Ano Litúrgico e Mistério Pascal

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Copilação de textos de Augusto Bergamini sobre o Ano Litúrgico. Os textos foram retirados do DICIONÁRIO DE LITURGIA, Domenico Sartore e Achille M. Triacca, AA.VV. Ed. Paulus, São Paulo, 2004.

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Augusto Bergamini

copilação e organização

Fábio Farom

arte e diagramação

Felipe Romano

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Índice

ANO LITÚRGICO (7)

I – A atual problemática do Ano Litúrgico (8)

II – Evolução progressiva (9)

III – O fundamento bíblico-teológico do ano litúrgico (11)

IV – A motivação para celebrar um ano litúrgico (14)

V – A reforma do ano litúrgico disposta pelo Vaticano II (15)

VI – Espiritualidade do ano litúrgico (17)

VII – Pastoral do ano litúrgico (18)

ADVENTO (19)

NATAL e EPIFANIA (25)

QUARESMA (33)

TRÍDUO PASCAL (41)

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ANO LITÚRGICO

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I – A atual problemática do Ano Litúrgico Ao abordar o assunto do ano litúrgico, não podemos esquecer o atual contexto sociocultural assinalado pela secularização e pelos condicionamentos de uma sociedade técnico-industrial. Tal contexto é bem diferente daquele em que surgiu e se desenvolveu o ano litúrgico. Hoje, alguns chegam até ao questionar e a pôr em discussão a própria realidade da ‘festa religiosa’ como resíduo de um mundo sacral (sagrado, sacro), já superado, para dar espaço somente a uma fé ‘secular’, que valoriza o ‘cotidiano’ e o ‘profano’ como lugares autênticos do encontro com Deus. Diante desta situação, a pastoral não pode ceder nem ao extremismo secularizante nem ao integrismo religioso de formas de outros tempos; deve, em vez, levar em conta o avanço cultural ocorrido, e ainda hoje em via de evolução, em busca de uma purificação e de uma redescoberta da fé nos seus conteúdos e nas suas atitudes mais puras e autenticas. O ano litúrgico na sua estrutura não é absoluto: é uma criação da Igreja, mas o seu conteúdo constitui a essência da própria fé da Igreja, o mistério de Cristo. Se tal conteúdo for apresentado na sua integridade e autenticidade com uma prévia catequese, que introduza à linguagem bíblica e leve em conta a linguagem do homem contemporâneo e, depois, for celebrado com as conseqüentes implicações de vida, certamente não poderá favorecer qualquer alienação de tipo sacral, mas ajudará continuamente os crentes a se encontrarem com o Deus da história, o Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, “que tanto amou o mundo a ponto de dar o seu Filho unigênito” (Jo 3,16). “Em um ‘hoje’ perene, a liturgia tem a capacidade de ritmar e medir a existência resgatada. O tempo da liturgia é tempo do ‘hoje’ da graça em que a palavra de Deus se torna vida. Refletir sobre este ‘hoje da graça’, para nele perceber concentrado todo o alcance da história da salvação, concretizada e fixada pela palavra de Deus, vivida e celebrada no ano litúrgico, significa traçar as linhas de uma teologia bíblica autenticamente perene”.

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II – Evolução progressiva O ano litúrgico não é uma idéia, mas é uma pessoa, Jesus Cristo e o seu mistério realizado no tempo e que hoje a Igreja celebra sacramentalmente como ‘memória’, ‘presença’, ‘profecia’. O mistério de Cristo foi compreendido e celebrado liturgicamente pela Igreja no decorrer dos séculos segundo a critério da ‘concentração à distribuição’, e pelo qual se passou progressivamente do ‘todo’ considerado na páscoa á explicitação de cada um dos mistérios separadamente. No primeiro período da história da Igreja, a páscoa foi o centro vital e único da preparação, da celebração e da vida cristã. Não devemos esquecer este dato importante: o culto da Igreja nasceu da páscoa e para celebrar a páscoa. Nos primeiros tempos, portanto, não se celebravam os ‘mistérios’, mas o ‘mistério’ de Cristo. No principio da liturgia cristã encontra-se somente o domingo como única festa e sem outras denominações a não ser a de ‘dia do Senhor’. Quase simultaneamente, com toda probabilidade devido á influência das comunidades cristãs provenientes do judaísmo, surgiu cada ano um ‘grande domingo’ como celebração anual da páscoa que se ampliará constituindo o tríduo pascal, como prolongamento da festa por cinqüenta dias (o bem-aventurado pentecostes). Em seguida, depois do séc. IV, a necessidade de contemplar e reviver cada momento do drama da paixão fez prevalecer um critério de ‘historicização’, que deu origem á formação da ‘semana santa’. A celebração do batismo na noite da páscoa (já no inicio do séc. III), a disciplina penitencial com a respectiva reconciliação dos penitentes na manhã da sexta-feira santa (séc. V) fez nascer também o período preparatório á páscoa, inspirado nos ‘quarenta dias bíblicos’, isto é, a quaresma. O ciclo natalício, (Natal - Epifania) nasceu no séc. IV de modo independente da visão unitária do mistério pascal. A ocasião foi propiciada pela necessidade de afastar os fiéis das celebrações pagãs e idolátricas do ‘sol invicto’ que ocorriam no solstício de inverno. As grandes discussões

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teológicas dos séculos IV e V encontraram, pois, no natal oportunidade para afirmar a autêntica fé no mistério da encarnação. Em fins do séc. IV, para criar certo paralelismo com o ciclo pascal, começou-se a fazer preceder as festividades natalícias de um período de preparação, composto de quatro ou seis semanas, chamado advento. O culto dos mártires é antiqüíssimo e está ligado á visão unitária do mistério pascal: aqueles que derramaram o sangue por Cristo eram considerados perfeitamente assimilados a Ele no ato supremo do seu testemunho ao Pai na cruz. O culto a Maria, historicamente, vem depois do culto dos mártires. Desenvolveu-se, sobretudo depois do concílio de Efeso (431) e particularmente durante o período natalício com a comemoração da divina maternidade, tanto no Oriente quanto no Ocidente (séc. VI). Por esta breve síntese, devemos concluir que o ano litúrgico não se formou historicamente com base em um plano concebido de modo orgânico, mas que ele se ‘desenvolveu’ e ‘cresceu’ de acordo com critérios de vida da Igreja, relacionada com a riqueza intrínseca do mistério de Cristo, com as múltiplas situações históricas e conseqüentes exigências pastorais. A reflexão teológica destinada a discernir o elemento unificante de toda a celebração do ano litúrgico aconteceu somente depois e sobre evoluções já acorridas.

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III – O fundamento bíblico-teológico do ano litúrgico

Para a reta compreensão do ano litúrgico é necessário procurar primeiro um bom fundamento bíblico-teológico. Sem esta reflexão prévia e indispensável, corremos o risco de não encontrar o elemento unificante dos seus diversos aspectos e de deformar a interpretação do seu conteúdo essencial, o mistério de Cristo, com graves conseqüências no plano espiritual e pastoral. 1. O ano litúrgico se baseia na historia da salvação. O que caracteriza a religião hebraica e cristã é o fato de que Deus entrou na história. O tempo está impregnado, prenhe de eternidade. A revelação é economia de salvação, isto é, plano divino que se realiza na história ‘com eventos e palavras intimamente ligados entre si’ (DV 2). Esta história possui a dimensão essencialmente profética: nela devem ser captadas e percebidas a existência e a ação da eleição divina que quer fazer uma aliança mediante a qual os homens devem tornar-se participantes da natureza divina (cf. 2 Pd 1, 4). São Paulo chama este plano divino de salvação, que se realiza na história. O ano litúrgico celebra o mistério de Deus em Cristo e, portanto, se acha enraizado na série de eventos mediante os quais Deus entrou na história e na vida do homem. 2. Unidade em Cristo e dimensão escatológica de todo o plano de Deus. O ato ‘fundante’ e constitutivo da história da salvação é a predestinação de Cristo como princípio e termo de toda a realidade criada (cf. Ef 1,4-5; Cl 1,16b-17). Neste plano salvífico, Cristo é o centro de onde tudo se irradia e para a qual tudo converge; Ele é a chave de leitura de todo o projeto divino, desde a criação até a sua última manifestação gloriosa. A criação, desde o seu início, está voltada para ele e progredirá, no curso dos tempos, até chegar á sua plenitude o corpo de Cristo (cf. Ef 4,13). O centro vital e irradiador e tudo é o evento pascal, isto é, o agape que culminará no senhorio pascal do Ressuscitado (cf. 1 Cor 15,20-28). O mistério de Cristo,

