Ansiedade Da Performance

129

description

livro Ansiedade da Perfomance

Transcript of Ansiedade Da Performance

Page 1: Ansiedade Da Performance
Page 2: Ansiedade Da Performance
Page 3: Ansiedade Da Performance

Revista do Conservatório de Música da UFPel Pelotas, No.5, 2012

apresentação

Mais uma vez é chegado o momento de apresentar à comunidade acadêmica um novo volume on line da Revista do Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas.

Neste quinto volume, que consolida uma proposta iniciada em 2008, apresentam-se 4 artigos de temática atual, que demonstram ser a música uma área de conhecimento extremamente fértil para a produção do conhecimento científico.

No primeiro artigo, Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas salienta os contrastes entre o funcionalismo e o formalismo encontrados nas práticas teóricas da harmonia tonal e os reflexos em seu ensino e aprendizagem. A observação de que o “domínio do formalismo analítico […] nos mal educou a pensar também a função tonal dos graus como um operador autônomo, desvinculado de melodia, letra, prosódia, performance, argumentos dramáticos ou poéticos, pessoas, ambientes, propósitos, etc.” mostra-se instigante.

No artigo seguinte, Andre Sinico e Leonardo L. Winter abordam a ansiedade e suas influências na performance musical. É uma pesquisa bibliográfica que combina os campos da psicologia da música e da performance musical e que, além de estabelecer a distinção entre a ansiedade e o pânico do palco, conclui sugerindo estratégias e tratamentos para a sua superação.

Segue o artigo de Catarina Leite Domenici que, ao apresentar como ponto de partida para uma ética dialógica da performance musical a colaboração entre compositores e intérpretes, analisa as ideias de fidelidade às intenções do compositor e fidelidade ao texto do ponto de vista do performer. Um texto denso e bem fundamentado sobre filosofia da performance musical.

Por fim, Daniel Lemos relata procedimentos de elaboração e adoção de um método de Piano para prática individual, podendo ser adotado tanto em contexto de ensino individual quanto coletivo. A proposição apresentada representa um importante texto sobre a Pedagogia do Piano.

Assim, esperamos que este quinto volume da Revista do Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas alcance o seu objetivo.

Uma ótima leitura.

Prof. Dr. Luiz Guilherme Duro GoldbergEditor da Revista do Conservatório de Música

Page 4: Ansiedade Da Performance

Revista do Conservatório de Música da UFPel Pelotas, No.5, 2012 p. 1-35

Da harmonia pela harmonia: sobre formalismo e seus impactos na

ideia de harmonia funcional

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas(UDESC - SC)

[email protected]

Resumo: Nas atuais práticas teóricas da harmonia tonal que enfrentam também o âmbito da música popular, a ideia de harmonia funcional entrelaça tópicos, formulações e abordagens que frequentemente estão presentes. Destacando questões proeminentes em determinados campos da arte e da cultura – tais como as questões da “l'art pour l'art”, do idealismo, da música absoluta, do belo musical, do matematismo, do sensacionismo etc. – este artigo salienta contrastes entre o funcionalismo e o formalismo. Com isso, observando impactos que questões assim causaram, ou ainda causam, em nossas concepções sobre música, argumenta-se que tais temáticas, por vezes afastadas das aulas e conteúdos programáticos da disciplina, interferem e podem ser criticamente contributivas na análise e resolução de problemas desta harmonia dita funcional.

Palavras-Chave: Harmonia funcional, música absoluta, análise e teoria musical.

Harmony for harmony’s sake: formalism and its impact on the idea of functional harmony

Abstract: In current theoretical practices of tonal harmony that also involve popular music, the idea of functional harmony implicates topics, formulations and approaches which are often present. Emphasizing prominent topics in certain fields of art and culture – such as " l'art pour l'art" (art for art's sake), idealism, absolute music, the beautiful music, mathematicism, sensationalism etc. – this paper highlights the contrasts between functionalism and formalism. Thus, given the impact of these issues on our conceptions of music, it is affirmed that they interfere and may contribute to the analysis and resolution of problems associated to this so-called functional harmony, although these topics are not usually discussed and may not be part of the curriculum.

Keywords: Functional harmony, absolute music, analysis and music theory.

INTRODUÇÃO

Nas rotinas de estudo, ensino e aprendizagem formal da harmonia tonal, em

certas ocasiões, surgem questões relacionadas ao fato de que o âmbito deste

campo do conhecimento musical nem sempre se restringe aos limites de sua

pressuposta autonomia. Certas causas, justificativas, origens, escolhas e

motivações que acompanham os problemas da teoria, crítica e análise harmônica,

dão indícios de que tais problemas vão se resolver é na interação entre “as

interioridades de um jogo de regras próprias e as exterioridades de um mundo onde

este jogo é jogado” (NAGORE, 2004, p.3). Então, assim como a própria música está

Page 5: Ansiedade Da Performance

2

“intrinsecamente ligada à condição comum e impura dos nossos negócios humanos”

(GOEHR apud RIDLEY, 2008, p.27), também a harmonia pode se deixar notar como

algo que não é “maximamente independente dos caprichos de tempo e lugar,

equipamento e método e, acima de tudo, independente de [...] preconceitos,

sentimentos, carências e necessidades” (RIDLEY, 2008, p.14).

Uma das ênfases da discussão que se apresenta aqui recai justamente

sobre o entendimento da noção de funcionalidade, de formalidade, naturalidade,

perfeição, universalidade e perenidade de uma perspectiva teórica musical que, por

vezes, é dada como lógica, especializada, racional e dotada da faculdade de

determinar suas próprias leis. Ou, mais especificamente, a discussão que se

apresenta aqui recai sobre a tese contemporânea que defende uma suposta máxima

pureza radicada na função harmônica dos graus. Então, em cenário posterior à

segunda metade do século XVIII e focalizando, principalmente, a perdurante

referência internacional da linhagem teórica austro-germânica ao longo dos séculos

XIX e XX1, trata-se de problematizar a perspectiva de uma neutralidade absoluta,

positiva e idealizada que, convicta e competentemente, vem nos ensinando que

A melhor maneira de chegar à verdade a respeito da música [e, com isso, também da harmonia, das funções tonais etc.] deve ser, de fato separá-la tanto quanto possível de todas as outras coisas e investigá-la no que poderia ser chamado seu estado “puro”. A música precisa ser desinserida [...] e abordada por si mesma; ela precisa ser considerada em isolamento [...], pois dessa maneira – livre de qualquer influência contaminadora – cederia seus segredos (RIDLEY, 2008, p.11-12).

A discussão a respeito desta temática é conhecida. De modo geral, sua

divulgação conta com slogans polemistas, cultos e diversos, que caracterizam tal

oposição por meio de rótulos emblemáticos como: Autonomia contra dependência. A

estrutura intramusical contra a conjuntura extramusical. Desinserção contra

interação. A convicção de que a qualidade artística da música encontra-se na beleza

dos seus construtos sonoros contra a certeza de que o valor da música reside na

capacidade de expressão e/ou representação dos sentimentos ou de outras coisas

que, então, são percebidas como coisas de fora da música. Tal discussão não será

propriamente revista aqui, mas, em síntese, a Fig.1 procura referenciar alguns

1 Sobre a teoria da harmonia austro-germânica e seu legado, ver Bernstein (2006), Burnham (1992), Damschroder (2008), Dudeque (2005), Fabrikant (2007), Mickelsen e Riemann (1977), Rehding (2008), Shirlaw (1969, p.352-410), Wason (1988).

Page 6: Ansiedade Da Performance

3

Fig.1 - Amostragem metavocabular e referências em torno da questão formalismo versus conteudismo

Page 7: Ansiedade Da Performance

4

vieses desta desinteligência que, atingindo ora mais ora menos as normalizações da

harmonia, são questões de destaque nas filosofias, estéticas, sociologias,

pedagogias, teorias, críticas e análises musicais.

Dado que são diversos os esforços que abordam o assunto, argumenta-se

aqui que: reconhecer termos e contra termos dessa discussão, que por vezes é

afastada como coisa alheia aos assuntos formalmente declarados como

propriamente técnicos e específicos da nossa disciplina, é uma ação correlata que,

efetivamente, contributivamente, pode arejar nossas rotinas de análise harmônica

funcional.

1. DA ARTE PELA ARTE, DO IDEALISMO ABSOLUTO E DA MÚSICA ABSOLUTA

Na observação do gradual processo de propagação das teses do formalismo

na teoria contemporânea para a arte da harmonia, um marco indelével se concentra

na poderosa fórmula: a arte pela arte. Fácil de lembrar a fórmula propaga uma

doutrina de fundo romântico que, em linhas gerais, defende uma “compreensão do

fenômeno artístico que vê na própria arte e nos seus meios os únicos fins a que ela

deve almejar, sem o apelo a objetivos extrínsecos (tais como motivações éticas,

didáticas ou ideológicas) ao puro deleite formal” (HOUAISS).

Entre 1785 e 1788, atualizando a antiga expressão latina “ars gratia artis”, a

fórmula “l'art pour l'art” ganha destaque em textos do esteta, escritor e professor

alemão Karl Phillipp Moritz (1756-1793). Influentes na fase inicial do Romantismo, as

teses de Moritz “foram aceitas sem reservas por Goethe e com hesitação por parte

de Schiller” (DAHLHAUS, 1999, p.8). Conforme Dahlhaus, a “rudeza” da fórmula se

explica, por um lado, frente ao enfado provocado por tantos arrazoados filosóficos e

morais sobre arte que surgiram ao longo dos séculos XVII e XVIII2. E, por outro lado,

pelo desejo de usufruto da contemplação estética como uma libertação das

opressivas tarefas do mundo vital e laboral burguês. O esforço pedagógico de Moritz

estava “destinado à correta apreciação do belo e da arte”:

Procurarei desenvolver o conceito de belo [...] segundo os princípios mais simples, e reduzir a essência das obras de arte [...] a esse princípio central, de modo que o gosto ou a faculdade de sentir [...] tenha um ponto firme, a partir do qual se possa em todos os momentos corrigir o sentimento obscuro durante a contemplação ou o julgamento do belo, orientando ao

2 Para uma amostra desses arrazoados no campo da música, ver Hanslick (1992, p.26-29).

Page 8: Ansiedade Da Performance

5

mesmo tempo o seu juízo diante do entendimento (MORITZ apud TOLLE, 2007, p.9).

O objeto meramente útil é, pois, em si mesmo nada completo nem fechado, só chega a sê-lo quando alcança em mim seu objetivo ou sua função. [...] Enquanto o belo atrai nossa atenção nos aparta um tempo de nós mesmos, e faz parecer que estamos perdidos no objeto belo; e justamente esse perder-se, esse esquecer-se de si mesmo, é o mais alto grau de prazer puro e desinteressado que o belo pode nos oferecer. Sacrificamos nesse instante nossa limitada existência individual por uma espécie de existência superior (MORITZ apud DAHLHAUS, 1999, p.8-9).3

A autonomia da obra de arte diante do sujeito pressupõe não apenas que ele renuncie a agir em proveito e de acordo com seus desejos. [Tal autonomia] tem como consequência o fato de que, para a correta contemplação da obra de arte, não são necessários conhecimentos prévios ou erudição. A obra de arte deve ser capaz de transmitir o seu significado valendo-se apenas do que apresenta a sua superfície. Tomada em isolado, a obra é uma exposição que diz algo. Para Moritz: [a obra de arte] “não deve significar e dizer nada que esteja fora dela, mas, por assim dizer, deve falar apenas de si mesma, da sua essência por meio da superfície exterior, ela deve se tornar significativa por meio de si mesma”. [...] Desse modo, cerca de uma década antes da publicação da [noção de “finalidade sem fim” na] Crítica da Faculdade do Juízo, de Kant, Moritz formula o conceito de autonomia para a arte, sem, contudo, empregar este termo especificamente e por vias surpreendentemente diferentes (TOLLE, 2007, p.12 e 14).

A princípio, em Moritz, a fórmula “l’art pour l’art” estava orientada para a

poesia, a pintura e a escultura. E, com efeito, sabemos que ao longo dos anos

influentes poetas e artistas “dela se valeram para defender a arte das tentativas de

escravização ou manipulação para fins que acarretariam a sua completa

subordinação e lhe tolheriam toda liberdade de movimento” (ABBAGNANO, 2007,

p.374).

[A arte] é independente de qualquer objetivo prático ou utilitário. Este caráter foi expresso pela fórmula da arte pela arte, à qual aderiram no século XIX artistas como Flaubert, Gautier, Baudelaire, Walter Pater, Oscar Wilde e Allan Poe. O alvo contra o qual se dirige essa fórmula é a subordinação da Poesia à emoção, à verdade ou ao dever; seu significado positivo é a liberdade da Poesia no sentido afirmado, p. ex., por Kant. Flaubert diz: "Compor versos simplesmente, escrever um romance, cinzelar mármore, eram coisas boas nos tempos em que não existia a missão social do poeta. Agora qualquer obra deve ter significado moral, ensinamento bem dosado; é preciso que um soneto tenha alcance filosófico, que um drama pise nos calos dos monarcas e que uma aquarela enobreça os costumes. A

3 Esta versão em português foi escrita pelo autor do presente artigo a partir da seguinte tradução do alemão para o espanhol realizada por Ramón Barce: “El objeto meramente útil es, pues, en si mismo nada completo ni cerrado, sino que solo llega a serlo cuando alcanza en mí su objetivo o su cumplimiento. […] Mientras lo bello atrae nuestra atención nos aparta un tiempo de nosotros mismos, y hace que parezca que nos perdemos en el objeto bello, y justamente ese perderse, ese olvidarse de uno mismo, es el más alto grado del placer puro y desinteresado que puede ofrecernos lo bello. Sacrificamos en ese instante nuestra limitada existencia individual en aras de una especie de existencia superior”.

Page 9: Ansiedade Da Performance

6

mania de advogar insinua-se em toda a parte, juntamente com a sofreguidão de discutir, perorar, arengar". [Em 1856] Gautier proclamava: "Cremos na autonomia da arte; para nós a arte não é um meio para um fim. Um artista que corre atrás de um objetivo que não seja a beleza em nossa opinião não é artista". A fórmula da arte pela arte é, portanto, substancialmente a defesa da Poesia contra qualquer tentativa de torná-la instrumento de propaganda de um objetivo qualquer. A beleza é o único fim [...] a arte não pode estar subordinada ao bem, à verdade ou a coisas que pretendam ter tais características, resta-lhe como único fim a beleza, mais precisamente a beleza formal, que independe dos conteúdos que lhe são oferecidos pela emoção ou pelo intelecto (ABBAGNANO, 2007, p.770).

Entrementes, contando com o aporte de uma geração de sensíveis e jovens

poetas, escritores e críticos pré-românticos, tais teses se fortificaram também no

campo musical4. O “ideal romântico de que a obra de arte é outro mundo, válido por

si mesmo e independente do que lhe é exterior” (WAIZBORT, 2006, p.187), causou

indelével impressão no mundo da arte dos sons consolidando aos poucos a defesa

de uma música pela música. Uma “música sem sombras”, desvinculada “de qualquer

elemento extramusical (textos, recursos cênicos, coreografias) e que se propunha a

ser autônoma, assemântica e agenciadora de suas próprias regras de construção

técnico-formais e de expressividade” (TOMÁS, 2011, p.12). Tal ideal de “autonomia”

implica a mais alta aspiração, a unidade, a pureza, a perfeição. O ideal absoluto:

Na descrição do que é perfeito, impõe-se, na música, não diversamente da poesia, a imagem de uma única mônada fechada em si que, no entanto, indica um mundo5. O perfeito, segundo uma expressão de Tieck, é “um mundo separado por si mesmo”, no qual um momento extra-estético, uma reminiscência biográfica ou histórica, significaria uma perturbação sensível (DAHLHAUS, 2003a, p.127).

É preciso compreender a gênese da autonomia romântica da arte para poder ponderar seu justo peso histórico. A ênfase na autonomia contrapõe-se à ideia tradicional [...] de que a obra de arte deve estar a serviço da religião, da utilidade moral ou do entretenimento cortês ou burguês. [...] A religião da arte romântica foi uma emancipação da arte, que deixou de servir a qualquer função que lhe fosse exterior, [a música] deixou de ser música funcional. [...] No limite da estética romântica, a música é uma “revelação” do absoluto. [...] Foi Richard Wagner, o criador da expressão [“música absoluta”]6, quem talvez melhor tenha definido o problema: a

4 Dentre os jovens pré-românticos que produziram textos que contribuíram incisivamente para tal reviravolta na abordagem da arte musical, destacam-se nomes como: Friedrich Schlegel (1772-1829), Wilhelm Heinrich Wackenroder (1773-1798), Ludwig Tieck (1773-1853), Jean-Paul (Johann Paul Friedrich Richter, 1763-1825), Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822). Sobre o assunto, ver Iriarte (1987), Nunes (2005), Videira Junior (2006, p.71-79; 2009).5 Correlações entre a noção filosófica de mônoda e o conceito harmônico funcional de monotonalidade elaborado por Schoenberg (2004, p.37) são mapeadas em Freitas (2010, p.283-385). Sobre monotonalidade, ver: Bernstein (1992, 2006, p.802-806), Carpenter e Neff (2006, p.64 e 206-225), Dudeque (1997a, 1997b, 2005), Neff (1993, p.416-419). 6 Ver Beard e Gloag (2006, p.2-3), Dahlhaus (1999, p.22).

Page 10: Ansiedade Da Performance

7

irredutibilidade da música absoluta a qualquer outra forma de expressão, daí a sua intraduzibilidade (WAIZBORT, 2006, p.188).

Sobre a palavra chave “absoluto”, Abbagnano (2007, p.3-4) informa que,

embora a ideia de “Deus como Absoluto” tenha sido proposta pelo filósofo

renascentista Nicolau de Cusa (1401-1464), a difusão da palavra, desde o século

XVIII, muito provavelmente se deve ao linguajar político (poder absoluto, monarquia

absoluta, absolutismo etc.)7. Contudo, a voga filosófica do termo se deve ao

Romantismo alemão que fixou o uso da palavra quer como adjetivo (sem restrições,

sem limitações, sem condições etc.), quer como substantivo (realidade desprovida

de limites, suprema, o “espírito de Deus” etc.) sinônimo de infinito. Filosoficamente,

na esfera do idealismo alemão – ou idealismo absoluto –, Kant diferencia dois

significados: um mais difundido e menos preciso, é o de absoluto como a

determinação de uma coisa pela própria substância ou essência da coisa.

“Absolutamente possível” significa: “possível em si mesmo”, ou “intrinsecamente

possível”. E o outro significado é: “possível sob todas as relações, ou sob todos os

aspectos”. Fichte já fala em termos de “dedução absoluta”, de “atividade absoluta”,

de “saber absoluto” e de “eu absoluto” para indicar o “Eu infinito, criador do mundo”,

e procura interpretar “o Eu como Deus”: “O absoluto é absolutamente aquilo que é,

repousa sobre e em si mesmo absolutamente. [...] Ele é o que é absolutamente

porque é de si mesmo”. Essa inflação dos sentidos da palavra se observa também

em Schelling, que usa o substantivo absoluto para designar o princípio infinito da

realidade, isto é: Deus. Com Hegel, o absoluto é ao mesmo tempo “o objeto e o

sujeito da filosofia e, embora definido de várias maneiras, permanece caracterizado

pela sua infinidade positiva no sentido de estar além de toda realidade finita e de

compreender em si toda realidade finita”. O termo absoluto permanece ligado

A uma fase determinada do pensamento filosófico, precisamente à concepção romântica do Infinito, que compreende e resolve em si toda realidade finita [...] nada tendo fora de si que possa limitá-lo ou condicioná-lo [...]. [Absoluto é] aquilo que realiza a si mesmo de modo necessário e infalível (ABBAGNANO, 2007, p.4).

Contando com o célebre ensaio “A ideia de música absoluta”, publicado pelo

musicólogo alemão Carl Dahlhaus (1928-1989) em 1976, podemos considerar que,

na história contemporânea da música culta européia, ou por ela condicionada, a

7 Sobre o impacto do absolutismo na terminologia da teoria musical, ver Freitas (2010, p.538-539).

Page 11: Ansiedade Da Performance

8

expressão música absoluta corresponde a “uma música liberada de funções, de

textos e de caracteres nitidamente desenhados e capaz de elevar-se à intuição do

infinito” (DAHLHAUS, 1999, p.126-127)8. O conceito de música absoluta – “o

paradigma estético que dominava na Alemanha como concepção do que desde a

sinfonia e o quarteto de cordas até o drama musical era a música ‘em si’ – foi uma

ideia de todo o século XIX, que representou o sentimento artístico de toda uma

época” (DAHLHAUS, 1999, p.139)9. A ideia de música absoluta rejeita o principio

imitativo, rejeita “o postulado de que a música deveria ser descritiva, seja como

pintura da natureza exterior, seja como representação de afetos ou pintura da

natureza interior, para não permanecer em um conjunto de sons vazio e trivial”10,

contra-argumentando que a música “é linguagem e substância” e não “mero veículo

de pensamentos ou de sentimentos” (DAHLHAUS, 1999, p.140). Em outro texto,

Dahlhaus pondera:

Do ponto de vista historiográfico seria útil [“útil”, pois não existe um conceito “único e verdadeiro” de autonomia] encontrar um caminho intermediário entre um equivalente de “música de concerto” [em contraposição à “música corrente”] e um conceito de autonomia que coincida com a doutrina de l’art pour l’art. [...] Dessa maneira se poderia qualificar de autônoma, em primeiro lugar, uma composição musical que exija e possa ser escutada por si mesma, de modo que a forma predomine sobre a função. Em segundo lugar, a arte em sentido moderno do conceito, isto é, obras que surgiram livremente quanto ao conteúdo e forma e não por encargo [livremente concebida e realizada sem influências de um patrão ou comprador] (DAHLHAUS, 2003b, p.134)11.

Observando efeitos recentes da ideia de música absoluta quando, já no

campo da música popular urbana dos séculos XX e XXI, lidamos com critérios de

“complexidade e valor”, Fischerman sintetiza pontos contributivos para a

8 Una música liberada de funciones, de textos y de caracteres nítidamente diseñados y capaz de elevarse a la intuición del infinito.9 El paradigma estético que dominaba en Alemania como concepción de lo que desde la sinfonía y el cuarteto de cuerda hasta el drama musical era la música ‘en sí’ – ha sido una idea de todo el siglo XIX, que representó el sentir artístico de toda una época.10 El postulado de que la música debiera ser descriptiva, sea como pintura de la naturaleza exterior, sea como representación de afectos o pintura de la naturaleza interior, para no quedarse en un conjunto de sonidos vacío y trivial.11 Esta versão em português foi escrita pelo autor do presente artigo a partir da seguinte tradução do alemão para o espanhol realizada por Nélida Machain: "Desde el punto de vista historiográfico sería útil [...] encontrar un camino terminológico intermedio entre un equivalente de "música de concierto" y un concepto de autonomía que coincida con la doctrina de l'art pour l'art. De esa manera se podría calificar de autónoma, en primer lugar, a una composición musical que exija y pueda ser escuchada por sí misma, de modo que la forma predomine sobre la función. En segundo lugar, al arte en el sentido moderno del concepto, es decir, obras que surgieron libremente en cuanto a contenido y forma y no por encargo”.

Page 12: Ansiedade Da Performance

9

desambiguação de termos chaves aqui em debate: função na harmonia funcional de

uma música popular que agrega valor por meio da manufatura complexa.

Nessa forma de conceber a arte (e de conceber a música), que persegue a condição de abstração (de música absoluta), são essenciais os valores de autenticidade, complexidade contrapontística, harmônica e de desenvolvimento, somados a expressão de conflitos e a dificuldade na composição, na execução e também na escuta. Hegel, em sua Estética, assegurava que a arte nascia no exato momento da morte do ritual. Quer dizer, a condição do “artístico” de um objeto está diretamente ligada a sua capacidade de abstração. No quadro de honra da música, forjado a partir de Beethoven e dado como modelo para a leitura tanto da história anterior quanto da posterior, os gêneros que tendem a abstração são superiores aos claramente funcionais [i.e., gêneros com valor prático, utilitário, associados a alguma motivação extramusical concreta etc.] e, dentro deste universo da tradição escrita e acadêmica, os gêneros que renunciam expressamente a qualquer função que não seja a escuta são mais elevados e profundos do que os outros. Dentro deste subgrupo, além disso, os que renunciam aos fogos de artifícios da variedade tímbrica e os que utilizam as formas mais contrapontísticas e matemáticas ocupam o escalão superior.

Neste tipo de classificação do nível artístico das músicas segundo seu nível de dificuldade e abstração, entra em jogo, também, a hipotética (e ilusória) escuta atenta do receptor, que até os inícios do século XX, havia sido privativa de um conjunto de músicas de tradição ocidental e escrita e que fixava, por sua vez – e dialeticamente se articulava a partir de – formas de circulação particulares, como o concerto público, fundamentalmente. Durante o século XX, tanto estas normas de valor como suas modalidades de circulação não só se estenderam para tradições populares, como também possibilitaram, tornando-se pontos de partida, a constituição de novos gêneros [...] Essa nova música para escutar já não era (ou era cada vez menos) produzida pelos compositores clássicos, [...] e foi alcançando altíssimos níveis de sofisticação e refinamento a partir das tradições que vinham de migrações e equívocos, de praças e bordéis, de bailes e funerais (FISCHERMAN, 2004, p.27)12.

Posto esta mínima contextualização, que visa estimular a observação da

romântica ideia de música absoluta no enfrentamento dos problemas da harmonia

tonal em nossos dias, retornemos aos meados do século XIX quando, na Europa

culta, o idealismo absoluto remodelava a noção de valor artístico musical.

2. IMPACTOS DO BELO MUSICAL E O IDEAL DE FUNÇÃO TONAL

No âmbito da estética musical um texto seminal que, como se sabe, não

pode deixar de ser mencionado nos debates contemporâneos em torno dessa

temática (formalismo versus conteudismo, autonomia versus atrelagem etc.), é o

influente “Do belo musical: uma contribuição para a revisão da estética musical”

12 Sobre a ascensão e declínio da ideia de música absoluta e seus recentes impactos nos estudos da música veiculada pelos meios de comunicação de massa, ver Tagg e Clarida (2003, p.11-92).

Page 13: Ansiedade Da Performance

10

publicado a partir de 1854 pelo professor e crítico musical boêmio-austríaco Eduard

Hanslick (1825-1904)13. Lembrando que este “Do belo musical” é “ponto de partida

não somente da estética formalista, mas também – o que é ignorado com muita

frequência – do pensamento estruturalista” (NATTIEZ, 2005, p.121), recorta-se a

seguir alguns fragmentos do texto de Hanslick (da oitava edição datada de 1891)

que, embora parciais, são contributivos para uma revisão dos pressupostos que, ao

fundo, silenciosamente, parecem tentar governar também a arte da harmonia

quando esta é idealizada como funcional.

A beleza de uma composição é especificamente musical, isto é, inerente aos sons, sem relação com o círculo de pensamentos estranhos, extramusicais (p.10). [...] O belo não tem absolutamente nenhum objetivo; ele é, de fato, pura forma (p.16). [...] O importante é penetrar no interior das obras e elucidar a força específica de sua impressão a partir das leis de seu próprio organismo (p.21).

[Qual a natureza do belo musical?] É um belo especificamente musical. [...] um belo [e, então, uma bela concatenação harmônico funcional] que, sem depender e sem necessitar de um conteúdo exterior, consiste unicamente nos sons e em sua ligação artística. As engenhosas combinações de sons encantadores, seu concordar e opor-se, seu afastar-se e reunir-se, seu elevar e morrer – é isto que, em formas livres, se apresenta à contemplação de nosso espírito e que dá prazer enquanto belo (p.61).

Uma ideia musical perfeitamente expressa já é um belo independente, é uma finalidade em si mesma [...] O conteúdo da música são formas sonoras em movimento (p.62). [...] O belo musical repousa nas relações, nas coligações das notas (p.67). O belo de um tema independente e simples se anuncia ao sentimento estético com aquela imediatez que não admite outra explicação a não ser, no máximo a conveniência íntima do fenômeno, a harmonia de suas partes, sem relação com nada de estranho. Isso nos provoca prazer em si mesmo, como os arabescos (p.69).

Não se busca em peças musicais [não se busca nas “funções harmônicas”] a representação de determinados processos psicológicos ou de acontecimentos; busca-se, antes de tudo, música (p.77). [...] Não existe na música nenhuma “intenção” que poderia substituir uma “invenção” deficiente. [...] A palavra arte [Kunst] deriva de poder [Können]; quem nada pode tem “intenções”. Assim como o belo de uma peça musical se prende unicamente a características musicais dessa, do mesmo modo também as leis de sua construção só obedecem a tais características (p.77-78).

Para o juízo estético [e para a “função harmônica”] não existe o que vive fora da obra de arte (p.80). [...] A pesquisa estética nada sabe e nada saberá das relações pessoais e do ambiente histórico do compositor; ela só ouvira o que a própria obra de arte exprime e acreditará nisso (p.81) [...] a ‘compreensão histórica’ e o ‘juízo estético’ são coisas distintas (p.82).

13 Além das traduções para o português (HANSLICK, 1994, 1992) dispomos atualmente de várias leituras dedicadas ao texto de Hanslick, tais como as de Alperson (2008), Nattiez (2005, p.117-139), Oliveira (2010, p.39-46) e Videira Junior (2006), que se somam ao já consolidado espaço que o formalismo e Hanslick ocupam na estética musical, como pode ser visto em Dahlhaus (1999; 2003a, p.79-85), Fubini (1994, p.325-334), Kivy (1990) e Scruton (1999, p.348-354).

Page 14: Ansiedade Da Performance

11

Concebemos a atividade de compor com um “formar”; enquanto tal, ela é completamente objetiva. O compositor forma um belo independente (p.94) [...] Essa objetividade consiste, aqui, nas características musicais de uma composição. [...] Mais estranho ainda ao caráter de uma composição enquanto tal são as relações sociais e políticas dominantes de uma época em que ela é escrita (p.95) [...] A consideração estética não pode apoiar-se em nenhuma circunstância que esteja além da própria obra de arte (p.96). [...] O aspecto arquitetônico do belo musical está evidentemente em primeiro plano na questão do estilo (p.97).

A forma pura (a construção sonora), contraposta ao sentimento como ao pretenso conteúdo, é precisamente o verdadeiro conteúdo da música, é a música mesmo (p.119) [...] A música compõe-se de série de sons, de formas sonoras; estas não têm outro conteúdo senão elas mesmas. Lembram [...] a arquitetura e a dança, que também nos apresentam belas relações sem conteúdo determinado. [...] o conteúdo dela [de uma peça musical] nada mais é do que as formas sonoras ouvidas, porque os sons não são apenas aquilo com que a música se expressa, mas também são a única coisa expressa (HANSLICK, 1992, p.155-156).

Como destacou Ridley (2008, p.19), esta “visão de que a música é

essencialmente autônoma foi popular por mais de 150 anos” e, na atualidade, a

“síndrome da autonomania” (RIDLEY, 2008, p.25) ainda se revigora nas cultas

defesas aos méritos “intramusicais”. Em seu recente elogio ao “formalismo musical”

e ao ideal de “música absoluta”, o filósofo Peter Kivy (1934-) reforça o que chama de

“purismo musical”: a música “é uma estrutura sonora quase sintática, compreensível

unicamente em termos musicais e sem nenhum conteúdo semântico ou

representacional, nenhum significado, e que não faz referência nenhuma a qualquer

coisa além de si mesma” (KIVY apud RIDLEY, 2008, p.201).

Autônoma, absoluta, orgânica e pura, tal concepção – “polir a música [...]

para excluir tudo o que seja ‘extramusical’, e a verdade brilhará inevitavelmente”

(RIDLEY, 2008, p.24-25) – interfere na consolidação de uma teoria musical

correlativamente polida, formalista e acontextual. “Formalista”, pois se trata de uma

teoria musical que pode ser validada “em seus próprios termos” (MEYER, 2000,

p.263). E “acontextual”, já que para tal teoria autônoma, “o contexto é irrelevante”

(MEYER, 2000, p.264). Com isso, também em nossas aulas de teoria, harmonia e

análise, aprendemos a defender que a disposição dos sons musicais, que a escolha

e combinação das notas e acordes,

Há de ser admirada – inclusive venerada – por si mesma. As demandas sociais de um significado religioso, político ou inclusive emocional são irrelevantes, e em último termo corrompem e diminuem a pureza da experiência estética. [O formalismo] sustenta que o conhecimento

Page 15: Ansiedade Da Performance

12

e a experiência, o contexto cultural e histórico – os quais tendem a depender do privilégio possibilitado pela riqueza e posição social – não são necessários para a compreensão e apreciação das obras de arte. [...] Segundo a estética do formalismo, cada obra de arte contém seu significado completo em si mesma e, correlativamente, os princípios apropriados para a sua análise. Essas atitudes têm grande alcance na teoria e na crítica musical, levando à crença de que “a boa composição sempre revelará, após um exame atento, os métodos de análise necessários para a sua compreensão”. [...] Para um formalista estrito [...] as maiores obras de arte podem ser “compreendidas mediante observação científica”, já que estão baseadas em princípios universais e naturais. Assim, a noção de que a música é uma linguagem universal está conectada [...] com o formalismo [...], já que a universalidade requer que a experiência cultural, a aprendizagem e a história sejam irrelevantes para a compreensão e apreciação (MEYER, 2000, p.288-290).

Percebendo a problemática da análise musical “entre o formalismo” que

enfoca a música como um texto ou um jogo fechado em si mesmo, “e a

hermenêutica” que procura ler tal texto ou interpretar tal jogo em um contexto

extrínseco, Nagore também observa que, para a concepção formalista:

A obra musical pode ser concebida como algo autônomo [...] O trabalho analítico que deriva desta concepção é a determinação e a explicação dos elementos formais e estruturais que compõe essa obra, suas combinações e funções. O significado da obra deriva da coerência interna de seus componentes (NAGORE, 2004, p.3).

Em acordo com tal concepção, mesmo considerando o sensível desacordo a

respeito da noção de função harmônica (e da incoesão de noções correlatas como

“significado funcional dos acordes”, “funcionalidade tonal”, “razão funcional da

harmonia”, “harmonia funcional” etc.)14, passamos a acreditar, fundamentalmente

que, se em dado momento musical, o acorde de Fá Maior expressa a função de

Subdominante de Dó Maior, isso independe, em termos absolutos, de quem está

tocando, onde, quando, com qual propósito ou sentimento. Para tal acepção de

função, a questão “porque e como quem comunica o quê para quem e com que

efeito?” (TAGG, 2003, p.10) é algo que não vem ao caso.

Ou seja, nos termos de Meyer (2000, p.258-281), passamos a acreditar que

as grandezas da harmonia funcional firmam-se na pura logicidade das relações

intra-harmônicas. Relações “igualitárias”, pois são supostamente válidas para todos

e para sempre, e de absoluto “acontextualismo”, pois reafirmam a “negação enfática

da relevância das origens e dos contextos” (MEYER, 2000, p.259).14 Sobre a imprecisão, variabilidade, inconsistência ou mesmo ausência de definição do termo função no âmbito da teoria da harmonia tonal, ver Dudeque (1997b), Freitas (2010, p.538), Kopp (1995), Mickelsen e Riemann (1997, p.89-103), Nattiez (1984).

Page 16: Ansiedade Da Performance

13

Parafraseando o verbete “absoluto” de Abbagnano (2007, p.3-4), podemos

então dizer que: Kantianamente, idealisticamente, passamos a acreditar que a

determinação de uma função se dá pela sua própria substância ou essência.

“Funcionalmente possível” significa “intrinsecamente possível”. Hegelianamente,

passamos a acreditar que a função é ao mesmo tempo o objeto e o sujeito da

harmonia. Hanslikiamente, passamos a acreditar que a função nada tem fora de si

que possa limitá-la ou condicioná-la, e que a harmonia é como um “arabesco”, uma

“linguagem e substância” que se realiza em seus próprios termos. Parafraseando o

comentário de Waizbort (2006, p.187) a respeito da ideia de “autonomia da arte”

podemos dizer que, a chamada harmonia funcional particulariza um ideal de

autonomia da harmonia, ou seja, um ideal romântico contemporâneo que pensa a

harmonia como outro mundo, no qual as funções se validam a si próprias e são

independentes de tudo o que lhes é exterior. E isso, em última instância, “é quase

como tentar fingir que a música veio de Marte” (RIDLEY, 2008, p.12).

Tal concepção formalista do que é o funcional se fez persuasiva e hoje,

consolidada, conta com sugestivas imagens, analogias e metáforas que, por vezes,

reiteramos sem maiores ponderações. Veja-se o caso da engenhosa – ou “infeliz”

(DAHLHAUS, 2003a, p. 80) – metáfora do caleidoscópio evocada por Hanslick:

Quando crianças, todos nós nos divertíamos com as múltiplas cores e formas de um caleidoscópio. Um caleidoscópio semelhante, só que num ideal grau de manifestação incomensuravelmente mais elevado, é a música. Esta sempre traz, numa variação continuamente desenvolvida, belas formas e cores, com suaves traspasses e contrastes profundos, sempre coerente e, no entanto, sempre nova, em si conclusa e bastando-se a si mesma. A diferença principal é que um caleidoscópio sonoro como esse se apresenta a nosso ouvido como emanação imediata de um espírito artístico criador, ao passo que aquele caleidoscópio visual se mostra como um brinquedo mecânico engenhoso (HANSLICK, 1992, p.63).

A imagem tornou-se um lugar comum da “estética formalista” (PADDISON,

2001, p.335), da música enquanto “linguagem sem intenções [...]. A música sem

pensamento, o mero contexto fenomênico dos sons, seria o equivalente acústico do

caleidoscópio” (ADORNO apud FUBINI, 2008, p.25). E, sem maiores ressalvas, é

renovada com certa frequência: “Beethoven mistura alturas, textura e tópico em um

caleidoscópio musical, produzindo combinações excêntricas” (SPITZER, 2004,

p.123). “O [primeiro] movimento [do Quarteto de Lutoslawski] apresenta diferentes

alturas, texturas e motivos rítmicos que são subsequentemente ouvidos em um

Page 17: Ansiedade Da Performance

14

caleidoscópio musical [...] A seção de desenvolvimento [do primeiro movimento do

Quarteto Op.92, n.2, de Prokofiev] é um caleidoscópio de efeitos tonais e

sonoridades brilhantes” (BERGER, 2001, p.256 e 341). “Linhas de baixo cromáticas

geram um jogo caleidoscópico de cores de acordes” (RATNER, 1992, p.115).

A hierarquia estritamente definida das relações diatônicas foi negociada por uma nova concepção de continuum cromático cujas harmonias, em uma variedade estonteante, podiam fundir-se uma às outras em um intercâmbio caleidoscópio de energia (ROSEN, 2000, p.360).

É a intrincada interação entre a inflexibilidade da armação estrutural e a elasticidade reprodutora das prolongações, que tem proporcionado ao mundo ocidental este fenômeno complexo e caleidoscópico, porém sumamente orgânico: o fenômeno da tonalidade (SALZER, 1990, p.263).

Vista assim, “em si conclusa e bastando-se a si mesma”, a noção de função

tonal entrelaça imprecisas afinidades também com aquele positivo discurso que, em

linhas gerais, defende que “a essência do mundo pode ser apreendida e revelada

pela matemática” (HOUAISS): a doutrina do matematismo.

