

    com palavras) Aqui faltam cem cruzeiros!

    VELASCO

    Ah, faltam cem cruzeiros? Eu vou buscar. Por que

    no falou antes?(sai)

    PERDINARI

    (colrico ainda) M varda, varda que brutabestia! (imitando-o) Por que no falou antes?

    V, v que estou quasi rouco de tanto gritar!

    (noutro tom) Puxa, que agora estou com mais

    sede ainda. (apanhando o copo) Esto servidos?

    (bebe um gole) mas que gua ruim!... Oh, seuVelasco! (vai ao balco) Que gua suja essa?!

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    TORRE

    (a Francisco)Alerta. (saca o revlver e atira emPerdinari)

    FERNANDO

    (correndo para De La Torre, num gesto instinti-

    vo de defesa, pondo-se sua frente para impe-

    dir outros tiros) Que isso?(D. Santa ergue-se,

    assustada. Neli est agarrada av, esconden-

    do o rosto de medo)

    PERDINARI

    (sentindo o ferimento, volta-se como a querer

    saber quem o seu agressor e depara com

    Fernando) Fernando, no me devias ter

    matado... (cai morto)

    SANTA

    (quase que num grito de horror) Hein?!

    FERNANDO

    (a Torre) Por que o matou?TORRE

    Esta arma dele prprio. Estava examinando-a

    e disparou por acaso. (corre a Perdinari) Mas ele

    no est morto! (a Fernando) V correndo

    chamar um mdico! (Fernando sai correndo.Francisco est afobado, junto porta do F.)

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    VELASCO

    (entrando com uma nota na mo) Que isso?(examina Perdinari rapidamente) Morto? Vou

    chamar a polcia! (sai. Santa senta-se. Neli conti-

    nua agarrada a ela, escondendo o rosto)

    FRANCISCO

    (enquanto Torre rouba o que traz Perdinari)

    Depressa, antes que entre algum!

    TORRE

    Leva tudo isso. Leva o revlver tambm. E este

    documento vai ficar comigo. (Francisco pe tudo

    nos bolsos) Serei tutor do menino e toda a sua

    fortuna cair em nossas mos. (Francisco sai)

    SANTA

    Neli, onde est seu pai?

    NELI

    (depois de verificar) No est aqui, vov, acho

    que saiu. (entram Inspetor, guarda, Velasco e emseguida curiosos)

    INSPETOR

    O que foi?

    TORREEsse homem acaba de ser assassinado.

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    INSPETOR

    Quem o assassinou?TORRE

    Fernando Siqueira.

    SANTA

    (levanta rpida) mentira!

    INSPETOR

    (ao guarda) Pe essa gente para fora.

    GUARDA

    (obedecendo, comparsaria) Vo para fora. No

    entra ningum aqui. (a Velasco, que sai sob pro-

    testos) Voc tambm, vai para fora.

    INSPETOR

    (A Torre) Ento foi Fernando Siqueira?

    TORRE

    Eu sou testemunha de vista, Senhor Inspetor.

    SANTA

    No creia, Senhor Inspetor! Eu ouvi quando essehomem disse que a arma disparou na sua pr-

    pria mo!

    TORRE

    Essa mulher mente para defender o filho. Mas

    todos sabem que Fernando queria matar o Sr.Perdinari.

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    SANTA

    (chorando) mentira! mentira!TORRE

    intil querer negar. Seu filho matou o Sr.

    Perdinari. E a prova que fugiu. (guarda sai, a

    toda pressa)

    SANTA

    (FORTE) Mentira, meu filho no matou

    ningum!

    INSPETOR

    (reparando em D. Santa) Esta senhora cega?

    SANTA

    Sim, senhor.

    INSPETOR

    Escute, minha filha... (Neli chega-se a ele) Con-

    te-me o que voc viu.

    NELI

    Ns estvamos sentados. A vov, eu e papai. Aliestava esse homem e mais um outro...

    INSPETOR

    Ah! Sim? (desconfiado e intencional, para De

    La Torre) Ento havia outro homem aqui?

    TORRE(meio confuso) S...sim...

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    INSPETOR

    (a Neli) E depois? NELI

    De repente papai levantou-se e ouvi um tiro.

    Ento esse homem disse: Fernando no me de-

    vias ter matado.

    SANTA

    (Percebendo a inocente acusao) Neli!...

    TORRE

    Ouviu, Senhor Inspetor?

    INSPETOR

    Onde est o homem que conversava com o se-

    nhor? Quem ele?

    TORRE

    (mais senhor da situao) o senhor Francisco

    Pereira. Homem de carter reto e de conduta

    fora de qualquer dvida.

    INSPETORBem, mas por que no est ele aqui?

    TORRE

    Foi chamar um mdico.

    INSPETORComo?

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    TORRE

    Para melhor clareza vou contar-lhe o que se pas-sou. Fernando e o Sr. Perdinari puseram-se a dis-

    cutir. Em seguida Fernando puxa um revlver,

    atira e foge.

    SANTA

    Esse homem est caluniando meu filho. Juro,

    senhor, ele inocente.

    TORRE

    amos ao seu alcano, mas como Perdinari estava

    ainda vivo, achei melhor socorr-lo. Foi ento que

    o senhor Francisco saiu procura de um mdico. E

    esta a razo porque no est ele aqui. (noutro

    tom)Antes de morrer, o Sr. Perdinari implorou-

    me que fosse eu o tutor de seu filho Alberto. E

    entregando-me este envelope lacrado, disse-me

    estar nele o documento que passa toda a fortuna

    para o filho e que s poder entrar na posse nodia do seu casamento.

    INSPETOR

    Tem testemunha de que a vtima lhe entregou

    esse envelope?

    TORRETenho o Sr. Francisco. Mas mesmo que no ti-

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    vesse, bem v que o envelope est lacrado, e s

    pela boca do Sr. Perdinari poderia eu conhecero seu contedo. (entra guarda, conduzindo

    Fernando)

    FERNANDO

    (logo ao entrar, vendo inerte Perdinari) Morto!

    GUARDA

    (empurrando, para a frente) Aqui est o

    homem. Consegui alcan-lo.

    FERNANDO

    (vendo o cadver) Morto! Mas, Sr. Inspetor, o

    guarda prendeu-me acusando-me de um crime?!

    Estou inocente!

    INSPETOR

    Se est inocente, por que fugiu?

    GUARDA

    Estava correndo. Custou-me alcan-lo.

    FERNANDOFui chamar um mdico, enquanto o Sr. De La

    Torre socorria o moribundo.

    TORRE

    verdade que o socorri. Foi quando ele pediu-

    me que cuidasse de seu filho e entregou-me oenvelope.

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    FERNANDO

    Ouvem? Tenho como testemunha de minha ino-cncia o Sr. De La Torre.

    TORRE

    Como?!... No consinto que diga semelhante

    cousa! Pois eu, Manoel De La Torre, homem de

    dignidade conhecida em toda a cidade, nunca

    poderei acobertar um crime do qual sou teste-

    munha de vista.

    FERNANDO

    (com desespero) Parece incrvel o que estou

    ouvindo!...O senhor me acusa? (revoltado) Te-

    nha coragem! Confesse que foi o senhor quem

    por acaso deixou disparar a arma.

    TORRE

    (calmo) Eu!?(risinho)

    INSPETOR

    Com licena. (revista o Sr. De La Torre, nada en-cont rando)

    TORRE

    (enquanto o inspetor revista) O senhor no s

    o matou, mas roubou tambm o dinheiro que o

    pobre trazia consigo.

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    FERNANDO

    Infame! (vai avanar e impedido pelo guarda)Reviste-me Sr. Inspetor, e ver se tenho algum

    dinheiro comigo.

    TORRE

    Com certeza j o escondeu em alguma parte.

    INSPETOR

    (revistando Fernando e encontrando o revlver) Um

    revlver!... (examina) Falta justamente uma bala.

    TORRE

    V... intil querer fugir justia. As provas so

    esmagadoras.

    FERNANDO

    Esse revlver foi o senhor mesmo quem mo deu.

    TORRE

    Eu?!... (risadinha cnica) Sr. Inspetor, creio serem

    desnecessrias mais provas!

    INSPETORVamos conduzir este homem para a cadeia.

    NELI

    (num desespero) Vov, vo levar o papai!... (cor-

    rendo e agarrando-se a ele) No... no levem o

    papai!

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    SANTA

    Oh! Senhores, no levem o meu filho! Ele ino-cente, Sr. Inspetor!

    INSPETOR

    Cumpro a lei, minha senhora.

    NELI

    No! Pelo amor de Deus, no levem meu pai!

    No o levem!

    SANTA

    Sim. Deixem-no, senhores. Tenha d desta cega!

    Salve o meu filho!

