Anna Lanna - Bexiga

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871 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol.28, n o 48, p.871-887: jul/dez 2012 Aquém e além-mar imigrantes e cidades * Within and beyond the sea immigrants and cities ** ANA LUCIA DUARTE LANNA Professora Titular do Departamento de História da Arquitetura Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo (USP) Rua do Lago 876, Cidade Universitária CEP 05508080 – São Paulo – SP [email protected] RESUMO O objetivo central deste artigo é problematizar a questão da imigra- ção para as cidades refletindo sobre a temática dos deslocamentos, que arti- cula lugar de origem e acolhimento. A pesquisa se fez a partir da migração de italianos que ocuparam e construíram o bairro do Bexiga em São Paulo. Para tanto, procuramos refletir sobre as motivações da imigração, as condições de vida na Itália e no Brasil e as construções de redes de sociabilidade e perten- cimento que viabilizaram o ato migratório. Palavras-chave imigração, cidade, deslocamentos ABSTRACT The aim of this paper is to discuss the issue of immigration to the cities reflecting on the theme of displacement, combining place of origin and host. The research was done from the migration of italians who had * Artigo recebido em: 20/06/2011. Aprovado em: 18/01/2012. ** Esta pesquisa conta com apoio da FAPESP e CNPq e está inserida em um projeto temático intitulado São Paulo: os estrangeiros e a construção da cidade que se propõe a estudar esta cidade a partir de finais do século XIX, tendo como fio condutor as presenças estrangeiras, fundamentais nos processos de transformação física, demográfica, econômica, social e cultural da cidade.

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    Aqum e alm-marimigrantes e cidades*

    Within and beyond the seaimmigrants and cities**

    ANA LUCIA DUARTE LANNAProfessora Titular do Departamento de Histria da Arquitetura

    Faculdade de Arquitetura e UrbanismoUniversidade de So Paulo (USP)

    Rua do Lago 876, Cidade Universitria CEP 05508080 So Paulo SP

    [email protected]

    RESUMO O objetivo central deste artigo problematizar a questo da imigra-o para as cidades refletindo sobre a temtica dos deslocamentos, que arti-cula lugar de origem e acolhimento. A pesquisa se fez a partir da migrao de italianos que ocuparam e construram o bairro do Bexiga em So Paulo. Para tanto, procuramos refletir sobre as motivaes da imigrao, as condies de vida na Itlia e no Brasil e as construes de redes de sociabilidade e perten-cimento que viabilizaram o ato migratrio.

    Palavras-chave imigrao, cidade, deslocamentos

    ABSTRACT The aim of this paper is to discuss the issue of immigration to the cities reflecting on the theme of displacement, combining place of origin and host. The research was done from the migration of italians who had

    * Artigo recebido em: 20/06/2011. Aprovado em: 18/01/2012.** Esta pesquisa conta com apoio da FAPESP e CNPq e est inserida em um projeto temtico intitulado So

    Paulo: os estrangeiros e a construo da cidade que se prope a estudar esta cidade a partir de finais do sculo XIX, tendo como fio condutor as presenas estrangeiras, fundamentais nos processos de transformao fsica, demogrfica, econmica, social e cultural da cidade.

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    occupied and built the neighborhood of Bexiga in Sao Paulo. To this end, we reflect on the motivations for immigration, living conditions in Italy and Brazil and the construction of sociability and belonging that made possible the immigration act.

    Keywords immigration, city, displacement

    Introduo

    O objetivo central deste artigo problematizar a questo da imigrao para as cidades refletindo sobre a temtica dos deslocamentos, que articu-la lugar de origem e acolhimento. A pesquisa se fez a partir da migrao de italianos que ocuparam e construram o bairro do Bexiga em So Paulo. Para tanto, procuramos refletir sobre as motivaes da imigrao, as condies de vida na Itlia e no Brasil e as construes de redes de sociabilidade e perten-cimento que viabilizaram o ato migratrio.

    A questo do deslocamento, para a compreenso dos processos migrat-rios ocorridos entre Itlia e Brasil entre finais do sculo XIX e incio do sculo XX, apresentou-se como tema a partir de pesquisa, em andamento, que trata da relao entre estrangeiros e a construo da cidade.1 No mbito deste pro-jeto de investigao coletiva a cidade de So Paulo foi tomada como recorte espacial privilegiado e o bairro como categoria analtica que permitiria recu-perar processos de expanso e transformao da base fsica da cidade articu-lada com as prticas sociais e a construo de um imaginrio metropolitano. Atravs do recorte do bairro foi possvel reconhecer as mltiplas inseres dos milhares de estrangeiros que afluram para So Paulo, em tempos, condies e motivaes diversas.

    O estudo sobre o Bexiga, um dos muitos bairros italianos de So Paulo, conduziu ao enfrentamento das questes relativas estruturao da imigra-o e da relao duradoura, que o ato imigratrio constitui, entre aqum e alm mar. Este bairro abrigar, a partir da dcada de 1890, milhares de imi-grantes italianos que chegaram em So Paulo. Apesar da presena majoritria de italianos e seus descendentes o bairro nunca foi exclusivamente italiano, nem gueto nem little italy.

    Analisando documentao integrante dos acervos do Arquivo Aguirra/Museu Paulista, Inventrios do Judicirio e Obras Particulares do Arquivo Mu-nicipal Washington Luis percebemos que a presena dos italianos, como pro-

    1 A pesquisa bibliogrfica sobre o tema especfico deste artigo foi realizada, principalmente, na biblioteca do Centro Studi Emigrazione-Roma (CSER). O acervo da biblioteca tem como recorte o tema da imigrao, com ttulos produzidos do sculo XIX ao presente.

