ANISTIA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL: PERSPECTIVAS … · 2017. 3. 3. · Golpe Militar de...

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ UNIVALI VICE-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA PPCJ CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIA JURÍDICA CMCJ ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO ANISTIA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL: PERSPECTIVAS ACERCA DA PUNIÇÃO CRIMINAL ALEXANDRE ESTEFANI Itajaí SC 2016

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  • UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI VICE-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – PPCJ

    CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIA JURÍDICA – CMCJ

    ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO

    ANISTIA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL:

    PERSPECTIVAS ACERCA DA PUNIÇÃO CRIMINAL

    ALEXANDRE ESTEFANI

    Itajaí – SC 2016

  • UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI VICE-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – PPCJ

    CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIA JURÍDICA – CMCJ

    ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO

    ANISTIA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL:

    PERSPECTIVAS ACERCA DA PUNIÇÃO CRIMINAL

    ALEXANDRE ESTEFANI

    Dissertação submetida ao Curso de Mestrado Acadêmico em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciência Jurídica.

    Orientador: Professor Doutor Paulo de Tarso Brandão

    Itajaí – SC 2016

  • AGRADECIMENTOS

    Este trabalho só foi possível graças a colaboração inestimável de pessoas de

    boa vontade e coração.

    Agradeço ao meu orientador Professor Doutor Paulo de Tarso Brandão pela

    inestimável contribuição, paciência e pela generosidade dos momentos

    compartilhados. O aprendizado desses momentos jamais será esquecido e há de ter

    influência para muito além do presente trabalho, principalmente pelas inquietações

    lançadas que, certamente, hão de permanecer por muito tempo.

    Agradeço a todos os professores do programa de Mestrado em Ciência Jurídica da

    UNIVALI pelas aulas ministradas e pelas experiências compartilhadas. Seus

    ensinamentos engrandeceram-me como pessoa e operador do direito.

    Agradeço aos servidores da Univali, que de igual modo, têm inestimável participação

    nesta atividade pela sua cortesia no trato e disponibilidade no auxílio sempre

    necessário.

    Agradeço a colegas que prestaram auxílio no decorrer do curso, em especial aos

    colegas João Luiz de Carvalho Bottega, que junto iniciou esta caminhada, a Priscila

    Castro, Ana Luiza Colzani e Jorge pelo generoso auxílio nos caminhos do mestrado.

    Por fim, agradeço à banca examinadora pela atenção e contribuição.

  • DEDICATÓRIA

    À Clara, para quem todos os dias são dedicados; em meio ao turbilhão,

    de você veio a luz que tudo possibilita.

    À Giovana, pela paciência, apoio, amor e afeto que permitiram

    a conclusão desta dissertação.

  • TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

    Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte

    ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do

    Itajaí, a Coordenação do Curso de Mestrado em Ciência Jurídica, a Banca

    Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade.

    Itajaí, agosto de 2016.

    Alexandre Estefani

    Mestrando

  • RESUMO

    Nesta dissertação, inserida na linha de pesquisa Direito e Jurisdição, com área de

    concentração em Fundamentos do Direito Positivo, faz-se uma análise da atuação

    da justiça em tempos de transição de regimes governamentais. A pesquisa é

    baseada na valoração dos direitos humanos em tais períodos e sua evolução

    histórica, tomando por bases leis de anistia. Mais especificamente, parte-se da

    análise da Lei da Anistia 6.683/79, advinda do regime militar brasileiro, para se

    analisar o funcionamento de toda a sistemática internacional de proteção dos

    direitos humanos, e como os tribunais criados por essa sistemática julgam a matéria.

    Este estudo explora a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

    nos casos afetos a anistias envolvendo ditaduras militares na América Latina. Trata,

    também, de verificar como países sul-americanos lidaram com os julgamentos de

    seus militares e com a incorporação das decisões da Corte Interamericana na

    jurisprudência de seus Tribunais internos. Por conseguinte, a pesquisa analisa a

    decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 153 em comparação com a decisão

    da Corte Interamericana no caso Gomes Lund vs. Brasil. Nessa linha, identificada a

    dissonância nas decisões, busca-se perquirir como o Judiciário local deve tratar a

    matéria, se seguindo a decisão vinculante do Supremo Tribunal Federal ou via

    controle de convencionalidade, com base na decisão da Corte Interamericana, de

    cujo sistema o Brasil é parte. A partir daí, analisam-se as relações entre o direito

    interno e o direito internacional dos direitos humanos e os efeitos das decisões da

    Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil. Por fim, explora-se se há

    justificativas para a aplicação do direito penal, tanto em relação às questões

    jurídicas, como em relação às funções da pena e em ensaios criminológicos para os

    agentes de estado envolvidos nos crimes contra a humanidade, ocorridos no regime

    militar brasileiro. O método utilizado na fase de investigação foi o monográfico. As

    técnicas de investigação foram a revisão bibliográfica e fichamento.