    TORRE

    Basta de lamentaes. Seu filho que sofra as

    conseqncias de seu crime.

    FERNANDO

    Miservel! (tenta avanar e impedido pelo

    guarda)

    SANTAMas meu filho no criminoso. O Sr. bem sabe.

    FERNANDO

    intil, mame. Agora compreendo. Ca numa

    cilada. Todas as provas so contra mim.

    SANTAMas meu filho, sem voc, o que ser desta cega

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    e desta infeliz criana?

    FERNANDO(com lgrimas a correr dos olhos) No sei, ma-

    me... s Deus saber...

    INSPETOR

    Leve-o. (guarda sai, conduzindo Fernando. A De

    La Torre) O senhor est arrolado como

    testemunha.

    TORRE

    Nem podia deixar de estar, visto que sou teste-

    munha ocular desse monstruoso delito e portan-

    to preciso auxiliar a justia a elucidar um crime,

    punindo esse brbaro assassino.

    INSPETOR

    Muito obrigado. Preciso providenciar um carro

    para a remoo do cadver. (sai)

    SANTA

    Foi o senhor quem matou Perdinari. E no lhedi a conscincia, ao ver preso um inocente, fi-

    cando desamparadas estas duas infelizes?...

    TORRE

    (risadinha cnica. Baixo, junto a D. Santa) Eu no

    matei s, no... roubei tudo quanto ele traziaconsigo. E serei eu o tutor de seu filho. Mais tar-

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    de toda a sua fortuna cair nas minhas mos.

    SANTAOuviu, Sr. Inspetor? Meu filho inocente! (pau-

    sa, durante a qual Torre ri, baixo, cinicamente)

    No ouviu, senhor? Este homem acaba de con-

    fessar! ele o assassino!

    TORRE

    A polcia j no est aqui. Ah! Ah! Ah!... Agora

    vai, vai justia e diga que eu confessei o meu

    crime... Ela no te acreditar... (muito

    cinicamente) Porque faltam provas!... (sai)

    SANTA

    O que ser de ns, minha netinha, o que ser de

    ns?!

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    Segundo Ato

    Casa pobre. Mesa e cadeiras toscas a D., a E., um

    banco. Ao abrir a cortina, D. Santa e Marli esto

    sentadas junto mesa. D. Santa enxuga uma

    lgrima. So passados 11 anos.

    MARLI

    E depois, D. Santa?

    SANTA

    Depois, meu Fernando foi preso. Todas as pro-

    vas eram contra ele. Apareceram testemunhas

    afirmando que meu filho jurara matar o Sr.

    Perdinari.

    MARLI

    Infelizes!

    SANTA

    Eram testemunhas falsas, arranjadas por De La

    Torre. Tudo condenava meu filho. Foi condenado

    a 20 anos de priso. A fbrica foi obrigada a para-

    lisar os servios, ficando desempregados cente-

    nas de operrios, que se revoltaram contra ns.

    Ameaaram arrancar meu filho das mos da justi-a para linch-lo. Pobre filho!... Mrtir inocente!...

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    MARLI

    E aos dois verdadeiros criminosos, a justia nadafez?

    SANTA

    Nada, minha filha. Francisco Pereira, segundo

    me disseram, embarcou logo depois para a sua

    terra natal, Portugal. A De La Torre, a justia

    fez justamente o que ele desejava: nomeou-o

    tutor do menino Alberto.

    MARLI

    E o pobre moo estima-o como se fora seu pai?

    SANTA

    Voc conhece o Alberto?

    MARLI

    (atrapalhada) No... eu... quero dizer, ouvi di-

    zer que estima muito o Sr. de La Torre... conti-

    nue a narrao, D. Santa.

    SANTAAh! Marli... Depois que fiquei sem meu filho, te-

    nho sofrido muito... A princpio no foi tanto,

    porque o Sr. Velasco, que Deus o tenha em bom

    lugar, continuou como at ali, a nos fornecer co-

    mida. Todos os dias amos matar a fome naquelebar. Mas um dia encontramos a porta fechada.

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    Disseram-nos que o Sr. Velasco havia falecido, v-

    tima de uma sncope. Sa a mendigar, tendo Nelicomo guia. nessa situao, minha filha, que se

    conhece o quanto perversa a humanidade. Quan-

    to fui escarnecida... Quando, na rua, eu ouvia os

    passos de algum que se aproximava e pedia que

    tivesse piedade de ns, matasse-nos a fome, as

    mais das vezes, respondiam-me: Vai-te embora!

    Por causa de teu filho, fechou-se a fbrica, muitos

    operrios esto na misria, sofra o castigo que bem

    mereces!... E outros ento chegavam a dizer que

    era a Justia de Deus que pesava sobre ns, fazen-

    do-nos sofrer: A est como Deus justo. O assas-

    sino e ladro na cadeia, e tu sofrendo o castigo

    merecido, pois soubeste instig-lo para que ma-

    tasse e roubasse! Desaparea deste lugar, miser-

    vel. Estas e outras coisas eu e Neli ouvamos cons-

    tantemente. Pouqussimos eram os que nos da-vam esmolas. Todos odiavam-nos. (desalento)

    Como mau este mundo!...

    MARLI

    verdade.

    SANTAE quantas vezes ficamos sem comer! A mim j

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    no fazia falta a comida... Habituei-me... mas a

    minha pobre netinha pedia-me um pedacinhode po e... eu no tinha... Nesses dias ento,

    minha filha, o nosso nico alimento eram as l-

    grimas.

    MARLI

    No chore, D. Santa. Pois sofrem assim s os es-

    colhidos por Deus. Jesus tambm sofreu muito,

    por todos ns.

    SANTA

    Coitadinha da minha neta... agora para ganhar

    um pouco de dinheiro, que mal d para com-

    prar alimentos, vai para o trabalho ainda de

    madrugada, e s volta j noite.

    MARLI

    Pobre Neli! ...E todo esse sacrifcio, ela faz sem

    uma queixa.

    SANTAMarli, voc que tem, como a maioria dos mor-

    tais, a felicidade de ver, diga-me, sinceramente:

    minha neta est forte, alegre?

    MARLI

    De uns tempos para c lhe tenho notado certaalegria. No sei por que, h momentos que Neli

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    parece sentir-se to feliz, como se a vida para

    ela fosse um mar de ventura. Depois, cai numprofundo abatimento e tristeza. Perguntei-lhe

    a razo daquela tristeza repentina, disse-me que

    era a lembrana do pai.

    SANTA

    Coitadinha... Nem o direito de se sentir alegre

    ela tem. Aparece logo a viso de seu infeliz pai

    condenado. Essa viso, como um vu negro, co-

    bre aquela alma vida de felicidade.

    JUCA

    (entrando) Boa... boa... boa noite.

    MARLI E SANTA

    Boa noite.

    SANTA

    J noite?!

    JUCA

    J... j...SANTA

    Ah, j?

    JUCA

    No.

    SANTANo?

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    JUCA

    J... j... MARLI

    Mas o que isso, Juca? Uma hora voc diz que

    j noite, outra hora voc diz que no?

    JUCA

    Pois... num... num... num deixa eu... acab de

    fal! J... j... j so mais de 6 horas...

    MARLI

    Ento! J noite!

    JUCA

    (irritado) Mas... mas deixa eu acab de fal!

    MARLI

    Ento, fala logo, Juca.

    JUCA

    J... j... so mais de seis horas...

    MARLI

    Mas voc j falou isso, Juca!JUCA

    (muito irritado) Ma...ma...ma... (num repente

    nervoso, se despenteando todo) Mais deixa eu

    fal! (Marli mostra-se irritada, D. Santa sorri)

    J... j... j so mais de 6 horas e.. e... e... a...mame manda dizer que... que... que... logo

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    que... que... que... a Neli cheg para voc ir

    para casa. MARLI

    Sim. Logo que a Neli chegar eu vou.

    JUCA

    Eu... eu vou esper... pra ir com voc.

    SANTA

    Se voc quiser, pode ir, Marli. A Neli no deve

    demorar.

    MARLI

    Oh! No, D. Santa, eu esperarei.

    JUCA

    Ns... esperaremos.

    MARLI

    O jantar est pronto, a casa arrumada, de modo

    que, assim que a Neli chegar ns iremos.

    SANTA

    Escute-me, Marli. H pouco voc disse-me que Neli,s vezes, fica muito alegre, to feliz como se a

    vida fosse um mar de venturas... Estive pensando

    por que seria?... Ela sempre foi to triste...

    JUCA

    Ah... a s... a s... a senhora no sabia?(Marli leva-o para o canto) por... que... ela... ela...

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    MARLI

    (a meia voz) Cale-se! JUCA

    Por... por qu?

    MARLI

    (baixo) No quero que lhe diga.

    JUCA

    (idem) O qu?... Vo...Voc num sabe o que eu ia

    fal!

