anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na...

88
anotações de viagem aprendizados peripatéticos

Transcript of anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na...

Page 1: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

apre

ndiz

ados

per

ipat

étic

os

Page 2: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o
Page 3: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Antes de mais nada é preciso dizer que estas anotações são o registrovivo e pulsante das experiências de três crianças diante da vida. Ediante do mundo. Pode parecer estranho, mas diante do

desconhecido todas as informações são letra-morta. Não há saberes diantede Deus. Ou adiante dos Demônios. Para viver é fundamental transformarletra-morta em palavra viva, o invisível em visível, o ignóbil em nobre, odesconhecido em conhecido. Viver é também uma alquimia. Por issotemos que corporificar nossos fantasmas pra perceber que não existemfantasmas...E tudo isso deve ser feito longe de fórmulas, receitas, regras eoutros suportes secundários.Alías, é exatamente isso que caracteriza a espontaneidade, a graça e ariqueza dos comportamentos infantis. Estabelecendo ou restabelecendonovos nexos e novas relações, a criança está aberta para a vida, para omundo--e para os ouitros. Pode repetir mil vezes o mesmo movimento e amesma palavra ou gesto encantatório, obtendo nisso prazer e gratificação.Acho que é isso mesmo: não existe nada comparável a grandiosidade dequalquer vivência humana.E como essa nossa viagem foi uma vivência marcante, vale a pena partici-par dela. Durante 39 dias e 39 noites nós três fomos inseparáveis. Forammais de 9 mil quilometros percorridos e mais de 40 cidades visitadas.Fomos a museus, ruas, praças, becos, bancos, igrejas, torres, castelos,muralhas, mercados, monumentos, parques, pensões, hotéis, restaurantes,bares, livrarias, lojas, cafés, etc. E tudo isso só serviu para consolidar emnós a nossa incansável e apaixonante proximidade.Vimos tudo com perplexidade e encantamento. Vivemos dias inesquecíveisque ficarão para sempre gravados em nossos caminhares. Estivemos demãos dadas e unidos durante todos esses aprendizados. E agora, que jásomos cúmplices de uma vivência inviolável, convidamos você a passearcom a gente por estas anotações de viagem. Queremos dividir essas dimen-sões novas da realidade. E de nossas emoções jamais perdidas no palco deontem. Ou no berço de anteontem.

Ana, Chris, Rubão

anot

açõe

s de

via

gem

Page 4: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

Page 5: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Nas fotos,os autores

Page 6: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

Page 7: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

No mapa,os caminhos

Page 8: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

Page 9: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Na viagem,os desígnios,as dádivas,o descobrir

de Deus

Page 10: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

Page 11: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o
Page 12: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

Na TV do avião --são váriosmonitores - tem um mapaem relevo com a América

Latina, Atlântíco, África eEuropa mostrando nossa posiçãoem relação à Terra, nossa alti-tude, velocidade,temperaturaexterior e distância de Paris. Oincrível é que, em 9 minutos devôo, nós já estávamos a 6.900metros de altura. Nesse instante,surge um nome na tela. Surge efica. Desaparece e volta: Camposdo Jordão. Ficamos perplexos.Mas isso ainda não é nada.Passam-se mais alguns pouquíssi-

mos minutos e estamos posiciona-dos sobre Poços de Caldas.Altura de 9 mil e poucos metros ea 9 mil e poucos quilometros deParis. Em seguida nos aproxi-mamos de Belo Horizonte.Altitude de 10.300 metros, tem-peratura exterior de 40º nega-tivos. Depoís é a vez dainesquecível Ouro Preto que estálá embaixo a 10.100 metros, 31minutos de vôo, 8.956 km deParis. Todas essas coincidências -tão significativas - acabam derre-tendo minhas emoções, meusmedos e tranquilizando meu

No avião, os preâmb

No Hotel, chegando

Page 13: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

corpo e meu espírito. Estamos todosjuntos no céu - aqueles que já seforam e ainda estão nele - e todosos nossos amados que ficaram naTerra torcendo por nossa transitóriapassagem por ele. Estamos a caminho de uma vívência extrema-mente comovente. E já comovidospercebemos os ecos da anunciaçãona singularidade deste confrontar-secom a memória. Desdobram-seassim, no ímponderável, os itin-erários e os rumos de mais umencontro com a vida, com a beleza,com o amor. E certamente, com Deus!

24/11/92. Quando as rodas do aviãotocaram o solo da pista do CharlesDe Gaulle tivemos a nítidaimpressão de que estávamoschegando ao nosso destino. Aindaassim é duro de acreditar. Atéporque os aeroportos -como osgrandes hotéis - são sempre amesmice da mesmice, com tudomuito bem estruturado e sinalizado(o que dispensa qualquer tipo decontato-como foi o nosso caso).Não precisamos falar com ninguém,nem perguntar nada. Bastou seguiras setas e o bom rebanho. Até ospassaportes foram examinados com

bulos, as preces...

Na Ponte, sobre o Sena

Page 14: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

rapidez, eficiência - e nenhumatroca de palavra. Chegamos porvolta das 12h15 (9h15 no Brasil)e, já às 12h30 estávamos saindode malas à tiracolo ao encontro daVivi, sempre companheira, gentil eafetuosa. E pontual -como convéma um europeu. Do aeroportogigantesco, mas internamentepequeno e aconchegante, - diriahumano - fomos direto para oSupermercado, o Hotel e daí paraa casa da Vivi, onde almoçamos eseguimos com ela para Paris, queé mesmo aquela coisa linda, detirar o fôlego. Nosso primeiro

tour incluiu o Sena, o magníficoprédio da Prefeitura, o Louvre,a rue du Rivoli, a Torre Eiffel.E para reforçar a presença divina,entramos em uma igreja, muitobela e despojada, e choramoscopiosamente ao ver e ouvir oscantares de padres e freiras daordem 3ª.26/11/92 - A partir do dia 13 meucoração começou a sair de órbita,de compasso e de ritmo. O tempotodo, toda vez que eu lembravaque estava prestes a realizar meusonho, era um susto. Dois diasantes da partida fiquei anestesia-

anot

açõe

s de

via

gem

Em Paris, a emoção c

Diante do Opera

Page 15: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

cordial, cardíaca...

da. Não sabia bem o que estavaacontecendo. Uma sensação sóvivida quando do meu casamento.Muitas providências, muitos expe-dientes. Não podia esquecer nada.Anestesiada despedi de todos. Efoi estranho. Reunião na casa daMaria Elisa, na mamãe comPaulinho e tudo, na tia Concha. Nanoite anterior, Áurea, Mário, meni-nas, Jardim e Nair em casa. Ah,almoço com as meninas do DEMAe Rubão com os amigos do trabal-ho. Contei a todos uma história doMário que dizia que quando foi aEuropa pela primeira vez, ao

tomar o avião não acreditava; aochegar e ver a torre Eiffel, nãoacreditava; e, ao voltar, não acred-itava que tinha ido. Foi assim: eunão acreditava. O fato é que, aover o aeroporto de Guarulhos,chorei incontrolavelmente. Aespera do avião foi amenizadacom a presença do André, MariaElisa, Jardim e Nair. Estar aqui, caminhando, sentindoo vento frio continua a ser ina-creditável. Paris é mais espalhadado que a imagem que eu haviaconstruído nesses anos todos. Masé mais majestosa, mais nobre,mais chic. É chic, trés chic. Namedida. Não é exagerada, poisseria cafona. As grandes lojas -Channel, Dior, etc - são menores do que eu pensava. Osrestaurantes são pequenos,aconchegantes. Nada de mundaréude gente. Nas ruas sim - e nosmuseus. São os turistas, de pas-sagem. Mas a cidade, nos espaçosinternos e de descanso, não propí-cia a multidão. O inverno é chic.Os casacos, as roupas--elegantes.A cidade é lindíssima. Como diz o Tuca: harmoniosa. Paris é uma mulher belíssima, chique e elegante.

Na Torre Eiffel

Page 16: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

30/11/92 - Está sendo muito difícilfazer o diário. O tempo é curto enossa idade não ajuda. Mas vamoslá, recapitulando. Dia 25, emParis, saímos com a Vivi. Nos separamos e fomos caminhar.Tulheries, Louvre, Rue duRivoli, Gran Palais, etc. Dia 26:visitamos o Louvre, almoçamosno King Opera --onde o Andrénos encontrou. Depois fomos deônibus até a Champ Ellysée eTour Eiffel-- sem pagar, é claro.Voltamos de ônibus - também sempagar - encontramos a Vivi na lojae fomos pra sua casa, exaustos,saborear uma excelente raclete.Em seguida fomos até o Hotel, a

pé, dormimos e no dia 27 acerta-mos as contas e on y vá a Parisavec Vivi, notre bonne mére.Trocamos dinheiro com ela, pegamos o metro, buscamos nossavoiture e começamos a viver anossa verdadeira vida no nossoverdadeiro ritmo. As explicaçõessobre o carro - e todas aquelastransações burocráticas de papéis- foram simples e rápidas, efi-cientes. E híbridas já que mistu-ramos francês, espanhol e por-tuguês num forte coquetel lingüís-tico. Voltar até a loja da Vivi tam-bém não foi difícil. Custoso foiusar aquilo que não sei, a línguafrancesa, para me fazer entender e

As primeiras desped

Rua de Rivoli, Paris Em Ponte sobre o Sena

Page 17: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

ganhar a confiança de um garagista,para conseguir atingir meu objetivoque era retirar nossas malas docarro da Vivi. Mas até isso consegui-e sem enfrentar tantos obstáculos edificuldades. Depois é que a coisacomplicou. Tive que fazer uma forçade Sansão para carregar todos osnossos pertences até onde estavamo Chris e a Ana: no nosso Citroenvermelho, zero km, estacionado emlugar proibido e inadequado.Brasileirices à parte, começamos, apartir daí, a vislumbrar e vivenciar -pessoalmente - todas as circunstân-cias e coisas que surgiam diante denós. Saímos de Paris sem cometernenhum erro - mas achando, a cadacruzamento e a cada placa, queestávamos errados. Felizmente, oserros estavam somente em nossascabeças, pois nós acertamos todosos caminhos da despedida. E em

pouco tempo nos distanciávamosdaquela cidade maravilhosa e per-feita, rumos ao Vale do Loire. E como era de se esperar - e nósintuíamos que isso iria acontecer -ao passar pelo primeiro vilarejo,Etampés, tivemos de retornar de répela estrada. Não podíamos perdertanta beleza. Um conjuntoarquitetônico impressionante. Masisso era apenas o início de umlongo idílio apaixonado. E foi emEtampés, junto de seus telhados deardósia fortemente acinzentados,que fizemos nossas primeiras com-pras européias: 2 garrafas de vinhonacional, 1 queijo cammembertPresident, 1 queijo goulda, 6 crois-sants, 2 coca-colas de um litro emeio, 1 caixa de lenço de papel, 2 pacotes de bolachas fantásticas, 1 patê de foi-grás maravilhoso e 1 pacote de manteiga

didas européias

Vista de Etampes

Page 18: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

( lê burré) por 109 francos. Um pouco menos do que vintedólares. E tudo isso em um lugar estranhamente familiar: o Carrefour.Nesse mesmo dia passamos emBeaugency, primeira cidadezinhado Vale do Loire, que guardavapara nós as primeiras revelaçõesde um amor antigo. Aquilo foi umverdadeiro encontro - ou reencon-tro? - com as maravilhosas pro-porções humanas. Beaugency nosmostrou pela primeira vez, ao vivoe experimentalmente, as relaçõespróximas e harmoniosas do serhumano com o ser humano e do

ser humano com Deus. Vimos evivenciamos uma igreja despojadae expressiva do século XII, aAbbaye Notre-Dame qu'eutlieu, en 1152, le concile où futdéclaré nul le mariage entre leroi de France Louis VII et Alienord'Aquitaine, qui deviendra lafemme du roi d'AngleterreHenri II Plantagenet.Um alumbramento do medieval,como diria Manuel Bandeira. Asruelas estreitas e labirínticas. Ochão memorável. E as paredes,todas, pedrentas. Mas não dessaspedras da infância - que aindaassim já falam tanto em seu quase

anot

açõe

s de

via

gem

Beaugency, as prime

Praça em Beaugency

Igreja românica

Beira do Loire, Beaugency

Page 19: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

meio século de existência. Aquelaspedras falavam da infância da cul-tura do meu país. Aquelas pedrasdenunciavam a juventude da cul-tura do meu país. Aquelas pedrasmostravam, enfim e de algummodo, que é possível manter achama acesa, é possível acreditarna veemência passional, é possívelpreservar a linha altiva do amor. Eelas estavam ali, diante de nós,quase soletrando as lições dapedra do João Cabral.Lá também, em Beaugency, não se aprende a pedra. Lá a pedra,uma pedra de celebração entranha a alma.

