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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ANNA CAROLINA LEGROSKI “O MVETT” – UMA TRADUÇÃO CURITIBA 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

ANNA CAROLINA LEGROSKI

“O MVETT” – UMA TRADUÇÃO

CURITIBA 2013

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ANNA CAROLINA LEGROSKI

“O MVETT” – UMA TRADUÇÃO

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau Bacharel no curso de Letras – Francês com ênfase em Estudos Literários, sob orientação da Professora Nathalie Anne-Marie Dessartre, do Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas.

CURITIBA 2013

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ANNA CAROLINA LEGROSKI

Monografia aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharelado no Curso de Letras – Francês, Setor Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, pela seguinte Banca Examinadora: Lúcia Peixoto Cherem.

Orientadora: Nathalie Anne-Marie Dessartre

Curitiba, 22 de março de 2013

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Dedico este trabalho a meus pais, Darci e Marinês Legroski, pelo apoio e estímulo incondicionais.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço a minha orientadora, Nathalie Dessartre, pela orientação cuidadosa e dedicada. Agradeço também a minha irmã, Marina Legroski, cuja paciência e suporte foram de grande valia durante a elaboração deste trabalho e que prontamente aceitou a tarefa de revisá-lo. Pelo apoio, compreensão e amizade incondicionais, agradeço a minha grande amiga Fernanda Carretta, em cuja dedicação me espelhei durante a escrita desta monografia. Também deixo o registro de minha gratidão a Luiza Jasper, grande amiga, por aceitar prontamente fazer a revisão da parte em língua francesa deste trabalho. Agradeço a meus pais, Darci e Marinês Legroski pelo estímulo contínuo e pela fé que depositaram em mim. Em último lugar, agradeço de maneira geral a todos os meus professores que, a sua maneira, me guiaram até aqui.

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“Ningún problema tan consustancial con las letras y con su modesto mistério como el que

propone uma traducción”

Jorge Luis Borges

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RESUMO

No presente trabalho apresentamos uma possibilidade de tradução para livro

“O Mvett” de Tsira Ndong Ndoutoume, autor gabonês de tradição fang. A tradução

desta obra foi motivada pela grande influência da obra no imaginário africano e por

um convênio com o Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná que,

baseado na Lei Federal nº 10.639 de 2003, que prevê a inclusão do conhecimento

da temática da diáspora africana e da influência da cultura africana na cultura

brasileira no ensino público e privado brasileiro, procura inserir na pós-graduação

meios pelos quais seus alunos entrem em contato com essa carga cultural. Além

disso, apresentamos uma discussão a respeito do ato de traduzir e dos problemas

de tradução que encontramos no meio do caminho.

Palavras chave: Tradução, literatura africana, cultura africana.

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RESUMÉ

Dans ce travail nous présentons une possibilité de traduction pour le livre « le

Mvett » de Tsira Ndong Ndoutoume, auteur gabonais de tradition fang. La traduction

de cette œuvre a été motivée par la très grande influence de l’œuvre dans

l'imaginaire africain et par un accord avec le Secteur d'Éducation de l'Universidade

Federal do Paraná qui, basé sur la Loi Fédérale numéro 10.639 de 2003, prévoit

l'inclusion de la connaissance de la thématique de la diaspora africaine et de

l'influence de la culture africaine dans l'enseignement public et privé brésiliens, et

cherche à fournir dans le cadre du master et du doctorat les moyens pour que les

élèves aient contact avec cette contenu culturelle. Par ailleurs, nous présentons une

discussion sur l’acte de traduire et sur les problèmes de traduction qui nous avons

fait face au long du chemin.

Mots-clés : Traduction, littérature africaine, culture africaine.

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SUMÁRIO

Introdução .................................................................................................... 09

1. O livro ....................................................................................................... 11

2.A tradução ................................................................................................. 22

3. Estratégias de tradução............................................................................ 28

4. Problemas de tradução ............................................................................ 31

Conclusão .................................................................................................... 40

Referências bibliográficas ............................................................................ 42

Anexo I: O Mvett ........................................................................................... 43

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INTRODUÇÃO

O vínculo entre os povos da África negra e os brasileiros é extremamente forte, uma vez que estes povos tiveram papel ativo na formação cultural do país. Dado o papel destes povos africanos na constituição cultural do Brasil, é de vital importância conhecer e valorizar não só a cultura oferecida e trazida por eles, mas também suas formas de expressão artísticas. Infelizmente, a disseminação da cultura negro-africana ainda é pouco explorada em nosso país, principalmente no que toca à literatura, uma vez que não são muitos os escritores africanos a figurarem nas prateleiras de livrarias brasileiras. Pensando na divulgação dessa cultura por vezes negligenciada, criou-se no Brasil, há dez anos, a Lei nº 10.639/2003, que prevê a inclusão do conhecimento da temática da diáspora africana e da influência da cultura africana na cultura brasileira no ensino público e privado do país. Por esta razão, a pós-graduação do setor de Educação da Universidade Federal do Paraná precisou viabilizar a criação de uma biblioteca de obras de escritores africanos e, dentre eles, os francófonos. A partir daí, em 2010, veio o convite deste setor para que a área do Francês, da faculdade de Letras da mesma instituição, se responsabilizasse por um projeto de tradução de obras da África francófona, que seria financiado pela Fundação Araucária. Alguns professores da área de Francês passaram então a orientar alunos bolsistas da graduação em Letras na tradução destes livros.

O presente trabalho apresenta uma tradução do livro “Le Mvett”, do escritor gabonês Tsira Ndong Ndoutoume, e uma discussão desta tradução, realizada a partir da minha participação no projeto supracitado no ano de 2012.

Tendo em vista a presença da cultura africana no repertório escolar, a tradução aqui discutida tem, em primeiro lugar, o compromisso de dar lugar à tradição literária, histórica e filosófica africana dentro do mundo lusófono através da tradução, mais especificamente dentro do sistema de ensino brasileiro. Este compromisso é fundado na crença da importância da abertura dentro da escola à história e cultura dos povos de origem africana, para que se crie um contato entre os educadores e educandos com este mundo.

Assim, é crucial que os alunos tenham acesso a materiais autênticos oriundos destas culturas, para que o ensino possa ser levado o mais próximo possível da realidade dos povos que criaram estes materiais, uma vez que a literatura é uma porta de entrada para o imaginário das culturas que a produzem e, portanto, uma via de compreensão destas realidades. Posta a relevância da tradução da obra “Le Mvett” dentro do cenário sócio-educacional brasileiro, passamos a nos debruçar sobre o livro no capítulo 1.

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Neste capítulo, fazemos uma breve análise literária da obra, bem como de suas condições de produção. Ali, colocamos em evidência alguns aspectos da cultura fang que são importantes e necessários para o trabalho tradutório.

As questões concernentes à justificativa teórica da tradução aparecem no segundo capítulo. Já questões sobre a metodologia da tradução estão problematizadas no terceiro. Traduzir é mais do que encontrar palavras equivalentes de uma língua para outra. É um processo de reescritura do texto de uma língua de origem a uma língua alvo que compreende desde a interpretação do texto, por parte do tradutor, até a busca de uma forma de expressar a mensagem do texto de origem na língua alvo sem que isso represente perdas de sentido. No caso dos textos literários, deve haver um cuidado no sentido de minimizar a perda de matéria literária ou de características literárias como, por exemplo, a luta para manter as marcas de oralidade ou o estranhamento presentes no texto. O trabalho do tradutor é, portanto, um trabalho complexo que envolve várias capacidades linguísticas, literárias e culturais. Sendo assim, é normal, no meio do caminho, encontrar problemas de tradução, que dificultam o processo tradutório e se colocam como um verdadeiro desafio para o tradutor. Estas questões são analisadas, mais detidamente, no capítulo 4.

Demos ao nosso trabalho o formato de um mémoire de tradução, no qual podemos discutir aspectos relevantes do livro e de nossa tradução, que se apresenta como anexo da presente monografia. Apresentamos aqui discussões sobre nossa visão do trabalho tradutório, com a qual nos norteamos e sobre as estratégias que utilizamos para realizar a tradução. Como forma de compreender melhor o texto ao qual nos lançamos enquanto tradutoras, apresentamos uma breve análise literária dos pontos chaves do texto, como no que tange às marcas de oralidades apresentadas ao longo da obra e ao estranhamento proposto pelo autor. Apresentamos também uma discussão mais alongada dos problemas de tradução advindos durante o trabalho tradutório, assim como as soluções encontradas para que houvesse o mínimo de perdas em relação ao texto-fonte.

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1. O LIVRO

O tradutor, antes de ser tradutor, é um leitor. Como discutimos anteriormente, é a sua leitura/interpretação/compreensão do texto que ele vai transformar em tradução. Desta forma, este primeiro passo – a leitura e compreensão do texto – é de suma importância para o processo tradutório, pois é ele que vai pautar os caminhos a seguir e as soluções encontradas para solucionar eventuais problemas. Tendo em vista a importância deste momento, passamos a uma breve análise de alguns dos pontos chave do texto, considerados importantes para a compreensão da obra.

Pouco se sabe a respeito da vida de Tsira Ndong Ndoutome. Os registros que contam sua história praticamente inexistem e, o que se sabe, é por meio do que ele próprio deixou transparecer na introdução que escreveu para seu livro. Sua história é comum a um número de africanos: ser enviado ao estrangeiro para cursar o ensino superior e retornar à pátria mãe com o futuro assegurado – no caso de Tsira Ndong Ndoutoume, ser diretor de uma escola. Na apresentação do livro, o autor coloca a questão de ser a ponte entre o exterior e o interior da tribo, sentindo a obrigação de retornar à fonte de suas tradições para fazê-las serem ouvidas pelo mundo externo. O autor se voltou, então, para a força cultural de suas origens e se dedicou ao aprendizado do mvett, instrumento de corda, composto de três cabaças, cuja função é dar cadência às declamações de epopeias caras às tribos africanas. Foi só então, a partir do domínio do instrumento e do gênero, que ele se dispôs a transcrever uma epopeia de seu povo.

Já de início, o autor deixa clara a importância que o instrumento tem para seu povo: “A palavra mvett, ou mver de acordo com a região, designa ao mesmo tempo o instrumento utilizado, quem toca e as epopeias contadas, das quais emerge toda uma literatura. A palavra mvett em seu sentido mais amplo é sinônimo da cultura Fang.” 1. Assim, fica claro o tamanho da empreitada a qual ele se lança ao confeccionar este livro.

O texto que Tsira oferece, embora seja uma epopeia fang, povo que vive onde atualmente é o Camarões, foi escrito todo em francês. Na introdução, o autor justifica o uso da língua imposta pelo neocolonialismo: “Se os negros têm necessidade das línguas ocidentais com vocação universal para levar ao mundo seus recursos culturais, é porque os ocidentais desprezaram as línguas africanas ao impor as suas”2. Assim, para ser ouvido fora de sua própria comunidade, o autor teve de recorrer à língua do dominador e abdicar da força de expressão de sua língua materna.

1 Página 10 do texto-fonte e 3 da tradução. 2 Idem.

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Este livro conta a epopeia de Oveng Ndoutoume Obame, o líder da tribo das Chamas, que entra em uma saga para exterminar o ferro da superfície terrestre, pois este seria a origem dos males que açoitam a humanidade. Porém Oveng Ndoutoume Obame encontra resistência em seu projeto por parte da tribo dos Imortais, liderada por Ndoumou Obame. Esta é a origem de uma série de combates violentos entre os homens poderosos de ambas as tribos.

Para elaborar o texto, o autor teve que adaptar a realidade da sessão de mvett, oral por excelência, para a realidade do texto escrito. Segundo o que consta na introdução, o efeito alcançado fica aquém daquele conseguido em um corpo da guarda, com audiência participativa. Para Tsira, seu trabalho coteja a própria traição:

O autor viola a tradição e trai seus mestres confiando o mvett à pena. A obra também é branda e imperfeita, pois nada no mundo pode substituir a parte da aldeia, a atmosfera do corpo de guarda, o ritmo dos sinos e das baquetas, a melodia do mvett, a trepidação das penas dos pássaros, dos pelos das bestas sobre a terra e os braços do tocador. Em consequência disso, o autor solicita indulgência do leitor, que apreciará em medida justa as dificuldades advindas no momento em que, privado de seu instrumento e do meio no qual ele costuma evoluir, ele se viu obrigado a romper com a tradição oral para dar lugar à escrita.3

As perdas na passagem de uma forma narrativa a outra são inevitáveis, porém o autor se mantém fiel ao projeto de envolver o leitor pela oralidade que sua função de tocador de mvett suscita. Um dos fatores que mais chamam a atenção é que a narrativa é entremeada de cantos e de repetições de fórmulas no esquema de perguntas e respostas. Ora são os próprios personagens que cantam, cada qual com sua dicção e temas próprios, ora é o próprio narrador que puxa sua fórmula clássica, para marcar a transição entre trechos distintos da epopeia.

Toquemos o mvett, toquemos o mvett!

Escutemos a língua das cordas!

Escutemos a língua do vento!

As marmitas fervem nas casas!

Mas o estômago dos homens esta sem fome!

Os ouvidos dos homens digerem o mvett!

Eu semeio o vento!

- Sim!

- Eu guio o elefante!

- Sim!

- Hoje é domingo!

3 Página 18 do texto-fonte, 9 da tradução.

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- Sim!

- O quê seus ouvidos ouvem?

- Eles ouvem o mvett!4

Ao utilizar esta fórmula que demanda uma resposta, o autor está convidando a assembleia, no caso o leitor, a respondê-la e a se integrar, assim, ao que é narrado.

Quando as moças das tribos ao redor da tribo de Oveng Ndoumou Obame ficam sabendo de sua beleza, elas se põem a cantar:

Elas cantavam a força desse novo chefe, cantavam sua beleza, cantavam seus louvores. Cantemos com elas:

- Oh! Os tantãs ressoam:

- Homem lindo, homem lindo!

- Oh! Os tantãs cantam:

- Sua força e sua beleza!

- Oh! Os tantãs chamam:

- Moças! Moças!

- Oh! Os tantãs dizem:

- Venham ver! Venham ver!

Venham ver Oveng Ndoumou Obame!

Oveng Ndoumou Obame da tribo das Chamas!

Ele é lindo! Ele é lindo!

Ele é lindo e forte.

Moças! Moças!

Venham ver Oveng Ndoumou Obame!5

Aqui, o autor faz um apelo direto aos interlocutores, tratando-os como trataria seus ouvintes em uma sessão de mvett: chamando-os a cantar junto com as moças que estão sendo evocadas no momento. Este tipo de chamamento se repete ao longo do livro, alterando a relação do leitor com o livro. De simples espectador, ele é convidado a integrar a narrativa, participando de seu processo de narração. Momentos como este evidenciam a relação que o autor procura estabelecer com seu leitor e a aproximação que o livro tem com a oralidade de uma apresentação do instrumento.

4 Página 29 do texto-fonte, pg. 18 da tradução. 5 Página 33 do texto-fonte, 22 da tradução.

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Um trecho que resume bem a posição que o autor espera encontrar do leitor é: “Coloque-se, amigo ouvinte, no lugar de nossos fantasmas.”6. De forma amistosa, o narrador convida o ouvinte (e não o leitor) a criar empatia pelos personagens da epopeia. O fato de ele ter escolhido o termo ouvinte, ao qual é anexada a nota de rodapé “ouvinte: não perca de vista que você se encontra no corpo da guarda, em presença do tocador de mvett”, explica o efeito que ele procura suscitar em seus interlocutores, que seria o de emulação de uma sessão de mvett.

Desta forma, através da repetição de fórmulas, do convite a cantar junto e do apelo constante ao leitor, o autor se aproxima cada vez mais da oralidade que uma sessão no corpo da guarda demonstraria. Além disso, o próprio autor se insere no texto, deixando claro seu lugar na narrativa e sua importância para ela:

O sol que queimava havia transformado a natureza em uma toalha de luz ofuscante no silêncio do dia. Sozinho, invisível, o tocador de mvett7 dominava a cena com seu olho atento. As melodias de seu instrumento casavam com as peripécias do combate. Animadas ou doces, lentas ou fogosas, suas modulações seguiam fielmente o ritmo da batalha que elas acabavam influenciando. Os dois adversários lutavam ao som do mvett.8

Este trecho deixa claras as funções que o tocador de mvett tem para a epopeia que narra. Ele não apenas a está narrando, mas participa dela, mesmo que seja em um lugar considerado invisível. Além disso, ele clama oferecer um olhar atento e fiel ao que acontece, afirmando assim, a veracidade de suas canções.

Outra liberdade de narração que o autor toma é uma espécie de ensaio de fluxo de consciência dos personagens, fazendo com que seus pensamentos e anseios tenham voz ao longo do texto. Este recurso é interessante, visto que o narrador é onisciente e, sendo assim, não precisaria se valer da voz de cada personagem para oferecer ao leitor o que se passa em seu íntimo. Tsira Ndong Ndoutoume, porém, dá abertura para que seus personagens demonstrem suas versões dos acontecimentos de forma que elas quase se fundem com sua narração.

Na casa cheia de mulheres velhas, Ntasame Ondo, esposa de Ndoumou Obâme, gemia. O bebê se mexia em suas entranhas. Ele queria sair da eterna noite quente. Ele já estava cansado de se sentir prisioneiro em um mundo no qual não se falava. Ele queria ver o que lhe haviam contado no país dos espíritos, de onde vinha: a terra, o sol, as estrelas, a lua e, sobretudo, os homens9.

Neste trecho, o primeiro em que tal fenômeno acontece, o narrador abdica momentaneamente de seu narrar onisciente e toma em sua narrativa a versão do personagem, no caso, do nascituro aguardando seu nascimento. Assim, o narrador não só empresta seu espaço de narrar a história, mas dá a cada personagem a

6 Página 129 do texto-fonte e 104 da tradução. 7 Aqui, o autor. Sua imaginação aquece a cena. É neste momento que ele tira do instrumento acordes maravilhosos. 8 Página 96 do texto-fonte e 76 da tradução 9 Página 27 do texto-fonte e 17 da tradução.

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possibilidade de oferecer suas reminiscências com dicção própria com uso dos termos que são recorrentes em seus discursos.

Usando das versões de seus personagens, o autor também aproveita para tecer comentários a respeito dos assuntos em pauta em determinados momentos da ação. No seguinte trecho, ao descrever o nascer do dia, o narrador empresta sua voz para o próprio sol, que, por se tratar de um momento em que Oveng Ndoumou Obame vai guerrear com os Imortais, reflete a respeito da violência dos homens e da guerra:

A noite tinha se retirado. O sol ria no céu puro. Ele zombava dos homens com suas querelas intermináveis. Será que não tinham nada melhor para fazer do que se odiar mutuamente? Toda sua vida se passava em saltos de humor, em vexações, em rixas violentas que se degradavam em matanças sangrentas. Como eles amavam se destruir, os homens! E por nada! O sol, ele, podia rir de suas preocupações azedas. Pouco lhe importava que eles se matassem uns aos outros estupidamente. Seu dever não era de lhes prodigar a luz e o calor para deixá-los felizes? Era sua culpa se os homens não conseguiam compreender a necessidade de amar seu próximo como ele amava a terra, a lua e as estrelas?10

Aqui, através da figura do sol, que apenas neste trecho aparece enquanto personagem, o autor abre espaço para uma reflexão mais profunda acerca da destruição mútua que os homens engendram que, segundo o sol, é vazia de significado porque mais vale se empenhar em cumprir seu dever e amar os demais do que se engajar em lutas sangrentas. Embora a reflexão venha bem a calhar, não se pode dizer que ela corresponde à visão de mundo do próprio narrador, uma vez que a reflexão é de responsabilidade do sol e, em outros momentos em que este espaço é dado a personagens, há a apresentação de ideias conflituosas, como no caso de Ntoutoume Mfoulou e de seu discurso sempre pró-violência, que vai contra tudo aquilo que o sol apresentou em seu raciocínio.

A reflexão sobre a guerra e a violência, porém, permeia todo o texto e também é apresentada através da fala do narrador, como, por exemplo, no trecho a seguir:

Desde o começo do incêndio, Engouang Ondo e seus homens haviam se retirado sobre uma grande montanha, a uma distância respeitosa da aldeia e, dali, contemplavam o sinistro. De seu lado, Oveng Ndoumou Obame e Ela Minko M’Obiang tinham agido da mesma forma. Mais uma vez, milhares de inocentes pagavam com suas vidas as consequências da cólera dos gigantes.11

Na parte final do trecho, fica evidente uma visão de mundo contra a guerra que vai além, coteja a injustiça de um confronto no qual interesses de alguns valem – aqui de Oveng Ndoumou Obame e de Engoang Ondo – mas no qual todos os inocentes têm de pagar. Ao longo do texto esta injustiça é evidenciada, uma vez que ele mostra uma tribo das Chamas devastada – em termos de ambiente e de 10 Página 112 do texto-fonte e 88 da tradução. 11 Página 60 do texto-fonte e 45 da tradução.

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pessoas, com poucos sobreviventes, que estão assustados e que precisam se exilar no seio de uma montanha rochosa para se proteger da ira de seus agressores. Contrastiva é, porém, a atitude tomada ao término da querela entre os ditos gigantes, quando Engoang Ondo discursa a favor de seu inimigo de outrora para assegurar não só a perenidade de Oveng Ndoumou Obame, mas, sobretudo, a sobrevivência da tribo das Chamas que, sem um líder, pereceria e desapareceria do globo.

Embora seja contrastiva, a ação não é, de forma alguma, paradoxal. A epopeia mostra um Engoang Ondo pensativo, que prefere debater a fazer a guerra, embora seja o chefe guerreiro do exército dos Imortais. Ele demora a se enfurecer e a entrar propriamente no confronto com Oveng Ndoumou Obame. Sua posição é sempre a favor da paz, por mais que se oponha violentamente a seu rival. Desta forma, defender Oveng Ndoumou Obame frente ao conselho de anciões de Engong é uma atitude honrosa e, talvez, a única que poderia tomar, sendo como é.

Nesta mesma situação, é evidenciada a forte noção de honra, presente em todo o texto. Os personagens centrais não traem, não atacam pelas costas, não fogem da batalha, etc. Tudo acontece dentro de um contíguo estrito de honra guerreira e de coerência a esta honra. O próprio Ntoutoume Mfoulou, criatura violenta e sanguinária, apresenta traços desta virtude ao salvar uma moça de dois agressores. Voltando à situação de defesa de Engouang Ondo, este chega a oferecer a seu antigo rival, em sinal de perdão total, sua irmã, Mengué M’Ondo, em casamento, uma vez que não poderia deixá-lo casado com Eyenga Nkabe, que lhe tinha sido prometida.

O autor também não se furta de tecer comentários sobre a sociedade, inserindo também o papel da mulher em sua obra. Durante a história contada, as mulheres ficam confinadas nas cozinhas de suas casas e se apresentam como seres falantes – por vezes fofoqueiros – e, sobretudo, belos. “Assim, qualquer que seja sua grandeza, o homem, frente a uma bela mulher, não passa de um homem”12, o que exprime uma ideia cristalizada a respeito da mulher, que tem o papel principal de seduzir seu marido e de ser bela.

Visão complicada, porém da qual o narrador se isenta ao colocá-la na boca de outro personagem, é a de Ntoutoume Mfoulou, que determina que “as mocinhas vêm ao mundo para aprender não a fazer perguntas mas a obedecer e a servir”13. De certa forma, o espaço das mulheres na narrativa orbita em torno desta visão de mundo. Aqui, chamo atenção para o caso da personagem feminina de maior destaque em “O Mvett”, Eyenga Nkabe.

Ela, filha de Nkabe Mfoulou, é uma criatura absolutamente bela e de boas proporções que é enviada pelo pai para buscar ajuda de Engouang Ondo, pois

12 Página 73 do texto-fonte e 56 da tradução. 13 Página 81 do texto-fonte e 63 da tradução.

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Oveng Ndoumou Obame ameaçou seu papel de chefe da aldeia e quebrou-lhe a perna. Eyenga é uma mulher brava, mas que acaba sendo caracterizada como uma mulher estereotipada, pois sua principal preocupação é sobre seus amores – na ocasião do confronto de seu pai com Oveng Ndoumou Obame, ela se apaixona por este e, após ser prometida em casamento a Engouang Ondo, também se apaixona por ele. Além disso, não é dado à personagem espaço para agir, ela é constantemente levada a fazer as coisas, ir aos lugares, sem poder fazer valer sua opinião. Exemplo disto é o fato de ter sido prometida em casamento pelo seu pai a um homem ao qual ela nunca viu e que não sabe se poderá amar, apenas porque seu pai precisa que alguém vingue-lhe a afronta.

Porém, há um trecho no qual se pode dizer que há um reconhecimento deste papel coadjuvante dado às mulheres e a necessidade delas se colocarem em um lugar de mais destaque na sociedade:

Na praça da aldeia, os tantãs começaram a zumbir. A vida era bela. A natalidade crescia a cada dia. A floresta fornecia tudo o que o homem lhe pedia, os rios regurgitavam peixes. Os casais estavam equilibrados, a mulher tendo enfim encontrado seu verdadeiro papel na nova sociedade. As tradições haviam sofrido verdadeiras reformas. Aprendia-se a temer Zame-Ye-Mebegue, Deus dos homens, da terra e do sopro.14

Aí está: casais equilibrados e mulheres que encontraram seu verdadeiro papel na sociedade. Embora o narrador não especifique qual é esse papel, há um forte indício de descontentamento com a ordem das coisas anteriores. Porém é necessária uma verdadeira resolução na tribo das Chamas: a vitória (mesmo que temporária) de Oveng Ndoumou Obame sobre os Imortais e seu casamento com Eyenga Nkabe. É só com isso que a situação dos casais e das mulheres se modifica, de forma a valorizar estes seres, injustiçados e relegados a segundo plano pela sociedade.

Tsira Ndong Ndoutoume oferece também uma visão ímpar da vida humana, através da óptica dos fantasmas. O autor interrompe sua narrativa em um momento de clímax, quando Engoang Ondo confronta os fantasmas da tribo das Chamas para descobrir como derrotar seu rival, Oveng Ndoumou Obame, e oferece um ponto de vista sobre a vida humana que justifica o medo dos fantasmas de retornarem à vida. O autor descreve o nascimento e o crescimento do ser humano como uma verdadeira tarefa a cumprir, cheia de percalços e dificuldades. “Ai! Como isso foi duro”15, ele chega a afirmar, ao mesmo tempo em que afirma “Ai! Como isso foi belo e magnífico”16. Ao longo de sua descrição, quando o bebê genérico a quem acompanha chega à idade adulta, o autor escreve:

Ele precisa nutrir e manter sua família, caçar e pescar, assistir aos conselhos e os organizar, guerrear, se impor, se fazer temer... É o momento em que a vida desenrola seu cortejo de tormentos, de decepções, de

14 Página 69 do texto-fonte e 52 da tradução. 15 Página 130 do texto-fonte, 104 da tradução. 16 Página 131 do texto-fonte, 104 da tradução.

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servidões. O repouso lhe foge, o sonho lhe abandona. E se ela lhe era predestinada, a velhice chega, rápida, implacável.17

Como uma forma de explicar a seus interlocutores os deveres do ser adulto, ele enumera as obrigações que, durante esta fase, ele deve enfrentar para, ao final dela, se encontrar com a velhice implacável, durante a qual apenas resta dar conselhos. Assim, o autor faz um grande aposto na narrativa e explica, através de exemplos, o porquê dos fantasmas evitarem a todo o custo serem reencarnados, uma vez que a vida é cheia de infelicidades e o momento da morte é um momento de libertação.

Ao nascer, na tribo das Chamas, Oveng Ndoumou Obame é, por iniciativa de seu avô, transformado em duplo: ao mesmo tempo em que é homem, sua fisiologia é modificada e ele assume uma estrutura interna de ferro, o que lhe garante potência e invulnerabilidade. Com isso, seu avô e os magos da tribo das Chamas pretendem forjar um chefe verdadeiro, capaz de liderar a tribo e de enfrentar toda a sorte de desafios. Por este motivo, ele é capaz de resistir bravamente às investidas dos três Imortais com quem rivaliza durante a narrativa e só é finalmente vencido quando seu duplo de ferro é liquidado. Desta forma, a noção de duplo é inserida no texto. Em uma nota do livro L’étrange destin de Wangrin, o autor Amadou Hampaté Bâ explica melhor a noção de duplo:

A tradição africana considera que, na pessoa física, existem várias outras pessoas que portam o nome de “duplos”, cada um destes duplos é mais profundo, ou mais “fino” que o precedente. Desta forma, há no corpo físico o duplo profundo, o duplo mais profundo, etc. As doenças devem resultar de uma perturbação nestes duplos. Se uma perturbação não chega a se exteriorizar em uma doença exterior, ela torna-se uma doença mental. (BÂ, 1992)18

Por não fazer parte da representação do mundo ocidental, a questão do duplo pode causar estranhamento no leitor da língua de chegada. Outro ponto fundamental de dissonância entre os imaginários africano e ocidental europeizado consiste na relação estabelecida com o espaço e o tempo. Em “O Mvett” a marcação de tempo é diferente daquela com a qual o leitor brasileiro está acostumado. A passagem do tempo não é feita de acordo com a passagem dos dias, dos meses e dos anos, mas através de luas e de estações secas e chuvosas que se sucedem.

Ndoumou Obame penetrou na casa de Ntasme Ondo, sua esposa. Ele se virou para Oveng Ndoumou Obame, seu filho, que já tinha seis luas. Nesta idade, sua saúde era de ferro e sua força prodigiosa. Coberto de músculos de aço, o olhar direto, as costas largas, a barriga maciça, brutal como uma torrente, ágil como um gato, ele tinha tudo de um ser sobrenatural. Ele

17 Idem. 18 “La tradition africaine considère que, dans la personne physique, Il existe plusieurs autres personnes portant le nom de “doubles", chacun de ses doubles étant plus profond, ou plus “fin”, que le précédent. Il y a ainsi le corps physique, le double profond, le double plus profond, etc. Les maladies sont censées résulter d’une perturbation de ces doubles. Lorsque la perturbation n’arrive pas à s’extérioriser en une maladie extérieure, elle devient maladie mentale” (BÂ, 1992)

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parecia ter quatorze grandes estações secas para grande espanto de sua mãe e satisfação de seu pai.

A sucessão do que seriam os anos, portanto, se dá de forma diferente da ocidental. Eles são medidos através das estações secas e chuvosas pelas quais a tribo passa. Mais adiante, quase no fim do texto, encontramos: “Neste tempo, as estações secas sucedem às estações secas e as estações chuvosas às estações chuvosas”19, que dá conta do passar dos anos em uma reflexão que o autor faz sobre as agruras da vida humana. Os próprios segundos adquirem um tom mais lírico quando contados: “Um silêncio pesado envolveu o público durante dois ou três batimentos cardíacos antes que ele aparecesse”20. Desta forma, a relação temporal é outra e convida o leitor ocidental a pensar diferentemente da forma com que está acostumado.

De forma análoga, a relação com o espaço e com as medidas é feita através de comparações com elementos da natureza. Sobre a altura de Oveng Ndoumou Obame é dito que “o homem já tinha o tamanho de uma palmeira.”21. A marcação do tempo também é utilizada para marcar tamanho, como no caso de: “Há mais de nove luas, Ndoutoume Allongo Minko, da grande vila de Meka-Mezok, fazia todo seu povo dançar sem parar. Essa vila media sete dias e sete noites de travessia ao passo de corrida ritmada. É dizer quanto era imensa.”22.

Além disso, grandes distâncias ora são percorridas de um salto, ora precisam de várias luas para serem vencidas. Isso aponta uma relativização do espaço: quando estão em guerra, os personagens saltam e chegam ao lugar onde são necessários, quando em paz, eles percorrem o espaço andando.

Outro ponto importante pode ser encontrado no seguinte trecho:

Na casa de Oveng Ndoumou Obame, (...) ele se levanta da poltrona, que foi instalada em sua varanda para lhe permitir respirar o ar fresco, entra na casa, atravessa três dormitórios, se conduziu até o quarto, no meio do qual brilhava, como um espelho, uma lagoa límpida. 23

Na descrição da casa de Oveng Ndoumou Obame não se menciona seu tamanho. Porém, é dito que ela possui uma lagoa em um dos quartos. Não se pode saber se a casa é realmente grande, ou se, então, o espaço é relativizado e a lagoa adquire seu tamanho apenas quando é usada. Relação similar encontra-se no próprio corpo dos personagens: “irado, Mfoumou Angong Ondo bateu no peito. Uma baforada de fumaça escapou de sua boca, na qual ele mergulhou a mão e tirou um pedaço de ferro grosso como o tronco de um baobá.”24. É comum os personagens recorrerem a esse ritual de bater no próprio peito e retirar de si mesmos armas,

19 Página 130 do texto-fonte, 104 da tradução. 20 Página 33 do texto-fonte, 22 da tradução. 21 Página 34 do texto-fonte, 22 da tradução. 22 Página 45 do texto-fonte, 32 da tradução. 23 Página 40 do texto-fonte, 28 da tradução. 24 Página 36 do texto-fonte, 25 da tradução.

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objetos e, no caso de Engoaung Ondo, até mesmo um vampiro branco. Estas relações de tempo e espaço causam estranhamento ao desafiar o leitor ocidental, que longe da lógica a qual está acostumado, deve dar conta sozinho de criar os sentidos destas relações.

Aqui, mais do que uma relação outra com o espaço, nos alçamos à dimensão mágica, típica do mundo maravilhoso, encontrada largamente em romances e contos africanos. Neste caso, a realidade toma dimensões irreais para um leitor ocidental, mas que está inserida no imaginário das culturas tradicionais africanas, como a cultura Fang. Estas são as provas do grande abismo que há entre as culturas de origem africana e as do mundo europeizado, devido à natureza metafórica e simbólica dos rituais das culturas africanas, o que acaba se revertendo em uma dificuldade de tradução.

O fato de a narrativa ser de cunho fantasioso pode aliviar a carga de estranhamento que estes fatores suscitam, porém ele está lá, em cada ação dos personagens, que funcionam com uma coerência própria. Para ilustrar o caráter fantasioso da narrativa, evocamos o trecho:

Subitamente, com um trovão poderoso, o céu se abriu, deixando escapar o relâmpago e o relâmpago absorveu Oveng Ndoumou Obame. Precisemos que Oveng Ndoumou Obame se transformou em relâmpago. Ele retornou ao céu flamejando.25

Neste momento, o personagem deixa ser um invólucro de carne e adquire a forma de um relâmpago, para castigar, com sua carga elétrica, seu opositor. Nisto, este metamorfoseia-se em camaleão que, segundo o texto, é invulnerável a relâmpagos. Cheio destes exemplos, o texto fascina o leitor e o convida a entrar no pacto da suspensão da descrença e embarcar em uma epopeia de guerra, de honra e de amor e a comungar com seus personagens, sempre fortemente presos à noção de honra e dever.

A seguir, passamos a discutir ponto a ponto alguns dos problemas de tradução mais desafiadores encontrados ao longo do trabalho e as sugestões de soluções que eles suscitaram.

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Página 134 do texto-fonte, 107 da tradução.

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2. A TRADUÇÃO

“A tradução é uma atividade indispensável em toda e qualquer cultura que esteja em contato com alguma outra cultura que fale um idioma diferente (...)”26, como Paulo Henriques Britto aponta. Desta forma, para dar a conhecer ao público brasileiro não-francófono as delícias que “O Mvett” reserva, com toda a importância histórica que lhe é inerente, sua tradução se faz necessária. Na tarefa de traduzir, nos fizemos de ponte para que a cultura fang, posta em evidência pelo livro, pudesse encontrar a cultura brasileira. Assim, “traduzir é, ao mesmo tempo, habitar a língua do estrangeiro e dar hospitalidade a esse estrangeiro no coração de sua própria língua”27, de forma que “(...) a função primeira da tradução é, então, ser a grande mediadora da diversidade, simultaneamente contra e pró Babel.”28

Pensando nas categorias tradutórias apresentadas por Walter Benjamin em seu ensaio “A tarefa do tradutor”, a tradução permeia qualquer atividade humana, pois ela pode ser intralingual – ou seja, tradução dentro da mesma língua, como a paráfrase ou a própria compreensão das atividades comunicativas –, interlingual – quando ocorre entre línguas distintas, a tradução como é amplamente conhecida – e a intersemiótica – que envolve a tradução de uma linguagem para outra, como a compreensão de placas de trânsito. Como explica Steiner (2005):

A tradução está formal e pragmaticamente implícita em cada ato de comunicação, na emissão e na recepção de cada um e de todos os modos de significar, sejam elas compreendidas no mais amplo sentido semiótico ou em trocas mais especificamente verbais. Compreender é decifrar. Alcançar a significação é traduzir.29

Desta forma, a atividade tradutória ultrapassa os limites do texto passado de uma língua A para uma língua B e alcança a própria vida, em todas as atividades exercidas.

Mesmo que não explicitamente, o preceito de São Jerônimo “non verbum de verbo, sed sensum exprimere de sensu” norteou nosso trabalho tradutório. Longe da tradução palavra por palavra, que tende a limitar a criação de sentidos, procuramos uma tradução que fosse direcionada para o sentido mais amplo da obra. Nosso objetivo, portanto, era muito claro: sermos fieis, na medida do possível, ao texto-fonte, privilegiando sempre o sentido das frases traduzidas, para não incorrer no erro (de iniciante) apontado por Danica Saleskovitch e Marianne Lederer de associar a fidelidade tradutória à tradução palavra por palavra.

26BRITTO, 2012. 27 Paul Ricoeur, apud Oustinoff, 2011. 28OUSTINOFF, 2011. 29STEINER, 2005.

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Não omitir nenhuma das palavras do original parece ser a garantia absoluta da fidelidade (...). O iniciante fica ‘colado’ às palavras; a vontade de conservar uma igualdade quantitativa entre o original e a interpretação parece decorrer de um instinto profundo.30

Embora o impulso inicial seja o de buscar uma fidelidade impossível, através da equivalência direta de palavras e da não modificação de classes gramaticais, do não enxugamento do texto, quando necessário, essas opções tradutórias acabam levando para o caminho inverso e resultam em uma tradução não satisfatória.

As pessoas tendem a pensar (i) que traduzir é, na verdade, uma tarefa relativamente fácil; (ii) que o principal problema do tradutor consiste em saber que nomes têm as coisas num idioma estrangeiro; (iii) que este problema se resolve com a consulta de dicionários bilíngues; e (iv) que, com os avanços da informática e o advento da internet, em pouco tempo a tradução será uma atividade inteiramente automatizada, feita sem a intervenção humana.31

Assim, Britto (2012) alerta para a diminuição do trabalho do tradutor, que poderia ser facilmente substituído por uma máquina. Porém, traduzir vai além de encontrar palavras afins em duas línguas de forma isolada. Nas palavras de Mário Laranjeira, “a tradução é uma reescritura, noutra língua, de uma leitura do texto. É imprescindível que o sujeito da leitura seja o mesmo da reescritura”32, ou seja, “toda tradução é, por definição, uma operação radical de reescrita, em que todas as palavras de um texto são substituídas por outras”33. Assim, “a tradução não é nem uma imagem, nem uma cópia”34.

Tarefa de reescrita, a tradução propõe o desafio de encontrar palavras equivalentes em duas línguas distintas, que possuem, cada qual, suas peculiaridades e universos semânticos, como as representações de mundo diferentes, por exemplo, que noções de tempo e de espaço podem acarretar, o que amplia ainda mais o desafio proposto. Citando Henry Wadsworth Longfellow, “o que um autor diz e como ele diz é que é o problema do tradutor”35. O tradutor deve, portanto, dar conta não só do que é dito pelo texto, mas também da forma como é dita. Significado e forma não podem passar despercebidos, nem ser ignorados pelo tradutor que deve levá-los em conta no seu trabalho tradutório.

Se ignorar a forma do texto e suas características narrativas, o tradutor literário estará colocando em risco a qualidade do texto traduzido, de forma que este não poderá ser considerado o “mesmo texto”, uma vez que perdeu suas características literárias. Da mesma forma, um texto traduzido que não conservasse o sentido do texto original causaria perdas muito grandes para o leitor. Assim, “o tradutor literário não pode se limitar a traduzir o sentido geral do texto, porém precisa

30DanicaSaleskovitch, Marianne Lederer, apud Oustinoff, 2011. 31BRITTO, 2012. 32LARANJEIRA, 1993. 33BRITTO, 2012. 34DERRIDA, 2002. 35Longfellow, apud Bassnett-McGuire, apud Rodrigues, 2000.

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reproduzir também as características do estilo do autor.”36. Cabe ao tradutor manter as características intrínsecas do texto. No caso da tradução apresentada neste trabalho, a característica primordial apresentada pelo texto-fonte era as marcas da oralidade que tentamos ao máximo conservar. Mas, como afirma Michaël Oustinoff (2011), ao debater a poética da tradução, “a forma não vem se sobrepor ao sentido: os dois são indissociáveis.”37

Dentro dos significados, esbarramos com um problema central nos estudos da tradução: o campo semântico não é constante em línguas diferentes: “a delimitação entre conceitos próximos, dentro de um mesmo campo semântico, se faz de modo diferente em línguas diferentes”38. Desta forma, como escolher os termos mais adequados ao longo da tradução? Mesmo em línguas com um grande parentesco, como o Português e o Francês, esta questão se impõe.

A tradução é, em primeiro lugar, uma operação lingüística. Nesse sentido, ela se aplica (...) não a unidades de contornos definitivamente estabelecidos, mas a unidades diferenciais, cuja particularidade é ser indefinidamente suscetíveis de serem vistas de novo como unidades ainda menores. Realmente, elas só têm validade por suas diferenças no seio do sistema da língua. É por esse motivo que palavras como ‘sea’ ou ‘mar’ (ou seu equivalente em qualquer outra língua) jamais quererão dizer exatamente a mesma coisa. Ao passar de uma língua para outra, somos sempre condenados a “dizer quase a mesma coisa” (...). É esse ‘quase’ que faz toda a diferença.39

Parodiando o título da obra de Umberto Eco, Oustinoff (2011) problematiza a questão do campo semântico diverso. Por mais que duas palavras de línguas diversas se espelhem, uma nunca vai corresponder completamente à outra. Sempre haverá um abismo entre as palavras, maior ou menor de acordo com os pares de línguas, mas que propõem um verdadeiro desafio para o tradutor.

Desta forma, como a equivalência é, no mínimo, um fator tênue, a tradução precisa lidar com a questão da transformação:

Efetivamente, toda tradução contém uma parte de transformação: “Porque a ideia absoluta e literal não faz verdadeiramente sentido em literatura (...) Nesse sentido, podemos dizer que a tradução de uma língua para outra é justamente uma forma de hipertextualidade porque ela é, por definição, uma imitação, a mais fiel possível, mas que evidentemente supõe alguma transformação.40

Alcançar a fidelidade total é uma missão impossível. Assim, o tradutor precisa aceitar a ideia de que haverá perdas e modificações ao longo da tradução. Este impasse se amplia ainda mais se pensarmos que

36BRITTO, 2012. 37OUSTINOFF, 2011. 38BRITTO, 2012. 39OUSTINOFF, 2011. 40RABEAU, 2002, apud OUSTINOFF, 2011.

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é impossível se ter acesso ao sentido único de um original, mesmo que exista de fato um texto único, já que os textos admitem múltiplas leituras; tampouco se pode ter acesso à intenção do autor a escrever o texto. (...) Assim, a própria ideia de fidelidade ao original cai por terra; não há um sentido estável no original a que ser fiel, e mesmo que houvesse tal coisa, o tradutor não poderia ter acesso a ela.41

Desta forma, “(...) o significado não é uma propriedade estável do texto, uma essência que possa ser destacada do texto e isolada de maneira definitiva”42. Não há, portanto, um sentido único e estável do texto-fonte, que o tradutor poderia acessar em suas leituras do texto. De certa forma, a tradução é, antes de mais nada, uma interpretação que o tradutor fez do texto-fonte, uma versão das várias versões possíveis de interpretação deste texto. Então, o que o tradutor oferece ao leitor é a sua interpretação. Assim como as leituras de cada livro variam de acordo com o leitor, as traduções de cada texto são diferentes entre si, pois variam em função das leituras/compreensões/interpretações do texto-fonte.

Indo além,

nossa tradução de qualquer texto, poético ou não, será fiel não ao texto ‘original’, mas àquilo que consideramos ser o texto original, àquilo que consideramos constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação do texto de partida, que será, como já sugerimos, sempre produto daquilo que somos, sentimos e pensamos.43

Ou seja, a leitura de um texto é condicionada ao próprio leitor. O que ele entende do texto passa pelo filtro de quem ele é, de seu conhecimento, de sua representação do mundo, da situação em que leu o texto, do estado emocional em que se encontra e de suas experiências de vida. Ora, o tradutor é, em primeiro lugar, um leitor do texto – leitor crítico, é verdade, mas ainda assim um leitor – e sua tradução estará sempre condicionada às mesmas variantes que forjam uma leitura de um texto. Assim, “é impossível resgatar integralmente as intenções e o universo de um autor, exatamente porque essas intenções e esse universo serão sempre, inevitavelmente, nossa visão daquilo que possam ter sido”44. Por mais que o tradutor se pretenda isento, invisível em sua tradução, haverá marcas de sua passagem pelo texto, através de suas escolhas lexicais e até a interpretação desta ou daquela expressão de fala.

Em Torres de Babel, Jacques Derrida descreve de forma quase poética o que é o tradutor:

O tradutor é endividado, ele se apresenta como tradutor na situação da dívida; e sua tarefa é de devolver, de devolver o que devia ter sido dado. Entre as palavras que correspondem ao título de Benjamim [a tarefa do

41BRITTO, 2012. 42Idem. 43ARROJO, 2000. 44Idem.

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leitor] (Aufgabe, o dever, a missão, a tarefa, o problema, o que é designado, dado a fazer, dado a devolver), está desde o início Wiedergabe, Sinnwiedergabe, a restituição, a restituição do sentido. Como entender uma tal restituição, até mesmo uma tal quitação? E o quê do sentido? Quanto à aufbegen, é também dar, expedir (emissão, missão) e abandonar.45

Aqui a imagem evocada é de um tradutor cuja missão é devolver um sentido ao texto, um sentido que lhe foi tirado justamente por ele não existir ainda na língua alvo. Desta forma, o tradutor faz a mediação entre o texto-fonte e o público que lerá o texto traduzido, restituindo um sentido neste texto que ele não havia anteriormente.

Perguntas essenciais para um trabalho tradução, ainda em seu começo, são: “quais as características mais importantes do texto, que devo tentar recriar de algum modo? (...) quais as características do texto original que podem de algum modo ser recriadas?”46. No caso do livro apresentado aqui, era importante preservar o estranhamento de algumas representações de mundo do autor e da cultura Fang. Além disso, preservamos avidamente as marcas de oralidade do texto, uma vez que consideramos que elas lhe dão a tônica.

Procuramos executar uma tradução o mais fiel possível do texto-fonte, buscando apresentar ao leitor um texto o mais próximo possível daquele com o qual tivemos contato, tanto do ponto de vista semântico quanto do ponto de vista formal.

Quando dizemos que o texto T1 é uma tradução do texto T, estamos dizendo uma coisa muito específica: que a pessoa que leu T1 pode afirmar, de modo veraz, que leu T. (...) Em suma: cabe ao tradutor, dentro dos limites do idioma com que trabalha, e de suas próprias limitações pessoais, produzir na língua-meta um texto que seja tão próximo ao texto-fonte, no qual diz respeito às suas principais características enquanto obra literária, que o leitor de sua tradução possa afirmar, sem estar mentindo, que leu o original.47

Assim, deve haver certa relação de correspondência entre o texto-fonte e o original, para que o leitor possa considerar que leu o original tendo lido uma tradução. O que procuramos, com esta tradução, é uma correspondência entre os textos, aproximada ao original – respeitando desde a escolha lexical do autor até as imagens que ele evoca – e que transmita a oralidade pulsante da obra. Não tivemos a pretensão de obter um texto final que fosse igual ao original, dada a impossibilidade da empreitada. Pois “em todos esses processos de tradução – intersemiótica, intralingual, interlingual – o que se busca é a equivalência entre a mensagem I [fonte] e a mensagem II [tradução], não a identidade absoluta, que, por definição, é impossível”48.

45DERRIDA, 2002. 46BRITTO, 2012. 47Idem. 48LARANJEIRA, 1993.

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Tendo delineado o que entendemos por tradução e pela tarefa do tradutor, passamos então à discussão das estratégias utilizadas ao longo do trabalho tradutório.

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ESTRATÉGIAS DE TRADUÇÃO

Traduzir é aventurar-se em terras estrangeiras. Nossa aventura na tradução do livro “O Mvett” foi ainda maior, porque optamos por começar diretamente pela prática tradutória, para apenas depois passarmos a nos debruçar sobre a teoria. Foi quando encontramos consonâncias entre nosso pensamento e o de teóricos da tradução, que defendem os mesmos tópicos nos quais acreditamos.

Procuramos, em nosso trabalho tradutório, uma maior aproximação em termos semânticos e formais com o texto original, no sentido de mantermo-nos ao máximo fiéis a ele sem, no entanto, desatentar das características literárias que ele apresentava, como no caso do estranhamento, que lutamos para preservar. Salvo raras exceções, procuramos manter o sentido e a forma sem nos amarrarmos às categorias gramaticais e buscamos ao máximo tirar proveito da transparência entre as duas línguas latinas.