    MARLI

    (idem ) Ia dizer-lhe que Neli est namorando o

    Sr. Alberto, filho do Sr. De La Torre.

    JUCA

    (idem) Ta! A...Agora voc acertou.

    MARLI

    (idem) Pois bem, no lhe diga.

    JUCA

    (idem) Por... qu?MARLI

    (idem) Porque Neli no quer. Ela mesma que

    lhe quer dizer.

    JUCA

    (idem) T... bom. En...to eu num falo. Maisque... eles to namorando, to mesmo.

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    SANTA

    Perdoe-me a pergunta, Marli. Mas por que es-to vocs conversando baixinho?

    MARLI

    o Juca que est me contando umas coisas, mas

    sem importncia.

    SANTA

    Marli, por que seria que Neli, s vezes, sente-se

    to alegre? Ela nunca disse a voc o motivo?

    MARLI

    (mentindo) No... D. Santa. Eu no sei por qu.

    SANTA

    Oh, se soubesse como tenho vontade de ver Neli,

    e como sofro por no poder. Eu daria minha

    vida em troca de um momento apenas dessa

    felicidade imensa. Eu tenho necessidade de v-

    la. A sua idade perigosa, eu precisava ver-lhe

    o rosto para adivinhar no seu semblante demoa, o que se passa no seu corao, e que os

    seus lbios procuram cuidadosamente ocultar-

    me. Oh! Quanto anseio por sua felicidade, e eu

    serei ainda mais desgraada se ela no for feliz...

    (chorando) Oh! Marli, a Neli merece, precisa serfeliz... J tem sofrido tanto... tanto...

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    Alberto, o meu namorado. Creio que j o co-

    nhece de vista. ALBERTO

    (apertando a mo de Juca) Muito prazer.

    JUCA

    O... o...

    ALBERTO

    O mesmo?

    JUCA

    O... o... o...

    NELI

    J sei. O prazer todo seu.

    JUCA

    No.

    NELI

    No?

    JUCA

    N... num isso... que eu quero fal!ALBERTO

    (sorrindo) Fale.

    JUCA

    O s... o s...

    NELIO senhor!

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    JUCA

    (muito irritado) Ma...ma...ma... (num repente,nervoso, mexendo outra vez todo o cabelo) Mais

    deixa eu cab de fal! O s... o seu nome

    A...Aberto mesmo?

    ALBERTO

    Ah, sim! Meu nome Alberto Perdinari.

    JUCA

    Mu...mu...

    ALBERTO

    Muito prazer?

    JUCA

    Ta! A...a...gora acertou.

    NELI

    Vov est l dentro, Juca?

    JUCA

    T.

    NELIEscuta...Eu queria...

    JUCA

    J sei. ... ... (apontando os dois, d uma

    risadinha maliciosa) pra mim d o fora. Eu v...

    n...um... preciso mand. (sai rindodiscretamente)

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    NELI

    Estou curiosa para ver o presente que me deste.(muito alegre, vai a abrir)

    ALBERTO

    (impedindo) No abras agora. Deixa para depois

    que eu sair.

    NELI

    Ento dize-me o que !

    MARLI

    Boa noite, Sr. Alberto...

    NELI

    A vov est l dentro?

    MARLI

    Est.

    NELI

    Procure distra-la. No lhe diga que eu j che-

    guei. Quando eu der um assobio, pode vir.

    MARLI(sria) Ento no demore. E conversem baixo,

    porque sua av pode ouvir. Com licena.

    NELI

    (a Alberto) Eu ia contar um sonho que tive esta

    noite, mas agora no conto.

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    ALBERTO

    Por que, Neli? NELI

    Porque no me queres deixar ver o que h aqui

    dentro.

    ALBERTO

    Conta, Neli...

    NELI

    Eu conto, mas com uma condio.

    ALBERTO

    Qual ela?

    NELI

    Deixar eu abrir a caixa.

    ALBERTO

    Pois bem. Podes abri-la. (Neli vai abrir. Impedin-

    do) Mas primeiro conta o sonho.

    NELI

    Ento, vamos sentar.ALBERTO

    Vamos. (vai sentar junto mesa)

    NELI

    No a. Vamos sentar no banco para ficarmos

    mais longe dos ouvidos da vov.

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    ALBERTO

    Como quiseres. (sentam-se no banco)NELI

    Ouve. (pequena pausa) Sonhei que estvamos

    sentados sombra de uma frondosa rvore.

    Falavas aos meus ouvidos lindas palavras de

    amor. Por fim, levantamo-nos e pusemo-nos a

    correr, brincando, por uma estrada atapetada

    de flores. Essa estrada conduzia a um grande

    porto que se via ao longe e que, segundo

    supnhamos, era o Reino da Felicidade.

    Dirigimo-nos para l. Encontramos no caminho

    um viandante a quem perguntamos se aquele

    porto era a estrada para o Reino. Sim,

    respondeu-noso homem, mas aquele no o

    Reino da Felicidade, como todos supem. o

    Reino da Iluso. Mas como? disse eu Ali no

    h felicidade? H, mas uma felicidade ilusria.O Reino da Felicidade aquele, mais ao longe.

    L ela verdadeira e eterna. Tomem aquele

    outro caminho, abrupto, cheio de abismos, mas

    o nico que conduz quela porta. O viandante

    disse isso e foi-se embora. Ficamos por unsinstantes indecisos, sem saber qual caminho

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    seguir, quando num momento desabouuma tre-

    menda tempestade. O vento, fortssimo, impe-liu-me para a outra estrada. E vi ento com gran-

    de mgoa, que j tinhas outra moa ao teu lado

    e com ela seguias o caminho cheio de flores.

    ALBERTO

    Que estranho sonho!

    NELI

    Eu, chorando, segui sozinha aquela horrvel es-

    trada. Por fim, cheguei frente de um porto

    enorme, de cor azul celeste. Comecei, nesse

    momento, a ouvir uma msica linda, muito lin-

    da, que cada vez mais chegava aos meus ouvi-

    dos. Percebi ento que estava vestida de noiva.

    O porto abriu-se lentamente. L dentro, ao

    fundo, estava escrito, em letras de ouro: Reino

    da Felicidade Completa e Eterna. Eu no quis

    entrar, porque j no estavas ao meu lado. Fi-quei vagando ali, por alguns instantes, tua es-

    pera, quando, de repente, ouvi a tua voz cha-

    mar-me. Voltei-me e vi que vinhas cansado. Ao

    ver-me, teus olhos tiveram um brilho estranho

    de alegria, teus lbios esboaram um lindo sor-riso e ento eu disse baixinho, com medo que,

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    com o som da minha voz, se fechasse aquele

    porto: Vem, Alberto, vem... Eu vou... eu vou,disseste. Estendi a mo, que pegaste com ansie-

    dade, pela ponta dos dedos, ouviu-se o tocar de

    clarins, e assim entramos para o Reino da Felici-

    dade Completa e Eterna.

    ALBERTO

    Que sonho comprido!

    NELI

    Bem. Agora posso abrir a caixa?

    ALBERTO

    Pode.

    NELI

    (abre a caixa. Alegre, muito alegre, ao ver o

    vestido) Um vestido de noiva?!... (olha-o) Que

    lindo!!! V se fica bem para mim.

    ALBERTO

    Ficas ainda mais bonita. Neli, ests satisfeita como presente?

    NELI

    Se estou?! Que pergunta, Alberto!

    ALBERTO

    Neli, como estou ansioso que passem depressaesses cinco meses para a minha formatura. Nesse

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    dia, eu comunicarei ao papai a minha resoluo

    de casar contigo. (Neli fica triste) Depois vireipedir a tua mo a D. Santa. Ficaste triste, Neli?

    Por qu?

    NELI

    Porque tenho quase certeza de que o Sr. De La

    Torre no consentir o nosso casamento. E eu

    no poderei viver sem ti.

    ALBERTO

    Ele nunca poder fazer isso. Porque esse amor

    infinito. No existem foras no mundo capazes

    de extingui-lo. Amo-te, Neli! Amo-te muito,

    muito, e ainda que meu pai se oponha nossa

    unio, eu casarei contigo!...

    NELI

    Oh! Como me fazem bem as tuas palavras. (nou-

    tro tom) Desculpa-me, Alberto, mas eu tenho

    motivos para os meus receios. Nunca pude con-tar-te a verdade sobre o crime de que meu pai

    acusado e cuja vtima foi o teu verdadeiro pai.

    Mas juro-te, ele inocente. O criminoso ...

    ALBERTO

    (atalhando) No digas. J pedi por diversas vezesque no torne a falar no assunto. Acredito,

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    sinceramente, ser o teu pai inocente. Mas no

    posso deixar que acuse ao Sr. De La Torre, a quemdevo a gratido de ter olhado por mim, desde

    que me faltou meu pai. E depois, Neli, bem sa-

    bes que no h uma prova contra ele.