3. ENTRELAÇAMENTOS: MATEMATISMO, FORMALISMO E FUNCIONALISMO

O prestígio da matemática, como se sabe, mesmo inomogêneo, é indelével

na cultura da harmonia15. Vale lembrar que, em 1722, já no prefácio do pioneiro

“Traité de I'harmonie”, Jean-Philippe Rameau (1682-1764), atualizando uma antiga

convicção, adverte: “A música é uma ciência que deve ter regras certas; estas regras

têm que derivar de um princípio evidente e este princípio não se revela a nós sem a

ajuda da matemática” (RAMEAU apud FUBINI, 2002, p.68). Em 1798, algo desta fé

nas fórmulas matemáticas volta à pauta nas palavras de um jovem poeta16.

Se ao menos eu pudesse fazer as pessoas entenderem que com a linguagem se passa o mesmo que com as fórmulas matemáticas. – Elas são um mundo em si – jogam somente consigo mesma, não expressam nada mais que sua maravilhosa natureza, e justamente por isso são tão expressivas – justamente por isso refletem em si o peculiar jogo de relações das coisas (NOVALIS apud DAHLHAUS, 1999, p.140)17.

15 Ver Freitas (2012), Nolan (2006).16 O poeta alemão Friedrich Philipp Freiherr von Hardenberg (1772-1801), conhecido como Novalis.17 Esta versão em português foi escrita pelo autor do presente artigo a partir da seguinte tradução do alemão para o espanhol realizada por Ramón Barce: “Si sólo se pudiese hacer entender a la gente que con el lenguaje pasa lo mismo que con las fórmulas matemáticas. – Constituyen un mundo de por sí – juegan solamente consigo mismas, no expresan nada más que su maravillosa naturaleza, y justamente por eso son tan expresivas – justamente por eso reflejan en sí el peculiar juego de

Page 18: Ansiedade Da Performance

15

No âmbito da matemática propriamente dita, conforme Eves (2002, p, 659-

661), função é um dentre os “conceitos básicos” que sofrem acentuadas

transformações e complexas generalizações ao longo da contemporaneidade18. No

caso, é valioso notar que, em paralelo à história da teoria da harmonia, na história

da matemática,

A palavra função [...] parece ter sido introduzida pelo filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) em 1694, inicialmente para expressar qualquer quantidade associada a uma curva, como por exemplo, as coordenadas de um ponto da curva, a inclinação de uma curva e o raio da curvatura de uma curva (EVES, 2002, p.660).

Então, recuperando correlações entre o pensamento de Rameau e

determinados aspectos da filosofia de Leibniz, podemos perceber que,

embrionariamente, a convidativa analogia entre função matemática e função

harmônica vem sendo ensaiada desde os setecentos.

Com Rameau, na linha de Leibniz [...] a reconciliação entre razão e ouvido implica também no desaparecimento de toda diferença categorial entre arte e ciência: arte e ciência não são mais do que duas maneiras como se revela a verdade, a racionalidade do mundo. [Para Rameau], “é na música onde a natureza parece revelar-nos o princípio físico daquelas primeiras noções puramente Matemáticas sobre as quais se baseiam todas as ciências” [...] O princípio matemático da música é [...] universal, natural e fundador da beleza de todas as artes [...]. E isso, afirma Rameau, “justifica perfeitamente a antiga ideia de que na música se encontra, de maneira mais certa e mais tangível, o princípio de todas as artes do gosto” (FUBINI, 2002, p.85)19.

Leibniz deixou frases lapidares, sempre citadas quando se trata de sublinhar

que a “harmonia” decorre do ato ou efeito de contar. Vale reler: “Música nos encanta,

ainda que sua beleza consista simplesmente em uma correspondência de números”

(LEIBNIZ apud TATARKIEWICZ, 2002, p.160). E a famosa frase, da “Epistolae ad

diversos” de 1712: “Musica est exercitium arithmeticæ occultum nescientis se

numerare animi” (música é um exercício oculto de aritmética sem que o espírito

saiba que está lidando com números). O lema leibniziano “vamos calcular” (GAINES,

2007, p.123) repercute nas incontáveis variações ao tema. Algumas notáveis, como

relaciones de las cosas”.18 Sobre os conceitos considerados básicos da matemática (tais como: continuidade, diferenciabilidade, integrabilidade, espaço, dimensão, convergência etc.), ver Eves (2002).19 Sobre os traços da filosofia de Leibniz que repercutem na teoria de Rameau, ver Fubini (2002, p.80-85). A questão sobre o quanto e de que modo as teses de Rameau antecipam, ou não, aquilo que posteriormente será chamado de harmonia funcional é abordada no ensaio “Em função da função” de Kopp (1995).

Page 19: Ansiedade Da Performance

16

as do musicólogo Hugo Riemann (1849-1919) e do físico Albert Einstein (1879-

1955), que seguem povoando o imaginário da teoria musical.

A música é uma arte e é, ao mesmo tempo, uma ciência. Como arte, não é senão a manifestação do belo por meio dos sons. Essa manifestação repousa sobre uma ciência exata, formada pelo conjunto das leis que regem a produção dos sons e suas relações de altura e duração (RIEMANN apud MED, 1996, p.393).

A música, de tão perfeita, é pura como a Matemática; a Matemática, de tão simples, é deslumbrante como a Música. A música parece uma equação; a equação bem formulada é cheia de harmonia e sonoridade (EINSTEIN apud MED, 1996, p.394).

Tal acento cientificista e matematista, como se sabe, extrapolou a esfera

especializada. Um registro romântico de sua popularização se encontra numa das

novelas da “Comédie humaine” de Honoré de Balzac (1799-1850). Trata-se de

“Gambara”, novela de 1837 na qual o protagonista, o compositor Paolo Gambara,

tece diversas considerações de caráter científico musical.

A música é ao mesmo tempo uma ciência e uma arte. As raízes que ela tem na física e na matemática fazem dela uma ciência; torna-se arte pela inspiração, que se vale sem saber dos teoremas da ciência. [...] As leis físicas são pouco conhecidas, as leis matemáticas o são mais; e, desde que se começaram a estudar suas relações, criou-se a harmonia, à qual devemos Haydn, Mozart, Beethoven e Rossini [...]. Ora, se a descoberta das leis matemáticas deu esses quatro grandes músicos, aonde não chegaríamos se descobríssemos as leis físicas? [...]. O que amplia a ciência amplia a arte (BALZAC, 1992, p.440-441)20.

Voltando aos anos de Rameau, outro marco na história matemática e teórico

musical do termo função surge quando o suíço Leonhard Euler (1707-1783), que já

foi considerado “o principal matemático do século XVIII”, define “função como uma

equação ou fórmula qualquer envolvendo variáveis e constantes” (EVES, 2002,

p.660), acepção que se conservou suficiente até meados do século XIX. Euler

deixou uma vasta obra (aproximadamente 900 títulos publicados) que ainda é

estudada nas ciências exatas: “não há ramo da matemática em que seu nome não

figure” (EVES, 2002, p.472). E seu nome também figura em passagens da história

desta música tonal e harmônica que se fez ouvir em “um mundo de fórmulas

numéricas” (GAINES, 2007, p.167) 21.20 Sobre harmonia e outras questões musicais na novela “Gambara”, ver Bloom (1972, p.69), Freitas (2010, p.414-415 e 510), Newark (2002, p.37-41) e Parker (1919).21 Assim como Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788), Euler também trabalhou (por 25 anos) para Frederico, o Grande (1712-1781), o terceiro rei da Prússia, o “amante da música” a quem a célebre

Page 20: Ansiedade Da Performance

17

Pontualmente, no que diz respeito aos rumos que a ideia de função tomou

na teoria musical contemporânea, a exitosa “Tonnetz” (Rede harmônica), ou

“Tongewebe” (Rede de tons), elaborada por Euler (1739, p.147) é citada como uma

representação pioneira daquela que viria a ser a “Netz der Tonverwandtschaften”

(Rede de relações harmônicas) proposta por Hugo Riemann (1902, p.479) em seu

“Grosse Kompositionslehre”, numa linhagem de representações do espaço tonal que

alcança o célebre “Quadro de Regiões” publicado, em 1954, no “Funções estruturais

da harmonia” de Schoenberg (2004, p.38-39 e 49)22. E vale lembrar, pois por vezes

já se esquece, que foi com Hugo Riemann que o termo função passou a ser

peremptoriamente associado ao termo harmonia.

[O termo] funções [Funktionen] (funções tonais da harmonia) descreve, na terminologia do autor do presente dicionário [Hugo Riemann], os vários significados que os acordes possuem, dependendo da sua posição em relação à tônica, na lógica da composição [Tonsatz]. O problema, que o autor se esforçou em resolver desde o seu pioneiro livro Musikalische Logik (1873)23 em diante, e que finalmente resolveu no Vereinfachte Harmonielehre oder die Lehre von den tonalen Funktionen der Harmonie (Alemanha 1893, Inglaterra 1895, [Rússia 1896], França 1899)24

foi nomeadamente o desenvolvimento de uma taxonomia onde as mais complicadas formações dissonantes bem como as progressões deceptivassão apresentadas como versões mais ou menos modificadas de apenas três harmonias essenciais: (T) Tonica, (S) Subdominante e (D) Dominante (RIEMANN in REHDING, 2008, p.188).25

“oferenda musico-lógica” (HOFSTADTER, 2001, p.3) escrita por J. S. Bach em 1747 foi dedicada (ver EVES, 2002, p.471; GAINES, 2007, p.199; HOFSTADTER, 2001, p.3-11). Em 1753, Rameau escreveu um panfleto debatendo as posições “sur l'identite des octaves” defendidas por Euler (ver CHRISTENSEN, 1993, p.245-247; PAUL, 1970, p.149-151; SHIRLAW, 1917, p.274-276). Em 1755, o livro de Euler (1739) especificamente voltado para os assuntos musicais é mencionado (ao lado de teóricos do porte de Glariano, Zarlino, Kepler, Neidhart, Scheibe, Prinz, Werkmeister, Fux, Mattheson, Marpurg, Quantz etc.) numa carta em que o diligente Leopold Mozart (1719-1787) lista o melhor da bibliografia musical de seu tempo (ver KEEFE, 2003, p.49). No verbete “Euler” da “Esquisse de l'histoire de l'harmonie considérée comme art et comme science systématique” que publicou em 1840, François-Joseph Fétis (1784-1871) escreve: “é necessário fazer justiça a este grande homem [...] ele [Leonhard Euler] foi o primeiro a ver que o caráter da música moderna reside no acorde de Dominante com Sétima” (FÉTIS apud SHIRLAW, 1969, p.348). Sobre outras questões harmônicas ou musicais associadas ao nome de Euler, ver Abdounur (1999, p.34-35), Christensen (1987), Gentil-Nunes Filho (2009), Helmholtz (1954, p.229-233), Queiroz (2009) e Smith (1960).22 Sobre os vínculos da rede harmônica de Euler com as redes de Riemann e o quadro de Schoenberg ou, de forma geral, sobre a história da representação gráfica do espaço tonal, ver Cohn (1997), Dudeque (2005, p.62-69), Freitas (2010, p.761-763), Gollin (2000, p.189-195), Nolan (2006, p.279), Mooney (1996, p.1-41).23 Trata-se do “Musikalische Logik: Ein Beitrag zur Theorie der Musik“ (Lógica musical: uma contribuição para a teoria da música), ensaio de juventude que foi publicado sob o pseudônimo de Hugibert Ries (RIEMANN, 2000).24 O título deste influente trabalho (RIEMANN, 1899) pode ser aproximadamente traduzido como: “Teoria-de-harmonia simplificada, ou a teoria das funções tonais dos acordes”. 25 Functions [Funktionen] (tonal functions of harmony) describe, in the terminology of the author of this lexicon, the various significances that chords possess, depending on their position to the tonic, for the logic of the composition [Tonsatz]. The problem, which he strove to solve right from his early book Musikalische Logik (1873) onwards, he finally solved in his Vereinfachte Harmonielehre oder Lehre

Page 21: Ansiedade Da Performance

18

Para encerrar este mínimo destaque ao matematismo, podemos reler algo

das conhecidas análises de Cassirer. Segundo este autor, essa ideia de função pós-

cartesiana (particularizada aqui através da menção aos nomes de Rameau, Leibniz,

Euler, Riemann e Schoenberg), expressa um ideal de “dominação do particular pelo

universal”. Trata-se de uma “forma de unificação” que coloca a nossa disposição

uma “poderosa chave interpretativo-dedutiva”: a função é uma “fórmula”, uma

“imagem” sintética de uma “lei de construção universal”. Com tal fórmula o

pensamento matemático “apreende, enfim, a verdadeira ‘unidade na variedade’. Não

pretende negar a diversidade como tal, nem recusá-la, mas, pelo contrário, quer

compreendê-la e fundamentá-la” (CASSIRER, 1997, p.382-383). No trecho a seguir

Cassirer fala das matemáticas, mas bem poderia estar esclarecendo a noção de

função tonal dos acordes:

A fórmula da função sob sua forma geral só contém, bem entendido, a regra universal que permite determinar a interdependência das variáveis, mas é sempre possível reportar-se da fórmula geral para uma figura particular qualquer caracterizada, como tal, por grandezas determinadas que são suas constantes individuais. Toda determinação dessas grandezas redunda num novo caso particular; mas todos esses casos particulares “são”, na realidade, o mesmo, na medida em que todos eles têm uma só e mesma significação. É o mesmo sentido [...] um ser idêntico e uma verdade idêntica [...] que se escondem para nós na massa heterogênea das figuras particulares e que a fórmula analítica caracteriza e, de certa maneira, desvenda em sua própria essência (CASSIRER, 1997, p.384).

Com a fase pós-iluminista dessa longa história, dão-se os imprevistos

emaranhamentos: tanto o viés funcional de inspiração matematicista na teoria da

harmonia quanto a estética musical formalista de inspiração hanslickiana foram se

transformando, se misturando e se confundindo. Contudo, antes de seguir

mapeando impactos dessas confluências em nossa disciplina, parece justo reouvir

algo das vigorosas ressalvas de Hanslick.

A beleza musical nada tem a ver com a matemática. A ideia defendida pelos leigos (e entre eles também escritores sensíveis) do papel representado pela matemática na composição é extraordinariamente vaga. Não contentes com o fato de que as vibrações sonoras, a distância dos intervalos, a consonância e a dissonância possam ser reduzidas a relações matemáticas, também estão convictos de que o belo de uma composição musical está baseado em números. O estudo da harmonia [...] passa por

von den tonalen Funktionen der Harmonie (German 1893, English 1895, French 1899), namely that of developing a taxonomy in which the most complicated dissonant formations and deceptive progressions are presented as more or less modified versions of the three only essential harmonies: Tonic (T), Subdominant (S) and Dominant (D).

Page 22: Ansiedade Da Performance

19

uma espécie de cabala, que ensina o “cálculo” da composição. Se, para a pesquisa da parte física da música, a matemática fornece uma chave indispensável, para a composição completa, ao contrário, sua importância não deve ser supervalorizada. Numa peça musical, seja a mais bela ou a pior, absolutamente nada é calculado matematicamente. [...] Todos os experimentos com monocórdios [...] não pertencem ao campo estético. A matemática regula unicamente o material elementar [...] e joga ocultamente nas relações mais simples, mas o pensamento musical vem à luz sem ela (HANSLICK, 1992, p.84-85).

Recobrando tais defesas da autonomia musical, é possível notar que, em

suma, um espesso e impuro caldo de “ismos” – sensacionismo, absolutismo,

acontextualismo, formalismo, hanslikianismo, funcionalismo, matematismo,

positivismo etc. – nos alcança em um ideal de função que se renova em definições

influentes como:

Função é uma grandeza susceptível de variar, cujo valor depende do valor de uma outra. Na harmonia entende-se por função a propriedade de um determinado acorde cujo valor expressivo depende da relação com os demais acordes da estrutura harmônica. [...] O sentido da função resulta do contexto [intrínseco], do relacionamento, consciente ou inconsciente, de fatores musicais antecedentes e consequentes, e varia, oscila, entre os conceitos de repouso (tônica) e movimento (subdominante, dominante), afastamento (subdominante) e aproximação (dominante) (KOELLREUTTER, 1980, p.13)26.

Ao concordarmos com isto – sim, as funções “jogam somente consigo

mesmas”, “refletem em si o peculiar jogo de relações das coisas” e “justamente por

isso são tão expressivas” (parafraseando o supracitado texto de Novalis) – estamos

admitindo que, em boa medida, os postulados da harmonia funcional estão afinados

com a tese do formalismo matemático, uma vez que:

[Na história da matemática] a tese do formalismo é que a matemática é, essencialmente, o estudo dos sistemas simbólicos formais. De fato, o formalismo considera a matemática como uma coleção de desenvolvimentos abstratos em que os termos são meros símbolos eafirmações são apenas fórmulas envolvendo estes símbolos. [...] Na tese formalista se tem o desenvolvimento axiomático da matemática levado ao seu extremo (EVES, 2002, p.682).

Desta forma, mesclando diversas concepções de funcionalismo e

formalismo, reafirmamos convicções que se tornaram dogmáticas em nosso ofício: o

26 Nessa definição, o condicionante “depende da relação” mostra vestígios da chamada “estética das relações”, a saber, a concepção de que a beleza e/ou o sentido encontram-se nas ligações entre as coisas, e não propriamente nas coisas. Contudo, esse aspecto fundamental da questão funcional não será abordado na presente oportunidade. Sobre a temática, ver Freitas (2010, p.516-518).

Page 23: Ansiedade Da Performance

20

sistema harmônico “se pode contemplar em seus próprios termos” (MEYER, 2000,

p.263)27. “A história da harmonia pode ser entendida como a conquista de uma

autonomia cada vez maior e sua subsequente sintatificação” (MEYER, 2000, p.40).

No âmbito desta música absoluta, a associação funcional e formalista deve mesmo

controlar a teoria e a análise valorativa em nossa disciplina, já que foi fator

determinante nas conquistas que contribuíram enormemente para o entendimento

sintático que temos hoje das relações harmônico funcionais.

4. DA TEORIA DA HARMONIA EM TEMPOS DE REVISIONISMO

Entretanto, mais recentemente, com a decantada derrocada do paraíso

estrutural formalista28, levantaram-se uma série de questionamentos que, direta ou

indiretamente, afetam a ratio tonal apriorística, acontextual, atemporal e lógica da

dita harmonia funcional. Tais questionamentos implicam revisão, já que, atualmente,

“em linhas gerais, se poderia dizer que – ao menos do ponto de vista teórico – existe

uma rejeição bastante generalizada em relação à concepção ‘positivista’ da obra

musical como algo autônomo e fechado”, instalou-se uma espécie de “repúdio ao

‘dogmatismo’ e formalismo próprios da etapa estruturalista” (NAGORE, 2004, p.3).

Uma espécie de constatação coletiva de que “a matemática do processo poderá

revelar-se desanimadora” (POUND, 1927, p.15), de que a prometida “lógica musical”

é claramente insuficiente para explicar aquilo que motiva nossas escolhas. E tal

insuficiência já estimula slogans como: “harmonia pós-funcional”, “harmonia

funcional revisitada”, “harmony non-funcional”, “fusion harmony” ou “beyond

functional harmony” (NAUS, 1998).

Neste contexto revisionista, contra a velha doutrina da música absoluta até

bem pouco considerada “a mais alta forma de música” e a única supostamente

capaz do “verdadeiro prazer que a música pode oferecer, o prazer da mente”,

assomam-se vozes antes silenciadas que, agora, já podem retrucar:

A tese da “música em si” está relacionada “à representação cultural da masculinidade, pois esta se caracterizaria por considerar seus pressupostos como universais [...] cultuar a “música absoluta” é cultuar a masculinidade, ou seja, a experiência da “música em si” não pode ser considerada inocente, livre das relações de gênero e livre da política que lhe dá sustentação (MELLO, 2007).

27 Sobre o influxo da noção de “sistema” na teoria da harmonia tonal, ver Freitas (2010, p.518-519).28 Ver Giddens (1999), Nattiez (2005, p.17-66).

Page 24: Ansiedade Da Performance

21

E, contra a sacrossanta autonomia, contra a beleza filosófica da pura forma,

surgem declarações como:

O problema, em retrospecto, era que a decisão de considerar a música essencialmente autônoma era realmente apenas isto – uma decisão. Certamente não era uma descoberta sobre a essência da música, apesar de permitir que fossem feitas descobertas sobre ela, o que significa que a posição, até recentemente hegemônica, de que verdades valiosas sobre peças musicais deviam ser conseguidas apenas por meio da análise da estrutura não tinha fundamento. Nenhuma pessoa sensata duvida da capacidade da análise técnica de revelar verdades a respeito da música. Mas há toda razão para duvidar que as verdades da análise sejam as únicas que existem – e isso justamente porque há toda razão para duvidar que a música realmente seja, no sentido relevante, autônoma. [...] Tenho esperança [...] de um espaço, trancado pela “autonomania”, para [...] explicar por que a música faz parte da vida (RIDLEY, 2008, p.23 e 256).

A arte pela arte, isto é, a arte para o artista, a arte em que a arte do artista constitui a única matéria e cujo único destinatário é a comunidade artística, constitui uma arte para nada, sobre nada, posição expressamente assumida por um texto de Flaubert frequentemente citado: “O que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem vínculos exteriores, que se sustentaria pela força interna de seu estilo, assim como a terra se sustenta sozinha no ar, um livro que pudesse quase prescindir de tema, ou pelo menos que o tema seria quase invisível, caso isso seja possível. As obras mais belas são aquelas onde há menos matéria (...), pois o próprio estilo é uma matéria absoluta de ver as coisas”. A metáfora acaba revelando a utopia da “Intelligentsia” sem vínculos nem raízes” [...] Com efeito, qual é o princípio da escritura reduzida a um puro exercício de estilo a não ser a vontade imperiosa de banir do discurso todos os índices sociais. [...] Querer falar recusando-se a dizer alguma coisa é o mesmo que falar para não dizer nada [...] é o mesmo que dedicar-se ao culto da pura forma (BOURDIEU, 2004, p.196-197).

Com tudo isso, se fez possível defender e muitos já aceitam a ideia de que a

harmonia tonal é algo que pertence ao campo sociocultural. E neste novo velho

campo, o próprio termo funcional mostra uma curiosa discrepância para a qual a

nossa disciplina deve estar prevenida.

5. HARMONIA FUNCIONAL: QUE FUNCIONAL É ESSE?

Em outros campos de conhecimento sociocultural, como se sabe, existem

entendimentos que compreendem que, aquilo que é funcional vincula-se a um

programa estético, filosófico, metodológico e valorativo bastante distinto, ou mesmo

oposto, daquilo que é o formalismo. Sendo funcional um termo generosamente

aberto – pois não implica uma coisa, e sim uma interação entre coisas –, ao longo

da contemporaneidade função, funcional, análise funcional, função principal e

Page 25: Ansiedade Da Performance

22

secundária etc., tornaram-se expressões da moda, conceitos em transformação

empregados por muitos. Na nossa harmonia funcional, esta ação de interação se

pensa em regime fechado, nas relações intrasistêmicas. Ou seja, em suma,

aproximamos o funcional da harmonia ao funcional das matemáticas e dos

formalismos, e com isso as interações assumem feições de caráter mais exato,

científico e lógico, mais forma pela forma. Interações funcionais supostamente

puras, não contaminadas pelas complexas variáveis que circunvizinham a música.

Essa acepção musical especializada difere e nos afasta daqueles campos

das humanidades que entendem o funcional como um valor de interação de um

sistema com o seu meio. Para esses outros campos, o tipo de interação fechada em

seus próprios termos é, justamente, um fundamento do formalismo. E não do

funcionalismo como sugere o nosso rótulo “harmonia funcional”. Vejam-se os casos:

Na arte, se diz que o funcionalismo defende que a obra tem valor justamente

porque tem alguma função exterior a si mesma. Na psicologia, funcionalismo remete

à “operação pela qual o organismo entra em relação com o ambiente, o termo não é

introspectivo e sim comportamentístico” (ABBAGNANO, 2007, p.811). Na

antropologia, funcionalismo é uma “teoria que enfatiza a interdependência sincrônica

dos padrões e instituições de uma sociedade, e o modo como interagem na

preservação da unidade social e cultural” (HOUAISS). Na arquitetura e desenho

industrial, o termo funcionalismo faz referência a um “movimento [inícios do século

XX] que encara o projeto como a realização direta de exigências materiais, devendo

atender às necessidades humanas e identificar o efeito estético com essa

funcionalidade” (HOUAISS). Na linguística, “o formalismo vê a língua como um

sistema autônomo, enquanto o funcionalismo vê a língua como um sistema não-

autônomo inserido em um contexto de interação social” (OLIVEIRA, 2003, p.96).

Então, se entendemos a harmonia funcional como uma abordagem que dá

máxima importância à interioridade das relações de seu próprio sistema, o nome

correto disso talvez seja: harmonia formalista. Formalista porque a harmonia

funcional também se acredita bela por ser pura forma, nela uma concatenação tipo

“T S D T” é bela sem nenhum propósito e pode ser utilizada com os mais diversos

objetivos no mesmo sentido defendido por Hanslick de que

O belo não tem absolutamente nenhum objetivo; ele é de fato, pura forma que, sem dúvida, pode ser utilizada com os mais diversos objetivos de acordo com o conteúdo que carregue, mas que em si não tem outro fim

Page 26: Ansiedade Da Performance

23

senão ela própria, a pura forma (HANSLICK apud NATTIEZ, 2005, p.117).

Para exercitar um pouco mais o baralhamento conceitual – funcionalismo

formalista ou formalismo versus funcionalismo – vale parafrasear algo das

ponderações de Oliveira (2003, p.97): a harmonia funcional estuda as relações entre

os acordes como uma ação descontextualizada, sem levar em consideração as

linhas melódicas, os músicos, ouvintes ou circunstâncias nas quais tais relações

harmônicas são empregadas etc. Contudo, este é um fundamento típico do

formalismo. Os formalistas criticam o funcionalismo pela inclusão de fenômenos

psicológicos e sociológicos que contaminam o princípio de autonomia. Só que tal

crítica não se aplica ao funcionalismo da harmonia funcional, já que esta se protege

de tudo e de todos que estão lá fora.

Agora, no fim da história, é claro que não se defende aqui mais uma

correção ao termo harmonia funcional. E sim que, nas tarefas de revisão do

conceito, se faz necessário um reposicionamento no qual a harmonia funcional se

mostre como parte do programa formalista. A expressão harmonia funcional pode

ser criticada como pleonasmo, se funcional não é senão a ação continuada pela qual

a tradição da harmonia tonal sempre leva a efeito suas interações com o mundo

exterior. Mas tal redundância é necessária, se ideologicamente é empregada para

enfatizar o processo introspectivo pelo qual a harmonia se descontextualiza e passa

a bastar a si própria. Então, como uma setorização da fórmula da arte pela arte, o

slogan harmonia funcional parece mesmo dizer: harmonia pela harmonia.

A ênfase deste comparativo visa a recuperação da índole de sistema não

puro e não autônomo em uma revisão da teoria da harmonia que leva em

consideração também as contribuições da teoria musical que, com notável

predominância da chamada Jazz Theory, se pratica em música popular29. Que é

funcional sim, mas no sentido do pleonasmo desnecessário. E isso traz implicações.

O “crescente interesse pelo contexto” (NAGORE, 2004, p.4) implica reaproximação

da música aos campos das humanidades em geral, e tal reaproximação tem impacto

sobre a revisão teórica. Se concordarmos que “a música tal como a musicologia

[sistemática e formalista] a concebe, simplesmente não existe” (KRAMER apud

NAGORE, 2004, p.4), consequentemente, o esforço teórico e analítico “pode 29 A problemática da desambiguação de instâncias como “Teoria da harmonia da música popular”, “Teoria da harmonia Tin Pan Alley” e “Jazz harmony (Jazz theory)”, bem como a coligada questão da indistinta acomodação destas práticas teóricas ao rótulo “Harmonia funcional”, foram preliminarmente abordadas em Freitas (2010, p.600-624).

Page 27: Ansiedade Da Performance

24

enfrentar-se com o contexto, absorvê-lo e ser absorvido por ele” (SAMSON apud

NAGORE, 2004, p.4). A atividade teórica e analítica pode parar de tentar ser ciência

exata, coerente, pura, lógica etc., e procurar se qualificar como interpretação, “como

mais uma das formas de prática musical que se dão na sociedade atual” (NAGORE,

2004, p.5). Ainda que a caracterização dessa problemática seja sumária e provisória

aqui, ela registra o desejo pela oportunidade de se poder abordar a harmonia da

perspectiva do que veio depois do funcionalismo de índole formalista: a harmonia

não se basta a si mesma, a função dos acordes é sempre estabelecida na sua

interação com as nossas vidas.

6. NOÇÕES DE FUNÇÃO TONAL E ÊNFASES DA JAZZ THEORY

Ressalvando novamente a condição de que, como ocorre com quase tudo

em teoria musical, as noções de função harmônica não são unânimes ou suficientes,

é contributivo notar que, tudo isso está vivo e em transformação nas práticas

teóricas da chamada harmonia funcional da música popular. Nesse campo, marcado

pelo influxo da Jazz Theory, por um lado, alguns autores procuram definir função a

partir de grandezas concretas e mensuráveis – notas, números, intervalos etc. –

dando a crer que uma ratio sonora governa a sintaxe funcional. Nesta perspectiva, a

função está situada na exterioridade do sujeito humano, podendo ser capturada pelo

intelecto “a partir da sucessão de tensões e distensões do som em si mesmo”

(FISCHERMAN, 2004, p.28). Hanslickianamente, concebe-se a atividade de

harmonizar funcionalmente “como um ‘formar’, e enquanto tal, ela é completamente

objetiva” (HANSLICK, 1992, p.94). Então as sensações, sentimentos, impressões,

associações etc., não determinam a propriedade sintática das classes funcionais. A

função é “pura forma” e, como ocorre, p ex., com as classes do verbo, do adjetivo,

do advérbio etc., pode ser “utilizada com os mais diversos objetivos de acordo com o

conteúdo que carregue” (HANSLICK apud NATTIEZ, 2005, p.117). Para ilustrar a

circulação deste tipo de ênfase nos textos da Jazz Theory, temos:

[O conceito funcional] O instável quarto grau da escala é a nota característica da tonalidade maior [i.e., em Dó-maior, fá é a nota característica]. A sonoridade tônica na tonalidade maior está nos acordes que não possuem esta instável nota característica como uma nota do acorde. Os acordes de subdominante contêm, como uma nota do acorde, a instável nota característica desvinculada do ainda mais instável intervalo

Page 28: Ansiedade Da Performance

25

diatônico de trítono [...]. O acorde de dominante com sétima contém a nota característica como um componente do trítono diatônico (NETTLES e GRAF, 1997, p.31)30.

[Categorias funcionais] Os sete acordes do sistema diatônico maior assumem funções que poderíamos descrever como instáveis e estáveis. Estas funções estão diretamente relacionadas com a presença ou ausência, em cada uma das sete tétrades, da quarta e da sétima notas da escala [em Dó-maior: fá e si], estas notas que estabelecem uma relação de semitom para a tônica e para o terceiro grau da escala. Na análise teórica do jazz essas relações produzem as seguintes e comumente utilizadas categorias funcionais [...]. Subdominante (SD): definidos como os que possuem o quarto grau da escala, mas não possuem o sétimo grau. Moderadamente instáveis. [...] Dominante (D): definidos como os que possuem tanto o quarto grau da escala quanto o sétimo grau. Mais instáveis. [...] Tônica (T): definidos como os que não possuem o quarto grau da escala. Propriamente estáveis (JAFFE, 1996, p.29-30)31.

[Considerando apenas as notas das tétrades, as características da função tônica são] Presença da tônica (exceto em IIIm7) e da 3M ou 3m do tom e ausência da 4ª justa do tom. [As características da função subdominante são] Presença da 4ª justa do tom (exceto em #IVm7 (b5)) e ausência da sensível. [As características da subdominante menor são] Presença da 4ª justa e da 6ª menor do tom e ausência da sensível. [As características da função dominante são] presença de sensível, presença da 4ª justa do tom e ausência da nota tônica (GUEST, 1996, p.82).

Para que um acorde preencha a função tônica em tons maiores, é necessário que possua, na sua tríade formadora, ao menos duas das três notas que compõe a tríade da tônica (I grau). [...] As notas responsáveis pela sonoridade da função subdominante em tons maiores são a quarta justa e a sexta maior da tonalidade. [...] As duas notas/intervalos responsáveis pela sonoridade tônica em tons menores são: a 3ª menor e a 5ª justa da tonalidade [em Dó-Menor as notas mib e sol] [...] A característica sonora da função subdominante em tons menores [...] provém de duas notas/intervalos [...]: a 4ª justa e a 6ª menor da tonalidade [em Dó-Menor, fá e láb]. Pode-se afirmar que a sonoridade resultante da 6ª menor é mais marcante no sentido de caracterizar a subdominante menor, mas em alguns casos, a 4ª nota da escala reforça ainda mais o som desta função. [...] A função dominante, em princípio, é idêntica para tonalidades maiores ou menores, ou seja, qualquer acorde que possuir entre suas vozes internas o intervalo de trítono [...] será considerado função dominante (POLLACO, 2007, p.41-41 e 52-53).

Contudo, está ênfase mais quantitativa, material ou objetiva, não é a única.

30 “[The functional concept] The characteristic pitch of the major key is the unstable 4th scale degree. The tonic sounds of the key are chords without unstable characteristic pitch as a chord tone. The subdominant chords contain, as a chord tone, the unstable character pitch separate from the very unstable diatonic tritone […].The dominant 7th chord contain the character pitch as a component of the diatonic tritone.”31 “[Functional Categories] The seven chords within the major key diatonic system have come to assume functions within the system which we might describe as stable and unstable. These functions are directly related to the presence or absence within the given seventh chords of the fourth and seventh degrees of the scale, the pitches which create the half-step relationships to the tonic and third degrees of the scale. In jazz theoretical analysis, these relationships produce the following commonly used functional categories within the key: Subdominant (SD): defined as containing scale-degree-4, but not scale-degree-7. Mildly unstable. […] Dominant (D): defined as containing both scale-degree-4 and scale-degree-7. Most unstable. [...] Tonic (T): defined as not containing the fourth scale-degree. Very stable.”

Page 29: Ansiedade Da Performance

26

Por outro lado, outros autores privilegiam aspectos qualitativos em suas definições.

E, principalmente, privilegiam o sujeito, aquele eu pensante que faz e ouve a

harmonia. Então a trama da função se complica. Renova-se algo de um viés

sensacionista que também acompanha a harmonia desde os tempos pré-Rameau32.

Aqui, encontramos formulações sintéticas, autoproclamadas como práticas, que

implicam em sofisticadas aferições de percepção33.

Para ilustrar este outro tipo de ênfase nos textos da Jazz Theory, temos: “A

palavra função serve para estabelecer a sensação que determinado acorde nos dá”

(CHEDIAK, 1986, p.91). “A função tônica traz a sensação de [...]. A função

dominante traz a sensação de [...]. Acordes com função subdominante podem nos

trazer a sensação de [...]” (BARASNEVICIUS, 2009, p.21). “A tonalidade pode ser

dividida em três sensações básicas, às quais damos o nome de funções” (FARIA,

1991, p.28). “Os sete acordes diatônicos do modo maior são divididos em três

famílias no que tange às suas funções harmônicas, com base em notas comuns que

produzem os mesmos efeitos emocionais” (RAWLINS e BAHHA, 2005, p.42)34.

Neste outro campo de sentidos, a função não é propriamente uma relação

objetiva entre sons que se combinam consigo mesmos, não é algo absolutamente

intersônico, sintático ou quantificável. Trata-se de um operador que induz reação e

que permite aferição da afeição produzida. E, em última análise, “isto corresponde a

uma forma de escuta” (COSTA, 2005, p.324). Nesta concepção fisiológica e

psicológica da noção, lembrando que “tanto o formalista quanto o expressionista

podem ser absolutistas” (MEYER, 2001, p.24), por vezes, a função parece ganhar

superpoderes. Apesar das inúmeras variáveis que efetivamente nos afetam quando

lidamos com música, é como se fosse a função a causadora das sensações e

emoções. Na contramão das “análises omniabarcantes” (MEYER, 2000, p.77), tal

noção de função parece capaz de determinar comoções em lapsos de tempo 32 Sobre o influxo do sensacionismo no mundo que antecede Rameau, ver Christensen (1993, p.215-218). Sensacionismo é uma “doutrina que reduz conhecimento a sensação e realidade a objeto da sensação. [...] Nas filosofias modernas, esse nome foi reservado às doutrinas segundo as quais todos os conhecimentos derivam dos sentidos: essa tese foi entrevista por Hobbes, mas foi só Condillac que procurou demonstrá-la, dizendo que das sensações desenvolvem gradativamente os conhecimentos e as próprias faculdades humanas (Traité des Sensations, 1754)” (ABBAGNANO, 2007, p. 872). Em correlação, no campo musical, desenvolveu-se o argumento de um “sensacionismo harmônico”, a noção de que “o poder natural da sensação imediata determina em grande medida o desenvolvimento da prática e da teoria musical”, uma vez que as reações auditivas durante a experiência sonora são “fatos fisiológicos sobre os quais se baseiam o sentimento estético” (HELMHOLTZ, 1954, p. vii).33 Sobre funcionalidade harmônica e percepção, ver Bharucha (1994), Sloboda (2008, p.54-61).34 The seven chords in major keys are divided into three families in terms of their harmonic functions, based on shared notes that produce the same emotional effects.

Page 30: Ansiedade Da Performance

27

consideravelmente breves. É como se, em três tempos de um Allegro ma non

troppo, tocar a progressão “ii V7 I” já fosse o suficiente para, instantaneamente,

provocar três afeições distintas no ouvinte. Então, deslembrando dogmas que

conformavam as teses dezenovistas da harmonia funcional, tais como o próprio

princípio idealista dos “múltiplos significados da harmonia”35, tal ênfase parece

esquecer o fundamento de que a função “repousa nas relações, nas coligações”

(HANSLICK, 1992, p.67) entre os termos, e não nos próprios termos. Psicologizada,

a função se mostra como um “para si”, e isto favorece análises centradas no sujeito,

tais como: “para mim tal acorde não soa como dominante”, “não sinto tal acorde

como subdominante” etc. E tais análises individualizadas são estranhas,

inadequadas para a velha lógica universalista dos formalistas.

CONCLUSÃO: DA FUNÇÃO TONAL COMO UM OPERADOR CONTAMINADO

Como já se disse, o “domínio do formalismo analítico em nossa profissão”

(CHRISTENSEN, 2000, p.21) nos mal educou a pensar também a função tonal dos

graus como um operador autônomo, desvinculado de melodia, letra, prosódia,

performance, argumentos dramáticos ou poéticos, pessoas, ambientes, propósitos

etc. Mas, revolvendo as memórias da arte tonal, percebemos que a pressuposta

intrafuncionalidade dos graus, que hoje podemos reconhecer e manipular como uma

espécie de segunda natureza, senso ou prática comum, é um tipo de costume,

cultura ou comportamento conchavado a uma complexa trama de fatores.