Ao entrarmos em contato com as diferentes estratégias da tradução, pudemos perceber que, ao longo de nosso trabalho, utilizamos não apenas uma, mas várias delas, uma vez que cada problema de tradução demandou uma solução diferente. Batalha e Júnior (2007, 33-34) apontam que há diversas estratégias para se abordar em uma tradução: a tradução palavra por palavra (ou literal), o empréstimo, o decalque, a transposição, a modulação, a equivalência e a adaptação.

Tendo em vista a proximidade entre a língua de origem e a língua alvo – Francês e Português respectivamente –, justamente por terem origem românica, por vezes a tradução literal foi possível. Um exemplo é a tradução da frase “Je rends exécutoire la proposition d’Engouang Ondo"49, que, traduzida literalmente resulta em "eu torno executável a proposição de Engouang Ondo". Porém esta estratégia não foi utilizada em larga medida, uma vez que ela se distancia da construção de sentidos e não atenta para esta ou aquela especificidade literária do texto. Como seria o caso de se traduzir “Ramène à la raison les ennemis ‘aux oreilles dures’”50 literalmente por “Traz à razão os inimigos de ‘orelhas duras’”: em Português, o termo “orelhas duras” não passa a mesma teimosia que “oreilles dures”.

A modalidade de empréstimo também foi utilizada ao longo da tradução, uma vez que, em casos de termos sem tradução para o Português, precisamos recorrer à forma francesa das palavras. Exemplo desta modalidade é a tradução de fourous51, que resultou na mesma palavra, uma vez que estes insetos são endêmicos da África e, portanto, não existem nem no solo nem no imaginário brasileiro. Nossa tradução foi sustentada pelo fato de, em língua inglesa, os insetos mantiveram o nome

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Página 153 do texto-fonte e 123 da tradução. 50 Página 23 do texto-fonte e 15 da tradução. 51Página 29 do texto-fonte e 17 da tradução.

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francês. Aqui, portanto, realizamos um empréstimo dos termos, já que nos vimos impossibilitadas de traduzi-lo.

Dentro da tradução do “O Mvett”, pudemos identificar trechos de decalque, que seria a forma de traduzir uma expressão ou palavra da língua originária de maneira literal, transpondo seus elementos um após o outro. Embora não se encaixe quando se trata de um texto longo, este recurso tradutório se mostra útil ao lidar com termos isolados, como no caso daqueles que não possuem equivalente na língua alvo. Um exemplo: o chasse-mouches52, não existindo na cultura brasileira como o cetro que designa, foi traduzido literalmente por “caça-moscas”. Discutiremos mais longamente esta opção adiante.

Em poucas ocasiões precisamos nos valer da transposição, que ocorre quando uma categoria gramatical substitui seu correspondente semântico na língua de partida, ou seja, quando há alteração gramatical para preservar o significado do período. Este caso aparece na modificação das estruturas frasais com verbos no presente do indicativo que, no Francês, indicam também a continuidade de uma ação, para estruturas com o verbo no gerúndio. Como no caso da passagem “je rève”, no presente contínuo, que se transformou no gerúndio “estou sonhando”53. Os casos de transposição serão discutidos mais largamente no próximo capítulo.

Caso semelhante é o do uso da estratégia de modulação, que apresenta uma opção sintática diferente de uma língua para outra, sem que esta modifique o sentido, mas que contribui para que a tradução soe mais próximo ao que se esperaria na língua alvo, sem causar estranhamento ao leitor. Exemplo disso é a modulação que operamos em certas construções que levavam o pronome relativo francês que, transformando-as em frases de voz passiva, para torná-las mais adaptáveis ao contexto de fala brasileiro. Assim, a frase “Ils habitent la grande vallée qu’entoure la chaîne de montagnes Enik-Ba”54 foi traduzida por “Eles habitam o grande vale circundado pela cadeia de montanhas Enik-Ba”.

Em casos isolados, utilizamos a modalidade de tradução chamada equivalência. Nela, há uma modificação total do enunciado em ordem de fazer valer o seu significado. Este é o caso da expressão bouche à oreille55 que transformou-se em “boca a boca”, que completa o sentido de uma notícia que viaja rápido, de uma pessoa para outra por via oral. A tradução literal de “boca a orelha” não seria capaz de construir o mesmo sentido daquela escolhida por nós. Neste caso, nos orientamos pela preocupação de encontrar uma expressão em português dentro do campo semântico do corpo humano, preservando assim aquele proposto pelo autor.

Na medida em que nos mantivemos fiéis ao texto-fonte, procuramos não recorrer à adaptação, forma tradutória que seria uma espécie de ampliação de 52Página 28 do texto-fonte e 17 da tradução. 53

Página 79 do texto-fonte e 61 da tradução. 54 Página 74 do texto-fonte e 56 da tradução. 55Página 142 do texto-fonte e114 da tradução.

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equivalência, utilizada quando não há referencial no universo cultural dos falantes da língua alvo. Esta estratégia poderia ser utilizada na questão previamente apresentada do termo “fourous”, e propor uma tradução para “butuca”, que não é o mesmo animal, mas que passa a ideia de picada dolorida ao leitor brasileiro. Porém, quando nos deparávamos com problemas desta ordem, preferimos usar do decalque, da tradução literal e dos empréstimos, explicando minimamente o termo em nota de rodapé.

Assim, podemos notar uma grande variedade de recursos utilizados ao longo da tradução, para dar conta dos problemas impostos, na medida em que estes apareciam. Tendo em vista as estratégias utilizadas, passamos, a seguir, a uma discussão mais ampliada dos problemas de tradução.

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3. PROBLEMAS DE TRADUÇÃO

Apenas depois de fazermos uma leitura crítica da obra de Tsira Ndong Ndoutoume e de uma breve análise de seus pontos principais que passamos ao trabalho tradutório em si. A tarefa não foi fácil, pois nos deparamos com uma gama de problemas de tradução que demandaram discussões e escolhas significativas.

A primeira barreira encontrada na tradução foi a escolha entre a repetição de nomes e de pronomes proposta pelo autor, ou de sua supressão em favor de um texto mais fluido. Em textos de língua portuguesa é comum que haja uma cadeia de referência anafórica ou catafórica, quando se trata da nomeação de um sujeito, para que as repetições sejam evitadas, o que deixa o texto mais truncado. Em “O Mvett”, Tsira Ndong Ndoutoume utiliza-se largamente da repetição dos nomes – dos nomes completos dos personagens, aliás –, usando uma cadeia de referências mais estreita. A explicação pode girar em torno do caráter oral do texto, que pede repetições, criando fórmulas que, quando repetidas, avivam a memória dos ouvintes. Estas repetições também marcam uma cadência no texto-fonte e, assim sendo, preferimos mantê-la, por mais que fuja das normas de redação e de coesão do texto. Conforme Britto (2012):

Mas quando se trata de obter um efeito de oralidade, é importante que o pronome seja explicitado, pois é assim que procedemos na nossa fala cotidiana (...) há que levar em conta que efeito de oralidade não é a mesma coisa que transcrição da fala oral; se o tradutor repetir os pronomes a ponto de incomodar o leitor, de nada adiantará argumentar que as pessoas de fato falam assim. A boa marca de oralidade é aquela que provoca um efeito de verossimilhança sem chamar demais atenção para si própria.

Assim, buscamos respeitar a marca de oralidade proposta pelo texto, para que ela fosse passada no texto traduzido. Não houve necessidade de interferir nas repetições, posto que elas não chegaram a ser incômodas para a fluência da leitura.

Um exemplo da marca de oralidade do texto são as várias formas de grafia utilizadas para os mesmos nomes próprios, por exemplo, o lugar onde começa a ação que chama-se Nkobam56 e, uma página depois, aparece grafado com dois “a”, Nkobaam. Ora, são vários os exemplos de nomes próprios que apresentam diferentes grafias ao longo do texto. Se tivéssemos optado por padronizá-los, acabaríamos interferindo no texto em sua forma, portanto, preferimos garantir a variedade de formas de escrita dos nomes e fizemos uma nota de rodapé explicando que o autor se valeu deste recurso.

A pontuação apresentada no texto era pouco ortodoxa. Porém, entendemos esta forma de pontuar como uma marca da oralidade. Desta forma, mesmo tendo

56 Página 27 do texto original e 17 da tradução.

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consciência da diferença da organização textual entre a língua fonte e a língua alvo, sobretudo no que diz respeito ao uso das vírgulas, preferimos manter o texto, ao máximo, próximo de suas marcas orais. Novamente, optamos por preservar os traços de oralidade, distintivo do texto, e oferecemos ao leitor uma nota de rodapé explicativa.

Outro exemplo é a certa descontinuidade no registro que o autor utiliza ao longo do texto: ora ele utiliza termos e expressões coloquiais, ora utiliza um vocabulário mais formal, com palavras que não são do uso corrente na língua francesa de todos os dias. Ora, como a tradução aqui apresentada se pretende, se não fiel, ao menos próxima do texto-fonte, optamos por conservar a variedade lexical apresentada pelo autor, mesmo que ela cause certo estranhamento no texto e, por vezes, um certo desconforto na leitura. Um exemplo disso é o termo volatiser57, termo pouco utilizado tanto em francês, quanto em português fora dos laboratórios de química. Como, porém, o autor usa recorrentemente esta palavra, para definir o que deve acontecer com o ferro no planeta, optamos por conservar seu equivalente da língua de origem na língua-alvo.

Assim, após decidir as questões que nortearam a tradução ao longo do texto, pudemos passar a problemas tradutórios mais localizados, como no caso de termos e expressões. De início, na apresentação do texto, de autoria também de Tsira Ndong Ndoutoume, tivemos de optar pela tradução de dois termos em língua francesa (nègre e noir) como apenas um termo em língua portuguesa (negro). Nègre traduz-se por negro, enquanto Noir seria preto. Este termo, porém, se enquadra no politicamente incorreto quando se trata de raça, por ter em si uma forte carga de preconceito racial. Desta forma, optamos por deixar na tradução apenas o termo “negro”, tratando a questão racial de forma neutra.

O personagem de Medang-Boro Endong possui um calao bicorne58 alojado em sua orelha esquerda. Em um primeiro momento tivemos dificuldades para encontrar um termo português que traduzisse o nome da ave, pois sendo típica dos territórios africano e asiático, não é natural do solo brasileiro. Porém uma pesquisa por seu nome científico, Buceros bicornis, nos levou ao equivalente português: “calau bicórnio”, o que resolveu o problema.

Porém na frase: “Des armées de fourmis magnans aux pinces menaçantes partaient à la conquête de gîtes nouveaux”, o termo fourmis magnans é o nome popular para o gênero as formigas dorylus spp. Como estes insetos são de um gênero apenas existente na África, seu nome não tem tradução para o português. Para solucionar este problema, recorremos ao termo científico dorylus que, por ser latinizado é universal para a nossa tradução. A frase em português ficou, portanto, 57 Primeira aparição do verbo, estando no particípio, na página 35 do texto-fonte e 23 da tradução. 58 Página 14 da tradução, como calao. O termo está na página 23 do texto original. Nos referimos apenas às primeiras aparições dos termos no texto.

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“Exércitos de formigas dorylus de pinças ameaçadoras partiam para a conquista de novos abrigos”.

No trecho “Bientôt le noir vira au bleu touraco et du bleu touraco au rouge queue de perroquet”59 traduzimos as cores bleu touraco que faz referência ao azul vibrante do pássaro turaco e rouge queue de perroquet literalmente para “azul-turaco” e “vermelho-cauda-de-arara”, guardando a referência do mundo animal feita pelo autor. Optamos por preservar o campo semântico, pois a narrativa tira força da fauna e da flora locais e suprimir dados como este seria roubar sentidos do texto. No caso do pássaro turaco, por se tratar de um animal que não faz parte do imaginário brasileiro, redigimos uma breve nota de rodapé, explicando que a ave é da ordem dos Musophagiformes, típica da África sub-sahariana, de intensa coloração azul.

Uma onomatopeia no texto-fonte (les hui! hui! d’un chasseur60) foi perdida durante a tradução. Ao invés de traduzirmos os gritos, optamos por traduzi-los apenas por “os gritos”, uma vez que não encontramos qual seria o equivalente para estes ruídos na língua alvo. A tradução do trecho ficou, portanto: “Ao longe, na montanha cheia de erva, eram ouvidos os latidos de cachorros, o som dos guizos e os gritos de um caçador perseguindo a caça.”

O caso da expressão c’est un homme de palabres61, a tradução literal “é um homem de palavras” não é adequada, uma vez que palabres refere-se não à tradução literal do termo, mas a uma assembleia de homens da tribo, que se reúne para deliberar assuntos importantes. A tradução encontrada para este termo, que inexiste em língua portuguesa, foi: “É um homem da assembleia da Árvore da Palavra”, de forma a evidenciar a reunião feita. Problema semelhante o termo la tribu de Palabres62 trouxe à tradução. Neste caso e nos demais envolvendo o termo palabre, repetimos a solução da primeira ocorrência e adaptamos as frases para o termo “assembleia”.

Na descrição do personagem Medza Metougou Endong, o autor diz que ele “Ramène à la raison les ennemis ‘aux oreilles dures’”63, o que significa que ele traz à razão os teimosos. A tradução literal neste caso também não se encaixa, pois “orelhas duras” não é equivalente a “teimosos” em português. O primeiro reflexo foi, então, de transformar esta expressão (que o autor deixa marcada como expressão popular, ao utilizar aspas no texto) em um equivalente na língua alvo, algo como “cabeças duras”, porém, esta transformação implicaria perder o campo semântico do ouvir/orelhas. Assim sendo, optamos pela solução: “Traz à razão os inimigos de “que

59

Página 38 do texto-fonte e 26 da tradução. 60

Página 26 do texto-fonte e 16 da tradução. 61 Página 23 do texto-fonte e 15 da tradução. 62 Página 37 do texto-fonte e 25 da tradução. 63 Página 23 do texto-fonte e 15 da tradução.

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não querem ouvir”, que perde a força de expressão cristalizada, mas mantém o campo semântico.

Mas no caso da expressão “les fiançailles et les mariages vont bon train”64, sendo pouco provável manter seu campo semântico, entendemos ser melhor adaptar a expressão popular para seu correspondente na língua-alvo, obtendo, assim: “os noivados e os casamentos vão de vento em popa”.

Exemplo similar é da tradução de “Il faut, dit-il avec un sourire, que je sois devenu une vraie poule pour avoir peur”65; neste caso, recorremos ao termo “frangote”, na tradução de poule (galinha), para obter um sentido semelhante do gerado na língua de origem, sendo que, em ambos os casos, as imagens são constituídas por expressões populares que definem aquele que sente medo como um membro da família dos galináceos. A tradução dos períodos ficou, portanto: “é preciso, ele disse a si mesmo com um sorriso, que eu tenha virado um verdadeiro frangote para ter medo”.

A primeira tradução para o termo “le magicien de Engong”66 seria “o mágico de Engong”. Porém optamos por utilizar a palavra “mago”, uma vez que “mágico” carrega em si um aspecto mais lúdico da magia, nos remetendo aos mágicos de festas e de televisão. Assim a imagem que impõe respeito de um magicien d’Engong ficaria perdida caso esta fosse nossa solução. Desta forma, a opção por “o mago de Engong” conserva o respeito imposto e se aproxima mais da imagem evocada no livro, de alguém que se aproximaria da nomenclatura de xamã ou de pajé.

O termo corps-de-guarde67, amplamente utilizado no texto, ofereceu dificuldade para ser traduzido. Na África, o corps-de-guarde é uma espécie de guarita, situada na entrada da aldeia, de onde os homens vigiam a entrada e a saída dos estrangeiros e onde também eles se reúnem para fumar cachimbo e conversar. É ali que o tocador de mvett agrega seu público para partilhar suas epopeias. Em um primeiro momento, optou-se pela tradução literal “corpo da guarda”, mas ao ser confrontada pela dúvida da construção de sentido deste termo que define um lugar onde os homens da tribo se congregam para escutar histórias, escutar o tocador de mvett, fumar cachimbo e também fazer a guarda da entrada da tribo, optamos pelo termo “guarita da aldeia”, que embora apresente perdas de sentido, pois uma guarita no Brasil é um lugar pequeno, para um ou dois seguranças fazerem a guarda de um território, oferecia mais possibilidades de construção de sentido. Porém, em uma conversa com membros do Exército Brasileiro, o termo “corpo da guarda” veio à baila, corroborando para o retorno à primeira alternativa de tradução, uma vez que o termo militar é de uso contínuo neste meio e designa um lugar de reunião, maior do que uma simples guarita.

64 Página 26 do texto-fonte e 17 da tradução. 65 Página 38 do texto-fonte e 26 da tradução. 66 Página 24 do texto-fonte e 16 da tradução. 67 Página 26 do texto-fonte e 16 da tradução.

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A seguinte construção ofereceu grande dificuldade na sua tradução: “Obame Ndong se leva, secoua son chasse-mouches et dit”68. O problema apresentado aqui é que o termo chasse-mouches, existiria em tradução literal para o português, porém designa um objeto completamente diferente do referido no texto-fonte. O “caça moscas” brasileiro é um objeto para, de fato, caçar moscas e matá-las, já o chasse-mouches africano é um cetro ligado à figura de realeza que indica que quem o possui tem poder e está acima dos outros. Como os dois termos são absolutamente diferentes, optou-se pela tradução: “Obame Ndong se levantou, sacudiu seu cetro caça-moscas e disse”, que evidencia a natureza real do objeto, pela utilização do termo “cetro”, e conserva-se seu uso de espantar os insetos. Além disso, inserimos uma nota de rodapé explicitando a natureza do objeto africano.

Porém o termo “fourous”69, que designa insetos dípteros próprios da África, assemelhados a uma pequena mosca, permaneceu sem tradução, uma vez que não foi encontrada tradução possível para o português e, quando ele é referido em língua inglesa, seu nome continua sendo fourou. Fizemos, então, uma nota de rodapé para explicar o que é este pequeno animal.

A expressão “Sonnez le cor”70 apresentou resistência para a tradução. O termo cor designa o instrumento musical trompa. Este instrumento, porém, não faz parte da herança africana, sendo que a alternativa “corneta” se aproxime mais do instrumento que designa.

Outro termo que ofereceu um grande desafio para a tradução foi o “pagne” em “la couleur du pagne”71. Este termo designa uma peça de tecido ou de material vegetal trançado, geralmente retangular, com a qual uma pessoa cobre seu corpo da cintura até as coxas. Discutimos a possibilidade de utilizar “saiote” ou “canga”, porém ao utilizá-los, sofreríamos perdas significativas no que trata da questão cultural africana, pois eles não a exprimem. Porém, não obtendo uma solução mais completa, optamos pela palavra “saiote”.

No trecho “Ntoutoume Mfoulou tripotait déjà um gigantesque nerf d’hippopotame”72, precisamos recorrer à adaptação, uma vez que nerf d’hippotame, embora pudesse ser traduzido literalmente, não é algo que exista no imaginário de um leitor brasileiro. Se trata de um objeto de tortura, que inflige grande dor na vítima, feito a partir do trançamento de nervos de hipopótamo. Ora, se tal instrumento não existe no Brasil, não há porque traduzi-lo literalmente. Optamos, então, por “cassetete”, palavra que transpassaria algo do medo imposto pelo instrumento de tortura.

68

Página 28 do texto-fonte e 17 da tradução. 69 Página 29 do texto-fonte e 17 da tradução. 70 Página 31 do texto-fonte e 20 da tradução. 71

Página 10 do texto-fonte e 2 da tradução. 72

Página 139 do texto-fonte e 108 da tradução.

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Outro problema encontrado ao longo do trabalho tradutório foi a frase “Le sanglier ne se dit jamais gras, pas plus que l’éléphant ne se vante d’être gros73". Aparentemente, esta frase faz parte do imaginário fang, porém seu significado tanto para um informante francês, quanto para a tradutora, não se fez evidente em uma primeira leitura. Se analisadas, as palavras gras e gros têm o mesmo significado, sendo adjetivos que designam grande massa corporal, ou em bom português, “gordo”. Ora, se a mesma palavra em português fosse utilizada na comparação entre o javali (sanglier) e o elefante (éléphant), a expressão ficaria redundante e teria o significado prejudicado. Optamos, então pela seguinte solução: “O javali nunca se diz gordo, assim como o elefante não se vangloria de ser grande.”

Outro problema que se tornou evidente na tradução diz respeito ao estranhamento que a cultura africana, por inserir elementos de um imaginário pouco explorado no Brasil, traz. O caso mais latente é o da relação espaço-temporal que se apresenta de forma diferente da que estamos acostumados. No livro, em um salto, era possível ir de um país a outro em determinado momento, enquanto em outro, eram necessários vários dias de viagem. As relações temporais também são distintas das nossas e o tempo é marcado através da quantidade de luas ou de estações secas e chuvosas passadas. Nestes casos, optamos sempre por preservar o estranhamento causado, como nos trechos de luta em que os antagonistas se perseguiam por meio de saltos prodigiosos, mas que, na volta do caminho, levavam dias em um percurso a pé.

Em “Enfonçant l’orteil mâle du pied droit dans le sol, il se catapulta si prodigieusement dans les airs que son échine frôla la voûte céleste"74 o termo orteil male du pied droit causa grande estranhamento, pois o dedão do pé é adjetivado com o termo “masculino”. Embora a marca de gênero cause estranhamento na leitura, tanto em francês quanto em português, optamos por conservá-la, uma vez que o autor escolheu sua utilização mesmo sendo incomum em língua francesa e a escolha ocorre duas vezes no texto75. Assim, o estranhamento obtido na língua de origem é mantido na língua alvo, sem que a frase passe por simplificações. A tradução resultou em: “Empurrando a ponta do masculino dedão do pé direito no chão, ele se catapultou tão prodigiosamente nos ares que sua coluna roçou a abóbada celeste”.

No trecho “Il est accompagné d’Ela Minko M’Obiang, son adjoint” usamos de modulação e, ao invés da palavra adjunto, que seria a tradução literal, mas que não indicaria muito a um falante de português brasileiro, optamos pelo termo “braço direito”. Discutimos a possibilidade da inserção de “imediato” na tradução, uma vez que é a mesma função de um “braço direito”, porém por se tratar de um termo de um léxico muito específico, o náutico, optamos por um com o sentido mais amplo.

73 Página 64 do texto-fonte e 48 da tradução. 74 Página 88 do texto-fonte e 69 da tradução. 75 Na página 107 do texto-fonte e 85 da tradução.

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Outro problema que causou impasse à tradução foi a presença, mesmo que pequena, de erros de ortografia. O termo fragellés foi particularmente desafiador, uma vez que pesquisamos com afinco possíveis significados da palavra, com retorno nulo, até constatarmos que poderia ser uma palavra mal grafada. O trecho “les membres fragellés, le cerveau traversé par des éclairs fulgurants, Eyenga Nkabe sent le sol se dérober sous ses pieds”76 não dá muitos indícios contextuais do que poderia ser fragellés. Após pesquisas infrutíferas, nos deparamos com a possibilidade da palavra ser, na verdade, flagellés, o que faz sentido na frase. Desta forma, optamos por flagelados e a tradução ficou: “Com os membros flagelados, o cérebro atravessado por relâmpagos fulgurantes, Eyenga Nkabe sente o chão fugir de seus pés”.

Além dos desafios de ordem lexical, encontramos alguns de ordem morfossintática. Como é exemplo o trecho: “Le sifflet magique arraché, Nkame Mbourou le porta à ses lèvres.” 77, no qual o primeiro período designa uma ação no tempo. A tradução literal, que levaria em conta apenas o particípio do verbo arracher/arrancar não teria seu sentido completo. Optamos, então, por inserir um advérbio temporal no texto (“após”) e um verbo auxiliar (“ter”) para passar a noção de ação que aconteceu: “Após ter arrancado o apito mágico, Nkabe Mbourou levou-o a seus lábios”. Neste caso, precisamos inserir elementos na oração do texto original para que a marcação de tempo, conseguida apenas com um particípio na língua fonte, fosse preservada.

Outra alteração importante que precisamos operar foi a transformação de tempo verbal no caso de “je rève”78, cujo verbo se apresenta no presente contínuo do indicativo que, na língua fonte, indica uma ação que está sendo realizada. Para sua transposição na língua portuguesa, utilizamos o gerúndio “estou sonhando”, para deixar claro que a ação era descrita durante seu desenrolar.

No caso de orações com o pronome relativo “que”, optamos, por vezes, fazer uma inversão de vozes ao invés de traduzi-las como subordinadas. Assim, a frase “Ils habitent la grande vallée qu’entoure la chaîne de montagnes Enik-Ba”79 transformou-se em “Eles habitam o grande vale circundado pela cadeia de montanhas Enik-Ba.” Outro exemplo é o caso de “La chaîne de montagnes Enik-Ba se trouve au pays que baigne le soleil” que se transformou em “A cadeia de montanhas Enik-Ba encontra-se no país banhado pelo sol”. Estas alterações foram feitas na ordem de dar mais fluência ao texto; deixá-lo mais “natural” aos falantes do português.

Esta discussão não exaustiva de alguns dos problemas de tradução mais desafiadores que encontramos ao longo do percurso ilustra a variedade de 76

Página 53 do texto-fonte e 38 da tradução. 77 Página 40 do texto-fonte e 27 da tradução. 78 Página 79 do texto-fonte e 61 da tradução. 79 Página 74 do texto-fonte e 56 da tradução.

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estratégias utilizadas para solucioná-los, o que exemplifica a forma com que entendemos o processo tradutório. Nos valemos de decalque, da transposição, da modulação, da equivalência e, em um caso particularmente desafiador, da adaptação. Assim que estes problemas se apresentavam, procuramos discuti-los e encontrar as soluções que fossem mais fiéis ao texto-fonte, sem nos afastar do campo semântico deste, mesmo que as soluções propostas demandassem alterações no campo da forma.

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CONCLUSÃO

Em primeiro lugar, a tradução de um livro como “O Mvett” se faz premente não apenas pela imposição legislativa de dar a conhecer aos alunos do ensino público e privado as raízes africanas que reverberam em nossa história, mas também no que tange a importância da obra para o imaginário africano e a ponte que ela pode fazer entre as culturas africana e brasileiras, ao inserir nesta um repertório cheio de situações e cenas maravilhosas. Essa obra se insere no próprio imaginário africano, que admite sua importância para as criações literárias que vêm depois, uma vez que Tsira Ndong Ndoumou inovou na narrativa, ao transformar uma epopeia de origem oral em um texto escrito, e foi ainda mais ousado ao escolher a língua dominadora de seu povo para expressá-lo.

Assim, nos lançamos à tarefa de traduzir as linhas de Tsira Ndong Ndoumou, privilegiando as estruturas linguísticas comuns entre a língua de partida e a língua alvo, como forma de nos mantermos fiéis ao texto-fonte. Diversas foram as estratégias de tradução utilizadas ao longo de nosso trabalho, desde a tradução por vezes literal, até seu oposto, a equivalência, passando pelo decalque, pelos empréstimos, pela transposição e modulação, sempre procurando passar a nosso leitor a mesma sensação de estar no corpo da guarda, escutando, em ritmo cadenciado, uma epopeia maravilhosa e incrível, como a vontade do escritor mandava.

Enfrentamos diversos problemas de tradução ao longo do caminho, uma vez que o imaginário africano não dialoga largamente com o brasileiro, o que fazia faltar termos exatos que exprimissem as relações pretendidas pelo autor. Sobre esses problemas, nos debruçamos e optamos por soluções nem sempre de todo satisfatórias, porém todo tradutor precisa lidar com perdas em suas traduções, já que as línguas, por mais próximas que sejam, não apresentam equivalência total no campo semântico.

Esta é, porém, uma realidade no trabalho do tradutor, que vai além da função de dicionário bilíngue, que é capaz de apontar traduções desta ou daquela palavra, ao reconstruir um texto, com seus efeitos estéticos, com seus estranhamentos, com suas marcas de oralidade. Como Derrida (2002) aponta, “a tradução não é nem uma imagem, nem uma cópia”, ela é outra coisa, que beira a própria reescritura, não no sentido de modificar ou subverter os sentidos que o autor suscitou, mas no sentido de que a tradução é uma operação que vai modificar todas as palavras de um texto, passando-o de uma língua para outra, mas mantendo-se a mesma coisa, ou, para citar Umberto Eco, quase a mesma coisa.

Traduzir “O Mvett” aumentou nosso campo de visão sobre a cultura africana e inseriu em nosso imaginário um novo mundo de cores e formas. Porém, mais

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especificamente, o trabalho tradutório exigiu o desenvolvimento de um pensamento linguístico mais ágil, bem como a problematização das questões mais desafiadoras. Sem dúvida, a tradução ampliou nosso conhecimento lexical, sintático, semântico e pragmático da língua francesa, com ênfase na língua francesa da África. Constante descoberta, o trabalho de traduzir uma obra como “O Mvett” nos fez pensar em questões que antes apenas “intuíamos”, como o que significa traduzir, qual é o papel do tradutor e como resolver problemas significativos de tradução.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução. São Paulo: Editora Ática, 2000.

BATALHA, Maria Cristina; PONTES JR, Geraldo. Tradução. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.

BRITTO, Paulo Henriques. A tradução Literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Tradução: Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

ECO, Umberto. Quase a mesma coisa. Tradução: Eliana Aguilar. Rio de Janeiro, Best Bolso, 2011.

BÂ, Amadou Hampaté. L’étrange destin de Wangrin. Paris: 10-18, 1992.

LARANJEIRA, Mário. Poética da tradução. São Paulo: Edusp,1993.

NDOUTOUME, Tsira Ndong. Le Mvett. Paris: Presence Africaine, 1983.

OUSTINOFF, Michaël. Tradução: história, teorias e métodos. Tradução: Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2011.

RODRIGUES, Cristina Carneiro. Tradução e diferença. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

STEINER, George. Depois de Babel. Tradução: Carlos Alberto Faraco. Curitiba: Editora UFPR, 2005.

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ANEXO I: O MVETT

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O mvett

Epopéia fang

Apresentação

Este é um livro bem oportuno, pois o Gabão, rico em literatura oral, tem o dever de

assegurar sua conservação e proteção.

Nosso país esta impregnado até os ossos de uma autêntica cultura negro-africana.

Em todo lugar as tradições e filosofia de nossos pais, os feitos elevados de nossos

antepassados, as lendas e o passado histórico revivem nas várias ocasiões de vida e morte,

no ritmo cadenciado do tantã, através dos cantos e danças, cujas origens pulsam através do

tempo.

Mas ao mesmo tempo em que esta cultura, que é a nossa, ainda permanece viva,

ela nos impõe um dever urgente e excitante: fazê-la conhecida a nível universal.

Certo número de gaboneses já se atrelou a esta tarefa. Os ensaios de Ndouna

Depenaud, de Pounah, de Meye e de tantos outros constituem um verdadeiro tesouro

documental.

Agora, Tsira Ndong Ndoutume lança pela Editora “Présence Africaine” esta obra

importante sobre o “Mvett”, do qual ele próprio é um excelente artista.

Lendo este livro, você descobrirá a astúcia, a densidade de pensamento do homem

gabonês que o talento do escritor soube desenvolver perfeitamente.

De outra parte, você não deixará de, junto com o autor, escapar para este país de

mistérios que é Engong e de partilhar as maravilhas que o “Mvett” suscita.

Esta busca por nossos valores culturais é, para mim, uma obra de interesse nacional

e meu apoio foi conquistado por todos que, como Tsirta Ndoung Ndoutoume, estão focados

na preservação da originalidade e da personalidade gabonesa.

Albert-Bernard Bongo, presidente da República Gabonesa80

80 Albert-Bernard Bongo foi presidente entre 1967 e 2009. Seu mandato acabou com sua morte. (N.d.T.)

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INTRODUÇÃO

No momento em que o autor escreve estas linhas, o problema da cultura negro-

africana já fez e continua fazendo correr muita tinta através do mundo. Atual centro de

interesse dos homens cultos de todos os continentes, este problema tornou-se tão instigante

que os próprios africanos permanecem, às vezes, petrificados diante da atividade febril que

estes pesquisadores desenvolvem.

Inicialmente era uma verdadeira corrida e não era raro encontrar no mercado uma

infinidade de documentos escritos apressadamente na esperança de chamar atenção e

fazer fortuna. Alguns autores, mais ousados, tentaram penetrar na cultura negro-africana,

mas encontraram uma série de obstáculos mais ou menos intransponíveis: postos, religiões,

línguas, falta de documentos históricos, tradições essencialmente orais com formas de

expressão muito complexas...

Reconheçamos, contudo, que um trabalho apreciável foi realizado por uns e outros,

sobretudo no domínio da preservação dos valores culturais negro-africanos.

Mas o que o mundo aguardou com impaciência foi que os próprios Africanos

“falassem”. Pois, apesar dos esforços dispensados e mesmo dos capitais engajados, a

matéria foi pouco tratada. Ela permaneceu intacta, secreta, impenetrável.

É papel dos Africanos, portanto, quebrar a casca, eclodir a semente e ritmar os

tantãs à luz do sol com baquetadas... e canetadas. E é isto que eles fazem hoje.

Pode-se perguntar o que os Africanos esperavam para trazer ao edifício do universal

a pedra tão preciosa de seu patrimônio cultural. Compreende-se mal a África, sobretudo a

África Negra e os Africanos. Ou então, finge-se não os compreender. Sufocada por vários

séculos de escravidão, amordaçada, alienada, despedaçada pelo imperialismo e pelo

colonialismo, a África fechou-se nela mesma para guardar inviolado aquilo que nem as

armas, nem o dinheiro poderiam roubar: sua cultura.

Aí esta uma grande vantagem, pois o Negro penetrou na cultura ocidental e, assim,

mantém-se entre dois mundos. Que isto não surpreenda ninguém: séculos de dominação,

opressão e exploração moldaram o Negro. Ele capta tudo, ouve tudo, decifra tudo. A

natureza canta nele e o faz vibrar. Senghor tem muita razão quando diz: “... para os Negro-

africanos tudo é signo e sentido ao mesmo tempo, cada ser, cada coisa, mas também a

matéria, a forma, a cor, o odor e o gesto, o ritmo e o timbre: a cor do saiote, a forma da kora,

o desenho das sandálias da noiva, os passos e gestos do dançarino, a máscara, o quê

mais?”81.

81 Texto posfácio de Ethiopiques, Editions du Seuil.

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A África, que começa a se libertar do jugo colonial, ao mesmo tempo em que

continua a combater o neocolonialismo, esta longe de ser um continente de intelectuais sem

raízes. Se os negros têm necessidade das línguas ocidentais com vocação universal para

levar ao mundo seus recursos culturais, é porque os ocidentais desprezaram as línguas

africanas ao impor as suas. Acreditaram que desta forma despersonalizariam a África, a

“ocidentalizariam” ao ponto de fazê-la esquecer e perder seu rico patrimônio, e exporiam à

luz do dia a prova da inexistência neste continente de qualquer cultura. Talvez tivessem

conseguido se sua ganância aguda pela tentação demasiado forte por uma mão de obra

gratuita não os tivesse obrigado a oferecer o ensino com conta-gotas e mandar apenas

alguns negros “excepcionalmente dotados” às universidades metropolitanas. O resultado foi

que a África permaneceu africana. Os Negros que impregnaram-se com as culturas

importadas têm obrigação de “retornar à fonte”, se eles querem entregar ao mundo os

segredos da floresta, da savana e da planície.

O autor retornou, ele também, à fonte. Ele se prestou aos ritos de iniciação, aos

exercícios e às práticas da tradição oral com a naturalidade e o candor bastante raros para

os Africanos que se sentaram nos bancos das escolas ocidentais. Esta atitude não deixava

também de inquietar um pouco seus “mestres” da aldeia, divididos entre o orgulho de ter de

volta este filho que acreditavam perdido para sempre, ao confiá-lo aos Brancos, e o temor

de vê-lo retornar definitivamente à tradição, com o risco de abandonar – o que já foi visto

antes – o cargo ao qual eles o haviam destinado e que deveria servir de vínculo entre o

colonizador e o colonizado. Mas, sobretudo, eles temiam – e este era o ponto mais

importante – que suas funções de diretor de escola o levassem a ensinar as crianças o que

ele aprendia na aldeia sem levar em conta os usos em vigor. Eles não cessavam, cada vez

que a escola fechava suas portas, de perguntar aos alunos o que eles haviam aprendido.

Satisfeitos de não terem sido traídos, eles abriram ao autor ainda mais as portas da

tradição.

Foi desta forma, entre as coisas múltiplas que ele aprendeu em sua aldeia natal, que

o autor foi iniciado na arte de tocar o mvett, objeto deste livro. Para isto, ele teve numerosos

mestres, cada um com sua verve, sua mímica, suas falas, seu talento e seu gênio

particulares. Os cantores de mvett diferem uns dos outros, como Hugo de la Fontaine e

Senghor de Césaire.

A palavra mvett, ou mver de acordo com a região, designa ao mesmo tempo o

instrumento utilizado, quem toca e as epopeias contadas, das quais emerge toda uma

literatura. A palavra mvett em seu sentido mais amplo é sinônimo da cultura Fang.

Ele evoca o poder do homem considerado como elemento motor da vida, sem o qual

ela seria uma obra imperfeita de Deus. O Fang acredita que a vida apenas tem seu sentido

verdadeiro a partir da aparição do homem na terra. A existência de outras criaturas

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ornamenta e completa a do homem, quando não a complica para permitir lhe movimentar

sua inteligência, afim de assegurar seu direito de propriedade sobre tudo o que Deus

colocou no mundo.

O homem esta aqui em suas plantações, assim como quando ele sai da aldeia para

passar a temporada em seu acampamento de cultivo, vivendo da caça e da pesca. Ele não

é, portanto, nem o começo nem o fim na terra. Ele pertence a outro mundo, o dos imortais,

do Deus Invisível e Supremo, de onde ele vem por intermédio do nascimento e para onde

ele retorna por intermédio da morte.

Durante sua estadia aqui em baixo, ele não é separado do mundo de origem. É

conectado a ele pelas almas dos ancestrais que morreram antes dele, pelos espíritos bons

ou ruins que vão e vem daquele mundo ao nosso, e que têm o poder de se endereçar

diretamente a Deus e de serem ouvidos por Ele. É por isso que o homem se endereça a

eles para implorar Suas graças. O Fang acredita que o homem, abandonado na terra,

contaminado pelos pecados vindos de sua enorme liberdade, é impuro demais, simples

demais para ousar falar diretamente ao Criador. Esta concepção traduz modéstia e

humilhação.

Mas as almas e os espíritos são exigentes. Para realizar suas missões delicadas

junto ao Ser Supremo, lhes são necessários oferendas e sacrifícios que o agradem. E para

que Ele os aceite, é preciso cultos e ritos. Por estas razões, o homem pratica o “Byéri” ou

culto dos ancestrais, que seria objeto de outro estudo.

O tema principal do “Mvett” é a luta contínua do homem contra todas as forças

visíveis e invisíveis, próximas ou distantes da natureza, para a domesticação da vida, o

acesso à sobrevivência e a conquista da imortalidade. Sua estadia aqui em baixo constitui

um vasto campo de aprendizagem e de experiência desta luta árdua que se prolonga depois

da morte. Fisicamente fraco, o homem felizmente, ganhou de Deus uma arma temível: a

inteligência.

O Fang considera a inteligência não apenas como a faculdade de conhecer,

compreender e realizar seus projetos, mas, sobretudo, como a presença constante do poder

de Deus no corpo e no espírito do homem. Por isso ele pode lutar com garra, pois essa

presença lhe sustenta. O que importam as inumeráveis derrotas sofridas de gerações a

gerações? Ele não marcou este longo caminho com sucessos, vitórias obviamente

modestas, que aos poucos o elevaram acima de outros seres e que melhoraram

sensivelmente sua existência? O esforço sustentado pela paciência estimula a inteligência e

encoraja o homem neste combate no qual ele é o mais fraco.

Lembremos o processo realizado nessa empreitada. O ponto culminante da

existência humana é a aquisição da imortalidade. Para chegar nisto, o homem deve

atravessar uma série de obstáculos que aparecem desde o nascimento. Mas o Fang

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considera a criança até cerca de quinze anos como inocente e pura. Toda morte ocorrida

antes dessa idade é causada seja por maus espíritos, por bruxos da aldeia, ou por Deus

mesmo, sendo este um caso raro. De maneira que esta morte não depende da vontade da

criança, e ela tem a imortalidade assegurada assim que ela aparece no outro mundo.

As mulheres e os velhos se beneficiam igualmente, em certos casos, de uma falta de

responsabilidade que lhes confere, automaticamente, a imortalidade depois da morte.

A mulher, ser fraco, não pode ficar sem a proteção do homem. Além disso, seus

pecados são ninharias, com exceção do adultério e do homicídio. E como o adultério é

quase sempre provocado pelo homem, a mulher culpada é simplesmente punida, o que a

lava do pecado tanto sobre a terra quanto depois da morte. Em caso de reincidência, a

punição pode chegar até a excisão, mas o caminho da imortalidade permanece aberto.

Apenas o homicídio barra o caminho da imortalidade à mulher. Entre os Fang, a mulher

comete assassinato geralmente por ciúmes. Em uma casa/relação polígama, uma mulher

envenena sua rival para se livrar dela, ou seu marido, se estiver persuadida de que ele não

irá mais procurá-la. Este último caso é extremamente raro, sendo que a desesperada

prefere recorrer ao divórcio.

O homem é, portanto, o púnico responsável pela vida da família, da tribo e da raça,

frente a todos os homens e a Deus. É um dever sagrado que ele deve realizar com toda

consciência e em qualquer circunstância, até que ele se torne um ancião, sinal de pureza,

de sabedoria e de imortalidade assegurada.

Portanto o homem deve talhar-se como se fosse na rocha, construir-se sozinho ou

com a competição de outros, se distinguir por sua energia e sua bravura, emergir do

comum, servir de exemplo. Ele trabalha o metal, constrói a aldeia, abate a floresta para dar

lugar às plantações, caça e pesca, controla o palavreado e guerreia. Iniciado, ele assiste a

todas as cerimônias religiosas e perpetua o culto dos ancestrais. Transmite às gerações

jovens a genealogia, os segredos da família e da tribo, a tradição oral, em suma, a vida

política, econômica, social e cultural da raça. Ele é o chefe espiritual e administrativo de sua

família. Os chefes de família escolhem um chefe de aldeia, e estes escolhem um árbitro

para a tribo. Este árbitro embora desempenhe um papel importante, tem, contudo, um poder

limitado. O Fang não se submete nunca a uma autoridade absoluta, mas sabe que sua

liberdade se limita onde ela limita a dos outros. É por isso que não há, entre os Fang,

monarquia ou anarquia. A vida do clã e das aldeias é perfeitamente ajustada, com os

homens prontos a enfrentar como um só todas as dificuldades de ordem individual ou

coletiva.

O órgão supremo que toma decisões irrevogáveis é o Conselho dos Anciões ou a

Assembleia, que se reúne em função das circunstâncias sobre convocação, seja de um

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chefe de família, de aldeia ou do árbitro da tribo. Se as circunstâncias exigem, consultam

previamente os espíritos dos ancestrais através do Byéri.82

Sendo assim definido o papel do homem, resta a ele apenas afirmar-se na luta que o

conduzirá à conquista da imortalidade. Ele sabe que Deus não perdoará nenhuma fraqueza,

muito menos os ancestrais. Os anciões dizem que “ele tem sua vida em suas mãos e faz

com ela o que quiser”, o que se traduz como “ele é livre”. A partir do que, a noção de morte

natural esta excluída. Porque se morreria jovem ou adulto, enquanto que se realiza regular e

conscienciosamente todos os deveres, e que a velhice, temo da vida sobre a terra, o espera

para “a passagem da parede/muro”? Se um homem rico, com muitas mulheres e filhos, bom

e justo, morre, é porque ele foi vítima de ciúmes e de inveja dos outros, de bruxaria etc. Se

um homem perverso, ciumento, egoísta, feiticeiro, morre, é porque os amuletos/talismãs

bons se vingaram dele. Ele mereceu e não terá direito à imortalidade. Seu espírito malfeitor

vagará miseravelmente na escuridão eterna... se um homem pobre morre, sua situação não

será melhor no outro mundo, pois a pobreza é sinal de maldição.

Fora casos particulares e muito raros, nos quais podem se engajar na fabricação de

amuletos homicidas, os velhos desfrutam da imortalidade ao morrer. É por isso que são

venerados em vida, pois além da experiência e sabedoria, eles são chamados a servirem de

intermediários entre os homens e Deus.

O mvett mostra também e sobretudo a vida de um outro mundo – um mundo

imaginário – onde os homens podem se elevar até a aquisição da imortalidade, sem

necessariamente passar pela morte. Este mundo é a ilustração da concepção que o Fang

faz da vida como ela deveria ser. É o mundo dos Imortais onde apenas a Força e o Poder

são lei. São epopeias deste mundo que moldaram o espírito e o caráter belicoso do Fang.

Ao longo do “Obane”83 ou migrações, ele teve de confrontar dificuldades inomináveis. Cada

pedaço de terra, cada canto da floresta, cada aldeia, tribo, raça, país atravessado, constituía

um foco de perigos distribuidores da morte. A vida de todos os instantes acontecia sob

alerta máximo. O caçador devia evitar se tornar caça. Os Fang saídos sobretudo dos Mvélés

ou de Bassa habitam atualmente o Camarão.

Temperado por lutas sangrentas e heroicas, movido pelo gosto de aventuras e pelo

desejo de ocupar terrenos novos e mais férteis, o Fang, na narrativa das epopeias do país

dos Imortais, torna-se em seguida o guerreiro da floresta por excelência. Ele pretendia

rivalizar em coragem e bravura com os heróis do mvett, demonstrar às outras raças que

apenas a dele era superior, então ele guerreava com uma chama e uma virtuosidade

surpreendentes. Em torno da metade do século XIX, apenas a chegada dos Europeus na

82 Com o contato da civilização ocidental, a sociedade Fang se desorganizou um pouco. O Conselho dos Anciões perdeu seu papel e foi substituído por instituições francesas ou espanholas. 83 O Obane atualmente é estudado pelo autor.

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costa, na bacia do Como e de Ogooué, interrompe o êxodo dos Fang, que já haviam

invadido uma importante parte do sul do Camarão, toda a Guiné equatorial e todo o norte do

gabão. E a ocupação do País Fang pelos ocidentais não aconteceu sem problemas.

Combates sanguinários marcaram a penetração europeia e, frequentemente, a solução era

encontrada na negociação, com o estrangeiro preferindo negociar a utilizar a força que,

neste caso, não era coisa certa. Com armas iguais, era necessário renunciar combater os

Fang. Mas este bom e velho tempo já pertence à história. Por este motivo, ao longo da obra,

o autor nos levará ao mundo maravilhoso dos Imortais.

A descoberta do Mvett se situa na época das migrações Fang. Os Fang descendem,

segundo os contos e narrativas de nossos anciões das margens do Nilo, de onde eles

parecem ter sido perseguidos pelos Mvélés ou Bassa. Ao longo de sua fuga, um deles,

Oyono Ada Ngono, grande músico e guerreiro, subitamente desmaiou. Levaram seu corpo

inanimado durante uma semana de fuga. Depois do coma, Oyono voltou à vida e anunciou

aos fugitivos que ele tinha descoberto um meio para ter coragem. Homens, mulheres e

crianças se agruparam a seu redor e ele usou palavras como estas: “Meus irmãos, os

Mvélés são mais poderosos que nós, eles nos perseguem em todos os lugares, mas

devemos nos vingar. Como não podemos nada contra estes malditos Mvélés, sigamos em

frente, mas persigamos todas as raças, fortes ou fracas, que encontrarmos em nosso

caminho. Pilharemos as aldeias para termos provisões, façamos aos outros o que os Mvélés

nos fizeram. Somos fortes, confiemos nesta força. Todas as vezes que eu disser:

- Eu semeio o vento!

Vocês respondem:

- Sim!

Eu direi então,

- Eu guio o elefante!

Vocês respondem:

- Sim!

E eu direi:

- Que os ouvidos ouçam!

Vocês respondem:

- Que ouçam o mvett!

(Assim foi o primeiro canto do mvett). Sigamos o sol em sua rota, nós teremos um

belo país lá, onde ele se põe. Talvez este país seja mais fértil, mais rico que aquele da

“Grande Água” do qual acabamos de sair.

Ele pegou, então, uma haste de bambu, separou quatro cordas, sem retirá-las

completamente da haste, colocou quatro anéis de cipó em cada extremidade, para servir na

afinação do instrumento. No meio da haste ele colocou uma alavanca servindo de suporte

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em ambos os lados das cordas que dariam sons diferentes, seguindo uma gama bastante

complicada. O mvett tinha nascido.

- Eu semeio o vento!

- Sim!

- Eu guio o elefante!

- Sim!

- Que os ouvidos ouçam!

- Que eles ouçam o mvett!

Ao tocar este instrumento, Oyono Ada Ngono se pôs a contar as epopeias de um

povo guerreiro fictício que ele batizou com o nome de “Povo de Engong”, ou Povo do Ferro.

Estas epopeias tinham como efeito excitar os Fang. Então eles rumaram para as tribos do

sudoeste com a violência dos Heróis do Mvett, pilhando, saqueando tudo a sua passagem.

