ANTATOMIA DAS MARIONETES: RELATÓRIO DE DIREÇÃO DE ARTE · econômicas existentes no mundo. A...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - AUDIOVISUAL JOSIANE OLIVEIRA DE LIMA ANTATOMIA DAS MARIONETES: RELATÓRIO DE DIREÇÃO DE ARTE NATAL/RN 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - AUDIOVISUAL

JOSIANE OLIVEIRA DE LIMA

ANTATOMIA DAS MARIONETES: RELATÓRIO DE DIREÇÃO DE ARTE

NATAL/RN

2019

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JOSIANE OLIVEIRA DE LIMA

ANTATOMIA DAS MARIONETES: RELATÓRIO DE DIREÇÃO DE ARTE

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao

curso de graduação em Comunicação Social,

da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, como requisito parcial à obtenção do

título de Bacharel em Comunicação Social

com habilitação em Audiovisual.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Antonio dos

Santos Segundo

NATAL

2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -

CCHLA

Lima, Josiane Oliveira de.

Anatomia das marionetes: relatório de direção de arte /

Josiane Oliveira de Lima. - 2019.

48f.: il.

Monografia (graduação) - Centro de Ciências Humanas, Letras e

Artes, Comunicação Social - Audiovisual, Universidade Federal do

Rio Grande do Norte, 2019. Natal, RN, 2019.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Antonio dos Santos Segundo.

1. Produção Audiovisual (relatórios) - Monografia. 2.

Webséries - Monografia. 3. Capitalismo - Monografia. 4. Direção

de arte - Monografia. I. Segundo, Carlos Antonio dos Santos. II.

Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 791(047.34)

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748

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JOSIANE OLIVEIRA DE LIMA

ANTATOMIA DAS MARIONETES: RELATÓRIO DE DIREÇÃO DE ARTE

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao

curso de graduação em Comunicação Social,

da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, como requisito parcial à obtenção do

título de Bacharel em Comunicação Social

com habilitação em Audiovisual.

Aprovada em: ______/______/______

BANCA EXAMINADORA

______________________________________

Prof. Dr. Carlos Antonio dos Santos Segundo

Orientador(a)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

______________________________________

Prof. Dr. Ruy Alkmim Rocha Filho

Membro interno

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

______________________________________

Bruna Mariana Costa Justa

Membro externo

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

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A todas as trabalhadoras e trabalhadores,

aqueles cujo único bem é a força de trabalho.

A todos os jovens negros que não tiveram o

privilégio de estar onde eu estou.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Universo, por todas as oportunidades, pelos caminhos abertos, pelos

encontros e por todo o aprendizado possível na jornada desta graduação.

Aos meus guias, por sempre cumprirem bem sua missão, por terem me

acompanhado, protegido, cuidado e orientado para que mais essa conquista fosse alcançada.

Aos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), representados nas pessoas do ex-

presidente Lula e da ex-presidenta Dilma Rousseff (retirada injustamente de seu cargo), que

com a ampliação do acesso à Universidade me possibilitaram cursar a segunda graduação,

fato antes impensável na minha família se levada em consideração minha origem.

Agradeço à minha família por todo apoio que foi possível, ao meu irmão, que

contribuiu concretamente para que eu não abandonasse esta trajetória, à minha mãe, por todo

suporte sempre bem fundamentado na fé e no amor, ao meu pai, que com suas peculiaridades

me fez ser quem eu sou e aos meus avós, maiores bens que pude ter nesta encarnação.

Agradeço aos amigos companheiros nesta produção, Fabio Leal e Rebeca Cerqueira,

por todo o acolhimento, partilha, confiança e apoio na execução deste projeto. Sem vocês teria

sido imensamente mais difícil.

Ao meu companheiro e melhor amigo, por todo o apoio nessa caminhada, pelos

ensinamentos, incentivos, conselhos e por ter contribuído para que eu (re)conhecesse as

melhores partes de mim. Você foi o encontro mais valioso que esta universidade me

proporcionou.

Aos demais amigos que sabem de sua importância nos meus processos e tantas vezes

me proporcionaram sorrisos ou apenas respeitaram minhas lágrimas me ouvindo com amor.

Ao médico e amigo Francisco Márcio, por mais uma vez contribuir para a conclusão

de uma graduação minha e por desempenhar de maneira brilhante a sua função, com a

mansidão e leveza que só quem captou a mensagem substancial da vida tem. Todas as

conversas cheias de referências e experiência de vida foram sempre aulas de história, política

e consciência de classe, que espero jamais esquecer.

A todos que contribuíram diretamente para a execução deste projeto, sobretudo a

Jessé Fernando por ter se colocado à disposição e se entregado desde o primeiro momento.

Você foi a peça fundamental para que o episódio piloto da nossa websérie acontecesse.

Aos professores que marcaram minha passagem no Departamento de Comunicação

desta Universidade. Em especial à Ângela Pavan que certa vez, há mais de 3 anos, renovou

minhas esperanças e crença no processo. E a Ruy Rocha, sempre presente com tanto carinho,

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apoio e um desejo profundo de ajudar a todos e proporcionar na passagem pela universidade a

melhor experiência possível, com sua prática profissional coerentemente fundamentada no

tripé ensino, pesquisa e extensão.

Ao professor e orientador Carlos Segundo, por fazer tanto com tanto afeto e ternura.

Obrigada por ter apoiado este trabalho, ter sido maleável às mudanças no percurso e mostrar

que é possível ser grande sutilmente.

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É incontável, inaceitável, implacável, inevitável ver o lado miserável

se sujeitando com migalhas, favores, se esquivando entre noite de

medo e horrores.

Edi Rock

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RESUMO

O presente trabalho trata do relatório de produção do episódio piloto da websérie Anatomia

das Marionetes. A websérie experimental de ficção se passa em um futuro distópico onde a

cidade de Natal é assolada pelas consequências da intensa exploração capitalista e perpetua as

relações precárias de trabalho. O episódio piloto traz, através de sua narrativa e de elementos

metafóricos uma crítica a este sistema econômico gerador de inúmeras desigualdades sociais e

danos ambientais. No decorrer deste relatório é possível observar o que motivou a idealização

da websérie Anatomia das Marionetes, bem como entender a escolha desse formato de

produção através de alguns apontamentos encontrados na revisão de literatura. Descrevemos

ainda brevemente um panorama geral do processo de produção desde o roteiro à direção geral,

passando pelo processo de pré-produção e nos debruçando com maior atenção à direção de

arte da obra, departamento ao qual foi dedicado um capítulo do trabalho.

Palavras-chave: websérie; capitalismo; trabalho; direção de arte.

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ABSTRACT

This paper talks about the production report of the pilot episode of the "Anatomia das

Marionetes" webseries. The experimental fiction webseries portrays a dystopian future where

the city of Natal is plagued by the consequences of intense capitalist exploitation and

perpetuates precarious labor relations. The pilot episode brings, through its narrative and

metaphorical elements, a critique of this economic system that generates countless social

inequalities and environmental damage. Throughout this report it is possible to observe what

motivated the idealization of the "Anatomia das Marionetes" webseries, as well as to

understand the choice of this production format through some concepts found in the literature

review. We also briefly describe an overview of the production process from the script to the

general direction, through the preproduction process, and focusing more closely on the

production design of the work, a department to which a chapter of the work was devoted.