E só saímos de Beaugencyquando a noite já se preparava equando aquela luz - estranha eestrangeira - luz de milagre(diria eu) se derramava em suaponte magnífica, gravando em nós,talvez para sempre, a imagem detrês crianças diante da Trindade. Ejá com a noite começada - mastão cedo ainda - prosseguimosnossa viagem pelos dadivososcaminhos do Loire, agradecidospor estarmos vivos e juntos pres-enciando aquela plenitude insub-mergível: a da vida, do amor, deDeus. Em Muide sur Loirearranjamos um pequeno hotel de

eiras lições da pedra

Ponte sobre o Loire, em Beaugency

Page 20: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

O primeiro chateau van

otaç

ões

de v

iage

m

quarto amplo - sem toillete - mascom pia e bidê. E uma cortininha,absolutamente devassável, pelamódica quantia de 110 francos.Deitamos muito cedo, tipo oitohoras da noite, após um bomlanche com os petiscos comprados em Etampés. Manhã seguinte, feito o petit déje-uner - até que enfim café comleite, pão e manteiga - seguimospara o Chateau du Chambord.Um fato a registrar: acordei por volta das 7 horas e ainda estava escuro, com o céu sequer prenunciando a manhã. Parecia o céu brasileiro no inverno

às 5,30 da manhã.De Muide sur Loire a Chambordseguimos por caminhos regionais,passando por pequenas aldeias,vendo a forma de viver, de morar,de cuidar das coisas. Por essescaminhos ganhávamos a intimi-dade das salas e dos quintais.Tudo muito cuidado e muito anti-go. Não há desleixo com nada:nem com o trator, nem com asferramentas de trabalho, nem coma lenha. A vida é limpa, necessária,exigente. Parece existir uma noçãode equilíbrio e harmonia em tudo.E foi com essa noção que anatureza humana nos preparou

Defronte ao Chateau du Chambord

Page 21: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

vale para sempre

para o encontro com o Chateaudu Chambord. Ao nos aproxi-marmos dele, os caminhos - sem-pre bem cuidados e bem sinaliza-dos - estavam cercados porbosques imensos, outonais. Folhassecas, caídas e avermelhadas, tin-giam o chão com cores esmaeci-das. Placas indicavam a presençade viados em retas imensas, abso-lutamente cinematográficas.Muitos filmes devem ter sido roda-dos por aqui. Filmes de época,pois existem caminhos de terraperfeitos para carruagens, coches,cavalgadas. Dá para se perceber apresença constante da mão

humana interferindo na natureza eordenando-a na busca da beleza,do equilíbrio e de Deus. E aí chegamos ao castelo - verdadeiroexemplo dessa busca. Mas eleestava fechado. Como fechadasestavam as lojas de souvenir e opetit hotel situado em suas proximidades. Resultado: fomossolucionar o problema das pilhasda máquina fotográfica em umaaldeia das cercanias - distante 7km do Chateau.Ao regressar voltamos com oespírito da família real que vaitomar posse de suas propriedades.Ainda assim pagamos 36 francos -

A escada projetada por Da Vinci Algumas das 365 torres

Page 22: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

só o rei e a rainha - pois aopríncipe foi vedada qualquerdespesa. Atravessamos o pátiointerno e adentramos ao vestíbuloaquecido pelo fogo das lareiras. Esó então deparamos com asecaliers, projeto originalíssimo deFrancisco I. Esse rei conheceu aItália de Da Vinci e solicitou aparticipação do mestre. A escada éfantástica e tem algo de mistério emagia. O castelo é impressionante:mais de 400 aposentos e 365 tor-res. Está parcialmente mobiliado ede suas torres e varandas pudemosavistar até alguns limites da nossanova propriedade. Após a visita,

atravessamos o fosso e vimos, aolonge, um de nossos servos caval-gando. O príncipe Christian colo-cou-se no jardim em estratégicaposição, tendo o castelo ao fundo,para a realização de um portraitreal. Depois, como bonsbrasileiros em viagem, fomos aomonumento do consumo - e nãocompramos nada, é claro. Aí pegamos o nosso Citroen rouge,de chapa rouge, e penetramos nomundo encantado das aldeias dosul da França. Não se atravessauma aldeia em mais de cinco min-utos. São belezas de concentraçãointensa. Uma muito próxima da

Até Da Vinci não resian

otaç

ões

de v

iage

m

Amboise

Amboise

Castelo

Page 23: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

outra. E tudo indica a existênciade um cotidiano nobre,solene.Eestamos seguindo o Loirequando, de repente, surgementradas no meio da terra, debaixodas pedras. O que é isso? São ascaves. E estamos na região dosvinhos -a caminho de Bordeaux.Paramos o carro em uma dessascaves e fomos lá conferir. Umapersonne âgée nos oferece o vin -blanc ou rouge? - em cálices decristal. Ao nosso redor, tonéis anti-gos, equipamentos de plantio, col-hedeiras, certificados, diplomas,

diversos instrumentos de trabalhoe muitas fotos de familiares, antigos vinicultores premiados.Cada cave era um pequeno museuguardando a memória e as vozes numa dialética de partida e retorno.Seguimos então para Blois- cidade de dimensões bem

maiores e já muitoimportante noséculo IX. Que,felizmente, preser-vou muito de suasfeições originais.Demos algumasvoltas por suas ruas, andamos umpouco a pé, tentamos telefonarpara o Brasil e visitamos umavelha igreja e sua cripta. Ana foi aoposto de turismo e conseguiu falarcom a Fátima. Fotografamos unslugares lindíssimos e o Chris fezxixi bem debaixo de um velho emonumental cedro do líbano. Daífomos para Amboise, passandopor um bom número de aldeias.Em Amboise tentamos visitar ocastelo, mas desistimos. Pensamostambém em visitar a casa onde DaVinci chegou a viver e morrer, mastambém desistimos. Passeamos umpouco a pé e resolvemos seguirpara Tours. Mas desta vez resolve-mos sair dos caminhos regionais.Pegamos a autoroute, pé fundo noacelerador, e fomos desistindo deTours, Bordeaux, Bonne e out-ras cidades. Aos poucos nossasbússolas psíquicas começaram aapontar claramente para o nossonovo destino: Espanha.

stiu ao Loire

Rua de comércio

Lápide de Da Vinci

Page 24: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

E embora a distância fosse bas-tante significativa, empunhamoscoragem e castanholas na direçãode San Sebastian - a primeiraciudad espanhola a ser conhecidapor nós. Passamos pela fronteirapor volta das 22h40 - após umpercurso de mais de seiscentosquilômetros - e entramos em umacidade rica, ampla e agitada."Aparcar el coche" era um prob-lema, bem como descobrir hotelou pensão, a preços razoáveis enaquele horário --que não pareciaser dos mais adequados. O hotelnão foi difícil. Demos sorte eachamos um, na praça principal,por 26 dólares.Mas el coche fué

sacal. Mais ainda: no hicimoscambio del dolar en la frontera eera sábado. Tínhamos,portanto,um problema. Gracias aDios solucionado en la mananade domingo. Hizo cambio de las-monedas en el Cassino de SanSebastian y pudo quitar lahospedage y volver --con plata enlos bolsillos - libre e hermoso porlas calles. Entonces, aparcamos elcoche y nos quedamos en unacafeteria para el nuestro desayunohecho de cafe, leche y croissant.Después nos volvemos en direcióna el Palácio (o será Castillo?), cer-rado.Mas situado en un cerrodonde es possible contemplar el

anot

açõe

s de

via

gem

E eu resistiria a voz d

San Sebastian, cidade muito rica

Page 25: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

cielo claro y diáfano y la mar deimenso color azul. Hecho eso nosfuimos de la ciudad. Na saída deSan Sebastian vimos as primeirasmontanhas, picos, tunéis. Não faziafrio e nem havia neve. Pelo jeito,não iríamos conhecer a neve nessatravessia. As primeiras aldeiasespanholas mostravam umafisionomia completamente difer-ente daquelas vistas na França. Ascasas velhas de pedra são antigas evelhas. As da França são antigassomente. São cuidadas, conser-

vadas. Os quintais espanhóis sãodesarrumados como as estradas.Aqui a Europa é quase brasileira.Notamos inmeráveis igrejas queaparecem em todos os lugarejosque a vista alcança. São antigas eidênticas. A primeira, a segunda e aterceira nos fascinam. Mas depoisde ver dezenas...eram como carim-bos, clichês. Lindas, porém.Entramos numa região mais desér-tica e a cada cidadezinha - lugarejocom 30 casas - presenciamos umanova forma de beleza. Casas e igre-jas de pedra, descuidadas e quasepobres. Constatamos que nada éperfeito. Não se pode ter tudo.Enquanto a França em seu interioré estética e arquitetonicamenteperfeita, o povo é frio e arrogante.Na Espanha é o oposto. O povo égentil, solícito, gracioso e simpáti-co. As cidades um esculacho. Jogampapel no chão, na estrada. Os quin-tais são bagunçados, etc.

do sangue?

San Sebastian

Beco em San Sebastian

Page 26: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Chegamos em Burgos ea cidade se nos apresen-ta surpreendente.Decepcionante. Não eranada do que esperáva-mos. Não era a cidademedieval. Só em algunslugares. Pouco se preser-vou. Aliás, já na entradada Espanha, antes de SanSebastian, vimos prédios,prédios modernos e semgraça. Assim, também,quando entramos emBurgos. À noite, nohotel, Rubens entrou emcrise com o seu amor espanhol.Chegamos em Burgos preparadospelo som do Canto General, doNeruda e do Teodorakis. No diaseguinte - Deus que é espanhol -nos levou pelas mãos até aCatedral de Burgos. Que espanto!É mais linda, mais monumental,mais artisticamente rica do queNotre Damme e Beaugency.Saímos da Catedral e entramos na igreja de San Nicolás. O padre rezava a missa. No sermão ouvimos um verdadeiro discurso revolucionário dosespanhóis guerreiros, sensíveis epolitizados. Era a igreja da

renovação, a igreja da libertaçãodos Leonardo Boff.Saímos gratos, com a alma lavadade humildade e gratidão.Passamos pelas portas medievais.Lembro agora do circuito pelasruelas medievais de Blois, quecomeçava descendo umaescadaria ao lado da igreja.Chovia um pouco como águabenta. As ruelas de pedra mol-hadas. Cada casa com sua cortinade renda, como casa de boneca.Voltemos à Espanha. Nesta fase daviagem, voltávamos o tempo todo- em pensamento - ao interior daFrança. Em Burgos só pensáva-

Meu amor espanhol ean

otaç

ões

de v

iage

m Arco de Sta Maria, porta principalda entrada de Burgos

Page 27: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

mos que devíamos ter nos detidomais na França. Mas como issonão aconteceu assim, resolvemosacatar os desígnios do destino etocar adiante. Fomos ao antigoHospital de los Reis onde hojefunciona uma universidade. É mar-avilhoso. Partimos, então, paraSegóvia. Mas no caminho áridoavistamos, numa colina ao ladoesquerdo, um conjuntoarquitetônico com torres e mural-has cor de terra. Fomos imediata-mente atraídos por aquilo e saímosda ruta nacional. Um sonhocomo sempre eu imaginei quepudesse ser ao viajar, avistar uma

outra época,fisicamenteinstalada nohorizonte eque, aoadentrá-la,eu me trans-formarianuma con-dessa oucamponesada idademédia. EraLerma.Como falarde Lerma?

Esta era a cidade medieval queatravessou o tempo intacta.Pequena. Uma jóia. A muralha, asruelas como um labirinto estreitoem ladeiras e a porta monumental.No ponto mais alto, a igreja.Ventava muito para que nossaemoção voasse goticamente aodivino. A praça medieval - fechada

entrou em criseCatedral de Burgos,das mais belas do mundo

Esta visão de Lerma alterou nossa viagem.

Page 28: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

- tendo a casa do duque dominan-do o povoado. Sentei e fiquei -para parar os relógios e parar osventos. Quatro homens velhosandavam sob a arcaria das casasda praça, pra lá e pra cá, conver-sando sobre coisas da vida, nummisto de Cooper espanhol,medieval e aposentado. Fizemos onosso piquenique que o Chrisgosta tanto. O sino da igrejabadalou. Como ir embora deLerma? Tínhamos que ficar.Achamos um hotel lindíssimo ebarato. Resolvemos ir a Segóvia evoltar para dormir em Lerma.Dirigimo-nos a Segóvia por estra-da regional, cheia de curvas. Que

região árida! É quase um desertode pedras. Estranhos lugares. Nosolo aparecem vários amontoadosde pedra com pequeninhas portasdo tamanho de 1 metro. Parecemcaves. Apareceram plantações deuva, mas podadas, sem galhos.Avistamos Turégano, a cidade e ocastelo. Outro sonho da viajante.Avistar um castelo abandonado naestrada. Do século XIII, restaura-do no século XV. Com fosso,muralha - e abandonado.Totalmente abandonado. Osespanhóis não preservam seusmonumentos. Parece pobrezabrasileira. Em Segóvia, sentimoscomo a informação turístico-cul-

anot

açõe

s de

via

gem

Lerma é para parar o

Ana e Chris na Praça, em Lerma Outra praça, Lerma

Page 29: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

tural é pobre, quase inexistente.Nossa curiosidade fica sedenta dehistória. Na França existem etique-tas, placas e folhetos que contamsua gloriosa história. A história daEspanha não é menos gloriosa -mas não nos contam. Segóvia émedieval. Assustadoramente bemconservada. Como se andássemosem tunéis, percorremos suasruelas estreitas protegidas porescarpadas paredes de pedra.Vimos o Alcazar. O Chriscomeçou a entender o tempo dosreis e dos cavaleiros. As armadurase as muralhas ganharam signifi-cação para ele ao entender osataques e as defesas. Percebeu asriquezas concentradas nas mãos defamílias que tinham o sangue azuldiferente do sangue vermelho dopovo. Mas o testemunho existente

desses tempos foi construído pelopovo, por estes povos de culturatão distinta, tão religiosa. A religiãotambém deixou testemunhos rica-mente arquitetados e simbolica-mente artísticos.O Chris gosta dostemplos, do silencio solene de suaspedras monumentais. Da amplidãoescurecida das paredes talhadas eesculpidas, das capelas, criptas etúmulos à luz de velas. Ele gostados padres e da água benta. Eudigo que ele é igrejeiro. Ele dizque eu sou casteleira.

os relógios...

Muitas águas no Alcazar

O aqueduto de Segóvia

Panoramica de Segóvia

Page 30: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Ao contrário do que esperávamos,Toledo--assim como Burgos --nos decepcionou. A cidade é linda.Mas não conseguimos perceber oschamados e as vozes milenares deseus chefes e guias. E de seu povo.Algo que aconteceu de imediato emLerma e Segóvia. Acho que sãolinguagens diferentes, mas cadacidade tem um jeito próprio de ser.Embora nesse caso cada cidadeapresente traços bastante comuns--está sempre viva e presente ainfluência árabe, judaica e suasconsequências na organizaçãosocial, urbana e religiosa-- cadauma aponta para uma direção.Cada uma indica um caminho.

Cada uma tem um rosto e umcorpo. Cada uma denúncia umjeito de ser. Igualzinho gente. Temcidade extrovertida e cidade intro-vertida. Tem cidade tímida e cidadedescontraída, assanhada. Temcidade generosa que se ofereceinteira já ao primeiro contato. Etem cidade complicada e arredia,que se reserva o direito de seesconder, dificultando todos oscontatos. Mas todas as cidades --como todas as pessoas --devem terseus encantos, seus pontos deatração e sedução.E também seuspontos de rejeição. E, se as difer-enças existem, é para serem val-orizadas e percebidas. Caso con-

Cidade é igual gentean

otaç

ões

de v

iage

m Catedral de Toledo Plátanos em Burgos

Madri: Parque Buen RetiroMadri: Templo de Debot

Page 31: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

trário, seria o caos e a miséria.Também aí é igualzinho gente. Masnão poderia ser de outro modo.Afinal, as cidades, os países e as cul-turas são prolongamentos, extensõese expressão de pessoas. Portanto, degente.(Vou parar por aqui, pois jáestou falando abobrinha. É ocansaço. Vou dormir que é o que aAna e o Chris estão fazendo. Adios.)De Toledo fomos para Madri.Ciudad hermosa, caliente. Aí eu meperguntei: onde estão as muchachasde la plaza espanha? E elas aparece-ram, como num filme infantil. Masseus encantos --assim como o dasparisienses -- deixam muito a dese-jar. Ainda assim, elas são mais inter-essantes e cafonas -- na verdade maishumanas -- que as francesas. Masvolvemos a la ciudad. É bela, har-moniosa, rica. Existem prédios com-pletamente destacáveis, embora oconjunto todo seja de altíssimonível. O dos correios é umdeles. E tem o parque do Retiro(onde fizemos nosso primeiropiquenique espanhol, no meiode árvores outonais, repletas defolhas alaranjadas e amareleci-das. Esse parque é enorme evira e mexe estava --ou aonosso lado, ou à nossa frente.Pra variar, demos sorte ao

achar o Hotel --uma competenteindicação do Frommers. O lugar eraexcelente e próximo de tudo: daPlaza Mayor, do Museu do Prado, doPasseio da Recoleta, do Parque BuenRetiro, da Plaza Cybelle, da Puertadel Sol, e da Estación de Ferrocarrilde Atocha. Só o preço é que estavadesatualizado. No Frommers eram19 dólares e no real, concreto, tivemos que desembolsar 30 dólarespor diária. De qualquer forma valeu a pena e foi, assim mesmo,muito barato. Estávamos na calleAtocha, num bom quarto com cama de casal, cama para o Chris,ducha para banho e pia. E uma calefação das mais perfeitas. O calor era tanto que eu ficava pelado, a Ana não reclamava do frioe o Chris ficava com as amadasbochechinhas vermelhas, vermelhinhas.

e: tímida, assanhada...