Eles seguiram o Ouellé e o Oubangui, se dirigindo para o oeste, em direção a região de

Kam-Elone, árvore gigantesca que barrou sua passagem durante anos84. Era necessário

abrir uma passagem através do tronco: a caravana marchou. A deformação do nome Kam-

Elone parece ter dado o de Camarão. A lenda presume que, nesta época, os Fang deveriam

se encontrar na região situada entre Berbérati, Yaoundé e Ouesso.

Muitos grupos foram formados. Uns subiram ao noroeste (Ewondo), outros foram

para oeste e para o sul (Boulou, Ntoumou, Okak, Mekeigne), enquanto que o grupo Mvin-

Eton tomou posse do terreno mais próximo (Souanké-Djoum). Alguns entre eles seguiram o

curso do Aïna ou Ivindo e instalaram-se na região de Makokou-Booué.

Após, numerosos tocadores de mvett se sucederam, de Oyono Ada Ngono até

Ndong Engonga, passando pelo grande Zué Nguéma da aldeia de Anguia, Ndong Essono

de Andome e de FEUS Mfoulou, Eworo, Mvome Eko, Edou Ada, Eko Bikoro, e tantos outros

que renovaram o Mvett, lhe dando o lugar preponderante que ocupa atualmente na literatura

oral dos Fang. Em uma determinada época, a haste de bambu foi substituída pelo “Ngomé”,

do qual se servem os dançarinos de “Boniti”. Mas depois disso, o instrumento antigo

retomou a seu lugar, conservado até nossos dias.

As epopeias do mvett são inumeráveis. No começo de cada sessão, o artista enuncia

três, cinco ou uma dúzia de narrativas e convida o auditório a escolher uma. Então ele conta

a que obteve mais votos. A duração de cada sessão depende do tamanho da narrativa. Os

maiores tocadores podem captar sua atenção durante quarenta e oito horas seguidas. Nas

páginas que se seguem, o autor, não podendo proceder como no corpo da guarda, lhe

propõe simplesmente a história de Oveng Ndoumou Obame, da tribo de Yemikaba ou tribo

das Chamas.

84 Na realidade, se trata de combates violentos que travam com tribos belicosas.

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Para saborear todos os atrativos do mvett, é necessário conhecer perfeitamente o

Fang e sua língua, estar na presença do tocador em ação com seu instrumento. Isso inspira

o tocador, restaura sua memória e sua certeza, aviva a atenção dos ouvintes.

O instrumento e o tocador se completam: o primeiro “dita” a narrativa, o segundo

traduz e faz o mimetismo. Os portadores de baquetas marcam a cadência e o auditório

responde em coro aos cantos. A narrativa torna-se, então, impressionante, vigorosa e

cativante.

O autor viola a tradição e trai seus mestres confiando o mvett à pena. A obra também

é branda e imperfeita, pois nada no mundo pode substituir a parte da aldeia, a atmosfera do

corpo de guarda, o ritmo dos sinos e das baquetas, a melodia do mvett, a trepidação das

penas dos pássaros, dos pelos das bestas sobre a terra e os braços do tocador. Em

consequência disso, o autor solicita indulgência do leitor, que apreciará em medida justa as

dificuldades advindas no momento em que, privado de seu instrumento e do meio no qual

ele costuma evoluir, ele se viu obrigado a romper com a tradição oral para dar lugar à

escrita.

*

* *

A epopeia que você irá ler tem como ponto de partida uma das tribos de Okü, a tribo

das Chamas (Yemikaba). Seu chefe Oveng Ndoumou Obame, homem poderoso, ao

considerar que o ferro, no sentido de metal, é a causa de todos os males que flagelam a

humanidade, tomou a inacreditável decisão de destruí-lo completamente da superfície da

Terra. Para ele, a paz universal tem este preço.

Mas ele enfrenta de início a oposição das outras tribos de Okü. Contudo, ele as

subjulga, uma a uma, fazendo volatizar tudo o que contém ferro, até o momento em que

encontra uma resistência feroz na tribo das Tempestades (Yokos), pois seu chefe Nkabe

Mbourou é um homem poderoso. A batalha começa árdua e parece indecisa até que, em

um corpo a corpo brutal, Nkabe Mbourou tem uma perna quebrada por seu adversário.

Vencido, ele então envia sua filha, Eyenga Nkabe à Engouang Ondo, a fim de que ele lhe

vingue de Oveng Ndoumou Obame. Mas este último, que se apaixonou por esta jovem,

persegue seu caminho em direção a Engong com um objetivo duplo: aniquilar o ferro e

desposar Eyenga Nkabe a força.

Quem sairá vitorioso desta luta amarga, Engouang Ondo ou Oveng Ndoumou

Obame? Deixamos que ao leitor a tarefa de descobrir.

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Personagens Principais

Lado de Okü

Tribo das Chamas:

Oveng Ndoumou Obame

Ela Minko M’Obiang

Tribo das Tempestades

Nkabe Mbourou

Eyenga Nakabe

Lado de Engong

Akoma Mba, Chefe Supremo

Engouang Ondo, Chefe do exército

Guerreiros:

Ntoutoume Mfoulou

Angone Nzok

Nzé Medang

Obiang Medza

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O MVETT

O Mvett

- Eu semeio o vento!

- Sim!

- Eu guio o elefante!

- Sim!

- Hoje é domingo!

- Sim!

- Que os ouvidos ouçam!

- Que ouçam o mvett!

O Povo de Engong ou os Imortais:

GENEALOGIA

Oyono Ada Ngono, em seu coma, entrou no nada. Ele não via nada e não havia

nada. Mas de repente, Aki-Ngoss, ovo de cobre, se formou com quatro faces. Ele cresceu

sem medidas frente ao aturdido Oyono Ada, explodiu e deu a luz à Mikour-Mi-Aki, o infinito.

- Mikoour-Mi-aki gerou Biyem-Yema-Bi-Nkour, as nebulosas.

- Biyem-Yema gerou Dzop-Biyem-Yema, o céu.

- Dzop gerou Bikoko-Bi-Dzop, os céus.

- Bikoko gerou Ngwa-Bikoko, o primeiro espírito.

- Ngwa gerou Mba Ngwa, o segundo espírito.

- Mba Ngwa gerou Zokomo Mba, o terceiro espírito.

- Zokomo gerou Nkwa Zokomo, o quarto espírito.

- Nkwa gerou Mebegue-Me-Nkwa, o quinto espírito.

- Mebegue gerou três espíritos:

a) Zame-Ye-Mebegue, deus da Terra, dos homens e do sopro, o sexto espírito.

b) Kare-Mebegue, deus ancestral dos Imortais, habitante de um mundo desconhecido dos

homens, o sétimo espírito.

c) Zong-Mebegue, oitavo espírito, cujas atribuições ainda são ignoradas.

Vamos à descendência de Kare-Mebegue, Deus dos imortais, que nos interessa em

“o Mvett”. Para não cansar o leitor e correr o risco de fazê-lo perder a genealogia por causa

de um grande número de nomes, enumeramos unicamente os imortais da família da qual

são oriundos os heróis deste conto.

- Kare-Mebengue gerou Ola-Kare.

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- Ola-Kare gerou Zame-Ola.

- Zame-Ola gerou Otsé-Zame.

- Otsé-Zame gerou Na-Otsé, que foi muito prolífico. O chamam também de Etsang-Na.

- Etsang-Na gerou Evine-Etsang.

- Evine Etsang gerou:

a) Mba Evine.

b) Oyono-Evine.

c) Ango Evine.

a) Mba Evine casou-se com Bela Midzi e gerou:

1. Akoma Mba, o chefe supremo do povo de Engong, o homem cujo “Segredo não há

segredos”, potência invencível, poder criador ilimitado e sabedoria inimaginável. Cercou a

vida com uma tela inacessível à morte. É temido e invejado por todos os povos. Profundeza

do Conhecimento, único de seu gênero, seus irmãos o chamam de Biyang ou de

Dominante. Ele tem um filho temível: Ondo Biyang.

2. Ondo Mba que gerou Engouang-Ondo, chefe do exército de Engong. Poder mágico

incomensurável, touro de batalhas, favor e violência, mas paz e bondade. Belo como uma

palmeira, direito e duro como a viga que sustenta a tela de bambu da casa, Engouang-Ondo

possui o vampiro mais poderoso do mundo. Ele vê a noite, vê o dia, vê o invisível. Seus

admiradores o chamam de Beko-Ondo ou de Altivo, e as jovens de Nang Ondo ou o

Magnífico.

b) Oyono Evine gerou Endong Oyono ou Etounga Oyono. Endong Oyono gerou Medang-

Boro Endong, o bravo entre os bravos, par e companheiro de Akoma Mba. Um enorme

calau bicórnio está alojado em seu ouvido esquerdo. Ele gerou:

1. Nzé Medang, a pantera ágil que joga pimenta nos olhos das crianças, tortura os

adversários temerários, agita os fogos, derruba as montanhas! Sua mãe é vinda da tribo das

“bochechas cheias”, sua esposa da tribo de saqueadores.

2. Angone Zok Endong, homem cuja temeridade ultrapassa a razão. Sua mãe é vinda da

tribo dos fantasmas. Ele vive com os homens, como vive com os espíritos e por isso ele foi

nomeado de Forquilha. É um homem da assembleia da Árvore da Palavra.

3. Medza Metougou Endong que gerou o terrível Obiang Medza, belo como um gato, pérfido

como um punhal. Nada como um peixe, voa como uma andorinha. Traz à razão os inimigos

de “que não querem ouvir”.

c) Ango Evine gerou Meyé M’Ango.

- Meyé M’Ango gerou Engouang Meyé.

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- Engouang Meyé gerou Mfoulou Engouang.

Até então, a descendência de Ango não tinha ainda um homem poderoso. E diziam

em Egong: “Etounga gerou Rochas, Mba gerou Ferros, mas Meyé M’Ango deu luz à

ganga...” Mas Mfoulou Engouang bateu na parede e gerou:

- Ntoutoune Mfoulou, a tempestade, o homem sem medo e que ninguém pode surpreender.

Irascível como a serpente píton, impetuoso como um rio cheio de corredeiras, brutal como

um furacão, Ntoutoune Mfoulou é a raiva de Engong e o terror dos povos. Quando, depois

de grande, aprendeu que fazia parte da “ganga”, sua cólera não conheceu mais limites. Ele

entrou em duelos contra os descendentes de Etounga e de Mba. Nem vencedor nem

vencido, ele varreu esta asserção e instituiu: “Etounga gerou Rochas, Mba gerou Ferros e

Meyé M’Ango gerou Martelos para quebrar as rochas e dobrar os ferros!”. Força de Deus e

coragem do Diabo, ele oprime a Morte com injúrias que não recebem nenhuma resposta!

Seus irmãos o chamam de Nyélé Mfoulou, o Sim de Mfoulou, pois ele sempre disse sim à

morte e não à vida. Mas a morte sempre hesita em levá-lo. Seu pai o chama, com orgulho,

Ossou Mame, o Voluntário de todas as missões perigosas.

Recapitulemos os homens poderosos:

a) Descendência de Mba Evine, as Rochas:

1. Akoma Mba ou Biyang-Bi-Mba

2. Ondo Biyang

3. Engouang Ondo

b) Descendência de Oyono Evine, os Ferros:

1. Endong Oyono ou Etounga Oyono

2. Medang Boro Endong

3. Nzé Medang

4. Angone Zok Endong

5. Medza Metougou Endong

6. Obiang Medza

c) Descendência de Meyé M’Ango, os Martelos:

1. Ntoutoume Mfoulou

Assinalamos que na família de Mba Evine encontram-se Angoung Beré Mba, o mago

de Engong e Abiré Mame Mba, o tocador de tantã.

Fazem parte do Conselho dos Anciões:

- Akoma Mba

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- Medang Boro

- Mfoulou Engouang

- Medza Metougou

- Angoung Bere Mba

- Nsing Beré Mba (irmão do anterior, permanecido por muito tempo na sombra, de onde

emergiu colocando no mundo um filho temível Nguéma Nsing Béré).

Encontram-se frequentemente no campo de batalha:

- Engouang Ondo

- Ondo Biyang

- Nzé Médang

- Angone Zok

- Obiang Medza

- Ntoutoume Mfoulou

- Nguéma Nsing Beré

São os mais jovens dentre estes guerreiros:

- Ondo Biyang

- Nzé Médang

- Obiang Medza

- Nguéma Nsing Beré.

O povo de Okü ou os Mortais:

Apresentamos agora o povo de Okü ou os mortais. Ele habita o país que nomeiam

“Mikour-Megnoung-N’Ekombing”. “Distante e brumoso país do tantã”. Este povo, cuja raça é

parecida à terrestre é de uma alegria e sede de conquistas insaciáveis. Mas sua principal

preocupação é de apreender a imortalidade ciosamente guardada pelo povo de Engong.

Tarefa dura. Suicídio voluntário. No entanto, uma porta lhe é aberta: a força e o poder sendo

os segredos da magia, basta inflá-los a certas pessoas nascidas em Okü. Por isso, os

magos de Okü devem trabalhar incansavelmente e buscar rivalizar na agilidade e no poder

de seus homólogos de Engong.

Engong e Okü vivem em constante hostilidade. O homem de Okü, assim que toma

consciência de seu poder, sujeita suas populações, elimina seus pares e se lança à

conquista da imortalidade. Um combate começa entre ele e os homens de Engong. É,

então, um verdadeiro poema épico.

O povo de Okü, inicialmente pacífico, ama o júbilo de todo tipo que faz de Okü um

mundo de festas. Durante os tempos de paz, os tantãs ressoam de tribo em tribo, as

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caçadas e as pescas são frutíferas, os noivados e os casamentos vão de vento em popa. Às

vezes um imortal em busca de uma esposa chega a passar por ali e provocar no país uma

animação singular. Aqui é acolhido com um entusiasmo delirante. Ali, todas as aldeias se

esvaziam na hora da sua passagem. Acolá, lhe é reservada uma hostilidade tórrida.

- Que os ouvidos ouçam!

- Que ouçam o mvett!

Um nascimento em Okü

O céu estava bonito e o sol esplêndido. Na atmosfera superaquecida, bandos de

borboletas com vestidos imaculados farfalhavam e pombos arrulhavam atrás das casas. À

sombra das varandas, as ovelhas comiam a erva reservada à pastagem matinal, enquanto

as galinhas se esfregavam na poeira que a estação deixara cinza.

Sob as bananeiras, crianças barrigudas e gritantes brincavam de esconde-esconde.

Ao longe, na montanha cheia de erva, eram ouvidos os latidos de cachorros, o som dos

guizos e os gritos de um caçador perseguindo a caça. Em alguma parte da floresta

circundante, um machado batia duramente em uma árvore. A seca havia alcançado seu

apogeu.

No corpo de guarda, deitado de lado em um leito de bambu envernizado, a cabeça

apoiada na palma de sua mão esquerda, um velho decrépito fumava tranquilamente seu

cachimbo. Sua barba branca emoldurava um rosto de olhar impenetrável. Retirando o

cachimbo dos lábios, ele arrotou violentamente, se esticou, bocejou, e depois se sentou. Ele

acariciou a barba com um gesto maquinal e chamou:

- Ndoumou-Obame!

Um homem sentado do outro lado da guarita deu um pulo e veio se plantar na frente

do patriarca.

- Estou aqui, pai – respondeu.

- Sua esposa já esta em trabalho de parto?

- Há dois dias, pai.

- Esta noite, continuou o velho, você irá soar o tantã mágico a fim de reunir todos os

iniciados da tribo das Chamas. Iremos proceder um grande rito que determinará o gênero de

homem que sua mulher colocará no mundo. Quero que seja poderoso, guardião da paz,

protetor dos fracos, famoso por sua bondade e riqueza, conhecido em todos os níveis

sociais, desde o coitado que assa sua pouca mandioca no fogo, até as forças mais

misteriosas da natureza.

- Entendido, pai. Agirei de acordo com sua vontade.

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Na casa cheia de mulheres velhas, Ntasame Ondo, esposa de Ndoumou Obâme,

gemia. O bebê se mexia em suas entranhas. Ele queria sair da eterna noite quente. Ele já

estava cansado de se sentir prisioneiro em um mundo no qual não se falava. Ele queria ver

o que lhe haviam contado no país dos espíritos, de onde vinha: a terra, o sol, as estrelas, a

lua e, sobretudo, os homens.

Mas diabos, onde fica o caminho que conduz a esse mundo maravilhoso? Ele

precisaria mergulhar a cabeça, rasgar essa carapaça pegajosa, cujas contrações se

tornavam cada vez mais irritantes? Ele pulou. Ntsame Ondo dá um grito atroz. Duas velhas

a sustentam, lhe dão muito carinho e lhe dirigem palavras amáveis.

Há muito tempo o sol havia desaparecido. Estrelas cintilavam no céu azul escuro.

Todas as portas já estavam fechadas. Ndoumou Obame saiu da guarita, bateu o tantã em

dois tons:

O tantã chama! O tantã chama!

O tantã chama a todos os iniciados da tribo!

Iniciados da tribo, abram os ouvidos!

Iniciados da tribo, venham rápido, venham rápido!

Venham à Nkobam, aldeia de Obame Ndong!

Quem bate o tantã?

Ndoumou Obame, filho de Obame Ndong!

Venham rápido, venham rápido, rápido, rápido!

- Muito bem, disse Obame Ndong, tirando de seu cachimbo enormes baforadas de

fumaça.

De todos os lados da tribo das Chamas se elevaram murmúrios. No ar, homens

transformados em morcegos enormes voavam e iam aterrissar em Nkobaam85, aldeia de

Obame-Ndong, onde eles retornariam a sua forma humana! Cem, duzentos, trezentos

indivíduos se acumularam no pátio. Obame Ndong se levantou, sacudiu seu cetro caça-

moscas86 e disse:

- Fui eu quem os chamou. Desde que o mundo é mundo, a tribo das Chamas possui

magos como todas as outras tribos. Mas nunca tivemos um Chefe capaz de comandar, de

dirigir energicamente nossa tribo. Somos motivo de chacota dos outros povos do globo.

Pensei que seria necessário remediar isso e sem tardar. – Aí esta – Tseme Ondo, a mulher

de meu filho Ndoumou Obame, esta em trabalho de parto. Ela irá colocar no mundo um

85 No original, os mesmos nomes aparecem com ortografias diferentes. A opção foi de respeitar a ortografia dada pelo autor. (N.d.T.) 86 Objeto que serve para espantar as moscas, formado geralmente de longas crinas de cavalo com empunhadura de madeira. Em vários países da África ele é um objeto que simboliza o poder dos chefes da tribo.(N.d.T.)

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menino. Devemos fazer dele um gigante, um Chefe, um homem de caráter, de coragem,

enérgico.

- E o que comeremos em troca? Questiona um ancião centenário.

Ndoumou Obame tremeu: ele pensava em sua mulher.

- Eu mesmo, respondeu Obame Ndong sem hesitar, mas não antes de terem

realizado o que eu lhes proponho.

- Certo, responderam em coro os trezentos magos.

Neste momento, gritos de felicidade soaram na casa de Ntasame Ondo. Um belo

bebê se agitava, segurado por uma idosa de bochechas ocas. Nstame Ondo estava livre.

Obame Ndong pulou, penetrou na casa, pegou o meninote diante dos olhos

maravilhados de sua mãe e das mulheres presentes, saiu, fez um sinal para o público, que

se transformou imediatamente em morcegos gigantes. Todos levantaram voo para a

montanha.

Toquemos o mvett, toquemos o mvett!

Escutemos a língua das cordas!

Escutemos a língua do vento!

As marmitas fervem nas casas!

Mas o estômago dos homens esta sem fome!

Os ouvidos dos homens digerem o mvett!

Eu semeio o vento!

- Sim!

- Eu guio o elefante!

- Sim!

- Hoje é domingo!87

- Sim!

- O quê seus ouvidos ouvem?

- Eles ouvem o mvett!

Obame Ndong se colocou no meio da assembleia que havia formado um vasto

círculo sobre a montanha rochosa. Ele trazia o recém-nascido em seus braços. Seus olhos

brilhavam na noite como vagalumes. Para se assegurar que nenhum iniciado estranho à

tribo das Chamas havia se inserido atrevidamente nesta cerimônia íntima, seu olhar

penetrante ia de um a outro convidado que o observava silenciosamente. Suas suspeitas

dissipadas, ele se acalmou. Depois chamou:

87 É no domingo que todos estão livres para escutar o mvett sem ter outras ocupações.

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- Minko M’Obiang!

- Estou aqui, respondeu um velho surpreendentemente robusto.

- Esconda a lua e as estrelas!

Sem se fazer de rogado, Minko M’Obiang pulou para o meio do círculo, abriu um

saco de couro defumado, tirou dele um chifre de antílope guarnecido de um pó negro, com o

qual embebeu a língua e as narinas. De repente ficou rígido. Ele encheu o peito e espirrou

tão violentamente que os animais do cerrado e os homens deitados nas casas acreditaram

ouvir um trovão!

Imediatamente nuvens enormes cobriram o céu. A noite, uma noite de carvão,

envolveu a natureza. Sobre as bananeiras e abacateiros, as corujas se puseram a cantar.

Os fourous88 e os mosquitos se espalharam no ar e nas casas. Acordados pelos cantos

lúgubres das corujas e pelas picadas dos insetos, os não iniciados viveram um momento de

agonia dessas noites cheias de mistérios...

- Abra o peito do bebê, comandou Obame Ndong.

Minko M’Obiang cuspiu o pó negro embebido de saliva sobre o peito do recém-

nascido. Ele se abriu, deixando ver os pulmões frescos e o coração palpitante.

- Muito bem, apreciou Obame Ndong. Agora, iniciados, eu faço um apelo a todo seu

conhecimento. Substituam todos os órgãos da criança, exceto seus músculos e sua pele,

por ferro. Oveng Ndoumou Obame, como passaremos a lhe chamar, será um homem duplo

em um mesmo corpo. Homem e ferro, ele apelará para um ou outro de seus duplos de

acordo com as circunstâncias. Oveng Ndoumou Obame será um gigante. Ele comandará a

tribo das Chamas. Comandará as outras tribos e os outros povos. Ele nunca irá morrer. Com

seus órgãos normais, preparem o pó mágico com o qual vocês impregnarão seus órgãos de

ferro. Não cometam nenhum erro que um dia possa lhe ser fatal. Ao trabalho! Eu os

observo!

Enquanto os magos trabalhavam, Obame Ndong cantarolava:

Sou Obame Ndong, sou Obame Ndong,

Sou Obame Ndong da tribo das Chamas.

Oh Espíritos invisíveis, me escutem.

Poderes naturais, me vejam.

Rios que rugem, cessem o mugido.

Relâmpago do céu, pare com sua cólera.

Eu lhes convido, oh Mistérios dos mistérios,

A fazer de Oveng Ndoumou Obame

Uma Força, uma Energia, um Imortal.

88 Inseto díptero, parecido com uma pequena mosca negra, cuja picada é relatada como extremamente dolorida. (N.d.T.)

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Que sua riqueza seja ilimitada,

E seu poder, invencível!

Que ninguém lhe resista

E que no universo todo ele comande!

Depois deste encantamento, Obame Ndong se calou. Ele pareceu transportado

àquele país dos mistérios que só os iniciados conhecem. Tomado de repente por um

espasmo violento, ele farejou o ar, tossiu, ficou imóvel um instante, as mãos juntas, as

pernas afastadas. Murmúrios de triunfo se elevaram discretamente do público. De volta a si,

Obame Ndong olhou para o bebê que desabrochava com um sorriso pacífico. Ele o

arrebatou dos magos. A tarefa havia sido bem sucedida.

“Soem a corneta”, disse. O som da corneta ressoou, a montanha rochosa se fendeu,

todos entraram no buraco aberto e depois a montanha se fechou.

“Em dois dias, na aldeia, disse Obame Ndong, eu irei morrer de um resfriado. No dia

seguinte de meu enterro, durante a noite, vocês irão retirar meu corpo da cova e trazê-lo

aqui. Vocês sabem o que devem fazer com ele”.

Gritos de alegria tomaram conta do interior da montanha, enquanto os iniciados

dançavam em roda, cantando a glória da magia e o poder dos seres invisíveis...

- O quê ouvem seus ouvidos?

- Eles ouvem o mvett!

- Quem toca o mvett?

- Ndong Ndoutoume,

Filho de Ndoutoume Medzo89

Da tribo dos Javalis.90

Ndoumou Obame penetrou na casa de Ntasme Ondo, sua esposa. Ele se virou para

Oveng Ndoumou Obame, seu filho, que já tinha seis luas. Nesta idade, sua saúde era de

ferro e sua força prodigiosa. Coberto de músculos de aço, o olhar direto, as costas largas, a

barriga maciça, brutal como uma torrente, ágil como um gato, ele tinha tudo de um ser

sobrenatural. Ele parecia ter quatorze grandes estações secas para grande espanto de sua

mãe e satisfação de seu pai.

Ndoumou Obame o pegou pelo braço e o levou para a guarita da aldeia.

- Meu filho, ele disse, a era do seu reinado chegou. Em alguns dias, toda a tribo das

Chamas irá se reunir nesta aldeia para lhe saudar e receber suas ordens. Seja um chefe

autoritário. Um bom chefe perdoa raramente, mas castiga frequentemente. Defende sua 89 Ndong Ndoutoume: o autor. O artista se diverte em introduzir seu nome no poema cantado, que o auditório retoma em coro. 90 Tribo dos Javalis: tribo do autor, os Yengüs que são encontrados no Camarões, na Guiné Equatorial e no Gabão.

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tribo e sua nação, submete os outros povos. Ele não teme nem o fogo do céu, nem a cólera

dos homens! Ele incendia aldeias rebeldes, massacra sem misericórdia os que violam sua

lei. Tudo o que lhe agrada é dele, por mais que desagrade ao proprietário. Um chefe cuspe,

grita, rosna e faz tempestade como a tormenta! Ele derruba os exércitos e provoca

calamidades!”

Super excitado por essas palavras virulentas, Oveng Ndoumou Obame, em um

movimento involuntário, esticou o braço e alcançou com o punho o queixo de seu pai.

Ndoumou Obame caiu para trás num canto. Ele ficou ali por um bom tempo enquanto Oveng

Ndoumou o olhava curiosamente, sem compreender a gravidade de seu gesto. Pouco

depois, Ndoumou Obame se levantou, passou a mão em seu queixo inchado e disse:

- Um chefe não bate nem em seu pai nem em sua mãe!

- Eu não sabia, pai. Respondeu Oveng Ndoumou Obame todo confuso.

- O mundo esta cheio de armadilhas. Ao reinar, o chefe deve ser prudente e sábio.

Os ciúmes, o desejo de vingança, as ambições corrompem os povos, os levam a melhorias

que os dotam de um poder impensável e perigoso. Nunca se é único de seu gênero no

universo. As forças misteriosas da natureza são perfídias e corruptoras como as mulheres.

O que elas lhe dão hoje darão amanhã a outros. Dê a elas apenas uma confiança relativa.

Agora, meu filho, vá para sua casa. É esta grande casa de pedra que você vê no fundo da

aldeia. Ali você encontrará todas suas armas, desde o raio do céu até o simples anel de

cobre, passando pela virulência dos fantasmas, a violência dos espíritos, tudo o que fere,

esmaga, prende, queima, asfixia, fura, destrói. Assim, meu filho, você tem sua vida nas suas

mãos...”

O cérebro de Oveng Ndoumou Obame estava em ebulição. Ele não conseguia

compreender estas complexidades da vida próprias a confundir a Inteligência. Contudo se

levantou, saltou e aterrissou na varanda de sua casa, que ele abriu sem cerimônia, e

desapareceu dentro dela. A porta se fechou sozinha.

A praça da aldeia, que algum tempo antes fervilhava de crianças, se esvaziou

instantaneamente. Perturbados com a visão de Oveng Ndoumou Obame passando pelos

ares como uma águia caçando uma presa, eles tinham fugido e se refugiado nas casas.

Em toda a tribo das Chamas, logo só se falava de Oveng Ndoumou Obame. Nas

guaritas, onde se fumava o cachimbo, nas casas onde se amassava a banana com o pilão,

nos córregos onde se pescava o peixe, nos campos onde se plantava o inhame, ele era o

assunto das conversas. Os homens falavam dele com admiração e as mulheres com

entusiasmo. Logo seu nome atravessou as fronteiras de sua tribo e as moças se

apropriaram dele nas tribos em volta. Elas cantavam a força desse novo chefe, cantavam

sua beleza, cantavam seus louvores. Cantemos com elas:

- Oh! Os tantãs ressoam:

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- Homem lindo, homem lindo!

- Oh! Os tantãs cantam:

- Sua força e sua beleza!

- Oh! Os tantãs chamam:

- Moças! Moças!

- Oh! Os tantãs dizem:

- Venham ver! Venham ver!

Venham ver Oveng Ndoumou Obame!

Oveng Ndoumou Obame da tribo das Chamas!

Ele é lindo! Ele é lindo!

Ele é lindo e forte.

Moças! Moças!

Venham ver Oveng Ndoumou Obame!

- Que os ouvidos ouçam!

- Que eles ouçam o mvett!

O grande dia chegou. Toda a tribo das Chamas, homens, mulheres e crianças,

chamados pelos tantãs frenéticos, se juntou na praça. Vieram inclusive alguns curiosos das

tribos estrangeiras, que foram admitidos de bom grado nesta reunião. A porta da casa de

Oveng Ndoumou Obame se abriu. Um silêncio pesado envolveu o público durante dois ou

três batimentos cardíacos antes que ele aparecesse. Depois, ele saiu pela porta. Clamores

de triunfo ressoaram de todas as partes, se elevaram na atmosfera, repercutiram na floresta

e nas montanhas em volta. Sob um sinal de sua mão, todos se calaram e o silêncio que se

seguiu foi de morte. O homem já tinha o tamanho de uma palmeira. Não era muito gordo,

nem muito magro. Digamos simplesmente que ele era belo, de uma beleza felina, majestosa

como um pôr do sol sobre a montanha. Um sorriso franco iluminava seu rosto. Ele falou:

- Homens, mulheres e crianças da tribo das Chamas, eu lhes saúdo!

Sua voz era metálica, o que satisfez plenamente os iniciados, autores desta

realização maravilhosa.

- Homens, mulheres e crianças da tribo das Chamas, abram seus ouvidos e ouçam.

Faltava um chefe à sua tribo; esse que lhes fala é o seu. Uma tribo sem chefe é uma família

sem alegria. Alegrem-se, pois estou aqui! Mas Chefe significa disciplina. Sigam minhas

ordens, será bom para vocês! De agora em diante, nenhuma pessoa no país, com exceção

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de seu chefe e de seus emissários, deve se servir de nada que seja de ferro91. Todas as

armas, todas as ferramentas, todos os objetos compostos inteiramente ou em parte de ferro

serão destruídos. Vocês querem carne? Peixe? Coloquem suas redes de cipó na floresta e

armadilhas de bambu nos rios. Eu dei a ordem à natureza de lhes fornecer sem reservas

tudo o que precisarem: a caça será abundante como as folhas nas árvores, o peixe como os

grãos de areia. A mandioca, o inhame, o amendoim, a bananeira crescerão em todos os

lugares como o mato selvagem: o país estará cheio de mantimentos. Comam, engordem,

festejem: entramos em uma nova era.

Uma torrente de aclamações acolheu estas palavras enquanto Oveng Ndoumou

Obame prosseguia:

- Infeliz de quem transgredir minha lei. Eu não preciso dizer a maneira como será

castigado. Aqui esta um exemplo.

Unindo o gesto à palavra, ele estendeu o braço, empunhou o grande baobá que

ficava no meio da aldeia, arrancou-o da terra como se colhesse uma folha de samambaia, o

quebrou e partiu em dois pedaços sobre seus joelhos. Os homens não tiveram nada a

comentar: eles haviam compreendido... Oveng Ndoumou Obame olhou para o público que

não ousava mais lhe fixar. Seus olhos percorreram um a um os homens, depois pararam

sobre um, chamado Ela Minko M’Obiang, filho de Minko M’Obiang, o grande mago da tribo.

Ela Minko tinha o tamanho de um gigante. Ele não parecia nada emocionado com o que

acabara de acontecer. Olhava impassível. O novo chefe Oveng Ndoumou Obame o

chamou. Ele saltou e veio plantar-se frente ao chefe.

- Eu lhe encarrego, lhe disse Oveng Ndoumou, de juntar e destruir tudo o que

contiver ferro. Pegue este apito e este guizo metálicos. Assim que a ferragem lhe for

apresentada em uma aldeia, apite. Ela será abocanhada por este guizo e volatilizada. Os

objetos do mesmo tipo que lhe tiverem sido escondidos terão, infalivelmente, o mesmo

destino, qualquer que seja o lugar onde eles tiverem sido guardados. Se encontrar algum

obstáculo, bastará pronunciar meu nome e, no mesmo instante, estarei a seu lado. Percorra

o país, ultrapasse as fronteiras. A destruição total do ferro trará a paz ao planeta.

Ela Minko M’Obiang, feliz e orgulhoso de se ver confiado a uma missão tão

importante, pegou o apito e o guizo, deu um salto surpreendente na praça, ordenou à

multidão que se dispersasse e começou a tarefa.

*

* *

91 Ferro: a palavra tem aqui, como seu sinônimo em tang o sentido de metal. A palavra expressa melhor a ideia.

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O ferro desaparecia. O ferro se volatilizava. A notícia tinha se espalhado através de

todo o país. Sem mais lanças. Sem mais machados. Sem mais enxadas. Sem mais fuzis.

Sem mais ferro. A paz...

Eu semeio o vento!

Sim!

Eu guio o elefante!

Sim!

Que os ouvidos ouçam!

Que ouçam ao mvett!

Ela Minko M’Obiang passava assoviando. Seu guizo abocanhava o ferro. Ele

abocanhava e depois volatizava. Os homens, no entanto, não tinham nada do que lamentar.

Na floresta, as redes forneciam caça e nos rios, as armadilhas estavam cheias de peixes.

A mandioca, o inhame, o milho e o amendoim cresciam em todos os lugares. Colhia-

se e enchiam-se as casas. A época das bochechas cheias havia chegado. Em todos os

lugares, o júbilo. Em todos os lugares, a dança. Sem mais ferro. A paz...

Ela Minko M’Obiang atravessou o grande rio “Ebiglibi” e chegou à tribo de Milong (os

Cipós). Ele destruiu o ferro. Cruzou a cadeia de montanhas rochosas “Ebivike” e chegou à

tribo de Yenkour (o Nevoieiro). Destruiu o ferro. Depois de ter passado a grande floresta dita

“A Floresta de Fogo”, alcançou a tribo dos Bilé (as Árvores) na aldeia de Mfoumou Angong

Ondo. Ele assobiou. Imediatamente lanças, facões, machados, enxadas, fuzis...

acumularam-se na praça. O guizo metálico os abocanhou e os volatilizou.

Nisso, Mfoumou Angong Ondo saltou e veio plantar-se na frente de Ela Minko

M’Obiang. Ele disse:

- Sou Mfoumou Angong Ondo, da tribo das Árvores. Como você se chama?

- Ela Minko M’Obiang, da tribo das Chamas. Respondeu o outro. Minha missão?

Fazer com que o ferro desapareça da superfície da terra.

- Eu lhe aconselho retornar imediatamente para a casa se não deseja tornar-se um

cadáver agora.

- Você sabe brincar, homem da tribo das Árvores. O que você chama de cadáver?

Irado, Mfoumou Angong Ondo bateu no peito. Uma baforada de fumaça escapou de

sua boca, na qual ele mergulhou a mão e tirou um pedaço de ferro grosso como o tronco de

um baobá. Depois, ele saltou e bateu com o martelo na cabeça de Ela Minko. Este recuou,

titubeando de dor e quase caiu no chão. Um enrijecimento brusco, músculos que se

retesaram. Ela Minko recuperou o equilíbrio. Deu um grito tão terrível que os homens e

mulheres da aldeia fugiram para se esconder na floresta. Depois, assobiou. Seu guizo

passou pelos ares, abocanhou Mfoumou Angong Ondo e o volatizou. Os últimos homens

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que sobraram na guarita deram gritos assustados e desapareceram atrás das casas. Ela

Minko pegou seu guizo, deu um olhar de desprezo ao lugar onde, há alguns instantes,

estava Mfoumou Angong Ondo, depois retomou sua viagem eterna em busca da destruição

do ferro.

Agora ele se encaminhava para as tribos bélicas que margeiam o grande rio Mveng

Metué. O sol estava alto no céu. Bandos de pássaros de uma plumagem branco-leitosa

voavam incansavelmente no ar quente. A floresta não se mexia. Não havia vento. As

árvores continuavam imóveis. A jibóia, que o calor deixava mole, parecia morta na

samambaia. A pantera em um mato grosso apenas pensava em alisar a pelagem. Os

chimpanzés que, em inúmeros bandos, haviam empregado a manhã em devastar as

plantações de cana de açúcar, com ar inocente batiam os pés de impaciência sob as

mafumeiras. Estava abafado. O silêncio, um silêncio irreal, plainava na natureza.

Ela Minko M’Obiang continuava avançando. Ele ia rápido. Parecia ter asas. De

repente, no horizonte, um rastro vermelho bordado de manguezais: o grande rio Mveng-

Metué. Ela Minko tremeu. Sabia que este rio drenava córregos de sangue! Sabia que as

tribos vizinhas a este rio passavam a vida a se matar mutuamente. Sabia também que sua

fabulosa proliferação fazia com que seu total extermínio fosse impossível. Conhecia o nome

destas tribos: a tribo das Tempestades, a tribo do Relâmpago, a tribo dos Bichos-da-seda e

a tribo das Assembleias. As duas primeiras se opunham às duas últimas. E as guerras se

sucediam implacáveis, selvagens, violentas. A morte ia a toda e o rio, cheio de sangue,

transbordava, inundava a região que tinha ficado avermelhada e ia se perder ao longe,

muito ao longe, no país onde terra e céu pareciam se encontrar. Esse país chamava-se o

país dos mistérios. Os audazes que, desde que o mundo criou os homens, se aventuraram

neste país de pesadelos, nunca voltaram. O seu nome por si só fazia os mais bravos

tremerem e recuarem.

Tudo isso passou como um raio no espírito de Ela Minko M’Obiang. Sua missão lhe

pesou nas costas. Mas a confiança voltou: o guizo estava ali. O guizo! Força misteriosa

saída das profundezas do Conhecimento! Capaz de volatilizar tudo com um simples gesto

de sua mão! O guizo estava ali! E havia outra coisa além do guizo. Havia Oveng Ndoumou

Obame, o homem poderoso, cujo poder não havia limite! Ela Minko teve vergonha de si

mesmo. “é preciso, ele disse a si mesmo com um sorriso, que eu tenha virado um

verdadeiro frangote para ter medo. Adiante, e abaixo o ferro!”

Um golpe no peito, narinas que palpitam, um relâmpago no céu ardente, o estrondo

de um trovão. Ela Minko saltou... como um seixo lançado por um estilingue poderoso, ele

passou pelos ares. Com um assovio ensurdecedor, descreveu uma trajetória gigantesca,

deu voltas em um largo movimento giratório acima da tribo das Tempestades e aterrissou na

praça de uma grande vila. Ele olhou para todos os lados, a vila estava deserta.

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A tribo das Tempestades, sempre em estado de alerta, havia percebido Ela Minko

M’obiang no céu. Imediatamente as mulheres, as crianças e os inválidos foram escondidos

nas grutas rochosas. Os homens, armados com lanças, porretes e fuzis observavam atrás

das casas. No momento em que Ela Minko, impaciente, ia pôr seu apito nos lábios, Nkabe

Mbourou, o chefe da tribo das Tempestades gritou: “Ndouane!92”

Tudo ficou negro. Tudo ficou carvão. Logo, o negro tornou-se azul-turaco93 e o azul-

turaco, vermelho-cauda-de-arara. Reação inqualificável. Violência inacreditável. Primeiro os

fuzis crepitaram. Depois as lanças assoviaram. Os porretes saíram das mãos dos homens.

Estóico, Ela Minko M’Obiang recebeu o assalto. Os tantãs de guerra zumbiram. Como

movida por uma força invisível, a tribo do Relâmpago chegou, infernal. Ela cuspiu fogo. Com

a rapidez do furacão, a tribo dos Bichos-da-seda e a tribo das Assembleias invadiram o

lugar. A batalha esquentou. E o grande rio Mveng Metué drenou ondas de sangue.

Ela Minko M’Obiang olhava estes homens lutarem. Ele parecia ter sido esquecido por

estas tribos inimigas que, mais uma vez, se envolviam em seu esporte preferido: a guerra.

Mas ele assoviou. As lanças e os fuzis desapareceram.

O que escutam seus ouvidos?

Eles escutam o mvett!

Então cantemos o mvett!

Cantemos com o coração!

A boca não consegue dizer tudo!

A boca fala com palavras!

Apenas o coração sabe falar,

Apenas o coração sabe dizer tudo.

Ah, se o coração fosse a boca

Os homens compreenderiam o mvett!

Que os ouvidos ouçam!

Que eles ouçam o mvett!

O espanto foi geral entre os combatentes. Completamente atordoados, os homens

se olharam, e depois, bruscamente, como verdadeiros autômatos, ficaram histéricos.

Decididamente havia uma novidade! De onde vinha esse prodígio? A que se deu esse

desaparecimento inconcebível de todas as armas que continham ferro? Sem compreender,

os guerreiros contemplavam suas mãos vazias. Os mais fanáticos brandiam os punhos, que

sabiam inúteis, pois o corpo-a-corpo nestas condições não podia assegurar a vitória a

92 Ndouane: Fogo! 93 Turaco é uma ave da ordem dos Musophagiformes, típica da África sub-sahariana, de intensa coloração azul. (N.d.T.)

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ninguém. Pouco a pouco o pânico ganhou inúmeros soldados que, alguns instantes atrás,

lutavam corajosamente.

Mas no momento em que a histeria tomou destes homens que ignoravam até então

demência, Nkabe Mbourou, chefe da tribo das Tempestades, gritou:

- Que o homem-crocodilo94 que se acha o mais poderoso da tribo das Tempestades

se apresente!

A resposta não se fez esperar, pois Ela Minko saltou e foi se plantar em frente ao

insolente.

- Falar é uma coisa. Agir é outra. Eu sou Ela Minko M’Obiange da tribo das Chamas.

Devo fazer o ferro desaparecer da superfície da terra. Você esta descontente?

- Esta afronta vale à pena.

Ela Minko M’Obiang ia levar o apito aos lábios quando, mais rápido do que a

serpente verde, Nkabe Mbourou bate no peito. Uma corda saiu de seu peito, e ele lançou-a

sobre o apito de Ela Minko. Após ter arrancado o apito mágico, Nkabe Mbourou levou-o a

seus lábios. O som metálico ressoou. Mas qual foi a surpresa! No lugar de ser volatilizado,

Ela Minko foi apenas preso por amarras invisíveis. Nkabe Mbourou pegou dele o guizo. A

estupefação paralisou os que testemunharam esta cena. Abrindo um saco de couro

enegrecido, Nkabe Mbourou pegou um chicote de couro de hipopótamo, com o qual bateu

fortemente no homem da tribo das Chamas. Ela Minko M’Obiang gritou:

- Oveng Ndoumou Obame! Voltarei a viver? Provavelmente não irei rever o pôr do

sol!

Eu semeio o vento!

Sim!

Eu guio o elefante!

Sim!

Vemos tudo! Vemos tudo!

Vemos tudo na terra dos homens!

Vemos a luz!

Vemos as trevas!

Vemos a felicidade!

Vemos a infelicidade!

Rimos, dançamos, regozijamo-nos!

Choramos, sofremos, morremos!

O que seus ouvidos ouvem?

94 Homem-crocodilo: homem poderoso.

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Eles ouvem o mvett!

Um golpe no coração, o cérebro que borbulha! O pássaro anunciador das

infelicidades cantou atrás das casas! Oveng Ndoumou Obame espirrou: “Atchim!”. Sobre

sua cabeça, os cabelos se arrepiaram. Uma ruga indefinível marcou a metade de seu rosto.

“Ela Minko M’Obiang! – ele falou alto – hum!”. Ele se levanta da poltrona, que foi instalada

em sua varanda para lhe permitir respirar o ar fresco, entra na casa, atravessa três

dormitórios, se conduziu até o quarto, no meio do qual brilhava, como um espelho, uma

lagoa límpida. Ele olhou-a rapidamente, franziu as sobrancelhas... apareceu a imagem de

Ela Minko preso. Nkabe Mbourou lhe administrava a mais espetacular das correções que

nenhum homem da tribo das Chamas já havia recebido.

“Por todos os túmulos da tribo!” esconjurou Oveng Ndoumou Obame. Depois ele

saltou e mergulhou na lagoa.

Ele se impulsionou como um corpo impalpável nas entranhas da terra, alcançou a

terra dos fantasmas, onde seu avô, Obame Ndong tinha se tornado, depois de sua morte, o

chefe venerado.

Percebendo seu neto, Obame Ndong saltou e questionou:

- Eh, Oveng Ndoumou, o que veio fazer aqui?

- Nossa terra, avô, começa a cheirar a pólvora. Meu enviado, Ela Minko M’Obiang

tem problemas nas margens do rio Mveng Metué. Eu vou a seu socorro e punirei como se

deve o energúmeno que ousou lhe enfrentar.

- Sim, mas fique bem atento. Essa terra esta putrefata de homens poderosos e eu

não quero por nada lhe ver amarrado como um antílope preso por um caçador. Em todo

caso, se uma desventura parelha deve lhe acontecer, trate de se salvar e venha se

esconder aqui.

- Que piada, avô! Como exemplo, você quer que eu mostre a seus fantasmas neste

instante que eu sou a potência em si?

- Não. Você tem muito a fazer lá, às margens do grande rio Mveng Metué, e não

comece a se cansar inutilmente no caminho. O que eu mais quero é lhe ver comandar o

mundo. Mas, mais uma vez, fique atento. A juventude nunca sobrepujou a sabedoria dos

mais velhos, fossem eles fantasmas.

- Tem que ver, avô. Mas não tenho tempo a perder, pois, no momento, Ela Minko

passa por um péssimo momento.

- Vá, meu filho, e espalhe a paz na face da terra!

Oveng Ndoumou Obame atravessou o grande país dos fantasmas, mais populoso

que a humanidade da Terra. Assim que se encontrou na tribo das Tempestades, ele se

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endireitou e, como um nadador saindo da água, emergiu no lugar onde Nkabe Mbourou

açoitava Ela Minko M’Obiang.

- Pare, minhoca da estação chuvosa – gritou Oveng Ndoumou Obame.

Instintivamente, Nkabe Mbourou recuou, surpreso por essa aparição inconcebível.

Oveng Ndoumou Obame saltou, se jogou contra ele como uma fera sobre sua presa, pegou-

o pela cintura, ergueu-o e o precipitou brutalmente contra o chão vermelho. O choque fez

com que o guizo e o apito metálicos escapassem das mãos de Nkabe Mbourou. Oveng

Ndoumou Obame pegou-os e os devolveu a Ela Minko que acabara de ser miraculosamente

solto de suas amarras invisíveis.

Nkabe Mbourou se levantou, olhou com ódio para Oveng Ndoumou Obame, deu

alguns passos para trás como uma cabra supraexcitada, depois se precipitou... Oveng

Ndoumou Obame recebeu no baixo-ventre o chute mais impetuoso da tribo das

Tempestades. Mas Nkabe Mbourou teve a impressão de ter batido contra alguma coisa de

ferro, pois ele foi bater no chão, a perna direita quebrada! Oveng Ndoumou Obame se pôs a

rir!

- Eh, homem da tribo das Tempestades, você sabe brigar – ele ironizou. Se sua

fraqueza não apelasse para minha pena, eu já teria lhe enviado ao reino dos fantasmas!

- Homem da tribo das Chamas, você é poderoso. Contudo vou me vingar. Você está

longe de ter paz e não conseguirá fazer desaparecer o ferro da superfície da terra.

Sentando-se dolorosamente, Nkame Mbourou bateu no peito. Um corno de antílope

saiu dele, que portou a seus lábios e soprou. O silêncio reinou na floresta e sobre a

montanha. Apenas o grande rio Mveng Metué se pôs a rugir ruidosamente. Enormes ondas

vermelhas levantavam dele e iam bater às margens. Pouco a pouco a calma voltou. Depois,

ao fundo, uma casa de pedra se elevou, saiu da água, roçou a superfície e colocou-se frente

a Nkabe Mbourou. Uma porta se abriu e uma jovem mulher apareceu.

Este foi para Oveng Ndoumou Obame um destes momentos da vida em que a

lembrança dificilmente desaparece. Um choque mexeu com seu coração que começou a

bater violentamente em seu peito de ferro. Verdadeiramente, desde seu nascimento, ele

nunca tinha visto nada tão belo.

Esta moça da tribo das Tempestades tinha a tez de cobre, o olhar faiscante, um nariz

fino, lábios arredondados. Assim que percebeu seu pai mutilado, ela abriu a boca para

exprimir sua surpresa, mostrou os dentes mais brancos que os grãos frescos de uma espiga

de milho. Ela podia ter uma vintena de grandes estações secas, idade que dava a seus

seios nus o tamanho de duas papaias em maturação. A vestimenta de pele de pantera que

circundava seus rins a deixava felina. Ela virou-se para Oveng Ndoumou Obame e disse:

- Por que, filho da Maldade, você quebrou a perna de meu pai?

