Anselm Kiefer

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1 LUCIANO SENNA FERREIRA ANSELM KIEFER – VISÃO GERAL. HISTÓRIA E ARTE MODERNA PROFº. RONALDO BRITO

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a obra de anselm kiefer

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    LUCIANO SENNA FERREIRA

    ANSELM KIEFER VISO GERAL.

    HISTRIA E ARTE MODERNA

    PROF. RONALDO BRITO

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    1. INTRODUO

    Este texto tem a inteno de desenvolver uma viso geral resumida da

    vida e obra de Anselm Kiefer, a sua expressividade plstica, fora pictrica e

    lucidez histrica, apresentando algumas possveis influncias recebidas, suas

    razes estticas na cultura germnica com sua tradio histrica e filosfica,

    bem como o passado recente experimentado, no por ele mas sim por uma

    gerao anterior, mas intensamente revivido em suas memrias.

    No momento em que Kiefer despontou no cenrio da arte europeia, em

    meados dos anos sessenta e no auge da ressonncia de sua obra, nos anos

    oitenta, Kiefer assumiu uma postura radical no meio cultural. O forte

    impacto poltico de sua obra reafirma o papel transformador do artista na

    sociedade. Neste perodo a afirmao da pintura no meio artstico europeu

    estava em pleno vigor resultando em um resgate da tradio pictrica alem.

    Com ntidas caractersticas de reaproximao com o romantismo dominante

    no sculo XIX, Kiefer recusa a imparcialidade da arte pela arte ,

    caracterstica da pintura moderna, bem como a supremacia da pintura

    abstrata, mergulhando em um passado pessoal e histrico reprocessando os

    acontecimentos traumticos daquela histria recente, assumindo a herana e

    inspirao romntica da histria da arte alem e tomando conhecimento da

    nova pintura americana.

    No entanto, Kiefer est inserido num meio social empenhado em

    esquecer o passado traumtico recente e apesar de Kiefer abraar a herana

    histrica alem ele questiona totalmente um retorno a uma Alemanha pr-

    existente, onde mitos e lendas cumpriam papel importante na produo

    artstica. Ele no adota esse comportamento enquanto artista, ao contrrio,

    elege uma prtica violentamente provocadora, ficando sempre com o

    nazismo em sua mente, como smbolo daquilo que abomina.

    Sem abandonar as crticas ao nazismo e histria alem recente, a

    partir dos anos 80, passa a expandir sua temtica crtica e agride a sociedade

    capitalista com imagens de um mundo completamente devastado pela

    sociedade de mercado.

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    2. ORIGENS E INFLUNCIAS

    A obra de Kiefer testemunho do seu emprenho e vigor com que ele

    associa sua vivncia pessoal e o passado histrico. Resultado desse

    investimento e imerso, a potica de sua bora constitui simultaneamente

    uma critica sociedade e ao sistema da arte vigente. Coragem e vitalidade

    so termos bastante adequados ao processo criativo de Anselm Kiefer, que

    faz da histria um campo de experimentao e investigao esttica.

    A abrangncia e complexidade de sua produo, demostra

    caractersticas de diversos movimentos da histria da arte e das vanguardas

    artsticas do comeo do sc. XX e do entre guerras, como o cubismo, o

    expressionismo, o dadasmo, o surrealismo, o abstracionismo, etc. Como

    reao crise iluminista enfatizando o veio romntico que est na raiz destes

    movimentos. As promessas de liberdade individual e social do iluminismo,

    promovidas pela f na razo, transformaram-se em uma sociedade moderna

    desumana culminando em duas guerras mundiais que espalharam barbrie e

    violncia. A promessa da razo iluminista no realizada produziram efeitos

    que a humanidade ainda hoje tenta compreender.

    A necessidade de reprocessar, atravs da arte, esses terrveis

    acontecimentos da histria recente, impulsiona Kiefer em suas pesquisas.

    Seus trabalhos so uma espcie de condensao da experincia histrica, que

    tentam alterar a concepo do passado compondo um real contemporneo.

    Lidando ativamente com a simultaneidade de diferentes tempos histricos e

    com suas histrias pessoais, ele compe uma sensibilidade, vivida no

    presente, sobre realidades passadas. O carter inacabado e efmero de seus

    trabalhos que parecem demonstrar um processo contnuo indica uma

    concepo de tempo ampliado.

    A postura contempornea de imerso e presentificao do passado

    transforma a experincia de Kiefer na matria primordial de seu trabalho que

    observa a sim mesmo e suas histrias de vida como inspirao criativa,

    eliminando a distancia entre sujeito e objeto. O objeto artstico sintetiza a

    individualidade na universidade. Ao lanar-se na histria, fazendo com que

    sua prpria vida faa parte de sua obra, depara-se com o novo e o

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    desconhecido, numa situao inusitada que abre espao para a criao, o

    lugar da arte. A experincia esttica de Kiefer est fundamentada em uma

    postura de integrao com um fazer que acaba com o distanciamento da

    relao sujeito/objeto. Afirmando a vida como matria direta da arte.