Keywords: webseries; capitalism; labor; production design.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Cena do filme Matrix (1999).................................................................... 27

Figura 2 – Cenas do filme Filhos da Esperança (2006)............................................. 28

Figura 3 – Ilustração futurista.................................................................................... 28

Figura 4 – Frame do filme Blade Runner 2049 (2017).............................................. 29

Figura 5 – Capa do livro Neuromancer (1984).......................................................... 30

Figura 6 – Frame de imagem aérea utilizada na sequência 1.................................... 31

Figura 7 – Frame de imagem aérea utilizada na sequência 1 com tratamento.......... 31

Figura 8 – Frame da sequência 2............................................................................... 33

Figura 9 – Fotografia do personagem no cenário da sequência 3.............................. 34

Figura 10 – Fotografia frontal do personagem no cenário da sequência 3.................. 34

Figura 11 – Frame da sequência 4............................................................................... 35

Figura 12 – Frame da sequência 4, imagem do Patrão................................................ 36

Figura 13 – Ilustração de Josan Gonzalez................................................................... 38

Figura 14 – Frame da sequência 5...............................................................................

38

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LISTA DE ABREVIATURAS

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................. 16

1 A ESCOLHA DO TEMA.................................................................................. 18

2 O FORMATO WEBSÉRIE.............................................................................. 19

2.1 A narrativa seriada............................................................................................ 19

2.2 Sobre websérie.................................................................................................... 20

2.3 Sobre a escolha do formato websérie................................................................ 21

3 PROCESSO DE PRODUÇÃO: UM PANORAMA

GERAL................................................................................................................

23

3.1 Roteiro................................................................................................................. 23

3.2 Pré-produção...................................................................................................... 23

3.3 Considerações sobre Direção............................................................................. 24

4 DIREÇÃO DE ARTE........................................................................................ 26

4.1 Proposta de Direção de Arte............................................................................. 26

4.2 Considerações sobre a vinheta de abertura..................................................... 39

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 40

REFERÊNCIAS................................................................................................. 41

APÊNDICE A – MAPA DE ARTE.................................................................. 42

APÊNDICE B – ROTEIRO.............................................................................. 43

ANEXO A - TRECHO DO LIVRO DE CARLO FIERO.............................. 48

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INTRODUÇÃO

O projeto “Anatomia das Marionetes” é uma websérie de ficção que retrata a cidade de

Natal em um futuro distópico, bombardeada pelas consequências da exploração capitalista.

Em decorrência da poluição, falta de preservação, guerras e outros fatores relacionados ao

capitalismo e suas implicações, a cidade de Natal visualmente assemelha-se a uma cidade

fantasma, com moradores sobreviventes tão “sem vida” quanto a cidade. O governo, o

exército, a polícia e demais braços do Estado servem ao capital financeiro, que atua como um

poder superior quase sobrenatural, manipulando toda a sociedade em favor de sua soberania,

utilizando pra isso tecnologia avançada e drogas. Em paralelo a isso, um grupo que não se

conforma com o sistema vigente e acredita na possibilidade de mudança em algum momento,

se organiza em resistência ao controle e manipulação impostos pela ideologia dominante.

Como o Estado e seus aliados, bancos e empresas, monopolizam as grandes tecnologias, o

grupo de resistência usa as armas que pode para conquistar mais adeptos e continuar a luta

contra o sistema vigente.

Esse projeto é fruto de uma inquietação individual e coletiva, expressa primariamente

pelo colega Fabio Leal e compartilhada pelo restante do trio que desenvolveu a obra.

Entendemos o sistema capitalista como o grande causador de todas as desigualdades sociais e

econômicas existentes no mundo. A máxima do lucro acima de tudo promove todo tipo de

exploração, humana, ambiental, animal. Aprisiona vidas que para se manterem vidas se

sujeitam a trabalhos precários em troca de, muitas vezes, menos que o essencial para

sobreviver. A história da humanidade e das sociedades mais recentes é terrivelmente marcada

pelas consequências de uma exploração sem pudor e sem limites, cujas consequências

destroem desde ecossistemas inteiros a possíveis talentos, possíveis carreiras, possíveis

amores, possíveis histórias e indivíduos. Anatomia dos Marionetes, é uma reflexão crítica do

lugar que estamos e para onde estamos indo. É uma reflexão sobre o formato de sociedade, de

trabalho e o modo de vida que é imposto a uma enorme parcela da população brasileira e até

mundial.

Como referencial teórico utilizamos o livro “O Capital”, de Karl Marx, dada a sua

importância para a compreensão do sistema capitalista e suas consequências, bem como da

relação humana com o trabalho. Para auxiliar na compreensão da obra marxista, utilizamos o

resumo “Compêndio de O Capital”, escrito por Carlo Cafiero, livro do qual também dispomos

de um trecho para a narração do início do episódio piloto. Nos apoiamos ainda nas obras de

Débora Butruce e Vera Hamburger para fundamentar e entender a direção de arte na atividade

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audiovisual. Nossas principais referências fílmicas foram Matrix (1999), Children of Men

(2007), Blade Runner (1982), Blade Runner 2049 (2017).

O episódio piloto da web série foi dirigido coletivamente pelos três integrantes do

grupo, Josi Oliveira, Rebeca Cerqueira de Fabio Leal. Além de exercer outras funções no

projeto, tendo em vista que a equipe principal foi formada por apenas três pessoas, assinei a

Direção de Arte, departamento desafiador levando em consideração a necessidade de utilizar

o mínimo de recursos possível. Este relatório contém o processo de produção do primeiro

episódio de nossa web série desde a concepção da ideia, destacando o departamento de

Direção de Arte pelo qual me responsabilizei.

Neste relatório compilamos o processo de produção do primeiro episódio da websérie

Anatomia das Marionetes partindo da escolha do tema central da narrativa, passando pela

escolha do formato que optamos para desenvolver essa narrativa, um pouco do processo

prático de produção em si e destrinchando melhor a direção de arte desse projeto.

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1 A ESCOLHA DO TEMA

A reflexão crítica sobre o capitalismo tem sido uma constante na minha vida desde que

comecei a ter os primeiros contatos com o conceito desse sistema econômico e entender as

suas consequências sociais, políticas e ambientais. Tal reflexão conduziu minha escolha no

vestibular, me levando a cursar a graduação em Serviço Social, possibilitando a aproximação

com a dialética marxista e a análise crítica da realidade, bem como o conhecimento acerca do

conceito de Questão Social e suas expressões.

Quando tive conhecimento da ideia inicial do companheiro Fabio Leal logo me

identifiquei, afinal, a inquietação que surgiu nele quando em um trabalho desgastante que

consumia a maior parte dos seus dias me acompanha até hoje, pois, embora eu trabalhe com

uma carga horária menor e em uma função totalmente diferente da que ele exercia, ainda sinto

que meus dias são consumidos por um fazer profissional com o qual não me identifico e

demanda de mim uma intensa carga mental. Além de também já ter vivenciado um outro fazer

profissional desgastante e repetitivo, no qual me sentia consumida e explorada, alimentando

com minha mão de obra uma riqueza que jamais seria minha, recebendo por isso um número

ínfimo como salário acompanhado de adoecimento físico e mental. Constatei então que a

ideia conversava diretamente com meus valores pessoais.

Entendo que a arte tem um papel social fundamental, dentre outros papéis que ela pode

exercer. Enquanto futuros comunicólogos, acredito que temos o dever de informar e

contribuir com a educação de outras pessoas acerca dos mais variados temas, sobretudo

daqueles que conversam com nossos princípios e posicionamento político, quando esses

primam pelo estado de bem estar social. Assim, construir uma websérie de ficção que a partir

do entretenimento incita uma reflexão acerca de um modo de vida e de sociedade totalmente

questionável, me parece ser uma das melhores formas de se concluir o curso de graduação em

Comunicação Social.

Aqueles que vieram antes de nós abriram caminho, viveram seus propósitos e

deixaram legados que me encantaram no primeiro contato. Pensar em um produto audiovisual

que servisse a alguma causa importante de meu tempo foi um norteador nessa escolha, sinto

então que há neste trabalho um “germe do Cinema Novo”, como indicou Glauber Rocha

(1965) em seu manifesto Eztetyka da Fome: “Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou

de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas

importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo.”