Sua voz era doce e fascinante.

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- Por todos os mortos de minha tribo, jurou tremendo Oveng Ndoumou, não encostei

na perna de seu pai. Eu seria bem covarde se atacasse os fracos.

- Minha filha, interveio Nkabe Mbourou, pare de falar com este homem infeliz.

Vingue-me deste imprudente. Você é meu sangue, Eyenga Nkabe Mbourou, você é meu

sangue e meu sangue acabou de sofrer a injúria mais abominável. Saia daqui, atravesse o

país dos mistérios e atinja o país dos Imortais. Veja Engouang Ondo, filho de Ondo Mba e

de Elessogue Bendomé95, o homem que possui o vampiro mais poderoso do mundo, o

homem a quem seus irmãos chamam de Beko Ondo ou o Altivo e a quem as moças

chamam de Nang Ondo ou o Magnífico, o chefe guerreiro de Engong, o Imortal dos Imortais.

Diga-lhe que Oveng Ndoumou Obame, da tribo das Chamas, me quebrou uma perna e

destruiu meu poder. Diga-lhe que o homem da tribo das Chamas pretende destruir o ferro da

superfície da terra. Pelo seu bisavô Evine Etsang, se ele não vier me vingar, é porque ele

será incapaz de tornar-se seu esposo.

- Eu que serei seu esposo, e não o homem de Engong, gritou Oveng Ndoumou

Obame ciumento.

Mas Nkabe Mbourou bateu no peito. Um dente de elefante brotou. Ele o lançou sobre

as costas de sua filha, que foi catapultada aos ares. Ela partia para Engong...

*

* *

Eu semeio o vento!

Sim!

Eu guio o elefante!

Sim!

Que os ouvidos ouçam!

Que eles ouçam o mvett!

Eyenga Nkabe Mbourou alcançou a tribo da Barba, na vila de Olong Ndong. Ela se

pôs na praça. Olong Ndong estava deitado sobre uma cama da guarita da aldeia, fumando

pacificamente um grande cachimbo, com a longa barba espalhada na única rua da vila. A

moça da tribo das Tempestades avançou suavemente, pisando nesses longos pelos negros.

Olong Ndong endireitou-se, franziu as sobrancelhas e deu um olhar de fogo para a praça.

“Ela perdeu a cabeça”, ele disse a si mesmo, bufando de cólera. Depois, ele alongou um

braço desmesurado, pegou-a Eyenga Nkabe e a fez sentar-se em seu colo.

- O que você tem, sua louquinha? Perguntou, o olhar malvado, a voz tonitruante.

95 Elessogue Bendomé: nome da mãe de Engouang Ondo.

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- Tenha piedade de mim, homem da tribo da Barba. No momento em que lhe falo,

meu pai Nkabe Mbourou já deve estar frio. O culpado é Oveng Ndoumou Obame, da tribo

das Chamas. Eu parto para Engong me casar com Engouang Ondo, o chefe do Eexército

dos Imortais. Como dote, meu pai apenas pede uma coisa: vingar-lhe de Oveng Ndoumou

Obame.

- Pobre criança, disse Olong Ndong, subitamente sensibilizado. Engong fica longe

daqui e mil obstáculos lhe esperam em seu caminho. Os homens-poderosos, os

saqueadores pululam através de todo o país e uma moça de sua idade é sempre sua melhor

isca. Mas vá, e use de mil astúcias para escapar dos caprichos destes ladrões.

Olong Ndong bateu no peito. Uma enorme pantera brotou de sua narina direita e

pousou no solo.

- Monte este animal, disse Olong Ndong. A pantera é rápida e, ao mínimo encontro,

ela te esconderá na floresta.

A moça das Tempestades subiu nas costas do felino, que logo saltou sobre o

caminho que conduz a Engong. Nunca uma montaria foi tão ágil e rápida. Ela galopava

sobre a rota, leve como uma folha em um turbilhão, infatigável como o vento nas árvores.

Logo, em sua corrida vertiginosa, ela atravessou inumeráveis tribos, umas pacíficas, outras

bélicas. Mas nenhuma pode colocar as mãos neste animal que, entre homens aturdidos e

mulheres assustadas, passava com um estrondo, levando a filha de Nkabe Mbourou para o

desconhecido.

Através deste mundo complexo e misterioso, as notícias se propagavam com uma

rapidez surpreendente. Lá, nas vilas atravessadas pela rota de Engong já sabiam que

Eyenga Nkabe iria chegar, montada em um felino. Prediziam sua passagem: “em três dias,

clamavam uns; em quatro, acrescentavam outros...” e as conversas iam de vento em popa.

Era a época das festividades nas tribos vizinhas do povo de Engong. Há mais de

nove luas, Ndoutoume Allongo Minko, da grande vila de Meka-Mezok, fazia todo seu povo

dançar sem parar. Essa vila media sete dias e sete noites de travessia ao passo de corrida

ritmada. É dizer quanto era imensa. Os tantãs, os tambores e os balafons mugiam,

incansáveis. Os dançarinos, vozes roucas, com o torso coberto de suor e de poeira, batiam

os pés, agitavam-se, retorciam-se com uma fúria sobre-humana. Se alguém morria de

lassitude ou inanição, Ndoutoume Allogo Minko os ressuscitava com um grande golpe de

seu cetro caça-moscas e esse alguém retornava a dança com mais energia. “É preciso

dançar, gritava Ndoutoume Allogo Minko. É preciso dançar porque a dança é a alegria; a

dança é o gozo; a dança é a paz, é a vida. Dancem homens e mulheres, dancem: é o fim do

luto de meu pai recém morto!” E os homens dançavam até perder o fôlego. Eles dançavam

como autômatos. Mas dançavam...

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Eyenga Nkabe chegou em Meka-Mezok durante a noite. A dança estava ainda

quente, endiabrada. A frescura da noite parecia excitar os homens. Os tantãs zumbiam

frenéticos. Os dançarinos arrulhavam.

Assim que a moça das Tempestades saiu da floresta, três crianças a perceberam e

entraram em fuga. Uma mulher, saindo de sua casa, deu um grito estridente e depois fugiu

chorando em direção aos dançarinos. Quando eles viram Eyenga Nkabe sobre seu felino,

acreditaram que o fim do mundo havia chegado. E, bruscamente, os tantãs, os tambores e

os balafons pararam de ressoar. Um homem gritou de terror. Tomada de pânico, toda a

multidão se precipitou em uma desordem indescritível para o outro lado da vila. Correria

atroz. Fuga brutal. Pânico interminável durante sete dias e sete noites. Houve membros

quebrados, lábios partidos, mortos... aproveitando dessa avalanche humana, o felino

deslizou como uma sombra entre os gritos penetrantes, entre os chamados sem sentido,

entre as lamentações, entre o choro. Com seu fardo mais leve que uma borboleta, ele

chegou até o outro lado da vila, correu logo para dentro da floresta, retomou o caminho para

Engong e, como num bater de asas, desapareceu sem traços.

Foi necessário a Ndoutoume Allogo Minko uma boa lua de tempo para trazer de volta

a calma à Meka-Mezok, curar os feridos e reanimar os mortos. Todas as pessoas

interrogadas foram incapazes de precisar esse pânico. Finalmente, Ndoutoume Allogo

Minko atribuiu este incidente a fatiga geral dos dançarinos. Ele ordenou um repouso de

vários dias e a paz reinou.

Na rota de Engong, Eyenga Nkabe sorria. A viagem lhe parecia interessante. Sua

montaria era dócil. Melhor, lhe parecia que ela era seu duplo. Elas se compreendiam sem

trocar palavra. Esta comunicação entre o humano e o animal embelezou ainda mais a

caminhada. Era uma bela viagem. Mas o que lhe reservava o povo de Engog? A moça das

Tempestades fechou os olhos. Ela pensou naquele homem de Engong, Engouang Ondo,

que ela não conhecia e que seu pai havia escolhido para seu esposo. Nesse pensamento,

ela reviu o homem da tribo das Chamas, Oveng Ndoumou Obame, em pé, perto de seu pai

agonizante. Na verdade, ela amava este homem, apesar do dano que havia causado a sua

família e a sua tribo. Ela se sacudiu para espantar estes pensamentos sombrios.

“Para quê? – ela disse para si mesma – Será que tenho escolha? Apenas a vontade

de meu pai conta! Além disso, seu fantasma me perseguiria por toda minha vida e faria da

minha existência impossível. Também, não será meu dever filial o de amar meus pais e de

vingá-los castigando quem os ofendeu? Eu vou, portanto, à Engong onde farei o que meu

dever manda.”

Esta determinação pareceu dar uma chicotada em Eyenga Nkabe, pois, no mesmo

momento, o felino quadruplicou sua velocidade.

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Uma lua havia passado desde o incidente de Meka-Mezok. Eyenga Mkabe havia

atravessado montes e rios sem outras surpresas. Engong estava perto. Uma inquietude

indefinível encheu o coração da jovem. Este nome não a encantava nada. Este país de

mistérios que era Engong tinha sido, desde a criação do mundo, o pesadelo dos povos de

Okü. Estes homens que haviam conseguido descobrir o segredo da imortalidade, não eram

justamente por isso, verdadeiros monstros sobrenaturais? O que ela poderia lhes dizer, ela,

uma menina sem poder, que apenas contava com o atributo da sua beleza? E esta beleza

era suficientemente sedutora para subornar um Imortal?

Eyenga Nkabe se resignou. “Uma mulher não deve ter medo dos homens. – acabou

concluindo. – Uma mulher deve aproveitar o momento em que um homem é atingido no

coração quando a percebe, para lhe seduzir até a medula dos ossos. Eu farei o meu melhor

se estes monstros forem sensíveis ao charme das mulheres. Contudo eu amo o homem da

tribo das Chamas”.

Numa bela manhã, enquanto o sol subia majestosamente sobre as árvores, a moça

das Tempestades entrou em uma bela vila. Era Nkol-Amvam, a vila de Ondo-Mvé. Ela se

dirigiu diretamente para a guarita. Ondo Mvé a olhou sem franzir a testa. Ela parou na frente

da entrada e falou:

- Homem desta vila, posso fazer uma pergunta?

- Prossiga, moça da tribo das Tempestades!

- Como pode – surpreendeu-se Eyenga Nkabe – que você já me conheça?

- Eu conheço todo mundo. Sei que vai à Engong para ser esposada por Engouang

Ondo, a fim que ele vá vingar seu pai de Oveng Ndoumou Obame. Sei também que você

ama de forma saudável este último, mas lhe previno que Engouang Ondo encarna tudo, até

mesmo a beleza.

- Que curioso! Como você se chama?

- Ondo Mvé, de Nkol-Amvam.

- Bem, Ondo Mvé, quantos dias ainda me faltam para chegar a Engong?

- Pequena Eyenga Nkabe, disse Ondo Mvé, entre no corpo da guarda, sente-se e

repouse primeiro. Eu farei o tantã falar algumas vezes e, esta tarde mesmo, toda Engong

saberá de sua chegada. Amanhã de manhã você entrará no país dos Imortais. Você

precisará de um carregamento de coragem, pois os Imortais não têm nada em comum com

os homens-poderosos que você conheceu em Okü.

- Eles são monstros?

- Nada em comum com monstros também. São homens, mas homens como não se

vê por aí, no universo.

Depois deste curto diálogo, Ondo Mvé fez vir mantimentos. Eyenga Nkabe e seu

felino se restauraram e, depois, não tardaram a dormir profundamente.

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Assim que o sol passou da metade do céu, Ondo Mvé se levantou. Ele andou até a

saída da guarita onde se encontrava um enorme tantã esculpido na madeira. Com duas

baquetas ele se pôs ao dever de avisar os homens de Engong da chegada de Eyenga

Nkabe:

King! King! King! King! King!

Aqui é Ondo Mvé! Aqui é Ondo Mvé!

Aqui é Ondo Mvé de Nkol-Amvam!

Homens de Engong, abram os ouvidos!

Homens de Engong, escutem o tantã!

O tantã diz: Eyenga Nkabe Mbourou,

Eyenga Nkabe Mbourou da tribo das Tempestades,

Eyenga Nkabe Mbourou vai à Engong –

O tantã questiona:

O que ela vai fazer em Engong?

O tantã responde:

Ela vai desposar Engouang Ondo.

Quem é Engouang Ondo?

Oh homens de Engong, escutem a genealogia:

Engouang Ondo é filho de Ondo Mba

Ondo-Mba é filho de Mba-Evine

Mba-Evine é filho de Evine-Etsang

Evine-Etsang é filho de Etsang-Na

Etsang-Na é filho de Na-Otsé

Na-Otsé é filho de Otsé-Zame

Otsé-Zame é filho de Zame-Ola

Zame-Ola é filho de Ola-Kare

Ola-Kare é filho de Kare-Mebegue

Kare-Mebegue é filho de Mebegue-Me-Nkwa

Mebegue-Me-Nkwa é filho de Nkwa-Zokomo

Nkwa-Zokomo é filho de Zokomo-Mba

Zokomo-Mba é filho de Mba-Ngwa

Mba-Ngwa é filho de Ngwa-Bikoko

Ngwa-Bikoko é filho de Bikoko-Bi-Dzop

Bikoko-Bi-Dzop é filho de Dzop-Biyem-Yema

Dzop-Biyem-Yema é filho de Biyem-Yema-Mikour

Biyem-Yema-Mikour é filho de Mikour-Mi-Aki

Mikour-Mi-Aki é filho de Aki-Ngoss!

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Oh, homens de Engong, vocês descendem de Aki-Ngoss!

Aki-Ngoss o grande globo de cobre!

Homens de Engong, escutem o tantã!

King! King! King! King! King!

Em Mveng-Ayong, primeira vila de Engong quando se vem de Okü, Ntoutoume

Mfoulou tinha captado o primeiro som do tantã de Ondo-Mvé. Logo ele tinha saltado do

corpo da guarda e ficado no meio da praça. Depois ele tinha gritado muito alto: tudo, através

de todo o país de Engong tinha se calado. Os carneiros a ponto de balir se imobilizaram, a

boca aberta. Os galos que, com a crista ereta e o pescoço arqueado, quase cantaram e

guardaram, sem se mexer, os bicos abertos. Os pássaros que voavam no céu pareceram

suspensos no vazio. As mulheres nas cozinhas se retesaram, sustentando os pilões acima

dos morteiros, como estátuas. Nem um único assovio, nem uma única lufada de ar. Toda a

vida estava paralisada, pois Ntoutoume Mfoulou havia gritado muito alto! Ele havia gritado

para impor o silêncio e ouvir o tantã.

Em Nkol-Amvam, o tantã continuava ressoando. Em todas as vilas de Engong, os

homens haviam captado a notícia. Os rostos tinham se iluminado, pois este mundo está

continuamente à procura de emoções, de acontecimentos sensacionais.

Ntoutoume Mfoulou gritou de novo. A vida retomou assim seu caminho, em um

fervilhamento de gritos, de balidos, de golpes de pilão e de risos. Já se falava sobre Eyenga

Nkabe Mbourou, a corajosa moça da tribo das Tempestades, que havia vencido todos os

obstáculos para alcançar o país dos Imortais.

*

* *

Na manhã do dia seguinte, assim que o sol se mostrou radiante sobre as árvores,

todo o povo de Engong se reuniu em Worzok, a vila de Akoma-Mba. Todos estavam lá,

desde Engouang Ondo, chefe do exército de Engong, até Angoung Béré, o terrível feiticeiro.

Todos estavam lá, e esperavam, silenciosos, a chegada de Eyenga Nkabe. Impaciente,

Ntoutoume Mfoulou assobiava:

Vi! Violi! Violi! Vio! Vi! Vi!

Saturado de força e poder,

Gostaria de encontrar um igual!

Vi! Violi! Violi! Vio! Vi! Vi!

Que a morte me mate

Se for capaz!

Vio! Vio! Vi! Violi! Vio!

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De repente, atrás das casas, um carneiro atacado por um leopardo baliu de dor.

Ntoutoume Mfoulou projetou um enorme cutelo com quatro fios, que estava debaixo de seu

braço direito. A arma partiu assoviando, queimou uma casa na passagem, abateu

abacateiros, bananeiras e canas-de-açúcar, cortou a cabeça do animal e depois

desapareceu no chão. Ntoutoume Mfoulou continuou a assoviar.

Vi! Violi! Violi! Vio! Vi! Vi!

Engong é Engong,

Não se pode nada!

Vi! Violi! Violi! Vio! Vi! Vi!

Saturado de força e poder,

Gostaria de encontrar um igual!

Vi! Violi! Violi! Vio! Vi! Vi!

Que a morte me mate

Se for capaz

Vio! Vio! Vi! Violi! Vio!

Suas narinas palpitavam. Seu poder explodia em seu incontestável faro para o perigo

e na prontidão de suas reações. Temerosas e discretas, as mulheres contemplavam em

segredo, enquanto os homens se mostravam orgulhosos de suas proezas. Ntoutoume

Mfoulou estava contente consigo mesmo. Ele tinha apenas uma paixão: lutar. Sobrevivente

da grande batalha ao longo da qual a bruxaria entregou seus segredos ao mundo em Mbel-

Alène, ele tinha sofrido, desde sua adolescência, os golpes mais duros. Seu desprezo pelo

perigo e sua impetuosidade lhe valeram um dia a misteriosa porretada do guerreiro Ekor-

Ngui-Ndong, da tribo dos Gorilas, que o propulsou tão violentamente ao céu, que sua

cabeça atingiu a lua e ficou presa nela. Ele deveu sua salvação apenas à temeridade e

coragem de Angone-Zok, que o arrancou do astro das noites com o grande reforço de

cordas munidas de ganchos de cobre! De volta à Terra, o que ele infligiu a Ekor-Ngui-Ndong

foi inimaginável... Os músicos de mvett fizeram disso uma lenda.

Eyenga Nkabe Mbourou havia saído de Nkol-Amvam ao amanhecer. Seu felino

avançava com passos moderados. O sol estava alto sobre a floresta.

Eyenga Nkabe atravessou a vila de Ozom-Zomo, o homem que suporta sem titubear

todos os humores da descendência de Evine-Etsang, atravessou o rio Bevua. A sua frente

apareceu Mveng-Ayong. O coração de Eyenga Nkabe bateu até romper: era a primeira vila

de Engong que ela via. De terra batida e recobertas de palha, as casas gigantes se

alinhavam impecavelmente. Uma grande guarita levantava-se no meio da praça. Atrás das

casas estavam intermináveis palmeirais, bananais, plantações de mandioca, de abacaxi e

de cana-de-açúcar. Enormes espirais de fumaça azul se esticavam sobre a vila, cobria o alto

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das palmeiras. Sonoros golpes de pilão batiam nas cozinhas com paredes de cascas de

árvore.

Sua chegada assinalada, as mulheres abandonaram suas ocupações domésticas e

se colocaram às portas das casas. Elas admiraram avidamente a jovem da tribo das

Tempestades. “Os propagadores das notícias não mentiram – diziam de boca em boca –

esta jovem é tão bela quanto uma lua cheia no firmamento estrelado”.

Elas eram sinceras. No começo da manhã, Eyenga Nkabe ofereceu a si mesma um

banho frio em um rio. Depois ela se embebeu de azeite de dendê que deixa a pele lisa e

brilhante. Com sua roupa de pele de pantera apertada sobre seus rins, ela se ornou com

braceletes de couro e de marfim em torno do pescoço, dos punhos e dos tornozelos.

Adornada desta forma, ela havia mascado um pedaço de raiz misturado com um pó de

propriedades extraordinárias. Depois ela havia cuspido tudo no rio e, adotando uma atitude

devota, tinha murmurado:

“Oh, Rio que desce para o desconhecido, leve nas suas águas as impurezas e

infelicidades que incubam maliciosamente no meu corpo e no meu espírito. Que eu fique sã

e pura como uma gota de orvalho sobre uma folha de samambaia”.

Depois, ela enxaguou a boca, cuspiu o conteúdo da boca sobre a onda, montou nas

costas do animal e, sem olhar para trás, tomou o caminho de Engong.

Então Eyenga Nkabe Mbourou tinha chego a Mveng-Ayong. No momento em que

ela ia ultrapassar as últimas casas da aldeia, um grande rapaz saiu da guarita, pegou as

baquetas de madeira e bateu no tantã.

O felino galopou sobre a estrada. Ele percorre o país de Engong, atravessou Nkok-

Nyong, aldeia de Medang-Boro, pai de Zé-Medang, Bingokom, aldeia de Angone Zok, o

temerário, Evua-Nam, aldeia de Medza Metougon, pai de Obiang Mdza, Eniga-Nkoh, aldeia

de Ondo Biyang, filho de Okoma Mba. Penetra em uma floresta, sobe em uma colina e, em

um vasto platô, descobre Wor-Zoc cheio de gente. É o fim da viagem. Eyenga Nkabe se

reveste de toda sua coragem, dirige-se lentamente para um grande círculo de homens

fascinados que a contemplavam de boca aberta. Aparentemente impassível, ela ultrapassa

de um pulo esta barreira humana, para no centro do círculo, desce da montaria da qual

segurava a trela, lança um olhar furtivo ao redor e espera... reina um silêncio absoluto. De

repente, seu coração pulou em seu peito. Ntoutoume Mfoulou lhe tocou o ombro. “Fala,

moça da tribo das Tempestades – ele lhe disse com uma voz cavernosa que se esforçava

por suavizar – Somos seus amigos. Podemos saber o que seu coraçãozinho rumina?”

Encorajada, Eyenga Nkabe levanta a cabeça, olha Ntoutoume Mfoulou nos olhos, e

desvia imediatamente, pois o olhar dele era insustentável. Ela abre a boca, tenta gaguejar,

mas suas palavras se estrangulam em sua garganta. De repente, Ntoutoume Mfoulou

imobiliza-se, concentra seu pensamento e projeta sobre a pobre criança seu fluído hipnótico

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e homicida. Com os membros flagelados, o cérebro atravessado por relâmpagos

fulgurantes, Eyenga Nkabe sente o chão fugir de seus pés. Tomada de vertigem, ela se

apega nervosamente no pescoço da pantera que dá um ganido feroz. Lúcida por um

momento, Eyenga Nkabe reagiu contra este assalto imprevisto: “me salve” ela grita para a

pantera. O felino se arqueia e com a boca pega suavemente sua dona depois, com um

salto, a coloca aos pés de Engouang Ondo. Este a levanta delicadamente, a reanima com

um peteleco na testa e a põe novamente em pé. “Fala”, ele lhe diz enquanto faz um sinal

reprovador a Ntoutoume Mfoulou.

- Podem me mostrar, ela começa, aquele a quem nomeiam Engouang Ondo?

- Ele acabou de lhe devolver a vida, responde o chefe do exército de Engong.

Ela mergulha seus olhos nos dele, o que lhe valeu de novo na espinha um arrepio

efêmero, mas doloroso do fluído de Engouang Ondo. Instintivamente ela abaixa a cabeça e

continua:

- Sou Eyenga Nkabe Mbourou, filha de Nkabe Mbourou Ezema da tribo das

Tempestades, moradora das margens do grande rio Mveng-Metué. Meu pai me envia para

lhe dizer para ir vingá-lo de Oveng Ndoumou Obame, da tribo das Chamas. Oveng

Ndoumou Obame é poderoso. Ele quebrou a perna direita de meu pai. Ele esta

acompanhado de Ela Minko M’Obiang, seu braço direito. Ele destruiu o ferro da face da

Terra.

- E o que seu pai me propõe em troca desta vingança?

- Eu... eu ignoro... acredito que... você o encontrará ainda com vida... Ele lhe.. dirá...

ele mesmo.

- Mentirosa – rosnou Ntoutoume Mfoulou no auge da exasperação – Mentirosa, você

me...

- Quieto! – rosna por sua vez Engouang Ondo. – Deixe-a falar.

“Diga tudo – ela leu no pensamento da pantera – Diga tudo ou estamos perdidas”.

- Meu pai – continuou Eyenga Nkabe não sem tristeza, perto do desespero – meu pai

acrescentou que eu seria sua esposa e que ele não vai reclamar dote.

Engouang Ondo sorriu. Ele examina atentamente a filha de Nkabe Mbourou. Ele a

acha bonita... Então, virando-se para Akoma Mba, ele pergunta:

- O que precisa ser feito?

- O Conselho dos Anciões vai se reunir. Mas primeiramente saiba que os anciões

nunca deliberam de mãos vazias.

Engouang Ondo faz um sinal para Zé Medang. Este vem se postar imóvel na frente

de seu chefe.

- Você acompanhou a conversa?

- Sim – responde Zé Medang.

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- Bem, você é responsável por molhar a mão dos conselheiros.

Não foi preciso dizer duas vezes. Zé Medang rosna, salta aos ares, aterrissa em

Mveng Ayong, toma um dos inúmeros rebanhos de Ntoutoume Mfoulou, retorna e coloca

sua carga aos pés de Engouang Ondo.

- Que o estômago dos anciões encha-se e que sua sabedoria nos guie – disse.

Ntoutoume Mfoulou reconheceu logo seu rebanho, mas se poupa de chamar a

atenção do chefe. “De novo meus carneiros!”, resmunga simplesmente.

Akom Mba levanta-se, precedido pelo feiticeiro e seguido por todos os idosos da

tribo. Eles desaparecem atrás das casas e logo o rebanho junta-se a eles.

Entrando em uma grande gruta rochosa, eles sentam-se em roda. No meio do

círculo, o feiticeiro Angouang Beré coloca os crânios de alguns ancestrais mortos no tempo

quando Engong ainda não havia descoberto o segredo da imortalidade. Estes crânios são

pintados de vermelho. Angoung Beré degola uma vintena de carneiros cujo sangue derrama

sobre os crânios. Depois ele espalha um pó mágico sobre tudo, enquanto Akoma Mba

mancha de vermelho uma estátua de ébano encimada por plumas multicoloridas. Angouang

Beré entoa um canto que os outros acompanham em coro:

Nós santificamos! Nós santificamos!

Nós santificamos os espíritos da tribo!

Nós santificamos! Nós santificamos!

Nós santificamos o vento e a palavra!

Nós purificamos! Nós purificamos!

Nós purificamos nossas mulheres e nossas crianças!

Nós purificamos! Nós purificamos!

Nós purificamos o povo de Engong!

Santifiquemos! Purifiquemos!

Operemos milagres!

E, em silêncio, cada um mergulha seu dedo indicador na poça de sangue, traça um

círculo em sua face e na palma da mão. Depois, todos se levantam, seguem o bruxo que

adentra mais na gruta, parando na frente de uma vela de resina acesa. Nesta luz difusa, se

distinguem, em pé, numa fenda, um enorme cilindro de madeira esculpido, encimado de um

crânio de gorila envernizado. Angoung Beré remove o crânio enquanto uma jiboia gigante

brota do cilindro e é rapidamente pega pela garganta pelo feiticeiro.

“Um carneiro!” comanda Angoung Beré que faz esforços extraordinários para domar

o reptil furioso. Medza Metougou, o pai de Obiang Medza, joga no ar um bode que a

serpente agarra em pleno voo. Com contorções terríveis, ela engole sua presa enquanto o

feiticeiro traça um círculo sobre sua cabeça com uma pasta vermelha. Erguendo juntos o

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reptil saciado os homens o levam a um riacho que ronrona ao fundo da gruta, deitam-no na

água e esperam.

- Está bem, mia a jiboia expelindo de sua garganta uma baforada de ar depois de ter

bebido água. Vocês podem ir comer a carne de carneiro. Engouang Ondo pode também

desposar Eyenga Nkabe. Mas eu lhes advirto, Oveng Ndoumou Obame, o homem da tribo

das Chamas, é poderoso. Decidido a destruir o ferro da superfície da terra, ele promete a si

mesmo também desposar a filha de Nkabe Mbourou. Ele parece capaz de vencer todos os

obstáculos que podem impedi-lo de alcançar seus fins. Ele já ultrapassou a tribo da Barba, e

avança para Meka-Mezok, a aldeia de Ndoutoume Allogo Minko. É ali que Engouang Ondo

e seus homens devem encontrá-lo, pois não quero que ele pise no chão de Engong. Agora,

vão em paz.

O último carneiro foi decapitado e seu sangue vertido sobre um globo de cobre

equilibrado sobre seixos, no meio do riacho. Enfim, a procissão retomou o caminho da vila.

Eyenga Nkabe, na ausência dos conselheiros, examinava Engouang Ondo olhando-o

discretamente. Ele tinha a tez clara, a figura esbelta, sobrancelhas abundantes. Um fino

bigode negro decorava seu lábio superior. Ele usava em seu anular esquerdo um anel de

cobre reluzente. Seu olhar agudo passeava sobre o público, parava às vezes em Eyenga

Nkabe, que então abaixava instantaneamente os olhos. Ele exercia em seu mundo uma

influência mística que ela não conseguia penetrar. Ele era belo, belo como Oveng Ndoumou

Obame. Eyenga Nkabe achou a vida complicada. Qual desses dois homens viria a ser então

seu esposo?

Ela estava nessas reflexões quando os iniciados reapareceram, carregados de

ramos de palmeira, cantando e dançando. Com um movimento ritmado, eles depositaram os

ramos, cruzaram os braços enquanto Akoma Mba tomava a palavra:

- Os espíritos falaram. Eles reconheceram a beleza e a pureza da moça das

Tempestades. Eyenga Nkabe, segundo o desejo de seu pai, é agora a mulher de Engouang

Ondo. Mas eles acrescentaram que Oveng Ndoumou Obame é poderoso, que ele cobiça

essa moça e que fará de tudo para desposá-la. É lhes dada a ordem de ir encontrá-lo em

Meka-Mezok, na casa de Ndoutoume Allogo Minko. Eyenga Nkabe participa da viagem.

- Que os ouvidos ouçam!

- Que eles ouçam o mvett!

Ntoutoume Mfoulou não esperou o fim deste discurso. Logo que Akom Mba

pronunciou o nome de Meka-Mezok, ele alçou voo, seguido de Angone Zok, de Zé Medang

e de Obiang Medza. Engouang Ondo os seguiu olhando para o céu e, quando eles não

passavam mais de quatro pontos negros no horizonte, ele levantou com uma mão Eyenga

Nkabe e com a outra, pegou o felino. Depois, com um salto prodigioso, ele aterrissou na

varanda de sua grande casa, que oscila no vazio acima de Engong. Os homens a

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nomearam “Nda Bingouba” ou “Casa de Calor e Mistérios”. É dali que ele vigia todo o

território de Engong e uma parte importante do vasto país de Okü. Seu olhar, por um

momento, passeou neste país.

A floresta se estendia a perder de vista. Em alguns lugares parecia, de tão densa,

um mar verde. À esquerda, cadeias de massivos rochosos, montanhas verdejantes. À

direita, ilhotas de cultivos, aldeias cinzas atravessadas por caminhos poeirentos. No centro,

o grande rio Alakouma, que afluía de Nkol-Amvam.

Tudo isso desfilou sobre o olhar meditativo de Engouang Ondo. Sua tarefa era

imensa. Milhares de vidas humanas, através desta imensa extensão de terras, fundavam

sua proteção nele. Ele era o defensor de tudo aquilo que não tinha o privilégio da

imortalidade. Missão desgastante. Às vezes um nada era suficiente para semear o terror e o

caos, ou mesmo a morte, entre estas populações inofensivas que pediam apenas para viver

do produto de seu trabalho de camponeses. Engouang Ondo sabia disso e a perspectiva de

uma guerra próxima lhe quebrava o coração. Esses pobres inocentes ainda iriam pagar com

suas vidas as consequências dos combates de gigantes!

Engouang Ondo era um chefe bom e justo. Ele reconhecia o direito de viver de cada

um. Ele dizia a si mesmo que possuir a imortalidade não o autorizava a dispor à sua vontade

do restante do universo. Desejava ardentemente que a paz reinasse entre os homens. No

entanto ele era poderoso. Comandava os seres e as coisas. Apenas a paz ainda resistia a

ele. A deliciosa e frágil paz, a paz esquiva e irônica, a paz permanecia inalcançável.

Engouang Ondo sentia-se inferior a esta coisa tão doce e misteriosa, esta coisa da qual a

humanidade tinha tanta necessidade: a paz. O que ele deveria fazer para domesticá-la,

espalhá-la pelo mundo a fora? Será que seu poder não era uma ilusão? Será que a vida não

deveria lhe obedecer?

Através do universo, homens ciumentos tramavam contra ele e contra seu povo.

Problemas explodiam, semeando a ruína e a morte. E, para endireitar estes erros e

apaziguar os espíritos, era necessário lutar. Ele lutava, portanto, a contragosto. Então,

depois de cada combate, ele tinha remorsos. Estes milhares de homens, de mulheres e de

crianças mortos por uma causa desconhecida pareciam, do fundo de seus túmulos, lhe

endereçar reprovações e implorar sua piedade para o resto da humanidade. E, cada vez

ainda sobrecarregado pelo calor da recente batalha, a cabeça pesada de indignação, ele

voltava para a casa, o apetite perdido, o sono impossível de encontrar. Era esse seu eterno

dever de chefe. Do chefe que quer dar um sentido à vida. Do chefe que é invejado e que

acreditam livre de preocupações. Do chefe dito rico e feliz como uma borboleta no vento!

Era seu dever de chefe...

Engouang Ondo pensou de repente em Oveng Ndoumou Obame. “A propósito, ele

se perguntou, porque este homem se comprometeu a destruir o ferro? Mais um semeador

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de problemas! Que objetivo ele persegue? Antes de lhe dar combate, será preciso discutir

com ele para conhecer seus projetos. É a melhor solução”.

“Tchiduh!96 – Ele exclamou alto, sem se preocupar com a presença de Eyenga

Nkabe e do felino a seu lado. – Tchiduh! Ndoutoume Mfoulou!”

De fato, Ntoutoume Mfoulou tinha partido. Ele tinha partido sem ter recebido ordens.

Imediatamente os outros o tinham imitado. Agora eles deviam se encontrar perto de Meka-

Mezok. Talvez já estivessem lá! Que figura este homem, Ntoutoume Mfoulou! Este homem

que mal suportava a vida quando não estava lutando! Este homem que contava vários

milhares de pecados em seu histórico! O que aconteceria quando se encontrasse cara a

cara com Oveng Ndoumou Obame? Sem dúvida nenhuma, as coisas piorariam...

Engouang Ondo se precipitou dentro de casa, passou como um furação no meio de

mulheres estupefatas, derrubou três cestas cheias de grãos em sua corrida, penetrou em

seu quarto, empunhou seu cetro de comando ornado de conchas, voltou sobre seus passos

e parou na varanda. Para uma das mulheres que queria saber a razão de seu nervosismo,

ele deu um olhar de fogo. Tornando-se para Eyenga Nkabe, ele disse: “segure-se neste

cetro até minha terceira batida. Sua pantera lhe esperará aqui...”

A pobre moça não teve tempo de protestar, por que ele já contava cada batida do

anel contra o cetro: um... dois... três! Então um choque terrível se produziu. Um rugido

ensurdecedor escapou das nuvens enquanto uma espiral espessa de vapor subia da

varanda: Engouang Ondo e Eyenga Nkabe tinham se desmaterializado...

Um instante depois, com a duração de duas piscadas, eles estavam sentados lado a

lado, em carne e osso, em uma das guaritas de Meka-Mezok... Na imensa praça,

continuavam dançando. Ninguém percebeu a presença deles.

Por sorte Ntoutoume Mfoulou e seus seguidores ainda não tinham chegado. Oveng

Ndoumou Obame e Ela Minko M’Obiang também não.

De repente, um rumor insólito espalhou-se no fim da aldeia, do lado de Engong.

Engouang Ondo levantou Eyenga Nkabe e saltou. Era tempo. Ntoutoume Mfoulou, um

enorme sabre de dois fios desembainhado, já se preparava para fazer voar de todos os

lados as cabeças dos dançarinos. Percebendo seu chefe, ele congelou o gesto, plantou o

sabre na terra em sinal de respeito e de saudação, cruzou os braços sobre o peito e se

imobilizou. Engouang Ondo lhe respondeu com um breve sorriso.

“Descansar – disse o chefe a seus homens – Oveng Ndoumou Obame não vai

tardar. Que ninguém se mexa sem minha ordem. O primeiro que se mexer será repatriado a

Engong e perderá, assim, seus direitos à batalha”.

96 Tchiduh: exclamação que traduz a raiva.

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Era a pior das punições que podiam ser infligidas a seus guerreiros. Eles tornaram-

se meigos e dóceis como cordeiros.

Bruscamente, neste momento, soou um assovio estridente no meio da aldeia: as

azagaias, as lanças, os machados, os fuzis, tudo o que continha ferro, desde o anel de

cobre de Engouang Ondo até o sabre de Ntoutoume Mfoulou ainda plantado na terra, tudo

desapareceu, volatilizado! Ela Minko M’Obiang da Tribo das Chamas, Ela Minko M’Obiang,

o emissário de Oveng Ndoumou Obame, Ela Minko M’Obiang que havia vencido Mfoulou

Angong Ondo da tribo do Nevoieiro, Ela Minko M’Obiang havia assoviado.

Que os ouvidos ouçam!

Que eles ouçam o mvett!

A cabeça do céu97 brilha, a cabeça do céu brilha.

A cabeça do céu brilha para todo o mundo.

Ela brilha para os pobres,

Ela brilha para os ricos.

Ela brilha para tudo que é inerte,

Ela brilha para tudo que respira.

Infelizmente há cegos,

Cegos que não veem a luz do céu!

A vida é justa?

Sim!

A vida é justa?

Não!

Cantemos:

Sim e Não!

Escutemos todos:

Escutemos o mvett!

A surpresa foi grande em Meka-Mezok. Os guizos metálicos que as mulheres tinham

amarrados nos tornozelos para ritmar a dança haviam desaparecido como por encanto.

Diabolicamente confuso, Engouang Ondo acariciava, com ar ausente, seu anular onde seu

anel de cobre havia deixado um traço mais claro. Endireitando a cabeça, ele olhou para a

97 A cabeça do céu: o sol.

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praça, onde a agitação se fazia densa. Centenas de pessoas fugiam em todas as direções.

A floresta em torno as absorvia.

Mas assim que Ntoutoume Mfoulou não viu mais seu sabre plantado no chão, a

aldeia mudou de aspecto. A garganta dilatada pela poderosa maré de raiva que subia de

seu peito, os cabelos em sua cabeça em pé como espinhos, as narinas exageradamente

abertas, seus olhos lançando chamas, ele berrou. Uma bola incandescente brotou de sua

boca e explodiu na praça. Uma coroa de fogo se elevou do chão, expandiu-se pela

atmosfera, baixou sobre a aldeia que se pegou fogo. No meio de rajadas ensurdecedoras,

este foi um verdadeiro inferno. O fogo devorava as casas, os corpos da guarda, os tantãs,

os balafons, os tambores e todos aqueles que não tiveram tempo de fugir e se abrigar na

floresta.

Desde o começo do incêndio, Engouang Ondo e seus homens haviam se retirado

sobre uma grande montanha, a uma distância respeitosa da aldeia e, dali, contemplavam o

sinistro. De seu lado, Oveng Ndoumou Obame e Ela Minko M’Obiang tinham agido da

mesma forma. Mais uma vez, milhares de inocentes pagavam com suas vidas as

consequências da cólera dos gigantes.

Em sua casa de pedra, recoberta de palha, Ndoutoume Allogo Minko, que dormia

pacificamente, acordou cercado de chamas. Ele saltou da cama, atravessou a cobertura que

se consumia e, na atmosfera pesada de fumaça, deu um rugido pavoroso. Um enorme calao

bicórnio saiu de sua orelha esquerda, se elevou para o céu de onde deixa cair titica. Quando

ele tocou o alto das chamas, uma explosão se produziu. As trevas cobriram bruscamente a

natureza. Traços fulgurantes estriaram o céu, acompanhados de rugidos devastadores. Uma

chuva violenta se desencadeou, diluviana. Terrível, esta chuva cujas gotas, grossas como

montanhas, se chocavam brutalmente contra o chão, fazendo saltar enormes feixes de água

que engoliam as chamas. Impressionantes, esses inúmeros rios nascidos deste aguaceiro

precipitavam-se impetuosamente às regiões populosas de Okü, saqueando as aldeias,

devastando as plantações, inundando tudo sobre sua passagem. A morte operava, as tribos

fugiam em direção aos planaltos...

Choveu durante sete dias e sete noites. Assim que o fogo foi extinto e que a chuva

cessou de rugir, Meka-Mezok não passava de uma pilha de cinzas úmidas. Ndoutoume

Allogo Minko, o coração dilacerado, os olhos abatidos, olhava aquilo que, alguns dias antes,

o tornava célebre.

Seu cetro caça-moscas restaurador da vida havia queimado em sua casa. Suas

mulheres e seus filhos haviam perecido. Todos os seus bens estavam perdidos. Seu crânio

se esvaziou, ele deixou-se cair no chão, chorando.

Oh, Natureza! O que eu lhe fiz de novo?

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Sol que me olha, escute meus lamentos.

Será que sou vítima da caridade,

Da caridade que me torna popular?

Será que sou vítima do amor de meus semelhantes,

Deste amor que atrai amizades?

O que devo fazer para que o bem triunfe?

A bondade, neste mundo, perdeu seu lugar.

Apenas o mal comanda o universo.

Oh Natureza! O que eu lhe fiz de novo?

Sol que me olha, escute meus lamentos.

Mas a natureza continuava surda. O sol subia, indiferentemente, em um céu sem

nuvens. Ndoutoume Allogo Minko deixou sua cabeça cair em suas mãos. Sua garganta se

contraiu, um soluço ressoou, dois riachos escorreram de entre suas pálpebras. “A vida é

duramente decepcionante”, murmurou, com a voz falha.

Neste momento, Engouang Ondo e seus homens se abateram sobre a praça. Oveng

Ndoumou Obame e Ela Minko M’Obiang também. Os dois grupos inimigos pararam perto do

lamentador. Engouang Ondo falou:

- Ndoutoume Allogo Minko, pare de choramingar como uma menininha que recebeu

uma palmada. Levante-se e nos conte o que aconteceu.

Ndoutoume Allogo Minko sobressaltou-se, enxugou os olhos e olhou a seu redor. Ele

reconheceu os Imortais, fixou um instante Oveng Ndoumou Obame e Ela Minko M’Obiang,

cujas fisionomias lhe eram estranhas. Ele se levantou e, se endereçando a Engouang Ondo,

disse:

- Não é surpreendente. Você vai continuar pretendendo, homem de Engong, não ser

o autor deste desastre?

- Tenha calma, filho de Allogo Minko. Sou inocente. Mas antes de me debruçar sobre

sua sorte, permita-me falar aos homens da tribo das Chamas.

- Não antes que você tenha prometido a reconstrução da minha aldeia.

- Que Oveng Ndoumou Obame se apresente – disse Engouang Ondo, os olhos

faiscantes.

- Ele nunca se pareceu com ninguém – respondeu o filho de Ndoumou Obame

Ndong sem a mínima perturbação. Ele conservava esta segurança imperturbável do homem

que se conhece perfeitamente. Homem-Crocodilo, Árvore-Espinhosa, Pelo-plantado-na-

madíbula, Montanha-que-tem-encostas98, todo seu ser vibrava de potência.

98 Estas expressões, traduzidas literalmente do Fang, traduzem melhor o pensamento.

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Ele considerou Engouang Ondo que o admirava sinceramente, olhou de cima a baixo

Ntoutoume Mfoulou cujas narinas palpitavam de cólera e impaciência, olhou Angone Zok,

que se irritava com a indecisão do chefe, negligenciou Zé Medang e Obiang Medza, que ele

julgou muito jovens para um combate sério. Depois deste breve exame, ele estimou que

eram dois de Okü contra três de Engong e decidiu passar imediatamente à ação.

Ele preparava-se para saltar sobre seus adversários, quando uma aparição

inesperada o pregou ao chão: Eyenga Nkabe chegava graciosamente à altura dos Imortais.

Oveng Ndoumou Obame se imobilizou imediatamente, abriu a boca para falar, mudou de

ideia e esperou. Hesitante, ela parou perto de Engouang Ondo, pegou sua mão enquanto

que seu olhar pousava longamente sobre o homem da tribo das Chamas que, de repente,

teve a impressão que seu coração explodia. Ele voltava a vê-la finalmente, esta adorável

moça das Tempestades! Uma esperança selvagem o invadiu, os ciúmes sacudiram todo seu

ser. Quanto à Eyenga Nkabe, ela o amava. Ela amava este homem vindo do “Distante e

Brumoso País do tantã”, este homem que havia quebrado a perna de seu pai Nkabe

Mbourou, este homem que parecia invulnerável, este homem que queria destruir o ferro da

face do globo. Eyenga Nkabe teve vergonha de amar o assassino de seu pai. Mas quanto

mais esse sentimento a irritava, mais seu amor se confirmava. Ela amaldiçoou seu pai que a

havia tirado do fundo da água onde, longe do charme dos homens, a vida era tão doce! Ela

amaldiçoou a natureza que havia favorecido seu contato com Oveng Ndoumou Obame! Ela

apreendia a continuação desta batalha que iria opor os Imortais aos homens de Okü e da

qual ela era a causa. Desejando que seu pai fosse vingado ao longo do combate, ela rezou

para que Oveng Ndoumou Obame saísse dele vencedor...

Engouang Ondo retomou, dirigindo-se a Oveng Ndoumou Obame:

- Bem! Agora, homem da tribo das Chamas, vamos ao topo da montanha que vemos

daqui, longe do nervosismo dos homens, para discutir seriamente e chegar a uma conclusão

frutífera.

- A discussão é realmente necessária para o homem que se diz imortal?

- Ela o é para todos, principalmente para os nativos de Okü.

- Evitemos perdas de tempo e discursos inúteis. Meu objetivo é simples: desposar

Eyenga Nkabe e fazer desaparecer completamente o ferro da superfície do globo. Você tem

alguma coisa contra?

a) Homem-crocodilo: designa um homem dotado de uma força extraordinária, como um crocodilo, sendo que este animal é símbolo da força e do poder.

b) Árvore-Espinhosa: Árvore sobre a qual ninguém pode subir por causa de seus espinhos. A comparação coloca em relevo o poder de Oveng Ndoumou Obame.

c) Pelo-plantado-na-mandíbula: os pelos do homem comum têm raiz na pele e, por isso, são frágeis, enquanto aqueles do homem poderoso são enraizados no osso e não podem ser arrancados.

d) Montanha-que-tem-encostas: Combater Oveng Ndoumou Obame é tão exaustivo quanto escalar uma montanha com encostas abruptas.

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- Com as suas respostas impertinentes, você se arrisca a desencadear minha cólera

e a se perder, homem das Chamas. Minha paciência tem limites que não tenho a mínima

vontade de ultrapassar. Eu tinha pensado que poderíamos nos entender na questão do

ferro. Mas parece que seus ouvidos preferem se fechar a este respeito. Para lhe ensinar a

ser menos insolente, só me resta mandar-lhe ao país dos Fantasmas.

Oveng Ndoumou Obame zombou:

- O javali nunca se diz gordo, assim como o elefante não se vangloria de ser grande.

Engouang Ondo virou-se para Ndoutoume Mfoulou e lhe perguntou:

- Quando um desconhecido se mostra tão arrogante, o que deve ser feito?

- Administrar-lhe, respondeu o “Sim” de Mfoulou, a mais sincera, a mais sensacional,

a mais espetacular das correções de seu repertório.

Zé Medang interveio neste momento.

- Deixe-me primeiro, meu irmão, medir minhas forças com Ela Minko M’Obiang.

- Demonstre-lhe, respondeu o Impetuoso, que seu corpo é ágil e seu sangue

quente...

Zé Medang pulou. Ele enlaçou com seus longos braços Ela Minko M’Obiang, trouxe-

o para perto de si, espremeu-lhe contra o peito, passou-lhe uma rasteira, deu um urro feroz.

Dois arames saíram de suas narinas, amarraram as pernas deles e os ataram fortemente.

Ela Minko M’Obiang capturou, por sua vez, Zé Medang com seus braços musculosos. Os

dois adversários, pés atados, se cerravam. Eles estavam agora um no outro. Eles ainda se

cerravam. Eles se cerraram tão fortemente que seus ossos começaram a vibrar. Zé Medang

assoviou com o nariz. Um rugido estrondeou. Levantados da terra, eles foram projetados

violentamente no ar. O vampiro branco de Zé Medang se mexeu em seu peito e cuspiu. Zé

Medang espirrou, duas grossas pontas de cobre surgiram de seus joelhos, atingiram Ela

Minko em pleno peito. O homem gritou de dor. Ele assoviou. Os arames e as pontas

desapareceram. Liberto de suas amarras, ele se propulsou na atmosfera enquanto Zé

Medang caia contra o solo. Como um gavião sobre sua presa, Ela Minko M’Obiang, o guizo

mágico na mão, saltou sobre o homem de Engouang e desferiu um golpe apavorante sobre

sua nuca. Zé Medang sentiu sua cabeça esvaziar-se. Suas pernas, por um instante,

recusaram-se a carregá-lo. Ela Minko voltou à tona, enviando-lhe no estômago uma

porretada furiosa. Uma faísca quente atravessou a medula de Zé Medang. Seus olhos

ficaram embaçados, estrelas dançaram em sua cabeça. Mas ele bateu em seu peito,

sacodiu seu vampiro branco que fez escutar um assovio. Uma lesma caiu das nuvens e

borrifou Ela Minko M’Obiang com um líquido pegajoso. O solo amoleceu sob seus pés,

tornando-se lamacento. Ele afundou-se nele até as axilas. Zé Medang arrancou da terra um

grande rochedo que ele quebrou na cabeça de Ela Minko. O solo endureceu. Ela Minko

estava preso. Zé Medang pôs-se a rir:

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- Homem da tribo das Chamas, você ainda está decidido a destruir o ferro da

superfície da terra?