Percebemos que, enquanto “fenômeno historicamente limitado e variável”

(DAHLHAUS, 2003b, p.133), a função harmônica finca raízes nas músicas de

épocas anteriores. Seu cultivo perpassa um tempo considerável e sua capacidade

de adaptação, renovação e sobrevivência em muitos lugares e em distintas camadas

socioculturais é notável. O vasto repertório tonal atende inúmeras demandas de arte,

afetividade e sociabilidade. Seu impressionante corpo musicológico, conta com

ações e instituições de conservação e propagação transnacionais. A desenvolução

da prática funcional se deu em paralelo a um complexo processo de aculturação e

coibição de outras práticas musicais.

35 Sobre o princípio dos “múltiplos significados (Mehrdeutigkeiten)” e seu influxo na teoria da harmonia tonal, ver Bernstein (2006, p.779-788), Damschroder (2008, p.155-161), Dudeque (2005, p.80-84), Freitas (2010, p.520-534), Grave e Grave (1988, p.34-40), Hyer (2006, p.734-735), Moreno (2004, p.128-167), Saslaw (1992), Saslaw e Walsh (1996), Wason (1995, p.14-15).

Page 31: Ansiedade Da Performance

28

Enfim, nessa trama toda, em princípio, as idealistas “Hauptfunktionen” não

funcionam por si e para si só. Tais funções principais, ou primordiais, não existem de

fato fora de uma composição, fora de contextos em que múltiplas confluências

interatuam simultaneamente. As funções harmônicas apanham sentidos na

contaminação dinâmica entre diversos componentes musicais: condução de vozes,

polaridade entre melodia e baixo, ritmo e andamento, prosódia e timbre, dinâmica e

articulação, funções formais e agógicas, gêneros e estilos musicais etc. Definem-se

na mistura com roteiros discursivos explícitos, sugestivos ou direcionados, e na

interação com variados recursos retóricos e narrativos codificados: verso, rima,

métrica, situações, enredos das óperas, cantatas e missas, afetos das canções,

segmentações mercadológicas etc. E mais, as funções tonais contam com aquela

enfatização de acentos que ocorre com a enunciação (expressão corporal,

gestualidades, olhares, entonação, respiração, modulação da voz etc.) e com a

mise-en-scène (vestuário, iluminação, espacialização cênica, ambientação sonora

etc.). Então as funções da harmonia se atualizam na conversa com outras funções,

muito variáveis, que em música, são postas junto. Não possuem valor puro, fixo,

descontextualizável e unidimensional. A função se afirma a cada momento tirando

proveito de associações diversas que se constroem e se desmancham no decorrer

dos processos criativos que estimulam o fazer e o ouvir música. Se isso não cabe

em nossas aulas de harmonia, de fato temos um problema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fonte, 2007.

ABDOUNUR, Oscar João. Matemática e música. São Paulo: Escrituras Ed., 1999.

ALPERSON, Philip. Filosofia da música: formalismo e além. In: KIVY, Peter (Org.). Estética: fundamentos e questões de filosofia da arte. São Paulo: Paulus, 2008. p.317-342.

BAKHTIN, Mikhail. Discurso na vida e discurso na arte. Sobre poética sociológica. In: Voloshinov, V. N. Freudism. New York. Academic Press, 1976.

BALZAC, Honoré. A comédia humana. v. XV. São Paulo: Ed. Globo, 1992.

BARASNEVICIUS, Ivan. Jazz, harmonia e improvisação. São Paulo: Vitale, 2009.

Page 32: Ansiedade Da Performance

29

BARROS, Guilherme Sauerbronn de, e GERLING Cristina Capparelli. Análise schenkeriana: interpretação e crítica. In: BUDASZ, Rogério (Org.). Pesquisa em música no Brasil: Métodos, domínios, perspectivas. Volume 1. Goiânia: ANPPOM, 2009. p.87-121.

BEARD, David e GLOAG, Kenneth. Musicology: the key concepts. London: Routledge, 2006.

BERGER, Melvin. Guide to chamber music. New York: Dover Publications, 2001.

1 BERNSTEIN, David W. Nineteenth-century harmonic theory: the Austro-German legacy. In: CHRISTENSEN, Thomas (Ed.). The Cambridge history of western music theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p.778-811.

BERNSTEIN, David W. Schoenberg contra Riemann: Stufen, regions, verwandtschaft, and the theory of tonal function. Theoria: Historical Aspects of Music Theory, v. 6, p.23-53, 1992.

BHARUCHA, Jamshed J. Tonality and expectation. In: AIELLO, Rita e SLOBODA, John A. (Ed.). Musical Perceptions. New York: Oxford University Press, 1994. p.213-238

BLOOM, Peter Anthony. Critical reaction to Beethoven in France: Francois-Joseph Fetis. Revue Belge de Musicologie, v.26, p.67-83, 1972.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004.

BRIBITZER-STULL, Matthew. The Ab–C–E complex: the origin and function of chromatic major third collections in nineteenth-century music. Music Theory Spectrum, v. 28, p.167-190, 2006.

BURNHAM, Scott. Method and motivation in Hugo Riemann's history of harmonic theory. Music Theory Spectrum, v. 14, n. 1. p.1-14, Spring 1992.

CARPENTER, Patricia e NEFF, Severine. Commentary. In: SCHOENBERG, Arnold. The musical idea and the logic, technique and art of its presentation. Bloomington: Indiana University Press, 2006, p.1-86

CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Ed. da Universidade Estadual de Campinas, 1997.

CHEDIAK, Almir. Harmonia e improvisação. Rio de janeiro: Lumiar, 1986.

CHRISTENSEN, Thomas. A teoria musical e suas histórias. Em Pauta, Porto Alegre, v.11, n.16/17, p.13-46, abr./nov. 2000.

CHRISTENSEN, Thomas. Eighteenth-century science and the Corps Sonore: The scientific background to Rameau's “Principle of Harmony”. Journal of Music Theory, v. 31, n. 1, p.23-50, Spring, 1987.

CHRISTENSEN, Thomas. Rameau and musical thought in the enlightenment. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

Page 33: Ansiedade Da Performance

30

COHN, Richard. Neo-riemannian operations, parsimonious trichords, and their "tonnetz" representations. Journal of Music Theory, v. 41, n. 1 p.1-66, 1997.

COSTA, Rogério Luiz Moraes. Apontamentos sobre o estudo de harmonia: por uma abordagem abrangente. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA – ANPPOM, 15, 2005, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, 2005.

DAHLHAUS, Carl. Estética musical. Lisboa: Edições 70, 2003a.

DAHLHAUS, Carl. Fundamentos de la historia de la música. Barcelona: Gedisa. 2003b.

DAHLHAUS, Carl. La idea de la música absoluta. Barcelona: Idea Books, 1999.

DAMSCHRODER, David. Thinking about harmony: historical perspectives on analysis. Cambridge University Press, 2008.

DUARTE, Rodrigo A. P. Seis nomes, um só Adorno. In: NOVAES, Adauto (Org.). Artepensamento. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.433-459.

DUDEQUE, Norton E. Harmonia tonal e o conceito de monotonalidade nos escritos de Arnold Schoenberg (1874 - 1951). São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP, 1997a. (Dissertação de Mestrado).

DUDEQUE, Norton E. Music theory and analysis in the writings of Arnold Schoenberg. Aldershot: Ashgate, 2005.

DUDEQUE, Norton E. Schoenberg e a função tonal. Revista Eletrônica de Musicologia. v. 2, n. 1, out. 1997b. Não paginado.

EULER, Leonhard. Tentamen novae theoriae musicae ex certissismis harmoniae principiis dilucide expositae. Petropoli [São Petesburgo], ex typographia Academiae scientiarvm, 1739.

EVES, Howard. Introdução à história da matemática. Campinas: Ed. Unicamp, 2002.

FABRIKANT, Harold. Introduction. In: KARG-ELERT, Sigfrid. 2007. Precepts on the polarity of sound and tonality. The logic of harmony. Victoria: H. Fabrikant Ed. p.x-xix.

FARIA, Nelson. A Arte da improvisação. Rio de Janeiro: Lumiar, 1991.

FISCHERMAN, Diego. Efecto Beethoven: complejidad y valor en la música de tradición popular. Buenos Aires: Paidós, 2004.

FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Da grande teoria da beleza: harmonia como ordem, proporção, número e medida objetiva. Música Hodie, Goiânia, v.12, n.1, p.138-156, 2012.

FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Que acorde ponho aqui? Harmonia, práticas teóricas e o estudo de planos tonais em música popular. Campinas: Instituto de Artes da Unicamp, 2010. (Tese de Doutorado).

Page 34: Ansiedade Da Performance

31

FUBINI, Enrico. Estética da música. Lisboa: Edições 70, 2008.

FUBINI, Enrico. La estética musical desde la antigüedade hasta el siglo XX. Madrid: Alianza Musical, 1994.

FUBINI, Enrico. Los enciclopedistas y la música. Valência: Ed. Universitat de Valência, 2002.

GAINES, James. Uma noite no palácio da razão. O encontro de Bach e Frederico, o grande na era do iluminismo. Rio de Janeiro: Record, 2007.

GENTIL-NUNES FILHO, Pauxy. Análise particional: uma mediação entre composição musical e a teoria das partições. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2009 (Tese de Doutorado).

GIDDENS, Anthony. Estruturalismo, pós-estruturalismo e a produção da cultura. In: GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan (Org.). Teoria social hoje. São Paulo: Editora UNESP, 1999. p.281-319.

GOLLIN, Edward Henry. Representations of space and conceptions of distance in transformational music theories. PhD, Harvard University, 2000.

GRAVE, Floyd K., e GRAVE Margaret G. In praise of harmony: the teachings of Abbe Georg Joseph Vogler. Lincoln: University of Nebraska Press, 1988.

GREEN, Luci. Pesquisa em sociologia da educação musical. Revista da ABEM, v.4, no 4, p.25-35, 1997.

GUEST, Ian. Arranjo, método prático. Volume 3. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996.

HANSLICK, Eduard. Do belo musical, um contributo para a revisão da estética da arte dos sons. [1854]. Lisboa: Edições 70, 1994.

HANSLICK, Eduard. Do belo musical, uma contribuição para a revisão da estética musical. [1891]. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992.

HELMHOLTZ, Hermann von. On the sensations of tone as a physiological basis for the theory of music. New York: Dover Publications, 1954.

HOFSTADTER, Douglas R. Gödel, Escher, Bach: um entrelaçamento de gênios brilhantes. Brasília: Ed. UNB, 2001.

HOUAISS. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. Ed. Objetiva, 2001.

HYER, Brian. Tonality. In: CHRISTENSEN, Thomas (Ed.). The Cambridge history of western music theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p.726-751.

IRIARTE, Rita (Org.). Música e literatura no romantismo alemão. Lisboa: Apaginastantas, 1987.

JAFFE, Andrew. Jazz harmony. Advance Music, 1996.

Page 35: Ansiedade Da Performance

32

KEEFE, Simon P. (Ed.). The Cambridge companion to Mozart. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

KIVY, Peter. What was Hanslick denying? The Journal of Musicology, v. 8, n. 1, p.3-18, 1990.

KOELLREUTTER, Hans-Joachim. Harmonia funcional: introdução à teoria das funções harmônicas. São Paulo: Ricordi, 1980.

KOPP, David. On the function of function. Music Theory Online, v.1, n.3, 1995. Não paginado.

MED, Bohumil. Teoria da música. Brasília: Ed. Musimed, 1996.

MELLO, Maria Ignez Cruz. Relações de gênero e musicologia: reflexões para uma análise do contexto brasileiro. Revista eletrônica de musicologia, v.11, 2007.

MEYER, Leonard B. El estilo en la música. Teoria musical, história e ideologia. Madrid: Ed. Pirámide, 2000.

MEYER, Leonard B. La emoción y el significado en la música. Madrid: Alianza Editorial, 2001.

MICKELSEN, William Cooper e RIEMANN, Hugo. Hugo Riemann's theory of harmony a study by William C. Mickelsen and History of music theory, book III, by Hugo Riemann. Lincoln: University of Nebraska Press, 1977.

MOONEY, Michael Kevin. The "table of relations" and music psychology in Hugo Riemann's harmonic theory. Ph.D., Columbia University, 1996.

MORENO, Jairo. Subjectivity, interpretation, and irony in Gottfried Weber's analysis of Mozart's "Dissonance" quartet. Music Theory Spectrum, v. 25, n. 1, p.99-120, Spring, 2003.

NAGORE, Maria. El análisis musical: entre el formalismo y la hermenêutica. Revista Músicas al Sur, n.1, 2004.

NATTIEZ, Jean-Jacques. Harmonia. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi v. 3. Porto: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p.245-271, 1984.

NATTIEZ, Jean-Jacques. O combate entre Cronos e Orfeu. Ensaios de semiologia musical aplicada. São Paulo: Via Lettera, 2005.

NAUS, Wayne J. Beyond functional harmony. Rottenburg: Advance Music, 1998.

3 NEFF, Severine. Schoenberg and Goethe: organicism and analysis. In: HATCH, Christopher; BERNSTEIN, David W. (Ed.). Music theory and the exploration of the past. Chicago: Chicago University Press, 1993. p.409-433.

NETTLES, Barrie e GRAF, Richard. The chord scale theory & jazz harmony. Advance Music, 1997.

Page 36: Ansiedade Da Performance

33

NEWARK, Cormac. Metaphors for Meyerbeer. Journal of the Royal Musical Association, v. 127, n.1, p.23-43, 2002.

NOLAN, Catherine. Music theory and mathematics. In: CHRISTENSEN, Thomas (Ed.). The Cambridge history of western music theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p.272-304.

NUNES, Benedito. A visão romântica. In: GUINSBURG, J. (Org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005. p.51-74.

OLIVEIRA, Luciano Amaral. Formalismo e funcionalismo: fatias da mesma torta. Sitientibus, Feira de Santana, n.29, p.95 -104, jul./dez. 2003.

OLIVEIRA, Luis Felipe e MANZOLLI Jônatas. Uma visão paradigmática da história do significado musical e seus recentes desdobramentos. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA – ANPPOM, 17, 2007, São Paulo. Anais... São Paulo, Instituto de Artes, 2007.

OLIVEIRA, Luis Felipe. A emergência do significado em música. Instituto de Artes, Unicamp, 2010. (Tese de Doutorado).

PADDISON, Max. Music as ideal: the aesthetics of autonomy. In: SAMSON, Jim (Ed.). The Cambridge history of nineteenth-century music. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. p.318-343.

PARKER, D. C. Balzac, the musician. The Musical Quarterly, v.5, n.2, p.160 168,‐ 1919.

PAUL, Charles B. Jean-Philippe Rameau (1683-1764), the musician as philosophe. Proceedings of the American Philosophical Society, v.114, n.2, p.140-154, 1970.

POLLACO. Harmonia. São Paulo: Ed. HMP, 2007.

POUND, Ezra. Antheil and the treatise on harmony. Chicago, Pascal Covici, 1927.

QUEIROZ, Alexei Alves de. Uma notação musical para representação de progressões harmônicas utilizando grafos. Música Hodie, Goiânia, v.9, n.1, p.31-51, 2009.

RATNER, Leonard G. Romantic music: sound and syntax. New York: Schirmer Books, 1992.

RAWLINS, Robert e BAHHA, Nor Eddine. Jazzology: the encyclopedia of jazz theory for all musicians. Milwaukee, WI: Hal Leonard, 2005.

REHDING, Alexander. Hugo Riemann and the birth of modern musical thought. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

RIDLEY, Aaron. A filosofia da música. Temas e variações. São Paulo: Ed. Loyola, 2008.

RIEMANN, Hugo [Hugibert Ries]. Musical logic: a contribution to the theory of music. Journal of Music Theory, n. 44, n.1, p.100-126, Spring, 2000.

Page 37: Ansiedade Da Performance

34

RIEMANN, Hugo. Grosse Kompositionslehre. Berlin: W. Spemann, 1902.

RIEMANN, Hugo. Harmony simplified or the theory of the tonal functions of chords. London: Augener, 1899.

SALZER, Felix. Audición estructural: coherencia tonal en la música. Barcelona: Editorial Labor, 1990.

SASLAW, Janna K. e WALSH James P. Musical invariance as a cognitive structure: “multiple meaning” in the early nineteenth century. In: BENT, Ian (Ed.). Music theory in the age of romanticism. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p.211-231.

SASLAW, Janna K. Gottfried Weber and the concept of Mehrdeutigkeit. Columbia University, 1992.

SCHOENBERG, Arnold. Funções estruturais da harmonia. São Paulo: Via Lettera, 2004.

SCHROEDER, Jorge. O dentro e o fora da música: notas para uma reflexão sobre a apreciação musical. Ensinarte: revista das artes em contexto educativo, Braga, Portugal, v.3, p.2-14, inverno de 2004.

SCRUTON, Roger. The aesthetics of music. Oxford University Press, 1999.

SHIRLAW, Matthew. The theory of harmony: an inquiry into the natural principles of harmony, with an examination of the chief systems of harmony from Rameau to the present day. New York: Da Capo Press, 1969.

SLOBODA, John A. A mente musical. A psicologia cognitiva da música. Londrina: Eduel, 2008.

SMITH, Charles Samuel. Leonhard Euler's Tentamen novae theoriae musicae': A translation and commentary. Ph.D. Dissertation, Indiana University, United States, Indiana. 1960.

SPITZER, Michael. Metaphor and Musical Thought. Chicago: University of Chicago Press, 2004.

TAGG, Philip e CLARIDA, Bob. Ten little title tunes: towards a musicology of the mass media. New York; Montreal: The Mass Media Music Scholars’ Press, 2003.

TAGG, Philip. Analisando a música popular: teoria, método e prática. Em Pauta, Porto Alegre, v.14, n 23, p.5-42, 2003.

TAGG, Philip. Music’s Meanings: a 21st-century musicology for non-musos (provisional version). New York: Mass Media Music Scholars Press, 2012 (forthcoming). Disponível em: <http://tagg.org/mmmsp/NonMusoInfo.htm>. Acesso em: 08 jun. 2012.

TATARKIEWICZ, Wladyslaw. Historia de seis ideas: arte, belleza, forma, creatividad, mímesis, experiencia estética. Madrid: Editorial Tecnos, 2002.

Page 38: Ansiedade Da Performance

35

TOLLE, Oliver. Introdução e notas. In: MORITZ, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália. São Paulo: Imprensa Oficial, 2007.

TOMÁS, Lia. À procura da música sem sombra: Chabanon e a autonomia da música no século XVIII. São Paulo: Ed. UNESP, Cultura Acadêmica, 2011.

VIDEIRA JUNIOR, Mario Rodrigues. A linguagem do inefável: música e autonomia estética no romantismo alemão. 2009. Tese (Doutorado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

VIDEIRA JUNIOR, Mario Rodrigues. O romantismo e o belo musical. São Paulo: Ed. UNESP, 2006.

WAIZBORT, Leopoldo. Chaves para ouvir Schumann (Paralipomena à Kreisleriana - I). Novos Estudos, CEBRAP, São Paulo, v. 75, p.185-210, 2006.

WASON, Robert W. Viennese harmonic theory from Albrechtsberger to Schenker and Schoenberg. Rochester, NY: University of Rochester Press, 1995.

WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.

WILLIS, Paul E. Symbolism and practice: A theory for the social meaning of pop music. Journal on media culture, v. 4, 2001.

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas: Professor na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC, Florianópolis) e membro dos grupos de pesquisa “Processos músico-instrumentais” (UDESC) e “Música Popular: história, produção e linguagem” (UNICAMP). Doutor em música pela Universidade Estadual de Campinas e atua nas áreas de teoria, análise musical, contraponto, arranjo, harmonia tonal e música popular. Atualmente desenvolve a pesquisa “Harmonias difíceis e planos tonais complexos: do amontoado de ideias românticas em vigência na valoração da música popular contemporânea” (PROPPG, UDESC).

Page 39: Ansiedade Da Performance

Revista do Conservatório de Música da UFPel Pelotas, No.5, 2012 p. 36-64

Ansiedade na Performance Musical: definições, causas, sintomas,

estratégias e tratamentos

Andre Sinico(PPG/UFRGS - RS)

[email protected]

Leonardo L. Winter(PPG/UFRGS - RS)[email protected]

ResumoO presente artigo aborda aspectos da ansiedade na performance musical, sua definição, diferenças terminológicas, causas, sintomas, estratégias e tratamentos. Segundo Andrade e Gorenstein (1998), ansiedade é um estado emocional com componentes psicológicos e fisiológicos que fazem parte do espectro normal das experiências humanas, sendo propulsora do desempenho. Por características inatas, a performance musical pode ser influenciada tanto positivamente quanto negativamente pela ansiedade e essa reação pode variar conforme a pessoa, situação e/ou tarefa a ser realizada. A metodologia da pesquisa se processou por pesquisa bibliográfica no campo da psicologia da música e performance musical, tendo como objetivos refletir e compreender este tema que afeta diretamente àqueles que lidam com apresentações públicas e, mais especificamente, a performance musical.

Palavras-chave: ansiedade; performance musical; estratégias.

Anxiety in Musical Performance: definitions, causes symptoms, treatments and strategies

AbstractThe article approaches aspects of music performance anxiety, its definition, terminological differences, causes, symptoms, strategies, and treatments. According to Andrade and Gorenstein (1998), anxiety is an emotional state with psychological and physiological components that are part of a normal spectrum of human experience, and driving performance. By innate characteristics, music performance can be influenced both positively and negatively by anxiety. Its reaction varies from person to person, situation and/or task to be performed. The methodology was made by bibliographical research on fields of music psychology and music performance. Its aims are reflection and understanding this theme that directly affects to all those that deal with public performances and, more specifically, with music performance.

Keywords: anxiety; music performance; strategies.

INTRODUÇÃO

O processo de preparação e performance de uma obra musical demanda do

instrumentista um conjunto de conhecimentos, técnicas e habilidades que poderiam

passar desapercebidos ao leigo que, eventualmente, possa assistir a um concerto

Page 40: Ansiedade Da Performance

37

ou recital. Durante o processo de preparação e performance, o músico necessita

compreender e colocar em prática uma vasta e complexa gama de conhecimentos

musicais que envolvem desde a decodificação e compreensão dos símbolos

contidos na partitura - ou seja, identificação de ritmos, alturas, dinâmicas,

articulações, andamentos, harmonia, contraponto, etc. - à técnicas instrumentais

próprias e que, conjuntamente com outros conhecimentos musicais (fraseologia,

análise, estilo musical, história da música, entre outros), auxiliarão no processo de

construção do entendimento da obra (interpretação). Quanto mais rico e diverso o

conjunto de conhecimentos a disposição do intérprete musical, mais rica e variada

será a possibilidade de construção da interpretação e maiores serão as

possibilidades de êxito na execução (ou performance). Cada um dos conhecimentos

acima citados e/ou utilizados pelo intérprete irá contribuir para o estabelecimento de

uma imagem correspondente à obra musical e que revelará parte do conteúdo total

da obra.

Pareyson (1989, p. 157) ao comentar sobre a leitura de uma obra de arte

identifica diferentes processos nesta atividade: decodificação, mediação e

realização. O intérprete, ao estudar uma partitura, transpõe esses processos para o

campo musical: na decodificação de uma partitura estão relacionados os códigos

musicais com conhecimentos teórico-musicais previamente adquiridos; na

mediação, os códigos decifrados são avaliados e transformados em sistemas

significantes. A realização, ou seja, o ato em si está diretamente ligado à execução

musical (ou performance). Esses diferentes processos no ato da leitura de uma

partitura estão presentes de maneira sucessiva e complementar. O exercício crítico

exercido após cada leitura permite a correlação dos símbolos grafados com o

significado musical, possibilitando um processo constante de reavaliação a cada

leitura realizada. O resultado do processo de leitura, avaliação, crítica e execução da

obra irá consolidar uma interpretação possível para a obra.

Embora o trabalho do intérprete inicie com a decodificação e compreensão

da partitura, devido às limitações da representação e grafia musical, observa-se que

esta não tem a capacidade de fornecer a totalidade de informações presentes em

uma execução musical: o intérprete necessita complementar as informações

fornecidas pelo compositor com elementos vinculados às práticas interpretativas

bem como considerar outros elementos, como a finalidade e contexto da

apresentação, o processo de interação com o público, entre outros elementos. A

Page 41: Ansiedade Da Performance

38

esse respeito, Kraus afirma que “... partituras não determinam interpretações e

interpretações não determinam performances. Interpretações são mais completas

que partituras e performances são mais completas que interpretações” (KRAUS,

2001, p. 75). Essa última etapa - a performance musical - representa o objetivo

principal no processo interpretativo: é através da performance que, em última

análise, o músico poderá verificar e reavaliar os processos de construção

interpretativa, a preparação musical e suas técnicas, bem como interagir com seu

público na transmissão da mensagem musical.

Ao considerarmos que, conforme Kenny (2003, p. 760), a performance

musical requer um alto nível de proficiência em uma extensa área de habilidades -

que inclui destreza motora fina, coordenação, concentração e memorização, estética

e habilidades interpretativas - e que obter proeminência musical requer execução

próxima à perfeição exigindo anos de treinamento, prática solitária com constante e

intensa auto-avaliação, vislumbramos a exigente tarefa que o músico se defronta no

processo de preparação e apresentação de uma obra musical. A conjugação de

todos esses elementos, a depender da pessoa, da tarefa e/ou da situação a ser

enfrentada pode resultar em estresse1 físico e psicológico, podendo afetar músicos

de diferentes níveis de proficiência (profissionais, estudantes e amadores). Nesse

sentido, Salmon afirma que o estresse ocupacional, inerente à profissão de músico,

constitui um cenário de sensibilização contra o qual os indivíduos experienciam

sintomas fisiológicos, comportamentais e cognitivos que normalmente acompanham

a ansiedade (SALMON, 1990 apud KENNY et al., 2003, p. 579). Além disso, durante

o processo de preparação e execução musical, o intérprete pode se confrontar com

dificuldades técnico-interpretativas que, conjugadas ao contexto e finalidade da

apresentação, expectativas e desejos pessoais, entre outros elementos, podem

gerar ansiedade positiva ou negativa durante a performance musical. A ansiedade

positiva é conhecida por excitação e Wilson afirma que a qualidade da performance

está relacionada à excitação, isto é, baixa quantidade de excitação poderá resultar

em execução enfadonha, sem vida. Já uma excitação excessiva poderá resultar na

perda de concentração, lapso de memória e instabilidade no corpo e instrumento

musical (WILSON, 2002 apud MARSHALL, 2008, p. 7).

1 O termo estresse (stress) denota o estado gerado pela percepção de estímulos que provocam excitação emocional e, ao perturbarem a homeostasia, disparam um processo de adaptação caracterizado, entre outras alterações, pelo aumento de secreção de adrenalina produzindo diversas manifestações sistêmicas, com distúrbios fisiológico e psicológico (MARGIS et al., 2003, p. 65).

Page 42: Ansiedade Da Performance

39

A maioria das pesquisas e estudos sobre influência da ansiedade no

desempenho da performance provêm da área da saúde e educação física. O estudo

da relação entre estímulo (stress) e performance foi inicialmente observado pelos

psicólogos Robert M. Yerkes e John Dillingham Dodson. Foi representada através da

Lei de Yerkes-Dodson (1908), que relaciona o aumento da performance com o

estímulo (stress) fisiológico e/ou mental na realização de diferentes tarefas (da “mais

simples” para a “mais complexa”). Em tarefas consideradas “mais simples”, o nível

da performance pode ser mais alto, enquanto que em tarefas consideradas “mais

complexas” o nível da performance a ser atingido pode ser mais baixo

(comparativamente à tarefa “mais simples”). Yerkes e Dodson concluíram que a

performance atinge seus níveis mais altos quando o estímulo apresenta níveis

moderados; quando o nível do estímulo torna-se muito alto, o nível da performance

tende a decrescer sensivelmente. Estímulos (stress) muito baixos ou altos tendem a

prejudicar o nível da performance. Este gráfico para tarefas consideradas “mais

complexas” - representadas pela linha pontilhada azul no gráfico abaixo - é

conhecido como curva invertida de U.

Figura 1 - performance versus estresse

Steptoe (1983 apud VALENTINE, 2002) confirmou esse padrão gráfico

invertido de U na performance musical ao estudar cantores (estudantes e

profissionais) ao solicitar avaliação da tensão emocional e qualidade da performance

em diferentes situações, onde a performance atingiu seus picos mais elevados em

um nível intermediário de tensão e após os quais decresceu. Em tarefas

consideradas “mais simples”, o nível da performance tende a ser maior - conforme

demonstra a linha vermelha no gráfico acima - e após atingido esse patamar, o nível

de ansiedade cai acentuadamente.

Page 43: Ansiedade Da Performance

40

Fazey e Hardy (1988 apud WILLIAMON, 2004, p.12), baseados no estudo

da performance de atletas, estabeleceram uma distinção entre os efeitos fisiológicos

e cognitivos na qualidade da performance: quando a ansiedade cognitiva é baixa, o

gráfico de Yerkes-Dodson segue o padrão normal de curva invertida de U, porém,

quando a ansiedade cognitiva é alta, ou seja, quando existe muita expectativa por

parte do participante, a qualidade da performance pode sofrer uma queda

vertiginosa significativa e de difícil recuperação. A teoria da catástrofe na

performance foi, segundo Hardy et al., (2007, p.16), desenvolvida pelo matemático

René Thom para tentar descrever através de gráficos os efeitos produzidos pela

ansiedade em várias atividades performáticas. Em 1990, Hardy et al., pesquisando

sobre desempenho de esportistas, desenvolveram um modelo tridimensional para

representar a ansiedade na performance combinando componentes cognitivos e

fisiológicos, propondo relações entre performance, ansiedade cognitiva e estresse

fisiológico:

1. Ansiedade cognitiva tem uma relação positiva com performance quando estresse fisiológico é baixo;

2. Ansiedade cognitiva tem uma relação negativa com a performance quando estresse fisiológico é alto;

3. Quando ansiedade cognitiva é baixa, estresse fisiológico tem uma relação em forma de U invertido com a performance;

4. Quando ansiedade cognitiva é alta e, conjuntamente, há aumento acentuado no estresse fisiológico, essa situação leva a performance a uma curva catastrófica vertiginosa e que esta somente será recuperada através de uma grande redução no estresse fisiológico. (HARDY et al., 2007, p. 16)

Hardy et al. (ibid.) concluíram afirmando que um prognóstico central no

modelo de performance denominado de “catastrófico” é a relação entre ansiedade

cognitiva, aumento do estresse fisiológico e sua influência na performance: quando

ansiedade cognitiva é alta e o nível de estresse fisiológico segue aumentando, a

curva do gráfico seguido pela performance é diferente da curva do gráfico de

performance onde a ansiedade cognitiva é alta e o nível do estresse fisiológico

apresenta diminuição. Assim sendo, podemos concluir que o excesso de

preocupação cognitiva, associado a um aumento do nível do estresse fisiológico é

altamente prejudicial à qualidade da performance e cabe ao intérprete, ciente das

limitações e perdas no desempenho performático ocasionadas pelo excesso de

ansiedade, conscientizar e buscar mecanismos e estratégias de controle cognitivo e

fisiológico para a performance não atingir níveis catastróficos.

Page 44: Ansiedade Da Performance

41

1. A ANSIEDADE

A ansiedade é um estado psicológico e fisiológico caracterizado por

componentes somáticos, emocionais, cognitivos e/ou comportamentais e às vezes

associada com atividades que demandam habilidades, concentração e

autoavaliação (SINICO et al., 2012, p. 939). No entanto, para Andrade e Gorenstein

(1998), ansiedade é um estado emocional com componentes psicológicos e

fisiológicos que fazem parte do espectro normal das experiências humanas, sendo

propulsora do desempenho. Embora a ansiedade tenha sido pesquisada

principalmente na área da psicologia, pode manifestar-se em diferentes profissões e

atividades como medicina, esportes, artes e música.

Barlow define a ansiedade como sendo:

Uma única e coerente estrutura cognitivo-afetiva dentro de nosso sistema motivacional defensivo. No centro desta estrutura está uma sensação de incontrolabilidade focada em futuras ameaças, perigo ou outros eventos potencialmente negativos (BARLOW, 2000 apud KENNY, 2011, p. 22).

A ansiedade pode influenciar tanto positivamente quanto negativamente a

performance musical por meio de causas e sintomas variados. A experiência de

ansiedade na performance musical (APM) pode ser, de acordo com Kenny, uma

defesa contra a experiência ou re-experiência emocional fortemente dolorosa ou o

medo da possibilidade de enfrentar uma futura ameaça intolerável, isto é, o medo da

vergonha ou da humilhação diante de uma apresentação malsucedida (KENNY,

2011, p. 23). Segundo Cordioli e Manfro, a ansiedade passa a ser patológica quando

se torna uma emoção desagradável e incômoda, que surge sem estímulo externo

apropriado ou proporcional para explicá-la, ou seja, quando a intensidade, duração e

freqüência aumentam e estão associadas ao prejuízo do desempenho social ou

profissional (CORDIOLI e MANFRO, 2004 apud JARROS, 2011, p. 20), podendo ser

caracterizada por Transtorno de Ansiedade Social ou Fobia Social. Conforme o

Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais2 observam-se oito

critérios para o diagnóstico de fobia social:

2 Disponível em: http://www.psicnet.psc.br/v2/site/dicionario/registro_default.asp?ID=321

Page 45: Ansiedade Da Performance

42

1. Medo acentuado e persistente de uma ou mais situações sociais ou de desempenho, nas quais o indivíduo é exposto a pessoas estranhas ou ao possível escrutínio por terceiros. O indivíduo teme agir de um modo (ou mostrar sintomas de ansiedade) que lhe seja humilhante e vergonhoso;

2. A exposição à situação social temida quase que invariavelmente provoca ansiedade, que pode assumir a forma de um Ataque de Pânico ligado à situação ou predisposto por situação;

3. A pessoa reconhece que o medo é excessivo ou irracional;4. As situações sociais e de desempenho temidas são evitadas ou

suportadas com intensa ansiedade ou sofrimento;5. A esquiva, a antecipação ansiosa ou o sofrimento na situação

social ou de desempenho temida interferem significativamente na rotina, no funcionamento ocupacional (acadêmico), em atividades sociais ou relacionamentos do indivíduo, ou existe sofrimento acentuado por ter a fobia;

6. Em indivíduos com menos de 18 anos, a duração é de no mínimo 6 meses.

7. O temor ou esquiva não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., droga de abuso, medicamento) ou de uma condição médica geral nem é mais bem explicado por outro transtorno mental (p. ex., Transtorno de Pânico Com ou Sem Agorafobia, Transtorno de Ansiedade de Separação, Transtorno Dismórfico Corporal, Transtorno Global do Desenvolvimento ou Transtorno da Personalidade Esquizóide).8. Em presença de uma condição médica geral ou outro transtorno mental, o medo no Critério 1 não tem relação com estes; por exemplo, o medo não diz respeito a Tartamudez, tremor na doença de Parkinson ou manifestação de um comportamento alimentar anormal na Anorexia Nervosa ou Bulimia Nervosa.

Além da ansiedade, duas outras emoções podem estar presentes e

influenciar no processo de preparação para a performance musical: o medo (fear) e

o pânico (fright). Freud realizou a seguinte distinção entre estas emoções: ansiedade

relaciona com o estado e ignora o objeto, enquanto o medo chama a atenção

precisamente para o objeto. Podemos dizer, portanto, que uma pessoa se protege

do medo pela ansiedade (FREUD, 1973 apud KENNY, 2011, p.28). O pânico, por

outro lado, enfatiza o efeito produzido por um perigo que não é refutado pela

ansiedade, ou seja, apresenta-se de modo súbito em uma situação, sem preparação

cognitiva. Estas diferentes emoções, algumas vezes confundidas pelos próprios

intérpretes, podem estar presentes em atividades performáticas que demandam

habilidades, concentração, autoavaliação e, dependendo de seus efeitos em cada

indivíduo, podem prejudicar acentuadamente a performance musical. Assim sendo, é

importante esclarecer e explicitar melhor estas diferenciações para que o intérprete

possa não somente compreender o processo de preparação e apresentação, mas

também adotar estratégias e tratamentos eficazes para o melhor aproveitamento e

otimização da performance musical.

Page 46: Ansiedade Da Performance

43

1.1. DIFERENÇAS ENTRE PÂNICO DE PALCO E ANSIEDADE NA

PERFORMANCE MUSICAL

Os conceitos pânico de palco e ansiedade na performance musical foram

abordados por diversos autores, sendo resultado de anos de pesquisas e

observações, embora não haja consenso entre eles. Segundo Kenny, muitos

pesquisadores usam as expressões ‘pânico de palco’, ‘ansiedade da performance’ e

‘ansiedade na performance musical’ alternadamente, mas nem sempre há um

acordo quanto aos significados das expressões (KENNY, 2011, p. 48). A autora

(ibid.) completa que tal desacordo terminológico decorre do diferente nível de

gravidade atribuído à manifestação de estresse. Brodsky (1996), por exemplo,

compreende o pânico de palco a um nível de gravidade maior que a apresentada

pela ansiedade na performance musical, enquanto Fehm e Schmidt argumentam

que pânico de palco denota um nível menos grave de ansiedade na performance

(FEHM & SCHMIDT, 2005 apud KENNY 2011, p. 48). A fim de reduzir o impasse, se

faz necessário conceituar as expressões ‘pânico de palco’ e ‘ansiedade na

performance musical’, ainda que a escolha não objetive uma definição consensual

entre os diversos autores.

Para Goode, “pânico de palco” é uma condição psicológica e fisiológica em

que o funcionamento apropriado, normalmente necessário a uma realização bem

sucedida, é prejudicado (GOODE, 2003, p. 2). Conforme Senyshyn, “pânico de

palco” refere-se ao medo súbito e intenso ou ao pavor sentido no palco que está

suscetível a conduzir à degradação da performance (SENYSHYN, 1999 apud

KENNY, 2011, p. 49). Entretanto, o pânico de palco pode ocorrer não somente em

músicos, mas em outros artistas e profissionais que nele atuam. Desse modo,

Steptoe compara as expressões pânico de palco e ansiedade na performance

musical e, justifica os motivos pelos quais opta pela segunda expressão ao tratar do

assunto em níveis musicais:

Primeiramente, ansiedade na performance musical refere-se especificamente aos sentimentos experienciados pelos músicos. Em segundo lugar, a ansiedade na performance musical ocorre em muitos contextos e não somente no palco. [...] Em terceiro lugar, o termo ‘pânico [de palco]’ implica em um medo súbito ou pavor, enquanto a ansiedade na performance musical pode ser bastante previsível e se desenvolver gradualmente ao longo dos dias que antecedem a uma ocasião importante.

Page 47: Ansiedade Da Performance

44

E, por fim, o termo tem implicações pela maneira pela qual a música é tocada e não somente o medo que o executante experiencia (STEPTOE, 2004, p. 292).

Steptoe reafirma as palavras de Senyshyn quanto à sua definição de pânico

de palco e conceitua a ansiedade na performance musical, por compreender que o

músico pode vir a experienciar sintomas decorrentes da ansiedade desde a

preparação até a execução propriamente dita, ou seja, a ansiedade na performance

musical acompanha o músico durante todo o processo, ao passo que o pânico de

palco estaria presente somente no momento da apresentação.

2. AS CAUSAS DA ANSIEDADE NA PERFORMANCE MUSICAL

Conforme Valentine (2002, p. 172), três fatores contribuem para a ansiedade

na performance musical: a Pessoa, a Tarefa e a Situação.