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2 O FORMATO WEBSÉRIE

2.1 A narrativa seriada

Arlindo Machado (2005) descreve o termo serialidade como a “apresentação

descontínua e fragmentada do sintagma audiovisual”. Machado aponta que o enredo

normalmente configura-se em capítulos ou episódios apresentados em momentos diferentes e

subdivididos em blocos, que, na televisão dão espaço para a entrada de comerciais

(MACHADO, 2005). Tais capítulos ou episódios reunidos formam uma temporada. Entre os

episódios existem elementos de conexão, ganchos, que servem tanto para manter o interesse

do espectador, quanto para contextualizar a situação da narrativa, caso no final de um

episódio, no início do próximo ou entre as temporadas haja uma breve síntese da temporada

ou episódio anterior.

Segundo Machado (2005), na televisão existem três tipos de narrativas seriadas. O

primeiro tipo apresenta uma única narrativa (ou várias paralelas e entrelaçadas) que se

manifesta de forma praticamente linear no decurso dos capítulos, a exemplo das telenovelas e

alguns tipos de série e minissérie. Diz-se teleológico por esse tipo de construção se resumir

fundamentalmente em um ou mais conflitos básicos, que ocasionam inicialmente um

desequilíbrio estrutural, cuja evolução dos acontecimentos se dedica a reestabelecer o

equilíbrio perdido (o que geralmente acontece nos capítulos finais). Um exemplo desse tipo

de narrativa é o seriado Game Of Thrones (2011). O segundo tipo se configura de maneira

que cada episódio contém uma história completa e autônoma com início, meio e fim, o que

vem a ser repetido nos episódios seguintes são os personagens principais, vivenciando um

enredo diferente. Nesse caso, não há necessariamente correlação entre as narrativas de cada

episódio, o que acontece no seriado How I Met Your Mother (2005). Por fim, no terceiro tipo

de serialização, a única coisa preservada entre os episódios é a temática ou “o espírito geral

das histórias” (MACHADO, 2005), mas em cada episódio as histórias, os atores, o cenário e

às vezes até os diretores e roteiristas são diferentes, como é o caso de Black Mirror (2011).

O que pudemos compreender de acordo com a obra de Machado (2005) é que a

serialização televisual pode ser consequência de causas econômicas (para, por exemplo, dar

espaço aos comerciais) mas, sobretudo, é uma ferramenta narrativa de manutenção da atenção

e do interesse do espectador, ao que ele ainda completa:

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A riqueza da serialização televisiva está, portanto, em fazer dos processos de

fragmentação e embaralhamento da narrativa uma busca de modelos de organização

que não sejam apenas mais complexos, mas também menos previsíveis e mais

aberto ao papel ordenador do acaso. (MAHCADO, 2005, p. 97)

2.2 Sobre websérie

Acerca do surgimento das webséries, Hergesel (2015) traz que no princípio, a

websérie não surgiu com intuito de levar à internet a serialização audiovisual, se ajustando às

novas tecnologias, mas sim com objetivo de resgatar o público televisivo jovem que estava

mudando os hábitos, preferindo o computador à televisão. Como diz, apud:

Isto é, conforme Jenkis (2009), os produtores lançavam webséries baseadas em

séries televisivas famosas, faziam o jovem entrar em contato – por meio da

interatividade da hipermídia –, interessar-se e, em consequência, assistir à televisão

em busca do aprofundamento no conteúdo da narrativa. (HERGESEL, 2015, p. 60)

Após sua pesquisa, Hergesel (2015) definiu a websérie como:

[...] uma narrativa midiática produzida em linguagem audiovisual, de maneira

serializada, cujos episódios ficam disponíveis para acesso nos espaços on-line

passíveis de circulação, especialmente os sites de armazenamento de vídeos.

(HERGESEL, 2015, p. 60)

O que Aeraphe (2013) definiu antes como

[...] nada mais [...] do que a fórmula clássica das séries televisivas aplicadas ao

universo multiplataforma da internet. E sem dúvida o público que consome este tipo

de produto é o mesmo que consome a tradicional dramaturgia de forma seriada na

TV. Talvez a grande diferença esteja no comportamento fragmentado do público e

não o público em si, já que em sua maioria, quer algo além da passividade da tela do

televisor. Ele quer interagir, participar ativamente do universo proposto.

(AERAPHE, 2013, p. 17-18)

Para os autores, o espectador de websérie não é um mero consumidor do conteúdo

disponibilizado, ele tem também uma possibilidade maior de interatividade com o criador da

série, sendo possível que atue como recriador ou cocriador da narrativa. Esse formato ainda

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possibilita uma maior distribuição do conteúdo, tendo em vista que existem plataformas de

exibição de vídeo online que são gratuitas e podem ser acessadas de qualquer lugar que tenha

acesso à internet. Além das plataformas gratuitas como janela de exibição, existem também as

plataformas de transmissão contínua que funcionam através de um sistema de assinatura e

também podem ser acessadas de qualquer lugar com acesso à internet (através de smatphone

ou computador). Um exemplo de obra que obteve êxito em alcance e reconhecimento mundial

é a websérie potiguar Septo (2016), que é vencedora de seis prêmios internacionais e um

brasileiro, dentre diversas indicações, que permitiram que a websérie fosse exibida em

festivais nos Estados Unidos e na Alemanha, por exemplo. Além da distribuição nas

plataformas YouTube e Facebook, Septo foi licenciada a ser exibida nas plataformas de

transmissão contínua Revry e Personal Play, sendo a primeira disponível em 171 países de

língua inglesa e a segunda disponível na América Latina.1

2.3 Sobre a escolha do formato websérie

No início do projeto, durante a construção do roteiro, ainda não tínhamos em mente ao

certo o formato através do qual contaríamos nossa história. Tínhamos um roteiro complexo,

que mudava um pouco a cada encontro da equipe e ia sendo lapidado conforme a criatividade

ia aflorando. Em um dos últimos encontros para discutir o roteiro, concluímos que caso

optássemos por realizar um curta metragem, não conseguiríamos abarcar toda a narrativa

escrita, tínhamos em mãos conteúdo suficiente para um filme um pouco mais longo, mas

pouco tempo e recurso para realizá-lo. Foi então que surgiu a ideia de fragmentar o roteiro em

capítulos e produzi-lo em formato de websérie. Ao levarmos a ideia ao nosso orientador, ele

sugeriu que nos dedicássemos a um episódio piloto e enquanto equipe chegamos à conclusão

de que realmente era isso que faríamos. Reajustamos o roteiro, realocamos algumas cenas e

decidimos nos dedicar à construção do episódio piloto da websérie “Anatomia das

Marionetes”.

Escolhemos esse formato também pela possibilidade de experimentar algo novo, tendo

em vista que durante o curso não realizamos a produção de nenhuma websérie. Muito além

das nossas limitações enquanto realizadores, o fator experimentação foi determinante nesse

processo de escolha. Não só para validar nossa formação serve este trabalho de conclusão de

curso, creio eu que sua finalidade é sobretudo aplicar o conhecimento adquirido ao longo

1 Informações fornecidas pela atriz e idealizadora da obra Alice Carvalho, em outubro de 2019, através

de documento eletrônico não paginado utilizado como apresentação oficial da websérie SEPTO.

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destes anos de formação. Um formato ainda recente, emergente no meio audiovisual, com

uma possibilidade de alcance maior que a maioria dos outros formatos pois independe de

festivais e/ou mostras de cinema para ser exibido. Não que curtas, médias e longas metragens

não possam ser exibidos na internet, mas a websérie nasceu na internet e para ela. No abraço a

esse desafio e atrelado ao desejo de experimentar e explorar esse formato se fundamenta a

nossa opção por ele.