    Kiefer, ao mesclar sua produo artstica com sua prpria vida combina

    a arte com a histria pessoal realizando uma potica de coragem e

    vitalidade. Pode-se dizer que em certo grau trata-se de uma investigao do

    inconsciente de um passado comum, cujo mecanismo tem, em parte, origem

    no surrealismo, um dos movimentos de vanguarda que no priorizavam a

    arte pela arte em detrimento de um expressionismo do eu. Um procedimento

    que no visava apenas resultados artsticos, mas um meio de salvao

    pessoal ao incorporar o dado psicanaltico ao processo da arte.

    Um forte indcio da raiz romntica na atitude de Kiefer revela-se na

    postura anacrnica que assume em relao aos movimentos de vanguarda

    no incio de sua carreira. Enquanto seus contemporneos se envolviam com

    essa linguagem autorreferente e formal das vanguardas que pareciam

    priorizar a materialidade da arte em lugar de sua expresso, Kiefer orienta-se

    no sentido do resgate do passado. Com um olhar questionador dos

    acontecimentos da guerra e do nazismo, fazendo emergir, com a

    sensibilidade e a potica de sua obra, questes at ento recalcadas e

    consideradas tabus. Com uma postura de desapego e coragem, ingressando

    em caminhos tortuosos que mobilizao diversos aspectos culturais, sociais e

    polticos, discute a conformidade desta viso esttica preponderantemente

    abstrata e autorreferente.

    Neste percurso, Kiefer tambm resgata a tradio germnica com a

    finalidade de critic-la e de conhecer a verdade da atuao da arte alem

    naquele contexto de sua apropriao com o nazismo. Kiefer examina suas

    origens e fontes de forma ampla.

    A questo do papel da arte na sociedade, que ocupa o discurso esttico

    at hoje, tambm intensamente tratada em seus temas. A crise da arte e

    das vanguardas artsticas provocou um sentimento de impotncia e de luto

    juntamente com a guerra que provocou a dissoluo e desmembramento

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    desses movimentos, que descolocou a hegemonia cultural para os Estados

    Unidos.

    Na contracorrente de seus contemporneos, Kiefer, reage postura da

    arte pela arte recuperando parmetros e tradies que foram abandonados

    e recusados pelas linguagens modernas em um resgate da pulso romntica.

    Inserindo sua obra na sociedade afirmando sua autonomia e absoluta

    singularidade, mas ao mesmo tempo suprimindo seu isolamento.

    Em Kiefer, o objeto da arte est essencialmente atrelado concepo e

    ao pensamento esttico, uma vez que legatrio do par conceitual arte e

    vida de Joseph Beuys em que a arte e a poltica atuam numa mesma zona

    sensvel. Assim , as obras de Kiefer, que foi aluno de Beuys, que transgredia

    as vanguardas, subvertem a arte autorreferente. Assumindo uma postura

    provocativa a figura do artista e seu discurso, esto mesclados sua obra

    fsica. Fazendo politica independentemente de uma inteno explcita e

    convocando a sociedade a uma tomada de posio em relao a diferentes

    questes que j no faziam mais parte do repertrio da arte moderna.

    inegvel a importncia de Joseph Beuys para o desenvolvimento de

    sua obra. A reao de Beuys a tendncias estticas dominantes ao elaborar

    uma arte motivada por suas vivencias da guerra e por sua prpria histria de

    vida, inaugura um campo de ao para o desenvolvimento de novas formas

    de expresso artstica e estruturas culturais. A experincia da arte em estreita

    conexo com a vida representa, para Beuys, o pressuposto bsico da prtica

    artstica. Seu trabalho e suas aes de cunho esttico-poltico abrem um

    espao indito. Kiefer ocupa esse espao com a propriedade de quem busca

    uma explicao para sentimento de revolta e indignao latentes.

    Kiefer conduz, enfim, a arte no sentindo de sua re espiritualizao

    restaurando seu poder ativo enquanto interveno crtica no mundo. E

    retomando a importncia da arte germnica e europeia no cenrio da arte

    mundial.

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    3. ANSELM KIEFER

    Anselm Kiefer nasceu em 1945, ano do fim da segunda guerra mundial

    e isto determinante nos rumos de sua potica. Seu percurso e seu processo

    criativo so definitivamente pautados pela histria. Ele maneja seus objetos

    com extrema liberdade em um processo de recuperao e mistura, recupera,

    descarta, sobrepe e resgata a memria do prprio trabalho. Penetra em

    labirintos histricos, sem domnio das consequncias dos destinos dessas

    elaboraes. Como em um processo arqueolgico sua obra se desconstri e

    se recria na medida em que materiais submersos so novamente descobertos

    e reabsorvidos.