    NELI

    E se houvesse?

    ALBERTO

    Se houvesse, toda a minha dedicao se

    transformaria em dio. Isto , no seria

    propriamente uma transformao, porque sem-

    pre odiei o assassino de meu pai, embora no

    saiba quem seja.

    NELI

    Infelizmente esta prova no existe. Est bem,

    nunca mais falarei nisso. (fica triste)

    ALBERTO

    No fique triste, Neli. Hoje mesmo vou falar comas autoridades. Hei de trabalhar at conseguir

    o indulto para teu pai.

    NELI

    (grande alegria)Alberto!

    ALBERTOEle j cumpriu mais da metade da pena. Hei de

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    fazer-te feliz, se Deus quiser. Restituirei teu pai

    e dar-te-ei a minha mo de esposo!NELI

    E visto que ests estudando medicina especializan-

    do-se em doenas de olhos, poders tambm res-

    tituir vista a minha avozinha.

    ALBERTO

    Empregarei toda a cincia possvel.

    NELI

    Alberto, como serei feliz!... Completamente

    feliz!...

    ALBERTO

    Bem, agora vou-me embora. A tua av deve es-

    tar impaciente com a tua demora, e Marli deve

    estar furiosa espera do assobio.

    JUCA

    (entra) Vo...vocs desculpa. Ma...mais esto de-

    morando, e...eu n...um posso fic no sereno.NELI

    Por que, Juca? Voc est doente?

    JUCA

    Eu t c...om o calo doendo. (riem) Vocs esto

    rindo, ma...mais t do...endo no duro.

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    ALBERTO

    Eu j vou. At amanh, minha vida!...NELI

    At amanh, meu amor!...

    ALBERTO

    (da porta) Neli, guarde bem o meu primeiro

    presente.

    NELI

    Hei de guard-lo sempre... sempre. At a morte.

    (Alberto sai. Neli vai at a porta e desce, alegre,

    coloca o vestido na caixa. A Juca) Eu vou assobi-

    ar, se a vov perguntar quem assobiou, diga que

    foi voc. Eu vou l fora e depois entro como se

    estivesse chegando agora.

    JUCA

    T... bom. (Neli d um assobio e sai)

    SANTA

    (entra conduzida por Marli) Quem foi que asso-biou?

    JUCA

    Fui eu.

    SANTA

    Pensei que fosse a Neli.

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    JUCA

    Bem... mas ela m...mandou dizer que fui eu. (Nelientra e faz uma careta para Juca)

    SANTA

    Sempre marota... Mas onde est ela?

    NELI

    (alegre, descendo) Aqui estou, vovozinha.

    (abraando-a e beijando-a) Boa noite.

    SANTA

    Boa noite.

    NELI

    (dando uma piscadela) Boa noite, Marli.

    MARLI

    (sorrindo) Boa noite.

    NELI

    Como passou a boa vovozinha?

    SANTA

    Bem, minha filha. Passa-se o dia satisfeita, quandose tem em companhia uma menina como a Marli.

    MARLI

    Obrigada, D. Santa, isso bondade sua.

    SANTA

    E tu, Neli, No te sentes cansada? E como passasteo dia? Pois parece que chegaste to alegre.

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    NELI

    Passei muito bem, vovozinha.JUCA

    Ma...Marli, vamos pra c...casa, que... que... a

    mame t esperando.

    MARLI

    Vamos. At amanh.

    JUCA

    (ao mesmo tempo)A...a...a...

    NELI E SANTA

    At amanh. (Marli sai)

    JUCA

    A...a...at. (sai correndo)

    SANTA

    Escuta, Neli. Disseste que passaste bem, mas isso

    no justificativa para a tua alegria. Deve ha-

    ver outro motivo que tu procuras ocultar-me.

    (pausa) Conta, conta tua avozinha.NELI

    Tens razo, vov. Tenho um segredo que at

    hoje lhe ocultei, mas agora vou revelar. Porm,

    antes, quero dar senhora uma notcia que vai

    alegr-la imensamente.

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    SANTA

    Ah, Neli, minha alma est to habituada tris-teza, que dificilmente se alegrar.

    NELI

    Mas com a notcia que lhe vou dar, tenho certe-

    za de que a senhora ficar alegre.

    SANTA

    Diz.

    NELI

    H uma pessoa que est trabalhando para que

    papai seja indultado.

    SANTA

    (alegre) Que dizes, Neli? verdade? No est

    dizendo isso somente para alegrar tua vov?

    NELI

    No, vov. verdade.

    SANTA

    E quem essa pessoa, essa nobre alma, que as-sim se compadeceu de ns?

    NELI

    A senhora nem pode calcular.

    SANTA

    Quem , Neli?

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    NELI

    o Sr. Alberto. SANTA

    (grande espanto)Alberto, o filho do assassinado?

    NELI

    Ele mesmo.

    SANTA

    Mas como?

    NELI

    Ele sabe que o papai inocente.

    SANTA

    (alegre) Mas quem te deu to auspiciosa not-

    cia?

    NELI

    Ele mesmo. Disse-me tambm que vai tentar

    restituir-lhe a vista!

    SANTA

    (num crescendo de alegria)A mim? Mas como?NELI

    Ele estudante de medicina. Est se

    especializando em doenas de olhos e dentro

    de poucos meses receber diploma.

    SANTAOh! Meu Deus! Parece incrvel tudo quanto

    estou ouvindo.

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    NELI

    Ouviu, vov, ele, esse anjo querido, vai nos res-tituir toda a felicidade.

    SANTA

    Anjo querido?... Tu o amas?

    NELI

    Adoro-o, vov! Adoro-o.

    SANTA

    E s correspondida, minha filha?

    NELI

    (muito alegre) Se sou!?... Oh! Vov, ele me quer

    muito, muito!... A senhora no pode calcular

    qual foi o primeiro presente que ele me fez.

    SANTA

    O que foi, Neli?

    NELI

    Vamos ver se a senhora adivinha. (abre a caixa e

    pe o vestido no colo de D. Santa)Adivinha, vov.SANTA

    Um vestido.

    NELI

    Sim, vovozinha, mas um vestido de noiva!...

    SANTA(com um sorriso que deve expressar imensa ale-

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    NELI

    Ele vir pedir a minha mo. Tenho certeza deque a senhora no lhe negar.

    SANTA

    Oh! No, minha filha...

    NELI

    Nem poderia, no assim vov? A ele que vai

    restituir a liberdade ao papai, a vista senho-

    ra e vai fazer de mim a esposa mais venturo-

    sa! No vov? No assim?... (chora de ale-

    gria debruada ao colo de D. Santa que est

    sentada)

    SANTA

    Ento, minha filha!... Choras de alegria...

    NELI

    (com muita alegria e lgrimas a correr) Como

    serei feliz, vov!... Como serei feliz!...

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    Terceiro Ato

    Casa rica. A E. sof e poltronas. A D. mesa com

    cadeiras. Ao F. mesinha com rdio. Porta. Vasos e

    flores, etc. Ao abrir a cortina, esto todos em cena.

    BENEVIDES

    (portugus) Sr. De La Torre. A festa est espln-dida!

    TORRE

    Desejei dar festa de hoje, que de formatura

    de meu querido Alberto, um cunho excepcio-

    nal! Ele bem o merece!

    ADLIA

    (portuguesa) (intencional) Sem dvida! Bem o

    merece! E ele tem dispensado aos convidados

    uma ateno distintssima, digna de nota!

    ALBERTO

    Obrigado pelo elogio, senhorita. Mas creiam que

    a convidados to ilustres como os que brilham

    nesta festa, todas as atenes so poucas.

    ADLIA

    Sempre gentil!... (msica)

    COMPARSAVamos danar? Vamos para o salo.

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    TODOS

    Vamos. (exceto Francisco e De La Torre, desta-cando-se a voz espalhafatosa de Adlia) Vamos!

    Vamos! (saem)

    TORRE

    Parece que tudo vai maravilhosamente bem!

    FRANCISCO

    A mim tambm me parece.

    TORRE

    Tal qual eu desejava, oh pah!, esse portugus

    bronco, possui uma fortuna imensa e uma ig-

    norncia ainda maior. J lhe falei do emprsti-

    mo. Ele disps-se a atender-me logo mais.

    FRANCISCO

    O que ele quer casar a filha com Alberto. Coi-

    tado. Com um qu de moderna, essa pequena

    muito leviana. uma menina endiabrada. H

    poucos dias que est no Brasil e j conhece todoo palavreado da nossa gria.

    TORRE

    Meio caminho j est andado. Farei com que

    Alberto case com Adlia e com isso obterei o

    emprstimo.