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    prietrios, no bairro majoritria a partir de 1905. Os dados levantados per-mitem reconhecer a presena predominante de grupos oriundos da Calbria, entendida aqui como a regio do sul da Itlia composta pela Campnia, Basi-licata e Calbria. Os originrios destas regies se concentraro neste bairro e sero cada vez mais reconhecidos e auto-identificados por calabreses. So encontrados tambm alguns imigrantes vindos da Puglia e da Sicilia. Esta concentrao de estrangeiros de mesma origem refaz um padro bastante co-mum na emigrao de italianos.2 A presena inicial de um imigrante da aldeia estimula e viabiliza um fluxo migratrio que utiliza e constri uma rede de pertencimento espacializada em bairros. Esta concentrao de estrangeiros de mesma origem produz particulares movimentos de construo de identida-des fazendo-os italianos nos lugares de fixao e transformando as referncias de origem.3

    Centenas de italianos (Credidio, Mammana, Caruso, Albanese, Chichu-chio, Savoia, Boca, Frugolino, Marchese, Caffero, Scarlato, Briganti, Capuano) povoaram as ruas do Bexiga construindo vizinhanas onde os laos de fam-lia e, sobretudo, de pertencimento a um paesi comum estabeleciam redes de sobrevivncia e sociabilidade. Esta imigrao para ambientes tnicos de acolhimento significa que estes estrangeiros vinham conhecendo, pelo menos parcialmente, as oportunidades da nova vida, e que obtinham o primeiro tra-balho atravs de relaes pessoais primrias. Siqueira, ao estudar as diversas associaes e formas de lazer dos trabalhadores paulistanos, revela fortes permanncias e vnculos decorrentes da regio de origem. Em razo de uma briga, vrios italianos foram atuados no posto policial do sul da S, em feve-reiro de 1906. Acompanhando os testemunhos pode-se perceber que todos os envolvidos moravam no Bexiga, a maior parte deles no mesmo endereo (Rua Marechal Deodoro 40), trabalhavam como vendedores de doces e balas

    2 Ver, dentre outros, MINICUCI, Maria. Qui e altrove: famiglie di Calabria e di Argentina. Milano: Franco Angeli, 1989, que estuda, em Buenos Aires, imigrantes vindos de Zaccanopoli, provincia de Cantazaro. BUENKER, John D. Lemigrazione calabrese nel midwest americano prima del 1929: il caso del Winsconsin. S. n. t., revela aspectos da cadeia migratria e a nomeia de arco eltrico sobre o Atlntico constituindo economia singular em um mundo fechado. DE CLEMENTI, Andreina. Caratteri storico-antropologici dellemigrazione italiana. In: DE ROSA, Ornella e VERRASTRO, Donato. (orgs.). Appunti di viaggio. Lemigrazione italiana tra attualit e memoria. Bologna: Il Mulino, 2007, refora a idia do familismo como elemento comum da imigrao italiana; HARVEY, Robert. Dalla frontiera alle little italies, gli italiani in Canada 1800-1945. Roma: Bonaccu, 1984, analisa a populao italiana vinda de Florena que se instala em Toronto. ROSSI, Kethy. Immigracion italiana en el Uruguay 1860-1920. Montevideo: Proyecion, 1989, analisa grupos oriundos da Basilicata mostrando como continuam italianos a partir de identidades culturais que distanciam-se da cultura original inclusive da lngua.

    3 BEVILACQUA, Piero. Emigrazione transocenica e mutamenti dellalimentazione contadina calabrese fra otto e novecento. Quaderni Storici, Roma, n.47, p.543, 1981 estuda o regime alimentar dos calabreses e mostra a existncia do que ele nomeia revoluo alimentar na Itlia com a introduo da carne e tambm do caf, ch e cerveja decorrente dos novos hbitos na Amrica.

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    e eram todos naturais de Salerno.4 Ou ainda quando no inventrio de Jos Caruso revelam-se a existncia de vnculos pessoais com conhecidos da cidade de origem.5

    A presena destes italianos, como moradores, proprietrios de imveis e donos de pequenos negcios, contribui para problematizar a relao entre mi-sria e imigrao reforando os argumentos deste texto. Por outro lado as for-mas coletivas do morar e a ausncia de uma homogeneidade scio-econmica indicam a centralidade das organizaes familiares e dos vnculos de origem como elementos organizadores das formas de vida e do cotidiano pelo menos para a primeira gerao de imigrantes. A famlia , seja a que fica no paesi de origem, seja a que aqui se constitui, aparece em toda a documentao como referncia central, repetindo padro similar de outros pases da Amrica.

    Os italianos moradores do Bexiga, oriundos em sua maioria do sul da It-lia, pem em destaque a relevncia de uma imigrao no associada nem ao caf nem a indstria. Apesar das mltiplas fabriquetas e oficinas o bairro nun-ca se configurou como um bairro industrial. Nem subvencionados nem colo-nos, so imigrantes que vem de cidades para cidade e aqui exercem atividades relacionadas a servios. Procuramos ento compreender o ato migratrio des-tes grupos e aprofundar a leitura do bairro, considerando as redes de relaes estabelecidas que tm, na origem comum, um dado significativo. Os processos ocorridos no Bexiga so diversos em relao a outros bairros italianos em So Paulo, mas similares aos dos mesmos grupos de origem ocorridos em outras regies do Brasil e das Amricas.6

    Colocar em dilogo a vida na Amrica com a dos lugares de origem, in-cluindo a as expectativas e sonhos relacionados imigrao, fundamental para desvelar, pelo menos neste caso, um pouco dos sentidos e prticas que construram a cidade compreensvel pela articulao de sua materialidade,

    4 SIQUEIRA, Uassyr de. Entre sindicatos, clubes e botequins: identidades, associaes e lazer dos trabalhadores paulistanos (1890/1920). Campinas, UNICAMP, 2008. (Histria, Tese de doutorado).

    5 Em 1929 morreu, sem deixar testamento, o italiano Jos Caruso, industrial e proprietrio de muitos imveis Em funo da disputa pelos bens instaurou-se um processo para definir se os filhos menores da segunda unio seriam adulterinos ou naturais, o que definiria se tinham ou no direito a herana. Foram convocadas 5 testemunhas. Todas afirmam ser amigas do falecido e uma delas, Rafael de Sanctis, negociante, revela que era amigo de Jose Caruso desde a Itlia j que moravam, no s na mesma cidade, Cosenza, mas na mesma rua e desde ento eram amigos tendo migrado para So Paulo entre 1885 e 1886. Ao longo dos depoimentos fica evidenciado que Caruso foi e voltou da Itlia vrias vezes entre 1886 e 1929, quando vem a falecer. So Paulo. Arquivo do Judicirio. (AJSP). Inventrio entre partes Jos Caruso (falecido) e Inocencia Senatore (inventariante). Estado de So Paulo, Comarca da Capital, 2a Vara de rfos, 2o Cartrio de rfos e 7o da Provedoria.