    Palavras-chave: anistia; justiça de transição; ditadura militar; controle de

    convencionalidade; direitos humanos.

  • ABSTRACT

    This dissertation, which part of the line of research Law and Jurisdiction, with

    concentration on the Fundamentals of positive law, analyzes the action of justice in

    times of transition of government regimes. The research is based on the valuation of

    human rights in these periods and its historical evolution, building on amnesty laws.

    More specifically, it begins with an analysis of amnesty law 6.683/79, stemming from

    the Brazilian military regime, to analyze the operation of an entire international

    systematic of protection of human rights, and how the courts created by this

    systematic judge the matter. This study explores the jurisprudence of the Inter-

    American Court of Human Rights in cases related to the amnesties involving military

    dictatorships in Latin American. It also investigates how the South American

    countries dealt with the trial of its military forces, and with the incorporation of the

    Inter-American Court’s decisions in the jurisprudence of its internal courts.

    Consequently, the research analyzes the Federal Supreme Court decision in the

    ADPF 153 in comparison with the Inter-American Court’s decision in the case Gomes

    Lund vs. Brasil. For this purpose, having identified dissonance in the decisions, it

    seeks to enquire how the local Judiciary should treat the matter; whether by following

    the binding decision of the Federal Supreme Court, or through the control of

    conventionality, based on the decision of Inter-American Court. From there, it

    analyzes the relations between intern law and the international law of human rights

    and the effects of the decisions of the Inter-American Court of Human Rights in

    Brazil. Finally, it explores whether there are justifications for the application of

    criminal law, both in relation to the legal issues, and in regard to the functions of the

    penalty functions and in criminological studies for the state agents involved in crimes

    against humanity during the Brazilian military regime. The method used in the

    investigation phase was an essay. The research techniques used were bibliographic

    review and book report.

    keywords: amnesty transitional justice; military dictatorship; conventionality control;

    human rights.

  • 13

    ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade

    ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

    AI Ato Institucional

    CADH Convenção Americana de Direitos Humanos

    CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos

    CNV Comissão Nacional da Verdade

    Corte IDH Corte Interamericana de Direitos Humanos

    DUDH Declaração Universal de Direitos Humanos

    OAB Ordem dos Advogados do Brasil

    ONU Organização das Nações Unidas

    PCB Partido Comunista Brasileiro

    PCdoB Partido Comunista do Brasil

    STF Supremo Tribunal Federal

  • ROL DE CATEGORIAS

    Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental: instrumento jurídico

    que tem sido usado, na forma principal, quando as demais ações forem incabíveis

    ou não se revelarem idôneas para afastar ou impedir a lesão a preceito fundamental

    da Constituição de 1988 e que, na forma incidental, destina-se a provocar a

    apreciação do Supremo Tribunal Federal sobre controvérsia constitucional relevante,

    objeto de julgamento por qualquer juízo ou tribunal, se inexistir outro meio idôneo de

    sanar a lesividade do preceito fundamental1.

    Anistia: medida legal, adotada em circunstâncias excepcionais, cuja função

    primária é remover, condicionada ou incondicionalmente, a possibilidade e, as

    vezes, mesmo as consequências de um procedimento legal contra determinados

    indivíduos ou classe de pessoas, em relação a também designados tipos de

    ofensas2.

    Crime de lesa-humanidade: o Tribunal Penal Internacional para a ex-

    Iugoslávia estabeleceu o seguinte standard, usualmente citado como critério

    definidor do que deve ser entendido como “grave ofensa” do ponto de vista do direito

    penal internacional: a) a violação deve constituir uma ofensa a uma regra de direito

    humanitário internacional; b) a regra deve ser “costumeira por natureza” ou, se

    pertencer a um tratado, deve atender às condições de validade dos acordos

    internacionais; c) a violação deve ser “séria”, isto é, ela deve constituir uma quebra

    da regra de proteção a valores importantes, e deve também envolver graves

    consequências para a vítima; d) a violação da regra deve acarretar, sob o direito

    costumeiro ou dos tratados, a responsabilidade criminal individual do agressor3.