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3 PROCESSO DE PRODUÇÃO: UM PANORAMA GERAL

3.1 Roteiro

A ideia inicial do roteiro, como já citado neste relatório, partiu do colega Fabio Leal,

que demonstrou total abertura para que o restante da equipe desenvolvesse melhor a trama.

Particularmente, criar e desenvolver roteiros de ficção não é uma habilidade que eu domino na

produção audiovisual. Me identifico mais e consigo atuar melhor contribuindo com o

polimento da história, seja através de ajustes de linguagem, pesquisa histórica acerca do

momento ou ambiente em que a história se passa, inserção de detalhes, construção de

personagem (perfil, personalidade, maneira de agir, falar etc.) e construção de falas/diálogos.

No roteiro de Anatomia das Marionetes, minhas maiores contribuições foram exatamente

nesse sentido. A princípio, antes do tratamento final do roteiro do episódio piloto, havia um

trecho da história onde os personagens eram manipulados através de um discurso fascista, de

ódio, maquiado de discurso antiterrorismo. Esse discurso foi montado utilizando trechos de

discursos de diversas autoridades mundiais que, independente do país, expressavam em suas

falas orientações e argumentos de uma mesma raiz autoritária. Com o tratamento final, a

realocação de algumas cenas e a decisão da equipe de experimentar mais na produção da obra,

a utilização do discurso fascista que eu havia montado não fazia mais tanto sentido no

episódio que estávamos projetando. Foi quando lendo o livro O Compêndio de O Capital, de

Carlo Cafiero, fui pega por uma descrição do capital que considero ideal na sociedade

capitalista. Num primeiro momento não consegui encaixar o trecho do livro no episódio, mas

tive em mim a certeza de que aquele trecho precisava estar lá, pois ele estava em total acordo

com o espírito da websérie. Ao compartilhar esse sentimento com a equipe, decidimos que o

trecho de Carlo Cafiero seria a narração inicial do episódio piloto da nossa websérie. O trecho

da página 34 do livro supracitado está anexado a este relatório (anexo A). A inserção desse

elemento reforçou o tom crítico do episódio e soou para mim como a cereja do bolo para o

sentido que queríamos entregar.

3.2 Pré-Produção

Conforme o roteiro ia sendo discutido, a equipe também ia pensando no que seria

necessário para viabilizar cada cena. Locações, possíveis atores, equipamento necessário,

objetos de cena. Mesmo tendo em mente os departamentos pelos quais cada um seria

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responsável, o processo de pré-produção ocorreu de maneira muito coletiva. A equipe chegou

a entrar em contato com alguns atores, alguns parceiros e buscar algumas locações que

durante o andamento projeto e as mudanças sofridas no roteiro acabaram não sendo mais

necessários. Mas foi interessante perceber que com criatividade conseguiríamos viabilizar até

uma das cenas mais difíceis do roteiro inicial. A cena que ficou de fora do tratamento final do

roteiro, mostraria uma “batida policial” em um apartamento. O desafio nesse caso, seria

conseguir atores, figurino e armas cenográficas para a realização da cena de maneira mais

verossimilhante possível. Entramos em contato com uma equipe de airsoft (prática esportiva

onde os praticantes simulam operações policiais) que aceitou contribuir com o nosso projeto.

No entanto, com a reformulação do episódio piloto essa cena não seria mais necessária no

momento.

As locações das primeiras cenas foram escolhidas ainda no processo de pré-produção.

Sendo a sequência 2 e a sequência 3 na mesma locação, porém com uma montagem de

cenário diferente, o que nos permitiu construir dois ambientes distintos em apenas uma

locação. Na pré-produção definimos imageticamente a sequência 5, no entanto, não

conseguimos encontrar uma locação que atendesse ao nosso desejo. Sem dúvida, encontrar as

locações ideais foi uma das maiores dificuldades nesse processo. Tanto que a última cena

gravada teve a locação decidida bem próximo ao dia de gravar.

Todo esse processo de planejamento é fundamental, mas também é necessário

flexibilidade e criatividade para agir quando o que planejamos não dá certo. Devido a uma

falha de comunicação com o ator principal, precisamos reformular uma cena importantíssima

e nesse momento foram necessários equilíbrio e paciência para encontrar a solução para o

problema. O que ocorreu poderia ter sido evitado com um simples acordo com o ator na pré-

produção, mas nos serviu de aprendizado e também foi uma ótima oportunidade para exercer

a habilidade de resolução diante de imprevistos.

3.3 Considerações sobre Direção

Neste projeto, primamos pela coletividade e fizemos o possível para que todas

decisões fossem tomadas em conjunto, de maneira bem horizontal. Assim, a proposta de

direção foi desenvolvida em conjunto por mim, por Fabio Leal e por Rebeca Cerqueira, de

maneira que cada um de nós pôde imprimir um pouco de si no projeto e fomentar entre nós a

troca de experiência e conhecimento.

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Desde os primeiros contatos com a ideia, vislumbramos que a narrativa se passaria em

um futuro distópico. Levando em consideração nossas opiniões bem convergentes acerca do

sistema capitalista, imaginar uma cidade deteriorada e um clima de destruição para o universo

que pretendíamos criar foi um exercício quase natural. Traduzir imageticamente um pouco

das consequências da exploração capitalista, para nós, resultaria em um aspecto sombrio, por

vezes acinzentado e quase fantasmagórico, isso fica bem claro na cena inicial do primeiro

episódio. A partir desse “clima”, direcionamos as demais decisões acerca da fotografia,

direção de arte, trilha sonora, som etc.

Embora, como dito, tenhamos primado pela coletividade na direção geral do projeto,

cada um de nós tomou a frente de um departamento específico, não só parar dividir as funções

dentro do set, mas também para se aprofundar teoricamente e poder assim destrinchar melhor

no relatório de produção o departamento escolhido. Eu fiquei à frente da Direção de Arte,

Fabio Leal à frente da Direção de Fotografia e Rebeca Cerqueira à frente do departamento de

som. Assim, cada um poderá dissertar melhor sobre as escolhas destes departamentos em seus

relatórios.

De maneira geral, tivemos como principais referências os filmes Matrix (1999),

dirigido por Lana e Lilly Wachowski, Blade Runner (1986), dirigido por Ridley Scott e

Children of Men (2006), dirigido por Alfonso Cuarón. Ambos os filmes apresentam, cada um

à sua maneira, as relações entre a humanidade e os avanços tecnológicos, além de apontar

consequências da escassez de recursos e desdobramentos sociais, políticos, econômicos e

ambientais em um contexto distópico. Isso, em conjunto com os livros O Capital, de Karl

Marx (1867/2015) e O Compêndio de O Capital (2015), resumo da obra de Marx por Carlo

Cafiero nos serviram de inspiração para a construção do episódio piloto da nossa websérie.

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4 DIREÇÃO DE ARTE

Os primeiros contatos que eu tive com direção de arte foram na disciplina de Direção

de Arte no Audiovisual, ministrada pelo professor Carlos Segundo. A capacidade do

audiovisual de criar atmosferas, reproduzir determinados momentos históricos, dar forma

visualmente a ambientes que sequer existem no mundo real concreto, sempre me encantou,

mas eu nunca havia parado para entender melhor tecnicamente esse processo. Ao decorrer da

disciplina eu pude me aproximar dessa área de estudo, compreender melhor sua relação direta

com a fotografia e alimentar minha identificação com esse universo.

Segundo Vera Hamburger (2014):

Quando falamos em direção de arte estamos nos referindo à concepção do universo

espacial e visual próprio a projetos artísticos que caracterizam-se pela situação de

imersão do corpo no espaço, alimentando-se essencialmente dessa convivência.