    6 Ver dentre outros BLANC-CHALEARD et alli. (org.). Les petites italies dans le monde. Rennes: Presses Universitaires, 2007. CAPPELLI, Vitorio. A propsito de imigrao e urbanizao: correntes imigratrias da Itlia meridional s outras Amricas. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v.XXXIII, n.1, p.8-38, 2007. DERENJI, Jussara Silveira. A arquitetura nortista:a presena italiana no incio do sculo XX. Manaus: Secretaria de Cultura/Governo do Estado do Amazonas, 1998.

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    de suas redes de sociabilidade e dos processos de construo de identidades e alteridades. Ao introduzir a temtica do deslocamento prope-se uma outra escala para compreender a relao entre imigrao e construo do territrio e do lugar.

    Imigrao: deslocamento para o trabalho

    A chegada e fixao de milhares de imigrantes europeus foi um dos ele-mentos e uma das caractersticas mais espetaculares das profundas transfor-maes, quantitativas e qualitativas, pelas quais passou a cidade de So Paulo a partir de finais do sculo XIX. Com aproximadamente 32.000 habitantes em 1872, a capital do estado chega a 600.000 habitantes em 1920. As duas ltimas dcadas do sculo XIX e os primeiros anos do sculo XX foram marcados pela imensa presena italiana. A cidade, em expanso vertiginosa, cresce como estrangeira, entrelaando tempos sociais diversificados e descontnuos mos-trando que So Paulo j convivia (...) com aquela impressionante indefinio entre o nervosismo da metrpole burguesa e a persistncia de traos coloniais e tradicionais da cidade.7

    Os italianos foram o grupo migratrio majoritrio para o Brasil em finais do sculo XIX e incio do sculo XX. A emigrao em massa foi uma questo central para a Itlia no seu processo de unificao. O deslocamento deste enorme contingente populacional permanece uma questo importante, seja para os pases de acolhimento seja para a Itlia. Mas essencial qualificar este italiano (e)imigrante e neste sentido problematizar a questo do deslo-camento. Em sua tese Brava Gente, Alvim indica diferenas e similaridades entre imigrantes oriundos do norte e do sul da Itlia e coloca a questo, central para ns, da inexistncia de um italiano imigrante.8 Desta forma, essencial reconhecer os lugares de origem, as intenes e expectativas que originaram o ato imigratrio como um dos elementos a revelar as relaes e inseres estabelecidas no Brasil. Reconhecer que os imigrantes tentavam aglutinar-se segundo regies de origem significa buscar compreender as redes de origem e as aqui construdas e/ou reproduzidas.9

    Favero e Tassello mostram que entre os anos de 1876/1976 saram da It-lia 25.800.000 de pessoas sendo que 54% delas at 1915. Deste total 44% foram para a Amrica sendo os EUA o primeiro destino com 6.000.000. Para Brasil vieram cerca de 1.500.000. At 1900, Brasil e Argentina eram os destinos pre-ferenciais. O Vneto foi a regio com maior nmero de emigrados. No Brasil,

    7 SALIBA, Elias Thom. As razes do riso. So Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.154.8 ALVIM, Zuleika. Brava Gente: os italianos em So Paulo 1870-1920. So Paulo: Brasiliense, 1986, p.65.9 TRUZZI, Oswaldo. Redes em processos migratrios. Tempo Social, So Paulo, v.20, n.1, p.199-218, 2008.

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    imigrantes originrios desta regio compem a maior parte do contingente de trabalhadores com destino para as regies cafeicultoras paulistas. Mas cerca de 2/5 dos italianos partiram do sul do pas, sendo cerca de 2.000.000 da Cal-bria e 2.700.000 da Campnia. Os autores informam que, ao longo do perodo, cerca de 8.500.000 (33%) dos imigrantes retornaram ao local de origem.10 Es-tes dados indicam uma importante caracterstica da imigrao transocenica, o permanente movimento de ir e vir, revelando a permanncia de laos e vnculos com as regies de origem. Os grupos imigrantes nomeados calabre-ses que vieram para So Paulo e tm forte presena na regio do Bexiga so, majoritariamente, oriundos de trs regies do sul da Itlia Campnia, Basi-licata e Calbria e via de regra no se incluem naqueles contingentes aqui chegados atravs da imigrao subvencionada. Suas regies de origem tem forte e antiga tradio de deslocamentos sazonais para o trabalho.11

    Eventos naturais, como o terremoto ocorrido na regio da Calbria em 1905, so poderosos estmulos ao incremento do movimento migratrio. En-tretanto, mltiplas so as causas desta emigrao indo desde a estrutura da propriedade da terra e condies de pobreza at os movimentos de cunho mais poltico que envolvem a unificao italiana. Todos estes fatores atuam sobre uma cultura que tinha a viagem e a peregrinao como dados presentes e ativos.12 O deslocamento no , portanto, novidade para estas regies, mas as dimenses em que ele ocorre a partir de finais do sculo XIX e o sentido de longa durao a ele associado marcam novas escalas e questes. As regies da Calbria, Basilicata e a parte mais pauperizada da Campnia tm forte imigra-o transocenica j a partir de 1870, mas acentuada no incio do sculo XX. Os anos de 1905 a 1907 so os de maiores ndices de emigrao.

    Se mltiplas so as causas desta emigrao tambm so diversas as ca-ractersticas dos grupos emigrantes. Alvim mostra que at 1885 a maioria dos imigrantes italianos com destino para a Amrica integrava universos de me-eiros, pequenos proprietrios e arrendatrios independente de serem do nor-te ou do sul da Itlia.13 Franzina explica a disponibilidade para a realizao do ato imigratrio como decorrente do processo de transformao fundiria, pauperizao e industrializao em curso na Itlia em finais do sculo XIX.14 Dentre as causas mais mencionadas pela bibliografia esto a pobreza endmi-

    10 FAVERO, Luigi e TASSELLO, Graziano. Centanni di emigrazione italiana (1876-1976). Roma: CSER, 1978.11 Parte da discusso realizada pela bibliografia italiana, desde o sculo XIX, refere-se s caractersticas destes

    deslocamentos, se temporrios ou permanentes. Trata-se de avaliar, neste debate, se a emigrao em massa para a Amrica enquadra-se nesta tradio de sazonalidade. Ainda que parte das estatsticas procure fazer esta distino, os autores assumem a dificuldade e inoperncia de trabalhar com este recorte quando o foco a Amrica.