No Alcazar

Page 32: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

E é claro, a Ana não nos davasossego: é rua, é calle, é museu, épasseo, é cason, é iglesia, épanaderia, é joyeria, feria de rega-los, é broma, é churreria, asadores,escaleras, etc, etc. E yo y Chris conla língua pra fuera, rogando a diostornar possible vivir toda la vida en una manana. Minha primeira emoção de lágri-mas ( e eu pensava que nãochegaríamos mais as lágrimas,afinal a tudo se acostuma) foi verAs Meninas, de Velasques, noMuseu do Prado. Não conseguiame afastar daquela imagem queme encanta desde a leitura de As

Palavras e as Coisas, de Foucault.O Chris se interessou muito pelosquadros do Prado. Pedia expli-cações, queria saber tudo, princi-palmente sobre os pré-rafaelinos,os de arte sacra e toda a históriacristã. Fantástica e impression-ante a pintura negra de Goya.Para mim, eu queria ver oAssassinato de Rivera. É incrívelver os mitos. Não dá paradessacralizar os museus nessesentido. O museu é o sacrário daarte, sacrário da memória. O quetemos de fazer é dessacralizar oacesso. Não vimos Guérnica, nemvimos o Palácio Real por dentro.

anot

açõe

s de

via

gem

Velasques arranca láMuseu do Prado Puerta del Sol

Café Gijón, fundado em 1888

Page 33: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Tudo é pago nestas terraseuropéias. Mas Madri é generosa.Gostei de Madri. Na Espanha aspessoas passeiam pelas ruas.Pessoas bem vestidas --como emParis. Casacos e mais mantôs,peles...Os homens de sobretudo.Muito elegantes. É povo rico e oscasacos não são antigos. São novose modernos. As pessoas ficammuito nas ruas--e até muito tarde.Senhoras, crianças, bebês em car-rinhos fechados, todos agasalhados,parecem bolas como diz o Tuca. APlaza Mayor foi o maior diverti-mento para o Chris. Havia umafeira de Natal e junto com as bar-

racas comenfeites, presé-pios incríveis,barracas demáscaras, mág-icas, perucasruivas, vermel-has, chapéus debruxa, cocô deplástico, peitose bundas, xox-otinhas e até opichichitopulador. OChris pareciaque ia explodir

de tanto rir. Fomos a um restau-rante chinês para matar a saudadedo arroz e da comida quente, bemtransada. O sorvete do Chris veiocom uma sombrinha japonesa deadereço. Vimos o templo deDebot. Tomamos drinks no Gijon- café badalado de escritores eartistas - após caminhar a pé peloPasseo do Prado, Ricoleta ePlaza Cybelle. Lindezas!Encontramos também, perto doHotel, uma loja que comercializavainsetos, cobras, borboletas, peixes,aranhas, baratas, besouros detodos os tipos e tamanhos, cabeçade touro, veado, incrível.

ágrimas da AnaPlaza Cybelle

Page 34: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Fomos até o Escorial, cidadezin-ha muito próxima a Madri, situadano corpo da serra de Guadarrama,e pudemos nos deliciar com seuconjunto arquitetônico que foideclarado patrimonio dahumanidade em 1984. É impressio-nante pela monumentalidade. OMonastério ou Palácio Real é aber-to para a visitação pública. e pode-se ver, entre outras coisas, umCristo de Bernini e outro deCellini, este em mármore branco.E a cidade, que já foi centro políti-co do império de Felipe II, é umagracinha montanhesa. Limpa echeia de encantos. Tem um teatro

sensacional e até jovens padresusando batina. Fizemos também umpasseio até Ávila, cidade amuralha-da que nos impressionou muito.Lá conhecemos uma réplica daPlaza Mayor de Madri, muito acolhedora. E, no caminho deBarcelona, não resistimos edemos uma chegadinha emZaragoza. Atraídos pela visão ilu-minada de sua catedral, deixamosa estrada em busca daquela belezaimponente, majestática,sequestradora. Em poucos minu-tos estávamos em uma larga aveni-da que mostrava, em seu final,uma igreja verdadeiramente deli-

anot

açõe

s de

via

gem

Arquitetura de Barce

Escorial

Ávila: Ana, Chris e a muralha

Barcelona vista do Montjuich

Catedral de Zaragoza

Page 35: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

rante, linda. E uma praça ampla queharmonizava traçados modernoscom o que há de mais magnífico domedieval. Mas como nosso destinoera Barcelona e já era noite,ficamos pouco tempo eprosseguimos nossa viagem. Fomosaté Lérida, onde descobrimos umbonito hotel, situado junto a estaçãode trem, em uma praça. E na manhãseguinte rumamos para Barcelona,a cidade que deu ao mundo umGaudi --arquiteto-escultor de mar-avilhas. E bastou chegar lá paraperceber, que todas as loucuras egenialidades do Gaudi, estavamalicerçadas em uma longa e evi-dente história. Mesmo as maisousadas formas da SagradaFamília ou do Parque Guellexplicam-se, quase que de imediato,ao contato com a arquitetura deBarcelona.Ela também é ousada eabusada. Mas tem um aspecto inter-essante: nada causa repulsa, nadafere as noções de equilíbrio, dejusta medida e bom gosto. Assoluções mais surpreendentes pare-cem integradas nos diferentes con-juntos e na relação de linhas e vol-umes. E Barcelona é também, ind-isfarçadamente, badalada, mundanae provinviana --no bom sentido, é

elona justifica Gaudi

Casa, obra do Gaudi

Catedral de Barcelona

Page 36: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

claro. Nas ramblas você vê detudo: bares, cafés, restaurantes,músicos, bailarinas, trabalhadores,estudantes, esculturas vivas, discos,livros, bancas de jornais que vendem de tudo. E gente que nãoacaba mais, passeando de lá pracá. Bem tipo footing em cidadezinha do interior. A únicadiferença é o entorno: urbanística-mente rico, solene, belo. E, claro,as pessoas. Bem alimentadas e bem vestidas.Chegamos cedo em Barcelona eprocuramos o albergue da juven-tude, situado em prédio magnífico.Alojamos nossos bagulhos em um

quarto, lá no alto, e descemosescada abaixo e depois cidadeabaixo em busca de uma refeiçãodecente. Encontramos na ramblaum movimentado ristorante ital-iano e aí resolvemos ficar. Emborahouvesse muita gente, muito ti-ti-ti,conseguimos mesa sem grandes

anot

açõe

s de

via

gem

Sagrada Família despCasa Mila, obra do Gaudi

Parque Guell

Page 37: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

dificuldades. E mandamos ver numspaghetti a bolonhesa, vinho, pizzamargherita e refrigerante. Em segui-da, passeamos a pé pelo bairro dosjudeus. Ana e Chris resolveram visi-tar uma exposição de presépios eeu fiquei na rambla. Olhando pes-soas, prédios, objetos e lojas. Umcansaço impossível de ser controla-do fez com que voltássemos aoalbergue de nossa terminal juven-tude. Repousamos um pouco,tomamos banho e partimos, nova-mente, em direção ao centro dacidade. Mas como a exaustão nãonos abandonava, decidimos sentarno bar mais badalado da rambla --

em pleno calçadão -- e observar osacontecimentos ao redor. Detalhe:nessa noite o bar fechava mais cedoe todos os cliente tinham que sedirigir ao balcão, pedir, pagar e daruma de garçom levando as coisaspara a mesa. Acho que ficamos maisou menos uma hora nesse lugar.Depois pegamos o carro e fomosprocurar a Sagrada Família. Nocaminho --ou no descaminho --depois de idas e vindas, jovensmuito atenciosos levaram-nos até lá.E lá foi aquilo que Deus sabe: umimpacto de comovente beleza. OChris ficou alucinado e nósboquiabertos com aquelas dimen-sões exageradas que, apesar detudo, nos faziam lembrar dos caste-los de areia feitos, por nós mes-mos, nas brasileiras praias do nossoAtlântico. Nessa noite, aindapasseamos bastante pelas ruas deBarcelona. Visitamos uma famosacasa construída por Gaudi, peram-bulamos pelo corpo da cidade evoltamos ao albergue. Dia seguintemais exageros e loucuras: ParqueGuell, Monumento a Colombo,praias do mediterrâneo, SagradaFamília de novo e Montjuich,local das Olimpíadas e da fundação Miró.

perta paixão no Chris

Sagrada Família

Page 38: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Saimos de Barcelona por voltadas 6 horas da tarde, depois deum passeio em Montjuich --lugar fantástico, cheio de atrações:museus, igreja, castelo, parc deatraccion, fundação Miró, etc. Euma vista panorâmica de 200ºsobre a cidade, incluindo nissoparte do Mediterrâneo. Fizemos aío nosso piquenique --kentuckyfried chicken -- debaixo de umaventania atroz. E descemos ladeiraabaixo em busca de Gerona.Como sempre, a sorte bafejandoem nosso caminho. E a Ana co-pilotando. com exatidão epresteza, a malha viária, as avingu-

das, as carrer e as estradas. Aforaos congestionamentos daquelahora, não tivemos nenhuma difi-culdade e, com paciência, atingi-mos a ruta nacional NII -- sempeaje -- rumo a Gerona, passan-do pela Costa Brava. Nesse tre-cho, bem junto ao mar mediterrâ-neo, o tráfego estava de amargar.Um movimento louco nos doissentidos --e uma cidade grudadana outra. Parecia uma avenidamovimentada, com direito a semá-foros e uns retornos para quemfosse entrar à esquerda nascidades. E assim fomos nós,tocando vagarosamente nosso ágil

Gerona nos aguarda an

otaç

ões

de v

iage

m

Entrada lateral da Catedral Ruas sagradas

Page 39: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

e rouge citroen em meio aquelepovo que, insistentemente não abandona as ruas, as praças e até asestradas. E não é que de repentecomeçou a chover. Chuva fina,fraca. Ligo o limpador. Desligo.Volto a ligar. E assim vai até que otrânsito pára e aos poucos volta afluir. Nesse instante olhamos prafora buscando as bravuras da costae encontramos, nada mais nadamenos do que hielo forrando oasfalto. O Chris dormia no bancotraseiro e a Ana tentou acordá-lo.Ele relutou em despertar e por issonão insistimos. Perguntei pra Ana:será que é neve? Ela garantiu: não.

Mas o asfalto parecia uma pista depatinação de gelo. Essa impressão --embora equivocada -- foi despertan-do-nos para essas coisas danatureza, da natureza do homem eaté da natureza de Deus. Eindelevelmente marcados por essaforça trinitária, seguimos,prosseguimos. Na imaginação, omedo de Gerona ser uma cidademuito grande despejando carros epessoas estrada afora. Um medo relevante e significativo dada anossa experiência em Burgos. Equanto mais nos aproximamos deGerona, mais o medo vai crescen-do. Ainda assim, lembro e relembro

e promete surpresas

Becos mágicos

Gerona contemporânea

Água de beber

Page 40: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

o meu desejo de estar aqui. Desejonascido da palavra Gerona e poralgumas imagens vistas via folhetose fotos. E é chegando em Geronaque o medo e o amor vão aumen-tando. Ela parece grande demais --como Burgos -- e até meio vulgar.Eu e Ana comentamos essa sen-sação --já mais ou menos confor-mados. Nisso chegamos a Praçada Catalunya, na beira do rioOnyar --espécie de centro dacidade -- seguindo placas até doalbergue da juventude. Aí comeceia perder o medo, a ficar feliz e adeixar o mistério agir livremente.Paramos o carro em fila dupla e

eu saí, rápido,em busca do alber-gue. Já no caminho, o bafo deDeus em minha nuca coloca aoficina de turismo à minha frente.A mulher que atende é mais sim-pática, tranquila e gentil do quetodas as outras. Deu dicas, fol-hetos, mapas e ainda se colocoutotalmente disponível para may-ores informaciones. E tudo issocom um sorriso iluminando seurosto e seu corpo inteiro. Aí estavauma mulher trabalhando naquiloque gosta. Obtendo prazer nessatroca e nesse contato. E é claroque esse doação íntegra reacendeua minha confiança e a minha auto

anot

açõe

s de

via

gem

Gerona nos enreda eCatedral de Gerona

Bairro judeu

Page 41: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

estima. Saí de lárumo ao albergue.-Habitacionespara família soloen el verano, medije el otro.Saí novamente pelasortida -- emfrancês é sortie --eainda animadíssi-mo busquei outrolugar. A primeirapension na mesma carrer --calleem espanhol -- foi vista e visitada. O ponto era excelente, oquarto muito bom, mas muito lá noalto. E o preço, de 34 dólares pranós três, ainda impulsionou-nos emdireção a uma outra pension maisbarata. Voltei ao coche e seguimosem direção a ela. O lugar era pior,mais longe do centro e o catalãoainda quis separar nuestra famíliaen dos habitaciones pela módicaquantia de 3800 pesetas. Resultado:volvemos a la otra. E é bom registrar que a Ana e oChris --meus parceiros amados--ficaram en el coche enquanto eu fuiver o albergue e a primeirapension. Mas agora estávamos nóstrês, juntos de novo, vivendo asmesmas experiências. Ainda de

encantamento emedo que,pouco a pouco,foi se dissolven-do para nosenredar natrama mais finae urdida dosmeandrosamorosos deDeus e doshomens. Eu

estava e estou alegre e feliz porestar aqui. Juntos de meus maioresamados, expressões vivas da graçade Deus e da vida. E foi assim --num clima de excitação -- que deix-amos as malas na pension e fomoscaminhar pelas ruas. Infelizmente,quase tudo estava fechado, excetoos cafés e os restaurantes. Mas deupra perceber que tudo é muitobonito em todo lugar. Desde aarquitetura, o traçado das ruas e asfachadas dos prédios e das lojas --até os regalos e os presentes. E foicaminhando que fomos desco-brindo -- os três juntos --o jeito deser dessa Gerona que não nosgerou, mas estava gerando umnascimento estranho. Outro sortilé-gio: com quase tudo fechado, ondeiríamos compar pão? Perguntamos a

em suas tramas finas

Paisagem urbana

Page 42: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

alguém que ia passando e aresposta não poderia ser outra (jáouvida tantas vezes): cerrado! Aspanaderias estavam cerradas.Certamente elas estavam cerradaspara os espanhóis, mongóis,celtas, visigodos, bárbaros ejudeus. Mas pra nós elas não sóestavam abiertas como se trans-formaram até num minimercado.E pudemos comprar, entre outrascoisas, o tomate que a Ana queria,a maçã sagrada do Chris, a coca-cola, a azeitona nacional, as tor-radas e até bananas.E a sorte e o sortilégio nãoficaram restritos a isso. Até aí

resolvemos um problema demuquiranice. Em seguida,resolveríamos um problemamaior. Pegamos o carro --tínhamos necessidade de aparcarele coche -- e inventamos de daruma volta pela cidade. Aí foiaquela experiência enlouquecedo-ra. Becos medievais labirínticosforam nos conduzindo em direçãoa Catedral, ao pórtico e a muralha que circunda a cidade. Aemoção da Ana, do Chris e aminha somavam-se em unidadeindizível, inexpressável.Novamente a tríade, o três, atrindade estava sendo vivenciada.