    1 SARMENTO, Daniel. 21 Anos da Constituição de 1988: a Assembléia Constituinte de 1987/88 e

    a Experiência Constitucional Brasileira sob a Carta de 1988, Instituto Brasiliense de Direito Público. Revista Direito Público, Brasília, v. 1(30), 2009, p. 157-158. Disponível em:

    . Acesso em: 15 jun. 2016. 2 TORELLI, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito: Perspectiva

    Teórico-Comparativa e Análise do Caso Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 84. 3 Appeals Chamber of the International Tribunal for the Prosecution of Persons Responsible for

    Serious Violations of International Humanitarian Law Committed in the Territory of Former Yugoslávia (ICTY). Prosecutor v. Dusko Tadic a/k/a “Dule” – Decision of the Defence Motion for Interlocutory Appeal on Jurisdiction, pars. 91-94 (j. 02.10.1995). (SUIAMA, Sergio Gardenghi. Problemas Criminais da Sentença da Corte IDH no caso Gomes Lund: Respostas do Direito Comparado. Custos Legis: Revista Eletrônica do Ministério Público Federal. Disponível em: . Acesso em: 10 abr. 2016).

  • 15

    Golpe Militar de 1964: o General Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª

    Região Militar, iniciou o golpe em 31 de março de 1964, com a movimentação de

    suas tropas em Juiz de Fora (MG). Os militares avançaram em direção à cidade do

    Rio de Janeiro e acabaram por receber a adesão gradual das forças favoráveis ao

    movimento, culminando na saída de João Goulart da Presidência da República4.

    Pena: “palavra intrinsecamente ligada à idéia de sofrimento, castigo, aflição,

    punição, compaixão, dó, mágoa ou tristeza [...] normalmente nela se pensa partindo

    da premissa que serve – ou servirá – aos outros. Está, portanto, na ordem do dia

    quando o assunto é democracia e seus espaços”5.

    Punição: “é a ação e efeito sancionatório que pretende responder a outra

    conduta, ainda que nem sempre a conduta correspondente seja uma conduta

    prevista em lei, podendo ser ações que denotem qualidades pessoais, posto que o

    sistema penal, dada sua seletividade, parece indicar mais qualidades pessoais do

    que ações, porque a ação filtradora o leva a funcionar desta maneira”6.

    Justiça de Transição: conjunto de processos e mecanismos associados às

    tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legado de abusos

    cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas de

    seus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação Tais mecanismos

    podem ser judiciais e extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento

    internacional (ou nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais,

    reparações, busca da verdade, reforma institucional, investigação de antecedentes,

    a destituição de um cargo ou a combinação de todos esses procedimentos. 7

    4 FICO, Carlos. Além do golpe: a tomada do poder em 31 de março de 1964 e a ditadura militar.

    Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 15-16. 5 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Pena. In: BARRETO, Vicente de Paula (Org.).

    Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo; Rio de Janeiro: Unisinos; Renovar, 2006.

    p. 625-626. 6 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro:

    parte geral. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 64. 7 NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Relatório do Secretário Geral nº S/2004/616. O

    Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, Ministério da Justiça, v. 1, 2009, p. 325. Disponível em: . Acesso em: 1º jul. 2014.

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 18

    Capítulo 1

    A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E FORMAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO ....... 22

    1.1 UMA NOVA ERA DE RESPONSABILIZAÇÃO ................................................... 22

    1.2 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO – CONTORNOS E CONCEITOS ............................. 26

    1.3 O DIREITO À JUSTIÇA – A TERCEIRA DIMENSÃO DA JUSTIÇA TRANSICIONAL ........................................................................................................ 30

    1.4 A ESTRUTURA DO SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS .............................................................................................. 33

    1.4.1 O sistema global – visão geral ......................................................................... 33

    1.4.2 O Sistema Interamericano de Direitos Humanos ............................................. 36

    1.4.2.1 A Convenção Americana de Direitos Humanos ............................................ 36

    1.4.2.2 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos ........................................ 39

    1.4.2.3 A Corte Interamericana de Direitos Humanos ............................................... 39

    1.5 AS LEIS DE ANISTIA NA VISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS .............................................................................................. 40

    1.5.1 Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras (1988) – A omissão investigativa estatal em casos de desaparecimento forçado de pessoas como violação de direitos humanos ....................................................................................................... 41

    1.5.2 Caso Barrios Altos vs. Perú (2001) – As leis de anistia na visão da Corte ...... 42

    1.5.3 Caso Almonacíd Arellano vs. Chile – a invalidade das leis de anistia e o controle difuso de convencionalidade ....................................................................... 44

    1.5.4. Caso La Cantuta vs. Perú (2006) .................................................................... 47

    1.5.5 Caso Gélman vs. Uruguai ................................................................................ 48

    1.5.6 Caso Júlia Gomes Lund e outros vs Brasil ....................................................... 50

    1.6 A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E OS REFLEXOS DAS DECISÕES DA CORTE INTERAMERICANA NA AMÉRICA LATINA ................................................ 52