    A partir da identificao com o espectador suas obras provocam uma

    averso no espao social e histrico. Para muitos destes espectadores, os

    trabalhos de Kiefer geram uma repulsa e rejeio por obrig-los a uma

    autorreflexo involuntria.

    Essas posturas provocativas ressurgiram inicialmente na obra de Joseph

    Beuys, a partir do seu empenho em superar o isolamento em que se

    encontrava a arte moderna na sociedade contempornea. Mais tarde Kiefer

    expressa, ainda que no explicitamente, a aposta na capacidade da arte de

    proporcionar uma completude espiritual pela transcendncia. A arte exerce,

    entre outras, a funo de aproximar o sujeito da prpria vida.

    Na atmosfera pesada do perodo do ps-guerra europeu, cada sombra

    nos remete ao trauma histrico da Alemanha. E neste contexto de

    destruio, em uma Europa esfacelada pelas consequncias da guerra e do

    nazismo, as reaes intelectuais relativas a esta conjuntura foram

    estranhamente tranquilas. Em um esforo para ignorar sua histria e os

    recentes acontecimentos traumticos, a Alemanha abandona sua mitologia e

    o folclore nrdico. Envolvidos nesse movimento geral de empenho em

    recalcar e esquecer o passado, os artistas se abstinham de qualquer

    posicionamento poltico e social e no se identificavam com a recente

    histria contempornea, recolhendo-se a uma arte autorreferente, num

    movimento de abstrao e alienao politica. Mas em estado latente, uma

    realidade adormecida sob os escombros da guerra, viria a aflorar nas obras

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    de Kiefer de maneira intensa provocando um choque em pontos do passado

    alemo.

    Ao contrrio de muitos artistas de sua poca que se abstinham de

    qualquer posicionamento poltico, Kiefer partilhava do empenho de uma

    nova gerao em recusar o esquecimento do passado. O que resgata, do que

    se lembrar? So perguntas recorrentes no processo criativo dele. Sua prtica

    foi provocadora e o conduziria a transgresso de um interdito coletivo.

    Kiefer utiliza sua prpria imagem e presena fsica como matria

    constituinte da obra. Ele tenta atravs de sua obra experimentar a histria na

    prpria pele, como uma espcie de catarse, relacionando experincia esttica

    e pesquisa histrica ele explora sua prpria identidade e herana cultural por

    meio da arte. Sua obra proporciona mltiplas possibilidades de leitura dos

    desdobramentos dos eventos contemporneos.

    Adorno formula a inquietante questo: Como ser um artista alemo

    depois de Ausschwitz ? Esse tema de profunda ambiguidade est presente

    em praticamente toda a obra de Kiefer. Ele utiliza signos e smbolos que

    expressam a densidade que tal pergunta representa em sua vida, com um

    significado pessoal e, no entanto, tambm com uma significao no

    contexto nacional, sempre remetendo guerra e ao nazismo. Kiefer

    questiona o poder da arte e de sua participao voluntria ou involuntria no

    surgimento do nazismo. Interroga-se sobre o fato de que grandes obras

    artsticas alems foram apropriadas por uma ideologia totalitarista. Em sua

    obra, a expresso da confiana na misso da arte contradita pela violncia

    da histria. Ainda que algumas obras paream manifestar uma capacidade

    de redeno e salvao, a maioria delas demonstra o inverso.

    Para Kiefer a arte pode ser altamente perigosa, ele realiza uma srie de

    trabalhos que abordam o poder destrutivo que a arte pode adquirir. Ele

    utiliza smbolos semnticos tais como a aluso ao Imperador romano e o

    poder destrutivo dos pinceis quando usados por mos poderosas e malignas.

    J o smbolo da paleta utilizado como aglutinador de vrias significaes.

    A diversidade das situaes em que representa a sua paleta manifesta a

    intensa ambiguidade atrelada prtica artstica, refletindo a problemtica

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    moral e poltica da arte. A paleta tambm pode ser utilizada como signo de

    renascimento da pintura, aps o seu abandono nos anos 60 e 70.

    J a partir dos anos oitenta, Kiefer comea a expandir os temas de suas

    obras abrangendo uma dimenso mais vasta da cultura universal em lugar da

    anterior referencia quase que exclusiva as questes germnicas e do nazismo.

    O antigo testamento, a mitologia babilnica, a alquimia, o misticismo judeu,

    a Kabala e a religio egpcia so alguns dos motivos presentes em suas

    produes, mas sempre relacionados com o fator espiritual e sempre

    pontuando a questo do nazismo e a diviso da Alemanha provocada por

    ele.