anot

açõe

s de

via

gem

Gerona é intraduzívePalácio dos Agullana Banhos árabes

Page 43: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Milagre é isso: Gerona, Girona.Com seus planos caleidoscópicos,com sua força telúrica ainda pul-sante. Gerona é intraduzível: umaautêntica celebração de Deus. E dabeleza. Minha impressão mais viva éque nunca mais na minha vida e,portanto, nesta viagem e nas próxi-mas, eu poderei me sentir tão com-pleto, tão coeso, tão inteiro. E tãoencantado. E esse passeio pelosbecos, de carro, ainda acabou nosproporcionando --também mila-grosamente--nossa chegada à Praçada Catalunya, beira do rio, ondedeveríamos aparcar el coche. Aí volvemos a la pensión y nos

quedamos maravilhados. Manhã seguinte acordei cedo e abria janela: o céu azul e aquela varan-da vieja de hierro batido hicieronmi corazon pulsar de nuevo.Saquei una foto de recuerdo.Chamei a Ana para mirar aquilo efomos juntos acordar el campeon.Chris se levantou e descemos lasinterminables escaleras. Hiciimosnuestro desayuno --café con lechey croissant--e voltamos a seguir atrilha do milagre noturno. Paramosna igreja de San Feliu e partici-pamos da missa do dia 8 de dezem-bro, da Virgem Maria. Comungamoscom o povo de Gerona o corpomístico de Cristo. Pela primeira vezsenti a presença Dele em minhaboca. O simbolismo da eucaristiaquase me tornou um antropófago.Aquelas históricas palavras fazendoalusão de que a hostia é o corpo deCristo, adquiriu realidade incon-testável. E eu gostei de vivenciaresse ritual mágico dentro dessacidade mágica em uma igreja mági-ca e em circunstâncias absoluta-mente mágicas. Acho que emGerona eu viraria um carola ecomungaria todos os dias como o velho e admiráel mestre AlceuAmoroso Lima.

el e me revela íntegroIgreja de San Feliu

Page 44: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Depois dessa imersão na santi-dade, seguimos a pé até aCatedral. Sob a maior nave góticado mundo, os padres paramenta-dos oficiavam outra missa. E opovo de Gerona estava lá, rever-enciando e celebrando a Virgem,com organista tocando e um mar-avilhoso coral cantando. A Anaveio abaixo com suas raízes deMaria e chorava soluçado ao sedefrontar com sua verdadeiravocação, divina e humana. Tireiuma foto dela, mas não sei se elavai mostrar a harmonia que eupresenciei: a alegria infinitamenteprofunda de pertencer, com umi-

dade e humildade, a espéciehumana que consagroue celebrou estas belezas.

E eu chorei, chorei soluçado,lavando a alma, as lembranças,as gratidões todas por estar aquipelas mãos do Senhor. Senhorque disse ao fariseu que assistiaa missa perto do altar, que acasa de Deus era daquelehumilde que não passava daprimeira porta, no fundo daIgreja. Assim também o reino deDeus. E eu me senti humilde,miserável diante daquela nave --a maior largura de uma navegótica, altíssima-- ouvindo o

Gerona é reencontro can

otaç

ões

de v

iage

m

Gerona vista do Rio Onyar

Page 45: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

coro da igreja can-tando os salmos deNossa Senhora. Era 8 de dezembro...Obrigado Senhorpor me trazer à suacasa. Casa erigidana direção pretensade sua glória, poissó à glória de Deus,os homens foramcapazes de edificarbelezas maiores eartes sublimes.Obrigado pelosmeus amores, obri-gado por me convi-dar ao banquetemístico da reli-giosidade que elevao pequeno homem à visão doinfinito. Gerona, Gerona e aestrela de Davi iluminou estelugar onde os arquitetos puderam cumprir de forma maisbela o tecido urbano. A cada passo, a cada ângulo olhado capturamos uma imagem comple-ta da estética presepal.E enquanto escrevíamos estasemoções em um belo hotel em Pisa,extremamente próximo à celebrada

Torre, o Chris pediu a caneta parafazer um desenho. Eis aí o seu trabalho com direito a uma assinatura que ele mesmo quis registrar. Creio que não precisamosdizer mais nada. Sobre Gerona.Sobre esta viagem mística. E sobre a sintonia fina, perfeita, que continua nos movendo em direção a uma verdade mais profunda e mais alicerçada na harmonia e no encantamento.

com vibrações antigas Igreja de San Nicolau

Page 46: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

De Gerona seguimos paraFigueres ao encontro das lou-curas do Dali. Chegamos tarde,proximo das 6 de la tarde, horáriode fechamento do museu. Mas deupra entrar e, graças a umamuseografia competente, nossocurtição das estrepolias do gêniocatalão não foi prejudicada. Omuseu está situado em um grandeprédio que, já do lado de fora,mostra bem a irreverência domestre surrealista: as paredesexternas, altíssimas, estão forradas com um elemento decorativo-simbólico que o Chris denominou cocô.

Um aspecto interessante e rele-vante do trabalho de Dali foi ainteração e a participação lúdicado Chris. Com 5 anos, ele estavavivamente interessado em tudo.Em determinados momentos suareação era tão espontânea que elegargalhava e era difícil fazê-loparar de rir. Ele quis olhar algu-mas obras através do visor; subiunas escaleras para reconstruiraquela obra enorme dos lábioscarnudos; ficou impressionadocom as gravuras eróticas e curtiumuito algumas esculturas onde oselementos estão colocados numaordem absolutamente anticonven-

anot

açõe

s de

via

gem

Gerona, Figueres, NiMuseu Dali, Figueres Nice

Page 47: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

cional. Enfim,valeu apenaessa visita ráp-ida ao museu.Até porquenão con-hecíamosmuitos trabal-hos interes-santes que o marqueteiro do surrre-alismo realizou na segunda décadado século passado.E de Figueres tomamos o caminhoda França e da Itália. Nosso desti-no --inicialmente era Marseille.Mas resolvemos, depois de passarpor Montpelier, seguir viagem atéa Côte D’Azur. Lembramos muitoda Carminha e do Zezinho que noshaviam falado da loucura que sãoos tunéis nesse trecho. Passamospor Cannes e chegamos a Nice.Rodamos aí em busca de pensão enão encontramos nada. Fomos até apraia -- ridiculamente pedrenta-- eapós infindáveis buscas,conseguimos colocargasoleo no carro.Estávamos em plenamadrugada --2 horas damanhã -- e os person-agens típicos da noitedesfilavam seus modos e

seus jeitos.Vi uma mul-her, interes-sante, dechapéu ecasaco sen-tada no capôde um carroem plena

avenida beira-mar. E vimos outra,na saida do posto, que parecia per-sonagem de filme da nouvelle-vague: vestida de preto, ela impunha sua altura, sua beleza eum certo ar de angústia gasta atodos os passantes.Seguimos então pela avenida beira-mar rumo ao principado deMõnaco. E que caminho bonito! Aestrada vai serpenteando a montan-ha e atinge alturas incríveis. É umsobe e desce danado. Pena a genteter viajado de noite. Ainda assim,valeu. Passamos pela fronteira daFrança e entramos na Itália. Só

conseguimos cameraper una notte por voltadas 4h30 da manhã emImpéria, na CostaZurra. O pernoite custou 40 mil liras numquarto enorme.Acordamos cedo e

ce, Monaco, Impéria

Monaco

Impéria

Page 48: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

andiammo via per la stradaregionale piu proxima del maretirreno. A mesma geografia acidentada, curvas, escarpas depedra, recortes litorâneos, altos ebaixos da costa francesa. Umabeleza este bel paese que nos deuDante e Petrarca, a sonata e osoneto, Da Vinci e Michelangelo,Fellini e Visconti. E este caminhobonito de paisagens tão antigasque, passando por Oneglia,Alassio, Albenga, Savona,Genova, La Spezia, vai noslevando para Pisa --a cidade daTorre inclinada. Próximos a LaSpezia pensei em comprar um

cartão postal e mandar para aPina, mãe da Ivone. Mas nãoentramos na cidade e, em Pisaque é bem pertinho, não encon-tramos o tal do cartão. Uma penapois acho que ela ficaria muitofeliz em receber algo assim demim, até porque o vô André --paidela-- era nascido lá e trazia nosobrenome o nome dessa cidade.Mas valeu a lembrança e a intenção,embora o gesto tenha ficado sus-penso no ar e irrealizado. Umaespécie de semente que não bro-tou e não ganhou luz. Chegamosbem no final da tarde em Pisa e,antes mesmo de arranjar hotel,

anot

açõe

s de

via

gem

Savona, Genova, Livo

Savona

GênovaPisa

Page 49: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

estacionamos o carro e fomos veri-ficar o estado da celebrada Torreque, por motivo de reforma, estavachiusa. Portanto, não tivemos a sen-sação de subir seus 294 degraus eapreciar a cidade lá de cima.Mas mesmo dispensados dessas ele-vações, tão pouco espirituais,pudemos contemplar e caminharpor esse belíssimo Quadrilateroformado pela Torre, peloDuomo(séc.XI), pelo Battistero eo Cimitero. E bem juntinho detudo isso estava a Oficina deTurismo, que nos proveu de mapas,folhetos e relação de hotéis.Ficamos em um, bem

pertinho do Quadrilatero, em umapraça onde parquegiamo lamáquina. Nos acomodamos nohotel, tomamos banho e descemospara enfrentar nossa primeirarefeição na terra das mammas. Nosbanqueteamos ali mesmo, ao ladodo hotel: insalata, spaghetti allabolognese, coca-cola e aquele can-tado e decantado vinho nacional,caracterizado pela individualidade epela criatividade de seus produ-tores. São mais de 800 tipos difer-entes de vinhos se considerados sóaqueles com proveniência garanti-ta. Esse número sobe a mais de 4mil quando se consideram os nãocontrolados. Ou não classificados. Eo preço é aquela gracinha deliciosa:igual ao dos refrigerantes.Saímos de Pisa mais ou menosperto da hora do almoço e resolve-mos passar por Livorno,Rosignano, Cecina, Castagneto,Campiglia, Grosseto, Tarquíniae Civitavecchia. Aí pegamos aautostrada, bem no final da tarde,e as placas indicavam nossa proxim-idade com Roma, a cidade eterna,lendária, poderosa e múltipla. Echegamos lá ao anoitecer com dire-ito as cantorias do Pavarotti e tudomais. Coincidência feliz: despojados

orno, CivitavecchiaLivorno

Civitaveccia

Page 50: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

do mapa da cidade, fomos andan-do alhures, ao deusdará.E não deuoutra: entramos em Roma, aimperial, costeando uma enormemuralha que circundava, precisa-mente, o Estado do Vaticano. OChris falou em sua sabedoriainfantil: o Vaticano é abençoado. Etudo se fez benção nessa acidenta-da chegada, onde invadimos inclu-sive uma área restrita daqueleEstado. E daí pra frente foi a lou-cura de ajustar-se a um trânsitoinquieto, mal sinalizado e terrivel-mente assustador. Em Paris todasas implicações da voiture já sãocomplicadas. Em Madri el coche

também é um problema. Mas emRoma tudo isso é elevado a umapotência infinita. Não há espaçopara parquegiare, as avenidasdesembocam em becos e ruelas eas ruelas passam por monumentosmemoráveis que vão surgindo aoacaso. É um surpreender-se per-manente. Roma é tudo: é romana,gótica, renascentista, clássica,moderna. E tem um trânsito infer-nal, que se mistura ao repicar dos sinos e a ebulição perpétua de sua atmosfera.E os italianos parquegiam lasmáquinas dos modos mais ina-creditáveis. Tipo não dá pra sair e

anot

açõe

s de

via

gem

A maratona só termiMuralha do Vaticano

Piazza Navona

Tränsito

Comércio

Forum

Page 51: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

não dá pra entrar. E pior: deixamem fila dupla, tripla. Resultado:quase todos os carros em Romaestão batidos, amassados. Cheguei aver uma freira --com hábito e tudo -- buzinar insistente e irritadamente,logo cedo, para depois arranjarespaço de algum jeito --batendoinclusive numa Mercedes --pra sairdaquele beco sem saída. Roma decerta forma é isso também: umafreira de tpm, irreverente e rebelde.Algo que nunca vimos. Um coquetelde paganismo e cristianismo. Opróprio corpo da cidade revela esseantagonismo histórico e essa multi-plicidade. Você vê, vive e viaja por

vias que vão desde aquela coisaAppia, helenística, até o rissorgi-mento, passando pelo Campidoglioe por torres, colunas, cúpulas,teatros, fontes e becos.

ina na lendária Roma

Campidoglio

Piazza Spagna

Page 52: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Roma é incapturável. Fascinante.Surpeendente. Ás vezes ela édespótica e autoritária como oscésares. Outras vezes ela é terna eeterna. Lirismo puro. Exageradoencantamento. Mas como todas ascoisas humanas não podem ser perfeitas, em Roma existem osromanos. Da mesma forma que noBrasil existem os brasileiros. Querdizer: a incompletude, a imper-feição, aquele eterno buraco do serque vai pro buraco, irremediavel-mente. E olha que eles têm um altopadrão de vida. Basta atentar parasuas roupas, seus carros, seushábitos. De qualquer jeito, eles tam-

bém estão como todos nós: atoladosna miséria dos conflitos deste temposem ética e sem estética. Aliás, avida contemporânea, consequênciade um processo deflagrado com osurgimento da burguesia, está conc-retamente disseminada pelo mundo.A aldeia global do MacLuhan --queaté então era livro, análise,prospeção --é hoje realidade mani-festa, concreta e vivenciada. Claroque com imperfeição e pre-cariedade. Mas com um sentido eum sentimento alentado e aleitadonas tetas da grande mãe Terra.Lamentavelmente, os meios decomunicação de massa, aliados a

anot

açõe

s de

via

gem

E Roma é incapturáv

Forum

Page 53: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

outras tecnologiasavançadas --como aautomação e a robótica-- aceleraram excessiva-mente todos os proces-sos de percepção, detrabalho, de criação econtemplação. E, comoconsequência, tornamo-nos mais oumenos insensíveis aos pequenos egrandes acontecimentos que perme-iam nossas vidas. Em geral, vive-sefracionado na representação rápidae cotidiana de inúmeros papéis. Oque acaba criando dificuldadessérias de escolha, de opção ereflexão. Como já foi dito peloLorenz, superar dificuldades daexistência criadas artificialmentenão traz nenhuma satisfação. E oque é o mundo contemporâneosenão a criação artificial e artifi-ciosa de uma ruptura com anatureza? Quantas pessoas vivemdurante meses sem ter nenhum con-tato corporal com a terra, porexemplo? E quantas já se habitu-aram diante de tantos obstáculos edificuldades, em circunscrever seuolhar --feito para largos horizontes -- ao próprio umbigo e à própria ouimprópria maquiagem? E será sim-plesmente por acaso esse exercício

de milhões de anoscumprindo outroschamados e outrosapelos? Todas essascoisas que a genteconhece --a chamadahistória, por exemplo-- não é um lapso

curtíssimo de tempo em nossamemória atávica? É por isso que sustento modestaopinião de que as pessoas devemser levadas a situações limítrofes. Sóassim é possível perceber aseriedade e a solenidade da vida.Esua simplicidade. Que nada tem aver com o esmorecimento e o extin-guir dos sentimentos. Temos que serfiéis a nós mesmos e a essa longahistória obscura, para ousarassumir o nosso verdadeiro rostohumano. Mais que humano,brasileiro. Mais que brasileiro,paulista. Mais que paulista, paulis-tano. E enxergar, através das nossasdiferenças, aquilo que constitui anossa riqueza comum: a comunhãocom a natureza, a comunhão com anatureza humana, a comunhão coma natureza de Deus.E para isso temos que fincar raízesna terra e lançar os sonhos aolonge...

vel, fascinante...