2.1. A PESSOA

Refere-se ao conjunto de aspectos da personalidade de cada indivíduo3 que

possam vir a exercer quaisquer influências no comportamento. É individual e

manifesta a predisposição habitual da pessoa ao reagir ao ambiente no qual está

inserido. Para Lehmann et al., (2007, p. 152), a maneira como os músicos pensam,

suas atitudes, crenças, julgamentos e objetivos, determinam em grande parte a

extensão à qual percebem a performance como ameaçadora. Segundo os mesmos

autores (idem, p. 146), músicos podem beneficiar-se de tratamentos cognitivos, pois

somente tratar sintomas fisiológicos não elimina completamente a experiência de

ansiedade na performance. A ansiedade como resultante de processos individuais

relacionados à resultante de aspectos cognitivos, fisiológicos e psicológicos fornece

elementos importantes para o intérprete compreender suas idiossincrasias e, se por

um lado não oferece uma solução definitiva e única, possibilita com que este passe

a observar seus comportamentos e pensamentos em busca de uma alternativa de

convivência com as causas e sintomas da ansiedade na performance musical.

Quanto ao comportamento individual, Deary et al. afirmam que depende da

interação entre as qualidades da pessoa e as qualidades do ambiente físico e social 3 Como, e.g., introversão, extroversão, independência, dependência, sensibilidade, ansiedade, dentre outras.

Page 48: Ansiedade Da Performance

45

(DEARY et al., 1993 apud KEMP 1999, p. 25). Assim sendo, o comportamento

individual poderia ser compreendido como a reação à soma de interações pessoais,

físicas e sociais, ou seja, ansiedade estaria condicionada a elementos intrínsecos de

cada indivíduo e de como este se relaciona com o meio que o circunda. Outros

elementos conectados à pessoa e que podem influenciar a ansiedade na

performance musical são, além da personalidade individual, o gênero, o traço e

estado de ansiedade, o grau de independência e a sensibilidade.

2.1.1. A Personalidade Individual

Refere-se ao comportamento individual, ou seja, a predisposição e tendência

de cada indivíduo de reagir de determinada maneira perante uma situação ou

contexto social. A personalidade individual é multifacetada, apresentando como um

conjunto de características variadas (como, por exemplo, introversão - extroversão,

independência - dependência, etc.) manifestas em cada indivíduo. A personalidade e

comportamento individual podem influenciar e variar a maneira com que a ansiedade

na performance musical se manifesta. Para Kemp, músicos dedicam-se a

habilidades e processos cognitivos complexos, mas o desenvolvimento destes é

dependente da existência ou aquisição de combinações únicas de fatores pessoais

(KEMP, 1999, p. 25). Catell indica quatro fatores primários que contribuem na

distinção entre introversão e extroversão: pessoas extrovertidas tendem a ser

participativas, entusiásticas, impulsivas e convencionais, enquanto que pessoas

introvertidas tendem a se comportar de maneira crítica, introspectiva, restritiva e

inquiridoras (CATELL, apud KEMP, 1999, p. 27). De acordo com Kemp (ibid.),

músicos tendem a apresentar uma personalidade introvertida pelas características

formativas e profissionais (através da prática individual deliberada, isto é, o estudo

individual diário do instrumento) e esse tipo de atividade poderia aumentar os traços

tanto de autossuficiência quanto de isolamento social (KEMP, 1999, p. 27).

2.1.2. O Gênero

A influência e preponderância do gênero sobre a ansiedade na performance

musical tem sido pesquisada por diversos autores. Kenny et al. (2003) ao analisarem

Page 49: Ansiedade Da Performance

46

estudos4 sobre ansiedade na performance musical, concluíram que mulheres são

dois terços mais propensas a sofrer de ansiedade que homens e esta relação

parece ser apoiada pelos estudos de Ansiedade em performance Musical (APM):

estudos5 demonstram que as mulheres tem ansiedade na performance musical

significativamente maior que os homens. Um estudo sobre flautistas realizado por

Sinico et al. (2012), afirma que a média de diferenças de traço de ansiedade em

flautistas do sexo masculino e feminino teve resultado estatístico altamente

significante. Entretanto, a média de diferenças do estado de ansiedade não foi

estatisticamente significativa. Tais resultados refletem a literatura em que as

mulheres relatam maior nível de ansiedade na sua vida cotidiana. No entanto, as

flautistas do sexo feminino não apresentaram diferenças significantes no traço de

ansiedade em relação aos flautistas do sexo masculino (SINICO et al., 2012, p. 941).

Embora mais investigações necessitem ser realizadas quanto à influência do

gênero na predisposição à ansiedade, Kinrys e Wygant (2005), em pesquisa

realizada nos Estados Unidos, apontaram que mulheres possuem um risco

substancialmente maior de desenvolver transtornos de ansiedade ao longo da vida -

comparadas aos homens - e que evidências têm observado, genericamente, um

aumento da severidade dos sintomas, comportamento crônico e comprometimento

funcional em mulheres com transtornos de ansiedade (em comparação aos

homens). Os autores (ibid.) também concluem que as razões para o aumento do

risco no desenvolvimento de transtornos de ansiedade em mulheres ainda são

desconhecidas e necessitam ser adequadamente investigados, supondo que fatores

genéticos e os hormônios reprodutivos femininos poderiam desempenhar papeis

importantes na expressão destas diferenças de gênero. No entanto, evidências que

poderiam comprovar diferenças de gênero nas respostas aos tratamentos dos

transtornos de ansiedade ainda são inconsistentes e amplamente inconclusivas,

bem como a influência genética e hormônios sobre a ansiedade individual. Por outro

lado, Abel e Larkin (1990) observaram em seu estudo sobre estudantes

universitários de música que os homens mostraram um aumento maior da pressão

sanguínea, enquanto que as mulheres apresentaram grande aumento nos

sentimentos de ansiedade, ilustrando tanto as diferenças de gênero e o fato de que

as diferentes manifestações de ansiedade, frequentemente não correspondem.

4 Como, e.g., American Psychiatric Association, 1994; Lewinsohn, Gotlib, Seelwy e Allen, 1998. 5 Huston, 2001; Osborne e Franklin, 2002; Sinden, 1999.

Page 50: Ansiedade Da Performance

47

2.1.3. Traço e Estado de Ansiedade

É necessário realizar uma distinção entre dois conceitos e características

distintas e que estão intrinsecamente conectados à pessoa e a como ela reage à

ansiedade: o traço e estado de ansiedade. Kemp considera que “traço de

ansiedade” pode ser compreendido como uma predisposição geral a ser ansioso e

que o “estado de ansiedade” varia de acordo com os tipos de situação em que eles

se encontram (KEMP, 1999, p.33). Contudo, Kemp (idem) explica que traço e estado

de ansiedade não são facilmente separáveis, quer conceitualmente, quer em termos

de medição. Já Spielberger e Lazarus definiram estado de ansiedade como uma

resposta emocional não prazerosa ao lidar com situações ameaçadoras ou

perigosas - o que inclui avaliação cognitiva da ameaça como um precursor para o

seu surgimento - enquanto que traço de ansiedade refere-se às diferenças

individuais estáveis em tendências para reagir com o aumento do estado de

ansiedade antecipando uma situação de perigo (SPIELBERGER, 1983; LAZARUS,

1991 apud TOVOLIC 2009, p. 492), ou seja, traço de ansiedade refere-se a

características inatas e individuais, enquanto que estado de ansiedade refere-se ao

enfrentamento de determinada situação ou possível ameaça. Essa tendência é

consistente em uma ampla gama de situações e é temporariamente estável (ibid.).

No entanto, o traço de ansiedade é caracterizado como uma disposição geral de

experienciar estados transitórios de ansiedade sugerindo que essas duas

construções - traço e estado de ansiedade - estão inter-relacionadas (idem, p.500).

Quanto à atuação profissional e sua influência na ansiedade, Kemp (1996),

afirma que músicos apresentam maior predisposição para a ansiedade do que

pessoas de outras profissões (idem). Esta maior predisposição dos músicos à

ansiedade apontada por Kemp em relação a outros grupos profissionais poderia ser

atribuída a diversos fatores e características inatas da profissão, em especial dos

intérpretes musicais: a realização “ao vivo”, a presença de uma plateia, a

necessidade de perfeição técnica e interpretativa, a constante autoavaliação, entre

outros elementos. A predisposição a ser ansioso (em todos os aspectos da vida),

torna o indivíduo susceptível à ansiedade na performance e o traço de ansiedade

torna-se uma característica inerente da pessoa. A pesquisa também sugere que uma

personalidade ansiosa resulta do acúmulo de certas experiências de vida (KEMP,

1999, p. 96), trazendo importante contribuição ao entendimento do assunto. Sinico

Page 51: Ansiedade Da Performance

48

et al. (2012) afirmam em seu estudo sobre flautistas que a diferença entre os níveis

médios de traço e estado de ansiedade tiveram como resultado um índice estatístico

altamente significante, o que sugere que os flautistas relataram sentir níveis mais

elevados de ansiedade durante a performance em frente a uma plateia do que em

sua vida cotidiana (SINICO et al., 2012, p.941).

Um estudo realizado por Kemp concluiu que homens apresentam,

invariavelmente, uma pontuação mais elevada em introversão e em alguns aspectos

de independência que mulheres. Por outro lado, as mulheres tendem a ser mais

sensíveis e ansiosas que os homens. São padrões de traços de ansiedade em

gênero que contribuem para o que percebamos como a diferença, não somente em

termos mais abstratos de personalidade, mas em nossas predisposições a se

comportar de certas maneiras e para responder às circunstâncias de certa maneira

(KEMP, 1996, p.108). Para Wilson, indivíduos geralmente ansiosos, introvertidos e

propensos a fobias sociais estão mais propensos a sofrer de ansiedade na

performance musical (WILSON, 1999, p.231).

2.2. A TAREFA

O nível de ansiedade na performance é proporcional à tarefa a ser realizada,

ou seja, quanto mais difícil a tarefa, maior a ansiedade (SINICO et al., 2012, p.939).

O intérprete musical, ao se confrontar com uma tarefa considerada de “difícil”

execução a seu atual nível técnico-interpretativo, poderá agregar elementos

psicológicos e cognitivos que poderão dificultar ainda mais a realização da tarefa.

Nesse sentido, cabe ressaltar a individualidade e atitude do intérprete perante a

tarefa: alguns podem se sentir inclusive mais motivados a superar a dificuldade

técnica-interpretativa e os sintomas da ansiedade por meio da prática deliberada,

quer na sua qualidade ou quantidade, enquanto outros podem reagir de maneira

adversa.

Conjuntamente com a possibilidade da dificuldade técnica-interpretativa na

realização da tarefa, outros elementos vinculados ao processo performático do

intérprete musical podem influenciar a realização da tarefa e causas da ansiedade: a

possibilidade de erro ou de imperfeição na realização da tarefa. Segundo Wilson

(2002), a ansiedade na performance também pode estar associada à falha de

domínio da tarefa ou, para Fehm, a execução de tarefas que excedem a capacidade

Page 52: Ansiedade Da Performance

49

do executante (FEHM et al., 2005 apud KENNY 2011, p. 62). A falha do domínio da

tarefa ou a execução de determinada tarefa que exceda o domínio técnico e/ou

interpretativo pode, desde o processo de preparação, se transformar em elementos

somáticos desestruturadores que podem conduzir à ansiedade negativa na

performance musical. Assim sendo, cabe ao intérprete ponderar e refletir sobre sua

atividade, utilizando atitudes concretas e pensamentos positivos de superação.

Alguns fatores musicais podem influenciar a apresentação e realização da

tarefa: o repertório, a leitura à primeira vista, o estudo e o ensaio, a expressão

musical e a memorização que serão abordados abaixo.

2.2.1. O repertório

A escolha do repertório, seu nível de exigência e de demandas técnicas

podem influenciar o nível de ansiedade apresentado pelo intérprete. Wilson sugere

aos executantes que são particularmente propensos à ansiedade escolher peças

fáceis ou trabalhar com aquelas que lhes são muito familiares, pelo menos para fins

de concurso ou ocasião pública de suma importância (WILSON, 1999, p. 234). A

escolha pelo intérprete de uma obra que exceda o nível técnico ou que apresente

demandas acima do possível para o intérprete em determinado momento pode levar

a uma fragilização do intérprete perante a tarefa e como conseqüência poderá

agregar ansiedade na preparação e execução da obra. Ray comenta que a escolha

do repertório está quase sempre relacionada a um momento de prazer e projeções

positivas, pois não se escolhe uma obra pensando que não se conseguirá tocá-la

bem (RAY, 2009, p. 166). A autora acrescenta à escolha do repertório, a preparação

cuidadosa da sequência das obras escolhidas, da duração do programa e do

planejamento de palco (RAY, 2009, p. 167). Todas estas escolhas deveriam ser

pensadas e meticulosamente planejadas pelo intérprete com o intuito de transmitir

segurança durante o processo de preparação e execução da(s) obra(s). Através

deste processo, o intérprete pode agregar pensamentos positivos e ações

planejadas durante a prática deliberada que direcionem ao fortalecimento da

performance.

Page 53: Ansiedade Da Performance

50

2.2.2. A leitura à primeira vista

A leitura à primeira vista é definida por Gabrielsson como a execução de

uma partitura sem qualquer prática anterior no instrumento, ou seja, a execução à

prima vista (GABRIELSSON, 1999, p. 509). O intérprete, ao se defrontar com um

texto desconhecido e a necessidade de traduzir e comunicar as múltiplas indicações

da partitura - alturas, ritmos, articulações, andamentos, dinâmicas, expressão,

fraseado, afinação, entre outros elementos - pode encará-lo como um fator gerador

de ansiedade para a performance musical. Segundo Marshall, a leitura à primeira

vista envolve:

A identificação de grupos e padrões de notas. Isso ocupa tanto leitura quanto habilidades motoras, porque o executante tem que antecipar a leitura de padrões enquanto executa os que foram lidos (MARSHALL, 2008, p. 20).

A autora ressalta a importância de observar durante o ensaio mental, que

antecede à execução da música, certos elementos específicos da peça como a

tonalidade, fórmula de compasso, frases, possíveis obstáculos e acidentes, além de

manter um alto nível de concentração para evitar erros. E que esse tipo de

concentração é útil na preparação para a ansiedade na performance (MARSHALL,

2008, p. 20). Essa tarefa pode ser ainda mais estressante se a leitura à primeira

vista for avaliativa, ou seja, se o intérprete for avaliado por outrem (como

frequentemente acontece em provas ou concursos de admissão musicais). Assim

sendo, o intérprete poderia adotar em sua rotina diária de estudos a estratégia de

praticar a leitura à primeira vista, familiarizando-se com procedimentos e técnicas

que auxiliem o processo como solfejo, memorização, resolução de intervalos e

ritmos menos usuais, além da diversidade de articulações, andamentos, expressão

musical, entre outros.

2.2.3. A prática deliberada

A prática deliberada pode ser um elemento atenuador da ansiedade musical.

Nesse sentido, as sessões de estudo devem ir muito além da prática mecânica e

técnica do instrumento, de forma a buscar estratégias que auxiliarão na

Page 54: Ansiedade Da Performance

51

compreensão do texto musical e na otimização do desenvolvimento técnico-musical.

Associado a estas estratégias, o planejamento, a realização e avaliação cuidadosa

das sessões práticas podem, ao mesmo tempo em que reduzem a necessidade de

mais tempo na prática deliberada, aumentar a eficiência desta. Em relação à técnica

de ensaios, Jorgensen salienta a importância do equilíbrio entre o tempo de ensaio

com e sem o instrumento, a partir da mentalização, da discussão de estratégia de

ensaio bem como da audição de gravações (JORGENSEN, 2004 apud RAY 2009,

172). Outro aspecto importante é o ensaio mental, onde o instrumentista executa os

movimentos neuro-musculares automáticos, sem usar o instrumento (STENCEL et

al., 2012, p. 41). A partir da performance mental, o instrumentista se imagina tocando

e escutando sua própria performance (WILSON & ROLAND, 2002, p. 56). Reid

completa que a prática musical, na verdade, consiste em uma variedade de

atividades diferentes, mas inter-relacionadas, incluindo memorização, o

desenvolvimento da expertise6 técnica e por último, a formulação de interpretações

(REID, 2004, p. 102). Segundo Sloboda, a natureza e a quantidade de ensaios

realizados são, portanto, prováveis que sejam os determinantes mais importantes da

proficiência da performance (SLOBODA, 1985, p. 90). Entretanto, Reid afirma que a

expressão “estudo deliberado” ressalta a importância da qualidade e natureza das

atividades práticas (REID, 2004, p. 104).

2.2.4. A expressão musical

Conforme Juslin e Persson (JUSLIN & PERSSON, 2002, apud MARSHALL

2008, p. 24), a construção da expressão musical de uma obra é crucial para a

performance. De acordo com os mesmos autores (ibid.), os músicos consideram a

expressão musical como a parte mais importante da performance de uma obra

musical.

A expressão musical como ferramenta interpretativa pode auxiliar o músico a

enfrentar a ansiedade e seus sintomas. Para Marshall (MARSHALL, 2008, p. 23) a

6 O desenvolvimento da expertise envolve muito estudo deliberado que interage com outros fatores tais como características cognitivas do aprendiz, estilo cognitivo, personalidade, condições ambientais, o que torna em especulação perigosamente reducionista singularizar um aspecto. [...] Há evidência consistente para a ideia de que a expertise musical é alcançada somente depois de muitos anos de intenso estudo individual deliberado. Além disso, depois de atingida a expertise, músicos tem de continuar com estudo individual consistente se quiserem prolongar a carreira. (GALVÃO, 2006, p. 170).

Page 55: Ansiedade Da Performance

52

expressão musical está intimamente ligada à performance e quando os músicos

estão aptos a dominar a expressão musical, a ansiedade irá decrescer, auxiliando o

músico a colocar suas emoções na música mesmo quando este não está no inteiro

controle da situação e no que seu corpo está fazendo.

2.2.5. A Memorização

Paralela à expressão musical, a memorização, apesar de poder exercer uma

conseqüência negativa na performance devido à possibilidade do executante sofrer

um lapso de memória durante o concerto, é frequentemente vista como benéfica por

permitir uma maior liberdade na expressão musical e na comunicação entre o

intérprete e o seu público. Galvão7 aponta em seu trabalho que as investigações

realizadas por Rubin-Rabson indicaram algumas estratégias utilizadas por pianistas

no processo de memorização, que compreendem:

pré-estudo analítico (análise da estrutura do texto musical: estrutura harmônica, estilo, organização fraseológica, entre outros) anterior à prática física, distribuição de tempo de estudo, estudo de trechos curtos com mãos separadas e estudo mental. (GALVÃO, 2006, p. 171)

Desse modo, é possível perceber que os fatores musicais que podem

contribuir com o músico a lidar com a ansiedade na performance estão interligados.

Além disso, a partir da literatura, a utilização dos fatores musicais para esse fim,

pode ser compreendida também como utilização de estratégias no estudo individual.

2.3. A SITUAÇÃO

Segundo Valentine (2004), um número de estudos têm demonstrado o efeito

da situação como geradora de ansiedade na performance musical. Nesse sentido, a

apresentação pública, embora parte integrante da rotina do intérprete musical,

geralmente se constitui como fonte de ansiedade para a performance: trata-se não

só de um momento crucial no processo interpretativo – e que carrega em si

expectativas e ambições do intérprete - mas também de encontro com as

expectativas do público. Lehmann et al. (2007) afirmam que o elemento mais

7 Segundo Galvão (2006), as investigações de Rubin-Rabson foram desenvolvidas em 1937,1939, 1940, 1941 (GALVÃO, 2006, p.171).

Page 56: Ansiedade Da Performance

53

significante de uma situação de performance é a presença da plateia. A intimidação

representada por rostos anônimos em uma sala de concertos pode ser igualada à de

uma plateia menor, porém com ouvintes mais experientes (LEHMANN et al., 2007, p.

167).

Assim como na pessoa e na tarefa, a ansiedade provocada pela situação é

de caráter individual e pode variar de pessoa para pessoa. Leblanc et al. (1997)

encontraram ansiedade em auto-relatos de músicos de banda do ensino médio que

aumentaram significativamente em três distintas situações de performance: executar

um solo isoladamente em uma sala de estudo; em uma sala de estudo com o

pesquisador presente e com quatro pesquisadores e músicos presentes (LEBLANC

et al., 1997 apud VALENTINE, 2004, p. 172-73).

Brotons, ao pesquisar a influência de uma situação avaliativa através da

presença de um júri e sua influência na ansiedade de músicos, concluiu que não

foram relevantes a situação onde os executantes e os jurados estavam à vista um

dos outros ou quando o executante estivesse atrás de um biombo para que os

executantes e os jurados não tivessem conhecimento um da identidade do outro

(BROTONS, 1994 apud VALENTINE, 2004, p. 173).

Outro estudo demonstrou a interação entre características de personalidade

e situação (COX & KENARDY, 1993 apud VALENTINE, 2004, p. 173). Reafirmando

as palavras de Wilson (1999), artistas com fobia social eram muito mais ansiosos do

que aqueles que não apresentavam fobias sociais em ambiente solo, e que houve

pouca diferença entre eles em situações de grupo ou prática. Em um estudo de

Sinico et al. (2012) tentou-se identificar a situação de performance mais estressante

entre 142 flautistas, à saber: masterclasse, recital e concurso. No entanto, o

resultado não apontou nenhuma diferença significante no estado de ansiedade, quer

no contexto de análise multivariada ou uni-variada (SINICO et al., 2012, p. 941). Tal

resultado estatístico poderia, possivelmente, sofrer alterações conforme o aumento

do número de pesquisados. Finalmente, a ação individual ou coletiva dos fatores

acima descritos podem desencadear a ansiedade em músicos durante a preparação

e performance musical.

Quanto aos fatores que geram ansiedade na execução, há certas situações

que são relativamente estressantes para os executantes, independentemente de

suas suscetibilidades individuais. (WILSON, 1999, p. 231). Essas situações também

foram apontadas e comparadas por Hamann de forma antagônica: a apresentação

Page 57: Ansiedade Da Performance

54

solo versus apresentação em grupo, apresentação pública versus estudo, concurso

versus apresentação por prazer, apresentação de obras difíceis ou mal preparadas

versus aquelas que são fáceis, familiares ou bem aprendidas (HAMANN, 1982 apud

WILSON 1999, p. 232). Assim sendo, pode-se dizer que a primeira situação de cada

grupo pode gerar mais ansiedade no executante do que a segunda situação, por

deixá-lo mais exposto. Por fim, a ação individual ou coletiva dos fatores supracitados

pode desencadear a ansiedade no músico na preparação e durante a apresentação

musical.

3. SINTOMAS

Os sintomas8 da ansiedade na performance musical são bem conhecidos e

podem ser classificados em três tipos: fisiológicos, comportamentais e mentais

(VALENTINE, 2002, p. 168).

Conforme Lehmann et al. (2007, p. 149), sintomas fisiológicos,

comportamentais e cognitivos são inter-relacionados e podem ocorrer

simultaneamente durante o processo de preparação e performance de uma obra

musical. Segundo Marshall, os sintomas físicos/fisiológicos experienciados durante a

ansiedade na performance são similares àqueles experienciados em uma situação

de estresse (MARSHALL, 2008, p. 9). Como sintomas fisiológicos, em resposta ao

excesso de excitação do sistema nervoso automático, encontram-se o aumento do

batimento cardíaco, palpitação, falta de ar, hiperventilação, boca seca, transpiração,

náusea, diarreia e tonturas.

Valentine comenta que os sintomas comportamentais podem tomar a forma

de sinais de ansiedade tais como agitação, tremores, rigidez, expressão de palidez

ou o comprometimento da própria performance (VALENTINE, 2002, pp.168-169).

Steptoe acrescenta outros sinais a esses como a dificuldade em manter a postura, o

movimento natural e falhas técnicas (STEPTOE, 2004, p. 295). Infelizmente, esses

sintomas podem exalar sinais claros aos outros de que o executante está nervoso

8 Entre os sintomas físicos podemos citar: dor de cabeça, problemas digestivos, aumento da sudorese e problemas musculoesqueléticos, alterações na pressão sanguínea, no ritmo cardíaco e na frequência respiratória, tensão muscular, mãos frias, fadiga, diarreia, gripes e outras doenças. Entre os sintomas psicológicos destacam-se: perda da capacidade de concentração, depressão, ansiedade, redução de autoestima, medo, insegurança, pânico, alienação, preocupação excessiva, dificuldade de relaxar, pensamento fixo, hipersensibilidade, irritabilidade, perda da memória, mudança brusca de humor, entre outros.

Page 58: Ansiedade Da Performance

55

ou prejudicar a sua execução em si (WILLIAMON, 2004, p. 11).

Os sintomas mentais podem ser subdivididos em cognitivos e emocionais.

Os sintomas cognitivos consistem em perda de concentração, distração elevada,

falha da memória, cognições inadequadas, interpretação errada da partitura, entre

outros (STEPTOE, 2004, p. 295). O pensamento negativo, segundo Williamon é,

muitas vezes, associado à superidentificação da autoestima e esta com o sucesso

da apresentação (WILLIAMON, 2004, p. 11). Uma das ações que pode decorrer do

pensamento negativo é a catastrofização ou exagero na imaginação da

probabilidade de ocorrência de eventos negativos durante a apresentação

(STEPTOE 2004, p. 298). Lehmann et al. (2007, p. 150) responsabilizam os

sintomas cognitivos como elemento fundamental na deterioração da performance

pela ansiedade: quanto mais ansiedade cognitiva for acrescentada, mais efeitos

negativos poderão assolar a performance.

Já os sintomas emocionais são oriundos do sentimento de ansiedade,

tensão, apreensão, pavor ou pânico, os quais formam a experiência central de

ansiedade para muitos músicos (STEPTOE, 2004, p. 295).

Para evitar esses sintomas que são decorrentes da ansiedade nos campos

fisiológico, comportamental, cognitivo e emocional; os músicos costumam utilizar

estratégias para lidar com a ansiedade na performance musical.

4. ESTRATÉGIAS

Segundo Weistein e Mayer, estratégias são:

pensamentos e comportamentos que os músicos engajam durante a prática e que se destinam a influenciar seu estado emocional ou afetivo, ou o modo como eles selecionam, organizam, integram e ensaiam novos conhecimentos e habilidades (adaptado de WEISTEIN & MAYER,1986 apud JORGENSEN 2004, p. 85).

Para Nielsen uma estratégia envolve igualmente pensamento e

comportamento. A autora afirma que este não é um processo de pura informação

cognitiva, mas consiste também de diferentes formas de ação dirigidas ao material

de aprendizagem (NIELSEN, 1999, p. 276). Nielsen (idem), a partir da definição de

estratégias de Weistein e Mayer (1986), define dois objetos que as estratégias de

aprendizado destinam-se a influenciar:

Page 59: Ansiedade Da Performance

56

1. O estado motivacional e afetivo do aprendiz;

2. Maneira que o aprendiz seleciona, organiza, integra novos

conhecimentos.

Jorgensen salienta que as estratégias são geralmente aplicadas de maneira

consciente pelo intérprete, mas podem tornar-se automáticas com a repetição

(JORGENSEN, 2004, p. 85). O autor sustenta que o instrumentista, independente de

seu nível de conhecimento ou habilidade (de estudante a músico profissional) deve

ter um profundo conhecimento de seu repertório de estratégias e deve estar apto a

controlar, regular e explorá-lo (JORGENSEN, 2004, p. 87).

Dansereau define as estratégias destinadas a operar sobre estes dois

objetos como sendo: as estratégias primárias e as estratégias de apoio. As

estratégias primárias destinam-se a influenciar diretamente na aquisição de novo

conhecimento do aprendiz por se preocupar com o processo cognitivo do material

textual. Já as estratégias de apoio destinam-se em manter a concentração do

aprendiz, dominar a ansiedade, estabelecer a motivação e garantir o uso eficiente do

tempo (DANSEREAU, 1985 apud NIELSEN, 1999 pp. 276-277). Além disso, muitas

estratégias de apoio podem facilitar a aplicação bem sucedida das estratégias

primárias. Há quatro classificações gerais para as estratégias de apoio:

1. Estratégias de planejamento e preparação

2. Estratégias executivas

3. Estratégias de avaliação

4. Metaestratégias

4.1. ESTRATÉGIAS DE PLANEJAMENTO E PREPARAÇÃO

As estratégias de planejamento e preparação têm como objetivo organizar o

que deve ser praticado, criando-se uma rotina de estudos eficiente, de acordo com

as demandas e necessidades do músico e do repertório estudado, não deixando de

lado a administração do tempo da prática.

Page 60: Ansiedade Da Performance

57

4.2. ESTRATÉGIAS EXECUTIVAS

Já as estratégias executivas são aquelas em que o músico considera a

partitura uma fonte de informações cognitivas que colaborarão para a sua execução.

Além disso, a compreensão das seções da música e dela como um todo, a fim de

dominar os trechos de dificuldade técnico-musical, quer seja alterando o andamento

da obra progressivamente, modificando as estruturas rítmicas ou não.

4.3. ESTRATÉGIAS DE AVALIAÇÃO

As estratégias de avaliação, por sua vez, permitem que o praticante avalie a

sua execução, o que pode acontecer através de uma gravação. O estudo minucioso

da partitura e a sua execução atenta, a fim de detectar dificuldades e corrigir erros,

também fazem parte das estratégias de avaliação. E ainda, o envio de mensagens

construtivas do praticante para si mesmo enquanto pratica.

4.4. METAESTRATÉGIAS

Por fim, as metaestratégias são definidas como conhecimento sobre

estratégias comumente referido dentro da psicologia como conhecimento

metacognitivo (JORGENSEN, 2004, p. 97).

Jorgensen cita Borkowski e Tuner (1990 apud JORGENSEN, 2004, p. 97)

que propõem três áreas distintas de conhecimento metacognitivo:

• conhecimento específico: composto pelas estratégias que o indivíduo de fato

conhece;

• conhecimento relacional: é o conhecimento de como diferentes estratégias

contribuem para a satisfação de diferentes tarefas e metas;

• conhecimento geral: diz respeito à compreensão de quanto esforço é

necessário quando empregam estratégias de prática.

Como parte integrante das metaestratégias encontram-se as estratégias de

controle e regulação que dependem do conhecimento e classificação das

Page 61: Ansiedade Da Performance

58

estratégias. A partir desse conhecimento, Kluwe afirma que se pode checar, avaliar e

prever (KLUWE, 1987 apud JORGENSEN, 2004, p. 98).

Nielsen comenta que a regulação das estratégias envolve esforço

deliberado, seleção de tarefas, velocidade e intensidade (NIELSEN, 1999 apud

JORGENSEN, 2004, p. 98).

Para evitar os sintomas nos campos fisiológico, comportamental, cognitivo e

emocional decorrentes da ansiedade na performance musical, os músicos

costumam utilizar estratégias de apoio para lidar com a ansiedade antes e durante a

performance musical. Tais estratégias incluem desde respiração profunda,

relaxamento muscular, meditação, imersão no conteúdo musical através de estudo

analítico, leitura e distração com outros temas (STEPTOE, 1989; WOLFE, 1990

apud STEPTOE, 2004, p. 301). Não obstante, para alguns casos, devido ao alto

nível de ansiedade na performance musical e seus reflexos, essas estratégias

podem revelar-se ineficazes, sendo indicada a busca de tratamentos que possam

minimizar esses sintomas, aumentando o desempenho na performance.

5. TRATAMENTOS

Dentre os tratamentos disponíveis para amenizar os sintomas da ansiedade

podemos citar a terapia cognitiva, comportamental e cognitivo-comportamental.

Segundo Kenny, a terapia cognitiva é mais preocupada com a mudança de

padrões de pensamentos negativos que dão origem a comportamentos inadequados

(KENNY, 2005, p. 185). Reestrutura cognitiva é um tratamento estratégico que

alcança o processo de pensamento da pessoa. Músicos aprendem a identificar

pensamentos que não apresentam motivos aparentes e são contraproducentes para

substituí-los por pensamentos realistas, construtivos e bem definidos. (STENCEL et

al., 2012, p. 39). Uma forma particular de reestruturação cognitiva pode ser incluída

nos programas terapêuticos que são chamados inoculação de estresse

(MEINCHENBAUM apud WILSON, 1999, p. 241). O objetivo da inoculação de

estresse é substituir os pensamentos negativos que possivelmente farão parte de

uma determinada situação pelos positivos, antecipando os sintomas de ansiedade.

A terapia comportamental busca a modificação dos comportamentos

disfuncionais pela aquisição e aprendizagem de novos comportamentos. Wilson

(1999) explica que uma das técnicas utilizadas pela terapia comportamental é a

Page 62: Ansiedade Da Performance

59

dessensibilização sistemática que enfatiza a necessidade pela exposição

progressiva ao objeto de medo ao mesmo tempo mantendo um estado relaxado

(idem, p. 239).

Já a terapia cognitivo-comportamental, segundo Kenny, é:

Uma combinação de intervenções educativas e psicológicas que se baseiam na ideia de que a mudança dos padrões de pensamento negativo e os comportamentos pode ter um efeito poderoso sobre as emoções de uma pessoa, que por sua vez, pode alterar o comportamento das pessoas em situações em que as emoções negativas surgiram (KENNY, 2005, p. 185).

Outros métodos utilizados a fim de amenizar ou controlar os sintomas da

ansiedade na performance musical são a Técnica de Alexander, biofeedback,

hipnoterapia, além da farmacoterapia com as drogas chamadas ansiolíticas que

operam no centro emocional do cérebro reduzindo a aquisição e expressão das

respostas emocionais condicionadas (WILSON, 1999, p. 238).

A técnica de Alexander é um método que visa aumentar a consciência

corporal através da reeducação dos movimentos. A reeducação corporal e dos

movimentos é incentivada através exercícios que buscam a correção da postura

corporal com o correto posicionamento da cabeça em relação ao tronco bem como

na observação do trabalho muscular visando à realização de tarefas cotidianas com

o menor esforço possível. Embora a técnica não tenha sido elaborada com a

finalidade de diminuir diretamente a ansiedade na performance musical,

pesquisadores atestam sua efetividade no controle dos batimentos cardíacos, no

fortalecimento de uma atitude positiva na performance e no nível relatado de

ansiedade em músicos (VALENTINE, 2004 apud LEHMANN et al., 2007, p. 162).

O tratamento através de biofeedback é realizado através da utilização de

aparelhos eletrônicos que medem diversos parâmetros corporais - como batimentos

cardíacos, temperatura corporal, controle da pressão, volume respiratório, tensão

muscular, entre outros elementos - e que utilizados conjuntamente com estratégias

de relaxamento, tem apresentado resultados positivos no controle da ansiedade da

performance musical em (ibid.).

A hipnoterapia busca, através da técnica da hipnose, sugestionar estados

emocionais desejáveis no paciente. Trata-se de uma espécie de psicoterapia que

facilita a sugestão, a reeducação e a análise pessoal em busca de detalhes de

situações passadas (regressão de memória) que poderiam explicar suas

Page 63: Ansiedade Da Performance

60

dificuldades emocionais e/ou sociais do presente.

Os beta-bloqueadores são medicamentos que atuam no controle fisiológico

do organismo, diminuindo a ação da adrenalina na corrente sanguínea. Tem sido

utilizado por músicos profissionais, muitas vezes sem supervisão médica, no

controle da ansiedade na performance musical (STEPTOE, 2004, p. 302), embora

não se conheçam resultados físicos/ psíquicos/comportamentais em longo prazo do

uso recorrente de tais medicamentos. Utilização de uma droga medicamentosa,

dosagem excessiva, conjuntamente com redução na expressividade na performance

musical são indicadores negativos na utilização deste tratamento.

Estudos sobre a influência de se manter em boa condição física e com

hábitos saudáveis e a preparação para a performance tem sido pouco discutidos.

Greco e Ray (2004, apud RAY, 2009, 169) realizaram um estudo detalhista e

observaram que “os cantores e instrumentistas de sopro são os músicos mais

preocupados com os efeitos da alimentação em seu desempenho no palco”, mas

apenas na véspera da performance e não na aquisição de hábitos alimentares

saudáveis (STENCEL et al., 2012, p. 40).

Cabe ressaltar que várias alternativas estão disponíveis atualmente ao

intérprete para lidar com a ansiedade na performance musical: a utilização de

estratégias conjugadas com tratamentos específicos pode diminuir os efeitos

negativos da ansiedade. Por outro lado, também é necessário enfatizar que taxas

moderadas de ansiedade também apresentam efeitos benéficos na execução,

tornando a performance mais viva, verdadeira e real.

Cabe, pois, ao intérprete consciente de seu processo pessoal e embasado

em sua prática diária, buscar mecanismos que possam auxiliar no equilíbrio físico,

psíquico e emocional.

CONCLUSÕES

Ansiedade apresenta componentes psicológicos, fisiológicos e

comportamentais, sendo parte integrante e propulsora do desempenho humano.

Ansiedade pode estar presente em diferentes etapas da prática musical: da

preparação à performance, apresentando características diferenciadas do pânico de

palco. Estudar o fenômeno da ansiedade, suas causas, sintomas, estratégias e

tratamentos é vital para compreender uma parte importante da atividade à qual

Page 64: Ansiedade Da Performance

61

intérpretes musicais estão sujeitos. A performance musical pode ser influenciada

positivamente ou negativamente pela ansiedade e os sintomas podem variar

conforme a pessoa, a tarefa e a situação. O intérprete tem à sua disposição

diferentes possibilidades de tratamentos para minimizar a ansiedade, fazendo com

que sua performance possa atingir níveis mais elevados sem perdas de qualidade

decorrentes da ansiedade. Utilizar estratégias adequadas para lidar com a

ansiedade é fundamental para a estabilidade, equilíbrio físico, psíquico e emocional

do intérprete além de contribuir na melhora no desempenho musical performático.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABEL, J. L., LARKIN, K. T. 1990. Anticipation of performance among musicians: physiological arousal, confidence, and state anxiety. Psychology of Music, 18, 171-182.

ANDRADE, Laura Helena G. S., GORENSTEIN, Clarice. 1998. Aspectos Gerais da Escalas de Avaliação da Ansiedade. In: Revista de Psiquiatria Clínica. São Paulo, Universidade de São Paulo. Vol. 25, n. 06.

BROTONS, M. 1994. Effect of performing conditions on music performance anxiety, and performance quality. Jornal of Music Therapy, 31, 63-81.

CHAFFIN, Roger, LEMIEUX, Anthony. 2005. General Perspectives on Achieving Musical Excellence. In: WILLIAMON, Aaron (Org.) Musical Excellence – Strategies and techniques to enhance performance. New York: Oxford University Press, 19-39.

COX, W. J., KERNARDY. J. 1993. performance anxiety, social phobia, and setting effects in instrumental music students. Journal of Anxiety Disorders, 7, 49-60.

GOODE, Michael. 2003. Stage fright in music performance and its relationship to the unconscious. Oak Park, Illoinois: Trumpetworks Press.

GABRIELSSON, Alf. 1999. The performance of Music. In: DEUTSCH, Diana (Org.) The Psychology of Music. New York: Academic Press, 1999, 2ª Edição, 501-602.

GALVÃO, Afonso. 2006. Desenvolvimento Cognitivo – cognição, emoção e expertise musical. Brasília: Universidade de Brasília. In: Revista: Psicologia: Teoria e Pesquisa, Vol. 22 n. 2, 169-174.

HARDY, Lew; BEATIE, Stuart, WOODMAN, Tim. 2007. Anxiety-induced performance catastrophes: investigating effort required as an asymmetry factor. In: UK, British Journal of Psychology, 15–31.