- Mais do que nunca, respondeu Ela Minko M’Obiang, o corpo pegando fogo.

- Observe suas palavras, amigo Ela Minko. O país dos Fantasmas está pronto a lhe

acolher com honra se você não se macular com seus pecados.

Irritado, Ela Minko M’Obiang, com o guizo bateu no solo que o aprisionava. Das

entranhas da terra subiu um bracelete de cobre que o projetou para fora de sua armadilha.

Ela Minko assoviou. Da floresta, saíram hordas de animais ferozes, se precipitaram sobre os

homens de Engong, gritando, rugindo. Havia ali felinos de todas as pelagens e de todos os

tamanhos, repteis monstruosos, pássaros fantásticos. Havia ali bocas fumegantes, presas

de aço, bicos assustadores, garras cortantes. Toda esta fauna furiosa se jogou contra os

Imortais, os mordendo, os arranhando, os bicando. Insetos venenosos dardejavam os

corpos que tornavam-se inchados.

Ntoutoume Mfoulou aspirou uma baforada de ar e encheu o peito. Ele estava

contente com o contato destas bestas furiosas. Ele apreciava estes animais que rivalizavam

em habilidade física e ferocidade. O adversário era de seu tamanho: até que enfim ele havia

reagido.

Ntoutoume Mfoulou fez sinal a Obiang Medza:

- Extermine estas criaturinhas, ele lhe disse.

Obiang Medza urrou. Um punhal gigantesco saiu de sua axila esquerda. Ele o

empunhou, fez enormes giros com o punhal para assegurar a empunhadura e a resistência

de sua lâmina. Depois ele se jogou no meio dos bichos. Seus irmãos se puseram a cantar,

batendo as mãos.

Respondam: sim, respondam: sim,

Respondam: sim, cochichando.

O punhal está desembainhado,

Obiang Medza passa batendo.

Nada mais, nada mais se move.

Respondam: sim, respondam: sim,

Respondam: sim, cochichando.

O punhal está desembainhado,

Obiang Medza passa batendo.

Foi uma carnificina. As cabeças voavam, os corpos se desmantelavam em

intermináveis contorções. Em um instante, não restou mais nenhum desses animais que

fizeram este irresistível ataque: o punhal fora desembainhado.

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Ela Minko M’Obiang e Oveng Ndoumou Obame saltaram e foram se postar em meio

aos Imortais.

Ntoutoume Mfoulou olhou Angone-Zok, Angone Zok olhou Ntoutoume Mfoulou.

Engouang Ondo sorriu. Iriam lutar.

Que os ouvidos ouçam!

Que eles ouçam o mvett!

Ntoutoume Mfoulou sabia que o momento havia chegado. Ele escrutava longamente

seus adversários. De natureza impetuosa, ele sabia, no entanto, ser prudente. Estes

homens da tribo das Chamas lhe davam frio na espinha. Este não era o tipo de inimigo que

se agarra, levanta facilmente e quebra contra o chão duro. Eles não eram desses homens

que se deixam facilmente dominar por uma arma de fogo. Era necessário, para superá-los,

ser todo poderoso e astuto.

Ntoutoume Mfoulou disse a si mesmo que o fato de não haver brigado há muito

tempo o tinha deixado pessimista. Ele maldisse esta inação forçada devido à inacreditável

calma de seu chefe, Engouang Ondo. De repente, ele se decidiu. Executando um

impressionante salto mortal, ele mergulhou o braço direito na boca, o retirou incandescente

como o ferro aquecido no fogo, e deu a Ela Minko M’Obiang um tapa tão violento que ele

explodiu como um trovão e liberou uma espessa baforada de vapor.

Ela Minko cambaleou. Seu corpo ficou mais pesado. Um calor insuportável apertou

seus ossos. Seus olhos escureceram, ele foi caindo no chão.

- A morte chega – ele mugiu, implorando a intervenção de Oveng Ndoumou Obame.

Mas aquele ali, ocupado a contemplar admiravelmente a moça da tribo das

Tempestades, não prestava nenhuma atenção a ele. Ela Minko repetiu maquinalmente:

- A morte chega! Eu vejo a morte!

Sua voz se extinguiu. Os batimentos de seu coração diminuíam. Logo, ele fechou os

olhos e perdeu a consciência.

O sangue de Oveng Ndoumou Obame voltou para seu peito. Seu coração batia

violentamente. Voltando-se, viu Ela Minko M’Obiang estendido sobre o chão, inanimado. O

homem cheirou o ar, encheu o peito, espirrou. De suas narinas jorrou um jato de água que

ele projetou sobre o corpo do moribundo. Este abriu os olhos, arrotou, levantou-se, olhou ao

redor de si com um ar abestalhado. Oveng Ndoumou Obame lhe sorriu e disse:

- Você lutou, meu irmão, um verdadeiro defensor da tribo das Chamas. Você é sua

honra e vou lhe conceder um descanso bem merecido. Você vai retornar à nossa tribo com

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Eyenga Nkabe, minha noiva. Durante este tempo, eu demonstrarei aos homens de Engong

que a gazela não é cria do elefante99.

- Que assim seja feito, disse Ela Minko M’Obiang, visivelmente aliviado.

Oveng Ndoumou Obame esfregou o peito. Uma barra de ferro circundada por anéis

de cobre saiu dele. Ele pegou-a, e com ela bateu nas costas de Ela Minko. Este foi de

encontro a Eyenga Nkabe, ergueu-a e se propulsou nos ares. Oveng Ndoumou Obame

assoviou. O céu cobriu-se de nuvens que absorveram a moça das Tempestades e seu

portador.

Oveng Ndoumou Obame encarou Engouang Ondo que não havia se mexido.

- Um a menos! – lhe disse.

Sua voz era estrondosa como um rio colérico que passa pelas corredeiras. Então,

uma grande gargalhada se desprendeu de seus lábios, seca como uma lagoa, ácida como

uma fruta verde, e partiu em direção a floresta de onde ricocheteou contra as árvores.

Imediatamente depois, uma torrente de ódio a seguiu, manifestando-se em forma de uma

porretada sobre o peito de Ndoumou Mfoulou. O barulho que escapou dele perseguiu o eco

da gargalhada, perturbando uma manada de javalis adormecidos que, colocando suas patas

pesadas para correr, ganhou a mata fechada, após ter-se perguntado se permanecer ali não

teria dissimulado melhor sua presença ao invés deste grande galope ruidoso, mas se

felicitando, apesar tudo, do fato de que os habitantes da mata sempre se fiam mais em seu

instinto, do que se preocupar com o raciocínio que é a causa principal da perdição da raça

dos homens.

- Dois a menos! – disse Oveng Ndoumou Obame.

- Atenção! – gritou o chefe do exército de Engong a seus homens.

Tarde demais. Pois Oveng Ndoumou Obame gritou. Dois clarões estriaram o céu e o

trovão explodiu. Uma bruma opaca cobriu a natureza. Aproveitando desta penumbra, o

homem da tribo das Chamas se precipitou contra Zé Medang e Obiang Medza, os atou

fortemente, retirou de sua boca uma bola de borracha que fez explodir no ar. O chão se

fendeu, engoliu Oveng Ndoumou Obame e seu fardo e depois se fechou novamente. Algum

tempo depois, o homem das Chamas emergiu do grande olho d’água límpido que brilha no

meio de sua casa. Em um canto tem dois tambores mágicos. Oveng Ndoumou Obame solta

seus prisioneiros e os faz sentarem-se sobre os tambores que grudam em suas peles.

- Olha lá, meus amigos – disse o chefe da tribo das Chamas – Aqui vocês não

precisam temer nem o orgulho, nem a vaidade, nem o ódio dos homens. Eu lhes ofereço

gratuitamente um verdadeiro paraíso.

99 A gazela não é a cria do elefante: a grandeza física não é um fator de superioridade.

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Os dois homens de Engong lhe lançaram um olhar de desprezo ao qual ele não

pareceu prestar nenhuma atenção. Ele saiu.

Através de toda a tribo, a notícia espalhou-se que Oveng Ndoumou Obame havia

esposado uma mulher mais bela que a deusa das águas. Relatava-se que, para isso, ele

havia combatido uma tribo extremamente poderosa e que a havia vencido. Corriam boatos

que inclusive ele havia feito prisioneiros que não podiam ser vistos, pelo menos por

enquanto. Aí está um homem verdadeiramente poderoso! A tribo das Chamas havia enfim

encontrado um chefe.

Na praça da aldeia, os tantãs começaram a zumbir. A vida era bela. A natalidade

crescia a cada dia. A floresta fornecia tudo o que o homem lhe pedia, os rios regurgitavam

peixes. Os casais estavam equilibrados, a mulher tendo enfim encontrado seu verdadeiro

papel na nova sociedade. As tradições haviam sofrido verdadeiras reformas. Aprendia-se a

temer Zame-Ye-Mebegue, Deus dos homens, da terra e do sopro.

As aldeias passavam seu tempo a dançar e a se desafiar em competições

esportivas. A luta corpo-a-corpo, o tiro de besta e jogos de habilidade física demonstravam

verdadeiras performances. Tudo era bem organizado. Sim, era uma nova vida, uma vida

regrada por um chefe capaz e digno.

Oveng Ndoumou Obame apareceu na varanda. Os tantãs cessaram de rugir. Todos

os olhares convergiram para este homem misterioso. Ele fez um largo gesto com a mão, ao

qual responderam os gritos da multidão. Ele tinha a confiança deste povo que, contudo, o

temia. Ele inspirava ao mesmo tempo o respeito, estima e uma espécie de terror indefinível.

Ele falou:

- Homens, mulheres e crianças da tribo das Chamas, respondam a minhas

perguntas. A floresta e os rios lhes são hostis?

- Não! – Foi-lhe respondido em coro.

- As tribos vizinhas lhes acolhem como inimigos?

- Não!

- Vocês são felizes e por quê?

- Sim, pois temos agora um verdadeiro chefe.

- Então dancem, festejem. A alegria deve raiar entre vocês. A alegria é sua razão de

viver. E a alegria se traduz em canto e bança. Cantem, dancem, batam nos tantãs. Minha

esposa Eyenga Nkabe sairá de sua casa de recém-casada depois de uma lua de festa.

Durante este tempo, eu repousarei, cerrado em minha casa. Que ninguém me perturbe.

Uma torrente de aclamações cobriu estas palavras. Depois, as festividades

retomaram seu curso.

Em Meka-Mezok, Engouang Ondo abriu bem os olhos e sondou o nevoeiro. Ele não

via nada. Angone Zok resmungou. “Pelo espírito de minha boa mãe, a tribo das Chamas

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sabe produzir homens! Oveng Ndoumou Obame é um mestre na arte de humilhar seus

adversários. Mas onde quer que ele se encontre, eu o encontrarei e farei chupar canas

amargas e fumar tabaco ardido!” Ele abriu o saco de couro amarrado em sua cintura, tirou

dele um pedaço de raiz enegrecida, mascou um pouco dela, cuspiu o conteúdo de sua boca

no apito de chifre de antílope que pendia em seu pescoço. Depois, ele levou este apito aos

lábios. Uma estridulação soou. Um longo ulular que parecia vir da floresta, do céu e das

entranhas da terra o respondeu. O chão começou a vibrar. Um vento quente subiu,

espantou a bruma e descobriu um sol radiante.

Os três homens de Engong, Engouang Ondo, Ntoutoume Mfoulou e Angone Zok

olharam a seu redor. A emoção os envolveu. Sem mais Eyenga Nkabe, sem mais Zé

Medang, sem mais Obiang Medza. O desastre parecia irreparável.

Angone Zok mergulhou a mão em seu saco de couro e tirou dele um camundongo

que colocou no chão. Com o pedaço de raiz que ele mascava, acertou o camundongo. Este

aumentou, tornou-se gigantesco. Duas longas presas saíram de sua boca, duas orelhas

enormes ressonaram nas suas têmporas. Angone Zok montou neste elefante extraordinário

que saltou em direção ao incomensurável país de Okü, em busca da tribo das Chamas...

Ntoutoume Mfoulou fervia de cólera. Ele não se perdoava por ter recebido uma

porretada sem revidar. Ele estava tão irado que não esperava mais encontrar Oveng

Ndoumou Obame um dia! Ele bateu no peito. Um pelicano branco caiu do céu, o ergueu e

bateu asas...

Engouang Ondo bateu no chão com seus pés. Uma bola de borracha saída da terra

o catapultou na atmosfera...

Os três homens de Engong, cada um de seu lado, reviraram as tribos de Okü,

interrogando todos que encontravam. Mas ninguém pareceu saber da existência da tribo das

Chamas. Encontrar-se-ia no fim do universo? Dias somavam-se aos dias. Oveng Ndoumou

Obame e seu mundo pareciam ter sido volatilizados. Depois de ter atravessado o Mar de

fogo, Engouang Ondo e seus homens se reuniram sobre a Cabeça da Terra, ali onde não é

dia nem noite. Uma lua havia passado. Nenhum traço da tribo das Chamas.

Angone-Zok inquietava-se sobre as costas do elefante. Ntoutoume Mfoulou bufava

como um hipopótamo. Apenas Engouang Ondo havia conservado esta calma extraordinária

que o tornava temível. Suas provisões haviam terminado. A fome começava a se fazer

sentir. Mas, neste ponto do globo, onde a vida não existia, eles não podiam achar

mantimentos. O que seria deles?

Os três homens montaram um conselho. Engouang Ondo disse:

- Há uma lua percorremos a terra sem alcançar a tribo das Chamas. Antes de

prosseguir nossas investigações, primeiro iremos organizar uma expedição a fim de

encontrar o que comer. Cada um de nós percorrerá uma parte deste território enquanto os

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outros o esperarão aqui. Sua ausência não deverá ultrapassar a duração de dois de nossos

dias.

Ntoutoume Mfoulou partiu primeiro. Ele percorreu este deserto frio, investigando aqui

e ali, mas não encontrou nenhuma presença humana. Depois de uma longa ausência, ele

retornou ao ponto de partida, de mãos vazias. Angone-Zok o substituiu e retornou

igualmente sem nada. Foi a vez de Engouang Ondo.

O chefe do exército de Engong se afastou de seus dois companheiros. Subiu uma

pequena colina, percebeu sobre o chão pegadas de animal parecidas às de um cachorro.

Ele as seguiu. Depois de um momento, ele chegou ao pé de uma montanha. Havia ali uma

gruta. Ele penetrou na gruta. Uma anciã, de pele sarnenta, de pernas comidas por chagas

pútridas, de cabelos desgrenhados, sujos e cheios de piolhos, estava sentada em um canto.

Moscas voam a seu redor. Ela era repugnante. Era Eleng-Akena, a rainha do fim do mundo.

Um grande cão esquelético, cujo focinho mostrava presas ameaçadoras estava deitado a

seus pés. Percebendo Engouang Ondo, ele emitiu um rosnado rouco. Eleng-Akena virou-se

e viu o homem em pé no meio da sala, ela deu um riso sinistro.

- Hé! Hé! Hé! Coitado! O que você vem fazer nos confins do universo? Aqui a fome

assombra e a solidão mata. Quem pôs os pés em meu reino não pode esperar sair dele.

- Procuro hospitalidade – disse Engouang Ondo, dissimulando habilmente seu nojo.

- Sente-se perto de mim. Vou lhe preparar algo para comer, pois você deve estar

com fome.

Engouang Ondo se perguntava como ele engoliria o que iria lhe oferecer esta pessoa

meio podre! Ele sentou-se. Ela exalava um odor de cachorro em decomposição. Tomado de

náuseas, ele reuniu todas suas forças para não vomitar.

Eleng-Akena abriu uma cesta, fisgou uma casca de amendoim com seus dedos em

forma de gancho, o descascou, moeu o grão sobre um seixo, pôs a pouca pasta obtida em

uma marmita cheia de água que ela equilibrou sobre o fogo. Uma escama de peixe jogada

na marmita completou este prato singular. Então, ela ativou o fogo. Após um instante, ela

espalhou em uma cesta uma folha de musanga e versou nela o conteúdo da marmita.

Completamente maravilhado, Engogouang Ondo arregalou os olhos: pedaços

suculentos de peixe, regados com um delicado molho de amendoim perfumavam o ar da

caverna com seu odor apetitoso.

- Mate sua fome – disse a anciã, empurrando para Engouang Ondo um outro cesto

de banana amassada.

O homem de Engong se refez. Mal ele acabou sua refeição, seus olhos pesaram. Ele

deitou-se sobre a esteira de palha, ao lado de Eleng-Akena e adormeceu.

Eleng-Akena levantou-se, fechou a gruta, pegou de sua bolsa de couro um chifre de

antílope que guardava um pó mágico. Ela mergulhou o índex no pó negro, traçou sobre sua

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fronte um risco vertical, lambeu o dedo e bateu secamente a língua contra o palato e então

espirrou. Instantaneamente transformou-se em uma moça soberba de cabelos abundantes e

boca triunfante. Ela estava aparatada com braceletes de marfim que reluziam na escuridão.

O interior da gruta havia igualmente mudado de aspecto. A palha havia dado lugar a uma

bela cama de ráfia coberto de tecidos de casca de árvores e de peles de pantera.

Eleng Akena deitou-se ao lado de Engouang Ondo. Este, a seu contato, despertou-

se. Inicialmente, ele esfregou várias vezes os olhos, recusando-se a crer no que via.

Finalmente, rendido à evidência, ele ficou literalmente aterrado. Através de qual milagre esta

velha pessoa meio decomposta havia se transformado em uma moça tão adorável?

Um sorriso envolvente iluminou o rosto de Eleng Akena. Ela pegou docemente a mão

de Engouang Ondo e a acariciou imperceptivelmente. Este gesto teve o poder de reviver

nele o instinto natural do homem frente ao belo sexo. Em um instante ele esqueceu Eyenga

Nkabe, Oveng Ndoumou Obame e toda a tribo das Chamas. Ele esqueceu seus irmãos

Angone-Zok e Ntoutoume-Mfoulou que, torturados pela fome, esperavam-no pacientemente

lá, do outro lado da montanha. Ele esqueceu todas as preocupações que seus deveres de

chefe criaram-lhe. Ele tinha apenas um pensamento: pegar esta moça e cerrá-la

agradavelmente contra seu peito. Mas Eleng Akena escapou-lhe e fugiu, em uma corrida

excitante, para o outro lado da sala. Guiado pelo brilho de seus braceletes, ele a perseguiu.

Leve e ágil, ela se deslocava com a velocidade de um animal que enxerga no escuro. O

outro a seguia, infatigável. Eles deram várias voltas na sala. Gotas de suor brotavam no

rosto de Engouang Ondo. Vendo-o nesta postura, era difícil persuadir-se que de tratava do

chefe venerado do povo mais poderoso do mundo. Assim, qualquer que seja sua grandeza,

o homem, frente a uma bela mulher, não passa de um homem.

Ele a alcançou. Digamos que antes ela se deixou alcançar. Na escuridão uma

pequena luta começou, que terminou com pequenos gritos abafados sobre a ráfia

roçagante.

Durante quanto tempo Engouang Ondo dormiu junto da bela Eleng Akena? Ele não

saberia dizer. A verdade é que, quando ele abriu os olhos, ele estava com a cabeça pesada

e o corpo mole. Ele alongou-se como um gato e sentou-se. Ele viu o que não queria ver:

Eleng Akena tinha voltado a ser uma anciã murcha, coberta de feridas fétidas. Ele fulminou:

- Você vai fazer toda esta podridão desaparecer agora, ou eu decepo esta cabeça de

feiticeira. Chega de brincar comigo como o vento faz com as folhas mortas. Comece agora e

rápido.

- Perdoe-me, homem de Engong. Eu sou a rainha do fim do mundo, e é impossível

para mim viver muito tempo no estado de moça. Posso apenas ajudar-lhe a encontrar seu

inimigo Oveng Ndoumou Obame e sua tribo. Eles habitam o grande vale circundado pela

cadeia de montanhas Enik-Ba.

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- Não me venha com histórias. Tema minha cólera, pois ela não perdoa. Volte

imediatamente a seu estado de agora a pouco, se não eu lhe torcerei o pescoço sem

nenhuma consideração.

- Não insista, Nang Ondo! Sua posição lhe proíbe de assassinar impunemente uma

pobre anciã sem defesa.

O chefe dos Imortais exasperou-se. Ele pegou Eleng Akena pelo pescoço e apertou

fortemente. Os olhos da velha saltaram das órbitas. Ela gritou. Neste momento seu cão

lançou um latido estridente e saltou na garganta de Engouang Ondo. Este a soltou enquanto

dava na boca do animal um soco formidável. O animal caiu para trás, mas logo voltou à tona

e cuspiu duas bolas de aço que bateram em pleno peito do homem. O choque foi tão terrível

que Engouang Ondo atravessou a montanha de lado a lado como uma flecha e aterrissou

no local onde o esperavam Angone Zok e Ntoutoume Mfoulou. Ele olhou do lado da

montanha e disse simplesmente: “Eu voltarei!” Depois fez sinal a seus irmãos para segui-lo.

Eu semeio o vento!

Sim!

Eu guio o elefante!

Sim!

Hoje é domingo!

Sim!

Que os ouvidos ouçam!

Que eles ouçam o mvett!

Eles andaram por muito tempo.

A cadeia de montanhas Enik-Ba encontra-se no país banhado pelo sol. Cobertas de

florestas luxuriantes, estas montanhas têm picos altos e flancos abruptos. Elas circundam

um dos vales mais populosos de Okü: Edoune-Zok-Avene-Obame. Este vale estende-se

desde as bordas do misterioso rio Abonong que carrega ondas de fogo até as margens de

Assoumami de águas superlotadas de hipopótamos e de crocodilos agressivos.

O sol tinha acabado de se pôr quando Engouang Ondo e seus irmãos atravessaram

o curso de Abonong, no lugar onde forma um soberbo lago de fogo. À noite o rio, magnífica

serpente brilhante, se vê de longe.

Ntoutoume Mfoulou e Angone-Zok estavam silenciosos. Não tendo compreendido o

sentido das últimas palavras de seu chefe, eles avançavam como autômatos. Eles o

seguiam persuadidos que agora ele conhecia o caminho que conduz à tribo das Chamas.

Uma a uma, as estrelas despontavam no firmamento. Os animais noturnos

recomeçavam a viver. Os grilos cantavam no mato alto. Os fourous dançavam no ar. Atrás

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de um arbusto, a pantera rosnava enquanto a jiboia, espichada preguiçosamente no leito de

um riacho, tinha dificuldade em digerir um antílope cornudo. Lá na floresta trabalhada pelos

homens, manadas de javalis devastavam as plantações de mandioca, os porcos-espinhos e

os ouriços chupavam canas-de-açúcar.

Exércitos de formigas dorylus de pinças ameaçadoras partiam para a conquista de

novos abrigos, não sem ter, de passagem, escavado o tapete de folhas mortas, refúgio de

minhocas, baratas e gafanhotos. Perto de uma aldeia, corujas piavam sobre as palmeiras.

Ao longe, ressoavam batidas de pilão. O vento trazia o odor de fumaça escapada das casas.

A vida fervilhava dentro dos córregos. Ela fervilhava sob as árvores. Fervilhava em todos os

lugares, para benefício de uns e em detrimento de outros...

Ntoutoume Mfoulou queria chegar à aldeia de uma forma particular. Ele se fez

anunciar por uma longa apitada em um chifre de búfalo. No corpo da guarda a conversa

mudou de assunto.

- Estrangeiros estão a caminho – disse Abogo, retirando seu cachimbo da boca.

- Que venham – acrescentou Dzimi. – As casas são grandes, a comida é abundante.

Moças atraem dotes. Temos com o que satisfazer uma tribo de estrangeiros.

- Você pensou nas conversas a serem mediadas? – insinuoa Assame. – Há

estrangeiros e estrangeiros! Estes que se anunciam através do chifre de búfalo são

gigantes. E verdadeiramente eu não tenho nenhuma vontade de fazer negócios com eles.

- Desde que você desposou Abemé Ndoumou, irmã de Oveng Ndoumou Obame, da

tribo das Chamas – retomou Dzimi – você se tornou egoísta, avaro e medroso. No entanto,

dizem que seu cunhado é rico e poderoso. No seu lugar, eu já seria um homem conhecido.

- Os parentes dos homens poderosos – disse Assame – são mais expostos à morte

do que os outros. Os estrangeiros que estão a caminho provavelmente procuram meu

cunhado Oveng Ndoumou Obame. Contam muitas histórias de seu casamento com Eyenga

Nkabe, o que me inquieta enormemente.

- Se tranquilize, irmão Assame. Oveng Ndoumou Obame é duro como cristal. Vencê-

lo é colher a lua.

- Eu sei, mas...

Neste momento, Ntoutoume Mfoulou saltou e foi plantar-se diante do corpo da

guarda. Os olhos brilhantes, perguntou:

- Tem vapor?100

- Um vapor inofensivo – respondeu Assame, tremendo de medo à vista deste homem

exageradamente gigante – Nesta aldeia, somos fracos como mulheres e falamos apenas a

100 Tem vapor: Vocês são belicosos?

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linguagem dos caçadores de ratos e dos pescadores de caranguejos. Mas as jovens

pululam e as casamos sem dote.

Satisfeito, Ntoutoume Mfoulou tornou:

- Esta bem! Vocês já ouviram falar de Oveng Ndoumou Obame, da tribo das

Chamas?

- Nosso irmão Assame, que acabou de falar com você, casou, há meia lua, com sua

irmã mais nova. Se você quiser, ele pode lhe levar até seu cunhado.

Ntoutoume Mfoulou exulta:

- Bom. Vamos passar a noite nesta aldeia; amanhã, nosso amigo Assame nos

conduzirá até Oveng Ndoumou Obame. Estamos a caminho da tribo das Chamas –

acrescentou para Engouang Ondo e Angone Zok que chegavam neste momento.

E, desesperado, Assame queixa-se:

- A tribo das Chamas fica longe a quatro dias e quatro noites de caminhada daqui.

Estou com dores de cabeça e de dente violentas que não me permitem completar viagem

como esta.

- Certo, disse Ntoutoume Mfoulou. Iremos tão rápido que seus males não terão

tempo de lhe oprimir.

Assame compreendeu que era inútil insistir. Ele contentou-se de dar um rosnado

sinistro.

Engouang Ondo esfregou o peito. Um pedaço de cristal saiu dele, com o qual ele

bateu no chão. Um rochedo enorme saiu da terra, ultrapassou com sua massa as duas

fileiras de casas que formavam a aldeia. No topo, Engouang Ondo e Angone Zok já estavam

passeando em toda sua extensão. Ntoutoume Mfoulou, que havia se demorado na aldeia,

se juntou a eles alguns instantes depois, sobrecarregado de mantimentos.

Comendo, os três homens conversavam sobre a maneira com a qual conviria

combater Oveng Ndoumou Obame. Ntoutoume Mfoulou e Angone Zok eram da opinião que

um corpo-a-corpo duro e feroz acuaria este cabeça dura. Engouang Ondo achava este

procedimento rudimentar, ineficaz e pouco elegante.

- Oveng Ndoumou Obame – dizia – é um homem poderoso. Homem e ferro, suas

reações são imprevisíveis. Devemos lhe oferecer um combate digno de sua posição.

Eles se calaram. De repente, Ntoutoume Mfoulou apertou os lábios, enrijeceu-se,

espirrou. Uma névoa saiu de suas narinas e espalhou-se pela atmosfera.

- Que meu espírito espalhe-se pela aldeia e pela floresta – ele disse.

- O que é? – Perguntou Angone Zok.

- É o nosso amigo Assame. Certamente ele tem a intenção de nos deixar sem avisar.

Assame tinha esta ideia em mente. Feliz de sentir-se livre depois da partida de

Ntoutoume Mfoulou, ele caiu na gargalhada:

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- Meus irmãos, eu lhes dou tchau. Os estrangeiros estão dormindo sobre o rochedo.

Eu tomo o caminho para a floresta. Eles precisarão de olhos de fantasma para me

encontrarem lá. Vocês se arranjem com eles amanhã de manhã.

- Eu faço como você – disse alguém.

- Eu também – acrescenta outro.

Pouco a pouco o corpo da guarda esvaziou-se. Assame atravessou a praça, entrou

na casa de sua mulher Abemé Ndoumou, irmã de Oveng Ndoumou Obame.

- Abemé, estes homens-crocodilos que dormem sobre o rochedo procuram seu

irmão. Dzimi me traiu no corpo da guarda, revelando nossos laços de parentesco. Eles me

ordenaram de acompanhá-los amanhã até a tribo das Chamas. Mas eles parecem ingênuos,

pois me deixaram com as mãos e os pés livres. Vamos tranquilamente desaparecer sem

deixar rastro. Não seria bom que meu cunhado me tomasse por um traidor. Fujamos então:

a floresta nos chama! Bem malicioso aquele que nos apanhará lá!

- O quê? – rosnou Abemé. – Ao invés de impedir estes homens de ir à tribo das

Chamas, você fala de se esconder na floresta? Ah, minha Mãe, por que eu aceitei desposar

um homem como este? Irmão Oveng Ndoumou Obame, seu cunhado é um covarde!

- Impedi-los? O tamanho deles não lhe diz nada? Fique se você quiser. Eu darei

notícias em dois dias.

Assame enfiou-se sob as bananeiras, seguiu uma trilha dificilmente visível,

desapareceu sob as árvores, atravessou um córrego, subiu uma colina. De repente, como

em um conto de fadas, a floresta iluminou-se e ele encontrou-se cara a cara com Ntoutoume

Mfoulou. Imperativo, este lhe ordenou de retornar imediatamente à aldeia. Atordoado,

Assame deu meia volta, retomou o caminho de volta e, sem fôlego, chegou à praça. Ele

olhou sobre o rochedo: Ntoutoume Mfoulou estava lá, deitado de costas, roncando como um

gorila saciado!

- Estou sonhando, - disse Assame, completamente aturdido. E pôs-se a cantar:

Que coisa, meus tios!

Oh! Que coisa!

Eu vou dentro da floresta,

Encontro Ntoutoume Mfoulou

Retorno à aldeia,

Vejo Ntoutoume Mfoulou.

Que coisa, meus tios!

Oh! Que coisa!

Este homem é alucinante;

Mas devo fugir,

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Para não perder minha esposa.

Que coisa, meus tios!

Oh! Que coisa!

Novamente, ele penetrou na floresta. Mas Ntoutoume Mfoulou estava em todos os

lugares e em lugar nenhum. Os aldeões que haviam tido a ideia de fugir encontraram-no sob

os manguezais, no leito dos riachos, sobre as colinas. Voltaram para o ponto de partida.

Olharam para o rochedo. Ele ainda estava lá. E foi assim a noite toda.

Esgotado, Assame deitou-se finalmente ao lado de sua mulher sobre a cama de

bambu. Ele acendeu seu cachimbo e pôs-se a pensar, enviando para o teto de palha

enormes baforadas de fumaça. Tinha acabado para ele! Forçado a conduzir estes homens à

tribo das Chamas. Mas como reagirá seu cunhado, Oveng Ndoumou Obame, quando eles

emergirão da trilha? A tradição proíbe de trair os cunhados sob pena de divórcio obrigatório!

Assame virou-se, retirou o cachimbo dos lábios e olhou longamente sua jovem mulher que

dormia pacificamente, o colo cada vez mais provocante. “Ela é muito bonita – pensou – eu

daria todos os meus bens para mantê-la eternamente”.

Na realidade, Assame não tinha grande coisa. No ano passado, ele colheu de suas

plantações três cestas de sementes de pepino e quatro cestas de amendoim. Ele tinha duas

casas, um rebanho de carneiros, algumas aves domésticas. Armadilhas na floresta

completavam o que ele chamava de sua riqueza. Era pouco, mas era suficiente. Assame

dizia-se rico, pois sabia que a quantidade de gordura de um animal é proporcional a seu

tamanho.

Atrás das casas, as perdizes puseram-se a cantar. Os morcegos calaram-se. Um

galo se sacodiu e então cacarejou estridentemente. Outros responderam-lhe. Na praça, um

bode advertiu suas fêmeas através de um balido irregular que o momento de seus amores

tinha chego. Elas fugiram balindo, mas ele as perseguiu, distribuindo-lhes patadas e

chifradas. O dia estava próximo.

Sobre as palmeiras os queleas de bico vermelho já piavam. Uma a uma as portas

das casas se abriam. As pessoas saiam. Um homem avançou até o meio da praça, parou e

disse:

- Que este dia seja bom para todos. Que ele traga a paz e a felicidade a nossos

estrangeiros!

- Obrigado, meu amigo- gritou Ntoutoume Mfoulou, já em pé sobre o rochedo – você

sabe falar. Que a paz reine igualmente entre vocês! Mas diga para Assame se levantar, pois

nos poremos a caminho imediatamente.

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- Ei! Irmão Assame, você esqueceu que deve conduzir nossos hóspedes até seu

cunhado Oveng Ndoumou Obame? O sol já está atrás da montanha verde e nossos

estrangeiros se impacientam. Rápido, em pé!

Assame, que havia passado a noite sem dormir, levantou-se, os olhos pesados de

sono. Ele bocejou. Esfregando as órbitas com os punhos, ele ordenou a sua mulher de

preparar a cesta de viagem. Depois, ele pegou na caixa de bambu que oscilava em cima do

fogo, uma pequena cabaça enegrecida pela fumaça, abriu-a, verteu o conteúdo – um pó

negro e picante – na palma de sua mão esquerda. Com o dedão e o índex da outra mão, ele

separou pequenas quantidades deste pó que introduzia lentamente em suas narinas,

aspirando com força. Um frisson percorreu sua medula desde os pés até o cérebro. Seu

corpo se convulsionou e ele espirrou violentamente, projetando diante de si um jato de

saliva branca.

- Que os espíritos da tribo me protejam contra os infortúnios que me ameaçam –

murmura.

Um pouco mais tranquilo, ele cruzou o vão da porta, seguido por sua mulher.

- Pronto? – Perguntou Ntoutoume Mfoulou.

- Pronto! – Respondeu Assame.

- Então, a caminho, e pelo melhor atalho!

Precedidos por seu guia e sua mulher, os três homens de Engong seguiram com um

passo rápido a trilha que conduzia à tribo das Chamas. Eles andaram o dia todo, apenas

parando para se alimentar. Perto do cair da noite, escutava-se ao longe o zumbido de

tantãs.

- A tribo das Chamas! – Disse Assame, o coração batendo.

- A tribo das Chamas! – Repetiu Ntoutoume Mfoulou – Lá dançam e festejam

enquanto que eu estou suando nesta maldita trilha! Oveng Ndoumou Obame me pagará

caro por isso!

- O que ele lhe fez? – Perguntou a esposa de Assame.

Ntoutoume Mfoulou franziu a testa e fulminou:

- Quem te permitiu fazer tais questões?

- Oveng Ndoumou Obame é meu irmão e eu tenho o direito de saber o que vocês

querem com ele.

Os olhos de Ntoutoume Mfoulou lançaram chamas. Seus cabelos eriçaram-se em

sua cabeça como espinhos. Agarrando a jovem, ele ergueu-a da terra, aproximou-a de seu

rosto e projetou seu fluido hipnótico. Uma dor fulgurante açoitou o corpo da pobre criança

que gritou. Assame rolou aos pés de Ntoutoume Mfoulou, implorando-lhe:

- Deixe-a viver, oh homem de Engong. Ela é louca, sempre foi louca. Pela caridade

de sua mãe e pela bondade de seu chefe, deixe-a viver!

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Ntoutoume Mfoulou a colocou no chão:

- Da próxima vez, caberá a você impedi-la de ser insolente. As mocinhas vêm ao

mundo para aprender não a fazer perguntas mas a obedecer e a servir.

Eles retomaram o caminho e tiveram que andar ainda muito tempo antes de alcançar

as primeiras aldeias da tribo das Chamas. Estas estavam vazias: a população toda estava

em Nkobam, aldeia de Oveng Ndoumou Obame. Os tantãs continuavam a zumbir.

A noite tinha caído completamente. Estava fresco. O céu estava limpo. Nenhuma

nuvem, nenhuma mancha escura ousava macular este firmamento salpicado de estrelas. A

lua, redonda, parecia imóvel. Ela espalhava sobre a natureza seus raios brilhantes de

brancura.

O momento em que as aldeias se animam, em que os homens retomam o vigor e em

que as danças se endiabravam tinha chego. Nkobam exultava nesta noite. Os tantãs

estavam frenéticos. Ágeis e brilhantes sob o luar, os corpos agitavam-se ao som de

instrumentos musicais. Os guizos tilintavam. Sob um galpão construído com este propósito,

um homem tocava mvett, cercado de um grande número de ouvintes. Para excitar os

dançarinos e as dançarinas, os homens davam tiros com espingardas, que o chefe da tribo

excepcionalmente havia posto à sua disposição. O eco de suas detonações repercutia sobre

as montanhas circundantes. Celebravam o casamento de Oveng Ndoumou Obame e de

Eyenga Nkabe.

Desapercebidos, os três Imortais conduzidos por Assame entraram nesta aldeia

cheia. Dirigiram-se para uma casa vazia de seus ocupantes, instalaram-se ali

confortavelmente, então a fecharam hermeticamente. Ali, enquanto que fora elevava-se mil

sons da festa, eles esperaram o dia. Eles sentiam que Oveng Ndoumou Obame estava

próximo. Ele estava lá, na grande casa de pedra que ficava no outro canto da aldeia! Sim,

ele estava lá, Engouang Ondo o confirmou alguns instantes mais tarde, depois de ter

consultado seu espelho mágico. Ele estava lá e não lhes escaparia mais. Zé Medang e

Obiang Medza também estavam lá, prisioneiros sobre tambores diabólicos!

Ntoutoume Mfoulou zombou:

- Esta noite é fria e eu tremo como uma galinha. Amanhã só de ver Oveng Ndoumou

Obame meu nervos voltarão. Eu lhe darei de presente um belo estratagema que eu acabei

de imaginar.

- Sim – aprovou Angone Zok – é tempo de fazer-lhe compreender que ele é apenas

uma pobre “Rã-empoleirada-sobre-um-cipó-com-as-patas-balançando”. Ficaria chateado se

não lhe desse uma bofetada na cabeça que lhe fizesse ver milhares de estrelas fulgurantes.

E os dois começaram a rir.

Engouang Ondo, quanto a ele, estava silencioso. Ele refletia sobre os meios a

empregar para vencer seu inimigo. Pensava na bela Eyenga Nkabe de quem a tribo das

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Chamas festejava o casamento. Pobre Nkabe Mbourou! Ele havia enviado sua filha à

Engong para ser vingado de Oveng Ndoumou Obame. Ele havia dito a Engouang Ondo para

desposá-la sem dote. E agora o homem da tribo das Chamas se pretendia seu esposo! Aí

está uma bela forma de insultá-lo, a ele, o chefe dos Imortais, e de humilhar todo o povo de

Engong. Sim, era necessário reparar tudo isso, colocar sua reputação em ordem. E ele o

faria. Não era ele, Engouang Ondo, o homem de poder mágico, insondável? Não encarnava

ele o Sève, que nutre as plantas, a Água que mantém a Vida e o Fogo, do qual é a fonte?

Não comandava ele os espíritos, os seres e as coisas? O sol seria extinto se Engouang

Ondo quisesse! E então!

Eu semeio o vento!

Sim!

Eu guio o elefante!

Sim!

O que escutam seus ouvidos?

Eles escutam o mvett!

Do lado de fora, as festividades continuavam de vento em popa. A natureza mesmo

parecia misturar-se às manifestações dos homens. A brisa fresca que vinha da floresta

carregava sobre suas asas invisíveis o perfume inebriante das plantas. Seu sopro acabava

com a fatiga, aniquilava a fome e a sede. As aves noturnas de rapina que, normalmente,

aterrorizavam as mulheres com seus cantos lúgubres, não tinham mais efeito sobre o

espírito dos humanos.

A alegria tinha também tomado os animais selvagens. Na mata fechada, macacos,

que o sono havia poupado em respeito à festa dos homens, brincavam de pula-sela sobre

os galhos. Elefantes, em um pântano, vadiavam na lama, em uma dança grotesca. Com

gestos cômicos, chimpanzés gingavam em círculos ao pé de uma mafumeira. Sobre o topo

de uma colina, uma manada de búfalos raspava as patas no chão e depois, em um galope

ruidoso e vertiginoso, desceu o barranco cheio de mato.

As águas do Assoumami passavam, elas também, por uma grande animação.

Inumeráveis crocodilos glaucos perseguiam cardumes de peixes que não chegavam a

capturar. Carpas e lúcios executavam saltos sensacionais à superfície do rio, enquanto que

caranguejos corriam como cascalho jogado sobre a areia. Na superfície da água,

hipopótamos abriam bocas enormes, sopravam ruidosamente, depois desapareciam nas

profundezas líquidas. Os pássaros pescadores e os patos selvagens, depois de mergulhos

maravilhosos, retornavam à tona, de bico vazio.

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Era, no entanto, noite, mas uma noite como o dia, pois Oveng Ndoumou Obame, o

homem poderoso, celebrava seu casamento!

Onde então ela se escondia, esta bela moça cujo apenas o nome enchia de

admiração as mais belas moças do país?

Em uma casa, bem ao fundo da aldeia, Eyenga Nkabe escutava, atenta, os cantos

de sabedoria que as anciãs da tribo desfiavam:

Cantemos, comadres!

Cantemos pela noiva,

Uma noiva, uma noiva,

Uma noiva é uma mulher verdadeira

Que dá de beber a todos,

Que honra as comadres mais velhas,

Pois elas ensinam a tradição,

Que teme aqueles do corpo da guarda,

Pois eles protegem a tribo;

Que trabalha nos campos

E nutre a família;

Que incha a tribo101.

Cantemos por ela,

Cantemos pela noiva!

Eyenga Nkabe estava de cabeça abaixada. Sua nova situação lhe criava deveres

nos quais ela se focaria agora. Esposa de um homem poderoso, ela deveria maravilhar o

mundo através de sua conduta e sua amabilidade. Ela deveria ser modelo para todas as

moças da tribo das Chamas. Sua reputação irradiaria das margens do Assoumami às

bordas avermelhadas de Abonong. Falariam dela para além de Okü, até o país das tribos

imortais Bekü, os Pigmeus, que ocupam desde tempos imemoriais as grandes florestas

impenetráveis onde as montanhas têm a crista oculta pelas nuvens durante o ano todo.

Talvez falassem dela mais longe, perto do sol, na terra quente habitada por Evoung Tom

Obiang que, segundo contam, tinha tido problemas ferozes com Akoma Mba, o chefe

supremo dos Imortais, ao longo da grande sessão de feitiçaria que aconteceu em Mbel-

Alène e revelou ao mundo o poder da magia. Este homem, vindo de muito longe, havia

escalado a Lua e havia introduzido-se sub-repticiamente no vasto círculo oculto que

formavam todos os magos da Terra em Mbel-Alène. Mas, sempre vigilante, Akoma Mba o

101 Que incha a tribo: que faz muitos filhos.

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percebeu, achou esta farsa desagradável e jogou-se logo contra o intruso. Este foi o

começo desta célebre rixa, cuja lembrança nenhum tocador de mvett pode deixar escapar.

Bissiga-Ndong, o Pigmeu organizador desta extraordinária sessão mágica, fugiu com sua

tribo para a floresta fechada, onde tornou-se invulnerável. Evoung Tom Obiang, depois de

um combate feroz, retornou para junto de seu povo, completamente decepcionado com a

forma com a qual os homens da Terra ainda praticavam as ciências sagradas. Quanto a

Akoma Mba, ele monopolizou todos os amuletos abandonados pelos feiticeiros, amuletos

que dão atualmente poder e imortalidade a seu povo.

Eyenga Nkabe estremeceu: a imagem de Engouang Ondo foi revivida em sua

memória. Onde estaria atualmente este homem de Engong ao qual seu pai havia confiado

os cuidados de sua vingança? Oveng Ndoumou Obame já teria triunfado sobre os Imortais?

Ela se entristeceu, certa de que sua estranha aventura havia apenas começado.

Imperceptivelmente, a noite havia dado lugar ao dia. Nada de bruma nesta manhã. O

sol anunciava-se forte. Seus raios já queimavam. O calor fatigava os homens tomados por

uma espécie de torpor indefinível. Um a um os tantãs calaram-se.

Os homens caiam sobre o chão poeirento, incapazes de retornar às casas. Logo, um

silêncio angustiante estabeleceu-se na aldeia e na floresta...

Ntoutoume Mfoulou, através de um buraco feito na parede de casca de árvore, deu

uma olhada para fora. O espetáculo destes corpos inertes deitados desordenadamente na

praça o satisfez.

- Podemos sair – ele disse – Eles estão dormindo como pedra. Acabaram-se línguas

indiscretas, Acabaram-se gritos de mulheres amedrontadas.

Engouang Ondo ditou suas ordens:

- Cabe a você, Ntoutoume Mfoulou, liberar Zé Medang e Obiang Medza de seus

tambores mágicos. Eu acordarei e aterrorizarei os adormecidos no exato momento em que

Oveng Ndoumou Obame sair de sua casa. A desordem em toda a aldeia será indescritível.

Angone-Zok, você pegará Eyenga Nkabe e a levará para Engong. A batalha será dura, pois

Oveng Ndoumou Obame enfim vai revelar sua verdadeira face. E tenho dito.

Eles saíram.

Ntoutoume Mfoulou deu um pulo prodigioso, aterrissou sobre o telhado da casa de

Oveng Ndoumou Obame, deu um grito estridente, atravessou a cobertura e foi se encontrar

entre Zé Medang e Obiang Medza, esfregou o peito e retirou dele um pedaço de raiz

embebida em um óleo enegrecido, então traçou círculos sobre os tambores.

Instantaneamente, como propulsados por molas de poder inconcebível, os dois prisioneiros,

seguidos de seu libertador, passaram para fora do quarto, planaram um momento sobre as

casas e voltaram para a praça. Neste momento, Oveng Ndoumou Obame apareceu na

varanda. Engouang Ondo assoviou.

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Foi um caos terrível. Como impulsionada por uma varinha mágica, toda a multidão

acordou bruscamente. À vista dos Imortais, as mulheres deram gritos assustados que

enlouqueceram irresistivelmente os homens. Em uma desordem tumultuosa, todos aqueles

que, durante semanas, se dedicaram de corpo e alma à dança, todos os que haviam

adorado o chefe da tribo das Chamas como um deus e cantado seus louvores, o acusaram

de ter querido modificar o curso natural da existência, o maldisseram e então

desapareceram atrás das casas...

Angone Zok pulou, descreveu uma trajetória nos ares, atravessou de um lado a outro

a casa da recém-casada, raptando Eyenga Nkabe de passagem, esfregou o peito e tirou

dele uma presa de elefante com a qual bateu nas costas da moça. Uma bala saindo do cano

de um fuzil não seria propulsada com tanta força como foi esta moça das Tempestades que,

transformada em verdadeiro meteoro, chamejou a atmosfera e, alguns instantes depois,

aterrissava em Engong, na varanda de Okoma Mba. Este abriu-lhe a porta, instalou-lhe em

um monte de amuletos e disse-lhe:

- Minha norinha, sente-se e espere pacientemente aquele que seu pai escolheu para

seu esposo: Engouang Ondo.

Mas voltemos à tribo das Chamas.

Assim que Oveng Ndoumou Obame viu Eyenga Nkabe desaparecer nas nuvens, ele

pulou. Não teve tempo de ir longe, pois Ntoutoume Mfoulou o havia logo pego pelos ombros.

- Acabou-se o tempo das brincadeiras – disse o homem de Engong – Você aceita o

combate?

- Me fazer esta pergunta depois de uma provocação como essa é uma injúria à

minha tribo – respondeu o homem das Chamas.

Instantaneamente, Oveng Ndoumou Obame e Ntoutoume Mfoulou pularam. Como

dois bodes ferozes, eles se chocaram um contra o outro com tal violência que o choque

produziu faíscas ofuscantes. Eles se agarraram brutalmente, enlaçaram-se, se cerraram e,

como fantasmas exasperados, levantaram da terra. Seus pés chutavam o ar, fazendo voar,

de todos os lados, as casas, as mafumeiras e todas as grandes árvores que se elevavam

perto da aldeia. De repente, o braço de Ntoutoume Mfoulou se relaxou. O punho, de uma

força prodigiosa, atingiu Oveng Ndoumou Obame no queixo. A carapaça metálica com a

qual era constituído o corpo do homem da tribo das Chamas se aqueceu. Oveng Ndoumou

Obame tornou-se incandescente.

Desde que Ntoutoume Mfoulou, o impetuoso, havia se devotado de corpo e alma às

lutas, ele nunca havia encontrado um par. Dessa vez ele estava servido: Oveng Ndoumou

Obame era do tamanho certo.

Ntoutoume Mfoulou assoviou:

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Vi! Violi! Violi! Vio! Vi! Vi!