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pois, consiste no plano orgânico-progressivo, realizado no tempo, que desde a criação e a queda de Adão até a promessa da redenção e o chamado dirigido a Abraão, desde a aliança do Sinai até o anúncio da nova aliança, desde a encarnação até a morte-ressurreição de Cristo se acha em tensão de realização plena, á espera e em busca do momento definitivo da parusia final em que “Deus será tudo em todos” (1 Cor 15,28b). Cada etapa do desígnio salvífico não só prepara a seguinte, mas de certo modo já a inclui como em germe que se vai desenvolver: cada momento do seu crescimento, desde o início, contém a potencialidade do todo. O mistério, portanto, deve ser considerado na sua profunda unidade e totalidade e na sua dimensão escatológica dinâmica. A criação não é uma premissa, porém é o primeiro ato da história da salvação; o AT não é simples preparação histórica para a encarnação do Verbo, mas já é a economia salvífica, embora ainda não definitiva, que tem Cristo como chefe e cabeça (Jo 8,56; 1 Cor 10,4). Nele e por ele, Deus falava a Israel, constituía o seu povo, antecipando o evento que haveria de consumar a salvação. Na humanidade de Jesus, pois, realizaram-se plenamente os mistérios da salvação que já é a nossa salvação (Rm 7,4; Ef 2,6). Por conseguinte, também o tempo da Igreja deve ser considerado como tempo vinculado, em unidade vital, ao tempo de Cristo, porque a salvação, que se realizou na carne de Cristo, mediante a Palavra e os sacramentos, se torna a salvação comunicada a todos os homens disponíveis, que, justamente por isso, vão formar o corpo de Cristo que é a Igreja. A visão do plano de Deus na história, como salvação que é toda, sempre e somente de Cristo ontem, hoje, nos séculos (cf. Hb 13,8), constitui algo fundamental e essencial para compreendermos o significado, o valor, a estrutura e a unidade intrínseca do ano litúrgico. 3. Os mistérios de Cristo na perspectiva do mistério pascal. Também a existência histórica de Jesus deve ser considerada na sua unidade e na sua dimensão ‘oikonômica’, isto é, na sua tensão para o evento pascal e em vista da nossa salvação. Os acontecimentos da vida de Jesus devem ser vistos como momentos salvíficos na unidade de um único mistério, íntima e profundamente ligados entre si, ainda que com valor salvífico próprio e dirigidos a meta de uma realização plena: a páscoa de morte-ressurreição. E mais: é a partir desde centro, o evento pascal, que devem ser consideradas e interpretada a pessoa e missão de Jesus. É esta a perspectiva teológica que nos é dada pelos evangelhos e pelos outros livros do NT. O ano litúrgico não reflete tanto a vida terrena de Jesus de Nazaré, considerada do ponto de vista histórico – cronológico, embora dela não

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prescinda – quanto, muito mais, o seu mistério, ou seja, o Cristo em cuja carne se realizou plenamente o desígnio salvífico (cf. Ef 2,14-18; Cl 1,19-20). 4. Do evento histórico ao memorial litúrgico. Depois de havermos considerado a linha histórico – temporal dos eventos salvíficos, para compreendermos o ano litúrgico devemos considerar a linha ritual ou litúrgica, pela qual a salvação operada por Deus na história se tornou presente e eficaz para os homens de todos os tempos e todas as nações. Já no AT o evento salvífico é perpetuado em uma festa e em um rito memorial, mediante os quais todas as gerações celebram a memória, tornam presente a salvação de Deus e anunciam profeticamente o seu cumprimento (cf. Ex 12,14; Dt 5,2-3; Ex 13,14-15). Todas as festas de Israel são celebração memorial ligada aos eventos pascais do Êxodo (cf. Lv 23,4-36; Dt 16,1-7; Nm 28,6). Cristo deu cumprimento aos eventos da salvação do AT (cf. Mc 1,15; At 1,7ss) e, ao mesmo tempo, também ao significado das festas memoriais de tais eventos. Nele se cumpre a Escritura e com ele se inaugura o ano do Senhor, isto é, o hoje da salvação definitiva que realiza as promessas de Deus (cf. Lc 4,16-21; At 13,32-33). Quando Jesus diz: “Fazei isto em memória de mim” (cf. Lc 22,19; 1Cor 11,23-25), ele insere, através do rito da ceia, a sua páscoa no tempo; a realidade da salvação se perpetua na história humana com o memorial eucarístico até a sua vinda gloriosa. Assim, “o que era visível do nosso Redentor, passou para os ritos sacramentais”. A festa da Igreja, então, é o Cristo, cordeiro pascal imolado e glorificado (cf. 1 Cor 5,7-8). O tempo litúrgico na Igreja é simplesmente um momento do grande ano da redenção inaugurado por Cristo (cf. Lc 4,19-21) e todo ano litúrgico é um ponto da linha reta temporal própria da história da salvação. Na perspectiva do plano – orgânico - progressivo da salvação, a celebração litúrgica faz atingir o objetivo supremo da realização da economia salvífica, ou seja, a interiorização do mistério de Cristo (cf. 1,27). O tempo se torna como que a ‘matéria’ de um ato sacramental que transmite a salvação. A volta da celebração dos mistérios de Cristo no circulus anni não deve sugerir a idéia de círculo fechado, da repetição segundo a visão pagã do mito do eterno retorno. A historia da salvação, realizada para nós sobretudo nas ações litúrgicas, é movimento aberto e ascensional para a plenitude do mistério de Cristo (cf. Ef 4,13-15). A Igreja celebra todos os anos este mistério nos seus diversos aspectos não para ‘repetir’ mas para ‘crescer’ até a manifestação gloriosa do Senhor com todos os eleitos.

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IV – A motivação para celebrar um ano litúrgico Já consideramos a contestação do ano litúrgico por parte de uma perspectiva secularizada da fé. Agora, trata-se de considerarmos também uma objeção que provém da teologia. Já que na Eucaristia se encerra todo o bem espiritual da Igreja, o próprio Cristo, nossa páscoa (cf. PO 5), e já que nela vivem e se concentram em sumo grau todos os aspectos do mistério de Cristo e de toda a história da salvação, somos questionados sobre a necessidade de uma estrutura de um ano litúrgico. Se a realidade salvífica é plena e total em toda Eucaristia, que pode ser celebrada cotidianamente, por que toda uma série de festas distribuídas durante o arco de um ano? As razões que justificam o ano litúrgico são de caráter pedagógico e também teológico. A Igreja, sob a influência do Espírito, foi explicitando os diversos aspectos e momentos do único mistério, porque, na nossa limitada capacidade psicológica, não podemos perceber, captar e penetrar toda a sua infinita riqueza com um só olhar. Destacar liturgicamente ora um ora outro aspecto do único mistério, ou seja, celebrar casa mistério separadamente é o que se chama festa litúrgica. Além desta, existe outra razão de caráter estritamente teológico. A obra da redenção e da perfeita glorificação de Deus foi realizada especialmente, porém não exclusivamente, mediante o mistério pascal. Todos os atos da vida de Cristo, os mistérios, são salvíficos e cada um deles possui sua conotação específica e seu valor próprio no plano de Deus. Estes mistérios não têm apenas um significado genérico de trânsito para o evento final, mas constituem orientações determinadas da vida de Jesus e manifestam o amor do Pai em Cristo. A liturgia, portanto, como realização do mistério de Cristo, não pode deixar de valorizar cada um dos eventos salvíficos, a fim de comunicar a sua graça particular aos fiéis. Isto, porém, acontece – e não devemos esquecê-lo – sobretudo mediante a celebração eucarística.

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V – A reforma do ano litúrgico disposta pelo Vaticano II

A constituição sobre a liturgia Sacrosanctum Concilium do Vat. II, ao estabelecer a reforma geral da liturgia, no que diz respeito ao ano litúrgico, havia disposto que ele “fosse revisto de modo que, conservados ou restituídos os usos e os ordenamentos tradicionais dos tempos sagrados segundo as condições de hoje, fosse mantido o seu caráter original para alimentar devidamente a piedade dos fieis na celebração dos mistérios da redenção cristã, mas principalmente na celebração do mistério pascal... As atenções dos fiéis sejam dirigidas primordialmente para as festas do Senhor, nas quais se celebram, durante o ano, os mistérios da salvação. Por isso, o próprio do tempo deve ter o seu justo lugar acima das festas dos santos, a fim de que o ciclo integral dos mistérios da salvação seja convenientemente recordado” (SC 107-108). Já São Pio X e o Beato João XXIII haviam elaborado disposições com o objetivo de “restituir ao domingo a sua dignidade original, de modo que fosse considerado por todos como a ‘festa primordial’, e igualmente visando restaurar e restabelecer a celebração litúrgica da quaresma”. E Pio XII havia “decretado que se fizesse reviver, durante a noite pascal, a solene vigília, em que o povo de Deus, celebrando os sacramentos da iniciação cristã, renova a sua aliança espiritual com o Cristo Senhor ressuscitado”. Tudo isso encontrou agora seu coroamento na Instrução Geral sobre o Missal Romano promulgada por Paulo VI com o motu próprio Mysterii paschalis de 14 de fevereiro de 1969, como realização e entrada em vigor das disposições dadas pelo Vaticano II. A reforma foi inspirada por critério teológico – pastoral de autêntica tradição e de simplificação. Ela promoveu uma reestruturação mais lógica e orgânica, clara e linear que evitasse a duplicação de festas e sobretudo exprimisse a centralidade do mistério de Cristo com o seu vértice na páscoa.

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A reforma, portanto, estabeleceu os seguintes pontos principais: 1) o domingo é a festa primordial e, com tal, dever ser respeitado e proposto á piedade dos fiéis (SC 106); 2) o próprio do tempo, ou a celebração de todo o mistério de Cristo tendo como centro o mistério pascal, ocupa o primeiro lugar; 3) as festas dos santos para toda a Igreja são reduzidas ás dos santos de importância verdadeiramente universal (SC 111). É importante termos presente que no santoral deve ser sempre celebrado o próprio mistério de Cristo, visto nos seus frutos, realizado nos seus membros mais configurados com o Senhor morto e ressuscitado e, sobretudo, em Maria, “o fruto mais excelso da redenção” (SC 103-104).