Elemento primordial para a elaboração da obra, ela atua sobre um dos componentes

centrais de construção da linguagem, seja visual, performática, teatral ou

cinematográfica, a saber, seu aspecto plástico espacial. (HAMBURGER, 2014, p.26)

Para a autora (2014), a espacialidade e a visualidade do espetáculo atuam em conjunto,

interligadas ao jogo corporal, sonoro e textual proposto. Com esse conjunto bem elaborado a

obra artística pode alcançar o objetivo de reelaboração dos sentidos numa ação sinestésica.

Logo, a direção de arte é um elemento indispensável a uma produção audiovisual de qualquer

ordem.

4.1 Proposta de Direção de Arte

Em Anatomia das Marionetes, meu objetivo enquanto diretora de arte foi, em conjunto

com o diretor de fotografia, construir o menor recurso possível um real que estava no

imaginário equipe. A narrativa da websérie se passa em futuro distópico e um praticamente

pós apocalíptico, levando em consideração o estado de destruição em que a cidade de Natal se

encontra na trama. Algo comumente presente no imaginário coletivo sobre futuro é a

tecnologia. Carros voadores, robôs substituindo humanos e outros elementos tidos como

futurísticos, retratam em muitos filmes de ficção científica como seria o futuro da

humanidade. No entanto, no universo de Anatomia das Marionetes, o futuro vem atrelado a

profundas desigualdades sociais intensificadas pelo domínio do Estado e dos grandes

empresários sobre as grandes tecnologias. Dessa forma, a proposta de direção de arte da série

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foi criar uma atmosfera futurista sem glamour, acinzentada, mostrando a precariedade de um

mundo já com poucos recursos naturais, onde as camadas menos favorecidas da sociedade

continuam em situação de exploração, desfrutando pouquíssimo de possíveis avanços

científicos e tecnológicos.

Para contribuir com a formação visual dessa proposta, criei uma pasta na plataforma

Pinterest, onde inseri algumas imagens de referência que eu acreditava que se encaixavam no

nosso objetivo. Algumas dessas imagens estão logo abaixo.

Figura 1 – Cena do filme Matrix (1999)

Fonte: Pinterest

Legenda: Cena de um dos filmes da trilogia Matrix (1999).

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Figura 2 – Cenas do filme Filhos da Esperança (2006)

Fonte: Pinterest

Legenda: Duas cenas do filme Filhos da Esperança (2006).

Figura 3 – Ilustração futurista

Fonte: Pinterest

Legenda: Ilustração futurista encontrada na plataforma Pinterest, autor desconhecido.

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Para a construção do personagem, escolha do figurino e caracterização, busquei

inspiração no movimento cyberpunk2, que conversa diretamente com o universo que

propomos criar na websérie. A estética dos filmes Blade Runner (1982) e Blade Runner 2049

(2017) e a capa do livro Neuromancer (1984) são exemplos de referências fundamentais para

toda a construção visual desta obra. O protagonista, interpretado por Jessé Fernando, não à toa

tem o cabelo cor de rosa. Tanto o cabelo cor de rosa quanto o figurino, basicamente em cinza

e preto, com roupas gastas e o uso do coturno se apoiam no universo e na cultura cyberpunk.

Figura 4 – Frame do filme Blade Runner 2049 (2017)

Fonte: Pinterest. Legenda: Frame de uma das cenas do filme Blade Runner 2049 (2017)

2 Designação dada ao movimento literário de ficção científica desenvolvido nos Estados Unidos e

Europa, no início da década dos 80. A narrativa é centrada no confronto homem x máquina, em um

ambiente sociocultural corrompido pela alta tecnologia e o corporativismo. O sistema dominante é,

em geral representado por governos opressores, corporações comerciais ou religiões

fundamentalistas. A criação do termo é atribuída à Gardner Dozois, um dos editores da revista de ficção científica Isaac Asimov. <https://cyberpunkbrazil.wordpress.com/2014/05/04/o-que-diabos-e-

cyberpunk/> Acesso em 03 de novembro de 2019.

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Figura 5 – Capa do livro Neuromancer (1984)

Fonte: Pinterest

Legenda: Capa do livro Neuromancer lançado em 1984

Na sequência 1 do episódio de Anatomia das Marionetes, utilizada como ambientação,

por se tratar de uma imagem aérea de determinada região da cidade de Natal, a caracterização

para chegamos ao objetivo proposto, de uma cidade fantasmagórica, foi realizada

principalmente por elementos de pós-produção. No entanto, previamente escolhemos o local a

ser filmado, e acordo com o que visualmente se adequava ao contexto do episódio. Durante a

pré-produção analisamos algumas imagens aéreas no Google Maps e percebemos que uma

região do bairro de Candelária, com alguns condomínios de prédios, cruzados por avenidas

extensas e rodeados por alguns espaços sem nenhuma construção de concreto, era a região

ideal para introduzir o episódio. As figuras a seguir mostram um frame das imagens aéreas da

sequência 1 sem tratamento de imagem e com tratamento de imagem na pós-produção,

respectivamente. Todo o trabalho de pós-produção foi realizado por Fabio Leal.

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Figura 6 – Frame de imagem aérea utilizada na sequência 1

Fonte: Acervo particular da obra.

Legenda: Frame de imagem aérea utilizada na sequência 1 ainda cru, sem nenhum tratamento

de pós-produção.

Figura 7 – Frame de imagem aérea utilizada na sequência 1 com tratamento

Fonte: Acervo particular da obra.

Legenda: Frame de imagem aérea utilizada na sequência 1 com tratamento de pós-produção.

Comparando as duas figuras pode-se notar que através do tratamento de cor e

manipulação da imagem, conseguimos expressar um ar mais sombrio, tenso, acinzentado.

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Uma maior quantidade de nuvens, fumaça e chuva foram adicionadas artificialmente para

intensificar esse clima.

A proposta da sequência 2, novamente demandou tratamento na pós-produção para

que o efeito desejado, fundo totalmente escuro e ator iluminado, fosse alcançado. A locação

utilizada nessa sequência foi a sala do meu apartamento. Essa sequência não demandou

nenhum elemento de cena específico para caracterizar o ambiente, além da própria sala vazia

e do ator caracterizado como o personagem. A intenção era simular algo semelhante ao ato de

assistir televisão mas não de forma totalmente realista e literal e sim como uma alegoria. O

aspecto escuro do ambiente com imagens de uma realidade externa sendo projetadas sobre o

ator remete a um lugar imaginário, a um lugar dentro da mente do protagonista que pode ser

consciente ou inconsciente. Sendo resultado de toda a manipulação midiática, bem como do

uso de medicamentos fornecidos pela empresa na qual ele trabalha, medicamentos esses que

tem como objetivo a manutenção da passividade do trabalhador e seu total controle.

Com o ambiente limpo e a parede branca de fundo, conseguimos preparar o ambiente

para o que seria feito na gravação da cena e na pós-produção. No caso dessa cena, o que

contribuiu definitivamente para a sensação de estar entrando no lugar e materialização desse

lugar imaginário foram a iluminação e o movimento de câmera, de responsabilidade da

direção de fotografia. Diante da ausência da necessidade de objetos de cena, esses elementos

em conjunto com as projeções sobre o ator e o fundo escuro inseridos na pós-produção

caracterizaram e deram forma à atmosfera proposta. Essa cena deixou claro, de forma bem

prática, o que Butruce (2005) quis dizer afirmando que

A intervenção da direção de fotografia, através da incidência de determinada

iluminação, transformará tal conceito em relação à cor, contraste,

profundidade, mas não em informações em termos do sentido básico da cena, em sua natureza figurativa. (BUTRUCE, 2005)3

3 Documento eletrônico não paginado.

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Figura 8 – Frame da sequência 2

Fonte: Acervo particular da obra. Legenda: Frame da sequência 2 pós tratamento de cor, ainda sem as projeções que complementam a

cena.