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    FRANCISCO

    E mais tarde ir pagar essa dvida?TORRE

    No!... E o portugus no me ir apertar por isso.

    Eu, o pai de seu genro!... No achas?

    FRANCISCO

    Muito bem, o senhor faz tudo calculadamente.

    (noutro tom) Mas se no se casarem?

    TORRE

    Ora, tanta certeza tenho deste casamento, que

    j escrevi ao teu av, avisando-lhe que Alberto

    embarcar para l a fim de casar com Adlia.

    FRANCISCO

    Mas vo casar em Portugal, por qu?

    TORRE

    Pois no sabe que o Sr. Benevides e a filha em-

    barcam amanh mesmo para a Europa?

    FRANCISCOPois um perigo. Bem sabe que o meu av, por

    causa dos seus remorsos, precisou afastar-se do

    Brasil. No v ele l, agora, confessar tudo ao

    Alberto.

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    TORRE

    No h perigo! J lhe escrevi uma carta preve-nindo-o! Aqui est: (tira do bolso e l) Meu ami-

    go Francisco Pereira, etc. Alberto dever seguir

    para a, a fim de casar com a filha do Sr.

    Benevides Barbosa. Fao esse casamento com o

    fim de obter um emprstimo. Para isso, vou di-

    zer a Alberto que estou arruinado e que tu s o

    meu credor. Portanto, caso ele te perguntar,

    confirma. Tenha prudncia. No vais, com teus

    remorsos, confessar ao Alberto o assassnio de

    seu pai, porque eu serei preso, mas caluniarei

    ao teu neto e ele ir comigo.

    FRANCISCO

    Por que o ameaa dessa maneira?

    TORRE

    Porque eu sei o quanto ele te estima, e por tua

    causa ele me obedecer.FRANCISCO

    Mas uma imprudncia escrever isto numa carta.

    TORRE

    Com teu av preciso que seja assim. Mas tem

    razo... esta carta poder ser interceptada e...No, no devo mand-la. (Pe sobre a mesa)

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    BENEVIDES

    Tambm quero que cases. Mas veja se te portasdireito. Estavas numa algazarra com aqueles ra-

    pazes.

    ADLIA

    Eles estavam me ensinando termos usados na

    gria brasileira. Ora, uma jovem inteligente

    como eu, tem de aprender a conversar com os

    moos brasileiros.

    BENEVIDES

    Bem, eu te peo que tenhas muito juzo. J hoje

    durante o almoo tu estavas a tagarelar demais.

    ADLIA

    No adianta! O senhor no entende mesmo

    nada. Vamos mudar de assunto. Ento, e o ne-

    gcio do casamento?

    BENEVIDES

    Mas, minha filha, esse negcio pode no dar certo.ADLIA

    D certo, sim.

    BENEVIDES

    Esse negcio de filha o diabo! Escuta, minha

    filha, esse rapaz pode vir a saber do teu passa-do, cheio de leviandade e sabes como .

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    ADLIA

    Ningum ter a ousadia de lhe dizer. De mais amais, eu quero de qualquer maneira casar com

    ele, pronto. (sai, passando por De La Torre que

    acaba de entrar)

    TORRE

    A sua filha um raio de luz!

    BENEVIDES

    (aparte) o raio que a parta! (alto) O seu filho,

    sim, um moo muito distinto, inteligente.

    TORRE

    E que breve ser seu genro.

    BENEVIDES

    (numa alegria)Ai, ai, ai! A minha Adelita quando

    souber, vai ficar muito alegre!

    TORRE

    E a respeito do emprstimo que lhe pedi, Sr.

    Benevides?BENEVIDES

    Hoje mesmo, depois de anunciado o noivado,

    vou providenciar isso. No poderei deixar de

    servir ao futuro sogro de minha filha.

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    CRIADO

    (entra) O Sr. Francisco manda pedir ao Sr. De LaTorre que faa o obsquio de chegar at o sa-

    lo. (sai)

    TORRE

    Com licena. (sai)

    BENEVIDES

    (s) No faz mal. Eu ainda vou ganhar no negcio.

    Empresto o dinheiro, mas caso minha filha.

    ADLIA

    (entra) Oh! Ainda nesta sala, papai? Ento, como

    vai a coisa?

    BENEVIDES

    Que coisa?

    ADLIA

    Quero dizer, o senhor, como vai? Est bom?

    BENEVIDES

    Ah!... A coisa ento sou eu?... Vou indo assim,assim.

    ADLIA

    Vaitemperando, no assim?

    BENEVIDES

    Eu no estou temperando nada no, minha filha.(aparte) Esta menina est ficando maluca!

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    ADLIA

    Oh, papai! Mas isto aqui bom! Eu quisera novoltar mais para Portugal. A coisa aqui boa!

    do balaco-baco!...

    BENEVIDES

    do qu?

    ADLIA

    do balaco-baco.Aqui cocoreco e pronto.

    BENEVIDES

    (aparte) Ela est ficando maluca! (alto) O que

    coroquco?

    ADLIA

    Cocoreco bico de pato. Quer dizer que aqui

    no tem conversa mole pra boi dormir, no!

    BENEVIDES

    Escuta; o que que tem o bico do pato com a

    conversa do boi?

    ADLIA(depois de rir) Qual! O senhor no manja mesmo

    nada. Para falar com o senhor s mesmo

    portuguesa.

    BENEVIDES

    lgico! Tu vens falar em baco-baco, emcoroquco, em bico de boi, conversa de pato

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    quando est dormindo! Vou l entender esse

    negcio?... ADLIA

    (depois de rir) O senhor no emboca uma! O

    senhor no pode mesmo entender. No Brasil o

    lero-lero diferente. (pausa) Ento, j cuidou

    do casamento?

    BENEVIDES

    J falei ao Sr. De La Torre. Ele consente e disse

    que o filho gosta de ti.

    ADLIA

    Eu bem o sabia! No h homem que resista a

    uma bela cachopa portuguesa!...

    BENEVIDES

    Escuta aqui, minha filha, mas fala direito. No

    enrola a lngua, no. Tu amas esse rapaz?

    ADLIA

    Eu gosto dele, mas amar no! Amor hoje em dia manga de culete.

    BENEVIDES

    Manga de culete? Ta. por isso que eu no

    gosto de modernismo. Nos meus culetes, eu no

    deixo por manga!

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    ADLIA

    Creio que desta vezacertei a mo!BENEVIDES

    Acertou a mo aonde?

    ADLIA

    Causarei inveja a todas as minhas patrcias.

    Mulher de um mdico! Qual, papai, vou casar

    com ele! o meu pedao!

    BENEVIDES

    (espantado) Qu?! Falta um pedao ao rapaz?

    Pois olha, eu no sabia.

    ADLIA

    Fique sabendo agora. Mas com ele, papai, a con-

    versa outra. O Albertinho gosta de romantis-

    mo. E nessa matria eu sou mestra.

    ALBERTO

    (entra) Oh! Por aqui!

    ADLIAComo vs.

    BENEVIDES

    (aparte) Pronto. L vai besteira. (alto) Com

    licena. (sai)

    ADLIA(olhando para o sof, intencionalmente) Estou

    to cansada!...

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    ALBERTO

    (indicando o sof) Pois ento sente-se.ADLIA

    S se tu me fizeres companhia.

    ALBERTO

    Perfeitamente, senhorita.

    ADLIA

    Eu e papai falvamos a teu respeito. Falvamos

    de teus dotes de inteligncia.

    ALBERTO

    So bondades de vossa parte todos esses elogios.

    O que sei no produto da minha inteligncia.

    Devo aos anos que passei nas escolas, aos meus

    mestres.

    ADLIA

    Eu te aprecio imensamente. Perdoa-me a fran-

    queza feminina: tu s o tipo sonhado pela maio-

    ria das mulheres modernas. Inteligente, simpti-co e com uma posio privilegiada na sociedade.

    ALBERTO

    (rindo) Interessante! A luz bela e fulgurante de

    um sol, fazer a apologia da insignificante luz

    de uma vela de cera. (entra Benevides e prana porta)

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    ADLIA

    Pois eu desejava ser uma vela de cera.BENEVIDES

    (aparte, pondo a mo na cabea) Pronto! Agora

    quer virar vela de sebo. Ficou maluca de uma

    vez. (sai)

    ADLIA

    Sim. Este sol fulgurante preferiria mil vezes ser

    uma pequenina vela de cera, para derreter-se

    ao lado de uma sua companheira, confundindo

    a minha luz com a sua luz, e ao fim, aps derre-

    tidas, fundirem-se numa s.

    ALBERTO

    Muito bem! Inteligente! Bela declarao do

    amor! Admirvel!

    ADLIA

    (vaidosa) Gostou?

    ALBERTO(seco) No. Admirei.