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VI – Espiritualidade do ano litúrgico A liturgia, como afirmou o Vat. II, “é a fonte primeira e indispensável, mediante a qual os fiéis podem atingir o genuíno espírito cristão” (SC 14). Com a celebração do ano litúrgico a Igreja, fazendo memória dos mistérios da redenção, abre aos fiéis a riqueza das ações salvíficas do seu Senhor, torna-as presentes a todos os tempos, a fim de que os fiéis entrem em contato com elas e fiquem repletos da graça da salvação (cf. SC 102). Todo tipo de espiritualidade, legítimo e aprovado pela autoridade da Igreja, deverá alimentar-se desta fonte normativa e confrontar-se com ela. Para entrar vitalmente no mistério de Cristo, tal como ele é celebrado no ano litúrgico, é necessário retificar algumas perspectivas parciais e unilaterais em que ele é considerado, sobretudo pelas chamadas ‘devoções’, onde prevalece o aspecto anedótico, sentimental e moralista em detrimento do aspecto salvífico. É necessário recuperar, à luz da melhor teologia bíblico – patrística – litúrgica e dos ensinamentos do Vaticano II, a visão ‘oikonômica’ e escatológica do mistério de Cristo; recuperar a riqueza e a centralidade do mistério pascal e considerar-nos mediante a celebração litúrgica atualmente movidos e imersos na próprio mistério. Com efeito, não existe uma história da salvação já passada e plenamente realizada, de cujos frutos gozamos hoje, mas uma história da salvação que, pela graça do Espírito Santo, deve cumprir-se em todos os homens e em cada homem. A espiritualidade do ano litúrgico ainda exige que vivamos a dimensão cristocêntrico – trinitária própria do culto cristão segundo a fórmula clássica “do Pai, por Cristo, no Espírito Santo, ao Pai”. Requer, enfim, que tal dimensão seja vivida e alimentada por meio dos ritos e das orações da própria celebração e, antes de mais de nada, por meio dos textos bíblicos da liturgia da Palavra.

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VII – Pastoral do ano litúrgico A pastoral é verdadeira e autêntica quando ajuda os fiéis a ‘entrar’ no mistério e a ter o máximo de contato com o Senhor na assembléia dos batizados, para fazer de toda a vida um sacrifício espiritual agradável a Deus. O memorial, na realidade, nada mais é senão uma celebração sacramental totalmente centralizada no mistério pascal e tendo como objetivo inserir os participantes neste grande evento salvífico para o qual tendem todos outros eventos. Observamos, porém, que muitas vezes os tempos litúrgicos parecem mais uma oportunidade para pôr em prática iniciativas pastorais do que verdadeiras celebrações do mistério de Cristo, mediante as quais tomamos consciência e recebemos força para exprimir Cristo em nossa vida, e que “as festas são mais uma circunstância de agregação multitudinária do que a reunião de um povo que nelas manifesta a fé no evento celebrado”. A causa parece pode ser identificada na falta de evangelização que precede a celebração litúrgica. A liturgia é sempre o ato de crentes que conscientemente sabem o que celebram e alimentam a sua fé mediante a própria celebração (cf. SC 9-14; 19; 48). Devemos chegar ao ano litúrgico, e não partir do ano litúrgico, para a primeira evangelização: dentro do leito vital do ano litúrgico, educam-se os fiéis no aprofundamento do seu caminho de seguimento de Cristo. A pastoral do ano litúrgico, pois, valorizando os tempos fortes no seu autêntico conteúdo salvífico, deverá elaborar os seus planos dando grande atenção a duas instâncias e exigências: no ano litúrgico, ter com objetivo levar os fiéis à participação cada vez maior na páscoa de Cristo; vincular estreitamente a celebração dos sacramentos da iniciação cristã aos ritmos e aos tempos do ano litúrgico e a particularmente à quaresma e ao tempo pascal. O ano litúrgico seguido pastoralmente com estes critérios se transforma no principal caminho para o anúncio e a realização do mistério de Cristo, não segundo esquemas subjetivos, porém de acordo com o plano sacramental da Igreja.

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O ADVENTO A historia e o significado do tempo do advento – As verdadeiras origens do advento são incertas e as noticias que nos chegaram são escassas. É necessário distinguir elementos relativos a práticas ascéticas de outros de caráter propriamente litúrgico: um advento como tempo de preparação ao natal e um advento que celebra a vinda gloriosa de Cristo (advento escatológico). O advento é tempo litúrgico típico do Ocidente: o Oriente tem somente uma breve preparação de poucos dias para o natal.

Temos notícias do Advento desde o séc. IV, e este tempo se caracteriza tanto em sentido escatológico quanto como preparação ao natal. Sobre o significado originário do advento, por isso, muito se tem discutido, preferindo alguns optar pela tese do advento natalício, outros pela tese do advento escatológico. A reforma do Vat. II quis, intencionalmente, conservar ambos os caracteres de preparação para o natal e de espera da segunda vinda de Cristo (cf. Introdução Geral sobre o Missal Romano).

A estrutura litúrgica do advento no Missal de Paulo VI – O advento consta de quatro domingos (na liturgia ambrosiana, porém, consta de seis). Este tempo litúrgico, embora conservando sua unidade, como vemos pelos textos litúrgicos e principalmente pela leitura quase cotidiana do profeta Isaías, é praticamente formado por dos períodos: 1. do primeiro domingo do advento até 16 de dezembro dá-se maior evidência ao aspecto escatológico e procura-se orientar as almas para a espera da vinda gloriosa de Cristo: 2. do dia 17 de dezembro ao dia 24, tanto na missa quanto na liturgia das horas, todos os textos orientam-se mais diretamente à preparação do natal. Os dois prefácios do advento exprimem bem as características dos dois momentos. Neste tempo litúrgico emergem três figuras bíblicas, características do advento: o profeta Isaías, João Batista, Maria.

Tradição antiqüíssima e universal escolheu para o advento a leitura do profeta Isaías, porque nele, mais do que nos outros profetas, se encontra um eco da grande esperança que confortou o povo eleito durante os

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séculos duros e decisivos da sua história. As páginas mais significativas do livro de Isaías são proclamadas durante o advento e constituem um anúncio de esperança perene para os homens de todos os tempos.

João Batista é o último dos profetas e resume na sua pessoa e na sua palavra toda a história anterior no momento em que se desemboca no seu cumprimento. Encarna bem, portanto, o espírito do advento. Ele é o sinal da intervenção de Deus em favor do seu povo; como precursor do Messias, tem a missão de preparar os caminhos do Senhor (cf. Is 40, 3), de oferecer a Israel o “conhecimento da salvação” (cf. Lc 1,77-78) e, sobretudo, da apontar Cristo já presente no meio do seu povo (cf. Jo 1,29-34).

O advento, enfim, é o tempo litúrgico em que (de modo diverso dos outros em que infelizmente se acha ausente) se dá destaque, de maneira feliz, à cooperação de Maria no mistério da redenção. Isto acontece como que “de dentro para fora”, interiormente, na celebração e, não, por superposição ou por acréscimo devocionista. Não é justo, porém, chamar o advento de o melhor ‘mês de Maria’, exatamente porque este tempo litúrgico é essencialmente celebração do mistério da vinda do Senhor, mistério a que se acha particularmente ligada a cooperação de Maria.

A solenidade da Imaculada Conceição, celebrada no principio do advento (8 de dezembro), não significa parênteses ou ruptura da unidade deste tempo litúrgico, mas é parte do mistério. Maria imaculada é o protótipo da humanidade redimida, o fruto mais excelso da vinda redentora de Cristo. Nela, como canta o prefácio da solenidade, Deus nos deu “as primícias da igreja, esposa de Cristo sem ruga e sem mancha, resplandecente de beleza”.

A teologia do advento – O advento possui seu conteúdo teológico bem rico; com efeito, ele considera todo o mistério da vinda do Senhor na história até sua conclusão. Os diversos aspectos do mistério servem de recordação recíproca e se fundem em admirável unidade.

O advento lembra, antes de tudo, a ‘dimensão histórico-sacramental’ da salvação. O Deus do advento é o Deus da história, o Deus que veio plenamente para a salvação do homem em Jesus de Nazaré, em quem se revela a face do Pai (cf. Jo 14,9). A dimensão histórica da revelação recorda a concretude da salvação plena do homem, de todo o homem, de todos os homens; portanto, o nexo intrínseco entre – evangelização e promoção humana.

O advento é o tempo litúrgico em que se evidencia fortemente a ‘dimensão escatológica’ do mistério cristão. Deus nos reservou para a salvação (cf. 1 Ts 5,9), mas trata-se de uma herança que se revelará apenas no fim dos

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tempos (cf. 1 Pd 1,5). A história é o lugar da realização das promessas de Deus e está voltada para o “dia do Senhor” (cf. 1 Cor 1,8;5,5). Cristo veio na nossa carne, manifestou-se e revelou-se como ressuscitado, depois da morte, aos apóstolos e ás testemunhas previamente escolhida por Deus (cf. At 10,40-42), e aparecerá glorioso no fim dos tempos (At 1,11). A igreja, na sua peregrinação terrena, vive continuamente a tensão do já da salvação toda realizada em Cristo e o ainda não da sua realização em nós e da sua plena manifestação na volta gloriosa do Senhor juiz e salvador.