Na sequência 3, o objetivo foi criar um ambiente totalmente desconexo ao ambiente

anterior. A mesma sala do meu apartamento foi produzida como o local de trabalho do

protagonista. Exploramos bem o branco das paredes para causar uma sensação incômoda e

contrastante à cena anterior. Associamos a tecnologia à precariedade do trabalho construindo

uma máquina com pedaços velhos de outras máquinas. Espalhamos alguns fios pelas paredes

para dar a ideia de conectividade da máquina do centro da sala a algo maior. Exploramos bem

a cor preta da mesa, do CPU velho sobre ela e de alguns fios, que contrastaram bem com o

ambiente claro e superexposto na fotografia. Utilizamos um óculos de realidade virtual para

demonstrar a conexão do ator com a máquina, além de expressar uma atualização tecnológica

do trabalho. Nessa sequência, o protagonista trabalha até a exaustão, quando soa o alarme de

encerramento do expediente. O personagem retira os óculos e trêmulo, com o corpo meio

debilitado por ter passado horas na mesma posição, percebe que seu nariz sangrou. Ele

levanta e vai até uma mesinha no canto da parede, próximo à janela, onde pega as drogas

fornecidas pela empresa e as ingere. Ainda que não ficasse tão visível na cena, achei

fundamental utilizar sangue cenográfico durante a gravação, pois caso na decupagem final

escolhêssemos algum plano em close ou qualquer outro onde o nariz e a mão do ator ficassem

muito visíveis, não teríamos nenhuma rusga entre a proposta e o produto final. Eu mesma

produzi o sangue cenográfico utilizando mel, corantes vermelho e azul e cacau em pó.

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Figura 9 – Fotografia do personagem no cenário da sequência 3

Fonte: Josi Oliveira – Fotografia de Making Of

Legenda: Fotografia de Making Of da gravação da sequência 3 com personagem em quadro.

Figura 10 – Fotografia frontal do personagem no cenário da sequência 3

Fonte: Josi Oliveira – Fotografia de Making Of

Legenda: Fotografia de Making Of da gravação da sequência 3 com personagem em quadro.

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Figura 11 – Frame da sequência 3

Fonte: Acervo da produção.

Legenda: Frame da sequência 3 no ambiente de trabalho do personagem, imagem com tratamento de

cor da pós-produção.

A sequência 4 foi a única que envolveu uma quantidade maior de pessoas. Para essa

sequência, inicialmente precisaríamos de um número grande de figurantes e um corredor

estreito como locação. Discutindo posteriormente, optamos por reduzir o número de

figurantes, levando em consideração nosso cronograma e a logística para transportar muitas

pessoas. O corredor que conseguimos foi o da casa de um colega, Saulo, o ambiente não era

exatamente como gostaríamos que fosse, mas no final das contas atendeu bem à nossa

necessidade. Essa sequência foi a última que gravamos, justamente por ser a que demandava

mais recursos e foi na preparação dela que tivemos um dos nossos maiores problemas.

Nosso ator principal, Jessé Fernando, iniciou as gravações com o cabelo pintado de rosa, o

que estava dentro das características do nosso personagem, e a última sequência do episódio

foi gravada antes da sequência 4. Por uma falha na comunicação e a ausência de um acordo

claro com o ator a respeito da preservação das suas características físicas até o último dia de

gravação, o ator cortou e mudou a cor do cabelo. Isso comprometeria a sequência 4 pois

precisávamos gravar a cena do protagonista recebendo o pagamento pelo seu trabalho,

mostrando ele, outros trabalhadores e o patrão. Como equipe, optamos por não focar no

problema nem nos possíveis erros que o acarretaram, começamos então a pensar na solução.

Dentre algumas propostas que demandavam ainda mais tempo e recurso que não tínhamos, a

equipe decidiu adaptar a sequência escolhendo gravá-la sob uma ótica subjetiva.

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Aproveitando o gancho da ingestão da droga na cena anterior, filmamos a sequência 4 toda

em câmera subjetiva, a partir do olhar do protagonista, o que nos permitiu ainda criar uma

aura meio psicodélica, expressando o efeito da droga no personagem. Para simular as drogas

utilizamos balas de menta.

Figura 12 – Frame da sequência 4, imagem do Patrão

Fonte: Acervo da produção.

Legenda: Frame da sequência 4 com imagem do Patrão sob a ótica do protagonista.

Retratamos o patrão de maneira alegórica, como uma marionete, sem rosto, sem

identidade. Escolhemos o elemento “marionete” para representá-lo como um ser

manipulado, que atende a um interesse maior, o do capital. Não encontramos, no entanto,

uma maneira prática de representar o personagem como uma marionete de fato, com a

cruzeta (ferramenta destinada a controlar os fios e os movimentos do boneco) e os fios de

comando. Para indicar tal representação utilizamos, portanto, uma atadura envolvendo a

cabeça do ator, encobrindo assim suas expressões faciais e um dos indicadores da sua

identidade, o rosto.

O salário, o pagamento pelo trabalho do personagem e dos demais trabalhadores

representados em cena, também foi expresso de maneira alegórica, através de migalhas de

pão. Pois, no capitalismo, o trabalhador nunca recebe o valor justo pelo trabalho que

produziu e sim um valor inferior, para que assim o patrão possa embolsar e lucrar em cima

da força de trabalho. Como afirma Karl Marx:

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Dado que o valor do trabalho é apenas uma expressão irracional para o valor

da força de trabalho, conclui-se, evidentemente, que o valor do trabalho tem

de ser sempre menor que seu produto de valor, pois o capitalista sempre faz a força de trabalho funcionar por mais tempo do que o necessário para a

reprodução do valor desta última. (MARX, 1867/2015)4

Como figurino, a escolha para os trabalhadores foram roupas simples e gastas em

cores neutras. Para o Patrão, terno e gravata em associação clássica ao empresariado.

A quinta e última sequência do episódio foi filmada no escritório da casa de Rebeca, a

aproveitamos todos os elementos do lugar que conversavam com a nossa proposta e

removemos aqueles que não deviam estar no universo proposto. A intenção foi criar um

ambiente com estética similar ao gênero cyberpunk, um local na casa do nosso protagonista

onde ele pudesse imergir na tecnologia da maneira que fosse possível às suas condições. Um

ambiente um pouco caótico, com muitos objetos onde o personagem provavelmente concerta

aparelhos, desenvolve novos e explora tecnologicamente o que pode. Para reforçar o clima

“hacker”, nosso diretor de fotografia utilizou um ponto de luz de cor esverdeada, comumente

relacionada ao ambiente virtual, como ocorro no filme Matrix (1999).

O personagem entra no local passando uma toalha pelo corpo, limpando-se, remetendo

à escassez de água. É ali que ele começa a investigar e tentar descobrir o que significa o

panfleto que recebeu de outra personagem na sequência anterior. Para realizar a leitura do QR

Code5 o personagem utiliza um dispositivo semelhante a uma webcam, como não consegue

escanear o código na primeira tentativa, o personagem faz o que está ao seu alcance até

conseguir abrir em seu computador a informação que o código traz. Para criar esse ambiente,

tive algumas ilustrações como referência, algumas delas de autoria de Josan Gonzalez,

encontradas na plataforma Pinterest.

4 Documento eletrônico não paginado. 5 Sigla para “Quick Response Code” (código de resposta rápida), é um código de barras bidimensional

que pode ser escaneado e convertido em texto, documento, número de telefone, endereço de e-mail,

endereço URL entre outras informações.

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Figura 13 – Ilustração de Josan Gonzalez

Fonte: Pinterest, autoria de Josan Gonzalez Legenda: Ilustração encontrada na plataforma Pinterest em pesquisa sobre a temática

futurista.

Figura 14 – Frame da sequência 5

Fonte: Acervo da produção.

Legenda: Frame da sequência 5 em plano principal.