Panteon

Page 54: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Estou escrevendo estas coisasrilkeanamente deitado num quarto,bem quentinho, amplo e com ban-heiro completo, em plena cidade deFlorença, à beira de um rio. São9h05 da noite. Voltamos para cá porvolta das cinco da tarde. Antes fize-mos nossas ritualísticas comprasnum supermercado: formaggioparmegiano, tonno in ollio d’oliva, vino, insalata, danone, tor-radas, azeitonas, picles e coca-cola.Compramos também um presentefantástico para o Thiago: uma pisto-la de pressão que parece um para-bellum e dá tiros com munição deplástico. O sistema é o mesmo

daquelas espingardas dos parquesde diversão. E o brinquedo é tãoestimulante que eu --avesso a qual-quer tipo de armamento -- nãoresisti e dei uns tirinhos, assimcomo a Ana e o Chris. Nosso alvoera o interruptor de luz, masninguém conseguiu acertar. O brinquedo é bom pra treinar pontaria, tem um design bonito e é feito de material resistente, bom.Parece arma de verdade.Mas voltando a Florença, a florida,nome dato dai romani al piccoloinsediamento fondato nel I secoloa.C., ela não nos disse muita coisa.A Catedral, o batistério, a torre de

anot

açõe

s de

via

gem

Florença, onde Rilke

Ao redor da Catedral

Page 55: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Giotto são obrascolossais. Emuito diferentesde tudo aquiloque vimos atéagora. Todas asfachadas externasdesses prédios,verdadeiros mon-umentos arquitetônicos, sãorecobertas com mármore verde,rosa e branco. Parece trabalho demarchetaria. É inacreditável. E temtambém o Palazzo Pitti projetadona metade do século 15 que foiresidência dos Medici. A galeriaUffizi, um dos primeiros museusmodernos. A ponte Vecchia, únicaque não foi derrubada na segundaguerra. E, na Piazza dellaSignoria, o Palazzo Vecchio.Tudo muito bonito, muito interes-sante. Mas como já disse o Tuca,você vai ficando de porre de tantaarte e de tanta beleza. Parecemesmo uma ressaca. E dá vontadede não fazer mais nada: parar, sen-tar e colocar a vida pessoal noseixos. Talvez nos trilhos velhos dasvelhas estações brasileiras. E ficarparado só olhando o entorno, asruas, as pessoas, os monumentospúblicos e a força expressiva dessa

urbanidadeantiga. Celebraro cansaço cor-poral com osolhos e oespírito abertosà encantação. E deixar quetudo isso nos

penetre e fique gravado na alma, no corpo, no coração.O fato concreto é que cada região ecada país oferece, por si só, umainfinidade de informações visuais,auditivas, tácteis, artísticas, tecnológi-cas. E nós estamos tentanto encararisso de frente e completamente despo-jados de tudo. Em geral seguimospela intuição, pelo faro, pelo farol.Muitas vezes chegamos a cidades --caso de Roma e tantas outras-- semter sequer um mapa. E aí é no vaicom Deus mesmo --o que felizmentevem ocorrendo sempre. Mas não restadúvida que essa abordagem anárquicacausa, de vez em quando, desaponta-mentos e problemas. Isso porque emquase todas as grandes cidades daEuropa, o trânsito é muito irrequieto,nervoso. E a gente não pode titubear.Tem que decidir entre isso e aquilo --mesmo ignorando o que seja isso ou aquilo.

e escreveu os diários

Ana: próximadades da Ponte Vecchia

Page 56: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

E é nesses momentos que, ora simora não, a porca torce o rabo.Agora, a Ana vai voltar para Roma.Tudo anárquico, caótico --como anossa viagem. E a nossa vida.Roma é a mais linda. Não se podefazer comparações, pois a belezadesta Europa é justamente a mul-tiplicidade e a singularidade. Cadacidade encerra uma cultura emostra as influências de outrasculturas. Roma é o museu dahistória do ocidente. Cada cantosurpreende. É grandiloquente noseu testemunho imperial, artísticoe religioso. Perdemos todas asfotos de Roma. Perdemos também

todas as fotos de Gerona,Barcelona, Côte D’Azur e CostaZurra. Perdemos de Pisa. Grandeironia!!! Perdemos a foto de VilaConchita e da Sagrada Família,do Chris. Não faz mal. Deus sabe oque faz. Florença deixou a dese-jar. Ficou aquém da expectativa.Os caminhos da Toscana são lin-dos. Aqui e acolá um castelo, umacasa de pedra. Mas não como osda Espanha --uma igreginha emcada curva e a aridez da vida durado camponês. A Umbria e aToscana são generosas e verdes,mais ou menos como Aragão.Foi maravilhoso chegar a

anot

açõe

s de

via

gem

Igreja gótica propõe a

Bolonha: cidade cor de terra

Page 57: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Bolonha. O caminho de nevoeirocegante e frio intenso. A cidade corde terra da minha avó Mariana.Lindíssima. Rica. Bem conservada,nobre e elegante--como a mamãeCisa gostaria que fôsse. E é. Lá foi ofrio mais forte. Meuspés doíam. Chegamosa Veneza por voltadas 6 horas da tarde.Era noite. Fizemospromessas mútuas denão chegar mais ànoite em nenhumacidade. Mas aquiencontramos logo umhotel e com preço bemapetitoso. Pegamos o trem e depoiso vaporeto. E como dizer! O granCanal e seus palácios! É muito parao Chris. Trem, barco, cidade de ruasde água.Chegamos a piazza SanMarco. A noite com neblina., asluzes difusas no canal, nas casas,nos palácios. Em um deles haviafesta iluminada com tochas.Percorremos esta cidade nova vel-híssima e principesca. Nada de iguala Veneza. A cidade era nossa: asruas vazias. Uma ou outra pessoacruzava nosso caminho encantadode pequenas pontes, canais, becos ea arquitetura primorosa. San Marco

o deslumbre! Ampla, com galeriassem fim e aquela igreja caprichosa,exageradamente delicada, dourada,como jóia. Veneza, San Marco!!! É amais linda.A Espanha é mais religiosa do

que a Itália. E isso é surpreendente. Na Espanha o turista naigreja é estranho: umintruso. O povo reza, vai a igreja, vai a missa. Na Itália as igrejas mais parecemmuseus. Lindíssimas. Arte,pinturas e esculturas dosmestres. Mas são artes, não

religião. Da Vinci, Michelangelo,Bernini são mestres da arte. Nasigrejas góticas, as pedras estãocomo mãos postas para orar aoscéus. Nas igrejas da renascença, oselementos decorativos --semprepecando pelo exagero--distraem aelevação religiosa, serena, intro-spectiva e concentrada que existena desnuda e despojada igreja gótica. O povo espanhol está nasigrejas rezando, nas catedrais e nas pequenas igrejas dos vilarejos.Não há oração nas igrejas italianas.Nem em São Pedro, nem em San Marco.

a oração com leveza

Bolonha: muito frio

Page 58: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

A distinção mais significativa que fizemos de nós mesmos --e dos países que visitamos -- está focada narelação religiosa. Na Espanha, opovo ainda hoje tem o culto do sagra-do. E nós achamos que é isso que fezbrotar na gente essa forma ritualísticade contemplar a beleza, recebendo-acomo graça, dádiva, celebração.Mais ainda: naquelas pequenascidades medievais - e só nelas - é quepudemos sentir pulsar o coraçãocristão. Alimentado e realimentadopor todas aquelas pessoas viventes --ousobreviventes -- que se solidarizamnum princípio e num propósito detranscendência. A Espanha é excessi-vamente religiosa, ao contrário deRoma ou da Itália. E a memória da

Espanha está registrada em terrasdesoladas, amplas, onde sempre sepode comtemplar o soerguimentohumano na procura de Deus. São for-mas muito simples e permanentes, quenão propiciam o disfarce. Ou a dis-tração.Graças a Deus encontrei, atravésdo meu sangue, querida herança elegado da minha inesquecível vó Elisa,as vozes e os chamados cristocentricosdepositados em mim. Sou cristão ver-dadeiramente. E isso me honra e mecomove. Toda a minha religiosidadeencontrou na Espanha espaço fértilpara germinar e crescer. É mais doque uma conversão. É um encontrocom a linguagem sagrada e viva davida. Que eu pretendo manter.Disseminar. E ampliar.

anot

açõe

s de

via

gem

A Espanha me coloca

Calle Atocha, Madri

Comprando frutas em Madri

Page 59: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Conversando com a Ana chegamos auma conclusão -- talvez precipitada --mas terrível: o espírito religioso pareceter acabado na Itália. Aqui é o reinadodo renascimento -- com tudo aquiloque isso implica. Quer dizer: ampliaçãodo homem e redução de Deus. E ohomem como centro do universo nãome parece ser solução de nada. Aindaque os homens pensem o contrário. Eainda que a Idade Média seja considerada a Idade das Trevas.Na verdade, por tudo aquilo que nosenfiaram goela abaixo, o espírito reli-gioso perdeu terreno para o espíritocientífico. E o espírito científico, tãomitificado, é a mola propulsora que seapoderou do mundo ocidental desde oséculo XIX. E é essa religião da ciênciaque fez desaparecer o sentido destafrase: estou construindo umacatedral. É mais objetivo e compreen-sível dizer estou colocando pedrasobre pedra.Acontece que eu sou vis-ceralmente contrário a essas modos desimplificar e reduzir as dimensões doser humano. Acredito nos impulsos deencantamento e nas vertentes de tran-scendência. Além disso, sinto-me agora-- após todas essas experiências via-jeiras -- muito sintonizado com omundo medieval, com a urbanidademedieval. E com a despojada e expres-siva força medieval de reverenciar aDeus. Mesmo na igreja de São Pedro,

símbolo máximo de toda a nossa for-mação religiosa, não sentimos essaemoção reveladora da grande Presença.A suntuosidade, a grandiloquência e oexagerado número de grandes obrasartísticas -- sejam esculturas, afrescos,cúpulas, colunas, naves, etc -- disper-sam toda a energia. Pulverizam a nossapercepção da Unidade. Nem mesmo amemória infantil, colada a santinhos ecatecismos, conseguiu mover nossasemoções na direção dos mistériosmaiores daquela Presença tão entranhada em cada um de nós.Acho que estar na Basílica de SãoPedro significou tanto para mim quantoestar presente ao lançamento de umlivro meu. É uma experiência significa-tiva, importante. Mas não é nadaestratosférico, sequestrante. O que euquero dizer é que a arte é arrogante,pretensiosa. E sua finalidade última éseduzir, agradar. Ou em sentido inverso:provocar repúdio e desaprovação.Dificilmente o artista consegue se situarno plano recorrente dos outroshumanos. Ele é sempre a síntese deuma ruptura. Ou o indício de uma violação. Nesse sentido --e só nesse --é que o artista está de mãos

dadas com todos os santos e profetasda humanidade. Só eles foram capazes de quebrar o sigilo e expor o sagrado e o profano, o divino e o mundano.

a diante do sagrado

Page 60: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Outra coisa interessante: descobriontem à noite, conversando com aAna, que o estofo e a estrutura daminha personalidade é, labirintica-mente medieval. Sou cheio de mean-dros mentais. Muitas vezes a Ana me questiona: onde é que está osujeito dessa frase? Minhas construções são indiretas. Meu beco é sem saída. Aí surge o clarão de um gesto. Ou o calorprimitivo de um aconchego e todo o universo se refaz na harmonia inicial. Síntese sóaparentemente obscura. Conciliaçãodos contrários. Metáfora sem meta. Pois é. Acho que essas

andanças ajudaram-me na integraçãocom os elementos da Midle Age.Veneza é única. Indizível. E nosproporcionou prazeres novos.Ficamos em Mestre e para chegar àVeneza tínhamos que utilizar aquelestrens -- absurdamente dessemel-hantes aos que ainda circulam peloBrasil -- e, depois, aqueles fantásti-cos vaporetos. Nem bem chegamos apensione e já fomos pra estação.Tínhamos urgência em conhecerVeneza. Compramos os bilhetes,picotamos na maquineta e aden-tramos a plataforma de embarque.O trem já estava prestes a sair.Subimos os degraus do vagão e daí

anot

açõe

s de

via

gem

Veneza é única, indizíNa piazza de San Marco

Page 61: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

não acreditamos mesmo: só cabinascom leito. Já haviamos perguntado osuficiente, mas na dúvida --vai que derepente a gente toma o rumo deRoma --insisti e fui indagar em outracabina. O trem era aquele mesmo eseu destino era Veneza. Um desfruteque durou exatos oito minutos.Agora já estávamos em Veneza e eraa vez de embarcar no vaporeto.Compramos o bilhete, picotamos eembarcamos no sonho esfumaçado --ou esgarçado -- do grande canal.Fazia frio e uma névoa densa recobriatodos aqueles milagres estacionadosno tempo. Sentimos, de imediato, acomoção de um encontro. A genteestava ali mesmo, de verdade, percor-rendo junto com o povo os caminhoslendários daquelas águas.Não erafilme. Não era livro. Não erafotografia. Veneza se desnudavalentamente através do nevoeiro,

mostrando seu cobiçado e amadocorpo. Sem rasuras e sem ranhuras.Perfeita em sua solenidade de noivarenovada todos os dias. Curvilínea elabiríntica como toda mulher maravil-hosa. Veneza é aquilo que o PapaPaulo VI disse em relação à per-feição: é o equilíbrio em movimento.Totalmente harmoniosa, ela causa umimpacto de alumbramento que nenhu-ma outra cidade ou lugar provoca. E éde súbito, como um colapso dos sen-tidos. Ela destrói qualquer defesa.Qualquer medo. Veneza exige aentrega, propõe o amor e impõe omistério. E tudo isso acontece de ava-lanche e, com tanta força, que pareceaquele verso do Jorge de Lima Deuste raptou em sua totalidade. Oamor por Veneza é assim: arrebatadore à primeira vista. Até porque ela nãodecepciona a vista, revelando sempremais e mais belezas e encantamentos.