    1.6.1 Argentina .......................................................................................................... 52

    1.6.2 Chile ................................................................................................................. 59

    Capítulo 2

    A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA ................................................................................ 65

    2.1 CONTEXTO HISTÓRICO – O BRASIL PRÉ-1964 .............................................. 65

  • 17

    2.2 O GOVERNO MILITAR ....................................................................................... 69

    2.3 A DISTENSÃO LENTA, GRADUAL E A LEI DA ANISTIA – PRIMEIRO MARCO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO PAÍS .................................................... 74

    2.4 A DISCUSSÃO NACIONAL QUANTO À VALIDADE DA LEI DA ANISTIA – A PROPOSITURA DA ADPF 153 E A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL .................................................................................................................. 79

    2.5 A DECISÃO DO STF – ADPF 153 ...................................................................... 84

    2.6 A DECISÃO DO STF NA ADPF 153 FRENTE ÀS DECISÕES DAS CORTES INTERNACIONAIS .................................................................................................... 90

    2.6.1 A questão da anistia bilateral ........................................................................... 90

    2.6.2 A qualificação dos crimes de lesa-humanidade ou de graves violações de direitos humanos ....................................................................................................... 92

    2.6.3 A prescrição, o ius cogens e a anterioridade da lei penal ................................ 95

    2.7 ENTRE A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS ..................................................... 100

    2.7.1 A regra da quarta ou quinta instância e o duplo controle de normas de proteção a direitos humanos ................................................................................... 100

    2.7.2 O controle difuso de convencionalidade ......................................................... 103

    Capítulo 3

    A PERSPECTIVA DA PENA AOS AGENTES DO REGIME MILITAR – FUNÇÕES E RAZÕES ........................................................................................... 111

    3.1 O CONTEXTO ................................................................................................... 111

    3.2 DO PERDÃO E DAS FUNÇÕES DA PENA À JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO ....... 113

    3.2.1 A lógica do perdão ......................................................................................... 113

    3.2.2 As teorias legitimadoras da sanção no direito penal ...................................... 114

    3.3 OS CRIMES DE ESTADO ................................................................................. 119

    3.4 O PAPEL DO DIREITO PENAL NA RESOLUÇÃO DO PASSADO .................. 126

    CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 138

    REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 141

  • 18

    INTRODUÇÃO

    Sob a perspectiva histórica, os regimes democráticos não têm se mostrado

    como uma condição “natural” para a humanidade. Só recentemente, a sociologia

    política passou a considerar a democracia algo natural8. Hoje, todavia, o discurso

    democrata é legitimante de qualquer governo, ainda que não democrático. Seja nas

    ditaduras autorreconhecidas ou dissimuladas, sempre haverá alguém a dizer que o

    governo que busca sustentar é democrático, ou então que está a garantir a futura

    democracia.

    Esses momentos de ruptura na história da humanidade têm sido comuns no

    último século. A grande mudança, todavia, adveio da Segunda Guerra Mundial. Esse

    momento histórico demonstrou ao mundo o tamanho do horror em que um Estado,

    dito avançado e de direito, pode chegar quando conduzido na base do ódio aos

    “diferentes”, e ao mesmo tempo fez eclodir e solidificou uma divisão de mundo que

    fomentou rupturas que ultrapassaram as barreiras do conflito. A guerra fria entre

    Estados Unidos e União Soviética espalhou efeitos pelo mundo, em especial nas

    regiões periféricas. África, Ásia, Europa Oriental e América Latina sofreram mais

    fortemente o legado da divisão de um modo bipolar, e viraram, não raro, palco

    sangrento das disputas ideológicas entre as potências que se levantaram no pós-

    guerra.

    Essa influência, por evidente, chegou ao Brasil e culminou com o regime

    militar que galgou ao poder em 1964, depondo à força, mas com grande apoio da

    sociedade civil organizada, um governo democraticamente eleito, sob o argumento,

    dentre tantos outros, de combater o perigo comunista.

    O regime usurpador permaneceu no poder oficialmente por 21 anos,

    justificado por uma legalidade autoritária que buscava dar ares de legitimidade a um

    governo que não permitia a eleição direta, pelo povo, para o principal cargo da

    República, mas empenhava-se no discurso que amparava a manutenção da ordem e

    da democracia.

    Sob o regime militar, e sob esse mesmo discurso de se manter afastado o

    perigo comunista, agentes do estado cometeram crimes dos mais ignóbeis. A tortura

    8 DAHL, Robert. A. A democracia e seus críticos. Trad. Patrícia de Freitas. São Paulo: WWF

    Martins, 2012. p. 368.