JARROS, Rafaela B. 2011. Perfil Neuropsicológico de Adolescentes com Transtorno de Ansiedade. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Page 65: Ansiedade Da Performance

62

JORGENSEN, Harold. 2004. Strategies for Individual Practice. In Musical Excellence – Strategies and techniques to enhance performance, editado por Aaron Williamon. New York: Oxford University Press, 85-103.

KRAUS, Michael. 2001. Rightness and Reasons in Musical Interpretation. In The Interpretation of Music: philosophical essays. Michael Kraus (ed.), New York: Clarendon, 75-87.

KEMP, A. E. 1996. The musical temperament: Psychology and Personality of Musicians. New York: Oxford University Press, 108-120.

___________. 1999. Individual differences in musical behaviour. In The Social Psychology of Music, editado por David J. Hargreaves, Adrian C. North, Oxford: Oxford University Press, 25-45.

KENNY, Diana T. 2011. The Psychology of Music performance Anxiety, New York: Oxford University Press, 15-82.

_____________ , DAVIS, Pamela, OATES, Jenny. 2003. Music performance anxiety and occupational stress amongst opera chorus artists and their relationship with state and trait anxiety and perfectionism. Journal of Anxiety Disorders. 18:757-777. doi:10.1016/j.janxdis.2003.09.004

KINRYS, G., WYGANT, L. 2005. Transtornos de ansiedade em mulheres: gênero influencia o tratamento? Revista Brasileira de Psiquiatria, 27(supl II), S43-50.

LAZARUS, R. S. 1991. Emotion and adaptation. London: Oxford University Press.

LEBLANC, A., JIN, Y. C., OBERT, M., SIIVOLA, C. 1997. Effect of audience on music performance anxiety. Journal of Research in Music Education, 45, 480-486.

LEHMANN, Andreas; SLOBODA, Jonh; WOODY, Robert. Psychology for Musicians: understanding and acquiring the skills. New York: Oxford Press, 2007.

MARGIS, R., PICON, P., COSMER, A. SILVEIRA, R. 2003. Relação entre estressores, estresse e ansiedade. Rio Grande do Sul: Revista Psiquiátrica. 65-74.

MARSAHALL, Anne J. 2008. Perspectives about Musician´s Anxiety performance. MM diss, University of Pretoria.

NIELSEN, Siw. 1997. Self-regulation of learning strategies during practice: A case study of a church organ student preparing a musical work for performance. In: JORGENSEN, Harald. Does practice make perfect? Current history and research on instrumental music practice. 109-122. Oslo: GCS.

______________. 1999. Learning strategies in instrumental music practice, B. F. Music Ed. 16:3, 275-91.

PAREYSON, Luigi. 1989. Os problemas da estética. Traduzido por Maria Helena Garcez, 2ªed. São Paulo: Martins Fontes.

Page 66: Ansiedade Da Performance

63

RAY, Sonia. 2009. Considerações sobre o pânico de palco na preparação de uma performance musical. In: ILARI, Beatriz. ARAUJO, Roseane. C. (Org.). Mentes em Música. Curitiba: DeArtes – UFPR, 158-178.

REID, Stefan. 2004. Preparing for performance. In: RINK, John. Musical performance: A Guide to Understanding. Cambridge: Cambridge University Press, 102-112.

SLOBODA, John A. 1985. The musical mind: the cognitive psychology of music. Clarendon: Oxford University Press, p. 67.

SINICO, Andre; GUALDA, Fernando; WINTER, Leonardo. 2012. Coping Strategies for Music performance Anxiety: a study on flute players. In: Proceedings of the 12th International Conference of Music Perception and Cognition and 8th Triennial Conference of European Society for the Cognitive Science of Music, editado por E. Cambouropoulos; C. Tsougras; K. Pastiadis. 939-942. Thessaloniki, Greece: Aristotle University of Thessaloniki.

STENCEL, Ellen B., SOARES, Lineu F.; MORAES, Maria José C. 2012. Ansiedade na performance musical: aspectos emocionais e técnicos. In Anais do 8º Simpósio de Comunicações e Artes Musicais, editado por Maurício Dottori, Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, 37–46.

STEPTOE, Andrew. 2004. Negative Emotions in Music Making: The Problem of performance Anxiety. In Music Emotion, editado por Patrick N. Juslin, John A. Sloboda, New York: Oxford University Press, 291-307.

TOVILOVIC, S., NOVOVIC, Z., MIHIC, L., & JOVANOVIC, V. 2009. The role of trait anxiety in induction of state anxiety. Psihologija, 42 (4), 491-504.

VALENTINE, Elizabeth. 2004. The fear of performance. In Musical performance: A Guide to Understanding, editado por John Rink. Cambridge: Cambridge University Press, 168-182.

WILSON , Glenn D. 1999. performance anxiety. The Social Psychology of Music, editado por David J. Hargreaves, Adrian C. North. Oxford: Oxford University Press, 229-245.

________________, ROLAND, D. 2002. performance Anxiety. In: The Science and Psychology of Music performance: Creative Strategies for Teaching and Learning, editado por R. Parncutt & G.E. McPherson, Oxford: Oxford University Press.

WILLIAMON , Aaron. 2004. A guide to enhancing musical performance. In: Musical Excellence – Strategies and techniques to enhance performance, organizado por Aaron Williamon. New York: Oxford University Press, 3-18.

Page 67: Ansiedade Da Performance

64

Andre Sinico: Mestrando em Música, na Área de Práticas Interpretativas - Flauta pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul como bolsista CAPES, sob a orientação do Dr. Leonardo Winter. Graduou-se em Música - Flauta pela Universidade Estadual de Campinas, além de Licenciado pela Universidade Católica de Brasília. Foi Professor de Música de Câmara da Escola de Música de Brasília, Professor de Flauta no Conservatório Carlos Gomes de Campinas e Flautista da Orquestra Sinfônica Jovem de Campinas - UNICAMP. Como camerista se apresentou ao lado de Stefanie Freitas, Alvaro Henrique, Ivana Marija Vidovic, Christine Gustafson, André Vidal e Maria Teresa Madeira, tendo participado de masterclasses com renomados professores, entre eles: Keith Underwood, Michel Debost, Anders Ljungar-Chapelon, Michael Faust, Angela Jones-Reus, Jorge de la Vega, Michael Titt, Jed Wentz, entre outros. Teve como seus professores de flauta Sávio Araújo, Marcos Kiehl e Leonardo Winter.

Leonardo Loureiro Winter: Doutor em Execução Musical tem publicado artigos em revistas especializadas enfocando o repertório brasileiro para flauta, performance, musicologia e análise musical. Professor de flauta transversal, música de câmara e orientador do Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS (Mestrado e Doutorado), Leonardo atuou como solista com as Orquestras de Câmara do Teatro São Pedro (OCTSP), Orquestra de Câmara da ULBRA, Orquestra de Câmara Unisinos e Orquestra de Câmara de Blumenau bem como com as Orquestras Sinfônicas de Porto Alegre (OSPA), da Universidade Federal da Bahia (OSUFBA) e Orquestra Barroco na Bahia. Integrante da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre desde 1990, têm atuado como músico convidado de diversas orquestras. Vencedor de diversos concursos musicais estudou com os professores Drs. Lucas Robatto e Hans Hess tendo participado de masterclasses com renomados professores, entre eles: Félix Renggli, Auréle Nicolet, Emmanuel Pahud, Peter-Lukas Graff, Michael Faust entre outros. Como camerista tem atuado em recitais no Brasil, Argentina e Suíça em diferentes formações e na estréia de novas obras.

Page 68: Ansiedade Da Performance

Revista do Conservatório de Música da UFPel Pelotas, No.5, 2012 p. 65-97

His master’s voice: a voz do poder e o poder da voz

Catarina Leite Domenici (UFRGS - RS)

[email protected]

Resumo: Utilizando a voz como um tropo para a oralidade e o aspecto humano e social da performance musical, a autora analisa as idéias de fidelidade às intenções do compositor (Werktreue) e fidelidade ao texto (Texttreue) do ponto de vista do performer. A importância dessas ideias para o estabelecimento da ética modernista da performance musical é discutida através de textos de compositores e performers, enfocando o impacto da separação entre a escrita e a oralidade na performance musical. A colaboração entre compositores e intérpretes é tomada como ponto de partida para a proposta de uma ética dialógica da performance musical fundamentada na filosofia do dialogismo de Mikhail Bakhtin.

Palavras chave: filosofia da performance musical; relações compositor-intérprete; dialogismo.

His master’s voice: the voice of power and the power of the voice

Abstract: Using the voice as a trope for orality, and the human and social aspects of musical performance, the author investigates the ideas of fidelity to the composer’s intention (Werktreue), and fidelity to the text (Texttreue) from the point of view of the performer. The importance of those ideas for the establishment of modernist performance ethics is discussed through texts of performers and composers, focusing on the impact of the separation between text and orality on musical performance. The collaboration between composers and performers is taken as a point of departure for a proposal of a dialogical ethics for musical performance grounded on Mikhail Bakhtin’s philosophy of dialogue.

Keywords: philosophy of musical performance; composer-performer relations; dialogism.

INTRODUÇÃO

Dentre os sons que o ser humano é capaz de produzir, pode-se dizer que a

voz é a expressão do ser na sua inteireza. Desde os processos mecânicos da

respiração que põem em movimento o ar que vibra as pregas vocais à articulação do

pensamento expresso com uma determinada entonação, a voz identifica o falante

em seu aspecto corpóreo, ideológico e afetivo. Não é à toa que a voz é uma

freqüente metáfora antropomórfica para instituições (“a voz da igreja”), forças da

natureza (“a voz do vento”), entidades divinas (“a voz de Deus”) e movimentos

sociais (“a voz do povo”). A voz como metáfora para o ser, ancora-se na integridade

de um corpo carregado com sua afetividade, os sotaques por onde passou, seus

Page 69: Ansiedade Da Performance

66

juízos de valor, enfim, a sua história. A voz é a evidência de uma existência

inalienável no mundo. Contudo, o poder da voz só existe na alteridade. É na relação

com o outro que a sua autoridade lhe é outorgada. O poder da voz só se consuma

na resposta que ela incita de um outro. Se ela fala e encontra apenas o silêncio, é

uma voz calada. E se ela existe apenas a partir do silêncio da outra, é uma voz

autoritária.

A metáfora da voz sempre esteve presente na minha formação como pianista.

Com freqüência, ouvi de meus mestres que o intérprete deve ser o porta-voz do

compositor, ao mesmo tempo em que o artista deve “falar” com a sua própria voz. O

conflito entre essas posições evidencia um impasse ético: se permito tornar-me um

instrumento para a voz de outrem, renuncio à minha voz, mas se apenas a minha

voz é ouvida, ignoro o enunciado do outro. As duas posições representam posturas

conflitantes da performance musical – de um lado, o performer como meio

transparente para a voz do compositor, de outro, o virtuoso que utiliza a obra como

pretexto para a exibição pública1 – e revelam uma relação de antagonismo entre

composição e performance. Tal impasse amplia-se quando consideramos de um

lado, a centralidade do texto na música ocidental de concerto e, de outro, a força da

performance em uma arte sonora. A separação histórica entre composição e

performance fundou-se na crença no texto como sinônimo para a voz do compositor

para estabelecer uma relação assimétrica que privilegia a escrita em detrimento da

performance e da tradição oral. Mas seria o texto capaz de encapsular todos os

aspectos da voz? Seria a voz do compositor a única ouvida na performance? Se o

som é a essência da arte musical, como sustentar a relação vertical entre

composição e performance, escrita e oralidade, sem colocar em risco a existência da

própria música?

A colaboração entre compositores e intérpretes, uma prática comum na

música contemporânea nos últimos 60 anos, restabelece a contigüidade entre o

fenômeno sonoro e a notação. Contudo, foi apenas na última década que o assunto

começou a merecer a atenção de pesquisadores. A colaboração dialógica resgata os

aspectos social, material e humano da criação musical contribuindo para o que

Taruskin chamou de “projeto pós-moderno para a música” ao desmantelar os

deslocamentos transcendental e formalista efetuados nos séculos XIX e XX

(TARUSKIN, 1995, p. 17) que fundamentaram a ética modernista da performance

1 Lydia Goehr discute os dois ideais de performance em The Quest for Voice (1998, p. 132-173).

Page 70: Ansiedade Da Performance

67

musical. O objetivo deste artigo é discutir as bases filosóficas do ideal de fidelidade

ao texto, em confronto com as implicações práticas de uma arte sonora, e propor

uma ética dialógica fundamentada na antropologia filosófica de Mikahil Bakhtin.

1. AFINAL, DE QUEM É A VOZ?

A imagem de um cachorro atento sentado à frente de um gramofone com os

dizeres “His Master’s Voice”2 sugere a ideia de fidelidade e obediência à autoridade

da voz de um mestre, ao mesmo tempo em que aponta para o fato que essa voz é

incorpórea e mecanicamente reproduzida. Se a figura do mestre não é uma

presença visível, é pertinente perguntar de quem seria realmente essa voz. A

fidelidade ao texto é uma questão muito presente no cotidiano de intérpretes,

estudantes e professores de música. Qual de nós nunca ouviu de nossos mestres as

frases “o intérprete é o advogado do compositor” ou “tudo o que você precisa saber

está contido no texto”? O curioso é que esses mesmos mestres jamais conseguiram

explicar satisfatoriamente as discrepâncias, por vezes enormes, nas várias

interpretações consagradas de obras do repertório a não ser de forma vaga,

invocando a figura do “gênio”. Da mesma forma, nunca conseguiram justificar o seu

discurso frente à necessidade de recomendar que ouvíssemos gravações de obras

quando demonstrávamos falta de familiaridade com um determinado estilo. Desde

os meus anos de conservatório até o doutorado, intrigou-me tal descompasso entre

o discurso e a prática. Estava claro que o discurso assentava-se na ideia de uma

realidade preexistente fixada no texto e que a prática apontava para algo

essencialmente mutável que estava além da partitura. Na prática, a “voz do mestre”

traduzia-se na obediência aos cânones da interpretação do repertório da música

ocidental de concerto, mas, no discurso, a obediência era dirigida ao texto. Nesse

cenário, a voz do compositor era, em realidade, a polifonia das vozes dos

intérpretes.

Por quê, então, a duplicidade entre prática e discurso? A resposta mais direta

é que o paradigma tradicional da performance musical foi construído ao longo dos

últimos dois séculos por musicólogos, filósofos, teóricos e compositores3. Os

intérpretes, até o momento, simplesmente não participaram efetivamente dessa

2 Imagem emblema da gravadora RCA Victor.3 Para uma visão compreensiva ver GOEHR (2007) e TARUSKIN (1995).

Page 71: Ansiedade Da Performance

68

discussão. Com certeza, preferiram, e ainda preferem, tomar o seu tempo fazendo o

que realmente importa – música. O problema é que a teoria exerce poder sobre a

prática4 e é exatamente o poder do discurso instituído que levou a performance

musical à “vida dupla”: na esfera pública, proclama-se a fidelidade ao compositor; na

esfera privada, obediência à tradição oral5. O paradigma tradicional estabeleceu tal

grau de polarização entre composição/performance, notação/oralidade,

texto/contexto, musical/extramusical, que tornou arriscado, até poucos anos atrás,

sustentar publicamente uma posição que contemplasse simultaneamente a escrita e

a tradição oral sem prejuízo do autor ser tomado como um intérprete leviano ou

démodé6. Além do mais, a cultura da música ocidental de concerto empurrou para

fora de si toda e qualquer ideia de tradição oral, deixando esta para o jazz, a música

popular e outras tantas músicas mais antigas ou “exóticas”7. Na cultura ocidental, a

correspondência direta entre o domínio da escrita e o nível de cultura faz com que

qualquer intérprete estremeça ao contemplar uma admissão pública da centralidade

da oralidade para a sua arte, sob pena de ser taxado de inculto8. Aparentemente

estamos muito acostumados a essa vida dupla. Nem mesmo a vitória de Nobuyuki

Tsujii no concurso Van Cliburn em 2009, parece ter revelado o artificialismo dessa

polarização, ao colocar em cheque a centralidade do texto para a performance

musical. A premiação de um pianista cego de nascença, que aprende o repertório de

ouvido por considerar muito demorado o processo de ler uma partitura em braile,

parece não ter causado espanto algum a não ser pelo feito considerado

extraordinário9. Novamente invoca-se a figura do gênio, e novamente perde-se a

4 Para uma discussão sobre o poder que a teoria exerce sobre a prática que ela descreve, ver Borgdorff (2012).5 Richard Taruskin define tradição oral como “qualquer tradição que é fundada na escuta e na imitação. É a transmissão costumeira de performer para performer, a qual mantém repertórios musicais vivos” (TARUSKIN, 1995, p. 179). Incluem-se aqui performances, gravações e ensinamentos passados de professor a aluno através das gerações.6 Taruskin afirma que estamos acostumados a conceber a tradição ocidental da música de concerto como uma tradição letrada, nos esquecendo que ela sempre foi mediada pela tradição oral (TARUSKIN, 1995, p. 179). Comentando o ataque de Arthur Mendel na tradição oral, Taruskin comenta que “como tantos outros, Mendel representa ‘tradição’ como uma espécie de Nibelheim, habitado exclusivamente pelos estúpidos e complacentes.” (TARUSKIN, 1995, p. 186).7 Albert Cohen afirma ser a partitura a fundação da estética da musica ocidental, limitando a tradição oral à musica popular, ao jazz, à música de culturas não ocidentais, e à musica medieval ocidental. (COHEN, In: CHRISTENSEN, T. (Ed.), 2002, p. 534).8 Para uma discussão sobre a intolerância da “contaminação” da tradição oral na música de concerto no ambiente acadêmico, ver TARUSKIN, 1995, p. 173-197.9 O presidente do juri do concurso, Maestro John Giordano, declarou: "Ele é fantástico. Nós fechamos os olhos e é tão fenomenal que é difícil segurar as lágrimas. ... Nobu tocou a peça mais difícil de Beethoven [a Sonata Hammerklavier] impecavelmente. Para qualquer um, é extraordinário. Mas para um cego que aprende de ouvido, é formidável.” Disponível em: http://www.caller.com/news/2010/oct/07/japans-piano-superstar-will-play-with-corpus/. Acesso em

Page 72: Ansiedade Da Performance

69

oportunidade de perguntar de quem, afinal, era a voz.

2. HIS MASTER’S VOICE: WERKTREUE E TEXTTREUE - A VOZ DO PODER

Ao sugerir a abolição dos termos Werktreue e Texttreue do vocabulário,

Alfred Brendel indica uma distinção entre esses conceitos, onde o primeiro refere-se

à fidelidade às intenções do compositor, e o segundo, à fidelidade ao texto

(BRENDEL, 1991, p. 23). Se o conceito de obra musical (Work-Concept), segundo o

qual o intérprete deve obediência às intenções do compositor (Werktreue), tem a sua

origem no Romantismo (GOEHR, 2007), a crença e a fé cega (e surda) na partitura

enquanto reificação das intenções do compositor (Texttreue) é uma construção

modernista (TARUSKIN, 1995, p. 12). Em seu livro The Imaginary Museum of

Musical Works, Goehr localiza com muita precisão e clareza o estabelecimento da

relação hierárquica entre composição e performance na ideologia do conceito de

obra musical, a qual designa ao intérprete o papel de um meio transparente, cuja

voz deve ser neutralizada para que a voz do compositor seja ouvida. Já em 1865, o

teórico alemão Robert Zimmermann defendia fervorosamente a invisibilidade do

intérprete (e não apenas no sentido figurativo), afirmando que concertos de música

deveriam ser eventos puramente sonoros:

O efeito visual da performance não pertence à essência da obra. … É por esta razão que músicos de orquestra se apresentam apropriadamente em vestimentas simples; seria melhor que eles fossem invisíveis” (ZIMMERMANN apud GOEHR, 1998, p. 142).

Nada mais eloqüente do que a negação da presença física do intérprete e da

materialidade da performance para ilustrar o que Goehr denomina de deslocamento

transcendente (transcendent move), afastando-se do mundano e do particular em

direção ao espiritual e universal (GOEHR, 2007, p. 153). Ao cortar os laços com o

mundo, a música teria que necessariamente trazer o sentido de fora para dentro de

si, realizando um outro deslocamento - o deslocamento formalista (formalist move)

(GOEHR, 2007, p. 153). Juntos, esses deslocamentos isolam composição e

performance através do distanciamento entre o ideal e o mundano, a escrita e o

som, moldando a separação histórica entre essas disciplinas em uma relação

hierárquica.

11/11/2010.

Page 73: Ansiedade Da Performance

70

Herdada pelos Modernistas, a força reguladora dessa ideologia consolidou o

papel submisso do intérprete durante a primeira metade do século XX. O caráter

legislativo do modelo hierárquico e sua perpetuação ao longo e além do século

passado podem ser, pelo menos em parte, atribuídas à influência de compositores

centrais ao desenvolvimento da música naquele período: Arnold Schoenberg e Igor

Stravinsky. Schoenberg teria dito que “o performer, a despeito de sua intolerável

arrogância, é totalmente desnecessário, exceto pelo fato de que as suas

interpretações tornam a música compreensível para uma platéia cuja infelicidade é

não conseguir ler esta música impressa” (SCHOENBERG apud COOK, 2006, p. 5).

Para Stravinsky, a distinção entre execução e interpretação estaria no ato abnegado

da submissão ao que é comandado pela notação (execução), sendo que a

interpretação reside “na raiz de todos os erros, todos os pecados, todos os mal-

entendidos que se contrapõe entre a obra musical e o ouvinte” (STRAVINSKY apud

TARUSKIN, 1995, p. 361). Contudo, Schoenberg e Stravinsky não eram vozes

solitárias em defesa da hierarquia entre composição e performance, posto que seus

ideais refletem o Zeitgeist do início do século XX. Em 1911, Heinrich Schenker deu

início ao texto Die Kunst des Vortrags com o objetivo de propor “princípios gerais e

regras” para a performance10. O texto permaneceu em manuscrito inacabado até a

sua publicação na língua inglesa em 2000 com o título The Art of Performance. Nele,

Schenker expressa claramente o deslocamento transcendental apontado por Goehr.

Ao estabelecer uma separação rígida entre composição e performance, Schenker vê

o ato da performance como uma corrupção da obra:

Basicamente, a composição não requer uma performance para existir. Precisamente como um som imaginado se manifesta real para a mente, a leitura de uma partitura é suficiente para provar a existência da composição. A realização mecânica da obra de arte é, desta maneira, supérflua.

Uma vez que a performance ocorra, é necessário ter consciência que novos elementos são agregados à obra de arte completa: a natureza do instrumento que está sendo tocado; as propriedades do teatro, a sala, a platéia; o estado de humor do performer, técnica, et cetera. Se a composição precisa ser sagrada, mantida tal como era antes da performance, ela não pode ser comprometida por esses elementos (os quais, afinal de contas, são inteiramente estranhos à ela) (SCHENKER, 2000, p. 3).

Ao alocar a composição no território da mente e a performance na

materialidade do mundo, Schenker reproduz a separação mente/corpo, sendo que o 10 Informação disponível em http://mt.ccnmtl.columbia.edu/schenker/kunst_des_vortrags.html. Acesso em 18/07/2012.

Page 74: Ansiedade Da Performance

71

último destina-se meramente a servir à realização ainda que corrupta das

construções ideais. Tal qual a voz sobrenatural que “canta” através da cabeça

decapitada de Orfeu11, a composição no discurso de Schenker é a voz

descorporificada, onisciente e livre dos embaraços mundanos do credo modernista.

O dualismo espírito/matéria traz sérias implicações para o performer, posto que o

ideal da obra musical transcendente gera uma relação conflituosa entre a

inevitabilidade da presença física do performer e a tentativa de negação desta como

forma de atenuar o grau de profanação da “composição sagrada” na performance.

Ainda de acordo com essa visão, a obra pertence ao compositor, cabendo ao

performer uma função puramente mecânica para a realização da intenção de

outrem. Desta maneira, o corpo do performer é visto como máquina, sendo o alto

índice de lesões entre músicos o lamentável testemunho de uma ideologia anti-

humana, a qual possui uma semelhança perturbadora com o ritual da autoflagelação

para a expiação da culpa12.

No discurso de Schenker, o deslocamento formalista é realizado através da

reificação da notação:

O que deve ser considerado o evento mais derradeiro na performance de uma obra de arte musical é a visão geral do significado do modo de notação do compositor. Aquilo que é decretado na notação é considerado a inalterável vontade do compositor e deve ser interpretado literalmente (SCHENKER, 2000, p. 5).

É interessante acompanhar todo o raciocínio de Schenker ao longo das duas

páginas que compreendem o segundo capítulo do livro (Mode of Notation and

Performance) com vistas a observar o esforço do autor para centralizar o fenômeno

musical no texto reificado, expondo assim os pilares da ética modernista da

performance musical. Dando sequência à citação acima, Schenker aquiesce os

limites da notação13, e propõe-se a explicar a diferença entre a notação e o efeito

desejado pelo compositor através do exemplo da execução de uma sequência de

mínimas com a indicação marcato, concluindo que “uma interpretação literal subtrai

11 Metáfora utilizada por Carolyn Abbate para a música que tem sua origem fora do domínio humano (2001, p. 6).12 A ideia da performance musical como um ato de transcendência da matéria criou uma cultura de tolerância à dor. A crença na superação de dificuldades técnicas através de procedimentos dolorosos aponta para uma visão mecânica do corpo, corroborada pela alta incidência de lesões em instrumentistas, que pode variar de 26% até 93% segundo Guptil e Zaza (2010, p. 29).13 “Already the mere fact that our notation hardly represents more than neumes should lead the performer to search for the meaning behind the symbols” (SCHENKER, 2000, p. 6).

Page 75: Ansiedade Da Performance

72

os próprios meios que conduzem à realização do efeito” (SCHENKER, 2000, p. 6). A

aparente contradição é resolvida através da dissimulação (dissembling) na

performance:

O que quer que tenha sido feito – somado ou subtraído dos valores – o resultado final, voltando ao nosso exemplo, deve dar a impressão real de mínimas. Nessa questão reside o verdadeiro segredo da arte da performance: encontrar aqueles modos peculiares de dissimulação através dos quais – via o desvio do efeito – o modo de notação é realizado (SCHENKER, 2000, p. 6).

O deslocamento formalista proposto por Schenker transforma a performance

em uma “arte da dissimulação”. A sua proposta é clara: a performance deve realizar

o efeito sonoro intencionado pelo compositor ao mesmo tempo em que mantém uma

relação isomórfica com o texto. Através da distinção entre “efeito” e “notação”,

Schenker realiza o deslocamento do saber da prática de performance para o texto.

Ao ocultar no texto o conhecimento outrora manifesto na prática, Schenker confere-

lhe um caráter enigmático, passando este a ser “o verdadeiro segredo da arte da

performance”. Contudo, é patente o artificialismo desse deslocamento, posto que

qualquer performer profissional tem consciência da importância da oralidade para a

sua prática. Dessa maneira, instaura-se a “vida dupla” na performance musical: de

um lado, a esfera pública orientada pela obediência ao texto; de outro, a esfera

privada orientada pela obediência à tradição.

O próximo passo de sua argumentação implica em desqualificar textos

editados, sensibilizando o leitor para a necessidade de textos autênticos, baseados

em manuscritos e primeiras edições, preconizando a febre da “Urtext-ite” de meados

do século XX. Ao declarar “eu deveria praticamente dizer que há mais o que ser

admirado na notação do que na composição em si”, Schenker (2000, p. 6) acaba

também por desprezar o compositor, revelando-se um “fetichista do texto”14. Na

citação abaixo, o antropomorfismo utilizado por Schenker para descrever a

“manifestação corporificada” da obra musical sugere um ritual macabro, onde o

sacrifício da voz e da presença do performer no “altar da performance” confere vida

autônoma à obra musical15. E assim deve ser em um mundo onde objetos arrebatam

14 De acordo com Taruskin, o fetichista do texto é aquele que prefere exaltar o texto àqueles que o lêem ou escrevem (TARUSKIN, 1995, p. 187).15 Hegel descreve o performer de maneira semelhante, afirmando que “... o executante tem a obrigação de dar vida e alma para a obra da mesma maneira que o compositor ...” (HEGEL apud ABBATE, 2001, p. 197). A imagem é perturbadora ao sugerir que a existência da obra implica na subtração da vida e da alma, e por consequência da condição humana de ambos, performer e

Page 76: Ansiedade Da Performance

73

de seus criadores a vida. Um mundo onde o poder está no texto.

Através da realização exata do modo de notação claramente sentido e ponderado do mestre, pode-se atingir uma plasticidade da performance a qual praticamente permite que a peça manifeste-se corporeamente, em luz e sombra.

Contudo, em último sentido, todas as performances vem de dentro, não de fora. As peças respiram através de seus próprios pulmões; elas carregam sua própria corrente sanguinea – mesmo sem serem rotuladas com conceitos e nomes, como os leigos gostariam [...]” (SCHENKER, 2000, p. 6)

Os deslocamentos transcendental e formalista subsidiaram a ideia da obra

musical como objeto ideal livre das contingências humanas e materiais,

estabelecendo uma relação assimétrica entre composição e performance. O status

privilegiado do texto e o desejo pelo controle absoluto da performance chegou ao

seu ponto máximo sob a égide do modernismo. Mas como retirar o poder da

performance sem com isso sacrificar a música junto?

3. O SILÊNCIO ATERRADOR DA RUPTURA

Uma voz só tem poder quando há alguém que responda ou obedeça. O que

Taruskin chamou de “golpe na tradição oral” (TARUSKIN, 1995, p. 197), através do

deslocamento das práticas de performance para o texto, encontrou o silêncio. De um

lado, em um ato de revolta dos “nibelungos” contra os “deuses da vahalla”16, a

resposta à voz autoritária do modernismo foi o silêncio do afastamento entre

compositores e intérpretes, criando um descompasso entre composição e

performance, quando performers deixaram de tocar a música “do dia” preferindo

permanecer vinculados à música “de ontem”. De outro, o silêncio da tradição foi a

submissão ao ideal modernista ao transformar-se a si mesma em museologia17. O

compositor.16 Metáfora utilizada por Taruskin para performers e compositores, respectivamente (TARUSKIN, 1995, p. 10; 186-187).17 O caráter de “museologia” da tradição se evidencia no ensino conservatorial, desde o dogmatismo pedagógico até a centralidade do repertório do passado. O modo de organização desse repertório, seja nas academias de música ou em concursos tradicionais de instrumento, é muito semelhante à disposição de um museu: “a sala dos barrocos”, a “sala dos clássicos”, a “sala dos românticos”, etc. Para Leech-Wilkinson, tanto a gravação quanto a academia foram fundamentais na disciplina de performers. (Disponível em: http://www.charm.kcl.ac.uk/studies/chapters/chap2.html). Na academia, a ideologia da obra musical subsidiou o caráter normativo de estudos teóricos e musicológicos cujo objetivo era estabelecer critérios científicos para justificar uma performance “correta”. Para uma discussão sobre o assunto, ver ABBATE, 2001 e TARUSKIN, 2009, p. 30-36, “Why Do They All Hate Horowitz?”. Recentemente, os estudos de gravações reforçam a ideia da tradição como um texto a ser analisado (LEECH-WILKINSON, op. Cit; COOK, 2006), o que, por um lado, demonstra uma maior

Page 77: Ansiedade Da Performance

74

ideal de reprodução de um objeto reificado se viabiliza pela promessa da perfeição

contida no maquinismo. E quando máquinas falam, ninguém está realmente falando.

Abatte aponta que a evolução do discurso crítico associando performers à

autômatos foi concomitante à própria evolução dos autômatos, desde a invenção e

produção de brinquedos mecânicos no século dezoito, e sua “colisão com o

pensamento mecanicista sobre a natureza do corpo e da alma” (ABBATE, 2001, p.

194-196), passando pelo discurso de Hegel sobre a performance (ver nota 15), o

qual, ao colocar o performer como um instrumento, “declara o ser humano como um

objeto sem vida animado pela obra” (ABBATE, 2001, p. 197), até o século XX,

quando “o meio obediente de Hegel torna-se o ‘transmissor’ mecânico de Stravinsky

em uma filosofia severa da performance musical na qual automatismo e ausência de

vontade são virtudes.” (ABBATE, 2001, p. 197).

De acordo com Brendel, a implosão da tradição oral causou

A perda da auto-confiança (a qual) foi geralmente acompanhada por uma fé rígida na escritura. ... Arriscar-se – para o que necessita-se de auto-confiança – perdeu sua atração e relevância. A imagem da máquina em sua eficiência impassível ganhou poder sobre muitas mentes; a busca pela perfeição tornou-se uma obsessão (BRENDEL, 1991, p. 24).

A obediência à ideologia modernista acabou por reduzir a arte da

performance em ato mecânico de reprodução. O pianista Alan Feinberg comenta

que:

Uma das noções que surgiu entre os intérpretes na última parte do século XX , era que quando eles voltavam-se às performance do início do século diziam “isso não era bom, era muito pessoal, os intérpretes estavam usando a música para expressar a si próprios ao invés de deixar a música falar por si.” Mas deixar a música falar por si acabou por fundir-se à noção de que a música é isomórfica à sua imagem na partitura – quanto mais a performance soa exatamente como se apresenta na página, melhor. A verdade é que essa abordagem irá acabar produzindo mais e mais performances que são mais e mais semelhantes, menos individualizadas e, de fato, mais distantes da intenção original. ... Quando você percebe o passado como algo fechado, você acaba caindo em tradições secundárias e terciárias que são muito distantes das tradições originais. ... Uma de minhas analogias preferidas para essa situação é a preparação do chá utilizando o mesmo sachê para várias xícaras: o chá fica cada vez mais fraco (2009)18.

preocupação com o aspecto oral/aural da música, mas, por outro, pode tornar-se apenas mais um texto a requisitar a obediência e a fidelidade do intérprete, caso a postura passiva e submissa esperada do performer não seja reconsiderada.18 Entrevista não publicada concedida à autora em 25 de Março de 2009 na University at Buffalo (NY, EUA). Gravação em áudio.

Page 78: Ansiedade Da Performance

75

Ao consolidar a imagem do performer como executante mecânico, ao

mesmo tempo decodificador da partitura e replicador de cânones interpretativos, a

tradição acaba por criar uma fantasmagoria de si mesma ao silenciar a voz do

intérprete. O distanciamento histórico de uma tradição ‘original’ é inevitável.

Contudo, a marca da tradição oral é o movimento gerado pelas contribuições

individuais que a desestabilizam provocando uma reorganização que a mantém

viva19. Quando a tradição é tomada como objeto reificado, como no treinamento dos

conservatórios de música, ela adquire uma estabilidade que conduz à estagnação. O

pianista Robert Levin comenta que “o fato é que todos os músicos hoje [...] são

produtos de um sistema de treinamento conservatorial, o qual enfatiza a segurança

técnica sobre a imaginação, e o respeito absoluto à santidade do texto impresso

sobre a criatividade”20 (LEVIN, 1992, p. 221). Os conceitos de criatividade, liberdade

e risco foram excluídos da formação dos intérpretes, ficando apenas a idéia da

perfeição de uma reprodução fiel. Escrevendo sobre “os direitos do intérprete na

performance da música dos séculos 17 e 18”, Picherle chama a atenção para o fato

que

Esta música “antiga” é raramente trazida a nós com uma aparência de vida. Uma espécie de respeito frígido paraliza a maioria dos intérpretes que são aprisionados em pseudo-tradições, as quais os conservatórios transmitem com as melhores intenções, e que são fundadas em nada. Eu gostaria de propor dar de volta aos nossos performers a liberdade que seus predecessores gozaram no repertório de séculos passados, a qual era para eles ... moderna e não música refrigerada (PINCHERLE, 1958, p. 145).

Em seus cursos na Ecole Normale, Cortot alerta que “se queremos em uma

obra apenas sua forma e suas notas, façamo-la um objeto de museu. Ponhamos na

vitrine partituras às quais não tenhamos mais nada a indagar” (1986/1937, p. 171)21. 19 Para uma visão da tradição como prática mutável e temporal, ver BOWEN (1993).20 Em consonância com as colocações de Levin, Cecília Cavalieri França (2001) observa que “... esta abordagem [...] tende a enfatizar sobremaneira o desenvolvimento de habilidades técnicas de performance oferecendo pouca oportunidade para a exploração musical criativa e expressiva.” Disponível em: http://www.anppom.com.br/opus/data/issues/archive/7/files/Franca/. Acesso em 2/11/2010.21 No mesmo texto, Cortot alerta seus alunos para os perigos da abordagem impessoal da obra de arte, concluindo que em arte é o sentimento que importa, e não o formalismo (CORTOT, 1986/1937, p.171). Contudo, o formalismo viria a ser a ideologia dominante na música em meados do século XX. Bruner coloca que a revolução cognitiva trouxe consigo uma mudança de paradigma, da construção de sentido para o processamento da informação, chamando a atenção para o fato de que em sistemas computacionais a informação consiste de uma mensagem pré-codificada cujo sentido já está inscrito (BRUNER, 1990, p. 4). Os reflexos dessa mudança de paradigma são visíveis no discurso sobre a performance musical, onde a ideia da projeção da estrutura da obra adquiriu tal centralidade no discurso que acabou por suplantar a visão da performance como ato expressivo. Cook aponta que após a segunda guerra mundial, tanto a filosofia da música quanto a teoria

Page 79: Ansiedade Da Performance

76

Pincherle sugere que a paralisia dos performers foi influenciada pelos

desenvolvimentos da música e pelas necessidades do compositor contemporâneo, o

qual “expressa seu desejo, e nem sempre de maneira jocosa, que a performance de

suas obras seja inteiramente realizada, num futuro próximo, por agentes mecânicos,

marcando assim o fim do papel do intérprete” (PINCHERLE, 1958, p. 145-146).

A intolerância à realidade inescapável de variações na performance em

relação à notação musical fez com que compositores ansiassem resolver essa

questão unindo em um só objeto composição, notação e performance através da

musica eletrônica (BORETZ; CONE, 1976, p. viii). Em 1936, Edgard Varèse declara

que “tenho certeza que o tempo virá em que o compositor, após ter finalizado a

realização gráfica da partitura, irá ver essa partitura ser colocada automaticamente

em uma máquina que irá fielmente transmitir o conteúdo musical ao ouvinte”

(VARÈSE In: SCHWARTZ; CHILDS, 1967, p. 198). O desejo pelo controle absoluto

sobre a performance, finalmente possibilitado pelo desenvolvimento tecnológico no

século XX, acarretou um profundo afastamento entre compositores e intérpretes. O

afastamento pode ser interpretado de um lado, como repúdio à condição de serviçal

autômato, e de outro, como uma conseqüência do sentimento de alienação do

intérprete frente aos novos desenvolvimentos da notação, os quais, não sendo mais

mediados pela tradição oral, colocaram compositor e intérprete em um torre de

babel22. Para o compositor Charles Wuorinen, as dificuldades do performer frente à

notação contemporânea “são o resultado destes terem sido treinados em uma

tradição sem relevância aos requisitos da performance [da música nova]”

(WUORINEN In: BORETZ; CONE, 1976, p. 51). Já para o compositor Donald

Martino, as dúvidas e confusões em relação à notação são vinculadas à pluralidade

estilística e ao distanciamento entre compositor e intérprete (In: BORETZ; CONE,

1976, p. 102). O clima de desconfiança e hostilidade mútua, especialmente na

primeira metade do século XX, transparece no discurso de compositores da época.

passaram a ser regidas pelo conceito de estrutura, em detrimento do sentido (COOK, 2001, p. 174). Para uma discussão sobre a construção de sentido na performance musical ver DOMENICI (2012).22 O compositor Donald Martino observa que “em uma época na qual a performance não pode ser sempre supervisionada pelo compositor; quando tempo suficiente de ensaio não é economicamente viável; quando um verdadeiro rapport entre performer e compositor é, com raras exceções, uma memória histórica; quando tantas tradições de performance passadas e presentes existem – dentro das quais parece existir tanta confusão e ignorância; e quando há tantas atitudes composicionais passadas e presentes, e, dentro desta última, as simbologias associadas àquelas diversas tradições de performance são indiscriminadamente misturadas e aplicadas – em uma época como essa a nossa responsabilidade com a notação é maior do que nunca (MARTINO. In: BORETZ; CONE, 1976, p. 102).