ível...e propõe o amorNa ponte em Veneza

Page 62: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Mas como não poderia deixar deser, os italianos são sacanas comonós, brasileiros. Resolvemos jantarem Veneza --e o que aconteceu?Sessenta e três mil liras por umalazanha, um spaguetti, uma pizzamargueritta, mais meia garrafa devinho da casa, um copo de fnta e umcopo de coca. Ficamos perplexos,estupefactos. Afinal, estávamospagando 45 mil liras num ótimohotel. E o que é pior: tivemos quedesembolsar 6.500 liras pela coca e6.500 liras pela fanta. E acho que 21mil liras pela meia garrafa de vinhoda casa. E lembrar que eu compreiValpolicella Bola por 5.600 liras agarrafa inteira...e não em supermer-

cado, mas em um daqueles centroscomerciais que se estabelecem junto aos postos de combustível.Mas vamos deixar pra lá, assumir e tocar pra frente.Foi com esse entendimento queprosseguimos nossa jornada pelossinuosos e apaixonantes caminhosde Veneza. Até o instante em queresolvemos voltar para Mestre viavaporeto --um mais rápido, espéciede expresso, que não para tanto efaz outro percurso. Claro que foioutro desbunde, deleite, desfrute. Eaí nos vingamos: pegamos o trem devolta sem pagar. Dia seguinte regres-samos para Veneza logo cedo. E lá -- senza vaporeto --penetramos a pé

anot

açõe

s de

via

gem

Mas os venezianos co

Chris na piazza

Page 63: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

pelo corpo da cidade. Passamos porbecos, pontes, pequenas praças, ruasestreitíssimas, passagens e paisagensdeliciosas. Até que chegamos à Piazzade San Marco, a Ponte dos Suspiros,ao campanário e à Basilica. Tudo issocom direito aos pombos, a um friointenso e ao clima de Morte emVeneza, graças a um céu esbran-quiçado e um vento forte e úmido.Todas as pessoas encapotadas.Almoçamos num restaurante chinês --uma das boas opções em qualquerpaís da Europa --que era tão chic deprovocar constrangimento. Poltronasde veludo vermelho, mesas muito bempreparadas e um festival de copos etalheres. Por sorte nossa, não havianenhuma testemunha do nossoembaraço: só nós dentro dele.Portanto, uma pequena frescura --masbarata, vivenciável, exequível.No fim da tarde voltamos a Mestre.Mas antes repetimos a esperteza danoite anterior. Resultado: no trem,que é o meio de locomoção maisbarato, fomos flagrados sem o bilhete.Tentamos superar esse obstáculo,negociar, escamotear, mas nãoadiantou. O fiscal aplicou a lei e amulta --o que nos custou a bagatelade 13 mil liras. Ou seja: no mínimo10 viagens de Mestre para Veneza.Felizmente a coisa ficou só nisso. Não

houve desdobramentos. E desistimos,de vez, da lei do gerson de levar van-tagem --isso pode sair muito caro...E de Veneza, na manhã seguinte, par-timos rumo à Verona. Bela cidadeque guarda, no interior de suasmuralhas, os conflitos familiaresinspiradores daquele fabulosoShakespeare de Romeu e Julieta. E não é que de repente nós nos vimosna casa de Julieta. Um lugar central,numa rua cheia de gente, mas que seabre como uma flor, furtiva e radiosa,preservando essa distância solene quesó os grandes amantes podemguardar, expressar, impor.

obram muito caro

Na arena em Verona

Page 64: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Saindo daquela rua, tipo calçadão,você chega a um pátio, a umaclareira. E lá está a casa, a varandae o sonho de amor celebrado pelopoeta. Lá está, também, uma repro-dução em bronze de Julieta, decorpo inteiro. A Ana fez uma foto:eu beijando os seios juvenis daquelagrande amorosa. Vamos torcer paraque Romeu não vire na tumba epara que Shakespeare não entendaesse gesto como profanação...Vimos, por fora, a fabuosa arenaromana, hoje palco de espetáculosincríveis. Caminhamos a pé pordiversos lugares e, de carro, poroutros tantos. E prosseguimos nossa

viagem. Agora rumo ao norte daItália, região fronteiriça com a Áus-tria. E foi nesse caminho, já visitadono mapa, que começamos a encon-trar de novo encantos sucessivos.Por estradas regionais, em meio avinhedos e plantações de maçã, aneve começou a chegar. Deveríamosparar numa cidade que eu já esque-ci o nome, mas resolvemos seguiradiante na busca de Bressanone. Efoi nessa busca que paramos numtrailler à beira da estrada e, porinsistência da Ana, voltamos de mar-cha-ré e pudemos nos deliciar comum tipo de salsicha branca muitobem feita, pão e batata frita. Um

anot

açõe

s de

via

gem

Romeu que se cuide:

Acariciando Julieta

Page 65: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

aspecto interessante: a pessoa queatendia falava austríaco e italiano.Fato que, percebemos depois, sercompletamente comum na região.Relevante nesse pequeno detalhe foi oprazer que o despretensioso lanchedespertou em nós. Arriscamos atéprevisões-- daqui pra frente vai ser sócomida gostosa--que infelizmente nãose cumpriram. Em compensação, a neve e o gelocomeçaram a se mostrar e se impor,alterando substancialmente a pais-agem. O Chris fez xixi e viu, pelaprimeira vez, a fumaça sair de seupinto. Eu o acompanhei, é claro, paradeixar uma marquinha brasileiranaquelas terras. E a partir daí fomostendo os nossos primeiros encontroscom a neve. Passamos por Bolzano --era essa a cidade cujo nome foiesquecido -- e até por Bressanone.Quase grudadas em Bressanoneestavam Varna, Novacella e Spelonka.Optamos por ficar em Varna. Umapaisagem riquíssima, poética. Pareciaum presépio. E lá descobrimos umagraciosa habitação, a zimmer de umasenhora simpática de olhos alegres,comunicativos. Fizemos umas com-prinhas numa loja que estava em liquidação e começamos a subir mon-tanhas na direção de Spelonka.

No meio do caminhodesistimos. O camin-ho era sinuosodemais, estreito eíngreme. E já eranoite. Voltamos até anossa zimmer e eusaí à varanda do nosso apartamentopara contemplar aquela noite fria, decéu limpo --repleto de estrelas. O céunoturno não é tão diferente como euimaginava. Em razão disso não foidifícil localizar as três marias. Achoque vi Vênus também. E, mais umavez, essas referências estelaresexpressavam a sensação dos marin-heiros diante da solidão e do descon-hecido. As estrelas ainda funcionamcomo guias noturnos, iluminandoveredas e apontando para algumasdireções gravadas em nossa alma. Eaté mesmo as direções mais celestiaisestão marcadas --e mergulhadas --nesse território de terra e sonho, águae lágrima, saúde e saudade.Transportados para estas montanhasgeladas, eu olhava o céu com os mes-mos olhos maravilhados e agradeci-dos de eu menino. E o menino estava ali, de verdade, dentro de mim, bulindo com as minhas emoções,colocando água e sal no meu olharencantado.

Julieta está aqui

Verona

Page 66: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Pois é: o meu menino de dentroestava de mãos dadas com o meni-no de fora. Projeção e projetoesboçados. Sem retoques. Nítidaexpressão de mim, ampliação eaperfeiçoamento do meu ser, oChris significa a minha perpetu-ação, a minha entrada na vidaeterna. Claro que passando pelofogo sagrado da mulher amadaque me abençoou com sal e açu-car e me fez ressurgir na redençãoda carne. Ainda bem que foiassim, pois hoje, nós três juntos,trilhando por caminhos descon-hecidos e, unidos por uma forçamágica, celebramos com alegria e

gratidão tudo aquilo que a vidanos tem proporcionado: amor,saúde, paz e encantamento.Na manhã seguinte, após o petitdejeunner numa acolhedora sala,pegamos nossas bagagens e fomosaté o carro. Ele estava totalmneterecoberto pela neve e pelo gelo.Uma camada grossa, talvez daespessura de um vidro blindex de10mm. Tivemos que raspar todosos vidros com um cartão de esta-cionamento e ir de encontro aosol, lagartear um pouco. Depoisfomos ao banco, em Bressanone,trocar dinheiro, acertar as contasna loja e passear na abadia de

anot

açõe

s de

via

gem

Em Varna, frio, céu a

Varna

BolzanoBressanone

Page 67: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Novacella e nas montanhas comple-tamente brncas de Spelonka. Essepasseio em meio a neve foi fasci-nante. A estradinha era íngreme esinuosa e completamente desprovidade proteção. Ao nosso lado abismose precipícios quase sempre recober-tos por pinheiros nevados. Não haviacarro indo, nem carro vindo. Fiqueium pouco cismado. Na verdade,amedrontado. Olhei no retrovisor evi uma mulher, sozinha, demonstran-do grande familiaridade com aquelepercurso. Meus receios dissiparam-se e nós prosseguimos rumo àsalturas. Quando estávamos quasechegando ao topo, uma bifurcaçãoencerrou nossa aventura. Pra cima aestrada era só de neve. Pra baixo erasemelhante aquela que nos fezchegar até ali. Resultado: subimosmais um pouco no caminho nevado,mas só para virar o carro e voltar.Na descida --a montanha era cheiade casinhas fofinhas -- arranjamosum lugar para parar, tirar fotos e atétrocar de roupa. Eu estava curiosoem vestir a camisa e o blusão recém adquiridos. Interessante: atemperatura em Varna era de dezgraus negativos, mas o frio era quase

imperceptível. Tanto que o sol enco-rajou-me a ficar de camiseta em

plena paisagembranca. Claroque só poralguns minutin-hos, para trocarde roupa. Mas ainda assim deu praperceber que a dona zimmer falaraa verdade: o frio em Varna não édesagradável. Ela mesma nos haviadito que em Veneza e Bolonha ascoisas são bem piores. E nós estáva-mos confirmando isso em plenofreezer da natureza. Gostamosmuito, mas muito mesmo de Varna.Até porque precisávamos da pre-sença repousante e apaziguadora danatureza. Já estávamos exaustos detanta produção humana. Como disseo Tuca, sabiamente, existe ummomento em que você está cansadode tanta muralha medieval, de tantapresença moura, romana, barroca,gótica, renascentista. Parece umporre de ouso, kirtch, vodka, uisque,brandy, cahaça, bagaceira, rum,pisco, etc. E tua alma e teus olhossentem necessidade da largueza doshorizontes, da companhia silenciosadas árvores, dos regatos e de todosos pequeninos seres que, de algumaforma, indicam a presença --a eternapresença -- de uma harmonia quenão mais nos pertence. Ou pertence?

zul, neve e sol...

Varna

Page 68: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

O Chris ouviu eu ler este trecho praAna e quis, imperativamente,desenhar. Perguntou: onde é quefala da paisagem? E eu apontei praesta folha. E é nela que ele quis sedebruçar, compor seu relato deviagem, ilustar nossas emoções. Odesenho dele está aí pra não deixarnenhuma dúvida. E então, a harmo-nia nos pertence --ou não? Achoque oi Chris respondeu essaquestão de forma oracular, graças àsua natureza angélica e à sua famil-iaridade com Deus. O desenho écomovente. E graças ao Chris juntode nós, pudemos também perceber

que Deus é graça, virtualidade, vira ser contínuo. O rosto inconclusoem confronto com o rosto acaba-do. Uma dialética flexível pontuadapor contradições móveis. Mas tudoapontando para uma determinadadireção. Direção que tomamos emnossas mãos, abertas e espalmadas,para num ato de fé, receber o ren-ovado mistério do nascimentodaquele menino que, ainda hoje, élembrado e reverenciado por todosos homens e povos de boa vontade.Viva Jesusinho! (Heidelberg,24-12).De Varna seguimos pela neve epelas aldeias italianas --ainda

anot

açõe

s de

via

gem

Chris faz a síntese vis

Page 69: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

situadas nos Alpes -- até a Áustria.Única fronteira onde além de termosos passaportes examinados, verifi-cou-se também a documentação docarro. Esse trajeto foi marcante pelabeleza das aldeias, pela presençaabundante da neve e das incontáveisplantações de uva e maçã. Uma penaque era inverno, pois não haviacerca e nenhum outro obstáculo queimpedisse ao passante se deliciarcom aqueles frutos. Mas nós nosdeliciamos --assim mesmo -- comaquele paisagem inédita, cheia desurpresas, ruas e telhados cobertospela neve. Era o próprio cartãopostal. E a gente lá, dentro dele. Efoi dentro dele que prosseguimos atéchegar a Insbruck --o que causoudecepção para a Ana. Ela esperavaencontrar tudo branco, nevado:ruas, telhados e montanhas.E issonão aconteceu. Mas ficamos beminstalados, demos um amplo passeiopela cidade, fomos até o zoológico,ao supermercado e a uma con-feitaria com aromas vienenses. Masacabamos ficando só no pão. Pãocom pão. Em compensação, nosupermercado inventamos de nãoresistir aos múltiplos apelos açu-carados e a consequência foi decep-cionante. As guloseimas não corre-

spondiam ao seu aspecto sedutor.Ainda assim, os vinhos eram bons e baratos. Descansamos bastante e não saímos à noite. Namanhã seguinte tomamos um bom café servido por um velhinho lépido, esperto, alegre. E de novo voltamos para as estradas.Desta vez rumo a Fussen.Novamente um pecurso poético. Tão nevado etão cheio de estações de esqui queme deu vontade de arranjar umtrenozinho e deslizar geleira abaixo.Mas não fizemos nada disso, apesarde os carros --quase todos-- estaremequipados com pares de esqui nosbagageiros. Pelo jeito, esquiar nessasbandas é um passatempo comum,completamente popular. E apesardos preços serem muito altos paranós, para eles é uma prática corriqueira. Aliás, carros tipo BMW,Mercedes e outros do mesmopadrão, não diferenciam nada, nemninguém.