    A planaridade da pintura e o conflito com sua representatividade

    ilusionista, j no uma questo, mas sim um veculo de expresso de um

    sentimento de revolta e angustia. A pintura palco e arena de um processo

    de catarse e desabafo de uma revolta latente. O all-over foi plenamente

    incorporado e manipulado para a realizao de suas intenes. A relao da

    mitologia alem com o nazismo um ponto de partida para sua crtica a

    manipulao feita pelos nazistas e forma como a populao alem assentiu

    e corroborou este fato.

    Kiefer encontra nas aluses caractersticas de seu processo de criao os

    mecanismos para criar o repertrio de sua memria artificial, pois ele no

    vivenciou os eventos que investiga em seus trabalhos. Ao apropriar-se de

    objetos, textos e imagens que se integram s suas encenaes, constitui

    progressivamente sua memria pessoal do nazismo. Resgata personagens de

    sua cultura que, segundo ele, foram usados de forma abusiva pelo poder.

    Reconstitui assim a herana de seus ancestrais, apropriando-se de forma

    aleatria de seus smbolos e mitos para fazer deles o material de sua prtica

    artstica. Desta forma entre em contato com os determinantes culturais que

    constituem sua personalidade germnica.

    Lidar com os signos significa entrar em contato com o poder de

    influencia da cultura e a arte alem sobre seu passado recente, o passado

    longnquo e a conjuntura contempornea e seu processo de recalcamento da

    histria. A conexo entre histria cultural e artstica alem e a exaltao do

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    orgulho nacional fundamentou um nacionalismo exacerbado. A histria real

    da cultura alem bem como suas antigas lendas foram apropriadas pelos

    nazistas. Este fato determinou que temas importantes da cultura alem

    fossem rejeitados e desprezados na contemporaneidade. Atravs da

    manipulao esttica, Kiefer transporta esses motivos antigos de sua cultura

    para o tempo atual em suas obras.

    Kiefer explora seus temas at a exausto. Em movimento irrefrevel,

    repetitivo e compulsivo, com uma autoimposio. Kiefer est envolvido com

    sistemas de pensamento que presumem que haja o Bem no mundo, que

    ofeream esperana e at salvao do mal real comprovadamente existente

    atravs da histria humana e afirma: eu me interesso por religio, pois a

    cincia j no me oferece respostas. Apenas a arte sobrevive.

    Ampliando o campo de ao de sua arte, Kiefer interfere no mago de

    interpretaes de fatos histricos, muitas vezes colocados parte de uma

    verificao mais objetiva. Kiefer verifica em que medida o contexto histrico,

    cultural e espiritual alemo contribuiu como fora atuante no

    desenvolvimento da ideologia fascista. Prope uma reflexo sobre a relao

    entre arte e poder e a responsabilidade d arte na formao e popularizao

    da ideologia nazista.

    A afirmao do feio e o total desprendimento de qualquer disposio

    esttica comprovam a necessidade de realizar uma catarse por meio da arte.

    A pintura se impe e soberana, tem autonomia para adquirir fora prpria

    e independncia.

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    4. CONSIDERAES FINAIS

    A obra de Kiefer um permanente work in progress, nada esttico e

    definitivo. O artista se apropria constantemente do acidente em seu fazer

    criativo. Consciente de seu poder de manipulao, Kiefer inventa, associa,

    separa, experimenta, destri, modifica e recomea, seguindo as direes que

    aparecem na medida em que aparecem. Entretanto, no pretende dominar

    ou controlar a ao.

    Kiefer reinsere a arte na esfera da prxis vital e do pensamento esttico,

    social e poltico, atravs da retomada da pulso romntica. Ele afirma uma

    linguagem simblica particular que alcana ampla ressonncia no tratamento

    de questes da ordem da comunidade. O furor e a pulso emotiva tem em

    suas obras importncia essencial na reinsero da arte enquanto veculo de

    comunicao e de transformao cultural, social e poltica.

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    5. BIBLIOGRAFIA

    BRITO, Ronaldo. Experincia Critica. Organizao Sueli

    de Lima. COSACNAIFY, 2005

    BRITO, Ronaldo. O Moderno e o contemporneos: o novo e

    o outro novo, Funarte, caderno de textos 1 Rio de

    Janeiro, 1980

    ROTH, Clara Cavendish Wanderley. Georg Baselitz e

    Anselm Kiefer. Motivo e histria: a retomada romantica

    da arte alem. Rio de Janeiro. Dissertao -

    Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento

    de Histria / 2011.

    SANTIAGO-RAMOS, Lilian. Pequena Histria do Mal: Anselm

    Kiefer e Walter Benjamin. So Paulo: USP

    Departamento de Filosofia 2009.