Embora desafiadora, foi muito prazerosa a missão de dirigir o departamento de arte

desse projeto. Digo que me senti à vontade, não pela ausência de obstáculos ou dificuldades,

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visto que para desenvolver o que desenvolvemos o único recurso que tínhamos em

abundância era o desejo. Me senti à vontade apenas por sentir, por esse fazer ter dialogado

harmonicamente com o meu ser. Ao se propor a construir uma obra audiovisual, antes de

realizar o registro imagético é necessário ter o que registrar e quando se deseja registrar algo

que ainda não existe no real concreto, é necessário construir. Como fala Butruce:

[...] a natureza da imagem cinematográfica contém uma implicação

fundamental: antes de se organizar propriamente em imagem, é necessário que uma verdadeira representação ocorra, organizada dentro de alguma

ordem e em algum espaço concreto. E é a partir desta operação que

acontecerá o seu registro. (BUTRUCE, 2005)6

Acredito que a mágica do audiovisual, do cinema, também acontece aqui. A direção de

arte é uma peça fundamental nesse quebra-cabeça que é a produção audiovisual e poder

vivenciar isso ao final da graduação foi com certeza um dos momentos mais valiosos desse

percurso.

4.2 Considerações sobre a vinheta de abertura

Em relação à vinheta de abertura, nossa proposta foi transmitir imageticamente o

clima da série, inserindo logo de início alguns elementos abordados no episódio piloto, como

as drogas, as figuras sem rosto manipuladas pelo capitalismo, além de elementos que remetem

à mídia e às guerras decorrentes da exploração capitalista.

Produzi e fotografei os personagens que aparecem na abertura, que foi devidamente

trabalhada por Fabio Leal, responsável da pós-produção. Acompanhei o processo de

tratamento e manipulação das imagens que, indubitavelmente, esteve de acordo com a

proposta de direção de arte de toda a série. O conjunto de técnicas de recorte e sobreposição

de imagens utilizado conversou diretamente com a proposta futurista da obra, além de agregar

tecnicamente o produto final. É possível perceber a riqueza de detalhes com a qual a abertura

foi construída e como cada elemento na tela faz menção ao universo proposto.

6 Documento eletrônico não paginado.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar e executar este Trabalho de Conclusão de Curso foi extremamente gratificante,

diante não só da jornada e dos percalços enquanto estudante trabalhadora, mas também diante

do contexto sociopolítico que o Brasil vivencia no ano de 2019 (e nos anos antecedentes).

Exercer nossa liberdade criativa em tempos sombrios, onde vemos ascender o

fundamentalismo religioso e ideais fascistas, é como um fio de esperança, um respiro em um

contexto tão difícil. Criticar um sistema tão injusto e cruel como o capitalismo e produzir

obras que se alinhem com meus valores pessoais, sempre que possível, é uma maneira não só

de provocar a reflexão em outras pessoas, mas também uma maneira de nos lembrar o porquê

de fazer o que fazemos. Escolher discutir e produzir um projeto desse tipo é também reafirmar

a minha essência enquanto pessoa, artista e futura comunicadora. Cada passo deste projeto foi

dado com convicção em um ideal e estar ao lado de pessoas cujos pensamentos também

apontam para esse ideal foi fundamental para materialização que nos propomos a fazer.

Em questões técnicas, eu diria que pudemos experimentar daquilo que chamam de

cinema de resistência. Reitero que o único recurso abundante que tínhamos era o desejo e foi

dele que abusamos para fazer “Anatomia das Marionetes” acontecer. Provamos a nós mesmos

que é possível fazer audiovisual com pouco, mas entendemos também que há um nível acima

que para ser acessado demanda muito mais.

Que as inquietações que nos motivaram a desenvolver este projeto possam surgir em

tantas outras mentes até que em cada canto haja o que chamou Glauber Rocha de um germe

do Cinema Novo.

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REFERÊNCIAS

AERAPHE, Guto. Webséries Criação e Desenvolvimento. Belo Horizonte: 2013. E-book.

BLADE Runner. Direção: Ridley Scott. Produção: Michael Deeley. Intérpretes: Harrison

Ford; Rutger Hauer; Dean Young; Edward James Olmos e outros. Roteiro: Hampton Fancher

e David Peoples. Música: Vangelis. Los Angeles: Warner Brothers, c1991. 1 DVD (117 min),

widescreen, color. Produzido por Warner Vídeo Home. Baseado na novela “Do androids

dream of electric sheep?” de Philip K. Dick.

BUTRUCE, Débora Lúcia Vieira. A Direção de Arte e Imagem Cinematográfica: sua

inserção no processo de criação do cinema brasileiro dos anos 1990. 2005. 192 f. Dissertação

(Mestrado em Comunicação, Imagem e Informação) – Instituto de Artes e

Comunicação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005.

CHILDREN of Men. Direção: Alfonso Cuarón. Roteiro: Alfonso Cuarón, David Arata,

Hawk Ostby, Mark Fergus, Timothy J. Sexton. Produção: Eric Newman, Hilary Shor, Iain

Smith, Marc Abraham, Tony Smith. Fotografia: Emmanuel Lubezki. Trilha Sonora: John

Tavener. Estúdio: Hit & Run Productions, Strike Entertainment, Universal Pictures.

CAFIERO, Carlo. Compêndio de O Capital. São Paulo: Aeroplano Editora, 2015.

HAMBURGER, Vera Império. O desenho do espaço cênico: da experiência vivencial à

forma. 2014. 323 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes,

Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

HERGESEL, João Paulo. A websérie enquanto processo comunicacional no contexto da

cultura da convergência e os alicerces midiáticos necessários para sua roteirização. REU -

Revista Estudos Universitários, Sorocaba, v. 41, n. 1, p. 59-78, jun. 2015. Disponível em:

http://periodicos.uniso.br/ojs/index.php/reu/article/view/2150. Acesso em 21 de outubro de

2019.

MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Editora SENAC São Paulo,

2000.

MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. Livro 1. São Paulo: Boitempo, 2015.

E-book.

ROCHA, Glauber. Eztetyka da Fome. Hambre, espacio cine experimental, set. 2013.

Disponível em: https://hambrecine.com/2013/09/15/eztetyka-da-fome/. Acesso em: 6 de

novembro de 2019

THE Matrix. Direção e roteiro: Andy e Larry Wachowski. Produção: Joel Silver. Música:

Don Davis. Fotografia: Bill Pope. Direção de arte: Hugh Bateup e Michelle McGahey.

Figurino: Kym Barrett. Edição: Zach Staenberg. Efeitos especiais: Mass. Illusions, LLC /

Manex Visual Effects / Amalgameted Pixels. Estúdio: Village Roadshow Productions.

Distribuidora: Warner Bros.

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APÊNDICE A – MAPA DE ARTE

SE

QUÊNCIA

DESCRIÇÃO LOCAÇÃO ILUMINAÇÃO PERSONAGENS OBJETOS USADOS PROPS

03

Protagonista trabalhando

Sala do apartamento Fabio/Josi

INT/DIA/LUZ NATURAL

1 personagem – protagonista

Cadeira, mesa, máquina, fios,

óculos de realidade virtual, copo com

água, suporte para medicamentos,

sangue cenográfico,

mesinha de canto.

Óculos de realidade virtual, máquina, sangue cenográfico, copo com água, medicamentos.

04

Saída do trabalho;

recebimento do pagamento e contato com

a resistência

Corredor da casa de

Saulo

INT/DIA/LUZ NATURAL

6 personagens – protagonista,

patrão, membro da resistência, figurantes.

Saco de tecido, migalhas de pão,

ziplock, medicamentos,

atadura, panfleto.

Saco de tecido, migalhas de pão, medicamentos,

panfleto.