Saturado de força e de poder,

Gostaria de encontrar um igual!

Vi! Violi! Violi! Vio! Vi! Vi!

Que a morte me mate,

Se ela for capaz!

Vio! Vio! Vi! Violi! Vio!

Ele estendeu seu braço esquerdo. Uma bola de cobre surgiu de sua axila, bateu na

fronte de Oveng Ndoumou Obame e então, em um rugido enlouquecedor, explodiu em um

feixe de faíscas queimantes. Oveng Ndoumou Obame gritou. O céu lhe respondeu através

de uma trovoada. O relâmpago se abateu sobre Ntoutoume Mfoulou que logo foi cercado de

chamas.

Ntoutoume Mfoulou sentiu calor. Fazia tempo que ele não sentia calor. Em pé, no

meio das chamas, ele parecia um desses fantasmas que vivem eternamente no fogo do

inferno. Empurrando a ponta do masculino dedão do pé direito no chão, ele se catapultou

tão prodigiosamente nos ares que sua coluna roçou a abóbada celeste enquanto que ele

descrevia uma trajetória gigantesca. Executando um salto mortal acrobático, ele se dirigiu

tão impetuosamente em direção ao chão que as chamas, incapazes de segui-lo, ficaram

suspensas no vazio.

Oveng Ndoumou Obame levantou a cabeça e viu Ntoutoume Mfoulou se atirar em

sua direção como um gavião sobre sua presa. Ele sorriu: este homem de Engong sabia

mesmo lutar!

Segurando nas duas mãos um martelo de ferro grande como uma tora de aucoumea,

Ntoutoume Mfoulou aterrissou sobre os ombros do homem da tribo das Chamas e goupeou-

lhe a cabeça com um golpe terrível. O martelo partiu-se em pedaços. Oveng Ndoumou

Obame vibrou de dor. Ele cuspiu. Duas pontas de ferro saíram de suas narinas, assoviaram

como flechas e atingiram Ntoutoume Mfoulou no queixo. Com os pés chutando o ar, o

homem de Engong foi precipitado à terra e se levantou arduamente, acariciando seu queixo

ferido. Depois, ele bateu no peito, tirou dele um frasco cheio de um óleo enegrecido que

bebeu de uma vez. Ele sentiu-se refrescado. Ele inflou o torso, aspirou pelo nariz uma

grande baforada de ar que rejeitou ruidosamente pela boca.

- Que cabeça dura – ele urrou para Oveng Ndoumou Obame – Por que você não

morre, homem da tribo das Chamas? Você não sabe que eu sou um verdadeiro imortal, o

próprio filho de Mfoulou contra o qual você disputaria em vão durante anos? Morra! A morte

lhe chama! Eu a vejo rondar em torno de suas pernas, como uma mosca amarela ávida de

sangue humano!

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Oveng Ndoumou Obame se calava. Ele vigiava atentamente o homem de Engong.

Ele sabia que este homem queria distraí-lo e aproveitar-se disso para dar-lhe um golpe fatal.

Ele estava suficientemente advertido dos métodos de combate dos Imortais. Um único

instante de desatenção podia custar-lhe caro.

Ntoutoume Mfoulou assoviou. O trovão ribombou. Um arco-íris caiu sobre Oveng

Ndoumou Obame.

Nenhum espetáculo jamais havia sido tão impressionante! Com seus anéis horríveis,

o arco-íris tentava arrancar Oveng Ndoumou Obame da terra para levá-lo ao infinito. Mas o

filho de Ndoumou Obame era tão pesado quanto uma montanha! A serpente celeste cuspiu

chamas que não tiveram nenhum efeito sobre aquele corpo de ferro.

Oveng Ndoumou Obame bateu no peito e tirou dele um guizo metálico. Ele assoviou.

O guizo abocanhou o arco-íris e o volatilizou!

Ntoutoume Mfoulou estralou os dedos, e então segurou seu queixo em sinal de

admiração.

- Pela careca de Akoma-Mba – jurou ele – este homem é diabólico. Mas estou

ansioso de lhe provar que pertenço ao povo mais poderoso do globo.

Ntoutoume Mfoulou iria estourar. Depois de ter medido a força de seu adversário, ele

sentia agora o poder deste homem de ferro.

No entanto Oveng Ndoumou Obame ainda não tinha realmente lutado. Tudo o que

ele havia feito até agora era apenas um prelúdio ao duelo que iria opô-lo a Engouang Ondo,

o chefe guerreiro de Engong. Ele temia este homem de calma extraordinária, este homem

que parecia sondar as profundezas do Conhecimento para extrair segredos dele.

De seu lado, Engouang Ondo não conseguia acalmar-se. Com os olhos, ele havia

seguido Ntoutoume Mfoulou nas lutas com Oveng Ndoumou Obame. Deste combate,

resultava que o homem da tribo das Chamas não tinha nada em comum com estes mortais

de fácil captura. Esta situação era ainda mais delicada porque o prêmio, neste caso, se

chamava Eyenga Nkabe. Em outras circunstâncias, Engouang Ondo teria encontrado um

álibi para evitar o duelo.

Ele não gostava de lutar. Não que procurasse fugir a seus deveres de chefe, mas ele

considerava este papel indigno de sua classe. Expor sua reputação em uma batalha de

resultado imprevisível é sempre perigoso para um homem tão venerado como era o

responsável pela segurança de Engong.

Mas Ntoutoume Mfoulou, seu adjunto direto, apesar de sua força não tinha podido

dar fim a Oveng Ndoumou Obame. Deixá-lo continuar a lutar agora se revelava inútil.

Engouang Ondo se decidiu: ele lutaria. Ele provaria a Oveng Ndoumou Obame que

sob sua calma aparente se escondia o espírito mais fanático que o mundo já havia gerado.

Ele lutava para vingar Nkabe Mbourou e para desposar Eyenga Nkabe.

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Ntoutoume Mfoulou pulou, mas Engouang Ondo parou-o em pleno voo.

- Chega! – Disse-lhe – Você lutou corajosamente contra um adversário temível. Você

não tem nada do que se envergonhar. Seu dever cumprido, apenas lhe resta continuar

testemunha de nosso duelo. Que Zé Medang e Obiang Medza retornem à Engong!

Então o chefe de Engong avançou para Oveng Ndoumou Obame. Oveng Ndoumou

Obame avançou para o chefe de Engong. Os dois adversários se apertaram calorosamente

as mãos então, bruscamente, separaram-se executando, cada um, um fantástico salto

mortal. Era o início da grande batalha.

Eu semeio o vento!

Sim!

Eu guio o elefante!

Sim!

Que os ouvidos ouçam!

Que eles ouçam o mvett!

Os homens em fuga haviam atravessado florestas e rios. Eles levavam com eles a

terrível notícia: Engouang Ondo estava em luta contra Oveng Ndoumou Obame, da tribo das

Chamas, em Nkobam. De aldeia em aldeia, de tribo em tribo, esta notícia corria com uma

rapidez inimaginável.

A época dos noivados, dos casamentos, dos festejos estava interrompida. Cada um

sabia que um combate de gigantes é uma calamidade e não queria deixar de viver. Por que

então deixar de viver? A vida é boa, é preciso conservá-la a qualquer preço. Por isso era

necessário fugir, fugir sempre! Fugia-se então sempre em frente. Era necessário alcançar

em um tempo recorde as regiões mais afastadas da tribo das Chamas. As trilhas que

cruzam as florestas fervilhavam de gente. Os bebês que as mães levavam montados nas

costas com a ajuda de um cinto de pele de animal choravam, irritados com os balidos dos

carneiros e com cacarejo das galinhas que eram levados nesta fuga vertiginosa e

interminável.

Terrificadas pelas fofocas de todos que chegavam do lado de Nkobam, todas as

tribos compreendidas entre Abonong e Assoumami emigravam agora em direção das

regiões mais clementes banhadas pelo grande rio Biwolé.

Este rio tem sua nascente no pé do grande massivo Dzeglé, se desvia do caminho

seguido pelo sol em seu curso e vai se perder à direita, no país dos ventos.

Na superfície do Biweolé via-se de outra feita, há muito muito tempo, uma moça

sentada sobre as costas de um enorme crocodilo, abaixo da aldeia Ebome. Eyumane Olé,

filha de Olé Mfegue, da tribo de Ngoul, a Força, era bela como uma fada. Seu pai, que não

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queria se separar desta criança adorável, colocou-a ali e deu ao mundo esta estranha

notícia: “Para desposar minha filha, basta tirá-la das costas do crocodilo!”

É inútil dizer que ninguém ousava enfrentar este réptil amedrontador, de boca

ameaçadora, quanto mais que aqueles que tinham tentado acabaram estraçalhados neste

abismo profundo.

Uma vez mulher, e desejando levar uma existência normal, a bela Eyumane passava

seus dias a cantar:

Estou sentada no crocodilo!

Y a a a!

Estou sentada no crocodilo!

E sem nenhum marido!

Y a a a!

Os homens são tão medrosos quanto mulheres!

Y a a a!

Eu agrado aos homens e todos me amam!

Y a a a!

Mas ninguém ousa se aproximar de mim!

Y a a a!

Os homens temem o crocodilo!

Y a a a!

Apenas Zé Medang pode me tirar daqui!

Y a a a!

Estou sentada no crocodilo!

Y a a a!

E cada vez que pessoas atravessavam o rio, este canto patético ressoava. Mas à

vista do crocodilo, contentavam-se em contemplar essa bela moça condenada a viver sobre

este monstro rugoso.

Estações chuvosas somavam-se a estações chuvosas. Eyumane não esperava mais

se casar. Os chamados reiterados que ela lançava em direção de Engong para chamar Zé

Medang para as margens do Biwolé continuavam sem resposta. Contudo, cada vez que os

homens atravessavam o rio, ela continuava a cantar.

Seu desespero agora cedia lugar à resignação, até que um dia, Awoune Mvé, da

tribo das Abelhas, veio a passar. De costas largas, a tez bronzeada, o peito poderoso, este

homem era delgado. Ele tinha vinte e cinco grandes estações secas, o olhar fulgurante,

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músculos de aço e passava uma impressão de vigor singular. Eis que fazia uma lua que ele

viajava através do país em busca de uma esposa digna das honras de sua tribo.

Logo que ele alcançou a borda do rio, que ele escutou o canto misterioso e que seu

olhar pousou sobre Eyumane Olé, Awone Mvé acreditou estar alucinado. Poderia uma

mulher ser tão bela? E o que ela fazia sobre este animal ignóbil? Casada ou não, ele

deveria desposá-la.

Sem esperar mais, Awoune Mvé chamou uma canoa, deslizou sobre a superfície do

Biwolé, parou a alguma distância do enorme animal que parecia dormitar na superfície da

água. A moça, comovida, o olhou longamente. Oh! Como ele era bonito!

- Eu caso com você – disse Awoune Mvé sem desvios – Diga-me o que você faz

sobre este crocodilo.

- Você conseguirá, homem da tribo das Abelhas? O crocodilo é cruel e não hesitará

em lhe morder se você se aproximar dele. Mas se você conseguir me tirar daqui, serei sua

esposa, palavra do meu pai.

- Só isso? Bem, a partir desse instante você é minha mulher.

Awoune Mvé pulou, aterrissou sobre a cabeça do monstro, passou seus dois braços

sob as axilas da moça, procurou um apoio e deu uma chacoalhada violenta. Eyumane não

se mexeu um milímetro. Pareceu que ela estava horrivelmente colada no crocodilo. Awoune

Mvé se exasperou. Soltando a moça, ele bateu no peito. Um enorme machado saiu dele que

empunhou com suas mãos largas e acertou entre os dois olhos do animal com um golpe

retumbante. O crocodilo vagiu espantosamente, abriu uma boca assustadora da qual

escapou uma nuvem de vapor quente. Imprimindo a sua cauda um brusco movimento de

rotação, ele mergulhou nas profundezas do rio, enquanto que Awoune Mvé, ágil como um

leopardo, saltava na canoa. No instante seguinte, o monstro reaparecia e dava formidáveis

mordidas na embarcação. A canoa foi esmagada, mas Awoune Mvé tinha tido a presença

de espírito de pular. Ele estava agora em pé na margem do rio, o coração em fogo, as

narinas palpitantes. O crocodilo espumava de raiva. Com sua longa cauda e com suas patas

robustas, ele batia na superfície do rio, indo de uma margem à outra, moendo tudo à sua

passagem.

Awoune Mvé tomou seu fuzil, se posicionou, mirou e abriu fogo. As balas

ricochetearam sobre as escamas de aço. O crocodilo vomitou um vagido feroz, engoliu a

metade das águas do rio e então projetou sobre o homem da tribo das Abelhas uma nuvem

vaporosa. Awoune Mvé começou a se coçar. Seu corpo coçava. Ele teria dito que milhares

de formigas lhe estavam mordendo.

“Eu sou um homem poderoso – ele se disse – nem pensar em abandonar minha

mulher sobre as costas desse animal ignóbil. E o que pensarão de mim todos os que sabem

que eu levo o próprio sangue de meu pai? Tratar-me por um frouxo? Isso nunca!”

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O homem deu um forte tapa na cabeça. Um chifre de antílope saiu dela, cheia de um

líquido negro e pegajoso com o qual ele se embebeu. As coceiras passaram. Então ele

coçou o peito. Duas grandes presas de marfim saíram de seu nariz, se projetaram sobre o

crocodilo e desapareceram dentro da boca escancarada, atravessando o coração e os

pulmões. Depois de algumas contrações espasmódicas, o monstro se imobilizou.

Então Awoune Mvé foi colher Eyumane e, enquanto que as águas do rio carregavam

o corpo inerte do crocodilo, ele se foi, glorioso, em direção à tribo das Abelhas...

E mais tarde, quando Zé Medang tomou conhecimento do que tinha passado no rio

Biwolé, ele entrou em uma cólera mortal. Depois de ter procurado em vão os que haviam

escutado o canto de Eyumane e que não lhe haviam-no reportado, ele se preparou para ir à

tribo das Abelhas, firmemente decidido a punir Awoune Mvé por sua audácia e a desposar

Eyumane Olé, filha de Olé Mfegue, da tribo da Força...

Mas remetamos a uma próxima vez esta história maravilhosa e voltemos à Nkobam.

Eu semeio o vento!

Sim!

Eu guio o elefante!

Sim!

Hoje é domingo!

Sim!

Que os ouvidos escutem!

Que eles escutem o mvett!

Oveng Ndoumou Obame sabia o que iria fazer: tirar a vida do homem de Engong.

Isto não parecia difícil. Este homem havia realmente debochado dele. Ele o havia deixado

lutar com pessoas de pouca importância, simplesmente para estudá-lo e cansá-lo, o que

traduzia todo seu desprezo pela tribo das Chamas. Que arrogância! Seria possível que

nesse mundo um homem se mostrasse tão presunçoso?

Oveng Ndoumou Obame sabia ser poderoso. Ele era duplo em um mesmo corpo.

Um de seus duplos, o mais invulnerável, era todo metal. As circunstâncias presentes

exigiam que este duplo se manifestasse sem reserva e infligisse aos homens de Engong

uma lição exemplar. Aí está o que lhes ensinaria a refletir e a revisar seus instintos

belicosos! No entanto, ele não desejava o mal a ninguém. Ele tinha nascido como nascem

todos os outros homens, de um pai e de uma mãe. Ele havia constatado que a humanidade

sofria neste universo, que ela era obrigada a trabalhar duramente para sua subexistência, a

guerrear para ter paz, esta paz que sempre fugia. Não estava aí a consequência da

utilização abusiva do metal pelo homem? Ele havia então resolvido suprimir essa matéria da

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superfície da terra. Tinha melhor forma de reoferecer a paz e seus direitos sobre o gênero

humano?

Mas mal ele havia começado esta obra humanitária, os homens de Engong haviam

se oposto a isso, indo até roubar-lhe a mulher que ele queria bem! Mas porque, então,

desde o começo da batalha, ele ainda não havia esfolado vivo um destes energúmenos?

Nunca deve se permitir brincar assim com um bando de feras tão impiedosas! Felizmente

ele conhecia uns truques! Ha! Ha! Eles iam ver só!

Enfrentando seu adversário, Oveng Ndoumou Obame pulou. Agarrou Engouang

Ondo, avançou o pé direito entre os dele, deu uma rasteira poderosa, atirou o homem de

Engong contra seu peito, no qual bateu. Saída de sua boca, uma nuvem de vapor os

envolveu, enquanto que o chão, subitamente molhado, tornava-se escorregadio. Oveng

Ndoumou Obame expirou com a narina esquerda. Dois anéis de cobre ligados por uma

pesada corrente metálica saíram dela, abriram-se e então se fecharam com um barulho de

explosão sobre as pernas de Engouang Ondo. Empurrando bruscamente seu adversário, o

homem da tribo das Chamas puxou violentamente a corrente metálica. Foi rápido, seco,

brutal. O chão sob os pés de Engouang Ondo sumiu. Em um instante, o Altivo vacilou no

vazio. Retirando de seu quadril direito um longo, espesso e pesado sabre, Oveng Ndoumou

Obame acertou sobre a nuca de Engouang um golpe massacrante. O sabre voou em

pedaços.

Uma dor torrencial atordoou o chefe guerreiro de Engong. Ele espirrou. Espessas

névoas quentes subiram do chão e o cobriram enquanto que ele embebia os anéis de cobre

que o aprisionavam com uma pasta vermelha. Depois ele assoviou. Os anéis se

volatilizaram.

Engouang Ondo rememorou todos os combates que lhe deram os grandes homens

de Okü desde que seu povo vivia de guerra. Nunca, mortal ou imortal, homem havia se

permitido intimidá-lo como Oveng Ndoumou Obame acabara de fazer. Ele não havia lutado

com Ekor-Ngui-Ndong, da tribo dos Gorilas, que desintegrava as montanhas, pois, como ele

dizia, elas deixavam as paisagens caóticas? Não havia vencido Nkeg-Afane-Mvé, da tribo

das Dúvidas, que havia empreendido secar todos os cursos de água do mundo para punir

os homens por seus pecados? Ele havia lutado com Nkoum Akok Ndong-Bibang da tribo

dos Espinhos que, por armas, usava o sol, a chuva e o fogo! Que mais ele sabia? Mas

nunca um homem, qual fosse seu poderio, havia ousado humilhá-lo batendo-lhe com sabre

e com anéis de cobre! Ou Oveng Ndoumou Obame era um verdadeiro louco, ou ele

pertencia a uma dessas raças que digerem a imprudência como se digere carne de carneiro!

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O sol que queimava havia transformado a natureza em uma toalha de luz ofuscante

no silêncio do dia. Sozinho, invisível, o tocador de mvett102 dominava a cena com seu olho

atento. As melodias de seu instrumento casavam com as peripécias do combate. Animadas

ou doces, lentas ou fogosas, suas modulações seguiam fielmente o ritmo da batalha que

elas acabavam influenciando. Os dois adversários lutavam ao som do mvett.

Engouang Ondo bateu no peito e tirou dele um grande martelo de ferro que entregou

a Ntoutoume Mfoulou, o impetuoso, e lhe disse:

- Assim que eu tiver pego Oveng Ndoumou Obame em meus braços robustos, dê

com todo seu vigor, três grandes marteladas em meu crânio. Veremos então o que a vida

nos reserva.

Ele pulou, pegou Oveng Ndoumou Obama nos seus braços, o cerrou poderosamente

contra seu peito e se preparou. Neste momento, Ntoutoume Mfoulou rebentou como um

estrondo sobre ele e... Paf! Com a primeira martelada, um enorme galo se imprime sobre a

cabeça de Engouang Ondo. Paf! O galo imerge no crânio. Paf! Ele reapareceu e explodiu,

dando lugar a uma imensa crista de plumas de pássaros de todas as cores e tamanhos. Em

seus pés, se viam atrelados inúmeros guizos metálicos.

Engouang Ondo executou uma dança frenética. As plumas vibravam, os guizos

tilintavam. De repente, ele mandou em direção ao rosto de seu adversário uma cabeçada

assombrosa.

Cegado pelas plumas, Oveng Ndoumou Obame não viu mais o que se passou no

instante seguinte. Engouang Ondo carrega sempre uma pequena bolsa amarada em sua

cintura. Esta bolsa, dizem, contém todos os segredos da natureza. Ele mergulhou a mão

nela e retirou uma bola de fogo que fez explodir nas costas do inimigo. Desta explosão,

surgiram dois fios de cobre que apertaram fortemente os dois adversários.

Engouang Ondo assoviou. Um rugido de trovão explodiu enquanto o chefe dos

Imortais sumia da terra, levando em um assovio infernal o homem da tribo das Chamas.

Então, depois de ter descrito no céu uma trajetória fantástica, ele aterrissou em Engong, na

aldeia de Akoma Mba.

Os Imortais adoram a tragédia. Desde que Engouang Ondo foi percebido, levando

seu adversário como um gavião sobre sua presa, Abiéré Mama bateu no tantã.

King! King! King!

Homens de Engong, escutem o tantã!

King! King! King!

O tantã chama, o tantã chama!

102 Aqui, o autor. Sua imaginação aquece a cena. É neste momento que ele tira do instrumento acordes maravilhosos.

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O tantã chama Medza Metougou,

Medza Metougou de Evua Nam,

Medza Metougou que não sabe mais que fazer de sua riqueza!

Escutem o lema de Medza Metougou!

Duas grandes folhas: a terra e o céu!”

King! King! King!

O tantã chama, o tantã chama!

O tantã chama Medang Boro de Nkok Nyong,

Medang Boro, o bravo dos bravos;

Escutem o lema de Medang Boro:

“Medang vive de egoísmo: ao invés de servir

Mantimentos às pessoas, ele distribui

Conselhos!”

King! King! King!

O tantã chama, o tantã chama!

O tantã chama Mfoulou Engouang

Mfoulou Engouang de Mveng Ayong

Que criou Martelos para quebrar as rochas

e trabalhar os ferros –

Escutem o lema de Mfoulou Engouang:

“O gavião plana, o gavião plana sobre a aldeia!”

King! King! King!

O tantã chama, o tantã chama!

O tantã chama Akoma Mba,

Akoma Mba de Wor-Zok

Akoma espírito. Akoma homem,

Akoma que domesticou a vida,

Akoma que escravizou a morte!

Escutem o lema de Akoma Mba:

“Povos de Okü, tremam de terror, tremam!”

King! King! King!

Homens de Engong, venham ver Engouang Ondo,

Engouang Ondo que retorna de Okü –

Ele retorna de Okü e traz um prisioneiro,

Um prisioneiro chamado Oveng Ndoumou Obame!

Homens de Engong, apressem-se!

King! King! King!

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Quem bate no tantã?

Abiéré Mame Mba,

Abiéré Mame Mba que sofre de solteirice e

Que só come mandioca cozida à brasa!

Irmãos de Engong, pensem nele!

King! King! King!

Abiéré Mame sabia tocar tantã. Desde cedo, ele se doou de corpo e alma a esta arte.

O número de estações secas e estações chuvosas que se sucederam desde então, ele não

podia contar. O tantã era sua paixão. Além do anúncio de grandes acontecimentos que

envolviam frequentemente o povo de Engong, ele utilizava-o para reunir os homens, para

cantar à vontade, para ritmar as danças e excitar os dançarinos, para lamentar as

vicissitudes da vida... Ele não era solteiro103, aliás por sua culpa, pois a mulher que ele havia

desposado o havia definitivamente abandonado, zangada de vê-lo levantar-se no meio da

noite para tocar tantã? O boato que ele adorava seu tantã em detrimento do belo sexo pelo

qual tinha o maior desdém correu através do país na época. As mulheres nunca toleram

tamanha injúria. Elas se puseram então a tagarelar e seu falatório malicioso tinha sujado

abominavelmente o nome de Abiéré Mame Mba.

Para dizer a verdade, Abiéré Mame ligava pouco para estes falares. Seu único

objetivo era manter ciosamente sua liberdade para consagrar-se inteiramente à arte de tocar

o tantã. O tantã! Ele repetia para si mesmo essa palavra mágica com fervor. O que mais

delicioso do que confiar seu pensamento a este tronco de madeira oca que se ocupava de

espalhá-lo aos quatro ventos? Um verdadeiro tesouro, esta comunhão entre o ser humano e

o objeto inanimado! E dizer que este privilégio era apenas reservado a uma ínfima categoria

de pessoas excepcionais como ele – Abiéré Mame Mba!

Ele exultava. Um tocador de tantã deve ser feliz, até quando ele grelha seu pedaço

de mandioca na brasa! E se, cada vez que ele soava o tantã, ele não deixava de lembrar a

seus irmãos que ele sofria de solteirice, era porque ele usava, como todos, as leis de

solidariedade em vigor. Estas leis, em efeito, não admitem que se abandone a sua sorte um

membro deserdado da tribo, ainda mais um artista. Portanto, ele não tinha do que ter

vergonha e devia fechar os ouvidos às fofocas das mulheres – e as mulheres adoram os

artistas! – que a decepção tornava caducas.

Entregue a estas reflexões, Abéré Mame continuava a bater maquinalmente no tantã.

Curiosas e faladoras, as mulheres se colocaram às portas das casas, de onde elas

admiravam com grandes comentários brincalhões o homem da tribo das Chamas.

103 Entre os Fang, se um monogâmico se divorcia, ele é chamado de solteiro.

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- Ele é realmente bonito! – Se encantavam umas.

- Pobre homem! – Penalizavam-se outras.

- Engouang Ondo não tem vergonha de intimidar assim um homem tão bonito e tão

tranquilo? – Outras ainda se indignavam.

Respondendo ao chamado do tantã, os homens começaram a se juntar em Wor-Zok,

aldeia de Akoma Mba. Os guerreiros armados de longos sabres e de lanças, aparatados

com amuletos e com anéis de cobre, alinhavam-se na praça. Músculos de aço, narinas

largamente abertas para deixar passar a poderosa respiração que escapava ruidosamente

de seus peitos inflados, habituados às batalhas mais rudes estes soldados experientes

constituíam uma força com recursos inesgotáveis.

Vestido com um largo pano de pele de pantera, penteado com plumas de pássaros,

os braços sobrecarregados de amuletos, Mfoulou Engouang de Mveng Ayong fendeu o ar

em um voo majestoso e pousou na praça de Akoma Mba. Os guerreiros retesaram-se, a

ponta da espada na altura da bochecha.

Alguns instantes depois, como um meteoro vindo de além das nuvens, Medang Boro

de Nkok-Nyong aterrissou. Um imenso calau saiu de sua orelha esquerda, planou por um

momento sobre os soldados para verificar sua atitude e então, tendo constatado que a mais

completa ordem reinava entre eles, voltou para sua toca!

Enfim, agudo um assovio estourou. Os homens levantaram a cabeça e vasculharam

o céu com os olhos. Um relâmpago branco cegou a multidão, seguido de uma detonação

ensurdecedora. Como um enxame de abelhas, a pesada nuvem de soldados de Evua-Nam

se abateu na praça. Medza Metougou avançou em direção ao grupo de anciões com a mão

estendida.

Todos se calavam. Apenas Oveng Ndoumou Obame, torturado por suas amarras,

dava gemidos de dor. Akoma Mba fez sinal para Engouang Ondo falar.

- Eu vos trago Oveng Ndoumou Obame, da tribo das Chamas – ele disse. Ele não foi

de uma captura fácil. Ele ainda teve a audácia de me bater com sabre e com anéis de cobre!

Tal insolência naturalmente é inadmissível e a forma com que eu lhe amarrei lhes prova

como a cólera deu lugar a minha paciência. Eu lhes dou-o. Ntoutoume Mfoulou e Angone

Zok, enquanto eu lhes falo, estão destruindo a tribo das Chamas e eu temo que eles a tirem

definitivamente do território de Okü. Mas voltarei lá em breve.

O coração de Oveng Ndoumou Obame saltou em seu peito. Assim, então, a tribo

das Chamas, sua tribo, iria desaparecer para sempre! E por sua culpa! Vejamos. Por quem

lhe tomavam estes homens de Engong cuja vanglória ultrapassava a razão?

Contudo, uma longa procissão tinha se formado e agora se dirigia, atrás da linha de

casas de Akoma Mba, em direção ao enorme “oveng”, a grande árvore milenar ao pé da

qual brilha uma lagoa mágica. Todo Engong sabe que todo corpo humano mergulhado nesta

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lagoa nunca retorna à superfície. Iriam jogar nela Oveng Ndoumou Obame. Ele tornar-se-ia

um fantasma e iria aumentar o número destes que fazem o poder do povo de Engong.

Assim havia decidido Akoma Mba. Assim os magos de Okü saberiam que seus trabalhos só

podem beneficiar os Imortais.

Os homens deram a volta na árvore, formaram um círculo em torno da lagoa e

sentaram-se na grama. Traços fulgurantes estriaram a superfície da água, que começou a

borbulhar. Engouang Ondo aproximou-se da beira com seu fardo sobre o peito. Ele aspirou

uma grande baforada de ar, mergulhou a mão na sua bolsa, retirou dela um ovo de

papagaio e quebrou-o sobre os fios de cobre que fundiram instantaneamente, liberando

Oveng Ndoumou Obame de suas amarras assombrosas. Rápido como o relâmpago,

Engouang Ondo lhe deu um soco violento na nuca, enquanto que o colocava,

chacoalhando-o brutalmente, dentro da lagoa. O homem desapareceu como um seixo na

água. As borbulhas cessaram. A água se acalmou.

Oveng Ndoumou Obame arregalou os olhos: na sua frente dois fantasmas; atrás

dele, dois fantasmas. Esses grandes diabos hediondos mantinham erguidos tacapes de

ferro e se aproximavam do homem da tribo das Chamas, prontos a bater.

Oveng Ndoumou Obame sabia que os fantasmas nunca tiveram pena dos homens.

Esta rixa é velha como o mundo. Por que teriam eles pena dos homens? Não continuavam

estes filhos malditos a gozar de prazeres múltiplos que a vida é saturada, enquanto que os

fantasmas vegetam na eterna escuridão da morte e do esquecimento? Não podiam eles,

pela sua imbecilidade, até invocar e atrair irresistivelmente os infelizes fantasmas, para fazer

deles empregados obedientes a todos caprichos seus? Vingar-se de todos esses ultrajes

quando a ocasião se apresenta é a principal ocupação dos fantasmas e é por isso que os

homens atribuem a eles todas as desgraças das quais são vítimas e acham que sobram

maus espíritos espalhados na natureza!

Os fantasmas se precipitaram sobre Oveng Ndoumou Obame ferozes, impiedosos.

Um turbilhão de golpes de tacape foi desferido sobre sua cabeça. O homem titubeou,

atordoado pela dor. Então, desafiando a morte, ele se endireitou para reestabelecer seu

equilíbrio. Os golpes continuavam chovendo com fúria. Abiéré Mame sobre seu tantã não

teria desencadeado tanto frenesi quanto esses grandes diabos no limite da ira.

Oveng Ndoumou Obame bateu no peito. Ele retirou dele uma tartaruga gigante,

sobre a qual ele se empoleirou. Então, ele assoviou. Os tacapes se volatilizaram. A

tartaruga soprou. Uma bolha envolveu Oveng Ndoumou Obame e, em um turbilhão

vertiginoso, o levou à superfície. Os homens de Engong apenas tiveram o tempo de

perceber este globo fluorescente que saltava para a atmosfera, enquanto que Akoma Mba

dava um rugido de estupefação e de desespero.

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A prontidão na ação é uma das principais qualidades de um chefe de guerra.

Engouang Ondo não perdeu um instante. Assim que a bolha se elevou no ar, ele pulou,

tomou altitude, depois se precipitou na perseguição de Oveng Ndoumou Obame.

A bolha já estava longe. Ela tinha ultrapassado Nkol-Anwam, casa de Ondo Mvé,

atravessado o grande rio Alakouma e voava agora com uma velocidade aterrorizante em

direção da tribo das Chamas. Aqueles que, nas plantações, a viam passar pelo céu, eram

tomados de medo e se apressavam a retornar à aldeia. Através do país... a notícia correu

logo: um fenômeno inexplicável ameaçava o mundo. E quando se via Engouang Ondo

passar como um abutre no rastro da bolha entendia-se: apenas podia se tratar do conflito

que o opunha a Oveng Ndoumou Obame.

*

* *

Enquanto isso, o que será que faziam Ntoutoume Mfoulou e Angone Zok na tribo das

Chamas? Estes dois homens que amavam lutar um do lado do outro têm os mesmos

gostos: a pilhagem, o assassinato, a tirania. Contanto que Engouang Ondo lhes dê um

pouco de liberdade, voluntariamente ou não, eles aprontam! Eles sempre começam

trocando piscadas cúmplices. Então, com uma série de gaguejos espasmódicos, Angone

Zok expõe seu plano a Ntoutoume Mfoulou. Este plano nunca variou, mas cada vez ele

gosta de repeti-lo a seu irmão: destruir. Eis o que sempre encanta Ntoutoume Mfoulou! De

fato, deve-se fazer temer quando se é um homem poderoso. E a melhor forma de se fazer

temer consiste em destruir e matar. Os homens têm medo de morrer e, por dedução, têm

medo daquele que semeia a morte. É assim que, neste quesito, Ntoutoume Mfoulou e

Angone Zok adquiriram uma reputação singular. Apenas seus nomes fazem os pobres

habitantes de Okü se arrepiarem de terror.

Portanto os dois tinham saudado com prazer a partida de Engouang Ondo da tribo

das Chamas, quando ele tinha levado Oveng Ndoumou Obame à Engong. Ele tinha partido,

mas eles tinham ficado, longe das preocupações de humanidade que enfraqueciam o

caráter de Engouang Ondo. Este homem que comanda um povo tão poderoso tem horror de

matar uma mosca! Você já viu tamanha contradição na cabeça de um chefe? Engouang

Ondo deveria se enclausurar com suas mulheres e não se ocupar mais da segurança de

Engong! Os verdadeiros chefes eram eles: ele, Ntoutoume Mfoulou, e Angone Zok. Eles não

complicavam a vida com escrúpulos. Era culpa deles se os homens de Okü não eram

imortais? Deviam exterminá-los todos para que a paz reinasse sobre a terra. Engouang

Ondo os exasperava com suas hesitações, seus escrúpulos, seus raciocínios, sua

compaixão por uma massa de pessoas que não valia nem mesmo uma horda de macacos!

E agora que ele não estava mais ali para impedi-los de agir, eles iriam dizimar a tribo das

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Chamas. Eis o que ensinaria estas ovelhas a ter chefes da eminência de Oveng Ndoumou

Obame!

E dizendo isto, eles começaram a incendiar as aldeias, massacrando todos os

habitantes:

Eu semeio o vento!

Sim!

Eu guio o elefante!

Sim!

Hoje é domingo!

Sim!

Que os ouvidos ouçam!

Que eles ouçam o mvett!

No pânico geral que reinava sobre todo o território da tribo das Chamas, apenas a

grande aldeia Andok não tinha se esvaziado de seus ocupantes. Os homens de Andok são

teimosos como feiticeiros. Eles nunca fogem diante do inimigo antes de tê-lo visto e

avaliado. A notícia das crueldades que seviciavam do lado de Nkobam não os havia tocado

em nada. Na vida, cada um tem sua forma de se defender. Andok era uma aldeia muito

populosa onde fervilhava um número incalculável de moças encantadoras. Anvené, o chefe

da aldeia, que considerava a astúcia como a arma mais temível neste mundo onde a lei do

mais forte era de rigor, organizou uma grande dança. Ele não se furtou de degolar vários

carneiros a fim de oferecer aos estrangeiros que devastavam a tribo uma refeição capaz de

apaziguar o homem mais feroz.

O evento começou no meio do dia. Moças atraentes aparatadas de peles de animais

multicoloridas, penteadas com plumas de pássaros multicores, dançavam ao ritmo dos

balafons e dos tambores. Elas encantavam com seus colos sedutores, seus dentes

deslumbrantes e suas vozes de rouxinol. Elas eram únicas e cândidas na agilidade de seus

movimentos.

Como dois monstros soltos no vento da destruição, Ntoutoume Mfoulou e Angone

Zok saqueavam uma aldeia a alguns minutos de caminhada de Andok quando escutaram o

som dos balafons e o soluçar dos tambores. Os dois homens sobressaltaram-se de

surpresa.

- Dançam! – Disse Ntoutoume Mfoulou completamente aturdido.

- Isso se chama audácia – retorquiu Angone Zok, com uma chama nos olhos.

- É no mínimo inesperado. É preciso que esses homens sejam completamente

loucos para cometer tal imprudência!

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- Ou que eles sejam tão seguros de si mesmos que só nos resta virar as costas! Em

todo caso, vamos dar uma olhada.

Eles apertaram o passo, apareceram na longa trilha que conduz à aldeia. Um pouco

amedrontado, alguém grita no corpo da guarda:

- Milhares e milhares de Imortais vêm em nossa direção! Eu lhes digo: milhares e

milhares! Estamos fritos! Me enterrem!

- Calma – rugiu Anvené – Sou o único a dar ordens aqui. Primeiro, são apenas duas

pessoas na estrada. Seu medo multiplica aqueles que vêm. Depois, é inútil se apressar para

ser enterrado, este momento está próximo.

Anvené foi ao encontro dos estrangeiros.

- Eu lhes saúdo, cunhados. Sejam bem vindos. Faz tempo que nós os esperávamos.

Sabemos que vocês devem exterminar-nos todos. Ainda, antes de morrer, nós queríamos

honrar nossas leis de hospitalidade que são sagradas. Tudo está pronto para vocês na

aldeia: mantimentos, casas limpas e... donzelas. Depois estaremos à sua disposição.

- O que ele diz? – perguntou o Gago, fingindo não ter ouvido.

- Acho que entendi – respondeu Ntoutoume Mfoulou – que vamos nos revigorar e,

depois disso, nós os mandaremos todos ao país dos mortos.

- Boa festa – retomou Angone Zok – Vamos lá.

Logo eles alcançaram o círculo das dançarinas. Diante da beleza, da elegância e da

pureza destas moças, os dois Imortais se esvaziaram de seu orgulho. O Gago esfregava a

nuca, o Impetuoso, o nariz. Ntoutoume Mfoulou virou a cabeça e disse para si mesmo que

um homem de guerra não tinha nada que ver com estes sentimentos de fraqueza que

envergonham a profissão mais nobre do mundo. Deixar-se cativar pelas mulheres era

prejudicar seu renome de guerreiro valoroso e a dignidade do país que ele servia nesta

carreira. O próprio Engouang Ondo, atrás de sua máscara de absurdidade, não o perdoaria.

Entretanto, encantado e tocado, ele já tinha ficado. Alguma coisa indeterminável o

retinha estático diante destas moças. Ele queria sair deste lugar, para reencontrar seus

instintos de ferocidade, mas ele não podia. Uma espécie de quietude o invadiu de uma vez,

dando-lhe um apaziguamento e um frescor até então desconhecidos. Desde que ele

respondia ao nome de Ntoutoume Mfoulou ele nunca tinha provado um charme tão doce,

tão emocionante, que o tornava febril até na medula dos ossos. Incapaz de lutar, ele deixou-

se inebriar pelo prazer, pela alegria de viver. Pela primeira vez em sua vida, um desejo

diferente do que o de matar havia tomado Ntoutoume Mfoulou. Ele bebia com os olhos as

mulheres em sua majestade e esplendor.

Ele deu uma olhada para o lado do gago. Aquele ali, a boca largamente aberta, se

extasiava, o olhar pregado nas dançarinas. “Se Ntoutoume Mfoulou se atrever a massacrar

estas belas moças – se disse Angone Zok – isso poderia acabar mal. Já matamos o

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suficiente. É tempo de fazer outra coisa!” Ele ignorava que o “sim” de Mfoulou pensava

exatamente como ele. As moças de Andok tinham decididamente conquistado os dois

matadores.

Anvené observava esta cena com alívio. Seu estratagema tivera sucesso. Mas

quanto tempo ele duraria? Os homens de Engong têm o caráter tão instável! Sobretudo

estes dois! Tomara que isto dure até a chegada de seu chefe Engouang Ondo e ele teria a

satisfação de ter podido salvar o que restava da tribo das Chamas. Ah, estes Imortais! Por

que eram tão impiedosos? Não era suficiente para eles ter descoberto o segredo da

imortalidade e guardá-lo ciosamente? Por que sentiam prazer em dizimar populações

inofensivas?

Anvené advertiu seus hóspedes que a refeição estava servida e que a dança iria

terminar. Eles acolheram esta notícia com encanto, se deixaram conduzir para a casa dos

estrangeiros onde comeram copiosamente.

Depois da refeição, cada um ganhou seu quarto um pouco indeciso sobre a atitude

que convinha adotar diante desta aldeia tão hospitaleira. A princípio, Angone Zok não tinha

escondido de Ntoutoume Mfoulou sua intenção de tomar uma esposa entre as jovens

dançarinas. Ao que, o impetuoso havia respondido que o mundo recusaria chamá-lo de

Ntoutoume Mfoulou se, retornando ao país natal, ele não apresentasse ao povo de Engong

uma amostra dessas criaturas que pareciam vir diretamente das entranhas do Pai da Vida.

A noite passou tranquila e silenciosa.

No outro dia de manhã, Anvené fez alinharem-se diante dos dois homens de Engong

todas as moças da aldeia. A cada um deles só lhes restava escolher. Eles começaram a

passá-las em revista quando um rugido ensurdecedor surgiu na atmosfera. Intrigados, todos

levantaram a cabeça. A bolha apareceu luminosa, sobrenatural. Ela caiu no meio da

multidão e estourou, revelando Oveng Ndoumou Obame em pé na praça. Ele urrou. Do

chão surgiu uma estranha cabaça metálica gigantesca. Em seu flanco abria-se uma larga

rachadura. Oveng Ndoumou deu uma ordem: todos os habitantes de Andok penetraram no

enorme ventre da cabaça e a cabaça se fechou novamente.

Oveng Ndoumou Obame plantou o masculino dedão do pé direito no chão, pegou a

cabaça. Um guizo metálico explodiu em algum lugar. Torrões de terra se quebraram. O

homem deu um rugido sonoro e, como uma vespa levando uma bola de argila, levantou voo

em direção a Nkobam. Após chegar sobre a montanha rochosa, ele assoviou. A montanha

se abriu. Ele escorregou sua carga dentro da fenda, assoviou de novo e o rochedo se

fechou. Executando então um salto fantástico, ele juntou-se aos Imortais em Andok.

A decepção sempre mergulha a vítima em uma apatia momentânea. Angone Zok e

Ntoutoume Mfoulou, surpresos pela intervenção de Oveng Ndoumou Obame no instante

exato em que eles se aprontavam a selar uniões invejáveis, permaneciam ainda imóveis...

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De repente, seu inimigo reapareceu. Sua presença reanimou neles os instintos

belicosos adormecidos desde o dia anterior.

Com a cólera apertando sua garganta, Angone Zok gaguejou injúrias inteligíveis.

Então ele retirou de sua anca direita um pesado sabre de bronze, se precipitou para seu

adversário e, com um golpe enraivecido, acertou-lhe o rosto. O sabre voou em migalhas!

Oveng Ndoumou Obame estremeceu de dor. Ele se propulsou atrás de uma casa, arrancou

uma palmeira e quebrou-a sobre a cabeça de Angone Zok. O homem de Engong aterrorizou

a região com um ronco terrível. Ele se catapultou na atmosfera. Sua coluna roçou a

abóbada celeste.

A mãe de Angone Zok se chamava Ofoyeng Assoumou. Assim que Angone se

iniciou nas práticas mágicas pelas quais passa todo moço de Engong, exigiu-se dele um

sacrifício. Ele ofereceu sua mãe que morreu. Seu espírito vaga pelos mundos invisíveis.

Quando seu filho tem dificuldades ao longo de um combate, ela lhe aparece, lhe dá um

amuleto e Angone reencontra todo seu poder.

Ela lhe apareceu nas nuvens e cuspiu sobre sua cabeça. Dois chifres tricúspides

fixaram-se nela. Ofoyeng aplicou três búzios sobre as costas de Angone. Um relâmpago

brilhou. Angone deu um mergulho sensacional e como um bode furioso plantou

violentamente seus chifres nas omoplatas de Oveng Ndoumou Obame, o levantou e

desapareceu em espiral por trás das nuvens.

Angone Zok queria levar seu inimigo à Engong. Era preciso demonstrar-lhe que o

filho de Ofoyeng não lutava como todo mundo, que ele podia, se o desejasse, apagar o sol e

mergulhar a vida nas profundezas tenebrosas do nada!

Oveng Ndoumou Obame sentiu o perigo. Ele estralou a língua. Seus olhos lançaram

chamas. Ele bateu no peito e retirou dele um chifre de búfalo cheio de um líquido oleoso e

enegrecido que ele verteu sobre a cabeça e ombros. Ele deu um latido surdo e começou a

crescer desmesuradamente e a pesar tanto que eles caíram do céu e acertaram brutalmente

o chão. Levantando-se, eles se davam febrilmente chutes e socos, se cerraram

furiosamente, rolaram, primeiro na poeira da praça e depois nas imundícies amontoadas

atrás das casas, continuaram a lutar na floresta, quebrando as árvores, aplainando as

colinas. Em um instante eles se olharam como dois galos exaustos então, retomaram o

combate, mais selvagens, mais ferozes.

O sol já estava se pondo. A floresta tornava-se sombria. Assustados, os animais

fugiam destas paragens devastadas. Apenas os macacos, com sua curiosidade incurável,

seguiam zombeteiros e ágeis, o desenrolar deste duelo titânico.

O que não empregavam, nossos heróis, ao longo deste combate de pesadelo:

sabres, bolas de ferro, martelos de ferro! Mas nenhum chegava a dominar a situação.

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Quando a noite caiu completamente, eles retornaram à aldeia, terrosos como elefantes,

bufando como búfalos.

No céu brilhava a lua. As estrelas cintilavam. Na relva molhada, vagalumes

piscavam, os sapos coaxavam. Nas árvores, as corujas mantinham o concerto de seus

cantos sinistros. Os fourous infestavam o ar com suas danças acrobáticas.

De repente, na praça, alguém tonitruou: Engouang Ondo acabara de chegar.

Virando-se, Angone Zok e Oveng Ndoumou Obame o viram. Ntoutoume Mfoulou o deixava

a par dos últimos acontecimentos.

Oveng Ndoumou Obame percebeu que ele enfrentaria três adversários temíveis. Ele

lutava sozinho contra estes homens resolutos a pôr fim aquele que eles chamavam de “o

energúmeno da tribo das Chamas”. Qualquer que fosse seu poder, ele não poderia resistir a

eles por muito tempo. Portanto lhe era necessário recorrer aos grandes métodos, ou seja, ir

consultar seu avô Obame Ndong no país dos fantasmas. Lá ele iria saber como vencer seus

inimigos.

Mas antes de partir, ele ainda quis demonstrar às pessoas de Engong que ele ainda

tinha recursos. Ele bateu no peito e retirou dele uma bola de ferro incandescente como um

pequeno sol, a brandiu e lançou-a na atmosfera. Assim que ela tocou as nuvens, um brilho

ofuscante estriou o céu e uma chuva de fogo agravada por um vento violento caiu sobre a

terra. Tudo queimava: a floresta, os rios, os caminhos, as aldeias. Turbilhões de um fogo

intenso desciam do céu, derretiam as montanhas, retomavam altura para caírem novamente

mais longe e semear a morte. Na região já posta à prova, o cataclismo se espalhou como

um raio. Oveng Ndoumou Obame, ele também, começara a destruir. Por que ele não o faria,

enquanto que seus adversários não tinham limite nesta questão?

Mas ele não esperou que o fogo cobrisse o país para atingir, de um pulo, a distância

de Andok a Nkobam, entrar em sua casa ainda indestrutível, mergulhar na lagoa e

desaparecer nas entranhas da terra, com destino ao país dos fantasmas.

Quando seu avô o viu aparecer, emagrecido pelas privações, os olhos afundados

nas órbitas, cansado, sujo e rangendo os dentes, ele estralou os ossos de surpresa.

- O que aconteceu com você, meu filho? Bem que eu lhe avisei contra as forças da

natureza. Não escutou meus conselhos? A juventude nunca superará a sabedoria dos

anciões.

- Mas avô, acredito que defendo uma causa justa no conflito que me opõe aos

homens de Engong. O uso abusivo do ferro sobre a terra é a causa de todos nossos males.

Então eu quis lavar a humanidade desta praga nefasta. Para isso, eu enviei Ela Minko

M’Obiang para todas as tribos do país a fim que ele destruísse tudo o que contivesse metal.

Sua missão, no começo, se desenrolou muito bem, mas chegando à tribo das Tempestades,

ele foi atingido pela hostilidade de Nkabe Mbourou. Obrigado a intervir, para levar este

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último ao caminho da razão, vi pela primeira vez aquilo que se chama de mulher bonita,

Eyenga Nkabe, filha de meu inimigo. E eu decidi desposá-la. Nkabe Mbourou, para virgar-se

da correção que eu lhe administrei quebrando-lhe uma perna, enviou Eyenga Nkabe à

Engong, desposar Engouang Ondo, o chefe guerreiro dos Imortais. Este último não hesitou

em desferir sobre a tribo das Chamas seus irmãos monstruosos, Ntoutoume Mfoulou e

Angone Zok, cujos malfeitos legendários todos conhecem. Já fazem quatro luas que eu luto

contra estes loucos. Engouang Ondo conseguiu até mesmo me levar à Engong onde eu

acabei de escapar da morte.