Page 80: Ansiedade Da Performance

77

Virgil Thomson escreve em 1939 que:

há inegavelmente uma ruptura na sociedade. O executante [sic] e o compositor tem ciúmes um do outro. ... (o executante) recusa-se a ser tratado como um serviçal. ... Compositores, por outro lado, temendo serem cortados da comunicação com o mundo dos executantes, estão sempre correndo atrás destes, oferecendo-lhes elogios e implorando para tocar música de câmara com eles na esperança de absorver algumas dicas práticas sobre técnica instrumental (THOMSON In: SCHWARTZ; CHILDS, 1969, p. 174).

Da mesma maneira, Copland admite que “a verdade é que intérpretes não

estão pensando sobre o compositor de modo algum – quero dizer, o compositor vivo.

... Eles não estão interagindo o suficiente!” (COPLAND, 1952, p. 56-57). Lukas Foss

aborda a mesma questão, localizando o rompimento já na primeira década do século

XX. É interessante notar que o tema da “dissimulação” defendido por Schenker

como a verdadeira arte da performance, manifesta-se no comportamento social de

alguns intérpretes que “levam uma existência de Jekyll e Hyde”:

A metódica divisão de trabalho (eu escrevo, você toca) nos serviu bem, até que compositor e performer tornaram-se duas metades de uma minhoca separadas por uma faca, cada uma seguindo o seu caminho em oblívio.

Em torno de 1915, a composição retirou-se para o subterrâneo, deixando o campo para o performer e a música do passado. Que isto criou um estado estéril das coisas “sobre” o solo era perfeitamente claro para o virtuoso mais educado, o qual desde então tem tentado resolver o conflito, geralmente levando uma existência de Jekyll e Hyde por conta disso. Assim, Arthur Schnabel dava à sua platéia Beethoven e Schubert; o seu envolvimento ao longo da vida com Schoenberg foi mantido escrupulosamente privado (FOSS, 1963, p.45-46).

O descompasso entre composição e performance resultou em um profundo

sentimento de alienação social e musical. O primeiro transparece no discurso de

Milton Babbitt; o segundo é tratado por Leonard Stein na relação entre intérprete e

notação musical. Em seu artigo Who Cares if You Listen?, o qual, de acordo com

Babbitt poderia ser intitulado The Composer as Specialist, o autor vê-se como um

compositor em uma “condição de ‘isolamento’ musical e social” (BABBITT, 1969, p.

244), pois

o público em geral é largamente ignorante ou desinteressado na sua música. A maioria dos performers o isolam e ressentem. Consequentemente, a música é pouco tocada, e mesmo assim, em concerto com pouco público, onde a platéia consiste majoritariamente de colegas compositores.

Page 81: Ansiedade Da Performance

78

Na melhor das hipóteses, a música poderia ser vista como para, de e por especialistas (BABBITT In: SCHWARTZ; CHILDS, 1969, p. 174).

Em 1963, o pianista Leonard Stein, discípulo de Schoenberg, apresenta uma

visão semelhante quando cita os comentários de Pierre Boulez e Gyorgy Ligeti sobre

o elemento da escolha na Terceira Sonata de Boulez, obra que Stein considera

representativa da relação compositor-intérprete naquela época. Nos comentários, a

liberdade do intérprete frente à escolha indeterminada é vista como “isolamento” por

Boulez e como “sofrimento” por Ligeti23. Apesar de separados por quase quatro

décadas, Friedl (2002) ecoa o intérprete de música contemporânea confuso e

sobrecarregado descrito por Stein, que, frente à novas demandas técnicas e

notacionais, torna-se um sujeito ainda mais removido. A diferença reside na atitude

resignada, porém louvável, do intérprete de Stein que abraça a alienação e o

sofrimento, enquanto que Friedl denuncia a visão do intérprete como máquina,

alienado de seu próprio prazer, considerando o intérprete submisso um parceiro do

compositor em uma relação sado-masoquista.

A escrita como metáfora para a superioridade da música ocidental de

concerto encontra seu epítome no conceito de écriture de Pierre Boulez24, que

empregava o termo até mesmo quando a música não era notada, como no caso da

música eletrônica (TAYLOR, 2001, p. 59). A crença exacerbada na notação e o poder

conferido ao texto acabaram por colocar a música contemporânea em um impasse.

A pluralidade estética e estilística que marca a produção dos séculos XX e XXI foi

acompanhada por vários desenvolvimentos da notação musical. Ao negar a

mediação da tradição oral e tomar a mesma atitude de obediência estrita e

indiscriminada à todo e qualquer texto, cria-se o potencial para situações em que o

performer, ao almejar uma relação isomórfica entre o texto e a performance, incorra

em graves equívocos estéticos e estilísticos, como relatado pelo pianista Aloys

Kontarsky:

23 A relação entre o acaso (chance music) e a alienação do performer na música de John Cage é discutida por Taruskin (2010, p. 76), para o qual a autoridade do compositor sobre o performer é paradoxalmente magnificada.24 Para Boulez, écriture é uma “afirmação da autonomia dos símbolos musicais e da superioridade do pensamento sobre a matéria; é uma recusa a inclinar-se diante da chamada lei ‘natural’ da matéria e uma decisão de confiar na capacidade da écriture de determinar a consistência do material” (BOULEZ apud TAYLOR, 2001, p. 59). Taylor ainda esclarece que “Écriture, nos círculos da música contemporânea francesa, desenvolveu-se em um termo complexo que descreve não apenas a notação, ou mesmo uma atitude diante da notação, mas uma atitude compreensiva em relação à composição, sendo intimamente ligada à idéia de determinação” (TAYLOR, 2001, p. 59).

Page 82: Ansiedade Da Performance

79

Em 1962, um jovem veio ao meu seminário em Darmstadt e tocou December ’52 de Earle Brown. Ele sentou-se à frente da partitura quieto por um momento e então improvisou uma confusão desordenada de notas, clusters e figurações. Quando perguntei-lhe como tinha chegado ao que parecia uma sucessão de eventos sem sentido, ele respondeu que deixou-se inspirar pela imagem da página. Tentei sugerir métodos que se poderia utilizar para construir uma partitura para a performance da peça, tais como desenhar um pentagrama para fixar algumas alturas específicas, e discuti várias possibilidades de organização temporal. Mas ele rejeitou todas os meus estratagemas como truques furtivos e insistiu teimosamente em sua própria inspiração. … Para sugerir a aparência retilínea da imagem para o ouvinte, eu construi uma versão, a qual pode ser considerada como uma tradução musical do padrão gráfico da partitura. ... O argumento do jovem, à propósito, estava completamente de acordo com o espírito do compositor, o qual eu não conhecia naquela época e não podia supor devido à falta da página de instruções para a realização da peça. As instruções, assim como a performance da peça por um grupo de câmara em Darmstadt, indicavam que o design não deveria ser interpretado como um modelo para uma realização musical análoga, mas como estímulo para a improvisação do(s) performer(s), qualquer que fosse a forma. Então, a performance de Darmstadt incluiu trinados, glissandi, crescendi, sforzati, e todo o tipo de solo, os quais não poderiam ser derivados, nem com a melhor das intenções, do design insuficiente na página (KONTARSKY In: BORETZ; CONE, 1976, p. 188-189, grifo nosso).

Até mesmo um pianista especialista no repertório do século XX é passível de

incorrer em graves enganos ao tomar o texto de maneira autônoma, sem considerar

sua relação com o contexto de sua produção. O desenvolvimento de novas

linguagens musicais no século XX veio geralmente acompanhado por uma expansão

do vocabulário sonoro e, consequentemente, por novas técnicas de execução e

novos sistemas de notação, tornando imperativa a proximidade entre compositor e

intérprete, como ilustra a experiência do regente Brock McElheran. Convidado por

Lukas Foss para a estréia norte-americana de Momente de Karlheinz Stockhausen

com a Orquestra Filarmônica de Buffalo, McElheran relata que foi apenas a partir do

encontro com o compositor que conseguiu compreender o seu novo sistema de

notação (In: BORETZ; CONE, 1976, p. 90). Mesmo considerando os casos em que o

compositor utiliza-se do sistema de notação tradicional, a busca por uma

interpretação baseada exclusivamente no texto é uma fantasia formalista que ignora

a relação entre as nuances e a expressão pretendida pelo compositor, mesmo que o

compositor esteja atento à inclusão de sinais de expressão no texto, como é o caso

de Donald Martino, para o qual a interação com o intérprete nos ensaios é

fundamental (In: BORETZ; CONE, 1976, p. 106). A clarinetista norte-americana Jean

Kopperud relata a sua experiência em um ensaio na casa do compositor:

Page 83: Ansiedade Da Performance

80

Eu me lembro de estar no porão da casa de Martino tocando um peça para clarineta solo e ele repentinamente pulou da cadeira e disse “mais paixão, mais!”. Ele estava tão efusivo, tão excitado que era como se algo estivesse fervendo dentro dele. Meu queixo caiu, porque não é muita gente que gosta de exagero. ... Ele era tão vibrante e queria tudo com tamanho envolvimento – foi incrível. Don era muito atento à detalhes, mas ele era ainda mais apaixonado. (2009)25

A concepção mecanicista das relações compositor-intérprete imposta pelo

conceito de obra musical levou a uma separação entre escrita e oralidade, notação e

realização sonora e, por fim, à alienação do público. Para Taruskin, a

desumanização pregada pelo modernismo serviu-se dos avanços tecnológicos para

alienar a performance do contato com o público.

A ética modernista da performance, servindo à idealização da obra reificada e buscando manter a subjetividade ameaçadora do performer cerceada através do uso prescritivo de evidências de pesquisa, recebeu um grande reforço da tecnologia moderna. Em situações de gravação e broadcast, onde a presença física da audiência foi (ou pode ser) removida de cena, a audiência e qualquer responsabilidade que lhe é devida, podem ser esquecidas mais facilmente. ... A ilusão da desumanização é facilitada. Pode-se realmente acreditar que quando a performance é transferida para gravações “ninguém está falando” (TARUSKIN, 1995, p. 23).

A música na ótica modernista, a “transcendência em sua fase máxima”

(TARUSKIN, 1995, p. 23), é a voz de um deus que despreza a humanidade. Para

Abbate, o canto, assim como a fala, resiste o automatismo por implicar em uma

presença viva, cuja voz “fala suas próprias palavras” (ABBATE, 2001, p. 200-201).

Até recentemente essa premissa poderia servir à distinção entre o universo pop e o

“erudito”. Cantores pop sempre contaram com o benefício de “dar o seu recado”

através da sua própria voz, ao contrário de músicos eruditos que são vistos como

porta-vozes do compositor. O projeto DIVA mostrou que isso já não se aplica mais. A

criação de cantores virtuais, cuja voz é sintetizada pelo software Vocaloid, tomou o

mundo pop de assalto com uma cantora26 cuja voz não lhe pertence, não erra e não

padece das complicações inerentes à condição de estar vivo27. Se no mundo erudito,

o corpo do performer é um embaraço que macula a santidade da obra musical, bem

25 Entrevista não publicada concedida à autora em 16 de Março de 2009 na casa da Jean Kopperud em Clarence, NY. Gravação em áudio e vídeo.26 Texto sobre a criação da Diva holográfica Hatsune Miku disponível em: http://www.digitalmeetsculture.net/article/the-first-sound-of-the-future-hatsune-miku/27 Reportagem sobre o impacto da diva holográfica no mundo pop disponível em: http://www.latimesmagazine.com/2012/06/i-sing-the-body-electric.html/; reportagem da TV KTLA sobre o concerto da diva em Los Angeles disponível em http://www.youtube.com/watch?v=NharGdPvPa4.

Page 84: Ansiedade Da Performance

81

como a incômoda prova das limitações intrínsecas à existência humana, no projeto

DIVA, a voz sintetizada necessita de um corpo para manifestar-se em performance.

Mas esse corpo é uma projeção holográfica, uma casca, um fantasma que serve de

veículo para a voz de outrem. Paradoxalmente, o ideal modernista da performance

realiza-se na criação das cantoras holográficas. Nelas, a ética modernista de

controle absoluto da voz e do corpo do performer se concretiza. O silêncio aterrador

da ruptura evidencia-se na negação do outro, do aspecto eminentemente social da

música e no ideal da criação artística como desligamento da condição humana e da

vida.

No vácuo criado entre uma nova música que nega a tradição oral e os

recursos da “velha tradição” que já não correspondem aos novos anseios estéticos,

performers, tal qual Aarão no deserto, voltaram-se à idolatria dos deuses antigos,

transformando o repertório de prática comum e sua tradição em um “bezerro de

ouro” tão sagrado quanto a tábua dos dez mandamentos enviada pelo novo deus. A

ética modernista conferiu à tradição a estabilidade do texto, fazendo da performance

uma réplica obediente de modelos interpretativos. O silêncio após a vitória de

Noboyuki no Concurso Van Cliburn28 comprova a calcificação da tradição. E mais:

expôs o seu caráter normativo no silêncio da obediência que coíbe a possibilidade

de contribuições individuais para o seu próprio avanço e arejamento. A tradição

tornou-se uma prática “mofada”. O cachorro continua sentado, mas o gramofone

está mudo.

4. DIALOGISMO E POLIFONIA – O PODER DA VOZ

Apesar da considerável mudança de atitude em relação à performance

musical na última década, o impasse ético do performer persiste. As propostas

recentes de considerar a partitura como script (COOK, 2007), poema (SILVERMAN,

2007), ou estímulo para uma ação (COOK, 2005; CLARKE, 2006), contribuem para

uma visão da performance musical como ato de construção de sentido a partir da

interação com o texto. Para Clarke, “a partitura incita a performance; ela inicia um

processo de interação entre o performer, a página e o instrumento, onde a página

age como uma espécie de substituto do compositor” (CLARKE, 2006, p. 44). Na

28 Nos artigos e entrevistas que sucederam ao resultado do concurso, nenhum sequer questionou a discrepância entre o discurso de fidelidade às intenções do compositor (Werktreue) ou ao texto (Texttreueu) e o fato de Noboyuki tocar de ouvido.

Page 85: Ansiedade Da Performance

82

proposta de Silverman, baseada na teoria transacional de Rosenblatt, o sentido é

construído na interação entre performer e texto, sendo que “ao viver através dos

símbolos, o leitor-performer estético irá criar uma performance e um sentido único,

solitário e singular que existe apenas em um tempo e lugar específicos”

(SILVERMAN, 2007, p. 107). Ao não considerar a a oralidade, essas propostas

colocam o performer em uma situação solitária de criação artística, numa espécie de

“diálogo consigo mesmo” (HILLYER apud COOK, 2005).

A exposição às gravações e performances do repertório de prática comum e

a ênfase no texto criou a falsa noção que se pode prescindir da oralidade/auralidade

quando lemos uma partitura. Esquecemo-nos que o treinamento faz com que o

músico internalize a complexidade dos processos visuais, motores e auditivos que

são evocados na leitura da partitura e crie um sistema de correspondência

automática entre os símbolos da notação, os gestos necessários à sua realização e

o resultado sonoro29. A crença formalista na obra musical absoluta e no texto

totalizante criou uma espécie de linha de montagem na qual compositor e intérprete

podem prescindir do contato mútuo. Contudo, a pluralidade das linguagens musicais

a partir do século XX coloca-nos, talvez mais do que nunca, diante da diversidade de

estilos e práticas e da busca por novas linguagens musicais que resultam na criação

de novas técnicas instrumentais e vocais e, conseqüentemente, de novos sistemas

de notação. A dinâmica desse processo requer uma reaproximação entre

compositores e performers bem como um novo paradigma que considere as zonas

de contato compartilhadas. Nesse contexto, a notação musical e o som não são

vistos como fenômenos autônomos, mas entrelaçados à trama sócio-cultural da qual

a obra musical emerge como uma construção social30.

A escolha de Bakhtin como referencial teórico ocorreu em função da sua

antropologia filosófica31 que se fundamenta na simultaneidade do individual e do

coletivo através da interação dialógica, base para um agir ético-estético na vida e na

criação artística. Ao não considerar a arte em uma esfera removida da vida e do

mundo, Bakhtin parte do ato da comunicação verbal para elaborar a sua teoria,

unificando a voz e a letra32. No conceito de enunciado (utterance), Bakhtin contempla

simultaneamente os elementos lingüísticos e não-verbais da comunicação, bem 29 Grier (2012) apresenta uma visão semelhante desse processo. 30 Pretende-se nesta seção do artigo dar continuidade e contribuir para o argumento proposto por Bowen em seu artigo The History of Remembered Innovation (1993).31 Termo cunhado pelo próprio autor, de acordo com TODOROV, 1984, p. 94.32 BUBNOVA; BARONAS; TONELLI, 2011, p. 269-270.

Page 86: Ansiedade Da Performance

83

como o contexto da enunciação33. Um enunciado está sempre inserido em um

contexto social e é sempre o resultado de uma interação entre duas vozes, físicas

ou imaginárias. Todo enunciado dotado de significado possui uma entonação que é

sempre expressiva e portadora de uma avaliação social (DAHLET In: BRAIT, 2008,

p. 250-251). No pensamento bakhtiniano, a entonação tem sua origem no universo

acústico, estando ligada à voz e ao corpo de quem fala, bem como ao contexto

social do diálogo (ibid.).

Na música, a entonação é o aspecto sonoro do enunciado musical, não

podendo ser separada da intenção expressiva da voz/corpo que a produz. A

entonação carrega a história, a afetividade e a ideologia de um corpo situado. Tomar

um texto musical apenas pelos parâmetros fixos da notação sem considerar a

entonação é o equivalente a encapsular o elemento sintático da fala retirando-lhe a

semântica, o contexto e a voz de quem fala. Charles Seeger afirma que a notação

da música ocidental arroga-se um caráter prescritivo, onde

A ênfase está nas estruturas, principalmente alturas e métrica. (A notação) não nos informa sobre a conexão das estruturas. Ela não nos informa sobre como a música soa nem como sobre como fazê-la soar. Contudo, ninguém pode fazê-la soar como o escritor da notação tencionou a menos que se tenha, além do conhecimento da tradição da escrita, o conhecimento da tradição oral (ou melhor, aural) associada à ela [...] É para esta tradição aural que é deixada a maior parte do conhecimento do que “acontece entre as notas” (SEEGER, 1958, p. 186).

Da afirmação de Seeger infere-se que o espaço aberto entre as notas34 é o

lugar ocupado pela entonação, a qual só pode ser acessada através da mediação da

oralidade/auralidade. Nesse espaço, a dimensão mais característica da voz e do

estilo manifestam-se na realização sonora da “conexão das estruturas”. Quando o

repertório possui uma tradição oral consolidada, o intérprete recorre à performances

e gravações para acessar os limites e as possibilidades estilísticas para compor a

entonação da sua performance. Na música contemporânea, quando tradições de

performance ainda não estão estabelecidas, o contato com o compositor é crucial.

Para o performer, a interação permite acesso aos elementos estilísticos do

33 TODOROV, 1984, p. 41-42. 34 Esses espaços abertos são gerados pelos próprios limites da notação musical. Seeger se refere “o que acontece entre as notas” (SEEGER, 1958, p. 186). Roman Ingarden refere-se aos espaços abertos da notação que permitem diferentes realizações ou concretizações em performance (INGARDEN apud BOWEN, 1993, p. 148). Bowen propõe que esses espaços constituem-se no território das nuances – tudo o que não está determinado em valores absolutos pela notação musical tal como dinâmicas, rubato, fraseado, tempo, pedalização, etc. (BOWEN, 1993, p. 148-149).

Page 87: Ansiedade Da Performance

84

compositor que escapam à notação musical. Longe de resultar em um conjunto de

regras e instruções de caráter normativo para uma “performance correta”, a

interação cria um terreno de possibilidades interpretativas que oferecem resistência

à força centrípeta dos automatismos do próprio performer. Tais automatismos

conduzem à generalizações estilísticas, contra as quais a voz do compositor busca

afirmar-se através do que é único ao seu estilo. Mas de quem seriam a voz e o

estilo? Do performer? Do compositor? Na música contemporânea, a relação de

proximidade e cumplicidade entre compositores e intérpretes é expressa por Charles

Wuorinen, para quem “os melhores performers são aqueles que são amigos do

compositor porque estes são os que compreendem o que o compositor está

fazendo” (In: SCHWARTZ; CHILDS, 1967, p. 368). O encontro das vozes do

compositor e do performer ocorre no território compartilhado do enunciado musical,

nesse caso, a performance de uma obra trabalhada no contexto da colaboração.

Bakhtin propõe que a entonação de um enunciado emerge da interação entre três

atores: o locutor, o ouvinte e o objeto do enunciado, sendo a entonação “o ponto de

articulação, a mediação primeira entre esse três atores” (DAHLET In: BRAIT, 2008,

p. 251). Para Dahlet, a entonação do enunciado é um lugar de memória acústica e

social, posto que ambos são imbuídos de entonações sócio-culturais ao longo da

vida, bem como um lugar de encontro, pois a entonação do enunciado resulta da

interação entre as vozes (ibid.). Nesse encontro, ambos carregam consigo suas

respectivas visões de mundo, intenções expressivas, e repertórios de referências

sonoras. Na performance, a obra é entoada na voz do performer. Contudo, na

dinâmica dialógica, uma voz jamais é refratária à outra.

A ética bakhtiniana reconhece a singularidade e a pluralidade das

consciências no ato criativo, seja a criação do evento da minha vida ou a criação

artística e, a consumação é um ato estético de um agir com o outro. Da mesma

maneira que “o mundo necessita da minha alteridade para dar-lhe sentido, eu

preciso da autoridade dos outros para me definir ou autorar. O outro é, no sentido

mais profundo, meu amigo, porque é apenas a partir do outro que eu posso

apreender a mim mesmo” (CLARK; HOLQUIST, 1984, p. 65). Para Bakhtin, o ato

criativo contempla dois estágios: o primeiro é a empatia ou identificação35, e o

segundo é a exotopia36:

35 Todorov (1984, p. 99) traduz o primeiro estágio como empatia ou identificação. Holquist e Liapunov (1990, p. 25) traduzem como empatia ou “projetar a si mesmo no outro”.36 Todorov (1984, p. 99) propõe a palavra exotopia (exotopy) para significar a expressão “finding

Page 88: Ansiedade Da Performance

85

O primeiro momento na atividade estética é eu me projetar no outro e experimentar a sua vida de dentro dele: eu preciso experimentar, isto é, ver e saber o que o outro experimenta, colocar-me em seu lugar, de certo modo coincidir com ele. [...] Mas seria essa plenitude da fusão interna o fim último da atividade estética? [...] De maneira alguma: propriamente falando, a atividade estética nem começou. [...] A atividade estética se inicia propriamente apenas quando retornamos para nós, quando retornamos ao nosso lugar fora daquele que está sofrendo, pois apenas deste lugar o material derivado da minha projeção no outro pode ser consumado ética, cognitiva ou esteticamente (BAKHTIN, 1990, p. 25-26).

Desse encontro emerge um território compartilhado entre as vozes,

delimitado pelas possibilidades e restrições do lugar situado que ambos ocupam,

bem como pelo contexto social. Esse território, longe de ser um lugar fixo, muda de

acordo com os sujeitos envolvidos, o contexto e o momento histórico, posto que a

entonação “une o aspecto reproduzível [da linguagem] à situação social

irreproduzível naquilo que é dito. … [A entonação] confere a vida do momentum

histórico e a singularidade a tudo que é linguisticamente estável.” (CLARK;

HOLQUIST, 1984, p. 207). Desta maneira, um compositor que trabalha uma mesma

obra com diferentes intérpretes obtém performances distintas, cada uma iluminando

determinados ângulos do texto.

Dentre todos os aspectos da performance, Copland afirma que o compositor

preocupa-se acima de tudo com o caráter e a expressão (COPLAND, 1952, p. 48).

Na performance, a entonação consiste da maneira de realizar sonoramente os

espaços abertos da notação, constituindo-se no aspecto acústico, social e

expressivo do enunciado musical. A entonação de uma performance pode situar

estilisticamente uma obra, da mesma maneira que pode afetar diretamente a sua

identidade. Aaron Copland afirma que suas obras permitem várias interpretações,

contudo

estas devem conter a verdade estilística, ou seja, devem ser lidas dentro da moldura de referência que é verdadeira para o período do compositor e para sua personalidade individual. [...] Houve ocasiões em que eu ouvi performances de minhas obras e pensei: isto é muito bom, mas eu não me reconheço. Pode ser que a simplicidade folk que eu tencionei tenha escapado ao performer, ou que ele tenha subestimado o tom monumental da conclusão da peça, ou que ele tenha supervalorizado o elemento grotesco na seção do scherzo. [...] Gostaria que a nossa notação e nossas indicações de tempos e dinâmicas fossem exatas, mas a honestidade me compele a admitir que a partitura é apenas uma aproximação (COPLAND, 1952, p.49-50).

oneself outside”, tradução a palavra russa vnenakhodimost. Sobral (In: BRAIT, 2005, p. 109) utiliza o termo “posição exotópica”. Já Holquist e Liapunov (1990, p. 26) optam pelo termo “transgredient” na tradução para a língua inglesa.

Page 89: Ansiedade Da Performance

86

O que o Copland aponta como elementos relevantes ao seu estilo são de

fato características de uma determinada entonação, como “a simplicidade folk”, “o

tom monumental”, ou a supervalorização “do elemento grotesco”, a qual não foi

realizada em performance da maneira que o compositor intencionou, resultando em

um não reconhecimento do seu próprio estilo. A performance construída a partir da

interação dialógica, pressupõe a disponibilidade recíproca, como mostram os

depoimentos da flautista Sophie Cherrier sobre o seu trabalho com o compositor

Shuya Xu para a performance da peça Danse/Clairsemé,

Eu estava tocando a peça de maneira muito européia, muito francesa, com um som centrado, limpo e “perfeito”. Eu sentia que isso não estava certo, então eu trabalhei (a peça) com o compositor. Xu queria muito mais ar no som e acentos bem marcados. Ele cantou a expressão e eu reproduzi os sons (PERLOVE; CHERRIER, 1998, p. 52).

E do compositor Aaron Copland:

Pessoalmente eu sempre achei que os melhores intérpretes são aqueles mais dispostos a aceitar as sugestões do compositor. Similarmente, é através dos melhores intérpretes que o compositor pode aprender mais sobre o caráter da sua obra; aspectos que o compositor não tinha consciência que estavam lá, tempos que são mais lentos ou rápidos do que o compositor tinha imaginado eram os tempos corretos, fraseados que expressam melhor a curva natural da melodia. Aqui é onde a interação entre compositor e intérprete pode ser a mais produtiva (COPLAND, 1952, p. 49).

Para Brait, o estilo no pensamento bakhtiniano diferencia-se da concepção

subjetiva e exclusivamente pessoal do senso comum e da visão tradicional de estilo

ao localizar-se “na relação que se estabelece entre uma pessoa e seu grupo social”

(BRAIT, 2005, p. 83), constituindo-se em uma concepção dialógica de estilo. Em

suma, o conceito de estilo contempla ao mesmo tempo a dimensão individual e

social da voz.

As tonalidades dialógicas preenchem um enunciado e devemos levá-las em conta se quisermos compreender até o fim o estilo do enunciado. Pois nosso próprio pensamento – nos âmbitos da filosofia, das ciências, das artes – nasce e forma-se em interação e em luta com o pensamento alheio [...] (BAKHTIN apud BRAIT, 2005, p. 94).

A importância da voz do outro para a concretização de uma ideia é

defendida por Bakhtin, para quem

Page 90: Ansiedade Da Performance

87

O pensamento humano torna-se [...] uma idéia apenas na condição do contato vivido com o pensamento do outro, um pensamento corporificado na voz de um outro, isto é, na consciência do outro expressa em discurso. Nesse ponto de contato entre vozes-consciências a idéia nasce e vive (BAKHTIN, 1984, p. 88).

A criação de novas linguagens, estilos, técnicas de execução, sistemas de

notação e tradições de performance a partir da segunda metade do século XX foi

possibilitada pela associação entre compositores e performers (WUORINEN, 1967;

FOSS, 1963). A década de 60 viu a emergência dessas parcerias, por vezes

constituídas em grupos ao redor de um ou mais compositores, como o Group for

Contemporary Music, fundado em 1962 pelos compositores Charles Wuorinen e

Harvey Sollberger37, o Steve Reich Ensemble, fundado em 196638, o Philip Glass

Ensemble, fundado em 196739, ou em projetos institucionais, como o Creative

Associates idealizado e implementado pelo compositor Lukas Foss em Buffalo

durante os anos de 1964-198040. As décadas seguintes viram a emergência de

grupos dedicados à sustentar a produção contemporânea através da encomenda de

novas obras, performances, gravações e formação de platéia, como os grupos

Kronos Quartet41, Arditti Quartet42, New York New Music Ensemble43, Bang on a

Can44, e North/South Consonance45, entre outros. A colaboração entre performers e

compositores, o que Foss chama de “joint enterprise in new music” (1963, p. 46),

resgata a inter-relação entre a escrita e a oralidade em um contexto no qual

composição e performance influenciam-se mutuamente46. A dinâmica dialógica

desafia a conotação mecanicista da divisão de trabalho da era modernista para

37 Informação disponível em: http://www.charleswuorinen.com/.38 Informação disponível em: http://www.stevereich.com/.39 Informação disponível em: http://www.philipglass.com/bio.php.40 Informação disponível em: http://library.buffalo.edu/units/music/exhibits/june/.41 O quarteto foi fundado em 1973, e, através de sua organização sem fins lucrativos, o “Kronos Performing Arts Association”, subsidiou a criação de mais de 750 novas obras e arranjos para o quarteto. Informação disponível em: http://kronosquartet.org/about. 42 Fundado em 1974 pelo violinista Irvine Arditti. O grupo tem centenas de estreias e acredita que a colaboração com o compositor seja vital para a interpretação da música contemporânea. Informação disponível em: http://www.ownvoice.com/ardittiquartet/biography.htm.43 O ensemble foi fundado em 1976. Informação disponível em: http://www.nynme.org/about/about.htm.44 Fundado em 1987 pelos compositores David Lang, Júlia Wolfe e Michael Gordon, o grupo ocupa um lugar proeminente no cenário mundial no fomento e difusão da produção contemporânea. O grupo criou, em 1997, o “The People’s Commissioning Fund”, uma parceria inovadora entre artistas e público para subsidiar obras de jovens compositores. Informação disponível em: http://bangonacan.org/about_us.45 Fundado em 1980 pelo pianista e compositor Max Lifchitz. Informação disponível em: http://www.northsouthmusic.org/.46 Ver DOMENICI, 2010a e 2010b.

Page 91: Ansiedade Da Performance

88

fundar-se sobre uma relação de trocas entre sujeitos com treinamentos, habilidades

e visões específicas. Tal colaboração contribui para a desconstrução da noção da

obra musical como objeto ideal divorciado da prática e livre das influências

humanas, materiais e ecológicas, bem como para a desconstrução da ética

modernista ao apontar a emergência de um novo paradigma de relações como

alternativa à hierarquia tradicional entre composição e performance47.

A co-dependência entre escrita e oralidade e, entre compositores e

intérpretes, demanda do performer uma orientação ética e estética que considere a

sua relação com o outro. Ultrapassada a condição de autômato da ética modernista,

bem como a solidão de uma experiência estética calcada exclusivamente na

subjetividade, proponho um agir ético/estético fundamentado na filosofia de Mikhail

Bakhtin. Em Art and Answerability, Bakhtin questiona a separação entre a vida e a

arte, argumentando que estas só podem ser unidas na existência única de um

sujeito responsivo que tem o compromisso ético de responder pelos seus atos

(responsabilidade) e de responder ao outro (respondibilidade)48 (BAKHTIN, 1990, p.

1-2). Para Bakhtin, a separação entre a vida e arte é anti-ética, pois “eu tenho que

responder com a minha própria vida pelo que eu experimentei e compreendi na arte,

de forma que tudo o que experimentei e compreendi não se torne ineficaz na minha

vida” (1990, p. 1). Bakhtin reconhece que “arte e vida não são a mesma coisa, mas

precisam se tornar unidas em mim – na unidade da minha responsibilidade”

(BAKHTIN,1990, p. 2). O lugar e o tempo que ocupo no mundo determinam uma

existência única, e é através das respostas que dou aos outros e ao mundo que

construo o evento da minha vida. Desta maneira, a ética “não é um princípio

abstrato, mas o padrão dos atos que eu realizo no evento que é a minha vida.”

(CLARK; HOLQUIST, 1984, p. 64). Para Bakhtin, o sujeito cria a sua vida assim

como cria a arte. A preocupação de Bakhtin com um todo que une forma, conteúdo e

sentido é formulada em Author and Hero in Aesthetic Activity49. Utilizando as figuras

47 Nesse contexto, as idéias e intenções estão em constante interação com as possibilidades e as restrições do campo material da experiência. Para uma visão dessas interações na colaboração ver DOMENICI (2010b, 2011a, 2011b); MARINHO; CARVALHO (2012); BORÉM (1998). Em seu livro Beethoven al Piano, Chiantore (2010) contribui para a desconstrução do mito de Beethoven como compositor transcendente ao explorar a relevância para suas obras da sua relação com o seu corpo e o seu instrumento. Sobre esse mito, Foss coloca que o compositor contemporâneo deve abandonar a postura orgulhosa de Beethoven: Does he think I have his silly fiddle in mind when the spirit talks to me? (1963, p. 46).48 Adail Sobral argumenta em favor do termo “responsibilidade”. Para uma clarificação sobre as traduções para a língua portuguesa, ver SOBRAL (In: BRAIT, 2005, p. 20-21).49 Texto publicado em Art and Aswerability (1990).

Page 92: Ansiedade Da Performance

89

do autor e do herói como um tropo para a relação do sujeito com o outro, Bakhtin

propõe o conceito de arquitetônica, que se fundamenta nos lugares distintos que um

e outro ocupam, bem como na interdependência entre eles, posto que um nunca

está acabado sem o outro. Desta forma, a arquitetônica teoriza o processo de

construção de um todo articulado, considerando simultaneamente as categorias,

bem como as relações entre elas. É através da interação dialógica que ambos,

sujeito e outro, são consumados através do que Bakhtin chama de “excesso de

visão”, onde apenas a perspectiva do outro é capaz de ver o que não é acessível à

minha visão do lugar situado que ocupo e conferir-me um acabamento.

Através do conceito de arquitetônica é possível extrapolar o âmbito individual

da interação entre compositor e performer para contemplar também o âmbito social,

sendo que o treinamento e as habilidades específicas de cada uma das categorias

contém um “excesso de visão” em relação ao outro. É também possível propor que

na moldura da arquitetônica a obra musical seja considerada como um todo

articulado nas relações que se estabelecem entre o texto musical e o conjunto de

suas performances, em um ato metafórico de consumação entre escrita e oralidade.

Considerar a obra musical pelo viés da arquitetônica permite compreender a

natureza dinâmica das relações entre o texto e as práticas de performance ao longo

do tempo, bem como o seu caráter eminentemente social.

Arquitetônica, ou o processo de construção de um todo articulado através da

interação dialógica, situa-se no lugar axiológico ocupado pelo sujeito, onde a

situação do sujeito no seu tempo e espaço traz consigo valores e julgamentos

intrínsecos a essa condição (HOLQUIST, 2002, p. 152). Desta maneira, o performer

é um sujeito ativo que não renuncia ao compromisso social de agir situadamente,

interagindo com e respondendo ao outro. Nessa ótica, a performance musical torna-

se um ato de construção de sentido a partir de interações dialógicas com o

compositor vivo, com a tradição oral/aural (ensinamentos dos mestres,

performances, gravações), com o texto, com a ecologia (espaços, meios materiais e

instrumentos), com o corpo de conhecimento sobre música e com o público,

implicando sempre em escolhas responsíveis a partir do lugar situado do performer,

o qual participa da polifonia de atores que compõem uma determinada cultura 50.

Pensar cultura e, por conseqüência, a música dialogicamente é considerar a

50 Marshman (2012) oferece uma perspectiva dialógica semelhante para a performance musical do repertório de prática comum que engloba os aspectos materiais, sociais e corpóreos.

Page 93: Ansiedade Da Performance

90

simultaneidade do individual e do coletivo, onde o performer participa da cadeia

dialógica dando a próxima palavra.

A tradição, como apontou Bowen (1993), é um organismo vivo e mutável –

ela é a “história da inovação rememorada”. Na ótica dialógica da performance, a

tradição é uma polifonia de enunciados que ocupa, juntamente com o texto, a

posição do outro com o qual se dialoga. Para Bowen, a performance é o ponto focal

de uma relação recíproca entre a expressão individual e a identidade socialmente

construída da obra musical, onde o performer coloca-se entre “a força centrípeta de

outras performances e a força centrífuga dos espaços abertos” (BOWEN,1993, p.

168). A visão de Bowen da tradição como prática aberta e dinâmica encontra um

paralelo na visão dialógica de mundo de Bakhtin, quando o distanciamento histórico

do ponto de origem de uma tradição não se constitui em problema, posto que:

A relação entre texto e contexto paraleliza a relação entre self e outro não apenas na estrutura ecológica mas também nos valores associados a cada um dos pólos. Um self, ou um texto, jamais pode adquirir completa autonomia, contudo quanto menos determinado cada um é pelo ambiente local, mais livre está para viver e ter sentido em outros contextos, sendo que vida e sentido são equivalentes no pensamento de Bakhtin (CLARK, p. 210).

Bowen propõe que a partir de um grupo de primeiras performances uma

tradição oral é estabelecida (BOWEN, 1993, p. 162). Considerando a prática comum

da interação entre compositores e intérpretes na música contemporânea, podemos

propor que tanto o estilo quanto as práticas de performance emergem como uma

criação coletiva da interação entre as vozes. Desta maneira, a estréia de uma obra é

um primeiro enunciado, um ponto que potencialmente pode dar origem à uma

tradição. À medida que as vozes de outros intérpretes dialogam com o texto e com

as realizações prévias da obra, suas vozes somam-se às vozes de outros,

constituindo a polifonia de uma tradição que muda à medida que novos estilos de

performance surgem, e antigos se tornam evanescentes, mudando também a ideia

que se tem da obra musical.