  • 19

    foi sistematizada contra seus inimigos, embora jamais tenha sido admitida

    oficialmente ao grande público.

    A retirada do regime militar do poder não ocorreu de nenhuma ruptura

    abrupta, mas sim por uma transição controlada pelo próprio regime, quando ficou

    claro que sua saída seria inevitável. Antes da saída do poder, contudo, a Lei

    6.683/79 foi produzida, concedendo anistia aos envolvidos em crimes políticos no

    período. A interpretação acerca da validade e do alcance dessa norma sempre foi

    contestada nos círculos sociais e acadêmicos. Os argumentos são muitos, com

    destaque para o fato de, no momento da aprovação da lei, o Congresso Nacional ser

    controlado pelos militares, que acabaram produzindo uma anistia a si mesmos. Além

    disso, tribunais internacionais a que o Brasil é vinculado já reconheceram em casos

    similares a invalidade de leis de anistia dessa natureza.

    Não obstante, questionada pela Ordem dos Advogados do Brasil, a

    interpretação levada a efeito pelo Supremo Tribunal Federal foi pela validade integral

    da Lei da Anistia, em julgamento realizado em 2010, na ADPF 1539.

    Logo depois, contudo, o Brasil foi condenado na Corte Interamericana de

    Direitos Humanos no caso Gomes Lund vs. Brasil, por não processar os militares em

    casos similares aos afetados pela Lei da Anistia.

    Essa aparente divergência entre os tribunais permanece até hoje em nosso

    meio jurídico e ainda não foi seguramente resolvida. É a partir dessa situação que o

    presente trabalho vai se desenvolver.

    O objetivo institucional da presente dissertação é a obtenção do título de

    Mestre em Ciência Jurídica pelo Curso de Mestrado em Ciência Jurídica da

    Universidade do Vale do Itajaí – Univali, na linha de pesquisa direito e jurisdição.

    O objetivo geral da presente pesquisa é investigar se a Lei da Anistia, com

    base na dicotomia dos julgamentos nacionais e internacionais, continua a constituir-

    se em um instrumento que veda a persecução penal a criminosos de estado,

    acusados de crimes contra a humanidade, e, em caso positivo, se há razões para

    buscar a punição de tais agentes.

    Para a pesquisa, foram levantadas as seguintes hipóteses:

    9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

    153. Relator: Ministro Eros Grau, DJ, 06/08/2010.

  • 20

    A) A Jurisprudência do sistema internacional de direitos humanos tem

    afastado a validade de leis de autoanistia para crimes contra a humanidade, em

    contextos de justiça de transição.

    B) A decisão do Supremo Tribunal Federal atestando a validade da Lei da

    Anistia 6.683/79 é, a rigor, contraditória à decisão da Corte Interamericana de

    Direitos Humanos no caso Gomes Lund vs. Brasil. É preciso definir qual decisão

    aplicar no caso brasileiro e como aplicá-la.

    C) Uma vez confirmada a segunda hipótese, frente à evolução das razões de

    punir e da própria democracia, é fundamental avaliar se há razões para a punição

    aos agentes de estado que cometeram graves violações aos direitos humanos, mais

    de três décadas após o acontecimento dos fatos.

    Os resultados do trabalho de exame das hipóteses estão expostos na

    presente dissertação.

    No capítulo 1, é analisado o funcionamento das normas de proteção aos

    direitos humanos em Estados saídos de rupturas institucionais, sob o prisma jurídico,

    no que tem se definido como justiça de transição. O conceito e as principais formas de

    justiça de transição normalmente aceitas também foram objeto de estudo. Ainda

    nesse primeiro capítulo, identifica-se como funciona a estrutura internacional de

    proteção dos direitos humanos e como tal sistemática tem trabalhado com as leis de

    anistia, com atenção específica à forma como a jurisprudência formada pela Corte

    Interamericana de Direitos Humanos tem tratado o tema. Por fim, demonstra-se como

    o sistema de justiça de países do Cone-Sul, mais especificamente a Argentina, o Chile

    e o Brasil, têm tratado a questão, além de como as decisões da Corte Interamericana

    têm, ou não, impactado as medidas de justiça transicional em tais países.