    ADLIA

    E achou-me inteligente. (com superioridade) Pois

    fique sabendo que esse pequeno vislumbre de

    inteligncia no adquiri nas escolas.

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    ALBERTO

    (sorridente e mordaz) Pequeno?!... Oh! Quantamodstia! (Adlia levanta-se indignada e encon-

    tra-se com Benevides)

    ADLIA

    (na porta) Papai, quero casar com este rapaz de

    qualquer jeito, porque eu o odeio e ele no gosta

    de mim. (sai)

    BENEVIDES

    (consigo) Mas, raio me parta se estou

    entendendo alguma coisa! (alto) Senhor

    Alberto... faz favor... (entram rapazes em alga-

    zarra, atrs de Adlia: todos querem danar com

    ela)

    ADLIA

    (sempre espalhafatosa) Esperem! Peo desculpa,

    mas j estou comprometida.

    FRANCISCOCom quem?

    ADLIA

    Com o Alberto. (Alberto, contrariado, oferece-

    lhe o brao e saem seguidos da comparsaria)

    TORRE(entrando, para Benevides) Ento, como vai o

    lindo par?

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    BENEVIDES

    A minha filha est maluca.TORRE

    Que diz?!

    BENEVIDES

    No sei. Ela fala umas coisas que eu no entendo.

    FRANCISCO

    O que diz ela?

    BENEVIDES

    Disse-me que aqui no Brasil o lero-lero dife-

    rente.

    TORRE

    Hein?!

    BENEVIDES

    , ela est maluca mesmo. Falou-me que no

    gosta de conversa mole! Como que se pode

    amolecer uma conversa?

    TORREMas...

    BENEVIDES

    No!... No h dvida no! Ela est maluca mes-

    mo! Pois ela est pensando que o seu filho

    prncipe!

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    TORRE

    (srio) O qu?! BENEVIDES

    Sim, ela disse-me que vai falar com um brasileiro

    da coroa. (Torre e Francisco rindo. A Torre) O

    senhor est rindo? Olhe aqui, ela disse mais...

    disse-me que... eu at tenho vergonha de dizer.

    TORRE

    Pode dizer.

    BENEVIDES

    Ela disse que seu filho no completo, no!

    TORRE

    (espantado) O qu?!

    BENEVIDES

    Disse-me, h pouco, que ele um pedao s!

    TORRE

    (irritado, a Francisco) Esse portugus est louco!

    Com licena!BENEVIDES

    Coitada de minha filha! Ficar maluca em plena

    e ridente juventude!

    FRANCISCO

    Acalme-se, Sr. Benevides. Quem sabe se o se-nhor no compreendeu bem.

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    BENEVIDES

    Como que no compreendeu? Pois olhe, escu-te, e se a Adelita no est maluca. Ela estava

    aqui a falar com o Alberto. Entrei para ouvir o

    que falavam, e calcula o que ela disse!

    FRANCISCO

    O que foi?

    BENEVIDES

    Ela quer virar vela de sebo.

    FRANCISCO

    No estou entendendo.

    BENEVIDES

    Nem eu. como lhe digo: minha filha est ma-

    luca.

    FRANCISCO

    Ou ento o senhor est ficando caduco!

    BENEVIDES

    Caduco!? Caduco, eu?!FRANCISCO

    No, o senhor no est caduco. Est louco. (vai

    saindo)

    BENEVIDES

    Louco o raio que o parta! (pausa) Coitada deminha filha! Querer virar vela de sebo!... Como

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    que pode? No possvel! (vai atravessando a

    cena Adlia e Alberto) Adelita! Vem aqui. Ex-plica-me esse negcio de vela de sebo. J estou

    com a vela atravessada na garganta.

    ADLIA

    Que vela de sebo, papai?!

    BENEVIDES

    Tu no disseste que quer virar vela de sebo?

    ADLIA

    Eu?! O senhor enlouqueceu?

    BENEVIDES

    (levando Alberto para um canto, a meia voz) O

    senhor no acha que ela est maluca?

    ALBERTO

    No!

    BENEVIDES

    Ento o maluco sou eu!... (Adlia e Alberto saem)

    Ai, ai, que estou maluco mesmo!

    (Francisco e Torre entram)

    BENEVIDES

    (vendo-os) Senhor De La Torre, amanh mesmovou internar-me num hospcio.

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    TORRE

    Por qu? BENEVIDES

    (voz chorosa)Acabo de saber que estou sofrendo

    das faculdades mentais.

    TORRE

    Acalme-se. O senhor no tem nada. Est de per-

    feito juzo.

    BENEVIDES

    Ento minha filha que est maluca!

    TORRE

    Deixe disso, senhor Benevides.

    BENEVIDES

    Qual, eu creio que... creio... qual! Creio que j

    nem sei mais o que creio!... Creio que estou

    ficando maluco mesmo! Logo que minha filha

    casar vou passar para o seu nome toda a minha

    fortuna, para que meu genro dirija os meusnegcios. (Torre olha com um sorriso,

    significativamente, para Francisco)

    FRANCISCO

    Toda a sua fortuna?!

    TORREPois, senhor Benevides, garanto-lhe que em bre-

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    ve meu filho ser seu genro.

    BENEVIDESEle gosta de minha filha?

    TORRE

    Se gosta!... Est loucamente apaixonado por ela!

    BENEVIDES

    Mas, raio me parta se eu entendo alguma coisa!

    Foi Adelita mesma quem me disse que ele no

    gosta dela!

    TORRE

    Impossvel! Ele no diria isso!

    BENEVIDES

    Ento no resta dvida. Eu estou mesmo malu-

    co! (voz chorosa, saindo) Volto amanh para

    Portugal e vou internar-me num hospcio. (sai)

    FRANCISCO

    (rindo) Coitado!... (entra criado com uma carta)

    CRIADOUma carta para o Sr. Alberto.

    TORRE

    (l o subscrito) Quem lhe entregou esta carta?

    CRIADO

    Um rapaz.

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    TORRE

    No disse o nome? CRIADO

    No, senhor. S sei informar que gago.

    TORRE

    Est bem. No diga ao Alberto que veio esta carta.

    CRIADO

    Sim, senhor. (sai)

    FRANCISCO

    com certeza carta da namorada de Alberto.

    TORRE

    Parece-me. (l num correr de olhos. Fala) Ora,

    aqui est o que vai decidir Alberto a deixar esta

    menina. Ouve (l) Meu querido... H 2 dias que

    no te vejo. Estou como louca a pensar que no

    vens porque j... Oh! no quero nem pensar.

    Espero-te ansiosa. Serei tua, sempre tua. Beijos.

    Neli. (Fala) Magnfico! Magnfico! A ltimaetapa est vencida.

    FRANCISCO

    Como?

    TORRE

    (Mostrando a carta) Nota que ela escreveuapenas meu querido, omitiu o nome.

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    FRANCISCO

    Bem, mas a carta dirigida a Alberto.TORRE

    Isso fora de dvida! (cnico) Mas colocando aqui

    o teu nome, deixar de o ser.

    FRANCISCO

    O meu nome?!

    TORRE

    E aqui onde ela escreveu 2, cabe perfeitamente

    o nmero um. Ficar doze... E aqui onde ela diz

    chego a pensar que no vens, porque j...

    FRANCISCO

    Naturalmente essa reticncia quer dizer: por-

    que j... no me amas.

    TORRE

    (sempre cinicamente) Sim, mas aqui ns conclui-

    remos a frase de outra maneira. (tirando do

    bolso uma caneta tinteiro) Mos obra. (vai mesa)

    FRANCISCO

    Cuidado.

    TORRE

    (com um sorriso) No tenha receio. Para imitarletras, eu sou perito. (escreve Francisco) Que tal?

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    FRANCISCO

    Repare que h diferena de caligrafia.TORRE

    Bem, mas so poucas palavras acrescentadas. De-

    mais, Alberto no dar por isso, tenho certeza.

    FRANCISCO

    E agora?

    TORRE

    Fique com esta carta, v para o salo e aparea

    s quando eu te mandar chamar.

    FRANCISCO

    Est bem. (sai)

    TORRE

    Vai tudo maravilhosamente bem!... (entra Alberto)

    Oh! Meu filho, foi bom vires at aqui neste mo-

    mento. Preciso falar-te de assunto muito srio.

    ALBERTO

    Estou s suas ordens.TORRE

    Vou fazer-te uma revelao que, se at agora

    no fiz, foi unicamente para no te causar um

    desgaste e no perturbar os teus estudos. Estou

    arruinado. Devo muito mais do que possuo.

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    ALBERTO

    (depois de pequena pausa de tristeza)A quem?TORRE

    Tenho um nico credor, o Sr. Francisco Pereira ,

    que ora reside em Portugal.

    ALBERTO

    Mas como foi isto?