05

Chegada em casa; pesquisa

sobre o

panfleto recebido

Escritório da casa de Rebeca

INT/NOITE/LUZ ARTIFICIAL

1 personagem – protagonista

Caixote cheio de objetos aleatórios,

toalha, cigarro,

cinzeiro, garrafas de cerveja, computador completo, webcam,

itens comuns de escritório,

escrivaninha,

cadeira, panfleto

Toalha, cigarro, computador completo,

garrafa de cerveja,

webcam, panfleto.

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APÊNDICE B – ROTEIRO

Sinopse

Fernando vive num sistema opressor sem forças de reação,

escravo de seu trabalho e de “comprimidos estimulantes”, até

encontrar indícios de uma resistência através de códigos

secretos.

Roteiro Literário Capítulo Um - Anatomia das Marionetes

1- EXT. VISTA AÉREA DE NATAL - DIA

Observamos o horizonte da cidade de Natal aproximadamente

às 15:30h, há uma poluição acinzentada no ar, chove. As são

ruas vistas de cima, parcialmente vazias e de tonalidade

acinzentada, com poucos carros. O céu está carregado.

Ouvimos o som da chuva e de um discurso durante toda a

cena.

VOZ OVER

- Então, o teu sono já não será mais tão

tranquilo assim. Verás, em tuas noites, o

capital como um pesadelo, que oprime e ameaça

lhe sufocar.

FADE OUT

2- INT. SALA ESCURA E VAZIA - TEMPO INDETERMINADO.

FADE IN

Em uma sala escura FERNANDO: HOMEM NEGRO DE

APROXIMADAMENTE 27 ANOS, DE APARÊNCIA CANSADA, COM CABELOS COR

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DE ROSA E APTIDÃO PARA A TECNOLOGIA, DEPENDENTE QUÍMICO DAS

DROGAS FORNECIDAS PELO SISTEMA, com os olhos vidrados e rosto

iluminado por uma tela manifesta diferentes expressões, nas

suas costas passam imagens, projetadas na parede, de

conflitos, notícias, propagandas, programas de tv. Podemos

ouvir o ruído contínuo de uma espécie de máquina, o som da

sintonia analógia dos programas de TV soa de tempos em tempos,

bem como o som de cada programa.

VOZ OVER

- Com os olhos aterrorizados, vai vê-lo

crescer, como um monstro com cem dentes de

vampiro penetrando nos poros de seu corpo,

para chupar o seu sangue.

Enquanto as palavras ecoam durante a cena, as expressões

do homem se modificam em reação às imagens projetadas.

VOZ OVER

- Tomando proporções desmesuradas e

gigantescas, de sombrio e terrível aspecto,

com olhos e boca de fogo, vai vê-lo

transformando suas garras em uma enorme

tromba aspirante em que vão desaparecendo

milhares de seres humanos: Homens, mulheres,

crianças. De sua fronte, corre agora um suor

de morte, porque o monstro está se

aproximando, para agarrar você, sua mulher e

seus filhos. Mas seu último gemido será

abafado pelo riso apavorante do monstro,

satisfeito em sua gula. Quanto mais próspero,

mais desumano...

O som de um alarme toca por um instante.

FADE OUT

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3- INT.AMPLA SALA BRANCA - DIA

FADE IN

Em uma grande sala vazia, exceto pela máquina ao centro e

uma pequena mesa no canto mais claro, Fernando desperta

bruscamente do transe virtual e se desconecta da máquina

retirando um óculos de realidade aumentada de seu rosto e

colocando ao lado. Respira por um instante inexpressivo,

escorre um pouco de sangue do seu nariz. Limpa.

Levanta um pouco trêmulo da cadeira e se dirige à mesinha

nos fundos da sala.

Na mesa pega um comprimido azul e toma, com um copo d’água

mais ao lado.

Por um buraco na janela, descoberto pelos jornais que

bloqueiam a luz do sol, o homem observa um pouco do céu

acinzentado, a luz se projeta em seu rosto enquanto observa

ainda inexpressivo o horizonte.

Sua visão começa a ficar turva sob o efeito da droga.

Um novo alarme indica o final do expediente.

FADE OUT

4- INT. CORREDOR DE SAÍDA DO TRABALHO - DIA

De um grande corredor, repleto de portas e acessos, saem

ao mesmo tempo várias pessoas, perfeitamente sincronizadas,

alinhando-se em filas. O patrão, FIGURA SEM NOME SOCIAL, DE

GESTOS ROBÓTICOS E COM SEU ROSTO E EXPRESSÕES OCULTOS POR UMA

BANDAGEM, UTILIZA UM TERNO E SUA FUNÇÃO É MANTER OS

FUNCIONÁRIOS SEM REAÇÃO. Passa lentamente distribuindo

migalhas e comprimidos para as pessoas.

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PATRÃO

- Como prometido, hoje é o dia de pagar

a todos vós...

Alguns trabalhadores observam as migalhas inquietos,

outros inertes com suas expressões de sofrimento. O punhado

pequeno ocupa com folga as mãos dos funcionários.

PATRÃO

- Como fruto de vosso trabalho árduo

durante essa semana...Continuem assim,

trabalhem... trabalhem...

Um funcionário esbarra em Fernando que observa o chão

molhado enquanto caminha a passos curtos com sua visão turva,

observa um papel pisoteado e molhado aos seus pés. Um panfleto

com um QR CODE com os dizeres “r.XIST”. Olha para os lados,

para as pessoas semi inertes que caminham com ele, e abaixa

para pegar o papel num movimento rápido.

PATRÃO

- *Fala incompreensível*... continuem a

trabalhar...

FADE OUT

5- INT. CASA DE FERNANDO, ESCRITÓRIO - NOITE.

Em um cubículo apertado, o homem passa um lenço sobre seu

corpo, o “banho moderno”, seu cigarro queima sozinho no

cinzeiro, pela janela entram as luzes de outdoors e

propagandas.

Joga o lenço em uma caixa sobre a mesa e pega o papel do

QR Code no bolso da calça.

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Puxa a cadeira e se senta, acende uma luminária sobre a

mesa.

Observa por alguns instantes e se dirige a um computador

velho sobre uma mesinha ao lado, liga uma espécie de leitor

universal e coloca por sobre o papel, na tela o leitor acusa

“código não reconhecido”, o homem muda a posição do papel e

repete a leitura algumas vezes sem obter êxito.

Rabisca com uma caneta preta por sobre os traçados de

códigos, para tentar reforçar a leitura.

Para por um instante batendo o lápis sobre a mesa,

observando fixamente o papel. Pega uma cerveja quase vazia

sobre a mesa e molha o papel. Por um momento observa o papel

em contra luz, na altura dos olhos, vira o papel por um

instante e observa o código ao contrário. Coloca o papel sob o

leitor “do avesso”.

Uma mensagem abre no computador “Bem vindo ao r.XIST...”.

A expressão de Fernando muda levemente.

FIM

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ANEXO A – TRECHO DO LIVRO DE CARLO FIERO

Trecho do livro Compêndio de O capital que entrou nas cenas iniciais como narração

em off:

“Então, o teu sono não será mais tão tranquilo assim. Verás, em tuas noites, o capital

como um pesadelo, que oprime e ameaça lhe sufocar. Com os olhos aterrorizados, vai vê-lo

crescer, como um monstro com cem dentes de vampiro penetrando nos poros de seu corpo,

para chupar o seu sangue. Tomando proporções desmesuradas e gigantescas, de sombrio e

terrível aspecto, com olhos e boca de fogo, vai vê-lo transformando suas garras em uma

enorme tromba aspirante em que vão desaparecendo milhares de seres humanos: homens,

mulheres, crianças. De sua fronte, corre agora um suor de morte, porque o monstro está se

aproximando, para agarrar você, sua mulher e seus filhos. Mas seu último gemido será

abafado pelo riso apavorante do monstro, satisfeito em sua gula. Quanto mais próspero, mais

desumano...”.