    No Capítulo 2, analisa-se como se deu a experiência transicional brasileira,

    desde a tomada do poder pelos militares até a abertura ao governo civil. Além disso,

    averígua-se a validade da Lei da Anistia brasileira, com base na decisão do STF na

    ADPF 153, que atestou a validade da anistia nacional, em contraste com as

    decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre anistias, em especial

    no caso Gomes Lund, que tratou exatamente de refutar a Lei da Anistia nacional. O

    contraste entre a decisão do STF e da Corte IDH e a busca da resposta acerca de

    como tratar a questão no âmbito nacional, em face de díspares decisões nacionais e

    internacionais, completam a análise do segundo capítulo.

  • 21

    No capítulo 3, a pesquisa dedica-se ao debate acerca das razões filosófico-

    jurídicas da punição nos casos de crime de estado, principalmente quando

    questionado após décadas da ocorrência dos fatos e com a democracia

    razoavelmente estabilizada. Tal análise tenta compreender o que significam crimes

    de estado e como a questão tem sido tratada sob a ótica do perdão, da pena, de

    suas funções e da própria solidificação da democracia, com o objetivo de contribuir

    para o alcance de uma resposta que se considere mais adequada, ainda que

    apenas no plano reflexivo do autor.

    O relatório de pesquisa encerra-se, em considerações finais, com a síntese

    da esperada contribuição acerca da aplicação e validade da Lei da Anistia brasileira

    e as razões para a punição dos criminosos de estado.

    O método10 utilizado foi o indutivo, tanto na fase de investigação quanto no

    tratamento dos dados, com a utilização da técnica11 de investigação de análise

    bibliográfica.

    Nesta dissertação, as categorias principais estão grafadas com a letra inicial

    em maiúscula, e os seus conceitos operacionais são apresentados em glossário

    inicial ou através de referências no rodapé.

    Há citações de doutrinas em julgados em língua estrangeira. A tradução,

    quando utilizada nesses casos, foi feita de forma livre.

    O intento perseguido com a presente pesquisa foi de contribuir para o debate

    acerca da incorporação da jurisprudência da Corte Interamericana no sistema de

    justiça nacional, tendo por base a análise da validade da Lei da Anistia de 1979,

    além de buscar contribuir na reflexão acerca da validade do uso do direito penal em

    crimes cometidos no período de exceção.

    10 “Método: é a base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica, ou seja, Método é a forma lógico-

    comportamental na qual se baseia o Pesquisador para investigar, tratar os dados colhidos e relatar os resultados.” (PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: Teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011. p. 85. Destaques no original.

    11 “Técnica é um conjunto diferenciado de informações, reunidas e acionadas em forma instrumental, para realizar operações intelectuais ou físicas, sob comando de uma ou mais bases lógicas de pesquisa.” (PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: Teoria e prática, p. 89.

  • 22

    Capítulo 1

    A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E FORMAÇÃO DO

    ESTADO DEMOCRÁTICO

    1.1 UMA NOVA ERA DE RESPONSABILIZAÇÃO

    Os direitos humanos como conhecemos formataram-se em um processo

    histórico que percorreu séculos. A noção de integridade dos direitos humanos, hoje

    indiscutivelmente presente, foi possível, em regra, porque em um ou outro momento

    determinados campos de proteção do ser humano puderam ser melhor expressados

    e consequentemente garantidos pelas circunstâncias sociais, de mercado, economia

    e poder de seu tempo. A integridade dos direitos humanos, por isso mesmo, veio se

    firmando através da história da humanidade12.

    Dentre esses fatores históricos, um dos grandes marcos na proteção dos

    direitos humanos foi a aparição do Estado como poder soberano, legitimado à

    utilização da força para imposição de sua vontade em seu espaço territorial,

    delimitado contratualmente por uma Constituição, tendo os direitos humanos como

    objeto desse contrato e limite do poder13.

    A evolução histórica seguiu com outros fatores, como a consolidação dos

    direitos sociais e coletivos. Seguindo essa linha, é possível se estabelecer que os

    direitos de proteção do ser humano sofreram alterações nos últimos tempos, em regra

    advindas de acontecimentos marcantes na história da humanidade. Afinal, como

    lembra o professor Marcos Leite Garcia14, “os direitos fundamentais são conquistas

    12 Acerca da expressão direitos humanos x direitos fundamentais, no presente trabalho utilizaremos

    a distinção proposta, dentre outros, por Perez-Luño no sentido de que os direitos fundamentais e os direitos humanos não se diferem apenas pelas suas abrangências geográficas, mas também pelo grau de concretização positiva que possuem, ou seja, pelo grau de concretização normativa. Os direitos fundamentais estão duplamente positivados, pois atuam no âmbito interno e no âmbito externo, possuindo maior grau de concretização positiva, enquanto que os direitos humanos estão positivados apenas no âmbito externo, caracterizando um menor grau de concretização positiva (PEREZ-LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales. 7. ed. Madrid:

    Tecnos, 1998. p. 46-47). 13 PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Curso de Derechos Fundamentales. Teoría General.