A concepção da tradição do repertório do qual nos distanciamos

historicamente como um organismo vivo e mutável permite-nos dialogar com uma

criação coletiva que atravessa séculos. Na perspectiva dialógica, propõe-se que o

texto, e suas diferentes edições, seja considerado em conjunto com suas

performances, ensinamentos dos professores, bem como com o corpo de

Page 94: Ansiedade Da Performance

91

conhecimento produzido sobre os textos e as performances. Na interação dialógica

que se estabelece entre e condição situada do performer e os textos de diferentes

naturezas (a partitura, a história, a tradição oral, os textos analíticos e musicológicos,

por exemplo), a visão criativa do performer realiza-se na fricção entre a necessidade

artística de expressar a sua voz e a polifonia de uma determinada cultura. Na

natureza aberta e não acabada do dialogismo podemos pensar a performance como

um acabamento momentâneo, como uma resposta às perguntas que ainda nos

instigam e mobilizam. Olhando para o futuro, o estudo da produção da música

contemporânea permite-nos vislumbrar a gênese de obras musicais através da

investigação das interações entre compositores e intérpretes, considerando que

novos estilos e novas práticas de notação e performance são criadas nesses

contextos. A documentação e a reflexão sobre os processos criativos em conjunto

com os processos de transmissão e recepção de obras musicais podem contribuir

para a compreensão do fenômeno musical como uma construção social complexa,

constituindo-se em um contraponto aos estudos tradicionais centrados no texto.

A explosão estética e estilística do pós-modernismo não encontra suporte na

promessa do poder universal da escrita. O texto é o que Lévy chama de arca do

primeiro dilúvio: um objeto auto-suficiente, separado do contexto no qual foi

produzido, imbuído de uma universalidade totalizante (LÉVY, 1999, p. 15). Para o

autor, na era da cibercultura, apenas o dilúvio é universal. Para a música

contemporânea, apenas a polifonia é universal. As micro-comunidades que se

formam em torno da criação de um novo repertório, abrigando compositores,

intérpretes e seu publico são as arcas do segundo dilúvio, que “dançam entre si.

Trocam sinais. Fecundam-se mutuamente. Abrigam pequenas totalidades, mas sem

nenhuma pretensão ao universal” (LÉVY, 1999, p. 15). Essas micro-comunidades,

muitas vezes organizadas para a realização de projetos específicos, são unidas por

afinidades ideológicas, estéticas e, muitas vezes pelo afeto da amizade e do

companheirismo51. Desse contexto surge a necessidade de pesquisar o fenômeno

dessas “arcas” de várias perspectivas através de grupos de pesquisa que agreguem

e articulem o conhecimento de compositores, intérpretes, etnomusicólogos, filósofos

51 A relação de proximidade e cumplicidade é expressa no comentário do compositor Charles Wuorinen para quem “os melhores performers são aqueles que são amigos do compositor porque estes são os que compreendem o que o compositor está fazendo”. (In: SCHWARTZ; CHILDS (Eds.), 1967, p. 368). Se considerarmos a relação entre Brahms e Joachim, Clara e Robert Schumann, Messiaen e Yvonne Loriod, Luciano Berio e Cathy Berberian, e tantos outros, vemos que isso é um fato comum, mas muito pouco reconhecido e documentado (DOMENICI, 2010a).

Page 95: Ansiedade Da Performance

92

e teóricos da música. Na postura de um “Noé modesto”52 diante do dilúvio universal

porém não totalizante, as pesquisas geradas por tais grupos podem vir a constituir

um mosaico das diversas culturas musicais presentes no mundo contemporâneo.

Relembrando o poder que a teoria exerce sobre a prática que ela descreve,

é justamente através do estudo das práticas musicais contemporâneas que novas

maneiras de pensar o fenômeno musical e a performance desestabilizam o poder de

conceitos, noções e crenças, enfim, de todo o aparato ideológico de uma teoria que

acabou por calcificar a prática no século XX. Se a música contemporânea

sobreviveu à ruptura do século passado, foi, em grande parte, graças às

associações entre compositores e intérpretes. A falta de documentação dessas

colaborações e a total ausência de intérpretes nos textos sobre a história da música

recente são ainda a triste lembrança do descaso com a essência sonora da música

e a marca do poder que a ideologia exerce sobre a história escrita. E é essa história

escrita que, por sua vez, fundamenta como pensamos a prática, como ensinamos a

música e como pesquisamos a performance na academia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBATE, Carolyn. In Search of Opera. Princeton: Princeton University Press, 2001.

BABBITT, M. Who Cares if You Listen? In: Contemporary Composers on Contemporary Music. SCHWATZ, Elliott; CHILDS, Barney (Eds.). New York: Holt, Rinehart and Winston, 1967, p. 244-250.

BAKHTIN, Mikhail. Art and Aswerability. Michael Holquist (Ed.). Tradução de Vadim Liapunov. Austin: University of Texas Press, 1990.

________. Problems of Dostoevsky’s Poetics. Caryl Emerson (Editor e tradutor). Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984.

BORÉM, Fausto. Lucípheres de Eduardo Bértola: a colaboração compositor-performer e a escrita idiomática para contrabaixo. Revista OPUS, v. 5, n. 5, 1998, p. 48-75.

BORETZ, Benjamin; CONE, Edward T.(Ed.). Perspectives on Notation and Performance. New York: W.W. Norton Company, 1976.

BORGDORFF, Henk. The Conflict of the Faculties: Perspectives on Artistic Research and Academia. Amsterdan: Leiden University Press, 2012.

52 LÉVY, 1999, p.15.

Page 96: Ansiedade Da Performance

93

BOWEN, José. The History of Remembered Innovation: Tradition and Its Role in the Relationship between Musical Works and Their Performances. The Journal of Musicology. Vol. 11, n. 2, 1993, p. 139-173. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/764028. Acesso em 10/09/2008.

BRENDEL, A. Musical Thoughts & Afterthoughts. New York: The Noonday Press, 1991.

BRUNER, Jerome. Acts of Meaning. Cambridge: Harvard University Press, 1990.

BRAIT, Beth. Estilo. In: Bakhtin: Conceitos-Chave. BRAIT, Beth (Org.). São Paulo: Editora Contexto, 2005.

_______________. Bakhtin: dialogismo e construção de sentido. Segunda edição. Campinas: Editora Unicamp, 2008.

BUBNOVA, T. Voz, sentido e diálogo em Bakhtin. Versão para o português: Roberto Leiser Baronas e Fernanda Tonelli. Bakhtiniana. Vol. 6, n. 1, 2011, p. 268-280.

CAVALIERI FRANÇA, Cecília. A natureza da performance instrumental e sua avaliação no vestibular em música. Revista Opus, vol. 7, 2001. Disponível em: http://www.anppom.com.br/opus/data/issues/archive/7/files/Franca/. Acesso em 2/11/ 2010.

CHIANTORE, L. Beethoven al Piano. Barcelona: Nortesur, 2010.

CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Cambridge, Mass.: Belknap Press of Harvard University Press, 1984.

CLARKE, Eric. Making and Hearing Meaning in Performance. In: Nordisk Estetisk Tidskrift (The Nordic Journal of Aesthetics). Vol. 18, n. 33-34, 2006, p. 24-47. Disponível em: < http://ojs.statsbiblioteket.dk/index.php/nja/article/view/2831>. Acesso em 20/09/2010.

COHEN, A. Performance Theory. In: CHRISTENSEN, Thomas (ed.). The Cambridge History of Western Music Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p.534-553.

COOK, Nicholas. Theorizing Musical Meaning. Music Theory Spectrum. University of California Press on behalf of the Music Theory Society, vol. 23, n. 2, p. 170-195, 2001.

________. Entre o processo e o produto: música e/enquanto performance. (Fausto Borém, tradutor). Per Musi. Belo Horizonte: n. 14, p. 5-22, 2006.

________. Prompting Performance: Text, Script, and Analysis in Bryn Harrison’s être-temps. Music Theory Online. Society for Music Theory, vol. 11, n. 1, p.1-10, 2005.

COPLAND, A. Music and Imagination. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1952.

CORTOT, A. Curso de Interpretação. Recolhido e redigido por Jeanne Thieffry. Traduzido por Joel Bello Soares. Brasília: Editora Musimed, 1986.

Page 97: Ansiedade Da Performance

94

DAHLET, Véronique. A Entonação no Dialogismo Bakhtiniano. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: dialogismo e construção de sentido. Campinas: Editora Unicamp, 2008 (2ª edição). P. 249-264.

DOMENICI, Catarina. Além da Notação: relações compositor-intérprete nos séculos XX e XXI (Palestra). Anais do IX CCHLA Conhecimento em Debate. DVD, 60 minutos. João Pessoa: Universidade Federal da Paraiba, 2010a.

________. O Intérprete em colaboração com o Compositor: uma pesquisa autoetnográfica. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 20, 2010, Florianópolis. Anais do XX Congresso da ANPPOM. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, 2010b, p. 1142-1147.

________. O Pianista Expandido: Complexidade Técnica e Estilística na obra “Confini” de Paolo Cavallone. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 21, 2011, Uberlândia. Anais do XXI Congresso da ANPPOM. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2011a, p. 1197-1203.

________. Beyond Notation: the oral memory of Confini. In: PERFORMA’11, 5, 2011, Aveiro. Anais do Congresso Performa’11. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2011b, p. 1-14.

________. O Intérprete (re)situado: uma reflexão sobre construção de sentido e técnica na criação de “Intervenções para piano expandido, interfaces e imagens: Centenário John Cage”. Musica Hodie, Vol. 12 n. 1, 2012 (no prelo).

FOSS, L. The Changing Composer-Performer Relationship: a Monologue and a Dialogue. Perspectives of New Music. Vol. 1, n. 2, 1963, p. 45-53.

FRIEDL, R. Some Sadomasochistic Aspects of Musical Pleasure. Leonardo Music Journal. Vol. 12, 2002, p. 29-30.

GOEHR, Lydia. The Imaginary Museum of Musical Works. Oxford: Oxford University Press, 2007 (edição revisada).

________. The Quest for Voice: Music, Politics, and the Limits of Philosophy. Oxford; New York: Oxford University Press, 1998.

GRIER, James. Musical Literacy: A Historical Perspective. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PÓS-GRADUANDOS EM MÚSICA, 2, 2012, Rio de Janeiro. Anais do II SIMPOM. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2012, p. 89-101.

GUPTIL, C.; ZAZA, C. Injury Prevention: What Music Teachers Can Do. Music Educators Journal. June, 2010, p. 28-34. Disponível em: MENC - The National Association for Music Education DOI: 10.1177/0027432110370736 http://mej.sagepub.com. Acesso em Dezembro/2011.

HOLQUIST, Michael. Dialogism: Bakhtin and his world. New York: Taylor and Francis e-Library, 2002.

KONTARSKY, A. Notation for Piano. In: Perspectives on Notation and Performance.

Page 98: Ansiedade Da Performance

95

BORETZ, Benjamin; CONE, Edward T.(Ed.). New York: W.W. Norton Company, 1976, p. 187-206.

LEVIN, Robert. Improvised embellishments in Mozart’s keyboard music. Early Music. Vol. 20 n. 2, 1992, p.221-233.

LÉVY, P. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Segunda edição. São Paulo: Editora 34, 2003.

MARINHO, H.; CARVALHO, S. From Fortepiano to Modern Piano: A Case Study of a Performer-Composer Collaboration. In: Performer’s Voice Across Centuries and Cultures. MARSHMAN, Anne (Ed.). London: Imperial College Press, 2012, p. 177-189.

MARSHMAN, A. A Philosophy of the Performer’s Voice and Its Performance in Works by Mozart and Stravinsky. In: Performer’s Voice Across Centuries and Cultures. MARSHMAN, Anne (Ed.). London: Imperial College Press, 2012, p. 121-135.

MARTINO, D. Notation in General – Articulation in Particular. In: Perspectives on Notation and Performance. BORETZ, Benjamin; CONE, Edward T.(Ed.). New York: W.W. Norton Company, 1976, p. 102-113.

MAXFIELD, R. Composers, Performance and Publication. In: Contemporary Composers on Contemporary Music. SCHWATZ, Elliott; CHILDS, Barney (Eds.). New York: Holt, Rinehart and Winston, 1967, p. 350-354.

McELHERAN, B. Preparing Stockhausen’s Momente. In: Perspectives on Notation and Performance. BORETZ, Benjamin; CONE, Edward T.(Ed.). New York: W.W. Norton Company, 1976, p. 90-95.

PASCALL, R. Style. In: Grove Music Online. Disponível em: < http://www.oxfordmusiconline.com:80/subscriber/article/grove/music/27041. Acesso em 02/07/2012.

PERLOVE, N.; CHERRIER, S. Transmission, Interpretation, Collaboration – A Performer’s Perspective on the Language of Contemporary Music: An Interview with Sophie Sherrier. Perpsectives of New Music. Vol. 36, n. 1, 1998, p. 43-58.

PINCHERLE, M.; Cazeau I. On the Rights of the Interpreter in the Performance of 17th- and 18th-Century Music. The Musical Quarterly. Vol. 44, n. 2, 1958, p.145-166.

SCHENKER, Heinrich. The Art of Performance. Heribert Esser (Ed.) Tradução de Irene Schreier Scott. New York: Oxford University Press, 2000.

SCHWATZ, Elliott; CHILDS, Barney (Ed.). Contemporary Composers on Contemporary Music. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1967.

SEEGER, C. Prescriptive and Descriptive Music-Writing. The Musical Quarterly. Vol. 44, n. 2, 1958, p. 184-195.

SILVERMAN, M. Musical Interpretation: philosophical and practical issues. International Journal of Music Education. Vol. 25, n. 2, p. 101-117, 2007.

Page 99: Ansiedade Da Performance

96

SOBRAL, A. Ético e Estético – na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas. In: Bakhtin: Conceitos-Chave. BRAIT, Beth (Org.). São Paulo: Editora Contexto, 2005.

STEIN, L. The Performer’s Point of View. Perspectives of New Music. Vol. 1, n. 2, 1963, p. 62-71.

TARUSKIN, Richard. Text and Act: Essays on Music and Performace. New York: Oxford University Press, 1995.

________. The Danger of Music - and Other Anti-Utopian Essays. Berkeley; Los Angeles: University of Califórnia Press, 2009.

________. Music in the Late Twentieth Century. (The Oxford History of Western Music). New York: Oxford University Press, 2010.

TAYLOR, Timothy. Strange Sounds: Music, Technology and Culture. New York: Routledge, 2001.

TODOROV, Tzvetan. Mikhail Bakhtin: The Dialogical Principle. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984.

THOMSON, V. Life among the Natives or Musical Habits and Customs. In: Contemporary Composers on Contemporary Music. SCHWATZ, Elliott; CHILDS, Barney (Eds.). New York: Holt, Rinehart and Winston, 1967, p.171-181.

VARÈSE, E. The Liberation of Sound. In: Contemporary Composers on Contemporary Music. SCHWATZ, Elliott; CHILDS, Barney (Eds.). New York: Holt, Rinehart and Winston, 1967, p. 196-208.

WUORINEN, C. An Interview with Barney Childs, 1962. In: Contemporary Composers on Contemporary Music. SCHWATZ, Elliott; CHILDS, Barney (Eds.). New York: Holt, Rinehart and Winston, 1967, p. 368-375.

________. Notes on the Performance of Contemporary Music. In: Perspectives on Notation and Performance. BORETZ, Benjamin; CONE, Edward T.(Ed.). New York: W.W. Norton Company, 1976, p. 51-62.

Page 100: Ansiedade Da Performance

97

Catarina Domenici: Doutora (DMA) e Mestre (MM) em Performance e Literatura Pianistica pela Eastman School of Music, onde recebeu o Performers Certificate e o Prêmio Lizie Teege Mason de melhor pianista. Foi assistente de Rebecca Penneys durante o Doutorado e aluna de David Burge no Mestrado. É graduada em Musica (Piano) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), onde estudou com Beatriz Balzi e atuou como pianista do Grupo PIAP. É Professora de Piano da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Praticas Interpretativas do PPG-MUS. Sua pesquisa sobre interações entre compositores e intérpretes na música contemporanea, iniciada durante o pós-doutorado na University at Buffalo (2008-2009), tem sido apresentada em congressos internacionais (Second Meeting of the European Platform for Artistic Research in Music, Roma, 2012; CMPCPs Performance Studies Network International Conference, Cambridge, 2013; The Performers Voice Symposium, Cingapura, 2009, 2012; Performa11, Aveiro, 2011) e nacionais (ANPPOM 2010, 2011, 2012). Como pianista, tem colaborado intensamente com compositores brasileiros e estrangeiros em estréias e gravações de obras inéditas, tendo lançado varios CDs premiados com o repertório contemporâneo. É colaboradora interinstitucional do Núcleo de Música Contemporânea da UFPEL. Desde janeiro/2010 coordena o ensino de teclado no Curso de Licenciatura em Música a Distância da UFRGS. Foi professora no Chautauqua Music Festival (2006-2009), University at Buffalo (2007-2009), Eastman Community Music School (2006-2008), Nazareth Music College (2007) e Finger Lakes Community College (2006-2007). É membro fundador e a primeira presidente da Associação Brasileira de Performance Musical (ABRAPEM). Suas áreas de interesse são: filosofia da performance musical, colaboração compositor-intérprete, processos de construção da performance, música interativa, cognição musical.

Page 101: Ansiedade Da Performance

Revista do Conservatório de Música da UFPel Pelotas, No.5, 2012 p. 98-125

Considerações sobre a elaboração de um método de Piano para

Ensino Individual e Coletivo

Daniel Lemos(UFMA - MA)

[email protected]

Resumo: O presente trabalho visa a relatar procedimentos de elaboração e adoção de um método de Piano para prática individual, podendo ser adotado tanto em contexto de ensino individual quanto coletivo. O enfoque primário trata de metodologia didática adequada à disciplina Piano Complementar em contexto de ensino coletivo, podendo ser estendido à iniciação musical em instrumentos de teclado. Foi realizada uma consideração conceitual sobre ensino coletivo e individual, apresentando uma breve discussão sobre a história do ensino coletivo de Piano, bem como critérios e fundamentos para elaboração de métodos. A seguir, foi demonstrada a estruturação do método em questão, demonstrando alguns exemplos de atividades desenvolvidas e peças trabalhadas.

Palavras-chave: Performance Musical, Pedagogia do Piano, Método de Instrução Musical.

Considerations about a Piano method development for individual and group teaching

Abstract: The present work aims to explain development procedures from a Piano method for adoption in individual and group piano instruction classes. Primary methodology focuses on application for Complementary Piano pedagogical context, also capable of adopting other keyboard instruments. There is a brief review concerning individual and group teaching in Music, followed by the history of Group Piano Teaching based on Fisher (2010) and concepts and pedagogical foundations applied in specific Piano methods. Finally, development of exercises and presentation of theoretical concepts in Music along with repertoire performance in this method were shown.

Keywords: Music Performance, Piano Pedagogy, Musical Instruction Method.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, observa-se amplo desenvolvimento de metodologias

de ensino coletivo de instrumentos musicais, motivadas particularmente pelos novos

ideais pedagógicos da Educação Musical, área que tem se concentrado no ensino

musical voltado à Educação Básica, especialmente após a LDB nº 9.394/1996, com

o reforço atual da Lei nº 11.769/2008. A presença de ideais da Educação Musical no

ensino coletivo de instrumentos musicais são observadas em Tourinho (2008, p.1-4)

e Fisher (2010, p.51-53). São alguns destes:

Page 102: Ansiedade Da Performance

99

• O poder da Música como agente transformador do ser humano,

independente do nível de instrução técnico-musical;

• Acreditar que todos aprendem com todos, ou seja: aprendizagem

colaborativa;

• Planejamento das atividades voltado para o grupo: os participantes enfocam

• a importância do trabalho simultâneo e não no pensamento “solista”

tradicional;

• Desenvolvimento da autonomia musical e do poder de decisão;

• Maior aproveitamento da carga horária, ou seja: é possível ensinar mais

pessoas utilizando menor espaço de tempo.

Sendo assim, fica claro que o ensino coletivo é capaz de multiplicar o acesso

social à aprendizagem da Performance Musical de forma democrática, econômica,

motivadora e humana. Historicamente, este é o ambiente de aprendizagem musical

mais adequado para trabalhar com iniciantes, independentemente da faixa etária

(FISHER, 2010, p.19-20). Nesse sentido, o ensino individual para iniciantes falha,

pois geralmente parte do pressuposto que todos os alunos desejam seguir carreira

musical, levando tanto aluno quanto professor à desmotivação.

Por outro lado, é importante não se deixar “seduzir” pelos pontos positivos

do ensino coletivo, sendo fundamental analisar que metodologias são de fato

apropriadas a cada contexto de ensino e proposta de formação musical, pois o

ensino individual – ou tutorial – é mais adequado à formação profissional de

cantores e instrumentistas. Em relato de experiência didática realizada na Escola de

Música do Estado do Maranhão (EMEM), Cerqueira (2009a, p.39-40) afirma que a

substituição do ensino individual pelo coletivo só fora adequada em estágios iniciais

de aprendizagem. Fisher (2010, p.21-22) confirma esta ideia, afirmando que a

maioria dos professores de piano prefere adotar tanto ensino individual quanto

coletivo, aproveitando as vantagens de cada modo de instrução.

Diante desta discussão, surgiu a necessidade de adotar um método de

Piano que adotasse os aspectos positivos da instrução individual e coletiva. Gordon

(In: USZLER et al., 2000, p.269) afirma que a literatura de Pedagogia do Piano é

muito rica, mas que os métodos de instrumentos de teclado refletem ideologias de

sua época. Abaixo temos uma interessante observação:

Page 103: Ansiedade Da Performance

100

No passado, quanto o tempo parecia se mover mais vagarosamente, e que outras atividades – trabalhar, viajar, e por aí vai – requeriam maiores quantidades de tempo, a pedagogia naturalmente produziu processos de aprendizagem que requeriam enormes quantidades de tempo. (...) Charles Hanon, por exemplo, provavelmente considerava uma hora diária de estudos para seus exercícios um compromisso mínimo para adquirir competência. (GORDON In: USZLER, 2000, p.270)

É consenso que, nos dias de hoje, é fundamental haver um aproveitamento

eficiente do tempo, exigindo métodos de estudo voltados a esta finalidade. No caso

particular da Pedagogia do Piano – onde é costumeiro adotar métodos de séculos

anteriores – é desafiante pesquisar novas metodologias didáticas, tendo em vista

que o tradicionalismo em torno deste instrumento dificulta a adoção e divulgação de

novos ideais. Assim, foi necessário elaborar um método de Piano para adoção

específica em contexto de ensino coletivo, porém, sem as características da

interação em grupo presente em outros tipos de metodologia do ensino coletivo.

1. SOBRE ENSINO COLETIVO E ENSINO EM GRUPO

Define-se “ensino coletivo” como qualquer atividade didática que envolva

mais de um aluno. Dentre os vários exemplos deste modo de instrução, destaca-se

a master-class, assim caracterizada por Zorzal:

Podemos definir (...) master-class como um formato de ensino onde um aluno de instrumento musical executa uma obra previamente preparada para um professor de carreira reconhecida como intérprete no mesmo instrumento do aluno. A execução dessa obra ocorre perante um público que não interfere ativamente na performance, e aluno e professor não mantinham contato pessoal antes de a master-class ser ministrada. (ZORZAL, 2010, p.6-7)

Nesse sentido, a master-class se assemelha ao próprio ensino individual,

onde ocorre a exposição de ideias musicais conforme a apresentação momentânea

do aluno. A diferença se dá na qualidade pública desta performance que, além de

caracterizá-la como ensino coletivo, possui a finalidade paralela de trabalhar a

ansiedade na performance, problema conhecido da prática musical (CERQUEIRA,

2009c, p.121). Outra divergência – apontada por Zorzal (2010, p.8) – se dá no

caráter pontual da master-class: o professor avalia um momento específico no

desenvolvimento do aluno, com base na performance apresentada. Já no ensino

individual, é possível conhecer melhor o percurso musical do aluno, favorecendo

Page 104: Ansiedade Da Performance

101

uma avaliação mais ampla de suas competências. Todavia, em ambos os casos, se

trata de uma exposição dogmática de conceitos centrada na figura do professor – “o

professor sabe mais e mostra como se faz” (USZLER In: USZLER, 2000, p.256).

Com relação ao ensino em grupo, este se caracteriza pela interação entre os

alunos, que assumem participação ativa na atividade musical. Neste contexto, os

participantes trocam informações, analisam o repertório trabalhado e sugerem ideias

musicais, entre outros. Fisher (2010, p.51-63), ao mencionar a teoria da

Aprendizagem Colaborativa, enumera cinco elementos fundamentais que

caracterizam esta metodologia didática:

• Interdependência positiva: a responsabilidade do aprendizado passa a ser

do grupo, levando os atuantes a compreender que sem ajuda ao

desenvolvimento do colega, não será possível realizar a atividade proposta.

Assim, não se pensa em realizar a tarefa individualmente, pois somente o

grupo é capaz de concluí-la;

• Interação face-a-face: trata do diálogo que os atuantes fazem entre si para

propor ideias, sugerir soluções de problemas e tratar do desenvolvimento de

habilidades musicais. Esta interação contribui para trabalhar a inteligência

interpessoal – dentre as inteligências propostas por Gardner (GARDNER,

1993) – a auto-estima e, subsequentemente, a Ansiedade na performance,

que possui forte caráter psicológico;

• Responsabilidade individual: trata do compromisso que cada indivíduo

possui perante o grupo, estando consciente de sua postura colaborativa e de

busca pelo sucesso de todos para que a atividade tenha sucesso, não

pensando somente nos benefícios próprios;

• Habilidades Sociais: diz respeito à capacidade de trabalhar em grupo, ouvir

e propor novas ideias, relacionar-se com seus colegas e aceitar decisões em

conjunto, questões raramente desenvolvidas em ambientes de trabalho

individual;

• Desenvolvimento em grupo: trata da aquisição de conceitos e habilidades

em função da realização prática da atividade em questão. Permite verificar

naturalmente a apropriação de conceitos e habilidades, pois esta se faz em

função do contexto da atividade e não de forma “artificial” ou essencialmente

Page 105: Ansiedade Da Performance

102

teórica. Questão semelhante ocorre na apreensão da técnica instrumental,

trabalhando-a preferencialmente em situações reais no repertório ao invés

de adquiri-la através de exercícios.

Como exemplos práticos de ensino coletivo que adota características do

ensino em grupo no Brasil, há uma série de relatos, entre eles Cruvinel (2005) e

Dantas (2010) com Cordas, Tourinho (2008), Cerqueira e Ávila (2011) com Violão,

Paiva e Alexandre (2010) com Percussão, Nascimento (2006) e Silva (2009) com

Sopros, Ducatti (2005) e Cerqueira (2009b) com Piano. Dentre os contextos de

adoção, destacam-se a Educação Básica e os projetos sociais, reforçando a

adequação do ensino em grupo nestes ambientes graças especialmente a seu

caráter de integração e colaboração, além da viabilidade econômica.

Diante destas considerações, torna-se oportuno agora definir o contexto de

ensino coletivo para o qual foi elaborado o método em questão neste trabalho: trata-

se de um contexto onde habilidades e conceitos são apreendidos individualmente,

sem interação entre os colegas, da mesma forma como no ensino tutorial. Uma

ilustração típica deste ambiente é um laboratório de Teclados Eletrônicos com fones

de ouvido, onde vários alunos trabalham individualmente seu repertório no mesmo

espaço de tempo, permitindo-lhes trabalhar as situações técnico-musicais do

repertório com concentração, de forma eficaz. Neste ambiente, o professor

acompanha os trabalhos de cada aluno, mas por muito menos tempo que no ensino

individual. Dessa maneira, trata-se de um ambiente de ensino coletivo, mas não de

ensino em grupo, pois este último é caracterizado pela aprendizagem colaborativa.

Esta metodologia não é recente. Fisher (2010, p.3-7), ao tratar da História do

ensino coletivo de piano, menciona que no início do Século XX, as aulas de piano

foram incorporadas ao currículo da Educação Básica nos Estados Unidos, sendo o

ensino coletivo adotado como saída para o alto custo das aulas individuais. Em

1956, foi implementado na Universidade Estadual de Ball o primeiro laboratório de

Pianos Eletrônicos. Além de ser economicamente mais viável que a sala de Pianos

Acústicos, o laboratório permitia o controle da intensidade sonora, resolvendo o

problema da “poluição sonora” presente em salas com Pianos Acústicos. Ainda, os

Pianos Digitais da atualidade – quando interligados através do sistema MIDI –

oferecem recursos mais sofisticados. A seguir, Fisher apresenta uma visão geral

desta metodologia didática:

Page 106: Ansiedade Da Performance

103

Mesmo não sendo consenso absoluto, muitos professores encontram no laboratório de pianos digitais o ambiente ideal de ensino em grupo. Aqui, cada estudante fica em um instrumento, sendo este ligado ao console central do professor. À parte a vantagem óbvia dos instrumentos não exigirem afinação, o laboratório de pianos digitais moderno oferece diversas opções de instrução musical através dos fones de ouvido. Opções de grupos permitem ao professor organizar alunos em prática individual, pequenos grupos ou até mesmo toda a sala. Controles do laboratório permitem ao professor trabalhar com determinados grupos, enquanto outros grupos ou indivíduos mantém ininterruptamente suas atividades. A tecnologia facilita muito ensaios e discussões em grupo, apesar de que alguns professores concordam que o tempo destinado ao trabalho em fones de ouvido deve ser limitado, permitindo aos estudantes trabalhar sem fones para permitir as vantagens da interação em grupo. (FISHER, 2010, p.33)

Com a fundação de diversos cursos de Licenciatura em Música no Brasil

desde o início do Século XXI, este ambiente se tornou mais frequente no ensino de

piano – ou, de forma mais adequada, instrumentos de teclado – destes cursos

justamente por oferecer metodologias didáticas mais próximas da proposta de

formar profissionais para atuação no ensino de Música na Educação Básica.

Todavia, observa-se nos Estados Unidos um desenvolvimento muito particular das

diversas metodologias de piano que, no Brasil, se manteve quase que

exclusivamente sob os preceitos do ensino tradicional, voltando-se à formação de

pianistas solistas – mesmo não sendo este o objetivo do projeto político-pedagógico

do curso em questão. Esta problemática é compreensível se considerarmos a

restrita quantidade de métodos voltados especificamente ao ensino coletivo de

piano. Aqueles que se dedicam a tal proposta, geralmente possuem trechos com

acompanhamento a ser tocado pelo professor, requerendo então um ambiente de

ensino individual. Sendo assim, haverá a seguir uma breve consideração sobre

algumas estratégias para ensino de piano adotadas no país.

2. ALGUMAS METODOLOGIAS DE ENSINO DO PIANO

Historicamente, adota-se a nomenclatura “Piano” para as disciplinas de

ensino individual voltadas à formação de pianistas, tendo assim este instrumento

como objetivo principal do curso. Paralelamente, a metodologia denominada “Oficina

de Performance” – caracterizada como ensino coletivo em grupo – oferece subsídios

complementares a esta formação, permitindo abordar questões aprofundadas de

interpretação musical, técnica instrumental e interação em grupo, onde colegas

oferecem ideias ao executante (SILVA, 2008).

Page 107: Ansiedade Da Performance

104

Com relação a denominações comuns que definem a prática pianística como

objetivo paralelo da formação musical, temos os termos “Piano Complementar”,

“Piano Suplementar” ou até mesmo “Teclado Eletrônico”, consistindo na maioria das

vezes em aulas coletivas. Montandon afirma que uma problemática recorrente

nestas disciplinas é a “não distinção entre o ensino de piano enquanto instrumento

principal ou como instrumento auxiliar na formação do músico” (MONTANDON,

2001, p.105), adotando-se metodologia semelhante à prática do estudo tradicional,

baseada na execução memorizada de peças do repertório pianístico. Assim,

Montandon sugere adotar uma metodologia capaz de desenvolver habilidades

funcionais diversas como transposição, improvisação e leitura à primeira vista, por

exemplo. Esta abordagem oferecerá maior utilidade prática ao aluno em diversas

situações musicais, entre elas acompanhamento e aquecimento de corais, execução

de atividades de harmonia e contraponto, leitura de cifras e editoração musical

através de controladores MIDI (MONTANDON, 2001, p.107-108).

Corvisier, ao relatar sua experiência no ensino de Piano Complementar,

reforça a importância de diversificar as habilidades funcionais e “aliar técnica básica

à prática” (CORVISIER, 2008, p.191), somando harmonização aos tipos já

mencionados. Outro aspecto importante tratado pela autora é o perfil heterogêneo

de seus alunos, classificados em dois grupos:

• Licenciandos em Música que possuem o piano como instrumento principal e,

portanto, tem interesse maior em desenvolver suas habilidades pianísticas;

• Licenciandos em Música que possuem o Canto ou outro instrumento como

meio principal de performance, demonstrando interesse em habilidades

funcionais diversificadas.

Dessa forma, é ressaltada uma problemática corrente na disciplina Piano

Complementar: conciliar interesses musicais variados. Ainda, a autora reforça que

os licenciandos em Piano necessitam de conhecimentos pedagógicos específicos do

instrumento, não oferecidos nas Licenciaturas em Música por estas se voltarem a

metodologias de ensino na escola regular (CERQUEIRA, 2009b, p.129-130). Dessa

forma, Corvisier (2008, p.192-193) adicionou conteúdos de Pedagogia do Piano em

sua metodologia de Piano Complementar, contemplando análises de métodos de

Piano, bem como discussões e leitura de tratados sobre técnica e dedilhado, entre

Page 108: Ansiedade Da Performance

105

outros.

Albuquerque e Vieira, ao relatar a ministração do curso de extensão

“Musicalização através do Ensino de Teclado/Piano” (MECT), adiciona uma questão

à metodologia de ensino coletivo de piano: trabalhar a iniciação musical a partir do

instrumento. Segundo a autora, é práxis tradicional ensinar primeiro Teoria da

Música, introduzindo a prática instrumental somente após a familiarização com

elementos da partitura (ALBUQUERQUE; VIEIRA, 2010, p.1). Esta metodologia

apresenta um grave equívoco, pois não considera que a aprendizagem musical

consiste na apreensão de habilidades para, somente em seguida, apresentar o

conceito teórico associado. Sem a referência prática, ocorre a aprendizagem

descontextualizada deste conceito. Gordon reforça esta problemática:

À medida que os alunos escutam e executam uma vasta gama de trechos musicais, escutam também e executam entre si padrões tonais e rítmicos; em alguns casos, o professor estabelece a tonalidade ou a métrica e os alunos fazem a audição dos padrões nessa sintaxe. Outras vezes, os alunos assimilam os padrões numa tonalidade ou métrica que, seguidamente, eles próprios identificam, Outras vezes ainda, podem cantar, entoar, ou passar para padrões tonais ou rítmicos familiares, ou mesmo dar resposta a padrões que não lhes são familiares. Em breve, estarão a criar ou a improvisar padrões e até música da sua autoria. Só depois de um número suficiente de padrões lhe ser familiar, através da audição e da execução, é que os alunos passarão então a escrever e a ler em notação, padrões e formas musicais mais amplas. (GORDON, 2000, p.4-5)

Logo, o trabalho de iniciação musical deve ser cuidadosamente planejado,

pois a leitura musical deve funcionar como uma forma de registro das ideias

musicais apreendidas. No caso particular do ensino da Performance Musical, a

leitura é tradicionalmente associada à aprendizagem musical desde o Século XVIII,

quando surgiram os primeiros tratados de prática instrumental e vocal. Assim como

dito anteriormente, o contexto musical da atualidade é outro, sendo tais métodos

concebidos em época deveras distinta. Muitos dos padrões musicais presentes em

outras épocas não estão no repertório que ouvimos em nosso cotidiano, fazendo

com que a familiaridade com elementos da partitura necessitem da apreciação do

repertório de outros períodos.

Dentre outros aspectos enfatizados por Albuquerque e Vieira, destacam-se

os seguintes objetivos do MECT:

Page 109: Ansiedade Da Performance

106

• Promover o desenvolvimento da interação em grupo;

• Trabalhar a coletividade como fator necessário ao desenvolvimento

individual;

• Desenvolver a escuta musical, seja através da Percepção Musical ou da

Audição Crítica;

• Utilizar repetição e imitação como ferramentas para a improvisação.

Cabe aqui ressaltar como a repetição – como forma de familiarização a um

estilo musical qualquer – é trabalhada como ferramenta para a improvisação. Com

relação à improvisação, observa-se que os ideais de “criatividade” propagados

atualmente na Educação Musical subentendem a improvisação como um processo

totalmente livre e desconexo de repertório, estilos musicais, análise musical e

técnica instrumental. Todo processo criativo envolve necessariamente elementos da

linguagem pré-estabelecidos que devem ser (re)conhecidos. Sendo assim, criação é

a contribuição que um indivíduo faz ao meio, e sem conhecer este meio – baseado

nas criações de outros – não é possível criar. Voltando à repetição, Kaplan (1987,

p.76-77) reforça ser esta a alma do ensino instrumental, pois ela é a chave para se

apropriar da técnica instrumental, e quando mais habilidades forem apreendidas,

maiores os recursos disponíveis ao aluno no ato da improvisação e da criação.

Logo, técnica e ensino de instrumentos musicais – tanto coletivo quanto individual –

estão intimamente ligados.

Outra metodologia didática consiste na elaboração de arranjos como

ferramenta para o ensino coletivo em grupo, proposta por Cerqueira (2009b) e

Cerqueira e Ávila (2011). Esta atividade consiste na apreciação inicial do repertório

que se deseja trabalhar, utilizando em seguida a análise musical como ferramenta

para que se possa compreender elementos básicos da obra trabalhada – forma,

instrumentação, escalas utilizadas, discurso harmônico, etc. A leitura musical é

trabalhada como forma de orientar o trabalho, geralmente através de audiopartitura.

Em seguida, professor e alunos definem um elemento musical que servirá de base

para a elaboração do arranjo – melodia, harmonia, forma musical, etc. – podendo

realizar “analogias musicais” – representar a sonoridade original da obra com maior

fidelidade, assim como no conceito de transcrição – ou criar novas estruturas. Nesse

sentido, a improvisação é utilizada tanto no momento da performance (assim como

Page 110: Ansiedade Da Performance

107

no jazz) quanto na composição (ocorrendo experimentações até a definição de um

elemento permanente).

Durante o percurso desta atividade, surgem questões musicais envolvendo

técnica instrumental e elementos musicais trabalhados, sendo trabalhados de forma

prática e funcional. No final, os grupos mostram seus trabalhos, sendo comum

gravar a performance final dos arranjos em telefones celulares – atualmente, a

maioria deles é capaz de gravar vídeo e áudio com qualidade de captação razoável.

Com relação à elaboração de métodos para ensino do piano, reforça-se que

nos Estados Unidos, cursos de graduação em Pedagogia do Piano já oferecem

subsídios para organização de repertório, análise de métodos e composição de

pequenas peças didáticas. Os reflexos desta iniciativa universitária são visíveis,

considerando a quantidade de material didático disponível ao professor de piano na

língua inglesa.

Dentre os métodos mais utilizados recentemente neste país, “Piano

Adventures” (FABER; FABER, 2001) tem se destacado. Voltado ao público infantil,

este método é organizado em diversos livros com funções didáticas específicas. Há

os seguintes níveis de dificuldade: “primer level” (iniciação musical) e,

subsequentemente, os níveis 1, 2A, 2B, 3A, 3B, 4 e 5, cuja diferenciação se dá

principalmente em termos de complexidade rítmica e uso progressivo de uma maior

extensão do piano. Cada nível é dividido nos seguintes tipos de livros: Lições

(exercícios de teoria musical realizados com prática ao piano), Técnica (com ênfase

em questões de postura e estudo de mãos separadas), Performance (que consiste

na apresentação de repertório sem informações mais aprofundadas), Teoria

(baseado na realização de exercícios de leitura e apresentação de conceitos) e

Completo (que combina a ênfase de cada livro). É importante reforçar que todos os

livros abordam o conteúdo de forma transdisciplinar, oferecendo conceitos teóricos e

aplicação prática imediata. A diferenciação entre os tipos de livro diz respeito à

maneira de abordar o conteúdo, podendo o professor optar pela abordagem que lhe

é mais característica. Cabe ainda ressaltar que o método em questão se baseia no

modelo “dó central” (USZLER In: UZLER et al., 2000, p.4), abordagem que consiste

em iniciar o estudo a partir da região central do piano. Segundo a autora, esta é o

modelo de ensino do Piano mais comum.