O advento, enfim, ao mesmo tempo que nos revela as verdadeiras, profundas e misteriosas dimensões da vinda de Deus, recorda também a dimensão missionária da igreja e de todo cristão para o advento do reino de Deus. A missão da igreja em face do anúncio do evangelho a todas as nações é essencialmente baseada no mistério da vinda de Cristo, enviado pelo Pai; sobre a vinda do Espírito Santo, mandado pelo Pai e pelo Filho.

Espiritualidade do advento – A comunidade cristã, com a liturgia do advento, é chamada a viver algumas atitudes essenciais à expressão evangélica da vida: a espera vigilante e jubilosa, a esperança, a conversão. A atitude da espera caracteriza a igreja e o cristão porque o Deus da revelação é o Deus da promessa que em Cristo manifestou toda a sua fidelidade ao homem (cf. 2Cor 1,20). Durante o advento a igreja não repete a parte dos judeus que esperavam o Messias prometido, mas vive a espera de Israel em níveis da realidade e manifestação definitiva desta realidade, que é Cristo. Agora vemos “como que num espelho”, mas virá o dia em que “veremos face a face” (1Cor 13,12). A igreja vive esta espera na vigilância e na alegria. Por isso, reza: “Maranatha: Vem, Senhor Jesus” (Ap 22,17-20).

O advento, por conseguinte, celebra o “Deus da esperança” (Rm 15,13), e vive a alegre esperança (cf. Rm 8,24-25). O canto que caracteriza o advento, desde o primeiro domingo é o Sl 25: “A ti, Senhor, eu me elevo, ó meu Deus. Eu confio em ti, que eu não seja envergonhado, que meus inimigos não triunfem contra mim! Os que esperam em ti não ficam envergonhados”.

Deus que entra na história põe em causa o homem, questiona-o. A vinda de Deus em Cristo requer contínua conversão: a novidade do evangelho é luz que exige despertar pronto e decidido do sono (cf. Rm 13,11-14). O tempo do advento, sobretudo através da pregação de João Batista, é convite á conversão para preparar os caminhos do Senhor e acolher o Senhor que vem. O advento, enfim, educa para viver a atitude dos ‘pobres de Javé’, mansos, humildes, disponíveis, e que Jesus proclamou bem-aventurado. (cf. Mt 5, 3-12).

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A pastoral do advento – A pastoral do advento, não ignorando que este período, na nossa sociedade industrial e consumista, coincide com o lançamento comercial da ‘operação natal’, justamente por isso, a igreja esta chamada a transmitir os valores e as atitudes que estejam de acordo com a visão escatológica da vida. O advento, com a sua mensagem de espera e de esperança diante da vinda do Senhor, dever formar comunidades cristãs e crentes que se proponham como sinais alternativos para uma sociedade em que as áreas do desespero parecem mais vastas do que as da fome e do subdesenvolvimento. A autêntica tomada de consciência, a verdadeira conscientização, da dimensão escatológica da vida cristã não deve diminuir, porém aumentar e fortalecer o compromisso com a redenção da história e a preparação, através do serviço aos homens prestado aqui na terra, considerando-a a matéria para o reino dos céus. Na verdade, Cristo, com a força do seu Espírito, age e opera no coração dos homens, não só para suscitar o desejo do mundo futuro, como também para inspirar, purificar e fortalecer o compromisso com a finalidade de tornar mais humana a vida terrena (cf. GS 38).

Se a pastoral for guiada e iluminada por estas perspectivas teológicas profundas e estimulantes, encontrará, na liturgia do tempo do advento, o meio necessário e a ocasião propícia para enriquecer os cristãos e conformar comunidades que saibam ser alma do mundo.

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NATAL e EPIFANIA

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O natal Inicialmente, as duas festas, natal e epifania, constituíam uma única festa que tinha um único objeto: a encarnação do Verbo, celebrada, porém, com acentuações, denominação e datas diferentes no Oriente e no Ocidente: aqui a 25 de dezembro com festa do natal, lá a 6 de janeiro com festa da epifania. A distinção separando as comemorações em duas festas, com conteúdos diferentes, ocorreu entre o fim do séc. IV e o começo do séc. V. A história da festa do natal – Por volta do ano 336, temos notícia de uma festa do natal em Roma, onde era celebrada a 25 de dezembro. Por Santo Agostinho conseguimos saber que, também na África, mais ou menos na mesma época, se celebrava o natal em data idêntica. Por volta do fim do séc. IV, a festa já se acha estabelecida no norte da Itália e é considerada uma das grandes solenidades; é o que acontece também na Espanha. No mesmo período, como ficamos sabendo por discurso de São João Crisóstomo, também em Antioquia se celebrava o natal a 25 de dezembro com festa vinda de Roma, porém diferente da epifania, celebrada a 6 de janeiro. As origens da festa do natal – Para o aparecimento da celebração do natal contribuíram causas diversas. 25 de dezembro evidentemente não é a data histórica do nascimento do menino Jesus, mas foi escolhido na tentativa, pela igreja de Roma, de suplantar a festa pagã o “Natalis (solis) invicti”. O culto do sol estava muito em voga nesse período de paganismo decadente e, no solstício de inverno ocorriam celebrações solenes. Para afastar os fiéis dessas festas idolátricas, a igreja convidou os cristãos a considerarem o nascimento de Cristo, verdadeira luz que ilumina todo homem. As grandes heresias cristológicas dos séc. IV e V e a celebração dos quatro concílios ecumênicos de Nicéia, Constantinopla, Éfeso, Calcedônia fizeram do natal, sobretudo pela ação do São Leão Magno, a oportunidade para afirmar a autêntica fé no mistério da encarnação.

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A estrutura do tempo do natal – A reforma litúrgica do Vat. II conservou substancialmente o enfoque anterior do tempo natalício; enriqueceu-o, porém, grandemente com textos e também com algumas celebrações, como, por exemplo, a missa vespertina da vigília; o restabelecimento da celebração da divina maternidade de Maria na oitava do natal, segundo antiga tradição; maior destaque dado ao mistério do batismo de Jesus, celebrado no domingo depois da epifania; a festa da Sagrada Família, transferida para o domingo depois do natal. O tempo natalício, pois, vai desde as primeiras vésperas do natal do Senhor até o domingo depois da epifania inclusive, ou seja, até o domingo depois de 6 de Janeira (Normas sobre o ano litúrgico e o calendário, nn. 32-38). A teologia da celebração do natal – A realidade celebrada na solenidade do natal, a ‘vinda’ do Filho de Deus na carne, se concretiza no nascimento de Jesus e de Maria, e nos acontecimentos de sua infância. A expressão ‘natale Domini’ exprime o caráter histórico e concreto desta festa.1 A celebração do natal, porém, não se detém no fato histórico, mas deste passa ao seu verdadeiro fundamento, o mistério da encarnação. Natal, mistério de salvação – Ainda que Santo Agostinho não considerasse a celebração do Natal um ‘sacramento’ como a páscoa, mas uma simples ‘memória’ entendida como aniversario2, o papa São Leão Magno deu a esta solenidade o seu verdadeiro fundamento teológico. Ele fala do “mistério da natividade de Cristo” (“sacramentum nativitatis Christi”) para indicar o valor salvífico do evento. As páginas do evangelho e dos profetas que anunciam este mistério, diz São Leão, nos afervoram e nos ensinam que o natal do Senhor, quando o Verbo se fez carne (Jo 1,14), não se nos apresenta como recordação do passado, mas nós o vemos no presente3, por isso “a presente festividade renova para nós o sagrado natal de Jesus” 4. No entanto, devemos ter presente que, se o natal é “sacramento de salvação”, ele não é a celebração da páscoa. Ele torna presente o ponto de partida de tudo o que se realizou na carne de Cristo para a nossa salvação. A encarnação do Verbo - Para melhor compreendermos o conteúdo das solenidades natalinas, é preciso lembrar o sentido originário da celebração expresso na fórmula “manifestação do Senhor na carne”. Com São Leão Magno, o papa do concílio de Calcedônia, o natal se tornou a celebração do mistério da encarnação segundo a fé da igreja contra todas as interpretações erradas: gnóstica, ariana, docetista, maniquéia ou

1 Cf. J. Lemarie, La manifestzione del Signore, Edizioni Paoline, 1969, 36. 2 Santo Agostinho, Epistola 55, I,2. 3 São Leão Magno, 9° Discurso do natal (XXIX), I. 4 Id., 6° Discurso do natal (XXVI) 2.