    Madrid: Universidad Carlos III, 1999. p. 113. 14 GARCIA, Marcos Leite. Efetividade dos direitos fundamentais: notas a partir da visão integral do

    conceito segundo Gregorio Peces-Barba. In: VALLE, Juliano Keller do; MARCELINO JR., Júlio Cesar (Orgs.). Reflexões da Pós-Modernidade: Estado, Direito e Constituição. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. p. 189.

  • 23

    históricas da humanidade e somente foram possíveis a partir de uma série de

    acontecimentos marcantes que levaram a uma mudança na mentalidade dos povos”.

    A fronteira dos Estados é um marco neste processo que culminou com a

    universalização dos direitos humanos, porque foi fator histórico a delimitar os limites

    da jurisdição e garantir as imunidades estatais e suas representações. Em termos

    universais, a preocupação até então era voltada aos tratados comerciais ou ao

    direito da guerra, com pouco espaço para um pensamento focado no cidadão. A

    soberania estatal, nessa ótica, sempre foi um obstáculo à concretização de qualquer

    direito que pudesse afetar essa sistemática15.

    Entretanto, a descoberta dos campos de concentração nazistas trouxe um

    novo parâmetro ao horror e as relações dele decorrentes, obrigando o mundo a

    buscar uma nova forma de responsabilização para além das antigas normativas da

    guerra. Pela primeira vez identificou-se no Estado a condição de principal

    delinquente, capaz de subjugar cidadãos não soldados em seu próprio país, tão só

    pela sua condição humana, dentro de uma lógica legal/burocrática que legitimava

    seus agentes a tal agir.

    Com tal descoberta, inicia-se um novo desenho de reconstrução dos direitos

    humanos como paradigma referencial ético a orientar a ordem internacional

    contemporânea. Como lembra Flávia Piovesan16, “se a 2ª Guerra Mundial significou

    a ruptura dos direitos humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução”.

    Esse momento é marcado pelo que Norberto Bobbio17 identificou como início

    da era dos direitos, já que “somente depois da 2ª Guerra Mundial é que esse

    problema passou da esfera nacional para a internacional, envolvendo – pela primeira

    vez na história – todos os povos”.

    Nesse sentir, se é verdade que momentos de declínio ou ruptura de um

    regime e ascensão de uma nova ordem permearam toda a história recente da

    humanidade, ao menos em termos de responsabilização pessoal, com foco na

    garantia dos direitos humanos, foi após a Segunda Grande Guerra, com os

    15 FERREIRA BASTOS, Lucia Elena Arantes. Anistia: As leis internacionais e o caso brasileiro.

    Curitiba: Juruá, 2009. p. 21. 16 PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: A

    convenção Americana de Direitos Humanos. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (Orgs.). O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São

    Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 18. 17 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004. p. 49.

  • 24

    julgamentos de Nuremberg e Tóquio, que novas técnicas de responsabilização

    surgiram. É dessa época que se instaurou o debate em julgar os agentes de um

    regime por seus atos contrários ao direito, dentro de uma percepção de julgamento

    justo e com regras legais e pré-definidas18.

    Antes dos tribunais pós-Segunda Guerra, as fases de ruptura e transição

    entre um regime e outro eram marcadas por um tradicional modelo de impunidade,

    ainda que diante de graves violações aos direitos elementares. A impunidade dos

    agentes estatais era a regra até então, com base em um modelo pautado

    basicamente sob a doutrina da imunidade, advinda da soberania dos países

    envolvidos. Tanto era assim que, como lembra Lucia Elena Bastos19, “em um

    primeiro momento os conceitos de ‘soberania estatal’ e ‘respeito aos direitos

    humanos’ chegaram a parecer irreconciliáveis, como se apenas um pudesse se

    realizar em detrimento do outro”.

    Katrin Sykkink20 defende que essa doutrina de imunidade era centrada em

    diversas e distintas fontes: a primeira, advinda do antigo princípio inglês de que o

    monarca não erra; a segunda, afeta ao poder e interesse do próprio Estado, capaz de

    evitar o processo judicial contra si; e a terceira e principal fonte defendendo que a

    imunidade advinha de um princípio funcionalista de que o Estado precisava estar

    protegido contra processos judiciais, capazes de abalar a continuidade do governo

    local.

    De qualquer modo, como lembra a professora de Minessota21, “seja qual for a

    explicação para a doutrina da imunidade, antes da Segunda Guerra Mundial era

    certo que os agentes do Estado deviam estar livres de acusações de violações aos

    direitos humanos”.