Abaixo, apresentamos os três modelos de aprendizagem que guiam os

métodos de Piano segundo Uszler (In: USZLER et al., 2000, p.4-8):

Page 111: Ansiedade Da Performance

108

• Dó central: consiste no estudo de peças a partir da região média do piano,

tendo como referência o Dó central. Permite visualizar mais fácil o teclado do

piano e consolidar a leitura absoluta e transmitir quantidades menores de

informações, porém, pode produzir “falsas associações” como associar a

tecla Dó ao polegar, além de limitar o uso de toda a extensão do piano, fato

que leva o aluno a se posicionar com as mãos muito próximas ao corpo e

inibir uma sensação corporal de liberdade.

• Multiteclas: baseia-se o estudo com base na execução de estruturas fixas

com mais teclas como acordes, por exemplo (estudo em blocos). Este

modelo é bem utilizado para ensino do piano como instrumento funcional de

harmonização e transposição, permitindo explorar melhor a extensão do

piano. Todavia, o aluno fica limitado ao dedilhado fixo utilizado para tocar os

acordes. Ainda, cabe ressaltar que a prática de acordes não é adequada a

iniciantes, pois esta exige movimento de pulso e antebraço mais

conscientes, podendo limitar o uso do polegar em teclas pretas.

• Invervalar: concentra-se na leitura relativa, oferecendo contato com toda a

extensão do teclado logo nos primeiros momentos da aprendizagem,

permitindo ainda direcionar a atenção ao uso do dedilhado. Como o piano

possui a característica idiomática de utilizar somente teclas brancas em

peças sem acidentes, oferece uma excelente oportunidade para

aprendizagem da leitura relativa. Todavia, esta liberdade excessiva pode

trazer desconforto ao aluno, uma vez que fica sem referências para a leitura

e o estudo.

No Brasil, há iniciativas particulares com relação à elaboração de métodos

diferenciados, que utilizam não somente dos modelos supracitados, mas incluem

leitura de audiopartituras, uso da música contemporânea e aprendizagem inicial a

partir do Teclado Eletrônico, instrumento pertencente à família dos Instrumentos de

teclado, mas com características idiomáticas bem diferentes do piano. Na

atualidade, o Teclado Eletrônico oferece maior acessibilidade econômica imediata à

sociedade em geral. Pianistas costumam sentir desconforto ao trabalhar com o

ensino deste instrumento na Iniciação Musical, porém, sua adoção pode ser

estratégica, pois serve como etapa introdutória ao ensino de piano.

Page 112: Ansiedade Da Performance

109

Dentre os métodos elaborados no Brasil, destacam-se “Educação Musical

através do Teclado” (GONÇALVES; BARBOSA, 1985), baseado na iniciação musical

a partir de audiopartituras e uso do Teclado Eletrônico, “Piano Brincando”

(FONSECA; SANTIAGO, 1993), que consiste no ensino do piano a partir da música

contemporânea; “Iniciação ao Piano e Teclado” (ADOLFO, 1994), que apresenta

conceitos através do contato prático com estes instrumentos e suas características

idiomáticas, e “Educação Musical ao Teclado” (NAIR et al., 2002), cuja abordagem

se assemelha ao trabalho de Gonçalves e Barbosa.

É importante reforçar aqui o empenho destes autores em superar problemas

históricos do ensino de piano, entre eles a aprendizagem exclusivamente apoiada na

leitura de partituras, abordagem didática voltada somente à formação de pianistas

profissionais, estudo de teoria e técnica pianística de forma alheia a um contexto

musical, utilização de repertório fechado e desenvolvimento de habilidades úteis

somente ao perfil do pianista solista da Música de Concerto. Todavia, caso

observemos os programas de ensino e os projetos pedagógicos da maioria dos

cursos de Piano do país em nível técnico e superior, será destacada a adoção de

métodos baseados em estratégias didáticas do Século XIX, fato que demonstra o

restrito interesse dos professores de piano pela adoção de novas estratégias de

ensino. Vale ressaltar que disciplinas que tratam da apresentação e análise de

métodos e material didático ainda são uma distante realidade na maioria destes

cursos, mesmo sendo esta uma ferramenta fundamental para que os pianistas de

hoje se insiram na sociedade. O resultado deste distanciamento não poderia ser

outro: alto índice de reprovação e evasão nestes cursos, bem como a redução da

procura pelos mesmos, de forma semelhante ao caso descrito por Viegas (2006).

Em longo prazo, diminui o apoio à formação de pianistas, cortam-se investimentos e

cursos são fechados, dando razão à crítica usual que se faz sobre a área de

Performance Musical: a falta de iniciativa pela necessidade de se atualizar.

Assim, as diversas metodologias de ensino do piano e estratégias de

elaboração dos métodos contribuíram para nortear a construção do método objeto

deste trabalho. Os variados contextos e propostas de formação musical, a

problemática histórica acerca do ensino de piano e as características do material

didático disponível levaram à inserção estratégica de atividades peculiares no

método. Sendo assim, algumas das atividades desenvolvidas serão descritas a

seguir.

Page 113: Ansiedade Da Performance

110

3. CONSIDERAÇÕES SOBRE “PRINCÍPIOS EDUCACIONAIS DO PIANO”

3.1 CONTEXTO DE APLICAÇÃO

Primeiramente, é necessário mencionar que o método foi elaborado para as

disciplinas Piano Complementar I e II com carga horária de 45 horas cada, presente

nos dois primeiros semestres de um curso de Licenciatura em Música. Devido à

baixa carga horária, não é possível planejar uma continuidade de estudos mais

sólida, fato que exigiu um planejamento instrucional conciso e eficiente para o

método. Semestralmente, ingressam trinta alunos que passam por teste de

habilidades específicas. Todavia, crescentes pressões por parte da administração

universitária – bem como a inviabilidade em elaborar uma prova que exija

conhecimentos mais aprofundados, devido a questões regionais – levaram à adição

de uma seção de iniciação musical no método, a fim de se precaver de eventuais

problemas pedagógicos advindos da adoção unilateral de políticas públicas de

Educação brasileiras, característica da atual administração universitária.

Cada disciplina é dividida em duas fases. A primeira consiste na prática

individual, sendo necessário dividir a turma em três turnos de cinquenta minutos

cada, totalizando dez alunos por turno. É muito raro haver alunos que possuam ao

menos um teclado em casa, fazendo com que o momento da aula seja a única

oportunidade de estudo. Além disso, é necessário considerar o perfil extremamente

heterogêneo dos discentes, havendo aqueles possuem o piano como principal

instrumento, tecladistas familiarizados com a linguagem popular, alunos que tocam

outros instrumentos e até mesmo aqueles que nunca tocaram nenhum instrumento

ou leram partituras. Logo, o método precisa abarcar toda esta pluralidade de

experiências musicais – e até mesmo a sua falta.

Cabe, ainda, ressaltar que o instrumento utilizado é o Piano Digital, que

possui diferenças idiomáticas substanciais em relação ao Piano Acústico. Todavia,

acredita-se que o método deve contemplar características originais dos instrumentos

de teclado, contemplando as particularidades de todos. O percurso musical dos

alunos irá definir de fato o instrumento em que vão se especializar, sendo nosso

papel oferecer um subsídio elementar.

A segunda fase da mencionada disciplina consiste na elaboração de

arranjos, buscando explorar as habilidades apreendidas na primeira fase. Esta

Page 114: Ansiedade Da Performance

111

ordem foi assim decidida porque uma das grandes problemáticas do estudo

instrumental é justamente corrigir os vícios motores (KAPLAN, 1987, p.92-94). Caso

a elaboração de arranjos antecedesse o estudo individual, o pouco tempo da

disciplina seria gasto com reeducação motora. Assim, reitera-se que o método foi

elaborado para adoção na primeira fase da disciplina, uma vez que o trabalho de

elaboração de arranjos se baseia prioritariamente na transmissão oral de

informações, tomando proveito da instrução formal escrita previamente estabelecida.

3.2 ESTRUTURAÇÃO DO MÉTODO

O método possui três partes distintas, começando a partir da seção de

iniciação musical. Nesta parte, foi escolhida como aporte teórico a teoria do

Processamento de Informações, baseando-se em sua aplicação prática no ensino

de piano conforme descrita por Uszler (In: USZLER et al., 2000. p.235-237). Esta

teoria prevê que o cérebro humano recebe as informações de forma semelhante ao

computador, sendo fundamental observar que o ser humano – assim como o

computador – possui limitada capacidade de processar informações

simultaneamente, podendo captar somente o fluxo que estiver sob a concentração

(CERQUEIRA, 2009c, p.119-120). Tal fato justifica a importância de reduzir a

quantidade e a complexidade de informações no início da aprendizagem,

favorecendo assim a apreensão do conteúdo. Optou-se, então, por introduzir

progressivamente – e de forma cumulativa – os parâmetros musicais com base em

alguns dos exemplos de atividades descritos abaixo:

• Durações: conscientização sobre diferentes durações (curto e longo),

apropriação da eurritmia, atividades de pulsação inspiradas em som de

relógios analógicos, prática e conceito de andamento, prática e conceito de

durações medidas matematicamente através de suas relações de proporção

–“rítmica relativa”, leitura rítmica utilizando diferentes figuras rítmicas como

referência para o pulso, criação de estruturas rítmicas e leitura absoluta de

figuras rítmicas;

• Durações e intensidades: conscientização sobre contrastes de dinâmica

(ciente de que toda dinâmica é relativa) ao longo do tempo, observação das

diferentes intensidades de pulsos (ainda sem apresentar o conceito de

Page 115: Ansiedade Da Performance

112

métrica) – rítmica, leitura e ditado de dinâmicas a partir da voz e,

posteriormente, dos instrumentos de teclado, evidenciando as características

do controle de dinâmica nos mesmos;

• Alturas, durações e intensidades: conscientização sobre diferentes alturas

(grave e agudo), ditado melódico com duas alturas no agogô (grave e

agudo) com durações não medidas, criação melódica no agogô e

subsequente notação (é possível utilizar timbres do Teclado Eletrônico nesta

atividade), leitura relativa, leitura absoluta, ditado melódico com contrastes

de dinâmica.

O método utiliza tanto leitura de audiopartituras quanto notação tradicional,

bem como exemplos de áudio que acompanham exercícios de apreciação, com

base em atividades desenvolvidas no método “Exercícios de Teoria Musical – uma

abordagem prática” (LIMA; FIGUEIREDO, 2004). Cabe ainda salientar que há

atividades de criação com cada um dos conteúdos citados, complementando a

abordagem tradicional de ênfase em leitura e execução. Em algumas atividades, é

sugerida a realização com o Piano ou Teclado, podendo também utilizar voz, corpo

ou instrumentos de percussão. Ainda, houve a preocupação em apresentar

elementos visuais de forma clara e proporcional como, por exemplo, na

apresentação das proporções entre as figuras rítmicas. Por último, justifica-se a

ênfase nas atividades de durações porque, no caso específico do ensino de piano, a

leitura de alturas – no caso a resposta motora aos elementos visuais que

representam as alturas – pode ser trabalhada durante a leitura do repertório.

Seguem agora alguns exemplos de atividades presentes nesta seção do

método. O primeiro exercício (Ex. 1) consiste em uma leitura melódica – solfejo –

com diferentes alturas, mas sem tempo medido. Todavia, a partir da extensão das

linhas, o aluno poderá fazer diferenciações entre as durações:

Abaixo, temos um trecho musical com diferentes alturas e pausas para cada figura rítmica. Tente cantá-las ou tocá-las ao Piano utilizando três notas diferentes, mantendo as relações rítmicas e a representação dos sons graves, médios e agudos:

Ex. 1 – Leitura melódica (“solfejo”) em audiopartitura

Page 116: Ansiedade Da Performance

113

O exemplo seguinte (Ex. 2) consiste em uma atividade de criação. Aqui, é

possível escrever as durações de forma proporcional, caso o aluno ainda não

conheça as figuras rítmicas:

Tente improvisar um trecho musical utilizando três notas do Piano. Assim que achar uma melodia interessante, anote sua criação na pauta abaixo, escrevendo as figuras rítmicas nas linhas respectivas dos sons Grave (G), Médio (M) e Agudo (A):

Ex. 2 – Composição melódica

Na atividade abaixo (Ex. 3), o aluno já foi apresentado às figuras rítmicas.

Porém, trata-se de uma escrita espacializada – assim como em algumas Sequenze

de Luciano Berio – onde a leitura é feita de forma linear, sem uma métrica implícita:

A seguir, temos uma série de trechos rítmicos, precedidos pela figura de referência e o andamento sugerido. Ao realizá-los, imagine a pulsação, marcando-a antes de começar a leitura, se necessário. Porém, tente não marcar a pulsação durante a leitura dos trechos, imaginando-a apenas:

Ex. 3 – Leitura rítmica relativa com andamento

Abaixo (Ex. 4), há um exercício para treinamento da resposta visual ao

reconhecimento dos intervalos relativos (aqueles baseados em sua distância no

pentagrama: segundas, terças, quartas, etc.). Neste método, evita-se solfejar as

alturas com a voz, pois o aluno deve primeiro se familiarizar auditivamente com as

escalas para solfejar corretamente. Além disso, o Canto exige uma técnica vocal que

não é abordada neste momento, fazendo com que o solfejo não seja um aspecto

musical avaliável:

Page 117: Ansiedade Da Performance

114

Identifique os intervalos entre as notas abaixo, posicionando-os conforme as ligaduras:

Ex. 4 – Leitura relativa com intervalos

Por último, temos um solfejo de intensidades (Ex. 5) feito com a voz. O

professor pode, em seguida, atentar para a impossibilidade do piano em realizar

contrastes de dinâmica em um mesmo ataque, diferentemente do Canto, Violino ou

Trombone, por exemplo:

Abaixo, temos um trecho indicando diferentes intensidades. Tente reproduzi-lo com a voz, utilizando uma vogal como, por exemplo: á, ê, ó, u. Os apóstrofos ( ’ ) indicam pontos onde você pode respirar (respiração):

Ex. 5 – Leitura de intensidades

É importante mencionar que os conceitos teóricos foram apresentados de

forma planejada e associativa como, por exemplo: ao tratar de andamento, o aluno

precisa primeiro saber – teórica e musicalmente – o que é pulso. Assim, um conceito

deve necessariamente se relacionar a outro apreendido anteriormente, sendo esta a

forma mais eficiente de memorização. Segundo Sprenger (1999, p.49-50), o cérebro

armazena as informações por associação, relacionando-as com conceitos e/ou

experiências adquiridas anteriormente.

Outro aspecto importante foi definir a quantidade mínima de conceitos

teóricos necessária à iniciação da prática do repertório, evitando estender

demasiadamente a iniciação musical. Por exemplo: o conceito de métrica é

introduzido somente no estudo do repertório, bem como armaduras de clave e linhas

de fraseado. Assim, tem-se como objetivo adiantar o contato do aluno com o

instrumento. Logicamente, a apresentação de novos conceitos teóricos será

realizada de forma associada à prática pianística, caracterizando o método como

multidisciplinar e semelhante aos tratados para ensino de instrumentos de teclado

do Século XVIII, quando não havia ainda a fragmentação institucional do ensino

musical em disciplinas.

Page 118: Ansiedade Da Performance

115

A segunda parte do método consiste em uma exposição conceitual acerca

de diversos tópicos em Pedagogia do Piano como o conceito de técnica, rotina de

estudos, vícios motores, talento, Ansiedade na performance, escolha de repertório,

idade para iniciar o estudo e tamanho das mãos, entre outros. Apesar de não haver

citações no corpo do texto devido à finalidade didática do mesmo, os conceitos

apresentados se baseiam em pesquisas de autores como José Alberto Kaplan,

Stewart Gordon, Marienne Uszler, Aaron Williamon e John Sloboda, entre outros. A

principal referência estruturante para esta seção é o método Fundamentals of Piano

Practice (CHANG, 2010). Neste método publicado em meio digital, o autor foca

predominantemente em orientações sobre a rotina de estudo e em como o cérebro

apreende as informações musicais, afirmando que qualquer repertório pode ser

estudado caso sejam observadas estas questões. Trata-se de uma característica

consideravelmente distinta para com os métodos tradicionais, que abordam o estudo

instrumental quase que exclusivamente a partir de composições próprias em níveis

progressivos de dificuldade, sem instruções mais aprofundadas sobre como praticar

tais peças. Sendo assim, esta seção do método se mostrou bastante esclarecedora,

pois os alunos ficam mais conscientes sobre a importância de entender como o

corpo funciona, que hábitos de estudo são mais saudáveis e – principalmente –

como praticar tendo estas informações em mente, consolidando assim uma rotina de

estudos adequada. Ainda, vale reforçar que diversos dos assuntos tratados podem

ser aplicados à Pedagogia da Performance Musical em geral, fato reforçado por

alunos que tocam outros instrumentos e obtiveram particular interesse neste

conteúdo.

A terceira parte consiste no estudo de repertório composto segundo

situações técnico-musicais progressivas, sendo iniciada por uma explicação sobre

postura ao piano. Cada peça vem acompanhada de quatro pequenos textos,

abordando os seguintes aspectos:

• Análise: aborda brevemente questões de forma e elementos musicais

indicados na partitura, explicando novos conceitos teóricos caso seja

necessário;

• Técnica: trata de questões relativas ao dedilhado e à prática pianística

presentes na peça em questão, com ilustrações em casos específicos;

Page 119: Ansiedade Da Performance

116

• Estudo: oferece sugestões de como estudar a peça, tendo em mente

questões de análise – especialmente forma musical – e técnica;

• Repertório: indica peças de outros métodos que podem ser estudadas da

mesma forma que a peça em questão, a partir de uma análise de sua forma,

estruturas musicais e demanda técnica exigida. Assim, é possível diversificar

os estilos musicais contemplados, adotando repertório já existente com base

nas premissas pedagógicas do método.

Um aspecto fundamental a ser observado diz respeito à redação destes

textos. Além de serem sucintos, considera-se importante tratar dos aspectos técnico-

musicais como sugestões e conselhos, procurando explicar todos os aspectos da

prática musical e evitar um discurso autoritário com base em regras. Uszler (In:

USZLER et al., 2000, p. 256) afirma que o ensino de piano é conhecido por possuir

um caráter autoritário, pois muitos professores ainda acreditam ser este o modelo

didático ideal. Um exemplo recorrente é mencionado por Uszler (In: USZLER et al.,

2000, p.244-251), ao tratar sobre duas formas de ensinar escalas no piano:

• A primeira forma consiste em adquirir um livro de exercícios com os

dedilhados pronto das escalas maiores e menores, pedindo para que o aluno

os estude até memorizá-los. Aqui, o papel do aluno é simplesmente seguir

instruções, sem analisar se o aluno compreendeu o processo que levou à

definição dos dedilhados. Logo, a tendência é tornar o aluno dependente de

instruções a serem seguidas, pois sua capacidade de raciocínio crítico não

foi suscitada;

• A segunda forma é mostrar ao aluno a lógica de construção de uma escala

maior ou menor, cuja repetição ocorre a cada sequência de sete notas. O

professor, então, leva o aluno a definir um dedilhado onde a mesma

digitação seja repetida nas próximas oitavas, guiando-o até o fim do

processo. Aqui, o aluno compreende como se dá a escolha dos dedilhados,

suscitando sua capacidade de reflexão crítica e autoconfiança.

Considerando a importância da informação visual no ensino da Performance

Musical (FISHER, 2010, p.39-40) – complementando o texto – foram adotadas

Page 120: Ansiedade Da Performance

117

ilustrações em pontos estratégicos do método, especialmente no tópico “Técnica”.

São abordadas questões como passagem de polegar e deslocamento da mão,

“renderizadas” em três dimensões através do programa Poser 8 Professional,

utilizando os modelos virtuais “Victoria 4.2” da empresa Daz3D e o “Grand Piano” da

RockStar. Como forma de auxiliar a compreensão dos gestos corporais, foram

utilizadas setas demonstrando a direção dos movimentos. Abaixo, seguem exemplos

destas ilustrações (Figs. 1 a 3):

Fig.1 – Posição no Piano, sugerindo se sentar na parte da frente do banco, com leve inclinação à frente

Fig.2 – Exercício para verificação da mobilidade no instrumento, buscando alcançar toda a extensão do teclado

Fig.3 – Exemplo de passagem onde há alternância entre os dedos 3 e 1 na mesma tecla

Page 121: Ansiedade Da Performance

118

O detalhamento acerca dos variados aspectos em torno do estudo e da

performance do repertório pianístico é extremamente útil para o ensino tutorial.

Fisher (2010, p.19-20) afirma que nesse contexto, é necessário explicar o material

diversas vezes, tornando o trabalho pedagógico redundante e cansativo. Assim,

quanto mais fácil for o acesso às informações, melhor será a utilização do tempo,

permitindo ao professor tratar de outros aspectos didáticos. Reitera-se, ainda, que

grande parte do material didático de piano carece de orientações mais específicas –

assim como nos Álbuns para a Juventude de R. Schumann, P. I. Tchaikovsky e W.

Lutoslawsky por exemplo, que apresentam somente peças – exigindo que o

professor trate verbalmente e ilustre na prática diversas questões de prática

pianística. Em uma turma com trinta alunos de piano, trata-se de um considerável

dispêndio de tempo e energia.

Ainda, é fundamental evidenciar que todas as peças são baseadas no

conceito de dedilhado lógico (grifo nosso). Nesta seção, há uma breve explicação

com exemplo prático a partir de “Asa Branca” de Luís Gonzaga, onde há apenas

uma indicação de dedilhado na primeira nota. A partir desta, o aluno é orientado a

posicionar suas mãos de forma que os demais dedos se posicionem nas teclas

paralelas, evidenciando que o dedilhado só será indicado em caso de mudança de

posição da mão. Um método amplamente utilizado que não atenta a esta questão é

“The Leila Fletcher Piano Course” (FLETCHER, 1995), havendo sempre uma

indicação de dedilhado para cada nota. Além de “poluir” a partitura, essa

característica traz um excesso desnecessário de informações em um primeiro

momento da aprendizagem, atraindo a concentração do aluno a um aspecto que

poderia ser aproveitado no tratamento de outras questões.

Abaixo, seguem dois exemplos de atividades com peças, retirados da

terceira seção do método. O exemplo a seguir consiste em uma peça com leitura

relativa (Ex. 6):

AnáliseTemos aqui uma peça com duas partes, de acordo com as linhas de frase. Perceba a fração no início da pauta. Esta é a fórmula de compasso, que organiza a divisão absoluta das pulsações na peça (note ainda as barras de compasso – linhas verticais

Page 122: Ansiedade Da Performance

119

que dividem o pentagrama). Neste caso, o numerador da fórmula indica 3 pulsações por compasso, constituindo uma métrica ternária (a métrica indica a divisão relativa das durações). A figura de referência para a pulsação é a Semínima, cujo número é ¼ (veja os valores de cada figura em “1.2.2 Duração”). Dessa forma, a fórmula de compasso é 3 x ¼ = ¾. Ainda, saiba que a primeira pulsação (ou tempo) de cada compasso é levemente mais forte, caracterizando a métrica. Um exemplo de peça na métrica ternária é a Valsa. Ouça uma valsa, notando a diferença entre as pulsações.TécnicaComo há uma única pauta sem clave, você poderá tocá-la com a mão direita (m.d.) ou esquerda (m.e.) a partir de qualquer nota do teclado (leitura relativa), seguindo o dedilhado de acordo com a mão escolhida. A indicação cantabile sugere que cada frase seja ligada (legato), com projeção do som. Tente tocar as teclas com a ponta dos dedos, aplicando pressão e percebendo as mudanças no som do Piano.EstudoAqui você pode utilizar o estudo por seção. Defina um trecho da peça (a primeira frase, por exemplo) e estude somente ele, repetindo-o até ficar bom. Fique atento aos outros aspectos já mencionados: postura, posição das mãos e o som desejado, entre outros. Assim que a parte estudada já estiver automatizada (com dedilhados e melodia fluentes), estude o outro trecho. Em seguida, estude a peça inteira até ficar fluente. Ao terminar o estudo com uma mão, faça o mesmo estudo com a outra. Depois de estudar cada mão separadamente, tente tocar a peça com as duas mãos ao mesmo tempo, iniciando a partir de outras notas em regiões diferentes do teclado.

Ex. 6 – Peça nº 01 do método

Segundo os modelos de ensino do piano apresentados anteriormente, é

possível classificar esta atividade como sendo “intervalar”, pois trabalha a leitura

relativa em qualquer região do piano. Assim, cabe ressaltar que este método

trabalha essencialmente com a linguagem modal, aproveitando não somente o

caráter de leitura relativa, mas desenvolvendo a percepção musical direcionada a

essa linguagem, sem enfatizar estruturas harmônicas tonais. Outro método que

trabalha desta forma é “Hal Leonard Piano Solos” (BOYD, 1997), que em seu

primeiro livro, trabalha melodias folclóricas norte-americanas na escala pentatônica

maior utilizando somente teclas pretas. Dessa forma, o autor aproveita de forma

inteligente tanto esta característica idiomática dos instrumentos de teclado quanto a

música regional de seu país.

Outra característica importante é sempre colocar a ligadura de frase, pois

esta destaca uma ideia musical completa que o aluno deve compreender. Métodos

que não possuem ligaduras de frase podem levar o aluno a desenvolver um estilo de

leitura “nota-a-nota”, dificultando sua compreensão sobre a estrutura musical como

um todo. Este tipo de escrita existe em “Meu Piano é Divertido” (BOTELHO, 1983),

fato que pode ser contornado caso o professor desenhe as ligaduras de frase em

cada peça. Nesse sentido, destaca-se o “Mikrokosmos” de Béla Bártok (1987), que

além de possuir ligaduras de frase, baseia-se no conceito de dedilhado lógico, sendo

Page 123: Ansiedade Da Performance

120

um método que oferece excelente aplicação didática. A crítica que se faz a este se

dá pela linguagem musical utilizada, que muitas vezes não é familiar aos alunos,

exigindo a diversificação do repertório.

Com relação aos procedimentos de estudo, enfatiza-se a necessidade de

analisar a peça como forma de guiá-los, demonstrando ao aluno como a análise

musical possui uma funcionalidade prática. Ainda, a própria notação de apenas um

sistema evidencia o estudo de mãos separadas, estratégia fundamental para a

aprendizagem pianística (CHANG, 2010, p.31-32).

O exemplo em seguida traz a primeira peça que possui indicação

complementar de repertório (Ex. 7):

AnáliseEsta é a primeira peça que utiliza clave, dando início à leitura absoluta. Há quatro frases com linhas de crescendo e diminuendo sugerindo o caminho do fraseado, sendo este o controle do som feito ao cantar uma melodia. Assim, tente solfejar esta melodia, percebendo pontos de respiração - aqueles onde você vai “desligar” o som. Observe ainda que o compasso inicial possui apenas um tempo, caminhando ao tempo forte do próximo compasso. Esta é a anacruse, presente em todas as peças iniciadas em tempo fraco, entre elas o “Hino Nacional Brasileiro” de Francisco Manuel da Silva, “Tico-tico no Fubá” de Waldir Silva e “Pour Elise” de L. van Beethoven (1770-1827). Em geral, o primeiro compasso não é contado, pois o tempo fraco é retirado do último compasso da peça, conforme você pode observar aqui.TécnicaAssim como na Peça 1, há somente um sistema, com dedilhados indicados para mão direita e esquerda, sugerindo que você pode optar por uma mão para tocá-la. Siga o mesmo procedimento indicado nas peças anteriores, utilizando o dedilhado lógico. Procure observar sua postura e movimentos, evitando movimentar dedos que não precisam ser utilizados. Sinta se há tensão em suas costas, ombros ou pulso. Caso haja, preste atenção nas partes tensionadas durante o estudo, desativando a musculatura contraída. Você só pode corrigir isto no momento de tocar a peça; relaxar antes ou depois não adianta.EstudoContinue aplicando o estudo por seções e a repetição, assim como nas peças anteriores. Aqui, sugerimos que você estude uma mão de cada vez, e após aprender a peça, estude-a com a outra mão. Procure manter sua concentração direcionada aos aspectos que discutidos há pouco.RepertórioA partir de agora, indicaremos outras peças que você pode estudar da mesma maneira descrita aqui, oferecendo contato com obras de outros compositores e ampliando seu

Page 124: Ansiedade Da Performance

121

conhecimento sobre estilos musicais. Segue abaixo a indicação de repertório para a presente peça:BÁRTOK, Béla. Microcosmos vol. 1. Peças no 1 a 9.KABALEVSKY, Dmitri. Peças Infantis Opus 39. Peça nº 8.FERNANDEZ, Oscar. Lorenzo. Suíte das Cinco Notas.CRUZ, Carlos. Brasil: História na Música. Peça nº 1.

Ex. 7 – Peça nº 03 do método

A partir de então, o método permite diversificar o repertório estudado, tanto

para fixação das habilidades e conceitos tratados em uma determinada peça quanto

para diversificar o repertório, oferecendo contato com estilos musicais variados. Para

tal, é necessário realizar uma análise musical aprofundada das sugestões de

repertório, uma vez que a mesma não pode conter conceituações teóricas ou exigir

habilidades técnicas ainda não vistas no percurso do método em questão.

Posteriormente, o método irá oferecendo situações mais complexas, bem

como pequenos “testes”. Na peça 8, por exemplo, uma indicação de dedilhado

inapropriado é colocada de forma proposital, fato que servirá para o professor

verificar as seguintes hipóteses:

• Caso o aluno não solicite auxílio, o professor poderá verificar se o mesmo

achou uma solução para o problema. Caso não tenha encontrado, é porque

houve algum problema no estudo, como falta de atenção aos dedilhados

indicados, por exemplo;

• Em caso de pedir ajuda, é porque o aluno está atento às informações

apresentadas no método. Assim, o professor pode guiar o aluno até que o

mesmo encontre uma solução, ao invés de apresentar uma resposta pronta

para o problema. Esta estratégia de ensino é conhecida como

“problematização”, sendo sua aplicação na Pedagogia do Piano reforçada

por Uszler (In: USZLER et al., 2000, p.248-252), pois permite desenvolver a

autonomia do aluno.

Dentre outras situações, há a indicação de duas ou três opções extras de

dedilhado em uma passagem requerendo que o aluno as experimente, fazendo sua

opção em seguida. Caso haja a apresentação de uma nova habilidade – como

passagens de polegar ou deslocamento de mão, entre outros – haverá a devida

instrução ilustrada, a partir das “renderizações” apresentadas anteriormente.

Page 125: Ansiedade Da Performance

122

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A elaboração deste método constitui um importante marco nos trabalhos em

Pedagogia do Piano realizado pelo grupo de pesquisa. Os ideais tratados em

diversos artigos e livros da atualidade sobre o ensino da Performance Musical foram

considerados durante seu planejamento, buscando aplicação eficiente e imediata

dos mais variados conceitos acerca da prática instrumental. Sua aplicação na

disciplina Piano Complementar tem apresentado resultados bons, considerando as

condições ainda carentes do ambiente. Além disso, as orientações sobre prática de

estudo tem servido como referência para estudantes que tocam outros instrumentos,

fato que ampliou inesperadamente o impacto do método neste contexto.

Outras questões não descritas no presente artigo já estão sendo

adicionadas ao método como, por exemplo, abarcar também a linguagem da Música

Popular. A dificuldade encontrada é no percurso posterior do método, uma vez que

as linguagens Erudita e Popular deixam de possuir um alicerce comum e passam a

seguir rumos estéticos específicos. Ainda assim, acredita-se que a proposta é válida,

uma vez que, na atualidade, o perfil que se busca nas Universidades é justamente a

flexibilidade da formação, rompendo barreiras estilísticas e de proposta artística.

Esta iniciativa é particularmente necessária no âmbito do ensino de piano. Sendo

assim, espera-se que o aluno que se aprofundar no estudo da Música de Concerto

tenha também vivenciado a linguagem da Música Popular, respeitando-a, e vice-

versa.

Após o amadurecimento do método – tendo como base sua aplicação em

sala de aula e subsequente adequação às necessidades eminentes desta prática –

pretende-se publicá-lo em uma editora de grande circulação, concretizando nossa

contribuição mais significativa de até então à Pedagogia do Piano no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADOLFO, A. Iniciação Musical ao Piano e Teclado. Rio de Janeiro: Ed. Lumiar, 1994.

ALBUQUERQUE, A. F. A; VIEIRA, J. R. A experiência do ensino coletivo de instrumento no MECT – Musicalização através do Ensino Coletivo do Teclado/Piano – UFPB. In: XII Encontro de Extensão da UFPB. João Pessoa: UFPB, 2010.

BÁRTOK. B. Mikrokosmos vol. 1 Nova York: Ed. Boosey & Hawkes, 1987.

Page 126: Ansiedade Da Performance

123

BOTELHO, A. Meu Piano é Divertido vol. 1. São Paulo: Ed. Ricordi Brasileira, 1983.

BOYD, B. Hal Leonard Popular Piano Solos Level 1. Milwaukee: Hal Leonard Corporation, 1997.

CERQUEIRA, D. L. Semana da Pedagogia Musical: Reflexões sobre o ensino de instrumentos musicais na Escola de Música do Estado do Maranhão. Ictus, v.10 n.2. Salvador: UFBA, 2009a, p.37-44.

________________. O Arranjo como Ferramenta Pedagógica no Ensino Coletivo de Piano. Música Hodie, v.9 n.1. Goiânia: UFG, 2009b, p.129-140.

________________. Proposta para um modelo de ensino e aprendizagem da performance musical. Revista Opus, v.15 n.2. Brasília: ANPPOM, 2009c, p.105-124.

CERQUEIRA, D. L; ÁVILA, G. A. Arranjo no Ensino Coletivo da Performance Musical: experiência com Violão em grupo na cidade de São Luís/MA. In: Anais do X Encontro Regional da ABEM Nordeste. Recife: UFPE, 2011.

CHANG, C. C. Fundamentals of Piano Practice. Disponível em http://www.pianofundamentals.com, 2010.

CORVISIER, F. Uma nova perspectiva para a disciplina Piano Complementar. In: Anais do XVIII Congresso da ANPPOM. Salvador: UFBA, 2008, p.191-194.

CRUVINEL, F. Educação Musical e Transformação Social: uma experiência com o ensino coletivo de cordas. Goiânia: Instituto Centro-Brasileiro de Cultura, 2005.

DANTAS, T. Ensino Coletivo de Instrumentos Musicais: motivação, auto-estima e interações na aprendizagem musical em grupo. Dissertação de Mestrado. Salvador: PPGMUS/UFBA, 2010.

DUCATTI, R. H. A composição na aula de Piano em grupo: uma experiência com alunas do curso de Licenciatura em Artes/Música. Dissertação de Mestrado. Campinas: PPGM-IA/UNICAMP, 2005.

FABER, N; FABER R. Piano Adventures: Lesson Book – Primer Level. Fort Lauderlade: FJH Music Company, 2001.

FISHER, C. Teaching Piano in Groups. Nova York: Oxford University Press, 2010.

FLETCHER, L. The Leila Fletcher Piano Course vol. 2. Nova York: Montgomery Music, 1995.

FONSECA, M. B; SANTIAGO, P. F. Piano Brincando: atividades de apoio ao professor.

GARDNER, H. Frames of Mind: The Theory of Multiple Intelligences. Nova York: Basic Books, 1993.

GONÇALVES, M. L. J; BARBOSA, C. B. Educação musical através do teclado Vol. 1. São Paulo: Ed. Cultura Musical, 1985.

Page 127: Ansiedade Da Performance

124

GORDON, S. Teoria da Aprendizagem Musical. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.

KAPLAN. J. A. Teoria da Aprendizagem Pianística. Porto Alegre: Ed. Movimento, 1987. 2ª ed

MONTANDON, M. I. Piano Suplementar: função e materiais. In: Anais do I SEMPEM. Goiânia: UFG, 2001, p.105-113.

NASCIMENTO, M. A. T. O ensino coletivo de instrumentos musicais na banda de música. In: Anais do XVI Congresso da ANPPOM. Brasília: UnB, 2006, p.94-98.

PAIVA, R. G; ALEXANDRE, R. C. Bateria e Percussão Brasileira em Grupo: composições para a prática de conjunto e aulas coletivas. Itajaí: Edição do Autor, 2010.

PIRES, N; BUSCÁCIO, C; MONTESANTO, I. Educação Musical ao Teclado vol. 1. Belo Horizonte: EDUFMG, 2002.

SILVA, A. R. Oficinas de Performance Musical: uma metodologia interdisciplinar para uma abordagem complexa de performance musical. In: Anais do IV SIMCAM. São Paulo: USP, 2008.

SILVA, J. A. G. O Ensino Coletivo de Instrumentos de Sopro como Disciplina na Grade Curricular de um curso de Licenciatura em Música. In: Anais do XVI Encontro da ABEM Nacional. Campo Grande: UFMS, 2007.

SPRENGER, M. Learning & Memory: the brain in action. Alexandria: Association for Supervision and Curriculum Development, 1999.

TOURINHO, A. C. G. O ensino coletivo de violão na educação básica e em espaços alternativos: utopia ou possibilidade? In: Anais do VIII Encontro Regional da ABEM Centro-Oeste. Brasília: UnB, 2008.

USZLER, M; GORDON, S; SMITH, S. M. The Well-Tempered Keyboard Teacher. Belmont: Schirmer Books, 2000. 2ª ed

VIEGAS, M. A. R. Repensando o ensino-aprendizagem de piano do Curso Técnico em Instrumento do Conservatório Estadual de Música Padre José Maria Xavier de São João del Rei (MG): uma reflexão baseada em Foucault. Revista da ABEM, n.15. Porto Alegre, 2006, p.81-90.

ZORZAL, R. C. Explorando Master-Class em Festivais de Violão: um estudo multi-casos sobre estratégias de ensino. Tese de Doutorado. Salvador: PPGMUS/UFBA, 2010.

Page 128: Ansiedade Da Performance

125

Daniel Lemos: Técnico em Piano pela Academia de Música Lorenzo Fernandez (1999) sob supervisão de Maria Luíza Urquiza Lundberg, Bacharel em Piano pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na classe do pianista Miguel Rosselini e Mestre em Performance Musical pela UFMG sob orientação da Dra. Ana Cláudia Assis e tendo como professor de Piano o Dr. Maurício. Apresentou-se como solista e acompanhador em vários estados brasileiros, sendo contemplado em Festivais e Concursos de Piano. Participou de Cursos de Interpretação ministrados por Celina Szrvinsk, Luís Senise, Ricardo Castro, Fany Solter e Michael Uhde, entre outros. Foi Professor Substituto no Curso de Música da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), e desde 2009 é Professor Assistente no Departamento de Artes da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O foco principal de sua atuação como pesquisador é a Pedagogia da Performance Musical.

Page 129: Ansiedade Da Performance