sual de nossa viagem

Neuschwanstein

Page 70: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

Qualquer pessoa tem acesso a essetipo de bem de consumo e, porcausa disso mesmo, eles não con-ferem status. Basta ter algum tipode trabalho para desfrutar de umamplo leque de produtos que só osprivilegiados do terceiro mundopossuem. Dá para perceber, tam-bém, a inexistência dessa necessi-dade de destacar-se através deposses e poses. Isso não é valoriza-do, e não tem nenhum sentido, jáque a grande maioria vive em umpatamar inacreditável para nós.Claro que essa questão está direta-mente relacionada a uma dis-tribuição de renda mais equilibra-da. As diferenças salariais são

pequenas. Náo existe nada parecidocom o fosso que separa um trabal-hador que ganha salário mínimo deum jornalista, por exemplo. E estoume referindo a um jornalista nãocelebridade, um jornalista mediano,comum. Mas vamos deixar essascontradições e esses conflitos delado e voltar para o caminho quenos levou da Áustria até à fronteiracom a Alemanha. Fussen,cidadezinha graciosa e poética queguarda para o visitante dois sober-bos e romanticos castelos:Neuschwanstein e Schwangau,com todo cuidado e requinte queeles merecem. Os carros nãopodem subir e, em seu lugar, amp-

anot

açõe

s de

via

gem

No castelo de Ludwig

Chris em Neuschwanstein

Page 71: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

los carroções com cavalos que pare-cem ter saído de cocheiras imperi-ais. As opções são estas: ou os car-roções ou a subida a pé. Não é pre-ciso ser adivinho para saber quefomos a pé. Mas a caminhada valeu,pois serviu para esquentar o corpo epreparar, naturalmente, o nossoespírito para o encontro com abeleza edificada por esse wagnerianoenlouquecido que foi Ludwig, daBaviera. Fizemos uma visita guiadaem alemão --o que não deixou deser divertido. O castelo é um sonhoe é muito aconchegante. Váriosmotivos da mitologia nórdica, queserviram como referenciais aos tra-balhos de Wagner, estavam lá empinturas e murais. Em uma determi-nada sala havia um lustre de ouroque pesava quatro toneladas. Emoutra, a sala de música que nunca

foi utilizada enquanto Ludwig viveu,quadros inspirados na lenda deParsifal. Hoje essa sala é utilizadapara apresentações musicais e seuslustres não utilizam lâmpadas e simvelas. Cada lustre reúne seiscentas

velas. A cozinha doNeuschwansteiné enorme e sim-plesmente fantás-tica. Tem sistemade água correntefria e quente e atéuma enormechurrasqueiragiratória --semel-hante a essas con-temporâneas.

g com guia alemão

Subindo para o castelo

Cavalos e carroções

Page 72: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

Dois momentos diant

1Já estamos na França nova-mente. Pela primeira vez noFFóórrmmuullaa 11. Baratíssimo: 130

francos. E americaníssimo demais.Tudo artificial, maquinal, funcional.Mas vale pelo conforto e a pratici-dade. De resto é completamente des-encantador. Asséptico. Higiênico. Maspela relação custo-benefício vale apena. Pela primeira vez tv no quar-to. E o que vimos? Um velho ídoloque eu reconheci de pronto: JohnyHolliday. E que programa interes-sante, bem relizado. O velho Johny

sentado junto ao entrevistador e aum aparelho de teve. A partir daíuma amostragem exuberante depesquisa jornalística: osinesquecíveis anos 60 com todas assuas mutações e seus ícones supre-mos. Imagens de Guevara,Kennedy, Luther King, Elvis,Beatles, Primavera de Praga,Movimento estudantil de 68, guer-ra do Vietnã, Sartre e Simone emplena atividade. Depois foi a vez dadécada de 70. Com Mao, movi-mento de libertação das mulheres,primeiros atentados terroristas,guerra de Israel. Tudo fartamenteilustrado por imagens que a gentenunca viu. Questões locais tam-bém pontuavam o programa. Eaquele velho ídolo do rock ali, nanossa frente. Grande figura. Umcantor explosivo, visceral, sensual.Expressivo. E nenhum de nós sabiadisso. Nem mesmo o Luiz Carlos

que ficou muito ligado a ele naque-les velhos e bons tempos. E o gozadoé que eu nunca me liguei nessecara. Achava que ele era um fenom-eno regional, um clichê do rockautêntico de Elvis e Litle Richard.Mas pude ver nesse programa quenão era nada disso. O Holliday écompetente, lúcido, bem articulado.Um mito local, é claro, mas nutridocom os mesmos ingredientes musi-cais dos mitos maiores do nossotempo:

Page 73: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

te da tv européia2Depois de um dia intenso de

presenças, caminhadas inter-mináveis e trânsito perturbador,

voltamos ao nosso Citroen e ao nossohotel em EEppiinnaayy SSuurr OOrrggee, arredoresdeParis, bem pertinho da casa ondemoram a Vivi e o André. A Ana quisjantar por ali mesmo para recuperaro jantar entalado da noite anterior.Pois jantou: ela, o Chris e eu dedamo de companhia. O restaurantficava ao lado do nosso hotel, oPPrreemmiieerree CCllaassssee. Era bem charmosin-ho, com velas e flores à mesa. E aceia teve direito a vinho beaujolais,carne, salada e um tremendo sorveteservido em taça enorme --que o Chrisacabou partilhando com a gente.Depois fomos para casa e assistimos aum programa na tv sobre a meia denylon. Uma verdadeira viagem notempo, com imagens e sons autênti-cos de 1940. Até Hitler apareceu.Flashs de Nova Iorque, Paris,Hollywood, Montreal,etc. E a novaídola --parecia um astro de rock dosanos 60 -- deixava as mulheres alu-cinadas, em transe. Tudo muitosemelhante a esse clima quase histéri-co que cerca os megashows contem-porâneos. Filas enormes se fizeramem todas as cidades. e muitas mul-heres chegaram a brigar por causade uma meia. Homens vestidos comterno e chapéu colocavam-se em filapara adquirir a grande novidade.Foi um rebuliço, uma verdadeira

revolução, dada a quantidade depessoas reunidas diante do novoícone sagrado do consumo. E o pro-grama abordava isso de umamaneira nada superficial. Alémdisso, nunca havia passado pelaminha cabeça os significados que esseelemento do vestuário poderia tertido. Meia é meia e ponto. Mas éóbvio que a coisa não era bemassim. A meia de nylon mexia com asensualidade feminina, com a belezae é claro, com o desejo dos homens.Ocerto é que a Ana estava demasiada-mente cansada e resolveu dormir. Eeu fiquei indignado. Queria conver-sar sobre aquelas questões que mepuxvam pensamentos, idéias. E aíradicalizei: pode deixar que eudurmo no beliche. Mas pra quê? AAna ficou furiosa e começou a desfiaro longo rosário de acusações.Dasminhas perseguições pretéritas. Domeu autoritarismo. E foi por aíafora, reagindo com flechas e setasenvenadas pelo tempo. Foi o nossoprimeiro desentendimento naviagem. Mas ainda que todos osdemônios estejam comigo --e sócomigo -- a paz voltará a reinar naminha casa e no meu coração. Nossoamor é sagrado e está alicerçadosobre pedra. Por isso anjos e deusesestão ao nosso lado.

Originalmente este texto era um box danossa estadia em Augsburg. Tive proble-mas de paginação e o coloquei aqui.

Page 74: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

De Fussen seguimos para Munchen,cidade grande que fica a uns cemquilometros e nos recebeu mal.Primeiro porque chegamos de umparaíso romântico e adentramos noinferno da contemporaneidade. Todagrande cidade é um inferno --e esseaprendizado foi importante. Só Parisreina sozinha no mundo. É a únicacidade grande que tem harmonia,esplendor, encantos oficiais e encan-tos oficiosos. Munchen foi repulsiva.E de tal forma que desistimos dela efomos para Salzburg - numa noitefria, cheia de névoa e neblina. Enuma autobahn movimentada, quasealucinante. Todo mundo andando a

120, 140 e 160 quilometros. Parecianão haver neblina. E nós lá, no meiodaquela loucura, também a 120 e140 km. E sem enxergar nada. Oucom a visão bastante comprometida.Com uma neblina semelhante, otráfego na Imigrantes deve rodar emmédia por volta de 40 km. Mas aquinão há grandes riscos e perigos.Para se ter uma idéia do respeito pelvida humana, basta dizer que emqualquer autoestrada as sinalizaçõessão perfeitas. E se houver um únicohomem trabalhando em reparos nocanteiro central, por exemplo, aspistas são interditadas com avisosbem claros. E o estreitamento da

Na terra de Mozart mFeirinha de Natal em Salzburg

Zimmer em Salzburg

Casa deMozart

Page 75: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

pista vai se fazendo paulatina-mente pelo menos a 1 km dolocal onde existe um únicoser humano trabalhando. E assim chegamos a Salzburg-- já bem noitão, para variar. Masaqui demos sorte. A primeira zim-mer procurada foi a primeira zim-mer acertada. Um quartão bemamplo e bem arrumado. Na cabe-ceira da cama uma gravura com ele-mentos musicais. Despejamos nossasbagagens e fomos --sem mapa e sem nenhuma informação-- ao zentrum.Conseguimos parar o carro em localbem estratégico e pernas prá quemte quero em busca de beleza e comi-da. A beleza encontramos rapida-mente --vimos até a Casa de Mozart-- e a comida não demorou tanto. NoPizzaland pedimos: margherita,spaghetti alla bolonhesa, vinho ecoca. Depois caminhamos pelacidade, já bem alimentados e bemnutridos, pegamos o carro e fomospara mais uma noite de paz e amor.Pela manhã, após o fruihstucke,mais Salzburg para nós. E aí --jácom o mapa da cidade em punho --passeamos pelos mesmos pontos danoite anterior. Só que com o diaclaro, ensolarado, um frio maravil-hoso e a percepção mais aberta e

mais rica de perspectivas.Passamos por uma ponteencantada sobre o rioSalzach --esse nome,

como o de Salzburg, temorigem nas jazidas de sal-

gema muito numerosas nessa região.Andamos por um jardim belíssimo,capturamos com o olhar a presençasolene das edificações medievais epresenciamos o significado especialque possui a música em todos oslugares.Só em Salzburg a Ana sen-tiu estar mesmo e de fato na Europa.Mas aquele rio, aquela ponte e asárvores levemente nevadas só podi-am transmitir essa sensação.Salzburg é fascinante. E tem umadimensão humana, proporcional àpulsação e ao repouso, à contem-plação e ao ato, ao sono e ao sonho.Deve ter uns 200 mil habitantes e éterra natal de Mozart. Precisa dizermais? Tem ainda uma catedral comtorres barrocas construída no séculoXVII. Pra variar, assistimos ali o tre-cho final de uma missa e comung-amos. Passeamos pela feirinha denatal, compramos alguns enfeites e ouvimos música na praça.E deSalzburg retornamos para aAlemanha. Desta vez para Augsburg,passando por Munchen.

úsica é o que não falta

Page 76: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

Em Augsburg, pausa

Augsburg é uma cidade de portemédio, fundada pelos romanos noano 15 antes de Cristo, que mostraainda marcas bem vivas da IdadeMédia. Possui muitos museus e gale-rias de arte, edifícios históricos etesouros artísticos de todas asépocas. Mas nós não estávamos maisa fim de nada disso. Ficamos duasnoites em Augsburg, jantamos mar-avilhosamente nessas duas noites efomos recebidos da melhor maneirapossível.--também à noite, para vari-ar. O posto de turismo --touristinformation -- estava fechado naestação de trem, mas havia indicaçãode um posto em rua próxima. Fomosaté lá e não deu outra: estava fecha-

do também. Por sorte havia umamáquina --e viva a automação --quenos forneceu a relação de hotéis e omapa da cidade. E bem defronte aoposto, um terminal de vídeo infor-mava, gratuitamente também, tudo oque a cidade tinha a oferecer a via-jantes descuidados. Por regiões, porárea de interesse. Uma loucura.Mas aí começou a nossa luta. Nãoachavámos os lugares mais baratos etudo que se colocava diante da gentefugia às nossas sovinas possibili-dades. Nesse processo de idas e vin-das perdemos mais de uma hora.Por fim, bem próximo ao zentrum,demos de cara com o Jacob --umbaita hotel com restaurante, bar e

No hotel em Augsburg

Page 77: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

para a interioridade

todos os eteceteras. A Ana e o Chrisdesceram para obter as informaçõesnecessárias, e já voltaram com ossinais positivos de que aquela etapaestava equacionada. Baixamos nos-sas tranqueiras e malas e quinquil-harias e ficamos durante dois dias sócurtindo, brasileiramente, apreguiça, o descompromisso, arecuperação do olhar, a desintoxi-cação da beleza e a reinstalação davida em sua plenitude mansa.Augsburg foi o au-au sem latido e

sem mordida de um burgo. Algo queacabou se tornando familiar pelarepetição dos mesmos movimentos edos mesmos caminhos.Familiaridadeé isso:: aprender sempre o mesmogesto, sentir sempre o mesmo gosto.E não perder o encanto. Nem o estí-mulo de vivenciá-lo como único,inapreensível e irrepetível. EAugsburg foi única nesse sentido.Única cidade onde não visitamosnada. Onde não fomos a museus.Onde não procuramos os registrosurbanos, culturais e religiosos dopassado. Em Ausgsburg vivemos achuva e o tempo feio que antecipa aentrada do inverno. Vivemos tambémo frio. Mas de repente pintou atécalor, passeios agradáveis e até umjantar maravilhoso regado a Chivas,cerveja e coca-cola. E tudo o maisque a vida viva e vivida faz, refaz,perfaz.

Maximilianstrasse em Augsburg

Augsburg

Page 78: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

Nordlingen é linguag

De Augsburg seguimos pelaRomantische Strasse até Nordlingen.Acertamos em cheio na escolha docaminho e na inclusão desse nomesonoro em nosso roteiro de viagem.Lembro-me de brincar muito, emCotia e em São Paulo, com essapalavra: Nordlingen. Flexioná-la demúltiplos jeitos era gostoso. Domesmo modo que a palavra Gerona --também detonadora de significaçõestão expressivas, talvez de uma identi-dade inconsciente. Nordlingen situ-ava-se nesse território. E foi um priv-ilégio conhecê-la.Pra começar todasas casas são casinhas de chocolate .Uma muralha medieval abraça toda a

cidade. Na praça um presépio compersonagens vivas: duas ovelhas eum bode. Algo co-movente pelocheiro, pelo movimento, pela pre-sença da vida.Nordlingen, Nordlingen, amadapresença de meus passos. De nossospassos neste espaço. Cidade fechadapela muralha. Pela meninice. Pelosonho de uma criança. Nordlingen,estrela achada no mapa. Cicatriz deuma vila cicatrizada. E ainda assimlocalizada, iluminada, procurada eencontrada. Nordlingen, sagradapalavra que em seus extratos maisprimitivos acabou nos conduzindopara um hotel onde a janela do

Próximo do hotel

St Georgkirche

Nordlingen

Page 79: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

gem extrema, paixão nosso quarto abria parao pórtico de um igrejagótica. Igreja do séculoXI. Sumário de rezas ede preces. Divina pre-sença da memória dospovos. Resumo mais doque sumo das mãos emprece buscando oapaziguamento. E abeleza. Beleza que aden-trava pela nossa janela,pelos nossos olhos epelos nossos corpos.Refundindo a fé, a esper-ança e a nossa união mística com o mundo e o desconhecido.Nordlingen foi comovente tambémpor ter surgido completamente casu-al e ter criado em nós uma certafamiliaridade ou estranheza infantil.E o seu aparecimento, real e concre-to, a sua figura urbana desveladorasuperaram em muito nossas expecta-tivas. Nordlingen é uma antigacidade imperial com muralhas com-pletamente originais e que podemser percorridas em toda a sua exten-são --algo único na Alemanha. Éromântica e medieval e tem um cam-panário de noventa metros de altura.E pensar que o nosso natal estavaprogramado para ela! Mas não faz

mal. Com o cronograma adiantado,seguimos mais adiante pelaRomantische Strasse de vilarejos ealdeias. Passamos por Harburg --cidade que tem um castelo quenunca foi conquistado -- Wallenstein,Dinkelsbuhl, Feuchtwnagen,Schillingsfurst e uma infinidade deoutras cidadelas, gozando de vistaspanorâmicas sobre muitas paisagensque ainda conservam impressionan-tesconstruções e casascamponesas.Toda essa região dispõede um tremendo patrimônio cultur-al: monastérios, fortificaçõesromanas, castelos, palácios barro-cos, igrejas góticas, reservas natu-rais, parques.