    12 BEVILACQUA, Piero. Storia dellemigrazione italiana. Roma: Donzelli, 2001-2002, p.98.13 ALVIM, Zuleika. Brava Gente, p.22.14 FRANZINA, Emlio. A grande emigrao: o xodo dos italianos do Vneto para o Brasil. Campinas: Editora da

    UNICAMP, 2006.

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    ca da regio, a estrutura da propriedade da terra que tem por um lado gran-des latifndios (200hectares ou mais) e por outro pequenssimas propriedades rurais, cujo permanente parcelamento significa aprofundar as condies de pobreza. As condies de sade, com permanentes epidemias de malria, e as precariedades estruturais so outros motivos elencados pela bibliografia. A tradio de mobilidade desta populao (transumncia), assim como as condi-es polticas decorrentes da unificao so tambm elementos importantes na explicao da fora do movimento emigratrio. Masi reitera a importncia que os deslocamentos para o trabalho tinham para a regio integrando tra-dies seculares. Mas destaca que a partir do sculo XIX a associao entre melhora das condies de vida nos lugares de origem e emigrao incorpora a dimenso ocenica: che passa il mare compra la casa.15

    A grande emigrao iniciada no sculo XIX afeta profundamente a or-ganizao destas regies, seja pela dimenso populacional envolvida com alteraes significativas nos arranjos familiares e de sobrevivncia; pela durao no tempo do ato migratrio; ou ainda pela quantidade de recursos financeiros mobilizados neste deslocamento Atlntico. A Calbria perde entre 1900 e 1914 um tero da sua populao masculina entre 15 e 40 anos. Cerca de 8% do total da populao desta regio foi para a Amrica. A Basilicata, regio italiana com maior emigrao, v sua populao dimi-nuda em 5%. Migram tanto os trabalhadores agrcolas quanto os pequenos proprietrios. Nestes casos, a emigrao configura-se como estratgia de manuteno da propriedade da terra impedindo seu parcelamento. Gua-rino mostra como a imigrao, em geral, exclua o primognito.16 O anal-fabetismo nessas regies era de cerca de 87% da populao, sendo que a mdia italiana era de 37%. Este ndice apontado pela bibliografia como indicador seja de pobreza seja de precariedade e ausncia de perspectivas de permanncia nas regies de origem. As primeiras levas de emigrantes vieram para Argentina e Brasil e, de forma crescente ao longo do sculo XX, para os EUA. As recorrentes denncias sobre as pssimas condies de trabalho na cafeicultura dificultaram a vinda de italianos para o Brasil. Em 1902, com o decreto Prinetti, foi proibida pelo Comissariado Geral da Emi-grao na Itlia a emigrao subvencionada para o Brasil. A ida para a Am-rica, cada vez mais associada aos EUA, tambm ser dificultada j no incio do sculo XX. A legislao americana probe, a partir de 1917, a entrada de

    15 MASI, Giuseppe. Tra spirito davventure e ricerca del agognato peclio: linee di tendenza dellemigrazione calabrese tra ottocento e novecento. In: SANFILIPPO, Matteo. (org.) Emigrazione e storia dItalia. Pellegrini: Cosenza, 2003, p.122.

    16 GUARINO, Nicola. Ritornare Percorsi migratori di uomini e donne (Avellino 1875-1914). In: ARRU, Angelina et ali. (orgs.). Donne e uomini migranti: storie e geografie tra breve e lunga distanza. Roma: Donzelli, 2008.

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    imigrantes analfabetos. A vigncia desta restrio acabar por diferenciar o padro de entrada dos emigrantes nos diversos pases da Amrica. Os de melhor condio social e qualificao acabaro por se concentrar nos EUA. Di Noia mostra que, considerando as regies do sul da Itlia, haver uma concentrao nos EUA dos artesos com melhores condies sociais e para America do Sul iro os camponeses e alguns poucos artesos.17

    A populao emigrante tem origem nos pequenos ncleos urbanos des-tas regies. importante destacar que os trabalhadores rurais e jornaleiros (65% em mdia dos empregados nas atividades agrrias) moram nestas al-deias e deslocam-se para o trabalho, seja agrcola, seja de pastoreio todos os dias. Muitos dos pequenos proprietrios rurais tambm moram nestas pequenas cidades. A regio marcada por uma rede de aldeias (paesi) que constituem uma sociedade agrria. Estes trabalhadores, proprietrios ou no, desenvolvem um conjunto de prticas artesanais fundamentais para a sobrevivncia e que sero largamente mobilizadas como saberes que via-bilizaro sua sobrevivncia na cidade de So Paulo, transformando-os em sapateiros, marceneiros, alfaiates e costureiras, padeiros etc.

    Compreender as diversas motivaes de emigrao e distinguir as carac-tersticas e especificidades dos muitos grupos de italianos essencial para entender suas inseres em So Paulo e em particular no bairro do Bexiga. Cabe ainda destacar um aspecto fundamental desta imigrao, articulador da argumentao aqui apresentada, que seu destino urbano e sua dissociao da atividade cafeeira. Nesta perspectiva destacamos trs aspectos que procu-ram qualificar este deslocamento: um primeiro que se refere distino entre imigrantes subvencionados e espontneos; um segundo que procura analisar os vnculos atlnticos; e por fim, um terceiro que procura compreender as diferenas socioeconmicas dos imigrantes. Procuramos, a partir destes re-cortes, revelar aspectos da organizao da vida no bairro de acolhimento, mostrando como eles so compreensveis a partir da anlise das condies de origem e deslocamento. Ou seja compreender este imigrante italiano em So Paulo implica em articular as fronteiras deste deslocamento articulando as tenses e desafios existentes nos dois lados do Atlntico.18 Por fim, procu-ramos, ao longo do texto, problematizar a noo de imigrante italiano assu-mindo que esta identidade nacional construda na Amrica sendo ela mesma decorrente do ato emigratrio e no sua condio.

    17 DI NOIA, Carlo. Il fenomeno dellemigrazione dalle Calabria nelle Americhe tra ottocento e novecento: il caso di Corigliano Calabro. Corigliano Calabro: Aurora, 1995.