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monofisita. Os textos da atual liturgia ainda estão cheios das expressões dogmáticas que esclarecem com precisão a fé no mistério da encarnação. O admirável intercâmbio entre a divindade e a humanidade – O tema do intercâmbio de “Deus que se fez homem, a fim de que o homem se tornasse Deus” 5 ocupa o centro de toda a rica liturgia romana do natal. O primeiro ato deste intercâmbio se opera na humanidade de Cristo: o Verbo assumiu o que era nosso para nos dar o que era seu. O segundo ato do intercâmbio consiste na nossa real e íntima participação na natureza divina do Verbo: o Salvador do mundo, que hoje nasceu, nos regenerou como filhos de Deus. O Natal na perspectiva da páscoa – O aprofundamento bíblico – teológico do mistério de Cristo levou a descobrir a orientação pascal do mistério da encarnação. O Filho de Deus assume um corpo para se oferecer ao Pai com um sacrifício existencial e pessoal (cf. Hb 10,5-10). Por trás dos dois dias festivos da páscoa e do natal existe uma única perspectiva de fundo: a exaltação do Senhor. Não se trata apenas e primordialmente de uma sucessão histórica dos acontecimentos de Belém e de Jerusalém, mas da inteligência do Cristo pela igreja que teve o seu selo no ensinamento do Vat. II.6 Dentro desta visão teológica, o natal deve ser visto também como o princípio da igreja e da solidariedade de todos os homens. A geração de Cristo – afirma São Leão Magno – é a origem do povo cristão: o natal da cabeça é também o natal do corpo.7 Com a encarnação, pois, o Filho de Deus se uniu de certo modo a cada homem (cf. GS 22). Enfim, o natal é também mistério da renovação do cosmo: o Verbo assume em si toda para erguê-la da sua queda e para reintegrar o universo no desígnio do Pai (segundo o prefácio do natal). A espiritualidade do natal – O mistério do natal não nos oferece somente um modelo a ser imitado na humildade e na pobreza do Senhor que jaz na manjedoura, mas dá-nos a graça de sermos semelhantes a Ele. A manifestação do Senhor leva o homem à participação na vida divina. A espiritualidade do natal é a espiritualidade da adoção como filhos de Deus. Isto deve acontecer não por uma imitação de Cristo ‘de fora para dentro’, mas no viver Cristo que está em nós e no manifestá-lo virgem, pobre, humilde, obediente. São Leão Magno convida o cristão a reconhecer a

5 Santo Agostinho, Sermo 198: PL 39, 1997. 6 Cf. R. Berger, citado por B. Neunheuser, La venuta del Signore: teologia del tempo di natale e epifania em RL., 1972,5,599-613. 7 São Leão Magno, 6° Discurso do natal (XXVI), 2.

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própria dignidade, a fim de que, tornando-se participante da vida divina, não queira voltar à objeção de outrora com uma conduta indigna.8 Finalmente, já que Deus nos torna seus filhos em Cristo, inserindo-nos como membros no corpo de igreja, a graça do natal exige como resposta vida da comunhão fraterna. A pastoral deverá valorizar a celebração natalina, para formar fiéis na autêntica fé em Cristo, a qual, porém, não pode ser separada da autêntica visão do homem, porque “somente no mistério do Verbo encarnado encontra verdadeira luz o mistério do homem” (GS 22). O natal, hoje, deverá se celebrado também como a grande festa do homem. Com efeito, Cristo, “que é novo Adão, justamente ao revelar o mistério do Pai e do seu amor, revela também o homem ao próprio homem e o faz conhecer sua altíssima vocação” (GS 22).

8 Id., 1° Discurso do natal (XXI), 3.

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A epifania O termo grego ‘epifania’ ou ‘teofania’ tem o significado de autonotificação, de entrada poderosa no campo da notoriedade e referia-se à chegada de um rei ou de um imperador. O mesmo termo, porém, servia ainda para indicar o aparecimento ou manifestação de uma divindade ou de alguma intervenção prodigiosa sua. Não é de admirar que com o nome ‘epifania’ se tenha designado no Oriente a festa do natal do Senhor, o seu aparecimento, a sua aparição, na carne. Historia da festa da epifania – Já no séc. II se tem notícia de uma festa cristã, celebrada pelas seitas gnósticas a 6 de janeiro, com a qual se comemorava o batismo de Jesus. Na segunda metade do séc. IV, Epifânio dá primeira notícia da festa ortodoxa do epifania, entendida como celebração da vinda do Senhor, ou seja, o seu nascimento humano e perfeita encarnação. No tempo de São João Crisóstomo a festa se celebra em Antioquia e no Egito e tem por objeto o nascimento e o batismo de Cristo. Quando a festa da epifania chegou ao Ocidente, mudou de significado, passando a celebrar a “revelação de Jesus ao mundo pagão”, com o seu protótipo na vinda dos magos de Belém para adorar o Redentor recém-nascido. A este episódio unia-se também a lembrança do batismo de Jesus e do seu primeiro milagre em Caná. Quando o natal entrou no Oriente, quebrou o significado predominante a festa do batismo de Jesus. O modo como surgiu a festa da epifania no Oriente não é muito diferente da maneira pela qual apareceu o natal no Ocidente. Os pagãos celebravam também no Oriente, e particularmente no Egito, a festa do solstício do inverno. Os cristãos, treze dias depois de 25 dezembro, quando o aumento da luz já é mais visível,a 6 de janeiro, celebravam o natal para mostrar que Jesus, ao nascer nesse dia, demonstrava ser a luza verdadeira.

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O objetivo da atual celebração da epifania – Ao aceitar a epifania que vinha do Oriente, a maior parte das igrejas ocidentais pretendeu celebrar principalmente a vinda dos magos, vistos como ‘primícias das nações’ com a conseqüente manifestação de Jesus como Senhor de todos os povos. Deste modo, no Ocidente distinguiu-se nitidamente o objeto da celebração das duas festas: o nascimento de Cristo, como natal: a homenagem das nações, como epifania. O mistério, depois da reforma litúrgica do Vat. II, está bem expresso e sintetizado pelo embolismo do prefácio: “Hoje, em Cristo, luz de mundo, revelaste aos povos o mistério da salvação, e nele, que apareceu em nossa carne mortal, tu nos renovaste com a glória da imortalidade divina”. Todo o formulário litúrgico, tanto do Missal como da Liturgia da Horas, evidencia a universalidade da salvação em Cristo; o mistério esponsal de Cristo que se une á sua Igreja para purificá-la e santificá-la; o mistério da igreja missionária, sinal erguido sobre os povos para reunir os filhos de Deus dispersos. Entram no conjunto das ‘festas epifânicas’ tanto a celebração do batismo de Jesus (domingo depois da epifania) quanto a festa da apresentação do Senhor no templo (2 de fevereiro).

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QUARESMA

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A Quaresma Origem da quaresma – Não nos é dado saber com certeza com onde, por meio de quem e como surgiu a quaresma, sobretudo em Roma; só sabemos que ela se foi formando progressivamente. Mesmo antes dos cânones conciliares, observa o cardeal A.I Schuster, uma observância preparatória para a páscoa deve ter nascido do próprio sentido e do gênio sobrenatural do cristianismo.9 As primeiras alusões diretas a um período pré-pascual encontramos no Oriente no principio do séc. IV. Uma praxe preparatória à páscoa incluindo o jejum, porém, havia começado a afirmar-se desde a metade do séc.II. A partir do fim do séc. IV, a estrutura da quaresma passa a ser a dos ‘quarenta dias’ considerados à luz do simbolismo bíblico,10 que dá a esse tempo valor salvífico – redentor, de que é sinal a denominação dele como saramentum. Para o desenvolvimento da quaresma contribui a disciplina penitencial para a reconciliação dos pecadores que ocorria na manhã da quinta feira santa, e as exigências sempre crescentes do catecumenato com a preparação imediata do batismo, celebrado na noite de páscoa. A atual celebração litúrgica da quaresma – O Vat.II recomendara o seguinte: “Tanto na liturgia quanto na catequese litúrgica, esclareça-se melhor a dupla índole quaresmal, que, principalmente pela lembrança ou preparação do batismo e pela penitencia, fazendo os fiéis ouvirem com mais freqüência a palavra de Deus e entregarem-se à oração, os dispõe á celebração do mistério pascal. Por isso, utilizem-se com mais abundância os elementos batismais próprios da liturgia quaresmal; segundo as circunstâncias, restaurem-se certos elementos da tradição anterior. Diga-se o mesmo dos elementos penitencias” (SC 109). Fiel a essa orientação, a 9 Cardeal A. I. Schuster, Liber sacramentorum III, Marietti, Turim, 1944, 4° edição, 3. 10 O simbolismo bíblico dos quarenta dias é muito rico: recordem-se os quarenta dias do dilúvio; o s quarenta dias de Moisés no Sinai; os quarenta dias de Elias andando em direção ao monte Horeb; os quarenta dias de Jonas; os quarenta dias do povo de Deus no deserto (cf. R. Poelman, Il segno bíblico di quaranta giorni, Queriniana, Bréscia, 1964.)