Voltando à tribo das Chamas, encontrei apenas uma aldeia sobrevivente: Andok.

Então eu peguei todos os habitantes e os escondi dentro da montanha rochosa. Ali eles não

correm nenhum risco por enquanto. Depois, eu desencadeei sobre os Imortais um furacão

de fogo e, sem ser otimista, acredito que eles terão muito trabalho para extinguí-lo.

O que me traz aqui é que você me indique as melhores formas de vencer. Eu me

recuso, sem meios poderosos, de continuar a lutar incansavelmente e inutilmente contra

adversários tão invulneráveis. É a sua vez de falar.

- Homem poderoso você é: mas por que você embarcou em uma história de metal?

Não deveria você levar a felicidade à sua tribo, sob a condição dos outros de solicitar sua

generosidade sem história? Mas como você já está engajado nesta batalha, é necessário

continuar a lutar. É muito tarde para recuar. A partir desta noite, a montanha rochosa será

preenchida por fantasmas armados e animais ferozes. Você vai entrar nela imediatamente e

apenas sairá para semear a morte nas fileiras dos seus inimigos. Beba mel fresco misturado

com “odoh”, a pequena pimenta vermelha e picante. Espirre três vezes e você vai ver o que

a vida lhe reserva.

Oveng Ndoumou Obame seguiu estes conselhos. Quando ele chegou na montanha

rochosa, tudo estava lá: milhares de fantasmas agressivos, decididos a exterminar estes

famosos Imortais de quem tanto falavam; gorilas sobrecarregados de tacapes de ferro,

panteras com presas de aço, gigantescos escorpiões negros. Estranhos guerreiros

fantasiados de morcegos gigantes volitavam dentro desta gruta misteriosa. Oveng Ndoumou

Obame tomou lugar bem ao fundo, verificou o estado de saúde dos sobreviventes da tribo

das Chamas e, satisfeito, esperou o desenrolar dos acontecimentos.

Quando, em uma tempestade apocalíptica, o fogo desceu do céu, os três homens de

Engong levantaram voo, planaram como falcões sobre a bolha ignívoma que se movia

lentamente para regar o país com águas queimantes.

Angone Zok bateu no peito, tirou uma cabaça cheia de um líquido embranquecido e

frio e quebrou-a sobre a bola de ferro. Um borbulhar se produziu que se transformou em um

ronronar suave, provocado pela extinção do fogo. Mas sobre a terra, o incêndio continuava a

devastar a região. Angone empunhou uma longa faca de lâmina dupla e cortou duas

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grandes nuvens negras aglomeradas próximo. Liberta subitamente, a água se precipitou em

trombas sonoras sobre a terra. O fogo se extinguiu. Um grande silêncio abafou a natureza.

Ele era tão pesado, tão espesso que zumbia em suas orelhas.

A noite tinha se retirado. O sol ria no céu puro. Ele zombava dos homens com suas

querelas intermináveis. Será que não tinham nada melhor para fazer do que se odiar

mutuamente? Toda sua vida se passava em saltos de humor, em vexações, em rixas

violentas que se degradavam em matanças sangrentas. Como eles amavam se destruir, os

homens! E por nada! O sol, ele, podia rir de suas preocupações azedas. Pouco lhe

importava que eles se matassem uns aos outros estupidamente. Seu dever não era de lhes

prodigar a luz e o calor para deixá-los felizes? Era sua culpa se os homens não conseguiam

compreender a necessidade de amar seu próximo como ele amava a terra, a lua e as

estrelas?

Monologando assim na imensidão infinita, poderoso, pacífico, orgulhoso, solitário, o

sol subia lentamente no azul cintilante.

Engouang Ondo o observava subir. E enquanto que ele caminhava silenciosamente

com seus dois irmãos em direção de Nkobam, ele maldizia Oveng Ndoumou Obame, autor

desta guerra tão estúpida quanto assassina.

Eu semeio o vento!

Sim!

Eu guio o elefante!

Sim!

Que os ouvidos ouçam!

Que eles ouçam o mvett!

O tocador de mvett está no corpo da guarda,

Propagem a notícia.

O tocador de mvett está no corpo da guarda,

Venham todos escutá-lo.

Mulheres, deixem suas ocupações domésticas;

Homens, cessem suas querelas.

No céu, o sol atento, escute;

Os mortos em torno de nós se juntaram

A notícia está no vento

O tocador de mvett está no corpo da guarda,

Ele toca mvett

E conta a bela epopeia de Oveng Ndoumou Obame.

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Quem não o escutou

Não terá escutado nada nesse mundo.

O tocador de mvett está no corpo da guarda,

Que os ouvidos ouçam!

Que eles ouçam o mvett!

Engouang Ondo, Angone Zok e Ntoutoume Mfoulou chegaram a Nkobam. A aldeia

estava vazia, silenciosa, morna. Engouang Ondo olhou para o lado da montanha rochosa,

então retirou de sua bolsa de couro o espelho mágico que ele consultou. Ele sobressaltou-

se: Oveng Ndoumou Obame encontrava-se lá.

*

* *

Desde que Engouang Ondo assumira a responsabilidade de chefe-guerreiro de

Engong, ele enfrentava frequentemente situações das mais difíceis em circunstâncias das

mais inesperadas. Ele se lembrava de um fato recente, quando da batalha que o havia

oposto a Zip Bibana da tibo dos Biguila, estes homens misteriosos que habitam as margens

do também misterioso rio Missolo. Este rio tem a virtude de oferecer aos pecadores peixe

cozido no ponto. As mulheres das regiões circundantes desertam seus domicílios conjugais

e vão se fazer desposar pelos Biguila para evitar a fastidiosa tarefa de cozinhar o peixe

depois das pescas.

Foi assim que a jovem Oyane Bé, esposa de Angone-Bame, filho de Bame Mfa, da

tribo de Yemesseng, os Combo-Combo, se evadiu com destino ao país dos Biguila, onde

Zip Bibana a tomou como mulher. Ora, Angone Bame é também filho de Okomo Medza,

filha de Medza Metouzou, de Engong. E assim que, de fonte segura, Angone Bame soube

que sua mulher tinha se tornado a favorita de Zip Bibana, ele foi até seus tios maternos levar

queixa contra seu rival.

Obiang Medza, o pérfido, enviado por Engouang Ondo, chegou à tribo dos Biguiba e,

com muitas ameaças e injúrias, lutou durante uma semana com Zip Bibana, conseguiu

arrebatar-lhe Oyane Bé e fugiu para Engong. Estes fatos desencadearam a cólera dos

Biguiba que declararam guerra contra os Imortais.

Mas Engouang Ondo não esperou o inimigo. Ele se propulsou à tribo dos Biguiba,

vomitou um bramido terrível do qual nasceram três elefantes grandes como montanhas.

Estes paquidermes gigantes começaram a dar voltas em uma valsa mais e mais rápida,

mais e mais vertiginosa. Então, em uma cascata turbilhonante e impetuosa, se lançaram

através da tribo dos Biguiba. As casas desmoronavam. As aldeias e as culturas desabavam.

Os Biguilas fugiam. A destruição atingiu seu paroxismo. Exasperado, Zip Bibana, homem

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poderoso, bateu em seu peito e retirou dele um dente de hipopótamo com o qual acertou

violentamente o chão, no caminho que seguiam os elefantes. Um abismo enorme, capaz de

absorver a metade de todos os elefantes da terra se abriu que ele dissimulou recobrindo-o

com uma fina película de folhas secas.

Zip Bibana foi se empoleirar em um lugar alto e, de lá, vigiava o avanço dos animais.

Alvoroçados, os três animais chegavam correndo, sem desconfiança, saqueando tudo a sua

passagem. O abismo acelerava sua corrida com uma espécie de sucção misteriosa. E assim

que eles estavam a pouco mais que alguns passos, o buraco os abocanhou literalmente. Zip

Bibana assoviou. Três montanhas se arrancaram da “Grande Serra dos Picos”, zumbiram

como o furacão e caíram no abismo, fechando-o completamente.

- Não há túmulo melhor para estes animaizinhos – disse tranquilamente Zip Bibana.

A rapidez e a precisão dos reflexos garantem ao homem-poderoso sua superioridade

sobre os mortais comuns. Zip Bibana se catapultou às margens do rio Missolo onde

Engouang Ondo, calmo e onipotente, esperava. O Biguila se jogou sobre ele como o

leopardo sobre o antílope. Ele bem que esperava reduzir em poeira sanguinolenta este

homem de Engong que se misturava a todas as palavras da terra!

Ele esfregou o peito e tirou dele um esqueleto humano com ossos duros como metal,

o balançou fogosamente nas pernas de Engouang Ondo e puxou-o para trás. Arrancado

brutalmente do chão, o Altivo basculou no vazio, enquanto que seus pés descreviam uma

curva soberba no ar. Zip Bibana tirou de seu cinto um sabre gigantesco e desferiu na

garganta de seu inimigo um golpe atroz.

Engouang Ondo deu um ronco sonoro, deu a volta sobre si mesmo como um gato

caído do telhado de uma casa e instantaneamente estirou e dobrou suas pernas ao redor do

pescoço de seu adversário. Ele montou sobre suas costas, cuspiu na cabeça de Zip Bibana

e disse:

- É para acalmar seus nervos febris, amigo Biguila. Você é poderoso, mas é

formalmente proibido me levantar do chão como você acabou de fazer. Agora, apenas

poderei encostar na terra em Engong e, para ir até lá, você me servirá de montaria.

Zip Bibana ainda tentou resistir, retirar Engouang Ondo de suas costas. Em

desespero de causa, ele tomou o caminho de Engong. E em todos os lugares por onde

passava, ondas de sarcasmo eram desferidas sobre ele, humilhando-o até as profundezas

de suas fibras. Ele ia a passo rápido, atravessava riachos e rios a nado. O chicote que o

Magnífico tinha na mão resoava de tempos em tempos sobre sua anca. “Aí está um homem-

cavalo” as pessoas exultavam a sua passagem. E Zip Bibana se sentia cada vez mais

mortificado.

Uma vez no domínio dos Imortais, Engouang Ondo saltou para a terra e prestou

contas aos anciões reunidos de sua missão. Aproveitando deste instante de desatenção, Zip

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Bibana se lançou no céu e tomou o caminho de sua tribo. Engouang Ondo desdenhou de

persegui-lo. “Esta guerra, julgou, pode acabar aqui”. Os anciões aprovaram e todos

retomaram suas ocupações costumeiras.

*

* *

Engouang Ondo rememorava, pois, esta recente batalha e dizia a si mesmo que as

pessoas de Okü não deixam de surpreender frequentemente e que o complexo de

imortalidade dos homens de Engong deveria ter limites. Ele comparou o poder de Zip

Bibana ao de Oveng Ndoumou Obame e achou este último ainda mais temível.

O acesso à montanha rochosa parecia praticamente inviolável. Com ajuda do

espelho mágico, Engouang Ondo via nesta montanha milhares e milhares de fantasmas

armados, dentro de enormes animais ferozes, enquanto que Oveng Ndoumou Obame

estava sentado ao fundo, no meio de um monte de armas miraculosas.

Engouang Ondo se perguntava se não tinha se enganado na estimativa de seu

próprio poder. Parecia-lhe não passar de um menino vaidoso ao lado deste terrível colosso.

Logo ele expulsou esses pensamentos covardes. Será que o chefe guerreiro dos Imortais

tinha o direito de se minimizar assim? Tinha deixado ele de ser o homem com poder mágico

insondável, o touro das batalhas, a palmeira das planícies104, o furor dos ventos, a violência

das corredeiras, o invicto e o invencível? Estas reflexões repuseram sua confiança em

ordem. Agora ele se sentia ele mesmo, capaz de enfrentar este filho de leprosos da tribo

das Chamas que queria, ele também, se passar por um Imortal. Pior para suas pretensões e

agora, passemos à ação!

Ele urrou uma ordem. Ntoutoume Mfoulou respondeu-lhe assoviando:

Vi! Violi! Violi! Vio! Vi! Vi!

Saturado de força e poder,

Gostaria de encontrar um igual!

Vi! Violi! Violi! Vio! Vi! Vi!

Que a morte me mate

Se for capaz!

Vio! Vio! Vi! Violi! Vio!

Engouang Ondo lhe mostrou com o dedo a montanha rochosa.

- O inimigo está escondido dentro dela. Mas eu lhe previno, é um verdadeiro inferno.

104 Palmeira das planícies: se vê de longe

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- Inferno ou não, vou desalojá-lo para fazê-lo engolir víboras – respondeu o

impetuoso.

Ele pulou. Mas assim que ele aterrissou sobre a montanha, uma avalanche de

golpes furiosos se desencadeia sobre sua cabeça. Lutar tem um sentido assim que se vê o

adversário. Lutar contra um adversário invisível é simplesmente receber os golpes sem

poder esquivá-los ou devolvê-los. Ntoutoume Mfoulou supôs inicialmente que era vítima de

um sonho irônico. Mas os golpes tornaram-se tão pesados que ele bateu em retirada e

reencontrou seus irmãos em Nkobam com o corpo queimando.

- Oveng Ndoumou Obame – anunciou – é o diabo em pessoa. Não vi ninguém, mas

vejam o estado de meu corpo.

Angone Zok gaguejou:

- Eu... eu não entendo. Ex... explique-se direito.

- É inútil – disse Engouang Ondo – É a sua vez, vá ver o que está acontecendo lá em

cima.

Alguns instantes mais tarde, Angone voltou, urrando injúrias contra um adversário

imaterial.

Engouang Ondo retirou de sua bolsa de couro um frasco cheio de um líquido

embranquecido do qual verteu algumas gotas nos olhos e orelhas de seus dois irmãos.

Então estes dois viram e escutaram os fantasmas brandir armas e vociferar ameaças.

Ntoutoume Mfoulou explodiu:

- Isso são modos! Esses esqueletos estralando se imaginam reinando sobre mim!

Que nenhum fuja! Eu vou lhes ensinar a voltar para suas tumbas! E sem demora! Por Evine

Etsang, eu...

Ele pulou.

Todo mundo sabe que a cabaça em forma de pêra que os Fang usam para

administrar enemas é o terror dos fantasmas. Uma velha tradição, mais velha que a estação

das chuvas e a da seca, diz que os fantasmas comem apenas raramente. Então eles não

têm quase nada para evacuar de seus intestinos. Portanto, eles têm medo de que os últimos

alimentos comidos antes de sua morte – os mais nutritivos que mantêm sua forma – saiam

de seu corpo imaterial.

Mais do que todo mundo, Ntoutoume Mfoulou sabia disso. Logo na montanha

rochosa, ele bateu no peito e fez sair dele uma cabaça em forma de pêra que agitou na

frente dos fantasmas, interrompendo na hora seu ímpeto. Por um momento eles ficaram

como petrificados, fascinados com a visão da pêra. Ntoutoume Mfoulou fingiu se jogar sobre

um deles berrando para inflingir-lhe o suplício do enema. O fantasma deu um urro de terror

e disparou para as entranhas do solo. Os outros executaram uma magnifica debandada que

fez rir o “sim” de Mfoulou.

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Agora a montanha estava silenciosa. Ntoutoume Mfoulou percoreu com os olhos

todos os cantos e recantos, mas nenhuma outra presença se manifestou.

Contudo, do fundo da montanha, Oveng Ndoumou Obame o enxergava. Ele dizia a si

mesmo que estes três homens d’Engong eram o que mais tinha de cabeçudo no mundo. O

que eles queriam dele agora? Ele tinha deixado com eles Eyenga Nkabe, a filha de Nkabe

Mbourou. Seu projeto de destruir o ferro tinha ido por água a baixo. Por que eles lhe

perseguiam tão incansavelmente? Eles não compreendiam que ele aspirava apenas à paz,

que até aqui ele tinha feito tudo para evitar o pior? Mas já que eles se destacavam na

surdeza e na incompreensão, ele iria agora agir sem piedade. Não pode-se deixar

indefinidamente vagar pelo mundo seres tão bárbaros, tão prejudiciais. A prosperidade e a

felicidade da humanidade exigiam que eles fossem suprimidos da superficie do globo.

Além disso, sua fúria demonstrava que eles eram os autores de todos os males que

torturavam o gênero humano. Seus irmãos, Nzé Medang e Obiang Medza, tinham retornado

à Engong, estimando sem nenhuma dúvida que essa história não tinha mais nenhuma

importância. Mas estes três aqui saiam diretamente do inferno aonde era preciso reintegrá-

los sem tardar.

Oveng Ndoumou Obame via Ntoutoume Mfoulou sobre o rochedo. Por um instante

ele teve pena do impetuoso. Tendo deixado seus dois irmãos em Nkobam e tendo se

aventurado sozinho na fortaleza de Oveng Ndoumou Obame, ele não poderia escapar dela.

Agora, de quem era a culpa?

Oveng Ndoumou Obame assoviou. A rocha se abriu perto de Ntoutoume Mfoulou.

Sem hesitar, este penetrou na montanha e o rochedo se fechou.

Ntoutoume Mfoulou vive de brigas. Os homens de Engong e os homens de Okü o

sabem. O que tem de melhor para este furacão do que se encontrar bem no meio de uma

batalha? E não é que ele enche seu peito aspirando o ar com força e rejeitando-o

lentamente! Ele empinou o busto, os músculos tensos, os olhos vomitando chamas, os pelos

eriçados no corpo todo. Ele não sabe ainda qual partido irá tomar, mas sente que a coisa vai

esquentar.

Tempestuosas, as presas de fora, a proteção das garras retraída, duas panteras

furiosas se jogam sobre ele. Ele propusa, como meteoros, seus dois punhos para frente. A

pantera da direita recebe um sobre o crânio, que estoura em uma papa e a da esquerda

recebe o outro em pleno coração. Ntoutoume Mfoulou retira seus braços musculosos

ensanguentados e de uma só bocada, engoliu o cérebro e o coração das duas feras. O

sangue quente, o cérebro fresco que ele engole assim acordam nele seu amor profundo

pela violência. Ele está bem à vontade, bem feliz. E que coisa boa se render à violência

nessa caverna bem fechada!

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Mas ele não tem tempo de se demorar nessas doces considerações, pois aí vem um

gorila que se joga, um gorila monstro. Ele brutalisa Ntoutoume Mfoulou com suas mãos

largas, com suas garras, suas presas, atordoa-no com seus roncos, prensa-o contra a

parede da caverna para imperdir qualquer movimento, sem cessar de atormentá-lo com

golpes frenéticos.

Os gorilas são animais brutais e implacáveis. Quem fala em gorila, fala em violência.

Antigamente os Fang os aprisionavam e não hesitavam em lançá-los contra seus inimigos

em um corpo-a-corpo. A vitória, em tais circunstâncias lhes era sempre garantida. E todos

aqueles que escutavam falar dos “guerreiros dos gorilas adestrados” fugiam o mais rápido

possível, abandonando mulheres, crianças e inválidos. Que belo saque para os homens dos

gorilas.

Ntoutoume Mfoulou se deixou escorregar de repente no chão, se enrolou sobre si

mesmo, como uma centopéia ameaçada, se encolheu enquanto que o gorila, tombado em

sua queda, levava sua fúria ao extremo. Bruscamente o “sim” de Mfoulou se destendeu

como uma mola de armadilha para elefantes. Projetado terrivelmente no ar, a enorme besta

acertou violentamente a parede rochosa, quebrou ali seu crânio e então caiu inerte sobre o

solo. Ntoutoume Mfoulou barriu de prazer, de força e de sobrenatural. Ele se dirigiu ao fundo

da caverna, esperando desta vez encontrar Oveng Ndomou Obame.

Atacar inesperdamente é uma traição honrosa entre os escorpiões. Ainda aturdido

pelo esforço que acabara de deflagrar conttra o gorila, Ntoutoume Mfoulou não viu,

espreitando em um canto obscuro, um gigantesco escorpião negro. Este o deixou passar,

saltou sobre ele e plantou suas pinças de aço em sua nuca. Então ele dobrou sua calda e

dardejou sobre a cabeça do homem sua agulha venenosa.

A subtainidade do ataque e a ousadia desse filho de aranhas desgostaram

Ntoutoume Mfoulou. A dor devastava seu corpo. As pinças seguravam bem e o dardo

funcionava maravilhosamente. Ntoutoume Mfoulou disse para si mesmo que se os animais

tivessem tido um grão de inteligência os homens teriam sido seus escravos. Primeiro ele

sacudiu a montanha com um rugido de cólera. Os guerreiros em forma de morcegos

voltitaram por todos os lados. Tomandos de pânico, os homens de Andok fugiram para o

fundo da caverna para implorar a proteção de Oveng Ndoumou Obame.

Então, Ntoutume Mfoulou bateu no peito e retirou um assustador par de tesouras que

ele sempre manuseava com uma agilidade admirável. Mas o escorpião parecia ter previsto

esta reação pois, agilmente, afrouxou suas pinças e lançou-as em direção às tesouras de

ferro. O choque foi assustador. Esmagadas, as tesouras chiaram muito, enquanto que o

escorpião voltava a plantar suas pinças no pescoço de Ntoutoume Mfoulou. O homem

pressionou seu abdômen. Seu vampiro branco gritou e fez vibrar todo seu ser. Ele se

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propulsou para fora da montanha, aterrissou em Nkobam, espantando Engouang Ondo e

Angone Zok com seu terrível escorpião.

Angone Zok gaguejou uma exclamação de surpresa, entrou em uma cólera de fogo,

deu a volta em si mesmo como um peão e bateu em seu peito. Sua besta com flechas

perfurantes saiu dele. Ele ajustou uma delas, mirou no escopião e soltou o arco. O projétil

perfurou a garganta do animal, saiu do outro lado, roçou a cabeleira de Ntoutoume Mfoulou

e se perdeu ao longe. O escopião amoleceu. Suas pinças e seu dardo relaxaram sua

pressão, ele desabou na poeira. Angone Zok projetou sobre o animal imundo um jato de

vapor quente. O escopião se desintegrou.

- A... a... aí está como corrigimos os animais pegajosos – ele gaguejou para

Ntoutoume Mfoulou – Um a... animal nunca fez mal.

Ntoutoume Mfoulou quis voltar para a montanha, mas Angone Zok o parou com um

gesto.

- Meus mú...músculos precisam se exercitar – ele disse – Além disso, Oveng

Ndoumou Obame precisa de ajuda. Já que eu sou a própria bondade, eu vou levar-lhe

ajuda.

Engouang Ondo disse:

- Esta guerra durou demais. Nós temos outras assembleias para resolver. Uma

mensagem de Engong me previne que o grande rio Bevuyeng105 situado onde o sol se

levanta tornou-se impossível de atravessar. Maus espíritos, vindos não sabe-se de onde, o

habitam neste momento e proíbem sua travessia. Anvam-Eyegue-Bong, o homem poderoso

da tribo de Benvik, os Cupins, acabou de ser degolado por esses demônios enquanto ele

retornava de uma longa viagem de onde ele trazia um saque importante. Ora, todos nós

sabemos que Anvam-Eyegue-Bong foi até agora o terror de todo o país banhado pelo

Beveyeng. Um dia ele se agarrou em Medang Boro, o pai de Zé Medang, ao longo de uma

partida de caça organizada por Efoua Nang, da tribo de Yebiyo, os Espinhos. Anvam-

Eyegue-Bong conseguiu fugir, levando dois elefantes, três búfalos e um número incalculável

de javalis e antílopes. Medang Boro não conseguiu alcançá-lo. Zé-Medang o perseguiu

durante longos meses sem resultado. Dizer que este homem acabou de morrer é dizer que

aqueles que lhe deram a morte são para temer mais do que a Oveng Ndoumou Obame. Os

interesses do povo de Engong comandam que nós terminemos o mais rapidamente possível

com o homem da tribo das Chamas.

Essas palavras caíram como maças nos ouvidos dos dois homens de Engong. Isso

era uma ameaça, um aviso ou uma reprovação da parte de seu chefe? Ele os tratava por

105 Esta epopéia constitui o livro II do Mvett.

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impotentes perto do poder de Oveng Ndoumou Obame? Quem poderia sondar o que se

passava na cabeça do insondável Engouang Ondo?

No momento em que se preparava para voar para a monanha rochosa, Angone Zok

ficou abalado. Sobre suas costas sentiu a responsabilidade pesar. Ele disse para si mesmo

que o grande defeito de Engouang Ondo era o de considerar o adversário como um

elemento de segunda classe e de atribuir a seus irmãos de Engong um poder que eles

talvez não tivessem. A imortalidade lhes conferiria necessariamente toda a superioridade a

seus adversários de Okü? Em todo caso, Oveng Ndoumou Obame parecia invencível.

Irritado e mal-humorado, Angone Zok bateu no peito e retirou dele um chifre de

antílope. Resmungou palavras incompreensíveis e assoviou. Como uma flecha, ele passou

pelos ares, aterrissou sobre a montanha. Traçou um círculo negro sobre o rochedo e o

rochedo se abriu. Ele penetrou na toca de Oveng Ndoumou Obame e o rochedo fechou-se

novamente.

O humor de Angone Zok estava negro. Estava bravo com Oveng Ndoumou Obame.

Estava bravo com Engouang Ondo. Estava bravo sobretudo consigo mesmo. Estava bravo

por não ter até então torturado seriamente Oveng Ndoumou Obame, ter lhe administrado

uma dessas correções que não se apagam da vida de um homem. E a batalha se arrastava,

se arrastava. E ela irritava Engouang Ondo que continha dificilmente sua impaciência

colérica.

Angone Zok avançava maquinalmente na semi-escuridão da caverna rochosa, em

meio a suas reflexões.

Mastigar nozes de cola vermelha e pedaços de raiz com gosto de pimenta lhe

transportou aos limites extremos da exasperação. Ele gaguejou um mugido feroz, irritou os

guerreiros voadores que se precipitavam sobre ele dando inexoráveis urros de furor. Por um

instante todos se calaram, se imobilizaram com duas ou três investidas da lança de Angone

Zok. Um deles, o chefe sem dúvida, lançou subitamente um clamor assombroso. Os outros

lhe responderam em coro, enquanto que o chefe retomava lentamente seu voo, seguido de

todos os guerreiros. Logo eles formaram um círculo sobre Angone, como uma coroa

giratória, que tomava progressivamente cores amarelas, vermelhas e brancas. Os guerreiros

cantavam agora, com um mesmo tom, uma canção que fazia tremer o homem de Engong:

Ho! Ho! Ho! Ha! Ha! Ha!

É o fim, é o fim da Guerra

É o fim de Engong!

Ho! Ho! Ho! Ha! Ha! Ha!

É o fim de Angone Zok,

É o fim do temerário,

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É a morte de Engong!

Ho! Ho! Ho! Ha! Ha! Ha!

Que os ouvidos ouçam

Que eles ouçam o mvett!

A coroa rodava cada vez mais rápido, cada vez mais vertiginosamente, cada vez

mais fascinante. Assim que ela não passava de uma auréola deslumbrante, ela explodiu e

os guerreiros se precipitaram ardorosamente sobre seu inimigo.

Angone pareceu sair das nuvens com o primeiro choque de lanças, de tacapes, de

sabres e de martelos de ferro. Ele fungou ruidosamente. Choviam golpes. Ele bateu na

fronte. De suas orelhas se ejetaram dois ramos chamejantes que ele pegou com suas mãos

largas. Ele começou a dançar dando voltas sobre si mesmo e agitando freneticamente os

ramos. Faíscas jorravam para todos os lados, esquentando a gruta. Os guerreiros se

retiravam de perto de Angone, que tinha se tornado ofuscante. Em um movimento de

rotação quase imperceptível, Angone deslizou silenciosamente em uma magnífica aura

multicolorida e sedutora.

Com olhos assustados, os guerreiros vampiros olhavam este disco luminoso, quente,

impalpável. Agora eles se refugiavam no fundo da gruta onde o calor se tornava intolerável.

Irresistível, misteriosa, a aura continuava progredindo. Os homens, as mulheres e as

crianças davam gritos de terror.

Oveng Ndoumou Obame se levantou preocupado. Ele viu o disco. O que significava

este novo fenômeno heteróclito? Mas este não era o momento de fazer perguntas. Ele bateu

no peito e tirou dele uma bolota de cera negra que lançou contra a parede da rocha. A

montanha se abriu, deixando penetrar no interior da caverna um sopro de ar doce. Então

Oveng Ndoumou Obame encarou o disco que agora oscilava a apenas alguns passos dele.

O filho de Obame Ndong assoviou. Um rugido surdo, tal qual o barulho distante do

trovão fez vibrar a montanha. Uma névoa de vapor quente escapou de sua boca. Ele

estendeu o braço na névoa de onde retirou uma bengala metálica terminada em uma

extremidade por uma bola de cobre e na outra por uma empunhadura recurvada que

deslizava ao redor de um eixo situado no meio da haste.

No interior da bengala, uma mola encarregada de imprimir à bola um movimento

violento de rotação ao menor choque a conectava à empunhadura.

Oveng Ndoumou Obame comprimiu a mola fazendo rodar a empunhadura sobre o

eixo. Então ele levantou o bastão e o abateu furiosamente sobre o disco fabuloso. Angone

Zok levou a bola em pleno peito, saltou várias pernadas para trás, titubeou bêbado de dor. A

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aura desapareceu. De novo, Oveng Ndoumou Obame se jogou sobre seu inimigo, a bengala

erguida.

Angone Zok percebeu que um segundo golpe deste misterioso bastão o deixaria

mudo e que ele não apreciaria particularmente um terceiro. Ele se endireitou, fulminou de

injúrias incoerentes, friccionou nervosamente seus punhos, bramiu como um rinoceronte

ferido, então se jogou sobre seu antagonista no momento em que ele se aprontava para lhe

baquear com uma bastonada mortal. Punhos e cabeça transformados em meteoro, ele

entrou como um aríete no abdômen de Oveng Ndoumou Obame. O homem da tribo das

Chamas caiu para trás, pés e mãos no ar, o crânio em fogo, o estômago destruído. Mil

cigarras estrilavam em suas orelhas. Ele se levantou pesadamente, os olhos no nevoeiro.

Angone Zok empunhou a bengala mágica, preparou a mola e mandou para as omoplatas de

Oveng Ndoumou Obame a bola destruidora.

Oveng Ndoumou Obame sobressaltou-se como saindo de um sonho nebuloso e

recuperou todas suas faculdades físicas. Sobre ele, os golpes da bengala mágica tinham um

efeito revigorante. Um vampiro gritou em sua cabeça. Um anel de cobre saiu de entre seus

dentes. Oveng Ndoumou Obame o pegou, balançou-o sobre o bastão que arrancou das

mãos de Angone Zok. Ele acionou a empunhadura.

Angone não esperou para ver. Ele se projetou para fora da gruta no momento em

que Oveng Ndoumou Obame levantava a bengala ameaçadora. Os dois adversários, um

atrás do outro, venceram em um movimento a distância que separa a montanha rochosa de

Nkobam, encontrando-se com Ntoutoume Mfoulou e Engouang Ondo.

Oveng Ndoumou Obame atirou o bastão e a bola atingiu Angone Zok nas omoplatas:

este ali mergulhou de cabeça e bateu no chão. Petrificados, Ntoutoume Mfoulou e

Engouang Ondo recuaram alguns passos no instante em que Oveng Ndoumou saltava para

acabar com o gago. Mas Angone Zok esquivou do golpe se jogando de lado com uma

rapidez arrepiante, enquanto que a bola cavava no lugar onde ele se encontrava há alguns

instantes uma tumba profunda.

Oveng Ndoumou Obame comprimiu a mola.

Ntoutoume Mfoulou se mantinha à distância. Oveng Ndoumou Obame se lançou

sobre ele. A bola atingiu o filho de Mfoulou nas costelas. Perpassado pela dor, Ntoutoume

Mfoulou deu alguns passos desordenados como se presa de vertigem, se refugiou atrás de

Engouang Ondo, completamente tonto.

Oveng Ndoumou Obame girou a empunhadura. Engouang Ondo recebeu a bola em

pleno peito. Uma dor lancinante atravessou-lhe o corpo. Ele tinha a impressão que um

exército de formigas vermelhas trabalhava sua carne e que elas a misturavam com uma

pimenta exageradamente picante. Formigamentos intoleráveis iam da ponta dos seus dedos

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dos pés até as raízes de seus cabelos e luzes brancas o cegavam. Engouang Ondo

compreendeu porque seus irmãos fugiam...

Oveng Ndoumou Obame carregou a mola. Ele lutava sozinho contra sete106.

Engouang Ondo bateu no peito. Uma pesada corrente de ferro, terminada em

ganchos de cobre saiu de sua boca.

Oveng Ndoumou Obame bateu com a bengala. Engouang Ondo propulsou a

corrente. As duas engrenagens se acertaram com um barulho infernal de coisas quebrando

e se rompendo. Acabou-se a bengala. Acabou-se a corrente. No chão, migalhas.

Na montanha rochosa os homens de Andok respiravam mais livremente. Era melhor

que este combate acontecesse mais longe. Esse grande gorila, Angone Zok, que mata pelo

prazer de matar, certamente não os teria poupado. Um verdadeiro vagabundo, este homem

fulvo sem consciência. A natureza não tinha nada melhor para fazer do que produzir tais

lixos! Um dia em que lhe perguntaram por que ele então não se decidia a exterminar todo o

gênero humano ele, que se satisfazia a matar, respondeu: “se eu o exterminar totalmente,

com o que eu me ocuparia depois?”. Um verdadeiro monstro, este filho de Endong Oyono!

Para os homens de Andok felizmente Oveng Ndoumou Obame havia nascido. O que

também não impediu que a tribo das Chamas fosse quase inteiramente devastada. Não

precisava mesmo se atritar com estes seres malditos de Engong. Quem procura encrenca

com eles acaba sempre com as costas no chão. Oveng Ndoumou Obame conseguirá

vencer?

Assim falavam as pessoas de Andok no fundo de sua gruta rochosa. Eles não

duvidavam nem um pouco que neste momento a batalha estava em sua fase decisiva.

Eu semeio o vento!

Sim!

Eu guio o elefante!

Sim!

Hoje é domingo!

Sim!

O quê seus ouvidos escutam?

Eles escutam o mvett.

Engouang Ondo espirrou várias vezes seguidas. No seu corpo, os pelos se eriçaram.

Um jato de vapor inundou todo seu ser. Pouco a pouco a cólera o invadiu. Ela o tonificava.

Ele precisava dela. Ele sempre levava um tempo infinito para acordar seus instintos

106 Lutar sozinho contra sete: expressão fang que significa lutar sozinho contra várias pessoas. Também diz-se contra nove.

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belicosos e para fazer desaparecer sua inacreditável calma, o que muitas vezes irritava

Ntoutoume Mfoulou e Angone Zok e oferecia a seus adversários a oportunidade de se

recuperarem e de infligir-lhe uma correção humilhante.

Oveng Ndoumou Obame, justamente, se aproveitou disto. Curvando-se, ele

esmagou-lhe as rótulas a marteladas. Dois ovos de tartaruga, grandes como abóboras

emergiram de suas narinas. Primeiro ele cuspiu na face de Engouang Ondo como sinal de

ódio e desprezo. Então, encheu o peito de ar e, com um espirro violento, expeliu os ovos

que se partiram sobre a cabeça do inimigo. Oveng Ndoumou Obame vomitou um enorme

tantã de madeira que ele quebrou ali mesmo. Uma corda de cobre saiu miraculosamente do

tantã, se firmou solidamente nos cabelos do Imortal e foi até as mãos do homem da tribo

das Chamas, que a tencionou secamente.

Engouang Ondo sentiu sua pele tencionar escabrosamente sobre seu crânio. Ele

compreendeu em um turbilhão de dor atroz que seu adversário queria escalpelá-lo. Ele

pegou em sua bolsa um frasco cheio de gordura derretida de crocodilo e verteu-o sobre sua

cabeça. A corda de cobre escorregou. Engouang Ondo tossiu. Seu vampiro branco emitiu

um assovio estridente.

Engouang Ondo pulou sobre Oveng Ndoumou Obame, sentou-se sobre sua garupa,

sacou um machado assustador, descreveu com ele três círculos sensacionais e o abateu

com uma violência ímpar entre suas espaldas. Suas costas ressoam como um tambor. O

machado explodiu. Oveng Ndoumou Obame executou um tombo magnífico, quase caiu no

chão, piruetou de lado, se elevou loucamente no ar, livrando-se assim de seu adversário, e

aterrissou no outro canto da aldeia, com os olhos desfigurados, o corpo em ebulição, uma

grande marca do Altivo entre as omoplatas.

Ntoutoume Mfoulou ria disfarçadamente. Angone Zok trepidava de prazer. Engouang

Ondo sabia verdadeiramente, quando queria, limitar as pretensões e fanfarronadas dos

homens de Okü!

Mas será que Oveng Ndoumou Obame havia dito sua última palavra? É o que

iríamos ver. O homem pulverizou o silêncio com um urro terrível. O céu se sombreou. Um

relâmpago cegou as nuvens e o trovão berrou surdamente. Do céu caíam sete gotas de

chuva que não tocavam o solo. Oveng Ndoumou Obame tirou de sua boca uma longa corda

roliça formada por sete nós que correm, que correspondiam cada um a uma gota de água.

Ele passou seus braços pelos dois nós externos, apertou-os com força, pulou sobre

seu adversário, balançou o laço sobre sua cabeça. As gotas de chuva soltaram os nós.

Engouang Ondo se viu com o pescoço e os membros nessa armadilha exxtraordinária.

Oveng Ndoumou Obame puxou a corda e recebeu sua presa em pleno peito. Então ele

entrou rapidamente em sua casa, mergulhou na lagoa e desapareceu com o prisioneiro nas

entranhas da terra, com destino ao país dos fantasmas.

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Chegado ao reino dos mortos, ele depôs sua carga aos pés de seu avô Obame

Ndong e disse:

- Avô, eu lhe trago Engouang Ondo, o chefe guerreiro de Engong, amarrado como

um feixe de mandioca. Eu o dou em pasto a todos. A carne é boa. Sendo que os fantasmas

comem muito pouco, tem carne para toda a população. Eu retorno imediatamente à Nkobam

para me ocupar de Ntoutoume Mfoulou e de Angone Zok. Estes dois me parecem coriáceos,

mas com seu chefe desfeito, espero que eles não ousem mais me opor resistência.

- Felicitações, meu garoto. – respondeu o velho chefe Obame Ndong. – Você é um

homem bravo. Você libertou a humanidade deste verme de Engong. Você poderá, a partir

de agora, conduzir seu povo em rumo à felicidade e à paz. Mas preste sempre atenção! O

mundo é cheio de surpresas. Vá e que os bons espíritos lhe protejam!

Oveng Ndoumou Obame partiu. Obame Ndong saiu de casa, reuniu todos os

fantasmas no corpo da guarda e lhes disse:

- Meus irmãos, hoje vamos nos regalar de sangue quente e carne fresca. Nosso filho

Oveng Ndoumou Obame acabou de me trazer um abastecimento. Trata-se de Engouang

Ondo, o chefe guerreiro de Engong, que vocês conhecem pela reputação. Bem! Ele está

amarrado como uma gazela presa na armadilha. Isso prova o poder inacreditável que nós

insuflamos no jovem chefe da tribo das Chamas.

Foi aprovado por exclamações de alegria. Alguns indivíduos, no entanto, emitiram

reservas que foram imediatamente rejeitadas por outros mais ávidos. E, enquanto que a

discussão se animava, Engouang Ondo escutava todos os discursos sustentados pelos

homens do mundo da morte. Ele achou Oveng Ndoumou Obame de uma inocência e de

uma imprudência inadmissíveis. Então, este homem extraia seu poder e sua força entre os

fantasmas, estes pobres mortos descarnados que não podiam mais. E ele havia cometido

este tropeço de conduzi-lo, ele, Engouang Ondo, diretamente à fonte de seu poder! Os

homens de Okü, assim como as mulheres, não servem mesmo para nada. É no momento

em que você se prepara para cobri-los de admiração que eles lhe surpreendem com suas

fiéis burradas. Esta aqui, em todo caso, era maior do que o sol. Para chegar ali, Oveng

Ndoumou Obame devia ter perdido seu bom senso, assim como “ngom”, o porco espinho,

que tem o péssimo hábito de, ao fugir dos cachorros, conduzir o caçador direto à sua toca!

Engouang Ondo tentou agitar os braços e as pernas. Ele continuou preso: nenhum

movimento lhe era possível. A garganta o incomodava, o estrangulamento lhe ameaçava.

Estava ele realmente a mercê desses esqueletos loucos por sangue? Ele se contraiu. Seu

vampiro branco assoviou. Pelos longos, cortantes como lâminas de navalha emergiram por

toda sua pele. Croc! Croc! Eles cortaram a corda em vários mini pedaços...

Engouang Ondo sentou-se, friccionou o pescoço e os membros, levantou-se,

cambaleante. Ele aspirou uma grande baforada de ar que expirou com força. Ele se sentiu à

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vontade e então, com um salto, saiu pela porta da cabana e caiu como o raio no meio dos

fantasmas subitamente aterrados. Ele falou:

- Meus amigos, vocês se alegram porque creem me devorar. Mas eu lhes digo:

ninguém nunca me viu, nem nunca me verá cadáver. Sou invencível, imortal. Vocês vão

neste instante mesmo e sob pena de uma ressucitação geral, revelar-me o segredo do

poder de Oveng Ndoumou Obame.

E dizendo isso, Engouang Ondo bateu no peito, tirou dele um grande cetro caça-

moscas pintado de branco, negro e vermelho, o misterioso cetro que, com um único golpe

sobre as costas, lhe leva de volta da morte à vida os homens. Ele o agitou:

- Andem logo ou eu lhes acordo!

Coloque-se, amigo ouvinte107, no lugar de nossos fantasmas. A vida dos homens é

tudo o que há de tormentoso neste mundo. É uma luta perpétua da qual a gente só se

liberta no dia da morte. O bebê que nasce o sabe bem. Ele não começa por chorar desde

que sai de sua concha e entra em contato com este mundo de infelicidades? Ele mal teve o

tempo de respirar à vontade duas ou três vezes o pretenso bom ar desta natureza, que lhe

trincham, cortando-lhe o cordão umbilical, para, dizem, salvar-lhe. Ai! Como isso dói! E a ele

chorar, chorar sem parar! E não acaba aí.

O tempo que o sol leva para atravessar o céu descrevendo uma curva majestosa e

ceder o lugar à lua é o suficiente para infligir ao estômago uma impressão desagradável.

Formigamentos são instalados ali e o estômago reclama uma coisa que ele não conhece e

que, se não lhe dão, ele morre! Chamamos essa coisa de leite, de comida, para nutrir o

corpo, a fim de que o corpo viva e cresça: Ai! Como é complicado! E quanto mais os dias

passam, mais o estômago fica exigente!

Mas hoje o bebê não se sente bem. Ele não quer mais comer essa coisa com gosto

agradável. Seu estômago recusa. Seu corpo está quente enquanto que o bebê, ele, tem frio.

Ele sofreu um ataque. Alguém invisível, um espírito mau, talvez, quer o seu mal, lhe fez mal.

O Bebê sofre, o bebê está doente. Rápido chamam o curandeiro! Ah o curandeiro! Que ideia

boa! É apenas o curandeiro que vê os seres invisíveis, que conhece os maus e bons

espíritos e lhes fala. Ele cuida do bebê e o bebê melhora. Ele tem sorte, o bebê, talvez a

má-sorte.

Neste tempo, as estações secas sucedem às estações secas e as estações

chuvosas às estações chuvosas. O bebê cessou de rastejar como uma tartaruga, de se

levantar como um chimpanzé. Ele anda e corre como um homem. Ele é um homem. Ele

atravessou todas as provas da infância e da adolescência. Ai! Como isso foi duro! E

doloroso! Essas quedas que deixam na pele traços ensanguentados, que levavam os dentes

107 Ouvinte: Não perca de vista que você se encontra no corpo da guarda, em presença do tocador de mvett!

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a lhe furar os lábios! Essas batalhas com outras crianças da aldeia que lhe inchavam o

rosto! Essas reprimendas do pai ou da mãe em cólera que, às vezes, degeneravam em

palmadas! Sim, isso foi duro e doloroso! E belo! Hein! Sim, Belo! Essas risadas imoderadas,

essas galopadas imponderadas em tropéis na poeira dos pátios, essas fugas caprichosas,

esses banhos tumultuosos no rio de águas límpidas que tornávamos turvas! Sim, isso foi

belo e magnífico! Este é talvez o único momento em que a vida parece ao máximo reverter

nuances de beleza. Pode ser porque seus pais e muitas outras pessoas se encarregaram de

lhe manter e de sua educação que você esquece rápido.

Sim, o bebê tornou-se um homem. E como tal, ele deve dispor de sua liberdade,

tomar suas responsabilidades, em uma palavra, administrar-se. Ele precisa de uma casa,

uma ou várias mulheres, plantações.

Ele precisa nutrir e manter sua família, caçar e pescar, assistir aos conselhos e os

organizar, guerrear, se impor, se fazer temer... É o momento em que a vida desenrola seu

cortejo de tormentos, de decepções, de servidões. O repouso lhe foge, o sonho lhe

abandona. E se ela lhe era predestinada, a velhice chega, rápida, implacável. Você só serve

para dar conselhos, fazer alarde de sua experiência e de sua sabedoria, converter a nova

geração à causa da vida pela qual é preciso lutar e, se necessário, se fazer matar. As

infelicidades da vida, no entanto, não lhe deixaram: você tem gota, reumatismos, você

tosse, as costas doem, suas pernas se recusam a lhe carregar, você não passa de um trapo

humano.

E quando chega enfim o dia da sua libertação, esse dia que tememos – o temor do

desconhecido e da partida sem volta – mas que esperamos com uma certa esperança,

damos o último suspiro que diz toda a história de toda uma vida, fechamos os olhos e nos

encontramos entre os predecessores, no país dos fantasmas. Aqui é o repouso, é a

tranquilidade, é a paz, a grande paz...

Depois disso, lhe dizer de voltar à vida, nesse inferno onde a existência não passa

de aborrecimento, lutas, matanças. Isso não! Além disso, por que se preocupar com a sorte

dos homens! Eles não acabarão, o que eles sejam, o que eles serão, por se juntar ao país

dos fantasmas, o mais belo país que existe? Eles devem resolver seus problemas sem a

ajuda dos mortos.

Todos os fantasmas se voltaram para Obame N’Dong, interrogando-lhe com seu

olhar oco. Ele respondeu:

- Meus irmãos, eu suponho que nenhum de nós quer retornar à vida. Se não, que

levante o braço direito!

Nenhum braço se levantou.

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- Então, estamos todos de acordo – disse Obame Ndong – Eu vou então revelar o

segredo do poder de Oveng Ndoumou Obame à Engouang Ondo, a fim de que ele nos

deixe em paz. Mas antes eu exijo uma pequena condição.

- Qual? – perguntou Engouang Ondo admirado.

- Que você prometa pela cabeça de Evine Ekang, seu avô, que você deixará salva a

vida dos refugiados da tribo das Chamas e de seu chefe, Oveng Ndoumou Obame.

Os fantasmas aprovaram com um murmúrio de dentes rangidos e descarnados.

Engouang Ondo refletiu um instante. Um raio de luz estriou seu espírito e seus olhos

brilharam de prazer: ele sabia o que iria fazer.

- Eu lhe prometo pela cabeça de Evine Ekang – disse ele.

Um suspiro de alívio relaxou os infelizes fantasmas. Obame Ndong retomou, a

alegria no coração:

- É simples. Oveng Ndoumou Obame é um homem duplo. Ele é ferro e homem.

Basta que você destrua seu primeiro duplo que detém seu poder e ele voltará a ser um

homem normal, suficientemente forte para dirigir sem calamidade a tribo das Chamas. Para

destruir seu duplo de ferro, aqui está o que fará: você pegará dentro da lagoa límpida que se

encontra na casa de Oveng Ndoumou Obame um guizo e um apito metálicos sobre dois

tambores mágicos. Assim que Oveng Ndoumou Obame...

Engouang Ondo não escutou o que veio a seguir. Ele engoliu seu cetro caça-moscas

e, sem esperar mais, pulou para a superfície.

*

* *

Retornando a Nkobam, depois de ter abandonado Engouang Ondo amarrado com os

fantasmas, Oveng Ndoumou Obame lutava contra Ntoutoume Mfoulou e Angone Zok que,

não vendo mais seu chefe, se enfureciam contra ele com a energia do desespero,

desferindo-lhe golpes, recebendo outros, impedindo-lhe teimosamente de pegar um deles.

Engouang Ondo alcançou a lagoa. Ele bisbilhotou por tudo, mas não viu os tambores

mágicos. Ele fez saltar em sua mão seu espelho mágico e o consultou: os tambores

estavam enterrados em um monte de areia. Ele os recuperou e os examinou atentamente.

Ele não compreendia. Como um homem tão poderoso quanto Oveng Ndoumou Obame

podia se fiar a uma pretensa invulnerabilidade encarnada por objetos tão vulgares quanto os

tambores, o guizo e o apito metálicos? Não teriam lhe mentido, os fantasmas da tribo das

Chamas? Nesse caso eles deveriam esperar respirar o bom ar da vida num dos próximos

dias! De qualquer forma, aos iniciados de Okü lhes faltava admiravelmente imaginação,

notavelmente àqueles da tribo das Chamas.