    18 BARTH, Fredrik. Grupos tnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. So Paulo: Editora da UNESP, 1998.

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    I. Imigrantes para a cidade: a ausncia da subveno estatal

    Os imigrantes originrios da Itlia e que se dirigiram para a cidade de So Paulo, constituindo o bairro do Bexiga, no integraram, em sua maioria expressiva, o contingente de imigrantes subvencionados que aportaram no Brasil em finais do sculo XIX. A atrao de estrangeiros foi tema central nas polticas do Imprio brasileiro ao estabelecer estratgias para a substituio do trabalho escravo pelo livre. A discusso sobre a introduo de imigrantes no Brasil ao longo do sculo XIX e incio do sculo XX caracterizava-se por uma dualidade entre colonizao e imigrao. Esta diferena constava dos docu-mentos oficiais do Imprio como os Relatrios do Ministrio da Agricultura e dos Presidentes de Provncia. As atas dos Congressos Agrcolas, principalmente o de 1878, tambm expressavam claramente estas diferenas e as tenses polticas delas oriundas. O debate entre imigrao e colonizao marcou o pe-rodo. Apresentavam-se como alternativas diversas para a questo do trabalho e da construo da nao. Ncleos coloniais foram estabelecidos em vrias regies do pas, a maior parte deles no tendo sobrevivido a uma dezena de anos. Em contrapartida, a dinmica da economia cafeeira em So Paulo via-bilizou a atrao de milhares de estrangeiros como trabalhadores. O sucesso das polticas imigratrias para So Paulo e o fato delas serem subsidiadas por impostos federais transformaram a atrao de imigrantes, trabalhadores expropriados, na mais visvel das diversas solues ocorridas para a substitui-o do trabalho escravo. Esta imigrao em massa enquadra-se em polticas pblicas de atrao de mo de obra, sobretudo para as grandes culturas de exportao, notadamente o caf, e revela a importncia poltica e econmica dos cafeicultores do Oeste Paulista. A subveno governamental foi a frmula encontrada, a partir de meados dos anos 1880, que garantiu a entrada de milhares de trabalhadores europeus, sobretudo italianos, e que tinham como destino preferencial o trabalho nas lavouras de caf paulistas. A atuao da Sociedade Promotora da Imigrao, entre 1886 e 1895 foi fundamental na atrao de mais de 200.000 imigrantes, em sua maioria, oriundos do norte da Itlia. Graham aponta que at 1893 94,1% dos imigrantes que entraram no es-tado de So Paulo eram subvencionados. Este percentual declinante e para o perodo 1904/1918 oscila entre 36 a 39% do total.19 Neste sentido, seja pelo resultado dos enfrentamentos polticos no sculo XIX, seja pela permanncia e resultados das polticas de atrao de estrangeiros, encontram-se intimamen-te associados os temas da agricultura para exportao e da transformao do regime de trabalho escravo. Ou seja, o imigrante, notadamente o de origem

    19 GRAHAM, Douglas. Migrao estrangeira e a questo da oferta de mo de obra no crescimento econmico brasileiro. Estudos Econmicos, So Paulo, v.3, n.1, 1973, p.49.

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    italiana, visto como soluo que viabilizou a expanso da economia cafeei-ra. E a associao entre imigrao, atividade exportadora e industrializao transformou-se em parmetro de desenvolvimento econmico. A chegada de estrangeiros nas cidades vista, neste quadro analtico, como desvio de sua funo originria fora de trabalho agrcola. Esta anlise, nos seus mais di-versos matizes, fundamenta muito do que se estudou sobre o tema da imigra-o - sobretudo italiana - e urbanizao. Os grupos de italianos que estamos estudando no se enquadram neste modelo.

    Os imigrantes oriundos da Itlia predominaram na corrente imigratria para o estado de So Paulo no perodo entre 1886 e 1902 (Tabela 1). Desta data at 1920, as condies de atrao exercidas pelos EUA diminuem consi-deravelmente o fluxo migratrio para o Brasil. A partir de 1905, j so majori-trios imigrantes oriundos de Portugal e Espanha. Entre 1870 e 1902, a mdia anual de entrada era de 43.116 italianos; entre 1902 e 1920, este nmero cai para 14.328. Outro dado importante refere-se origem destes italianos. De 1886 at 1902 predominavam vnetos e lombardos (30,9%). Aps esta data aqueles originrios das provncias do sul eram a maioria. Alvim demonstra que o perodo que abarca os anos 1895/1896 a 1902 caracteriza-se por expressivo aumento da chegada das populaes meridionais.20 E so estes os imigran-tes que iro contribuir de forma decisiva para a ocupao do Bexiga e sua transformao em bairro. Nem colonos nem imigrantes subvencionados, estes estrangeiros procuravam a Amrica atrados por expectativas de melhoria das condies de vida, amparados por redes familiares e/ou de lugares de origem comum.

    Tabela 1Imigrantes italianos chegados em So Paulo por regio de origem

    Veneto Lombardia Campnia Calbria

    Ate 1901 326.793 86.585 108.301 67.944

    Aps 1902 38.917 19.388 57.779 63.211

    Fonte: Annuario Statistico dellemigrazione italiana dal 1876 al 1925, apud ALVIM, Brava Gente, os italianos em So Paulo 1870-1920, p.63.

    O perfil dos imigrantes altera-se consideravelmente ao levarmos em con-ta a questo da imigrao subsidiada ou espontnea, os padres de pobreza e as regies de origem. Em linhas gerais, o movimento imigratrio ocorrido at o final do sculo XIX caracterizava-se pela predominncia quase absoluta do imigrante subsidiado, originrio preferencialmente do norte da Itlia, so-bretudo do Vneto, de tradio agrcola e totalmente pauperizado, prolet-

    20 ALVIM, Zuleika. Brava Gente, p.62.

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    rio sem adjetivos,21 submetido aos desmandos das companhias de navegao, verdadeiras aliciadoras de uma nova forma de trfico humano.22 A partir do incio do sculo XX ocorre um reduo significativa e constante no nmero de imigrantes subsidiados, ampliando-se a entrada de imigrantes com algum peclio e/ou qualificao. tambm a partir deste momento que cresce a entrada de imigrantes oriundos das provncias do sul da Itlia.