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reforma restituiu á quaresma, antes de mais nada, o seu teor pascal – batismal que faz o cristão votar-se para os esses dois eventos; a páscoa do Senhor e o batismo recebido; fixou o seu tempo, com um período que decorre da quarta-feira de cinzas até a missa “in Coena Domini” exclusive11; para conservar a unidade interna, reduziu o tempo da paixão12: somente o VI domingo, que dá inicio à semana santa, é chamado “domingo de ramos”, ‘de passione Domini”. Desse modo, a semana santa encerra messiânica a quaresma e tem como escopo a veneração da paixão do Cristo a partir da sua entrada messiânica em Jerusalém. Além da riqueza dos textos eucológicos, na quaresma atual temos também vasta série de textos bíblicos. O lecionário dominical oferece a possibilidade de três itinerários: a. uma quaresma batismal (ciclo A); b. uma quaresma cristocêntrica (ciclo B); c. uma quaresma penitencial (ciclo C). Os textos do AT apresentam de modo particular a história da salvação. Teologia e espiritualidade da quaresma – A quaresma teologicamente deve interpretada a partir do mistério pascal, celebrado no tríduo sagrado e com os ‘sacramentos’ pascais que tornam presente esse mistério para que seja vivido e participado. A quaresma não é resíduo arqueológico de práticas ascéticas de outros tempos, mas é o tempo da experiência mais viva da participação no mistério pascal de Cristo: “participamos dos seus sofrimentos para participarmos também da sua glória” (Rm 8,17). Esta é a lei da quaresma. Daí o seu caráter sacramental: tempo em que Cristo purifica a igreja, sua esposa (cf. Ef 5, 25-27). O acento cai, pois, não tanto nas práticas ascéticas, mas na ação purificadora e santificadora do Senhor. As obras penitências são o sinal da participação no mistério de Cristo que, por nossa causa, se faz penitente recorrendo ao jejum do deserto. A igreja, ao começar o caminho quaresmal, está consciente deque o próprio Senhor é quem dá a eficácia à penitência dos seus fiéis, motivo pelo qual a penitência adquire o valor de ação de litúrgica, ou seja, a ação de Cristo e da sua Igreja. Neste sentido, os textos da eucologia13 falam de “annua quadragesimalis exercitia

11 Foi oportunamente suprimido a septuagésima, da sexagésima e da qüinquagésima. 12 Anteriormente, no Missal do Pio V, o tempo da paixão começava com o 5° domingo da quaresma, dia em que se recobriam com pano roxo as cruzes e as imagens. 13 Vem do grego, euche, euke (oração) e logia (estudo, ciência, tratado). Portanto, seria o estudo da oração, mas usa-se também para o conjunto de orações de um livro litúrgico ou de uma celebração. Assim como as leituras representam o que Deus nos quer comunicar, os textos eucológicos são as orações que nós dirigimos a Deus. A eucologia é uma das riquezas mais características de um rito ou família litúrgica. Nas liturgias orientais chama-se Eucológio ao seu livro oracional. Nas ocidentais, chama-se Sacramentário (liber sacramentorum), Livro do altar ou simplesmente Missal. Fala-se de eucologia maior e menor. A menor são as orações breves, no princípio da Missa (a oração colecta), de¬pois do ofertório (oração sobre as obla¬tas) e, no final da celebração (oração depois da

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sacramenti” (Missale Romanum, colecta do 1° domingo da quaresma); de “ipsus venerabilis sacrementi [quadragesimalis] exordia” (Ibidem, super oblata); de “solemne jejunium” (= jejum que retorna regularmente todos os anos: oração do sábado depois das cinzas no Missale anterior à recente reforma), mediante o qual “tu [ó Deus] vences as nossas paixões, elevas o espírito, infundes a força e dás o prêmio, por Cristo nosso Senhor” (atual prefácio IV da quaresma). A quaresma tem caráter essencialmente batismal, sobre o qual se baseia o caráter penitencial. Na verdade, a igreja é comunidade pascal porque é batismal. Isso deve ser afirmado não só no sentido de que nela entramos mediante o batismo, mas, sobretudo no sentido de que a igreja é chamada a exprimir com vida de contínua conversão o sacramento que a gera. Daí também o caráter eclesial da quaresma. Ela é o tempo da grande convocação de todo o povo de Deus, para que se deixe purificar e santificar pelo seu Salvador e Senhor. Da teologia da quaresma, acima exposta, surge, pois, uma típica espiritualidade pascal – batismal – penitencial - eclesial. Dentro dessa perspectiva, a prática da penitência, que não deve ser somente interior e individual, mas também externa e comunitária, caracteriza-se pelos seguintes aspectos: a. abominação do pecado como ofensa a Deus; b. conseqüências sócias do pecado; c. parte da igreja na ação penitencial; d. oração pelos pecadores. Os meios sugeridos para a prática quaresmal são: a. a escuta mais freqüente da Palavra de Deus; b. a oração mais intensa e prolongada; c. o jejum; d. as obras de caridade (cf. SC 109-110). A pastoral dever ser criativa a fim de atualizar as obras típicas da quaresma (oração – jejum – caridade), adaptando-as à sensibilidade do homem contemporâneo mediante iniciativas que, sem desviar-se da natureza e do objetivo próprios desse tempo litúrgico, ajudem os fiéis a viver o batismo em dimensão individual e comunitária e a celebrar com mais autenticidade a páscoa. De fato, a vida cristã é essencialmente guiada pela dinâmica pascal. A semana santa – A ultima semana da quaresma, chamada ‘semana santa’ ou de ‘grande semana’, desenvolveu-se, sobretudo por causa da exigência

Comunhão), assim como a fórmula conclusiva da Oração Universal na Missa e as «colectas dos Salmos», na Liturgia das Horas. A eucologia maior é, sobretudo, a Oração Eucarística, com o Prefácio como sua primeira secção, as bênçãos solenes e as orações consacratórias dos vários sacramentos: por exemplo, a oração sobre a água, no Baptismo, sobre os óleos e o Crisma, na Missa Crismal, ou sobre os ordenandos ou os noivos.

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de historicização dos acontecimentos da paixão do Senhor. Em Jerusalém, onde melhor do que outra parte se podiam reviver, nos próprios lugares em que passaram, os últimos momentos da vida de Jesus, desabrochou e formou-se rica liturgia abrangendo o período do tempo que vai do domingo de ramos à páscoa. A peregrina Etéria (fins do séc. IV) no-la descreveu no seu Itinerarium.14 Para imitar Jerusalém no ato de reviver os episódios descritos pelos evangelistas, a liturgia ocidental fez algo de análogo, organizando celebrações minuciosas que acabaram por dar origem á ‘semana santa’. A reconstituição demasiado anedótica, se de um lado permitiu a análise atenta do valor de casa episódio, do outro prejudicou a unidade do mistério pascal. De fato, na Idade Média, a semana santa era chamada de ‘semana dolorosa’, porque a paixão de Jesus era dramatizada, mais do que celebrada ‘in mysterio’, pondo em destaque os aspectos do sofrimento e da compaixão emotiva em detrimento do aspecto salvífico e da vitória sobre a morte com a ressurreição. Até hoje, se não formos atentos e esclarecidos, estaremos correndo o risco, apesar do esforço feito pela reforma do Vat. II para restabelecer a unidade perdida. As principais celebrações da semana santa, que concluem a quaresma e precedem o tríduo pascal, são as seguintes: O domingo de ramos, ‘de passione Domini” – Nesse daí, com diz o Missal Romano, a igreja comemora o Cristo Senhor, que entra em Jerusalém para cumprir plenamente o seu mistério pascal. Em todas as missas dever ser feita a memória dessa entrada do Senhor: ou com a procissão solene (1° modo); ou com entrada solene (2° modo) antes da missa principal; ou com a entrada simples (3° modo) antes das outras missas. A entrada solene, mas sem procissão, pode ser repetida antes de outras missas com grande afluência de fiéis. Do ponto de vista pastoral, deve-se saber encontrar modos mais adequados para dar relevo a fé ao reconhecimento messiânico de Cristo no hoje da vida da igreja e do mundo, por parte das nossas assembléias. A celebração da entrada de Jesus, portanto, deve valorizar não tanto os ramos de oliveira, porém sobretudo o ‘mistério’ expresso através da procissão que proclama a realeza messiânica do Cristo. A liturgia da Palavra e a liturgia eucarística são uma celebração da paixão do Senhor. Esse, com efeito, é o único domingo do ano em que se celebra o ‘mistério da morte’ do Senhor com a proclamação do relato da paixão. O aspecto não deixa de ter o seu significado teológico, já realçado pelos evangelistas: Jesus dirige-se para a cidade santa e nela entra triunfalmente, porém para aí consumar a sua páscoa de morte e ressurreição.

14 Cf. Etéria, Diario di viaggio, com notas introdutórias de A. Candelaresi, Edizioni Paoline, 1979, 118ss.

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A quinta feira santa: conclusão da quaresma – antigamente, na manhã da quinta-feira santa, celebrava-se o rito da reconciliação dos penitentes que já haviam percorrido todo o caminho penitencial segundo a rígida disciplina para os pecados graves que os tinham excluído da participação na eucaristia. Na quarta-feira de cinzas o bispo lhes havia imposto o cilício, depois permaneciam reclusos até a quinta-feira santa, dia em que eram absolvidos para poderem participar da eucaristia na noite de páscoa. Hoje não existe mais essa disciplina penitencial antiga e rígida. Todavia, a comunidade cristã é igualmente chamada, no fim da quaresma, para o celebrar o sacramento pascal do reconciliação nas formas estabelecidas pelo novo Rito da Penitência e segundo a necessidade de cada comunidade. A missa do crisma – A origem da bênção dos santos óleos e do sagrado crisma é de ambiente romano, ainda que o rito traga marca galicana. Parece que até fins do séc. VII a benção dos óleos era feita durante a quaresma e não na quinta-feira santa. A fixação dela nesse dia não se deve ao fato de ser a quinta-feira santa o dia da instituição da eucaristia, mas sim e principalmente a uma razão de ordem prática: poder dispor dos óleos santos, sobretudo do óleo dos catecúmenos e do sagrado crisma, para a celebração dos sacramentos da iniciação cristã durante a vigília pascal. Não devemos, porém, esquecer que esse motivo de utilidade em nada altera a teologia dos sacramentos, que vê todos eles ligados á eucaristia. Não é o caso de apresentarmos aqui a história do rito da benção dos óleos santos. Recordemos apenas que, “de acordo com a tradição latina, a benção do óleo dos enfermos é feita antes da conclusão da oração eucarística; a bênção do óleo dos catecúmenos e do crisma é dada depois da comunhão. É permitido contudo, por razões pastorais, fazer todo o rito de bênção depois da liturgia da Palavra, conservando, porém, a ordem indicada no próprio rito” (Benção dos Óleos nn. 11-12 no Pontifical Romano, em português). Seja qual for o modo adotado para a benção dos óleos, logo depois da homilia do bispo faz-se a renovação das promessas sacerdotais (Missal Romano, Quinta-feira da semana santa, Missa do crisma.) Esta solene liturgia transformou-se em oportunidade para reunir todo o presbitério em torno do seu bispo e para fazer da celebração uma festa do sacerdócio. Os textos bíblicos e eucológicos desta missa evidenciam e recordam essa realidade. Assim aparece, juntamente com o compromisso de fidelidade dos presbíteros á sua missão sacerdotal, a natureza profética do sacerdócio ministerial do NT chamado, com Cristo, “para evangelizar os pobres, para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da