Nas batalhas que os povos lutam entre si, as vitórias são o fruto de uma imaginação

fecunda e as derrotas, a consequência de uma imaginação defeituosa. A prudência e a

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imprudência constituem as engrenagens deste princípio que se aplica até mesmo aos

animais. A pantera que caça o búfalo o sabe perfeitamente. É por isso que ela ataca

inesperadamente, sem deixar a sua vítima a menor chance de se defender. Não é sua

culpa. Por que o búfalo acredita estar sempre ao abrigo nas moitas cheias de ramos,

enquanto seus cornos embaralham tudo a sua passagem, chamando assim a atenção de

sua eterna inimiga, a pantera? Ele sofre, sem nenhuma dúvida, de uma imaginação

defeituosa que o eleva ao cume da imprudência!

Engouang Ondo bateu no peito, abriu desmesuradamente a boca, dilatou a garganta,

engoliu os tambores, o guizo e o apito mágicos, retomou sua forma natural e saiu da casa.

Ntoutoume Mfoulou o viu e congelou-se em seguida. Oveng Ndoumou Obame

aturdiu-se lhe vendo. Assim, este adversário que ele acreditava morto havia frustrado o

poder supremo dos fantasmas?

Oveng Ndoumou Obame não se constrangeu. Ele deu um ganido estridente. A terra

tremeu sob seus pés. O céu ficou escureceu, depois ficou vermelho e nublado. Um bando

de borboletas coloridas atravessou a aldeia zigue-zagueando. Em alguma parte da floresta o

estrilar da cigarra explodiu como um aviso que as modulações sinfônicas do rouxinol

acentuaram. Um clarão púrpura, curiosamente rajado de traços brancos, cintilou na

natureza.

Subitamente, com um trovão poderoso, o céu se abriu, deixando escapar o

relâmpago e o relâmpago absorveu Oveng Ndoumou Obame. Precisemos que Oveng

Ndoumou Obame se transformou em relâmpago. Ele retornou ao céu flamejando.

Engouang Ondo miou injúrias. Angone Zok e Ntoutoume Mfoulou saltaram e

sentaram-se em seus ombros, um a direita, o outro a esquerda.

Um zumbido jorrou das nuvens. O céu se abriu, o relâmpago caiu sobre Engouang

Ondo. Raios percorriam sua pele em todas as direções, queimando-o de febre, atordoando-

o. Ele ficou petrificado por um instante.

O relâmpago o perseguia. Ele saltava, tornava a saltar, penetrava nas entranhas de

Engouang Ondo, cozia seus músculos, incendiava seu sangue, fuçava em seu estômago,

atacava sua garganta, queimava suas narinas. Ntoutoume Mfoulou e Angone Zok

acompanhavam com olhos furibundos.

A curiosidade de Engouang Ondo é tão legendária quanto derrotante. Na presença

de um inimigo teimoso, o Altivo reage geralmente com uma lentidão exasperante. É porque

ele o avalia, o sonda, estuda minuciosamente sua tática de combate a fim de atingi-lo mais

certamente. Mas neste ponto, Ntoutoume Mfoulou tem um ponto de vista completamente

contrário. O impetuoso, ele, estima que apenas as respostas imediatas e torrenciais são

eficazes. Ao que, Engouang Ondo sempre responde que cada um tem seu modo de lutar.

Ele sabe que o temperamento de Ntoutoume Mfoulou nunca ficará de acordo com o seu. De

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resto, isto não os impede de se amar e de se encontrar sempre lado a lado face ao mesmo

inimigo. Um bom chefe deve saber entender o caráter de seus guerreiros, principalmente

quando são seus irmãos.

O relâmpago continuava a perseguir Engouang Ondo, que estava curioso para saber

o que ele procurava em suas entranhas. Ele o perseguia cantando:

Homens de Engong, homens aventureiros,

Saiam da terra de meus ancestrais!

Retornem a seu país, retornem a seu povo.

Levem suas mãos manchadas de sangue

E seus pés ungidos de crimes!

Que a morte os acompanhe em seus delitos

E os precipite em seu reino negro.

Malditos sejam, homens de Engong.

Sejam varridos para sempre do mundo!

Eu semeio o vento!

Sim!

Eu guio o elefante!

Sim!

Hoje é domingo!

Sim!

Que os ouvidos ouçam!

Que eles ouçam o mvett!

Agora Engouang Ondo sabia. O relâmpago, em sua bisbilhotagem, visava os

tambores, o apito e o guizo metálicos. Ora, o vampiro branco de Engouang Ondo os havia

engolido. E o vampiro branco era invisível.

Engouang Ondo estimou o tempo vindo do contragolpe. Ele se sacudiu como um

javali enraivecido, chamas ofuscantes saíram de seus olhos castanhos enquanto que uma

nuvem de vapor escaldante escapava de seu peito. Um assovio agudo saiu de suas narinas.

No instante seguinte, Engouang Ondo havia se tornado um camaleão da maior espécie,

barrigudo como um elefante, a coluna eriçada de espinhos grossos como vigas.

O camaleão é um animal singular. Este filho de lagartos sempre maravilhou os

homens pela sua mania de mudar a cor de sua vestimenta em relação ao local onde se

encontra. Essa camuflagem inimitável lhe permite passar despercebido à vontade e frustrar

os ardis de seus adversários inveterados: a víbora cornuda e venenosa, o crocodilo de

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garras cortantes e de presas de aço. Ao contrário do comum dos seres vivos, os piores

inimigos do camaleão se encontram em sua própria família e é por esta razão que ele vive

solitário.

Mas o que caracteriza singularmente o camaleão é sua imunidade natural contra os

vitupérios do relâmpago. Este detalhe que frequentemente escapa aos homens, Engouang

Ondo sabia. E não foi por acaso que ele se metamorfoseou em camaleão. Oveng Ndoumou

Obame, transformado em relâmpago, podia agora vir. Ele veio, trovejando, circulado de uma

sarabanda de faíscas. Tendo percebido o enorme camaleão repulsivo, quis recuar, mas seu

impulso o precipitou brutalmente sobre as costas rugosas de onde ele ricocheteou como

uma bala e se perdeu em juras blasfematórias entre as árvores da floresta próxima que ele

incendiou. Ntoutoume Mfoulou e Angone Zok riram sinceramente: Engouang Ondo sempre

os surpreendia totalmente.

Assim que o relâmpago retornou ao alto, o enorme camaleão se pôs pesadamente

em marcha.

Oveng Ndoumou Obame não compreendia mais. Alguém havia dito que ele não

chegaria nunca, que a gente não dominaria nunca estes homens de Engong? Que armas

misteriosas lhe restavam que ele ainda não havia utilizado? Se ele havia conseguido botar

dois destes guerreiros para fora da tribo das Chamas, três outros continuavam firmemente

plantados no campo de batalha. E quanto mais o combate durava, mais Engouang Ondo, o

chefe destes homens, se revelava ter uma potência que não parava de aumentar. Qualquer

recurso aos fantasmas se provava doravante inútil. Frente à irredutibilidade de seus

adversários, Oveng Ndoumou Obame via com amargura seu poder se estiolar.

Era assim que ele havia concebido a pacificação do mundo, a destruição do metal

devendo conduzir a humanidade em direção à prosperidade e à felicidade? O que ele havia

violado entre as recomendações de seu pai para ser tão impiedosamente traído pelas forças

da natureza e merecer castigo semelhante? Ele deixou cair molemente seus braços ao

longo do corpo, suspirou de desalento, fixou tristemente o céu onde, imóvel e tranquilo, o sol

difundia sem vergonha os sarcasmos de seu mutismo deslumbrante.

Oveng Ndoumou Obame abaixou a cabeça e lançou seu olhar para a terra. Ela se

estendia ao infinito, tão calma, tão despreocupada quanto o sol. Ele se perguntava se os

homens vinham ao mundo para serem ridicularizados e humilhados pela natureza. No

entanto, ele também era filho dessa natureza que o abandonava no momento em que ele

tinha mais necessidade de sua assistência, no momento em que ele esperava dela a

justificativa de sua presença no mundo. Havia entre essa natureza e os homens de Engong

um pacto secreto? Ele começava a duvidar de si mesmo. O que exatamente ele fazia neste

universo? Não seria ele um intruso, impostor e nocivo? Havia ele apenas nascido, como

todos os homens, de um pai e uma mãe? Pertenceria ele realmente à gloriosa tribo das

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Chamas, de quem ele havia sonhado ser o chefe incontestável e incontestado? Ele se

chamava Oveng Ndoumou Obame, mas este nome teria uma significação concreta, um

sentido palpável? Que mundo estranho. E ele fechou os olhos...

Uma imagem de um fulgor impressionante incrustou-se em seu espírito: Eyenga

Nkabe, a mulher mais bonita que ele já viu na vida. Ele sobressaltou-se, abriu os olhos, a

cólera martelando em suas têmporas. Como ele não havia pensado nisso antes? Claro, seu

nome tinha uma significação concreta, um sentido palpável. Nunca dir-se-ia que Oveng

Ndoumou Obame da tribo das Chamas se havia deixado roubar a mulher mais bonita do

mundo por Engouang Ondo, de Engong. E se fosse assim, que vergonha! Que injúria para

toda a tribo das Chamas! Jamais! Jamais!

Um acesso de orgulho o sacudiu nervosamente, o tonificou. A vida é uma coisa

preciosa que é necessário defender até a última energia. Os que se deixam ir ao

desencorajamento e à morte nunca souberam apreciar as alegrias e prazeres deste mundo.

Os que sabem aproveitar são aqueles que têm a cabeça lúcida, o prazer de viver, e bem

que eles têm razão. Ele contemplou a natureza, deliciado e otimista. Ah! Como era bom

viver!

Com um ruído infernal, ele se ejetou da grande nuvem que lhe servia de esconderijo,

abrangeu com o olhar o país desolado, se jogou, com uma barra de ferro maciça em suas

mãos, sobre o camaleão que se arrastava preguiçosamente. Ele visou as omoplatas. O

golpe explodiu, assustador. O camaleão abriu desmesuradamente sua boca e assoprou. O

vampiro branco de Engouang Ondo vibrou, emitiu uma estridulação aguda, capaz de

estourar os tímpanos. Angone Zok e Ntoutoume Mfoulou pressentiram o fim do combate. A

bile do Altivo acabara de esquentar.

De repente, ele se endireitou. Acabou-se o camaleão. Ele plantou o joelho direito na

terra. Com seus braços imensos ele pegou Oveng Ndoumou Obame pela cintura, apertou-o

fortemente contra seu peito, se distendeu como uma mola, passou uma rasteira com o pé

esquerdo. Desequilibrado, Oveng Ndoumou Obame caiu, as costas na poeira, Engouang

Ondo cravado em seu abdome.

Engouang Ondo assoviou. Um anel de cobre se materializou ao redor de seu

indicador esquerdo. Ele bateu no peito e retirou dele um ovo de crocodilo que fez

desaparecer na boca entreaberta de Oveng Ndoumou Obame. Então, ele fez o anel girar

duas vezes sobre ele mesmo. O ovo explodiu na garganta do homem da tribo das Chamas.

Uma tepidez entorpecente esvaiu Oveng Ndoumou Obame, lhe turvou a vista e as

ideias. Ele permaneceu imóvel nesta semi-inconsciência um momento. Engouang Ondo

tinha se levantado.

- Ele está morto? – perguntou Ntoutoume Mfoulou animado.

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- Não – respondeu Engouang Ondo decepcionante – Não é a questão suprimir-lhe a

vida.

- Que pena – lamentou o “sim” de Mfoulou.

Oveng Ndoumou Obame abriu um olho, depois o outro... ele viu os três homens em

pé perto dele, o observando e conversando. Ele se endireitou um pouco, sentou-se. Seu

duplo de ferro havia desaparecido. Em sua cabeça pesada, mil tantãs ressoavam. Câimbras

intoleráveis lhe atingiam o estômago. Ele tentou levantar-se, mas não conseguiu. Engouang

Ondo o segurou pelas axilas e o pôs em pé. Um turbilhão vertiginoso o atingiu e ele teria

desabado se o homem de Engong não tivesse lhe servido de apoio.

Ver Engouang Ondo prodigar desta forma cuidados quase fraternais àquele que,

alguns instantes atrás, era seu inimigo mortal, divertia Ntoutoume Mfoulou e Angone Zok.

O sol cintilava com um brilho insustentável. O país destruído pela guerra se estendia

ao infinito em direção ao norte, silencioso e lúgubre como a morte. Dois calaus, turacos e

pelicanos, vindos de países distantes, atormentavam a serenidade do céu com seu voo

ruidoso. Em direção ao sul, destacava-se a linha sombria das florestas poupadas pelos

últimos acontecimentos. Dispersas, montanhas desnudas estendiam, para o azul, seus

cumes calcinados. Os rios secos cicatrizavam os vales de seus meandros enegrecidos.

Todo o país da tribo das Chamas definhava nas malhas implacáveis da desolação.

Engouang Ondo retirou de sua bolsa de couro um frasco que continha um filtro

mágico que fez Oveng Ndoumou Obame beber. Um frescor benéfico lhe devolveu o prumo.

Ele teve apenas uma ideia: obedecer às ordens do que lhe venceu.

Ntoutoume Mfoulou já dedilhava um gigantesco cassetete. Seus olhos não

desgrudavam de Oveng Ndoumou Obame, que ele prometia a si mesmo malhar com afinco.

Não era preciso ensinar aos homens que a fraqueza, de qualquer natureza que seja, é uma

fonte de aborrecimentos eternos? É preciso lhes repetir sempre que, quando somos fracos,

temos o interesse de ficarmos tranquilos? Por que os homens nunca compreendem a língua

da força? A natureza humana é verdadeiramente incorrigível! A reputação de assassino de

Ntoutoume Mfoulou não deveria bastar por si só a incitar o resto da humanidade a voltar

para sua concha? Mas não! A despeito do bom senso, levantes continuavam acontecendo

em alguns lugares, com o maior desprezo à lei do mais forte e, naturalmente, em detrimento

do mais fraco. Verdadeiros idiotas, os homens! Era preciso domá-los e voltar a domá-los a

toda hora! Ora essa!

Ele se aproximou do vencido, o chicote em riste. Engouang Ondo trovejou.

Ntoutoume Mfoulou retirou-se e guardou, decepcionado, seu cassetete.

- Precisamos demonstrar grande respeito por Oveng Ndoumou Obame – precisou

Engouang Ondo – E agora, a caminho de Engong!

E eles se colocaram em marcha em direção ao sul.

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Eles atravessaram inúmeras aldeias, inúmeros rios. O percurso era longo e

exaustivo, mas Engouang Ondo havia decidido pela marcha a pé. Este modo de locomoção

oferecia-lhe o espetáculo magnífico de aldeões variados. O contato com as populações

novas com costumes diversos relaxava-lhe o espírito e os músculos.

Ntoutoume Mfoulou e Angone Zok teriam amado efetuar esta viagem sem a

presença do Altivo. Assim, eles teriam dado livre curso a seus caprichos, a suas

brincadeiras e a seu humor. Mas Engouang Ondo estava ali, o que lhes proibia de

brigandear. Eles se perguntavam qual prazer ele poderia sentir em poupar estes tipos de

aldeões cujas vidas não valiam mais do que a de um cabrito! Era de se pensar que ele

esquecia frequentemente que era o homem mais poderoso do mundo e que, como tal, sua

passagem deveria deixar traços de sangue! Exasperante! Eles ficavam de cara fechada.

Eles andavam há uma semana quando alcançaram Eya-Meyong, capital da tribo de

Yemekap, a Hospitalidade, da qual Nguéma Otogo é o chefe. Foram recebidos como é de

costume pelos Yemekap, com tantãs, danças e festividades. As galinhas, as ovelhas, as

bananas cozidas a vapor pagaram o preço. E quando, tarde da noite, o frio dissuadiu os

dançarinos de continuarem mais tempo na praça, fez-se o silêncio.

Ntoutoume Mfoulou tirou Angone Zok de lado e lhe disse:

- Aqui está uma bela aldeia. Aqui se encontra de tudo: mulheres bonitas para o

nosso prazer, homens fortes, cujos braços serão úteis aos trabalhos da grande estrada que

une atualmente Beka b’Oyono a Engong. Comecemos por prender todos os homens válidos,

eles formarão a caravana e deixarão a aldeia de madrugada. Em seguida, divirtamo-nos

com as mulheres. Quanto aos inválidos, nós simplesmente lhes cortaremos a cabeça e lhes

jogaremos como alimento aos leopardos da floresta. Se Nguéma Otogo piscar, eu lhe

mostrarei o caminho que seu avô seguiu para ir ao país dos fantasmas.

- Bem falado – exultou Angone Zok irônico – E o que nosso irmão Engouang Ondo

pensará deste estratagema?

Ntoutoume Mfoulou saltou na noite. Sua cabeça roçou as nuvens. Ele suspirou de

desencorajamento. Ah sim, aquele lá, ele o havia esquecido completamente! Ele lhe havia

esquecido porque ele tinha se retirado com o prisioneiro bem cedo, à noite, para a casa

reservada aos estrangeiros. Sabendo que Engouang Ondo não permitiria jamais ações

parelhas, Ntoutoume Mfoulou abandonou colericamente seu projeto. Angone Zok,

compassivo, pegou-lhe pelo braço e o levou para a casa que lhe era destinada. Só lhe

restava dormir.

Na manhã do dia seguinte, assim que o canto das perdizes anunciou a chegada do

dia e que os galos asseguraram, em um concerto melodioso, a substituição das perdizes, a

pequena tropa se recolocou em marcha.

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Aproximavam-se do grande rio Mveng-Mtué, das tribos belicosas que povoam suas

margens: a tribo das Tempestades, a tribo do Raio, a tribo dos Magnans e a tribo das

Assembleias.

Ntoutoume Mfoulou tremia de prazer.

Estas tribos que se alimentavam de guerra como os macacos negros de nariz branco

se alimentavam de frutas, iriam certamente reanimar seu corpo anestesiado por uma inação

prolongada. Ele lançava breves olhares cúmplices a Angone Zok que se divertia em

assegurar-lhe sua aprovação por pequenos gestos rápidos. Falavam pouco. Avançavam

rapidamente.

No horizonte, no fim de uma longa linha, uma aldeia de casas cinzas se mostrava.

Crianças que brincavam na rota se eclipsaram na floresta cabriolando. Na aldeia, o tantã de

guerra, o tantã de lança, o tantã de sangue, zumbiu. Em um instante a tribo das

Tempestades ficou pronta. Os três outros a imitaram. Então, o silêncio.

Soou então um comando. Com uma prontidão e uma exatidão inigualáveis, os fuzis

cuspiram fogo e morte.

Engouang Ondo e seus companheiros apressaram o passo. Chegando na aldeia,

eles logo foram envelopados por uma nuvem de tacapes, de lanças e de balas assoviantes.

- Pare com essa carnificina – ordenou Engouang Ondo a Ntoutoume Mfoulou.

Este aí, apenas esperava esta ordem. Ele urrou terrivelmente, cobrindo o trovão dos

fuzis, o ruído dos tacapes e das lanças, os urros enfurecidos dos guerreiros. Vociferações,

estrondo, tudo se calou. Ele desembainhou um enorme sabre rutilante, piscou para Angone

Zok, que já tinha o seu em punho. Mas Engouang Ondo lhe sussurrou na orelha:

- Calma! Aqui nós somos os estrangeiros de meu sogro, Nkabe Mbourou, o chefe da

tribo das Tempestades. Devemos nos comportar como homens dignos de sua estima e

confiança. Embainhem!

Isto foi feito. Endereçando-se então a esta nuvem de guerreiros surpresos,

Engouang Ondo proclamou:

- De seus dois acampamentos, não somos nem os inimigos, nem os partidários.

Viemos de longe, da tribo das Chamas. Não queremos o mal de ninguém e os

desaconselhamos a lutarem entre si. Somos de Engong, do País dos Imortais, e nunca

toleramos as efusões de sangue. Voltem para sua casa, é de seu interesse. Tenho dito.

Os guerreiros hesitaram um instante, mas a vista de Ntoutoume Mfoulou e Angone

Zok, cujos rostos carrancudos não deixavam augurar nada de bom, os incitou a ter mais

prudência. Rompendo bruscamente suas fileiras de batalha, eles se dispersaram tão rápido

quanto eles haviam se posto em ordem.

Nkabe-Mbourou, que havia reconhecido Oveng Ndoumou Obame, adivinhou ser

Engouang Ondo aquele que acabara de falar. Ele avançou para os estrangeiros mancando.

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- Eu lhes saúdo – ele lhes disse – sou o pai de Eyenga Nkabe. Entrem nesta casa,

vocês são benvindos.

E, se endereçando a um de seus filhos:

- Sima Nkabe faça que se prepare comida a nossos estrangeiros. Faz tempo, faz

muito tempo que não temos honrado hóspedes parelhos com a carne requintada de nossas

ovelhas e nossos cabritos. Que as mulheres cozinhem e se superem na arte culinária!

É inútil dizer que todas as cozinhas da aldeia logo se puseram em transe. Os

comentários iam de vento em popa e as notícias circulavam de boca a boca com uma

celeridade incomparável. Em nossas aldeias tudo se sabe, exceto a fonte das informações.

Falava-se nos homens de Engong e no homem de Okü. Dizia-se que Ntoutoume Mfoulou

tinha as nádegas tão volumosas quanto uma multidão de sogras escalando uma colina, com

uma grande cesta de alimentos nas costas! Que Angone Zok tinha as pernas arqueadas

como o fundo de uma canoa! Que em matéria de beleza, Engouang Ondo e Oveng

Ndoumou Obame podiam se confundir como duas gotas de água!

Entre estas mulheres, contudo, nenhuma poderia afirmar ter contemplado bem estes

homens para fazer um retrato tão exato.

Em uma casa, uma velha megera passava um sermão em jovens mulheres que se

divertiam em fofocar, descobrindo ostensivamente suas bocas agressivas, correndo o risco

de esquecer as panelas que ferviam sobre o fogo de madeira. A saúde e a juventude dessas

moças bonitas lhe lembravam do tempo em que ela tinha um corpo magnético, que

desarmava os homens mais difíceis. Só de pensar nisso, um ciúme surdo a agitava e ela

descarregava sobre essas pobres crianças que sofriam sem se queixar. As leis sagradas da

tradição não exigiam a obediência absoluta destas jovens pessoas àquelas que escutaram

por primeiro cacarejar a perdiz?

Nossas cozinheiras, de resto, zombavam loucamente dos protestos da velha, elas

tinham esse costume. Elas trabalhavam, fingindo ignorá-la, discutindo sobre a qualidade de

seus pratos, apostando nos gostos de Engouang Ondo e de Oveng Ndoumou Obame. Elas

riam, exibindo dentes brancos como a brancura brilhante da lua. Elas estavam felizes e

tinham razão para estar. Não lhes forneciam os homens tudo o que elas precisavam: tecidos

de ráfia, de casca e de peles de animais, braceletes de cobre e de marfim, perfumes tirados

de plantas mágicas da floresta, carne de caça, peixes dos rios? Assim que as guerras

explodiam, eles não as escondiam nas grutas rochosas, ao abrigo das flechas e das balas?

Elas eram preciosas para os homens. O que seria de suas vidas sem elas? E elas o sabiam.

Por mais que o homem se impusesse pela força, ele continuava sempre um brinquedo da

mulher. É tão claro que, quando a noite envolve a natureza com sua coberta de discrição e o

despoja de seu orgulho do dia, ele fica mais dócil que um cordeiro. É preciso vê-lo neste

momento! Ele lhe implora, quer parecer mais generoso do que é capaz, lhe suplica, lhe

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satura os ouvidos com mil absurdos cativantes. Um mal terrível, que apenas você pode

remediar, parece consumi-lo, o consome. E ele cacarejará assim até que a sua caridade

apazigue este fogo que o devora. Crianças grandes, os homens! Ah! Se as casas pudessem

contar o que elas sabem! E elas riam mais ainda...

Depois da refeição, Nkabe Ndoumou reuniu os anciões da aldeia no corpo da

guarda. Engouang Ondo e seus companheiros participaram da assembleia. Nkabe Nbourou

levantou-se, agitou seu cetro caça-moscas e disse:

- Meus irmãos, todos vocês sabem que eu enviei minha filha Eyenga Nkabe à

Engong para desposar Engouang Ondo a fim que ele me vingue de Oveng Ndoumou

Obame. Vocês conhecem este último; aqui está Engouang Ondo e seus dois irmãos,

Ntoutoume Mfoulou e Angone Zok. Eles guerrearam com meu inimigo e o fizeram

prisioneiro. Eles retornam agora à Engong. Estou contente em anunciar-lhes que estou

vingado e que tenho por genro o homem mais poderoso da terra. Minha perna está quase

curada graças ao unguento que meu amigo Beyeme me aplicou.

Todos os homens aprovaram com um murmúrio. Beyeme levantou-se então e disse:

- A notícia é boa e nós nos alegramos. Mas a tarefa de nosso genro Engouang Ondo

me parece inacabada. Oveng Ndoumou Obame ainda está vivo, bem vivo. Ele é um homem

poderoso. Temos verdadeiramente a certeza que ele está definitivamente vencido, que ele

não poderá mais nos prejudicar? Eu teria preferido me servir de seu cérebro para preparar o

amuleto à prova de balas.

- Que lhe matem – gritou alguém.

- Que lhe matem! Que lhe matem! – repetiam os outros.

Engouang Ondo refletiu por um momento e depois declarou:

- Sogros, vocês têm razão. Oveng Ndoumou Obame deve morrer. Mas não posso

decidir sua sorte aqui. Meu tio Akoma Mba é o único habilitado a infligir-lhe o castigo final

como querem os espíritos de Engong, o que, de resto, corresponde perfeitamente a seu

desejo. E eu termino oferecendo-lhes um talismã antibalas mais eficaz do que o idealizado

pelo sogro Beyeme.

Dizendo isto, abriu sua bolsa de couro e tirou dela um frasco cheio de uma pasta

vermelha e disse:

- Quem provou desta pasta está imunizado contra tudo o que machuca, perfura,

penetra ou rasga.

Nkabe Mbourou agarrou o fraco, verteu uma gota sobre o indicador e o aplicou sobre

a língua de seu filho Sima Mbourou. Depois ele empunhou seu fuzil, mirou Sima a apenas

dois dedos do umbigo, na frente dos olhos dilatados e da boca aberta dos homens

presentes. O golpe partiu, os ferros ricochetearam sobre ele enquanto que ele gargalhava

triunfalmente. Um hurra de vitória cobriu tudo. Aclamaram, vangloriavam Engouang Ondo.

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Seu talismã valia todos os dotes do mundo. Injuriavam todos os inimigos da tribo das

Tempestades. Belas guerras em perspectiva! E dançaram em honra aos Imortais.

Eu semeio o vento!

Sim!

Eu guio o elefante!

Sim!

O que escutam seus ouvidos?

Eles escutam o mvett!

Como quer o costume, Engouang Ondo e seus companheiros passaram dois dias na

aldeia de Nkabe Mbourou. Desde a madrugada do segundo dia, Ntoutoume Mfoulou e

Angone Zok se puseram a caminho sem esperar os outros. “Eles nos alcançaram mais

longe”, disse o “sim” de Mfoulou. Eles atravessaram o grande rio Mveng Metué, se

distanciaram sem incidentes das tribos belicosas, se engolfaram no grande trecho de Bivua-

bi-Ndouane, a Floresta-dos-fogos-extintos, assim chamada porque ela é tão vasta que se

encontram em alguns lugares, sobre a estrada de chão, restos de fogos acesos de noite por

viajantes extenuados. Dizem também que por causa de salteadores nunca se tem certeza

de sair vivo desta floresta.

É este precisamente o tipo de lugar que Ntoutoume Mfoulou e Angone Zok amam

assombrar. Um momento livres da tirania de Engouang Ondo, eles respiravam mais

livremente, dando livre curso a suas brincadeiras. Às vezes eles arrancavam árvores que

barravam o caminho, outras eles galopavam como cavalos ou corriam de quatro, como

crocodilos.

O dia já havia nascido. Os raios do sol, filtrados pelos domos das folhagens

espessas, mitigavam com uma luz suave o chão forrado com folhas mortas. As cigarras

estrilavam. As centopeias se empanturravam de cogumelos, prontas a se enrolar sobre si

mesmas ao menor perigo. Enormes lagartos vermelhos fugiam em um fremir de grama

pisoteada.

Ao longo do caminho, nossos heróis desembocaram em uma clareira. Do lado

oposto, dois homens se extirparam da floresta, empurrando na frente deles uma jovem

mulher com as mãos atadas atrás das costas e carregando equilibrada, sobre sua cabeça,

uma cabeça humana sanguinolenta. Ela chorava enquanto seus carcereiros caiam de tanto

rir, com sabres gigantescos balançando no quadril. Eles estavam ornados de plumas de

pássaros e usavam roupas de panteras.

Ntoutoume Mfoulou rugiu como um leão e pulou, seguido de Angone Zok que latia

ferozmente. Ágeis como macacos, os dois ladrões piruetaram, pinotearam para a floresta,

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sem querer saber mais. Mas eles subestimaram a rapidez dos Imortais, pois, em um

instante, eles estavam sobre eles, os pegaram brutalmente, os levaram sem gentileza para

perto da pobre mulher que continuava a soluçar.

- Falem – urrou Ntoutoume Mfoulou, fora de si – o que está acontecendo?

Foi a jovem mulher que respondeu.

- Sou Okomo Nkabe, filha de Nkabe Mbourou da tribo das Tempestades. Meu irmão

Atomo Nkabe e eu vínhamos de uma longa viagem que nos conduziu à casa de nossos tios

maternos. Chegando nesta floresta, estes dois homens nos pararam e exigiram que meu

irmão me usasse como sua mulher. À sua recusa, eles lhe cortaram a cabeça, que aqui

está.

Ntoutoume Mfoulou se engasgou de raiva.

- O que... o que vocês têm a responder? – gaguejou Angone Zok, os olhos

vermelhos.

De repente, um dos homens-leopardos desembainhou seu sabre. Ele iria matar a

jovem quando Ntoutoume Mfoulou esmagou-lhe o braço na altura do ombro. O sabre

escorregou para o chão, o braço pendurado lamentavelmente, as carnes em pedaços, os

ossos quebrados. Angone Zok não precisou de outras explicações: a reação do homem-

leopardo tirava qualquer dúvida sobre a veracidade das palavras de Okomo Nkabe.

Então Angone Zok bateu no peito. Um canivete com o cabo terminado com um sino

de cobre apareceu em seus lábios. Pegando-o, ele o afundou na garganta do prisioneiro que

ele segurava e imprimiu um soco violento sobre o sino. Com o esôfago cortado, o salteador

desabou.

Ntoutoume Mfoulou sacudiu o homem com o braço inerte e disse:

- Grande distribuidor da morte, você vai seguir seu confrade que acabou de ser

curado dessa doença incurável. Você vê esses músculos que ainda convulsionam? Ele

desfruta agora das delícias da agonia. Vê, ele acabou de atravessar a barreira! Do outro

lado, eu escuto os fantasmas que se entusiasmam o acolhendo. É uma viagem triunfal! Eu

presumo que você está ansioso para juntar-se a ele, não é?

- Oh não! Deixe-me viver, eu lhe suplico. Eu não recomeçarei mais – ele trepidou.

- Bela promessa – exclamou o Intrépido. – Se você soubesse que Okomo Nkabe é

nossa cunhada, que Akomo Nkabe foi nosso cunhado, que Eyenga Nkabe provocou uma

guerra assassina, que o nome de Nkabe Mbourou porta infelicidade, você nunca se

entregaria a esse joguinho e você deixaria de acreditar na felicidade de viver. Você meteu

seus dedos no fogo, bem involuntariamente, eu concordo, mas isso se chama má sorte e

contra a má sorte não temos nenhum remédio. Contudo, ao invés de ir precipitadamente

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para as aldeias obscuras de Awou108, você morrerá dignamente, como é o costume entre os

homens bem nascidos!

O filho de Mfoulou fez aparecer em sua mão direita uma faca de lâmina cortante,

operou as duas pernas do homem leopardo, retirou-lhe as rótulas. O infortunado desabou

sobre o chão duro.

- Espero que você saia dessa – disse-lhe o Impetuoso, irônico – Se contudo, os

leopardos, os verdadeiros, não vierem lhe fazer uma visita...

Enojada por tantas crueldades em apenas um dia, Okomo Nkabe se pôs a soluçar, o

rosto entre as mãos. Entre todos os seres criados pela natureza, o homem é sem dúvidas o

mais sanguinário. Erroneamente a gente tem raiva de certos animais, tais como o leão, a

pantera, a serpente, a formiga vermelha, o bicho-de-pé que, dizem, tornam a vida

impossível. Mas estudaram o homem bem de perto? Ele se destaca na arte de ter ciúmes,

de odiar e de matar seu próximo. Seu saber diabólico está a serviço de tudo o que pode

aniquilar, exterminar. Sua sede de destruição o leva às piores invenções das quais a

natureza, desde muito tempo, se reservou o segredo. Ele só se satisfaz quando dita sua lei

e reina sobre seus semelhantes...

Esse prazer doentio que ele tira dos sofrimentos e das infelicidades dos outros é sua

religião. É em vão que se esforçam em lhe inculcar os princípios morais e humanitários

destinados a poli-lo, a lhe deixar bom e perfeito. Ele vive no pavor do mal, obsecado pelo

egoísmo, pelo instinto de conservação que o predispõe a atacar para evitar de ser atacado.

Este estado latente de insegurança gera a desculpa que ele encontra para justificar seus

crimes aos quais ele atribui belos epítetos: legítima defesa, punição pela lei, vingança

perseguindo o crime, olho por olho, dente por dente... tudo isso não passa de enganação: o

homem é o pior inimigo do homem.

E Okomo Nkabe lacrimejava abundantemente.

Engouang Ondo e Oveng Ndoumou Obame apareciam neste momento. Eles

andavam lado a lado, conversando como velhos amigos, para o grande desprazer do

Impetuoso e do Gago. Eles não ficaram nada surpresos com a cena que se oferecia a sua

vista. Todo mundo sabe que Ntoutoume Mfoulou e Angone Zok mancham sempre sua

passagem de sangue. Ainda bem que eles não tenham matado esta pobre mulher aos

soluços! Engouang Ondo se informou. A jovem Okomo lhe contou, ela mesma, o que tinha

se passado.

O chefe aprovou as represálias, cumprimentou o alto senso de honra de seus

irmãos, seu espírito cavalheiro e propôs a Okomo de guiá-la para perto de sua irmã, Eyenga

Nkabe, em Engong, de onde ela voltaria mais tarde sob boa escolta. Ela aquiesceu com

108 Awou: a morte.

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prontidão, tranquilizada pela proteção destes homens e esperando rever logo sua irmã mais

velha. A marcha retomou, enquanto o homem-leopardo, mutilado atrozmente, agonizava

lavrando o chão com seus dentes. Já, atraída pelo odor do sangue, uma pantera rosnava

bem perto.

Alguns dias depois, eles haviam ultrapassado a grande aldeia Aboum-Zok casa de

Essone Ava, a grande aldeia Afoup, casa de Kofane Obame Ndong e chegado em Meka-

Mezok, casa de Ntoutoume Allogo Minko. Esta última aldeia havia se reconstruído e

fervilhava de pessoas novamente.

Ntoutoume Allogo Minko implorou gentilmente que Engouang Ondo e seus homens

não passassem mais a noite em sua aldeia. O outro lhe fez compreender que a guerra

estava terminada, Oveng Ndoumou Obame vencido, todo temor era tolo. O filho de Allogo

Minko olhou de soslaio para Oveng Ndoumou Obame sem convicção. Mas ele poderia

resistir ao charme desarmador da fala de Engouang Ondo?

A noite passou sem incidente e na manhã seguinte eles se colocaram a caminho.

Assim que o sol, depois de ter repousado um instante no meio do céu, decidiu retomar o

caminho de sua residência, eles chegaram em Mveng Ayong, a aldeia de Ntoutoume

Mfoulou. Logo o tantã anunciou ao povo de Engong a chegada de Engouang Ondo, de

Ntoutoume Mfoulou, Angone Zok e do prisioneiro Oveng Ndoumou Obame da tribo das

Chamas.

*

* *

Todos estavam presentes em Wor-Zok: desde anciões que não sabiam mais o

número de estações secas e de estações chuvosas perdidas na noite dos tempos desde

sua vinda ao mundo, até os jovens fogosos que ainda aprendiam sua profissão de

guerreiros. Eles estavam ali e guardavam todos um silêncio religioso.

Sabiam naturalmente que Engouang Ondo havia vencido Oveng Ndoumou Obame.

Sabiam também que este aí não estava morto e que ele iria se apresentar novamente ao

tribunal popular de Engong. Na primeira vez, ele tinha escapado da sentença deste tribunal.

Agora, todas as precauções foram tomadas para impedir-lhe toda tentativa de evasão.

De repente, os guerreiros se enrijeceram: Engouang Ondo e seus companheiros

chegavam ao lugar.

Akoma Mba se surpreendia de ver avançar Oveng Ndoumou Obame com as mãos

soltas e perfeitamente à vontade.

Eles pararam no meio da multidão, saudaram os anciões e os guerreiros. Levaram

Okomo para junto de sua irmã Eyenga Nkabe em uma casa.

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Engouang Ondo, Angone Zok e Ntoutoume Mfoulou sentaram-se em assentos

giratórios reservados aos guerreiros vencedores. Obiang Medza e Zé Medang mantinham-

se à distância atrás deles. Oveng Ndoumou Obame continuava em pé, no meio do círculo.

Akoma Mba presidia.

- Meu irmão Medang Boro tem a palavra – anunciou.

Medang levantou-se, agitou seu cetro caça-moscas. Seu calau inseparável saiu de

sua orelha direita, girou sobre a multidão gritando, então reintegrou seu ninho misterioso.

- Enfim você está aqui, Oveng Ndoumou Obame! Você acreditava sem dúvidas ser

invencível. Espero que você tenha podido medir com justo valor seu pretenso poder. Você

deve ter percebido que ele repousava apenas sobre uma montanha de areia, sobre ilusões

totalmente criadas por seu avô e seus fantasmas. Concluo consentindo em lhe oferecer tudo

o que quiser comer antes de ir somar-se ao número de mortos de sua tribo!

- A palavra é de meu irmão Mfoulou. Engouang – disse Akoma.

Mfoulou reajustou seu imenso saião de ráfia de múltiplas dobras no quadril, apoiou-

se sobre um longo bastão ornado de búzios e de talismãs, limpou a garganta e disse:

- Eu sabia que esse descerebradozinho seria pego e acabaria mal. Sua arrogância o

testemunha. Saiba, aventureirozinho, que Ntoutoume Mfoulou, meu filho, não brinca nunca.

Ntoutoume Mfoulou é o fogo, é a tempestade, é a borrasca, é o “sim” de Mfoulou, é “os

Martelos”! Você deve ter uma sorte desconhecida para ainda estar vivo. Eu tenho jovens

guerreiros em preparação. A refeição de iniciação deles será regada a seu cérebro para lhes

servir de tônico. Tenho dito.

- Meu irmão Medza Metouga tem a palavra – continuava Akoma.

O interessado retirou o longo cachimbo dos lábios, cuspiu na terra, fez que o colar de

couro que circula seu pescoço desse uma volta completa, alisou a barba e declarou:

- Eu teria usado de minha indulgência habitual para com esse jovem homem se ele

não tivesse se permitido intimidar meu filho Obiang Medza. Desde então, todo perdão se

evapora e eu me junto nessa questão a meus dois irmãos Medang e Mfoulou. Os nativos de

Okü devem venerar a descendência de Evine Ekang a fim de que eles vivam em paz. Quem

quer que se desvie desta diretriz se desvia também da vida. Oveng Ndoumou Obame deve

ser decapitado.

E ele voltou a sentar-se. Akoma Mba levantou-se, percorreu com os olhos a multidão

impassível, fixou um instante seu sobrinho Engouang Ondo, percebeu-lhe incomodado,

soprou seu caça-moscas e disse:

- Os anciões falaram. Sua decisão foi tomada. No entanto a tradição autoriza o

chefe-guerreiro de Engong, Engouang Ondo, o vencedor de Oveng Ndoumou Obame, a

exprimir sua opinião e mesmo a decidir a sorte do vencido. Eu lhe dou a palavra. – Ele

sentou-se novamente.

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Engouang Ondo saltou de seu assento e se plantou na frente dos anciões. Seu

espírito trabalhava. Matar Oveng Ndoumou Obame lhe era um caso de consciência. A tribo

das Chamas não contava mais do que duzentos ou trezentos habitantes enclausurados na

montanha rochosa. Para que ela se refizesse – e ele queria que ela se refizesse – era

preciso libertar Oveng Ndoumou Obame. Ele não podia tolerar o aniquilamento total de uma

tribo que tinha conseguido emergir dentre tantas outras, como a tribo das Chamas. Além

disso, Oveng Ndoumou Obame tinha lutado com honra, respeitando seus adversários,

defendendo honestamente sua causa. Ele apenas lhe reprovava querer suprimir o metal da

superfície da terra. O metal era a base do progresso do homem e podia-se esperar, sem ele,

estar abaixo do animal. Mas se esse fato era condenável, a concepção de Oveng Ndoumou

Obame tinha da paz era defensável. Este homem merecia consideração e estima.

Engouang Ondo desenvolveu longamente sua argumentação e concluiu:

- Todo povo, se for poderoso, deve ter boas relações com os outros povos e contar

amigos sérios entre os homens que os dirigem. Quero que retirem nosso epíteto de

sanguinário tão generalizado através do mundo e que serve desfavoravelmente a nossas

boas intenções. Engong, com todo seu poder, não passará de ignomínia e decadência se

não cultivar o acordo entre os povos e o amor do homem por seu semelhante.

Urros de entusiasmo soaram das fileiras dos jovens enquanto que os anciões se

contentavam em balançar a cabeça de surpresa. Certamente, era a primeira vez que uma

linguagem como essa acontecia em Engong, para um homem de Engong! Engouag Ondo

decididamente não hesitava a tomar suas responsabilidades! É verdade que Akoma Mba,

ele mesmo, tinha deixado a vida salva a Ba-Meniane, da tribo das Montanhas, que habita o

grande pico “Nkol-Bizane”, depois de um combate de vinte e uma luas; que Medang Boro se

opôs à decapitação de Mbele Mengong, da tribo dos Pecados, e Olong Ndong, da tribo da

Barba, depois de uma batalha de vários anos! Estes homens haviam sido igualmente

vencidos, mas sua dignidade se impunha às inclinações sanguinárias dos Imortais. Tinham

lhe deixado as vidas salvas sem, no entanto, cercar este ato de um discurso de tal

eloquência sobre os princípios humanitários! Era preciso convir que Engouang Ondo

acabara de introduzir ideias novas na sociedade!

Cheio de energia, o filho de Ondo Mba continuou:

- Infelizmente, não me é possível permitir o desejo de meu amigo Oveng Ndoumou

Obame de se casar com Eyenga Nkabe. Devo respeitar a vontade de meu sogro Nkabe

Mbourou. Mas não há nada a lamentar deste lado, pois eu proponho ao homem da tribo das

Chamas a mão de minha irmã Mengué M’Ondo que, em beleza, só corresponde a Eyenga

Nkabe!

Um trovão de gritos de alegria e de tiros de salves aprovou as palavras de Engouang

Ondo.

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Akoma Mba disse:

- Sua vez, jovem homem da tribo das Chamas, de falar.

Oveng Ndoumou Obame pigarreou, passou seu olhar perfurante no grupo de

anciões, olhou de soslaio para Engouang Ondo, que o encorajou com um aceno rápido de

cabeça, e disse com seu tom vibrante:

- Homens de Engong, não julguem minha pessoa, julguem minhas intenções. O que

me fez comparecer hoje neste tribunal é ter querido cobrir de paz toda a humanidade. É ter

compreendido desde cedo que a felicidade do homem dependia unicamente da paz e que

as guerras arruinavam o mundo. Concebi então um projeto: eliminar a guerra das

preocupações do homem. Mas é preciso remontar o curso da história.

No que meu pai Ndoumou Obame me falava sobre a guerra a cada tarde, no corpo

da guarda, o uso abusivo do metal muitas vezes vinha à tona. E, como vocês podem

constatar, as tribos que empregam o metal apenas para satisfazer suas mínimas

necessidades naturais são sempre intimidadas por aquelas que o utilizam para fins de

dominação. Livrem todos os homens do metal e vocês verão que suas querelas nunca

ultrapassarão o nível de simples atritos familiares. Então, meu sonho tornou-se mais

premente: purificar a humanidade, suprimindo todo elemento à base de metal da superfície

da terra. Eu me sentia poderoso e capaz de realizar este sonho. E então, eu agi... vocês

conhecem o resto...

A sorte quis que um homem poderoso, Engouang Ondo, que tem toda minha

admiração, entravasse minha obra por causa de uma história de uma mulher saída da tribo

das Tempestades. Mas este não é o ponto grave da situação. Trata-se, sobretudo, de minha

tribo das Chamas. Vocês aceitariam que ela desaparecesse para sempre da superfície do

globo? Estou pronto a aceitar tudo, menos a morte definitiva de minha tribo e é com grande

prazer que eu me casarei com a irmã de meu inimigo de ontem, amigo e defensor de hoje,

se o tribunal o decidir. Tenho dito.

Os fuzis cuspiram aplausos. Ele se calou. Indicaram-lhe um assento ao lado de

Engouang Ondo, em sinal de respeito.

- Que o conselho se retire – disse Akoma Mba.

Todos os anciões se encontraram, alguns instantes mais tarde, atrás das casas, na

gruta misteriosa.

- O problema é simples – disse Akoma Mba – Engouang Ondo assumiu suas

responsabilidades contra as quais não podemos ir. Além do mais, Oveng Ndoumou Obame

merece esta homenagem. Objeção?

- Nenhuma – responderam-lhe os outros.

- Eu torno executável a proposição de Engouang Ondo.

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Assim foi feito. Os fuzis trovejaram em Engong o restante do dia, a noite toda e todo

o dia seguinte, enquanto que os dançarinos se soltavam, celebrando assim o duplo

casamento de Engouang Ondo com Eyenga Nkabe e de Oveng Ndoumou Obame com

Mengué M’Ondo.

Eyenga Nkabe tinha tomado posse de seu lar conjugal em Nda-Bingouba, a morada

de Engouang Ondo que oscila no vazio sobre Engong. As outras mulheres a iniciavam

agora em suas novas funções. Sua aventura tinha terminado e ela aceitava sua sorte. Ela

tinha a satisfação de ter cumprido seu dever filial e de se saber esposa de um chefe

venerado. Muito rápido ela sentiu-se em casa e enviou suas lembranças secretas ao fundo

da memória.

Sua irmã, Okomo Nkabe, esperava agora Zé Medang, que a acompanharia à tribo

das Tempestades. Com a ideia de sair deste belo país de Engong, ela se entristecia. Mas

sua irmã mais velha a consolava e acrescentava: “se Zé Medang aceitou esta missão, é

porque seu charme não lhe deixa indiferente”. Um brilho de esperança nascia no seu olhar

da jovem mulher que floria, então, com um sorriso iluminado por dentes deslumbrantes.

Eu semeio o vento!

Sim!

Eu guio o elefante!

Sim!

Hoje é domingo!

Sim!

Que os ouvidos ouçam!

Que eles ouçam o mvett!

O mvett, alimento do coração, dos ouvidos e do espírito,

Por domingos ensolarados

Através de florestas e de rios,

Por aldeias abundantes e atentas,

Faz palpitar os peitos, dissipa o medo,

Ensina a coragem e a sabedoria.

E corre nas veias das correntes musicais,

E ressuscita a tradição que se extravia na noite do esquecimento.

Aqui está a tradição, que ressurge da sombra;

Ela faz vibrar novamente os sentidos do homem,

E os homens cantam:

Eles aclamam o mvett, a tradição e o poeta!

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Cantemos em cadência!

Que os ouvidos escutem!

Que escutem o mvett!

*

* *

O sol tinha acabado de se levantar. Agora ele dissolvia os últimos farrapos de

nevoeiro pendurados nas cristas das colinas. Engong estava em pé para assistir à partida

de Oveng Ndoumou Obame e de sua esposa Mengué M’Ondo.

Na praça de Wor-Zok, os anciões já estavam reunidos. Engouang Ondo havia posto

seu chapéu de pantera que apenas usava em grandes ocasiões. Todo mundo olhava Oveng

Ndoumou Obame que estava no meio da praça, de mãos dadas com Mengué M’Ondo na

sua.

De repente, ele bateu no peito. Uma andorinha saiu de sua narina esquerda,

sobrevoou todas as aldeias de Engong em sinal de adeus. Depois, uma luz ofuscante

atravessou a natureza, enquanto um estrondo ensurdecedor de um trovão explodia. Oveng

Ndoumou Obame e Mengué M’Ondo desapareceram entre as nuvens.

Ntoutoume Mfoulou assoviou:

Vi! Violi! Violi! Vio! Vi! Vi!

Saturado de força e poder,

Gostaria de encontrar um igual!

Vi! Violi! Violi! Vio! Vi! Vi!

Que a morte me mate

Se ela for capaz!

Vi! Violi! Violi! Vio! Vi! Vi!

Philippe Ndong Ndoutoume, chamado de Tsira

Fim do Livro I

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