    A presena dos imigrantes italianos nas cidades brasileiras, sobretudo na cidade de So Paulo, que cresceu de forma vertiginosa naqueles anos finais do sculo XIX e incio do XX, em geral, compreendida como desvio da des-tinao original: as fazendas de caf. H vasta bibliografia sobre o tema que analisa as condies de trabalho nas fazendas, a especificidade das relaes de trabalho o colonato, as possibilidades de mobilidade e ascenso social, a importncia do acesso propriedade da terra etc revelando as condies e caractersticas da constituio deste universo do trabalho livre. Os estudos sobre este imenso movimento populacional indicam um alto ndice de retor-no para a Itlia e/ou abandono das fazendas. Este abandono da condio de trabalhador agrcola e a ida/fuga para as cidades apontado como uma das causas centrais da vertiginosa expanso urbana da capital paulista.

    A associao imigrao/cafeicultura fez com que pouco se perguntas-se sobre os milhares de imigrantes que afluram para a cidade de So Paulo naqueles finais do sculo XIX e incio do XX tendo como origem as cidades italianas e destino as cidades brasileiras.23 Este contingente imigrante estava excludo da imigrao subsidiada e teve papel significativo na expanso e transformao da cidade de So Paulo. Muitos dos que foram morar no Bexiga faziam parte deste grupo. E parece-nos que estes so os imigrantes que con-triburam, de forma decisiva, para a construo da associao entre imigrante e trabalho qualificado relacionado a saberes artesanais.

    II. A imigrao e os vnculos atlnticos

    A maioria daqueles emigrantes originrios do sul da Itlia era constituda por homens jovens e que viajavam sozinhos, fossem ou no casados. Taruffi e Nobili apresentam dados mostrando que, para o perodo de 1876 a 1905, de 70 a 85% dos emigrantes calabreses eram homens, jovens, com mais de 14 anos. Para as regies de emigrao mais antiga e intensa cresce o percentual

    21 SALLUM Jr., Braslio. Capitalismo e cafeicultura. So Paulo: Duas Cidades, 1982.22 CENNI, Franco. Italianos no Brasil: andiamo in Merica. So Paulo: Edusp, 2003, p.238.23 Em perspectiva diversa da bibliografia e aproximando-se de questes levantadas neste artigo podemos destacar

    o trabalho de OLIVEIRA, Flavia Arlanch Martins de. Imigrantes italianos na conquista de um espao social na cidade de Ja (1870-1914). So Paulo: Editora da UNESP, 2008.

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    feminino que nunca ultrapassa 23%.24 Scalise afirma que apesar de intensa e permanente, envolvendo sucessivas geraes, a emigrao da Calbria no significava o abandono da regio de origem.25 O intenso movimento de ir e vir e os vnculos construdos com os que permanecem fundamentam esta ca-racterstica migratria.26 De Clementi afirma que nenhuma viagem sozinha porque h sempre uma deciso familiar que ampara e justifica o desloca-mento e que refora neste imigrante o familismo. Este dado tem importantes impactos seja na Itlia seja nos destinos na Amrica.27 Minicuci, estudando a emigrao de calabreses originrios de Zaccanopoli, Cantazaro, para Buenos Aires, destaca a funo central da parentela na organizao e recepo dos imigrantes, seja para obteno de trabalho e moradia, seja para aquisio de propriedades. Revela ainda como estes imigrantes recusavam-se a realizar trabalhos agrcolas e eram seduzidos pela cidade.28 Na Itlia, a bibliografia do XIX, alerta para a crescente onda de delitos e delinquncia, resultante de uma pretensa desestruturao das famlias assim como a crescente presena das mulheres no mercado de trabalho como problemas decorrentes da emigrao de homens jovens. No Brasil, este dado ajuda a compreender os mltiplos arranjos de moradia e organizao dos espaos urbanos. Esta migrao mas-culina e solitria foi elemento fundamental para a manuteno dos vnculos atlnticos. A permanncia destes vnculos atlnticos traduz-se, por exemplo, na importncia das significativas remessas de dinheiro para a famlia que per-manece na Itlia. A bibliografia destaca a importncia dessas remessas para a estruturao da vida econmica e social italiana. Em 1905, Scalise j indicava a dificuldade em calcular adequadamente os valores remetidos para a Itlia pelos imigrantes para a regio da Calbria. Mas o autor fornece dados interes-santes revelando que o dinheiro depositado em diversos bancos de poupana cresce mais de cinco vezes no perodo de 1887 a 1903, passando de 5.308.513 liras para 30.200.901. Para o mesmo perodo a renda pblica, recursos au-feridos sem relao com a emigrao, cresce menos de 50%, passando de 2.091.960 liras para 3.093.626.29 Bancos foram criados, como o Banco Frances e Italiano para a Amrica com principal objetivo de organizar esta poupana e seus fluxos atlnticos. A viva de Jose Credidio, moradora do Bexiga em So

    24 TARUFFI, Dino; De Nobili, Leonello e Lori, Cesare. La questione agraria e lemigrazione in Calabria. Firenze: Presso G Barbera, 1908.

    25 SCALISE, Giuseppe. Lemigrazione dalla Calabria. Napoli: L. Pierro, 1905, p.16.26 GUALTIERO, Harrison. Via Vai Calabrese: lemigrazione di ritorno rivisitada in chiave antropolgica. Quaderni

    del Dipartimento di Sciense delleducazione, Cosenza, n.35, 1979.27 DE CLEMENTI, Andreina. Caratteri storico-antropologici dellemigrazione italiana. In: DE ROSA, Ornella e

    VERRASTRO, Donato. (orgs.). Appunti di viaggio. Lemigrazione italiana tra attualit e memoria. Bologna: Il Mulino, 2007, p.27-35.

    28 MINICUCI, Maria. Qui e altrove.29 SCALISE, Giuseppe. Lemigrazione dalla Calabria.

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    Paulo, tinha dinheiro depositado neste banco. No inventrio de seu marido consta uma solicitao para a liberao de recursos que devem ser destinados para a execuo de tmulo no cemitrio do Ara.30

    Esta imigrao marcada pela presena de homens jovens e sozinhos tam-bm reitera, do ponto de vista das sociabilidades e das estruturas familiares, os vnculos atlnticos, pelo menos para a primeira gerao de imigrantes. Mui-tos deles se casavam, num dos vrios movimentos de ida e vinda, com alguma conterrnea. Em 1890, chegaram em So Paulo dois jovens irmos, Domeni-cantonio e Giovanni, que apesar de oriundos da regio de Salerno (Campnia), se auto-identificavam como calabreses.