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vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar uma ano de graça do Senhor” (Lc 4,18). Se o ministério presbiteral está essencialmente ligado a eucaristia, é igualmente verdade que esse ministério converge para a eucaristia antes de tudo com o anúncio do evangelho e nela encontra toda a amplitude e profundidade da sua dimensão profética.

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TRÍDUO PASCAL

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O Tríduo Pascal Origem da festa anual da páscoa – Segundo alguns estudiosos, o relato da paixão feito por João teria sabor semelhante ao que se observava na prática litúrgica das igrejas da Ásia Menor, que celebravam a páscoa a 14 de Nisã, no aniversário da morte de Cristo. O relato da ceia nos evangelhos sinóticos, porém, seria o testemunho da páscoa litúrgica de era apostólica nas comunidades de tradição sinótica.15 Outras indicações de uma festa da páscoa dos cristãos poderiam se encontradas em 1 Cor 5, 7-8 e na primeira epístola de Pedro, considerada uma homilia pascal ou batismal. É necessário, pois, chegar no séc. II para encontrarmos uma documentação certa sobre a celebração anual da páscoa e conhecer a sua data, o seu conteúdo e a sua moldura litúrgica. No fim do séc. II, as igrejas da Ásia Menor e as igrejas limítrofes da Síria e da Cilícia celebravam a páscoa e terminavam o jejum a 14 de nisã (daí o nome de ‘quartodecimanos’), aniversário da morte de Cristo, fosse qual fosse o dia da semana que caísse. As outras igrejas, porém, guiadas por Roma, não interrompiam o jejum a 14 de nisã, dia da morte de Cristo, mas prosseguiam-no porque celebravam a páscoa no domingo seguinte. As datas diferentes da celebração da páscoa, no tempo do Papa Vítor (189-199), deram origem a uma controvérsia, que ameaçou dividir a igreja. A questão não consistia no dilema decorrente de não se saber ao certo se a

15 Cf. R. Cantalamessa, La pasqua dela mostra salvezza, Marietti, Turim, 1971, 110-111, notas 2 e 3; todo o volume é preciosa e abalizada contribuição para o problema da celebração da páscoa.

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páscoa devia celebrar a morte ou a ressurreição do Senhor, mas no dilema proveniente da vontade de saber com segurança se a páscoa devia ser celebrada no dia da morte ou da ressurreição. Substancialmente, o problema baseava-se na ênfase diferente dada pelas igrejas ao mistério pascal e na tentativa de superar definitivamente os usos judaicos. A controvérsia terminou – e, consequentemente, também o dilema – depois do decreto do concílio de Nicéia (325) – que deliberou que “os irmãos orientais adotassem a mesma praxe dos romanos, dos alexandrinos e todos os outros” – e de algumas discussões para a sua interpretação, o que só ocorreu em 387. O acordo de celebrarem todos a páscoa no domingo durou até 1582, ano em que o patriarca da Constantinopla Jeremias II se recusou, em nome da fidelidade a Nicéia, a adotar o calendário gregoriano, porque este foi promulgado (justamente em 1582) sem obter o consenso da igreja grega. O Vat. II declarou-se disponível para a designação da data da páscoa em determinado domingo, contanto que houvesse assentimento comum, principalmente dos irmãos separados (cf. SC, apêndice). A celebração litúrgica da páscoa desenvolveu-se a partir da vigília pascal. Nessa noite – como afirma Tertuliano para a África e Hipólito para Roma – depois das leituras, celebrava-se também o batismo e a vigília terminava quase de manhã com a eucaristia. A vigília ere precedida pelo jejum, que começava na sexta-feira santa e se prolongava até a eucaristia da noite pascal. O tríduo pascal de Cristo morto, sepultado e ressuscitado – como o chama São Agostinho16 - desenvolveu-se no terreno da páscoa dominical, celebrada no domingo seguinte ao dia 14 de nisã. Esse tríduo constava de sexta-feira, do sábado e do domingo. Quando, no séc. IV se começou a historicizar os relatos do evangelho, quis-se celebrar na quinta-feira também a instituição da eucaristia; esta celebração acabou por romper o tríduo pascal, que não ficou mais constituído da sexta-sábado-domingo, mas da quinta-sexta-sábado. A sexta-feira santa depois, principalmente na Idade Média, foi aproveitada pela devoção popular (exemplo: a ‘via sacra’). A vigília pascal desapareceu totalmente e os seus ritos eram anacronicamente celebrados na manhã do sábado. Pio XII, em 1951, restabeleceu experimentalmente a vigília. Em 1955, todo o tríduo pascal recuperou a sua unidade autêntica. A reforma do Vat. II

16 Santo Agostinho, Ep. 55, 14,24, PL 33,215.

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restituiu à celebração inteira maior unidade, simplicidade e riqueza de conteúdo. Significado do tríduo pascal – A liturgia do tríduo se baseia na unidade do mistério pascal que consta inseparavelmente da morte e ressurreição de Cristo. Cada dia do tríduo requer o outro e se abre para o outro, tal como a idéia de ressurreição supõe a da morte. O centro de gravitação dos três dias é a vigília pascal com a sua celebração eucarística. Em síntese, devemos dizer que o tríduo é a ‘páscoa celebrada em três dias’. As Normas gerais para o ordenamento do ano litúrgico e do calendário explicam que, havendo Cristo cumprido “a obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus....especialmente por meio do seu mistério pascal, mediante o qual, morrendo, destruiu nossa morte e, ressurgindo restaurou nossa vida”, “o tríduo da paixão e da ressurreição do Senhor resplandece no ápice do ano litúrgico”. Por conseguinte, “da mesma preeminência de que goza o domingo na semana, também goza a páscoa no ano litúrgico”. “O tríduo pascal da paixão e da ressureição do Senhor tem início com a missa ‘in coena Domini”, tem o seu fulcro na vigília pascal, e termina com as vésperas do domingo da ressurreição”17. A inauguração do tríduo pascal com a missa vespertina “in coena domini” – Até o sec. IV na liturgia romana não se encontra vestígio de comemoração da ceia. A única liturgia eucarística dos três dias era a da vigília pascal. A partir do séc. VII, começamos a notar uma evolução nesse dia: acaba-se celebrando três missas, uma pela manhã para a reconciliação dos penitentes; uma por volta do meio dia para a consagração dos óleos; uma a noite, em geral sem a liturgia da Palavra, em comemoração da ceia. A reforma do Missal e do ano litúrgico querido pelo Vat. II estabeleceu a missa “in coena Domini” como abertura do tríduo pascal, restabeleceu desse modo a unidade dos três dias ‘sexta-sábado-domingo’. Assim, “enquanto o tríduo nos apresenta a realidade [do mistério pascal único e unitário] na sua dimensão histórica, a ‘quinta-feira santa’ no-lo transmite na sua dimensão ritual”.18 A celebração da missa “in coena Domini” é feita á noite e possui tom festivo. Os textos bíblicos e eucológicos realçam o fato d que Cristo nos deu a sua páscoa no rito da ceia que exige, por parte da igreja, o vínculo indissolúvel, no plano da via, entre o serviço e a caridade fraterna como coparticipação no mistério da paixão do Senhor. 17 O texto destas Normas (aqui: nn. 18-19) é reproduzido na edição do Missal Romano. 18 S. Marsili, Il tríduo sacro e il giovedi santo em RL 1968/1,37.