Janela do quarto dando para St Georgkirche

Page 80: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

Heidelberg inspira nos

E assim chegamos a Rothenburgob der Tauber, cidadela apaixo-nante que tem uma atmosfera impo-nente e uma população menor que ade Camposdo Jordão: 12.500 habi-tantes. Tem dezenova hotéis, 35 pensões e mais de 90 restaurantes, tavernas e cafés. Foi fundada noséculo X. E, muito antes dasAméricas serem descobertas,Rothenburg já era palco de diver-sos acontecimentos importantes. Umdeles, por exmplo, nos dá conta queFrederico, o barba-roxa, o nenê deRothenburg, ajudou seu primoFrederico I a expulsar de Roma opapa Alexandre III. As muralhas-

foram construídasno século XII equase toda a cidadefoi destruídaspor um terremoto em 1356. Nasegunda guerra, Rothenburg foi denovo parcialmente destruída e sóficou a salvo graças a um generalamericano. Mas tudo isso foi recon-struído e a cidade tá tinindo de per-feitinha. Tem muitas fontes, torres epórticos. Estivemos na Markplatz -praça do mercado - que é o zen-trum e pudemos ver a harmoniosasolução arquitetônica para estilostão diferentes como o gótico e orenascentista. Caminhas muito a pépelas ruas, subimos na TorreBranca, na Torre de São Marcos e

Em Rothenburg

Torre em Rothenburg

Rathaus em Rothenburg

Page 81: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

sso natal na montanhano Arco de Roder. Fizemos algumasfotos e comemos um bom lanche naRodergasse, uma das ruas maisencantadoras da cidade. Depoisseguimos rumo à Heildelberg que,à primeira vista, nos pareceu muitogrande e abrutalhada. Suja. Comtelefones públicos mal conservados --a grande maioria quebrados-- euma juventude barulhenta e agressi-va. Uma cidade velha, gasta. usada eabusada. Mas que tem aqueleschloss --o Chris adora pronunciaressa palavra -- igualzinho aospostais. Chegamos a Heidelberg nodia 23 de dezembro e já arrumamosum ótimo lugar para ficar: a pensãoBrandstatter. Bem localizada, preçorazoável (79 marcos), estaciona-mento à porta, quarto bem amplo eexcelente varanda que acabouservindo como geladeira para nossovinho branco alemão, champanhaAsti e demais acepipes natalinos.A noite do dia 23, da nossa chegadaà Heildelberg, não foi lá grandecoisa. Mas na manhã do diaseguinte, véspera do Natal, resolve-mos subir aleatoriamente os camin-hos da montanha. E aí as coisasforam ficando claras. Aos poucosingressamos num bosque imenso deárvores muito altas. E depois de

subir tanto dava para perceber queas montanhas também eram altas. Enós estávamos junto delas, no meiodaquela floresta. E, como se tivésse-mos rogado à Deus, nos deparamoscom uma casa rústica feita de torasde madeira e ela mesma, a casa,tinha a forma mágica do círculo. Aliestava --à nossa frente e bem juntode nós-- a mais romântica e rústicasala para a celebração do nascimen-to de Jesus. Ficamos emocionados ecomovidos com a descoberta eresolvemos, naquele exato instante,voltar lá na noite já bem fria e geladado dia 24 de dezembro. Qualquersacrifício valeria a pena diante dosdesígnios mágicos que aquela flores-ta encantada nos reservava. A solidãoe a rusticidade daquele lugar impul-sionava nossos corações na busca deuma aproximação maior com omomento solene e glorioso da vindado menino Jesus a este mundo.

Heidelberg vista do castelo

Page 82: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

A comunhão perfeita e

Dividimos, então, com a montanhasolitária, com as altas árvores, com aluz do farol do carro e as músicas deWagner e Rachmaninof, os nossosverdadeiros pulsares cristãos dianteda singularidade daquele instante.Estávamos irmanados e imantados desimplicidade. De singeleza. Na direçãoDele todas as bençãos nos forampropiciadas: o pão, o vinho, o amor, acasa. E a fé --inquestionável -- criavaem nós a ousadia e a inocência dasgratidões mais puras e infantis. Sópela presença reveladora e funda deSua Memória, iluminando e protegen-do nossas pequenas e frágeis vidas,Heidelberg já um marco no exercí-cio desdobrado de nossa religiosi-dade. Graças a Ele -- filho dileto de

nosso Pai Maior -- pudemos ritualizar,com legitimidade quase inalcansável,os símbolos consagrados que nosoferecem a oportunidade da transfigu-ração e da transcendência. EmGerona, na Espanha, eu me cristian-izei definitivamente diante da hóstiasagrada. E, em Heidelberg, naAlemanha, a comunhão litúrgicacedeu espaço à comunhão místicacom toda a natureza -- também reve-ladora de sua Face Una e Múltipla.Por atalhos e veredas, pelo GrandeSertão do Guimarães, pela identidadecristocentrica de Mira-Celi, pela cica-triz eternamente aberta em Nietzsche,pela companhia tão fundamental dosAnjos de Rilke, pela solidão áspera deHenry Miller, por Aliocha carregando

Castelo em Heidelberg

Ponte em Heidelberg

Rua em Heidelberg

Page 83: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

em plena montanhaas adoráveis palavras de Dostoievsky,por todos os poemas de amor escritosnas Babilônias e Babéis desta vida, epor milhares de pequenas e grandescoisas que foram me levando cada vezmais perto de mim mesmo --Aleluia!Aleluia! Até o dono da Brandstatter --comapurada percepção de alma -- baixouos muros e as barreiras das difer-enças linguísticas e culturais, tran-sigindo com a nossa permanênciaabsolutamente solitária em sua pen-são. E mais do que isso: veio empleno feriadão do dia 25 servir ofruistucke para nós. É demasiado,mas é a pura realidade. Desculpando-se, inclusive, de não ter pão fresco eele ter aquela trabalheira toda paranos fazer torradas. Pois é: a vida éassim. Plenamente assim. Basta estaraberto para a beleza e a encantação.Basta conscientizar-se naturalmente dapequenez e da grandiosidadehumanas. Basta deixar-se levar pelosimpulsos fundos da alma e do corpo.E a partir daí todas as graças, todas asbençãos e benesses podem ser conce-didas e outorgadas. E porque existeum princípio básico nutrindo tudoaquilo que é vivo --a vida é movimento-- não podemos dissociar a vida dasístole e da diástole. Da inspiração eda expiração. Qualquer rigidez é fatal.

E o domínio dos outros --ou de simesmo -- uma eloquente e funestabobagem. Mesmo porque todas ascoisas da vida -- vegetal, animal ehumana -- são inapreensíveis e incap-turáveis. Afinal, a terra toda, o univer-so e até os nossos sonhos, desejos eprojetos estão também em constantemovimento e mutação. Alternando-seaqui ou ali. Aprimorando-se algumasraras vezes. Retroagindo outras tantas.E é isso que torna impossível deterqualquer coisa pronta a cumprir-se. Ea cada passo, e a cada dia, cada umde nós está cumprindo apenas umaetapa, uma parcela dessa totalidade inatingível. Por isso até a nossacomunhão é parecida com um jogode xadrez: as combinações são infini-tas. E se existem alguns acertos éporque existem alguns erros.Mas por debaixo de tudo isso --denossa pele, de nossas roupas, de nossos disfarces -- e até de nossasvitórias e derrotas, existe uma identidade antiga, uma vocação e uma voz que reconhecemos e nãopodemos sufocar ou dissimular. E elatambém é feita do material precário,preciso e precioso dos sonhos queacordam em nós aquilo que efetiva-mente nós somos: um milagre da vida, um milagre da natureza, ummilagre de Deus.

Page 84: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

Voltar à França é com

De Heidelberg seguimos nadireção de Metz. Era dia 25 e nafronteira não havia ninguém nempara decorar o ambiente. Passamosdireto,mas preocupados. Só que anossa preocupação durou o temposuficiente para perceber que, naFrança, nenhum visitante precisaficar aturdido. Ou cismado. Tudo émuito competente; as informaçõessão claras, as sinalizações perfeitas.Como em nenhum outro país daEuropa. Fomos pela autoroute --palavra que o Chris gosta muito dedizer -- e paramos no primeiro aireque não era dos Buenos --da nossavizinha Argentina. E aí uma lição da

nossa cultura. Em placas do esta-cionamento pudemos ler que orestaurante estava fechado. Olheiaquilo e fui para o telefone tentarfalar com a mamãe e o papai. Porrepetidas vezes tentei o númeromágico --190055 -- que nos colo-cava em contato direto com aEmbratel. Mas nada acontecia.Dava sempre ocupado. Mas como osinal sonoro de ocupado deles édiferente do nosso, eu tive a sen-sação de estar cometendo algumerro. Ou perpetrando algumabesteira terceiro-mundista. E aí,precário por isso --mas iluminadopor tantas outras coisas -- busquei

Catedral de Metz

Metz

Page 85: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

mo voltar para casa a Ana e o Chris no carro e convo-quei: Vamos tentar o restaurante!Nisso, um casal de americanos, comfilhos como nós, está voltando dorestaurante com aquela expressãotípica de contrariedade. Ignoramosesse indício e fomos, confiantes. Denovo os dizeres e algumas obras dereforma. Ignoramos também isso eempurramos a porta. Não é que elase abriu, colocando-nos dentro doquentinho onde tudo estava funcio-nando. Surpresa nossa: os americ-nos estavam seguindo nossaspegadas. E também adentraram aorestaurante. Até que enfim a equaçãoda macaquice invertia-se. Desta vezera o primeiro mundo que estava anos imitar e copiar. De certa forma,ficava explícita nessa situação, anossa capacidade inventiva de liderar o mundo. O recorte épequeno, o exemplo banal e aciden-tal. Ainda assim não posso esquecerou ocultar o meu próprio aprendiza-do. Pessoalmente posso me considerar primeiro mundo emrelação a pessoas como o Zé Blas,a Dina, o Lorival, o seu Antonio. Noentanto, foram eles que me ensi-naram coisas importantes e exem-plares do ser humano. Primeiro essevínculo com a realidade mais próxi-ma. A capacidade de participar e

intervir nela de forma direta e concreta. Em segundo a esperançasustentada apenas pela esperança. Afé viva e cega na vida. A possibili-dade de doação e de companheiris-mo. E principalmete a inventividade.A criatividade. Mas vamos deixar issode lado, pois essas divagações --embora vivas, espontâneas e infantis-- não passam de divagações reli-giosas (de religamento, de re lig-are). E nós estamos mesmo é viajan-do. É verdade que a nossa viagemtem tido um forte caráter cristão.Pode-se dizer que seu fio condutornão tem sido outro. Mas o queparece mais representativo, aqui, sãoas percepções relativas e totais danossa confraria. Pai, mãe e filhonovos e renovados. Com as meiasverdades suspendidas e as dúvidasdesatadas. Ausentes os constrangi-mentos do medo. Tudo perfeitonessa união de três --talvez sob ainspiração da Trindade...

Metz

Page 86: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

anot

açõe

s de

via

gem

O fato é que no dia 25, Natal, fize-mos o nosso banquete com direitoa carne, batatas fritas, sobremesas,coca e meia garrafa de beaujolais.A fome e o desejo de comer exata-mente aquilo --e exatamente daque-le jeito -- eram tão grandes queaquela refeição caiu como umabenção. Foi muito prazeiroso estarali, naquela mesa, naquela ambi-ente cálido sobre a autoroute. E,de volta à França -- fechando umcircuito místico -- buscamosMarne sur la Valle e Meaux,lugarejos próximos à Eurodisney,passando por Reims e sua gloriosacatedral, uma das obras belas da

arte gótica do século XIII. Nessacatedral vários reis foram coroad-os, inclusive o rei Carlos VII, emcerimônia que contou com a pre-sença de Joana D’Arc em 1429.Em Reims resolvemos seguir aRota da Champagne, passeandojunto a imensas plantações de uva,cooperativas agrícolas e umainfinidade de caves --infelizmentefechadas. Mas no dia 25 de dezem-bro, Natal, ninguém trabalhamesmo. E não só no Brasil. E ohorário em que estávamos rodandopela Champagne coincidia com océlebre ritual do almoço prolonga-do, tão comum em vários países

E voltar para casa será

Na Rota da Champanha

Vista da Catedral de Reims

Page 87: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o

que visitamos. Uma pena. Ou talvezuma grande sorte. Afinal, eu não iriaresistir a copos, garrafas e tonéis doprecioso líquido. Até porque emnenhuma outra parte do planeta achampagne está tão integrada ao diaa dia das pessoas.E que estrada paraos gourmes e beberrões! Sãoquilometros e quilometros deencostas e colinas repletas de vinhas.E cada uma tem seu nome próprio,sua estirpe e até árvore genealógica.Mas como tudo estava fermé, nossosinstintos básicos levaram-nos parauma pequena capela românica doséculo XIII, em meio a vinhedos e na cumeeira de uma pequena

montanha. Novamente a intervençãodo acaso empurrava-nos na direçãodos símbolos mais transfiguradorese permanentes. E nós caminhávamospor eles abertos, inteiros. Deixando-nos contaminar por tudo aquilo queeles traziam de belo, digno e ver-dadeiro. Em cada canto e recantopudemos vivenciar, plenamente, oselos de uma corrente que nos liga atudo e a todos: a vida. E eu não duvidava mais da vida. Da vida devida. Da dívida. Da divisa. E nem dava mais ouvido ao vidro da vida. Eu dividia a vida. E dava e recebia o pão di vi di do.Amém.

á ainda voltar para casa?Catedral de Reims

Page 88: anotações de viagem aprendizados peripatéticos · uma mulher belíssima, chique e elegante. Na Torre Eiffel. anotações de viagem 30/11/92 - Está sendo muito difícil fazer o