    TORRE

    Negcios, meu filho. Nunca te disse, para no

    te desgastar. Bem sabes que a fortuna deixada

    por teu pai at hoje de nada te valeu, visto que

    est nas mos da justia e s te ser entregue

    quando casares. Eu cheguei at situao de

    ver-me obrigado a parar os teus estudos. Ento,

    para que isso no sucedesse, fiz um emprsti-

    mo. Outros negcios fracassaram, outros em-

    prstimos, e hoje estou arruinado. (pausa)

    Pois bem. At hoje eu me sacrificaria por ti enada te pedi. Espero que no negues o primeiro

    favor que te peo.

    TORRE

    Pedi ao Sr. Benevides um vultuoso emprstimo.

    Com ele desafogarei a minha situao. Ao mes-mo tempo dizia-me ele que o seu maior desejo

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    era ver a filha casada contigo. Pois bem. Hoje,

    depois de anunciado o noivado, ele me far oemprstimo.

    ALBERTO

    Como? Ento o senhor, para salvar-se da runa,

    est vendendo a minha felicidade?!

    TORRE

    (numa tristeza fingida) Oh! meu filho!... Como

    di uma ingratido!

    ALBERTO

    Perdoa-me. Pea-me outra coisa qualquer, me-

    nos isso!

    TORRE

    Por que, meu filho? Achas que ela no uma

    moa digna?

    ALBERTO

    No, no isso. que amo outra. E nada h neste

    mundo capaz de impedir que eu case com ela!TORRE

    (fingindo ignorar) Ah!... bem... no preciso

    desesperar, meu filho. Julguei que ainda no

    tivesse pensado no casamento e queria

    proporcionar-te um matrimnio altura e comisso salvar-me da misria que me espera... (nou-

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    tro tom) Mas a minha situao, para mim, coi-

    sa secundria. Eu quero ver feliz o meu queri-do filho.

    ALBERTO

    Quanto o Sr. bom!

    TORRE

    (sorridente) Dize-me, quem a deusa?

    ALBERTO

    a Srta. Neli, filha do Sr. Fernando Siqueira.

    TORRE

    (fingindo surpresa) O assassino?!... Tu casares

    com a filha do assassino do teu pai?

    ALBERTO

    Perdo, mas eu no acredito que seja ele o as-

    sassino!

    TORRE

    Eu fui testemunha de vista. Teu pai, antes de

    morrer, pediu-me que te dissesse que vingassea sua morte. E a tua vingana essa!

    ALBERTO

    Mas, ainda que o pai de Neli seja o assassino, ela

    no culpada!

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    TORRE

    Ser uma loucura o que ests tentando fazer!ALBERTO

    No posso, de maneira alguma, retroceder. Amo-

    a acima de tudo no mundo, e ela adora-me.

    Nunca cometerei a monstruosidade de

    abandon-la. Portanto, nada me far demover.

    Com licena. (vai sair)

    TORRE

    Alberto! Ouve... (Alberto desce) Meu filho... sei

    que amas muito essa menina. Por isso lutei de

    todas as maneiras a fim de poupar-te um grande

    desgosto. Mas foste irredutvel. Alberto, juro-

    te: preferia ser ferido por qualquer desgraa,

    por maior que fosse, a revelar-te este segredo.

    ALBERTO

    (surpreso) O que h?

    TORRE(pondo as mos sobre os ombros de Alberto,

    abanando a cabea, fingindo grande tristeza)

    Meu filho!... Meu pobre filho!

    ALBERTO

    O que h? Pode dizer.

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    TORRE

    Essa moa, por quem ests apaixonado, umaperdida.

    ALBERTO

    (retirando violentamente dos ombros as mos

    de De La Torre) Mentira! (num grande dio) Eu

    deveria matar-te, canalha! Bem sei o quanto tu

    s miservel! At hoje, sempoder falar, tenho

    visto as tuas torpezas, trapaceando nos negci-

    os, roubando. Contive-me sempre pela gratido

    que te devo por ter olhando por mim desde que

    morreu meu pai. Porm, agora, que procuras

    caluniar infamemente aquela que adoro, digo-

    te: se tornares a repetir o que acabas de dizer,

    esquecerei tudo e saberei como punir-te!

    TORRE

    Meu filho...

    ALBERTO(atalhando) Eu no sou o teu filho!

    TORRE

    (humildemente) Pois bem. Ouve-me. No sabes

    avaliar o meu amor por ti. verdade, tenho con-

    seguido dinheiro de maneiras incorretas, reconhe-o. Mas, se o fiz, foi unicamente para garantir

  • 7/31/2019 Antenor Pimenta - E o cu uniu dois coraes

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    seus estudos, pois eu me via arruinado. Eu come-

    teria todas as loucuras, contanto que fosse paraa tua felicidade. por ti que tenho feito tudo

    isso... Perdo, Alberto, tudo quanto me disseste.

    Um pai perdoa tudo a um filho, e eu, embora

    no seja teu pai, amo-te como se fora meu filho.

    ALBERTO

    Perdoa-me. Mas repare que o senhor avanou de-

    mais na sua oposio ao meu casamento com a Neli.

    TORRE

    O que te disse foi apenas para teu bem. E nunca

    te diria se no tivesse prova.

    ALBERTO

    Prova?! O Sr. tem prova?!

    TORRE

    Sim. (toca a campainha) H quantos dias no vs

    essa menina?

    ALBERTOH dois dias. (Entra o criado )

    TORRE

    (frisando) H dois dias... (ao criado) Diga ao Sr.

    Francisco que faa o obsquio de vir at aqui.

    (criado sai. A Alberto) Pois bem, hoje ela man-dou uma carta a um nosso amigo.

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    ALBERTO

    (j desvairado) Uma carta?TORRE

    Sim. A uma pessoa que tu deves considerar o

    teu melhor amigo, pois apressou-se em avisar-

    me o ocorrido para que eu te prevenisse.

    ALBERTO

    A quem foi dirigida esta carta? Onde est ela?

    Quero l-la!

    TORRE

    A carta foi dirigida a Francisco e est em seu poder.

    ALBERTO

    (consigo) Oh! Mas custa-me a crer!... No pos-

    svel!... (entra Francisco)

    TORRE

    Francisco. Mandei chamar-te para que mostres

    a carta que recebeste hoje e que me mostraste

    h pouco, aqui.FRANCISCO

    No sei se deva.

    ALBERTO

    (abatido) Pode mostr-la, Francisco. Eu ficareiagradecido.

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    FRANCISCO

    (tirando-a do bolso e entregando-a) Ei-la.ALBERTO

    (olha-a) sua letra, no h dvida. Ento

    verdade! (Torre e Francisco trocam um olhar

    de satisfao. L.) Meu querido Francisco. H

    12 dias que no te vejo. Estou como louca.

    Chego a pensar que no vens por que j...

    aproveitaste da minha inocncia. (gesto

    fisionmico de abatimento de Alberto) Oh!

    No quero nem pensar. Espero-te ansiosa. Se-

    rei tua, sempre tua. Beijo-te. Neli. (amarrota a

    carta, deixando-a cair ao cho num grande

    abatimento)

    TORRE

    Este era o desgosto que te queria poupar, meu

    filho. Ela perdeu-se antes de tu a conheceres,

    no verdade, Francisco?FRANCISCO

    (a medo) Sim... pois agora eu no faria isso.

    TORRE

    Preciso guiar-te, meu filho. Este mundo cheio

    de desenganos. Esquece essa ingrata que no

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    TORRE

    Nada disso. Bem sabes que no ficaria bem. Edemais, agora tu precisas distrair-te. Vai, vai para

    o salo, meu filho e esquece este fato, indigno

    que estar na tua memria.

    ALBERTO

    (depois de curta hesitao) Com licena. (sai para

    o salo)

    TORRE

    (a Francisco) Vai tudo maravilhosamente bem.

    Vamos procurar o Sr. Benevides para comunicar-

    lhe. (saem)

    BENEVIDES

    (entra do lado oposto) No possvel!... Como

    pode ser!... No pode!... (passeia, tenso) No

    pode, no possvel!... (passa um casal de

    comparsas) Por favor. Os senhores acham que

    uma mulher pode virar vela de sebo?COMPARSA

    O senhor est louco! (saem)

    BENEVIDES

    (irritado) Mas ela falou isto! (passeia) Ela est malu-

    ca. (Entra um comparsa) Faa-me o favor. O senhoracha que uma mulher pode virar vela de sebo?

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    JUCA

    (sempre gaguejando) Como que no pode?CRIADO

    Tenha a bondade!

    JUCA

    Que bondade o que , s!

    BENEVIDES

    (a Juca) Faa-me o favor. Tu achas que eu estou

    maluco?