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É dentro desse contexto que deve ser visto o rito do lava-pés, praticado desde os tempos de Santo Agostinho; em seguida ficou reservado durante séculos apenas á igreja catedral, sendo depois, com a reforma de Pio XII em 1955, seu uso permitido para todas as igrejas. No fim da celebração eucarística, as sagradas espécies são solenemente levadas a um lugar devidamente preparado, para que sejam adoradas até a meia-noite e conservadas para a comunhão na ação litúrgica da sexta-feira santa. Desse modo fica plenamente expresso todo o culto que devemos prestar ao mistério eucarístico na missa e fora da missa. Não se trata, pois, de ‘sepulcro’, porém antes de solene ‘ostensão’ – exposição – do tabernáculo que contém as sagradas espécies. Sexta-feira, primeiro dia do tríduo – A igreja celebra o mistério da morte de Cristo no primeiro dia do tríduo pascal com solene liturgia da Palavra. Como dia de jejum pleno, desde a origem, a sexta-feira santa jamais incluiu em si a celebração eucarística. As leituras são seguidas – de acordo com a ordem já indicada por Justino no séc. II – pelas orações solenes ou “oração universal”. No lugar da parte eucarística, celebra-se o rito da adoração da cruz, de origem hierosolimitana; na verdade, o rito já existia em Jerusalém desde o séc. IV, como atestam São Cirilo, o bispo de cidade, e Eteria no seu Itinerarium. A celebração, segundo o antigo uso romano, mesmo variando em suas modalidades, termina com a comunhão. Desde os tempos de Inocêncio III ela ficava reservada somente ao sacerdote celebrante. Em 1955, com a reforma da semana santa feita por Pio XII não sem muita discussão, foi restabelecida a comunhão também para os fiéis. A sexta-feira santa, com a sua liturgia, exprime uma teologia da cruz inspirada em São João. Não é o dia do luto da igreja, mas o dia da amorosa contemplação do sacrifício cruento, fonte da nossa salvação. O aspecto da humilhação e da morte esta sempre inseparavelmente ligado ao mistério da ressurreição e da glorificação de Cristo. Nesse sentido, é típica a expressão litúrgica de “beata passio” – santa e feliz paixão, bem-aventurada paixão -. Essa teologia da cruz salvífica emerge não só dos textos eucológicos, mas sobretudo dos textos bíblicos que constituem a liturgia da Palavra: o quarto poema do servo de Javé (Is 52,13-15; 53,1-12); o texto sacerdotal da epístola aos Hebreus (4,14-16; 5,7-9); o relato da paixão segundo João (capítulos 18 e 19).

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Na sexta-feira da paixão e morte do Senhor deve ser religiosamente observado o jejum significativamente chamado ‘pascal’. Se possível, aconselha-se a prorrogar esse jejum até a eucaristia da noite pascal, “de modo tal que os fiéis cheguem com o coração livre e aberto ás alegrias do domingo da ressurreição” (cf. SC 110). O jejum da sexta-feira santa é sinal sacramental da participação no sacrifício de Cristo; de fato, “chegaram os dias em que o esposo foi tirado”, por isso, segundo a recomendação de Jesus, os discípulos jejuarão (cf. Lc 5, 33-35). Sábado santo, segundo dia do tríduo – O sábado santo, pelo menos desde o séc. II, época da controvérsia com os quartodecimanos, sempre foi dia de rigoroso jejum e, por isso, alitúrgico, ou seja, sem celebração eucarística. As pessoas não se reuniam nem em assembleia, para renunciarem á do convívio fraterno. Depois de longo período secular em que, perdida a unidade do tríduo pascal, se perdera igualmente o significado do sábado santo com a indevida antecipação dos ritos da vigília na manhã desse dia, em 1955, a reforma de Pio XII restituiu ao sábado o seu carácter ‘alitúrgico’. A igreja nesse dia se reúne somente para a celebração da liturgia das horas. Com a oração é celebrado o repouso de Cristo no sepulcro, depois do vitorioso e glorioso combate da cruz; deve ser meditado o mistério salvífico da descida de Cristo ao mundo da morte, onde “em espirito foi anunciar a salvação também aos espíritos que esperavam na prisão” (1 Pd 3,19); espera-se que se realize a palavra do Senhor: “O filho do homem...deve...ser levado á morte e ressurgir ao terceiro dia” (Lc 9,22). Esse dia, por isso, é caracterizado pela penitência, expressão da fé e da esperança. Domingo de ressurreição, terceiro dia do tríduo – O sábado santo, desde o começo, terminava com uma celebração da vigília, que desaguava no alvorecer do domingo com a oferta da eucaristia. Inicialmente o rito nada tinha de diferente do rito de todos os sábados; a primeira celebração litúrgica, de fato, foi a vigília dominical. Nesse sentido é que dever ser interprestada a expressão de Santo Agostinho que chamava a noite pascal de “mãe de todas vigílias”19. O rito romano, com o passar dos séculos, foi-se enriquecendo pela introdução de elementos não originários romanos, como o rito do fogo e o do círio, que constituíam o início da vigília. A partir do séc. II, a noite pascal ficou também caracterizada pela celebração do batismo como parte integrante da vigília; as próprias leituras bíblicas enunciavam, de modo figurativo, os mistérios pascais atuais por meio do batismo na água e no Espírito (criação do novo mundo e do novo homem, batismo, promessa de Deus, ressurreição, etc.) Depois tudo se completava com a

19 Santo Agostinho, Sermo 219, PL 38, 1088.

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oferta do sacrifício eucarístico do qual participavam, pela primeira vez, os neófitos. Atualmente, mesmo depois da reforma do Vat. II, a vigília pascal caracteriza-se por um sentido batismal, e, por isso se exige que essa índole – tanto quanto possível – seja respeitada não só com a renovação das promessas batismais dos adultos, mas sobretudo com uma efetiva celebração do batismo. A celebração desenrola-se inteiramente na alegria da páscoa e com ritmo progressivamente ascensional que desemboca na liturgia eucarística, a verdadeira eucaristia pascal. Depois dos ritos introdutórios da benção do fogo e do círio com o canto do pregão pascal, celebra-se a liturgia da Palavra, em que são propostas nove leituras; seguem-se a liturgia batismal e a liturgia eucarística. Os diversos momentos da celebração devem ser considerados como um ‘todo unitário’ que explicita o mistério pascal com a proclamação da Palavra e a sua realização mediante os sacramentos da iniciação cristã. O simbolismo fundamental da celebração da vigília pascal consiste em ser ela uma “noite iluminada”, e mais, uma “noite vencida pelo dia”, demostrando, mediante os sinais, que a vida da graça brotou da morte de Cristo. Por isso, a vigília, já que pascal, é noturna por sua natureza. A passagem das trevas para a luz, da noite para o dia, com o seu simbolismo vivo, melhor do que qualquer conceitualização abstrata exprime a realidade do mistério da páscoa em Cristo em nós. A santa festa de pentecostes – Com a ressurreição de Cristo, celebrada na vigília pascal, inaugura-se o dia absolutamente novo. Os Padres chamaram de “oitavo” esse dia, porque para ele confluem e nele encontram o seu cumprimento os sete dias da primeira criação deturpada pelo pecado. Para prolongar a alegria do dia ‘novo’, a celebração pascal desde o séc. II passou a se prolongar por cinquenta dias. Esse período, chamado de “santo e feliz pentecostes”, “bem-aventurado pentecostes”, era considerado festivo no seu conjunto, assim como o domingo, tanto que nele eram proibidos o rezar d joelhos e qualquer outra forma penitencial. As Normas gerais para o ordenamento do ano litúrgico e do calendário, divulgadas depois do Vat. II, esclarecem que “os cinquenta dias que sucedem desde o domingo da ressurreição até o domingo de pentecostes se celebram na exultação e na alegria, como um só dia de festa, e até como ‘o grande domingo’. São os dias em que, de modo especial, se canta o aleluia. Os domingos desse tempo são considerados como domingos de páscoa... Os oito primeiros dias do tempo pascal constituem a oitava de páscoa, e se celebram como solenidade do Senhor”.

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Durante todo o tempo pascal, leem-se os Atos dos Apóstolos, segundo o antigo uso confirmado por São João Crisóstomo e por São Agostinho. Assim, lê-se também o evangelho segundo João, cuja leitura já havia começado desde a metade da quaresma. No quadragésimo dia de pentecostes, segundo a tradição de Lucas, celebra-se a solenidade da ascensão. Esse mistério faz parte integrante da páscoa. O Jesus que nos salva plenamente, segundo o plano de Deus, não é o Jesus do natal e da cruz, mas o Jesus ressuscitado e glorificado, constituído pelo Pai Messias e Senhor no pleno exercício do seu sacerdócio, novo Adão feito Espírito vivificante (cf. 1 Cor 15,45). O mistério da ascensão constitui a inauguração da realeza universal e cósmica do Senhor e do seu poder no mundo (cf. Ef 1,22-23). O “tempo sagrado dos cinquenta dias”, em que Deus “encerrou a celebração da páscoa”20, conclui-se com a celebração da efusão do Espírito Santo (domingo de pentecostes), que leva a cumprimento pleno o mistério pascal e revela a todo os povos o mistério oculto nos séculos, reunindo “as linguagens da família humana na profissão de fé única”21. A reforma do Vat. II, desse modo, restituiu a unidade também dos mistérios dos ‘cinquenta dias’. Essa unidade fora interrompida a partir do momento em que (no séc. VIII) a solenidade de pentecostes passou a ser celebrada simplesmente como aniversario da descida do Espírito Santo. Com isso, tornou-se uma festa independente, com oitava, e, por esses motivos desligada da sua relação unitária e vital com o mistério pascal. No Missal de Paulo VI as coisas retomam o seu significado teológico mais verdadeiro o fecundo. Somente uma pastoral atenta e esclarecida é capaz de valorizar o todo na sua unidade.

20 Coleta da missa vespertina da vigília de pentecostes. 21 Prefácio do domingo de pentecostes.

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