    Aps alguns anos abriram na esquina da Av. Brigadeiro Luis Antonio com a Rua Major Diogo, no Bexiga, uma padaria onde passaram a produzir o po caseiro que aqui passou a ser conhecido como po italiano. Em 1905, Dome-nico voltou para a Itlia onde se casou com Caterina Grecco e com quem teve 11 filhos. O irmo Giovanni permaneceu em So Paulo e manteve suas ativi-dades no ramo da panificao, s que agora proprietrio de estabelecimento comercial no Bom Retiro. A partir de 1924, os filhos de Domenico comearam a emigrar para o Brasil. O primeiro deles, Paulo Franciulli, tambm abriu uma padaria aps 10 anos de trabalho com o tio e casou-se com a tambm italiana Ida Fiasco, moradores ambos no Bexiga, tendo ela importante atuao bene-merente junto a igreja local.

    Outros, que no retornavam, casavam-se com moas originrias do local de origem que para c deslocavam-se com outros parentes ou conhecidos. Mas havia aqueles que constituam uma segunda famlia no Brasil apesar de j serem casados no lugar de origem. A frequncia destes casamentos leva que as autoridades civis no Brasil solicitem, no incio do sculo XX, a apresenta-o de documentos comprovando a inexistncia de matrimnio na Itlia. A manuteno destes vnculos articulados pela origem comum so explicitados no j mencionado trabalho de Di Noia que estuda a comunidade de Coriglia-no Calabro e revela a existncia de um jornal, Il Popolano, que circulou por aproximadamente 30 anos, entre Nova York, So Paulo e Buenos Aires articu-lando a comunidade desta pequena cidade calabresa. A partir das solicitaes encaminhadas aos prefeitos pelos assinantes do peridico, podemos ver que o estabelecimento no Brasil e a constituio de famlia no impedem o trnsito ocenico.

    Assim sabemos que Vicenzo Amerise, morador do Bexiga na Rua Santo Antnio, solicita, em 1911, ao prefeito notcias sobre seu herdeiro Domenico Amerise. Ou ainda a senhora Francesca Montaldi, residente na Rua Manuel Du-

    30 AJSP. Inventrio de Jos Credidio (falecido), Maria Velardi Credidio (inventariante). Juiz de Direito da 1a Vara da Famlia, Cartrio do Primeiro Ofcio da Famlia e das Sucesses, 1920.

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    tra, tambm no Bexiga, que pede notcias de seu marido Guiseppe que partiu h dois anos, em 1918.31

    III. O imigrante no singular: a diversidade scio-econmica

    fundamental destacar que estes milhares de imigrantes que se deslo-caram para a Amrica e se dirigiram para o Bexiga, na cidade de So Paulo constituram um grupo social bastante heterogneo. Integravam este contin-gente desde trabalhadores agrcolas expropriados (os bracianti) at grupos de pequenos proprietrios. Diversos autores enfatizam que esta emigrao supunha a existncia de um capital, por mnimo que fosse, o que significa que, ainda que pobres, a maioria daqueles emigrantes originrios das regies da Calbria no eram miserveis. Guarino reitera que muitas vezes a emigrao era uma forma de manuteno da tradio de primogenitura e de restrio ao fracionamento da propriedade familiar.32 Piselli, ao estudar os emigrantes de Altopiano, regio de longa tradio de migraes temporrias, relativiza a relao entre imigrao e proletarizao. Compreende a emigrao como me-canismo de reequilbrio interno e qualificao das tradies, onde o retorno tinha papel essencial. A migrao transocenica traz, at o advento do fas-cismo, como elemento novo a longa durao e a predominncia masculina.33

    Esta diversidade de origens e condies sociais marcar os arranjos, orga-nizaes e possibilidades de insero destes grupos na Amrica. Mas impor-tante enfatizar que apesar destas diferenas eles tendem a migrar para cida-des e regies onde encontraro membros das comunidades de origem. Cons-tantino estuda, para Porto Alegre, um grupo de imigrantes oriundos de Morano Calabro, regio de Cosenza na Calbria e revela que a maioria deles era, na Itlia, pequenos proprietrios, meeiros ou artesos. Independentemente de trabalharem em atividades agrcolas, moravam em cidades. Possuam algum bem ou peclio que lhes permitiu financiar a viagem e a busca de outra sorte no alm-mar. A famlia permanecia nos locais de origem. Se, na dcada de 1880, a emigrao era um dado para esta regio, entre 1901 e 1910 que atinge cifras espetaculares (32 para cada mil habitantes). Em Porto Alegre, estabelecem-se em pequenas empresas de carter familiar. Vm sozinhos e, medida que se estabelecem, vo chamando outros membros da famlia, pro-cesso este muito similar ao de outros grupos imigrantes urbanos vindos para

    31 DI NOIA, Carlo. Il fenomeno dellemigrazione dalle Calabria nelle Americhe tra ottocento e novecento.32 GUARINO, Nicola. Ritornare Percorsi migratori di uomini e donne (Avellino 1875-1914).33 PISELLI, Fortunata. Parentela ed emigrazione: mutamenti e continuit in una comunit calabrese. Roma:

    Einaudi, 1981, p.66.

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    o Brasil.34 A presena de calabreses no estado do Par foi tambm estudada por Derenji em trabalho j mencionado. No Bexiga ,encontramos uma expres-siva concentrao de moradores oriundos da cidade de Rossano, na Calbria. Este grupo adquiriu proeminncia sobre outros italianos moradores no mesmo bairro. Construram a igreja com a santa de sua devoo, Nossa Senhora da Achiropita. Em torno da sua devoo organizaram muitas das sociabilidades e redes de pertencimento no bairro fazendo com que suas tradies fossem associadas a uma identidade italiana. Vale lembrar que vrios grupos de italia-nos de origens regionais diversas mobilizaram-se para a construo desta igre-ja na dcada de 1920. A diocese de So Paulo, procurando acalmar as disputas internas, nomeia a igreja de So Jos. Entretanto, o grupo oriundo de Rossano mobilizou-se para alterar o nome da igreja fazendo com que prevalecesse o de sua santa de devoo. Os santos das outras comunidades foram integrados nos altares laterais da igreja e dominados pela figura da santa rossanense. A pre-sena destas devoes, originrias dos diversos paesi, congelam no passado a origem comum, viabilizando a manuteno e transformao das tradies. Belognari mostra como santos, milagres e festas saltam continuamente o oceano refazendo na America um paesi fixado no passado. Estas histrias so reencontradas em muitos dos locais de imigrao italiana na Amrica.35 Estes deslocamentos mobilizam redes pr-existentes e funcionam por chamada e acolhimento. Para alm das diferenas scio-econmicas, h as diferenas re-lacionadas aos lugares de origem, aos pertencimentos e identidades tnicas.