    JUCA

    O sinhor t louco nada, s! Quem t louco esse

    camarada a(aponta o criado)

    BENEVIDES

    Graas a Deus! (abraa Juca)Achei um que diga

    que eu no estou maluco!

    CRIADO

    (enrgico) Tenha a bondade de retirar-se!

    BENEVIDESDeixe-o . Ele meu amigo.

    CRIADO

    Se voc for l para o salo, eu o esmago... (sai)

    BENEVIDES

    (apontando o sof) Sente-se ali. (Sentam-se) Tuachas que uma mulher pode virar vela de sebo?

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    300

    JUCA

    (aparte) Uai, o homem t maluco mesmo!BENEVIDES

    Faa-me o favor. Tu achas que eu estou maluco?

    JUCA

    No... O senhor t co intestino da cabea estra-

    gado.

    BENEVIDES

    Isto sim, mas maluco no estou! Tu s meu amigo!

    JUCA

    Eu...eu...

    BENEVIDES

    No diga nada. Um abrao!... (Abraa-o)

    JUCA

    Eu...eu...

    BENEVIDES

    Outro abrao! (torna a abra-lo)

    JUCAEu...eu...

    BENEVIDES

    Outro mais! (abraa mais uma vez)

    JUCA

    (levanta-se e afasta-se, aparte) O homem loucoferis!

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    301

    BENEVIDES

    Olhe, meu amigo, disponha de mim no quequiseres.

    JUCA

    Eu...eu... venho buscar a resposta da carta que

    eu trouxe pro senhor A...A...Aberto.

    BENEVIDES

    Pr quem?!

    JUCA

    Senhor Al...Alberto.

    BENEVIDES

    Ah! Bem. Ele est l pro salo. Vamos l.

    JUCA

    No. L eu no v.

    BENEVIDES

    Por qu?

    JUCA

    Porque o criado me esmagaria.BENEVIDES

    Quem sabe se a resposta est por aqui mesmo?

    (vai mesa) Ora aqui est uma. (pega a carta que

    De La Torre deixou sobre a mesa) Deve ser esta.

    Veja se no . Leia. (Juca pega a carta, olha, vira-ade diversas maneiras) Tu no sabes ler, homem?

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    JUCA

    Eu num leio porque est escrito a tinta. Eu sei la lpis.

    BENEVIDES

    Tu no tens vergonha de no saber ler?

    JUCA

    Ento l voc, seu portugueis. (entrega a carta)

    BENEVIDES

    (pega a carta, olha, vira-a de diversas maneiras)

    Eu no leio, compreendeu, porque eu s sei ler

    em portugus.

    JUCA

    Pois brasileiro e portugueis a mesma coisa.

    BENEVIDES

    No no senhor!

    JUCA

    Por qu?

    BENEVIDESPorque no Brasil o lero- lero diferente!

    JUCA

    Sai da, purtugueis, voc tambm num sabe l!

    Mais num tem nada. Eu num saio daqui sem lev

    a resposta do seu A...Aberto.

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    CRIADO

    Voc ainda aqui?... Vou chamar o Sr. De La Torre!BENEVIDES

    A resposta deve estar por aqui mesmo, sabes.

    (apanha a carta de Neli no cho) Olha aqui, outra

    carta. Uma delas a resposta, mas para evitar

    enganos, tu levars as duas.

    JUCA

    isso mesmo. (guarda-as)

    BENEVIDES

    Mas faa-me o favor. (vo para o meio da cena)

    Vamos falar como dois homens srios. Como dois

    homens de juzo. Tu achas que uma mulher pode

    virar vela de sebo?

    JUCA

    , seu portugueis. Esse negcio t me enchendo

    as medidas. Voc t pensando que eu s trxa?

    BENEVIDESFaz o favor. Eu estou falando srio. Tu achas ...

    JUCA

    Olha aqui, portugueis, voc t maluco!...

    BENEVIDES

    Viu? Eu sabia que no fim tu acabarias tambmdizendo isso! (consigo) No resta dvida eu es-

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    tou louco mesmo. Amanh embarco para Portu-

    gal e vou internar-me num hospcio. (vai saindo)JUCA

    (chamando) portugueis!

    BENEVIDES

    O que h?

    JUCA

    Eu vou estud o seu caso.

    BENEVIDES

    V estudar o raio que te parta! (sai. Entra De La

    Torre e criado)

    CRIADO

    (apontando Juca) aquele ali.

    TORRE

    Que faz o senhor aqui?

    JUCA

    Vim busc a resposta da carta que eu troxe pro

    seu Alberto.TORRE

    Ponha esse sujeito para fora.

    JUCA

    Sujeito a tua av! (sai, empurrado pelo criado)

    FRANCISCOE ento?

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    TORRE

    Senhor Benevides, no viu por acaso, duas car-tas naquela mesa?

    BENEVIDES

    O gago levou-as consigo. (fica pensativo, com a

    cabea apoiada nas duas mos)

    TORRE

    (toca a campainha, passeia agitado, entra criado)

    V procurar o gago, e tire-lhe duas cartas que

    ele levou daqui.

    CRIADO

    E se for preciso usar de violncia?

    TORRE

    Faa o que quiser, contanto que traga as cartas.

    CRIADO

    (arregaando as mangas) Pois aquele gago vai

    me pagar direitinho!... (sai)

    FRANCISCO(baixo a Torre) Ser um desastre! Se Neli vir a

    sua carta alterada e a que o senhor escreveu ao

    meu av, nos poder perder.

    TORRE

    Bem, felizmente, a minha carta ainda no estassinada. (pausa) Mas no h perigo, o criado as

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    trar. (entram Adlia e Alberto) Ora, o lindo par

    por aqui, ao invs de ir danar?FRANCISCO

    Os apaixonados preferem a solido.

    ADLIA

    Muito bem!... Por certo, o senhor j esteve apai-

    xonado.

    FRANCISCO

    No. Eu li isso num livro.

    ADLIA

    Eu no gosto de frases feitas. Prefiro as que surgem

    da prpria inteligncia, inspirada nessa fonte ines-

    gotvel que o amor, e ditada pelo corao!

    BENEVIDES

    (levanta-se e vai at ela) Escuta, minha filha.

    Aquela frase sua mesmo?

    ADLIA

    (cheia de si) Qual , papai?BENEVIDES

    Aquela em que tu queres virar vela de sebo?

    ADLIA

    papai, o senhor est louco!

    BENEVIDESIsto eu j sei, no preciso dizer. (sai)

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    ALBERTO

    Com licena. (sai) ADLIA

    Os senhores no acham que o Alberto est mui-

    to esquisito?

    TORRE

    muito natural que esteja! No dia de hoje!...

    Sabes que ele incumbiu-me de pedir para ele a

    sua mo?

    ADLIA

    (com espalhafato) No diga?! Mas como que

    ele no me disse nada?

    TORRE

    O Alberto muito tmido.

    ADLIA

    Eu vou procurar o papai para dizer-lhe. Com

    licena. (Sai correndo)

    TORREVai tudo maravilhosamente bem! (entra criado,

    em desalinho, cansado, com um leno amarrado

    na cabea. Est ferido)

    TORRE

    Trouxe as cartas?

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    CRIADO

    No. Ao sair daqui avistei o gago ainda na esqui-na. Ele correu. Corri tambm. Ele entrou por uma

    rua escura. Entrei tambm. Virou uma esquina.

    FRANCISCO

    J sei. Voc virou tambm.

    CRIADO

    No. No cheguei a virar. Recebi uma cacetada

    e um soco no olho. O gago sumiu, e eu voltei.

    FRANCISCO

    Se Neli vier aqui e revelar tudo ao Alberto,

    estamos perdidos.

    TORRE

    (ao criado) No deixe ningum entrar nesta casa.

    E desligue todos os telefones.

    CRIADO

    Mas eu vou apanhar outra vez. (sai)

    FRANCISCOO que faremos agora?

    TORRE

    (num riso cnico) Ora, o programa ainda no se

    modificou. Alberto embarcar amanh para Por-tugal e nunca vir a saber. (entra a comparsaria)

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    COMPARSA

    (a Torre)Adlia disse-nos que passssemos paraesta sala a fim de conhecermos a grande

    novidade do dia.

    COMPARSA

    O que ser?

    TORRE

    Dentro em pouco a conhecero.

    ADLIA

    (entrando com Benevides) Onde est o Alberto?

    TORRE

    Pediu-me que apresentasse a todos as suas des-

    culpas pela sua ausncia. Est com forte dor de

    cabea. Est no gabinete.

    ADLIA

    Oh! Papai!... V busc-lo. Quando estou longe

    de Albertinho, eu fico to sem graa!...

    BENEVIDES. E quando ests perto, quem fica sem graa

    ele... ( sai )

    ADLIA

    Senhor De La Torre, interessante o Albertinho.

    Ele conversa pouco e deixa-me falar vontade.

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