    As estruturas de acolhimento tendem a privilegiar as relaes familiares em sentido amplo (laos de parentesco, compadrio e origem comum compar-tilhada). Guarino estuda as trajetrias dos emigrantes de Avellino, regio da Campnia, entre 1875 e 1914 mostrando a construo de estratgias familia-res. Os irmos quando migravam escolhiam o mesmo destino e procuravam casar-se com mulheres da regio de origem, seja porque retornavam ao paesi para contrair matrimnio, seja porque conviviam com sua prpria comunida-de. Ele descreve a trajetria de Antonio Tortora, tintureiro, que nascido em Poggiomario, Npoles, era morador de Avelino. Ele migrou para o Brasil e ca-sou-se com mulher originria de Npoles. Viveu em Franca, cidade do interior do estado de So Paulo. Parte de seus filhos nasceu nesta cidade entre 1899 e 1905 e outra em So Paulo, onde passou a residir na Rua da Consolao, pr-

    34 CONSTANTINO, Nncia Santoro de. O italiano da esquina: imigrantes meridionais na sociedade porto-alegrense. Porto Alegre: EST, 2008.

    35 MINICUCI, Maria. Qui e altrove; e PISTELA, Domenico. La Madonna del Carmine e gli italiani dAmerica. Nova York: 1954. Para o Bexiga, este congelamento da Itlia no passado manifesta-se, por exemplo, nas msicas que animam a tradicional festa da Nossa Senhora da Achiropita. ARISTODEMO, Lorenzo. La Madonna Divorata, La festa della Nossa Senhora Achiropita: un culto calabro-bizantino in Brasile. Arcavacata di Rende, Universit della Calabria, 2009 (Tesi di Laurea).

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    ximo ao Bexiga, a partir de 1909. Aps longa estadia no Brasil e constituio de extensa famlia, retornou a Avellino.36 Este foi tambm o percurso de Fran-cisco Capuano. Morador do Bexiga integra a memria paulistana como o pro-prietrio do primeiro restaurante italiano da capital paulista. Aps dcadas de vida em So Paulo, constituio de famlia e patrimnio, vendeu seu negcio e retornou Itlia. Este movimento de ir e vir, deslocamentos sucessivos, uma das caractersticas da tradio migratria desta regio. Pitto mostra como estas cadeias migratrias constituem-se como oscilaes entre a tradio e a memria, a afirmao do sucesso no novo mundo e o retorno.37

    Mas esta relao com a origem no significou a construo de guetos ou bairros tnicos na cidade de So Paulo. O Bexiga, identificado como bairro ita-liano, abrigava imigrantes de diversas nacionalidades, sobretudo portugueses, assim como era lugar de moradia de muitos ex-escravos e seus descendentes que ali habitavam quando a regio ainda se denominava Saracura. As segundas e terceiras geraes de italianos no so mais, em geral, moradoras do bairro; encontram-se espalhadas pela cidade. Da mesma forma, outros bairros pau-listanos nunca caracterizaram-se pela exclusividade de origem de seus grupos imigrantes. Apenas como exemplo, o Bom Retiro foi, desde seus incios, mar-cado por uma pluralidade de imigrantes: ingleses, italianos, judeus, gregos, e, atualmente coreanos e bolivianos.38 Apesar desta diversidade, alguns grupos, definidos por uma nacionalidade inexistente quando do ato migratrio, mar-cam, com sua presena, a insero destes bairros no imaginrio da cidade: os italianos para o Bexiga, os judeus para o Bom Retiro. Minicuci, analisando os calabreses de Zaccanopoli moradores de Buenos Aires, afirma que as prticas e sociabilidades constitudas pelo grupo estudado nunca procuraram recriar o lugar de origem. Procuravam antes inserir-se na cidade de acolhimento mo-bilizando para isso sobretudo itinerrios familiares. A parentela e grupos de origem comum eram fundamentais na chegada para viabilizar o trabalho e a moradia. Porm, no se tratava da recriao do paesi, mas de um investimen-to sobre e na cidade.39

    A macia presena de imigrantes italianos em So Paulo fez com que nas duas primeiras dcadas do sculo XX eles estivessem presentes por toda a cidade, marcando-a com suas prticas e sotaques. Apesar desta presena disseminada pela cidade, os bairros que concentraram uma maior presena

    36 GUARINO, Nicola. Ritornare Percorsi migratori di uomini e donne (Avellino 1875-1914), p.14.37 PITTO, Cesare. Lemigrazione calabrese e la modernit. In: CONFORTI, Leopoldo. (org.). La Calabria nel900.

    Atti del Seminario. Cosenza: Fondazione Antonio Guarasci, 2001.38 FELDMAN, Sarah. Bom Retiro: permanence of urban fabric and movement of foreigners. 13th IPHS, Chicago,

    v.1, 2008; SAMPAIO, Maria Ruth Amaral de e KOULIOUMBA, S. Urban transformations in Bom Retiro (So Paulo): building new territories, social networks and identities. 13th IPHS, Chicago, v.1, 2008.

    39 MINICUCI, Maria. Qui e altrove, p.75.

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    de italianos sero compreendidos e inseridos nas explicaes, intervenes e imaginrio de So Paulo como lugares de trabalho e pobreza. Apesar desta referncia comum, as diferenas entre estes bairros referidos presena de imigrantes italianos significativa: operrios, industriais e grevistas em uns, como a Mooca e o Brs, classes mdias e burguesas outros, catlicos e arte-sos no Bexiga.40 A construo deste imaginrio sobre os lugares da cidade relaciona-se com os diferentes grupos que a ocuparam e que deixaram sobre seu territrio suas marcas constitutivas fazendo do italiano uma referncia muito mais plural do que a pretensamente amalgamada pela identidade na-cional, inexistente quando da imigrao.

    40 BIONDI, Luigi. Les quartier que jadmire plus cest le Bom Retiro: larchipel tropical urbain des Petites Italies de So Paulo(1880-1940). In: BLANC-CHALEARD et alli. (orgs.). Les petites italies dans le monde. Rennes: Presses Universitaires, 2007.