    18 Jon Elster identifica que tal responsabilização, conceituada posteriormente como justiça de

    transição, tem suas primeiras aparições encontradas já na Grécia antiga, nos anos 411-403 a.C. (ELSTER, Jon. Rendición de cuentas: la justicia transicional en perspectiva histórica. Tradução para o espanhol de Ezequiel Zaidenwer. Buenos Aires: Katz, 2006. p. 15). Ruti Teitel, por seu turno, identifica as primeiras adesões à Justiça de transição ao final da Primeira Guerra Mundial (TEITEL, Ruti G. Genealogia da Justiça Transicional. In: REATEGUI, Felix (Org.). Justiça de Transição: Manual para a América Latina. Tradução Ministério da Justiça. Brasília: Ministério da

    Justiça, 2011. p. 140). 19 FERREIRA BASTOS, Lucia Elena Arantes. Anistia: as leis internacionais e o caso brasileiro,

    p. 28. 20 SIKKINK, Kathryn. A era da responsabilização: a ascensão da responsabilização penal individual.

    In: A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional comparada. Tradução do Ministério da Justiça, Comissão de Anistia. Oxford: Oxford University, Latin American Centre, 2013. p. 41.

    21 SIKKINK, Kathryn. A era da responsabilização: a ascensão da responsabilização penal individual, p. 41.

  • 25

    Entretanto, após a Segunda Grande Guerra, essa concepção mudou

    drasticamente. A partir daí o direito internacional passou a se preocupar em como

    adotar um novo modelo de responsabilização que não convalidasse a atuação de

    seus membros que estivessem a violar claramente os direitos dos cidadãos.

    A preocupação também girou na forma de como julgar agentes da burocracia

    do antigo regime, que atuavam dentro de seu positivismo legal e não raro

    constitucional, sem, de todo modo, desrespeitar os princípios de defesa

    conquistados com o Iluminismo22.

    Nesse ponto, aliás, é de se destacar que o debate em Nuremberg e Tóquio,

    além da questão probatória, esteve ligado ao fato de que os acusados estavam

    agindo seguindo as ordens, leis e normativas burocráticas de um Estado constituído,

    além do argumento de se tratarem de tribunais de exceção, impostos pelos

    vencedores contra os vencidos23.

    Nos casos de Nuremberg e Tóquio, as afirmações defensivas não foram

    aceitas, mas as críticas permaneceram. A partir daí se estabeleceu a necessidade

    de se debater e impor regras e sistemas internacionais de proteção a direitos

    humanos pré-definidos. Foi a partir de Nuremberg que se iniciou o processo de

    construção de medidas inovadoras que fugiam da tradição geral e ordinária do

    direito, até então entendido como conjunto de regras postas por um Estado

    soberano.

    A tradição jurídica de Nuremberg colocou essas novas medidas sob a égide

    do direito internacional, estabelecendo marcos legais a regular os processos de

    transição, que culminaram com a formação da Organização das Nações Unidas,

    com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a construção dos

    Sistemas Europeu e Interamericano de Direitos Humanos e o Tribunal Penal

    22 As principais críticas dos julgamentos de Nuremberg e Tóquio focam em: (1) A violação do

    princípio “nullum crimen, nulla poena sine lege”; (2) Ser um tribunal de “exceção”, constituído apenas pelos vencedores; (3) Que a responsabilização internacional deveria ser direcionada apenas ao Estado e não ao indivíduo; (4) Que os aliados também tinham cometido crimes de guerra; (5) Que os atos praticados pelos alemães eram apenas ilícitos e não crimes; (6) Que não houve instrução criminal (CALETTI, Cristina. Os precedentes do Tribunal Penal Internacional, seu estatuto e sua relação com a legislação brasileira. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2015).

    23 MAIA, Fábio Fernandes. Lei de Anistia e Justiça de Transição: o redimensionamento do debate e julgamento da ADPF 153 pelo STF. Curitiba: Juruá, 2014. p. 69.

  • 26

    Internacional, aos quais seguiu uma série de outros tratados internacionais, com

    destaque para o Tribunal Penal Internacional24.

    O grande desafio dessa nova ortodoxia, todavia, foi ajustar o novo modelo de

    responsabilização dos Estados com os direitos humanos que seriam reconhecidos

    nos anos subsequentes, e com o modelo de responsabilização interno de cada um

    desses Estados25.

    A par de tal desafio, é inegável que o surgimento e o aperfeiçoamento dos

    tratados internacionais fizeram surgir um modelo internacional que combina a

    responsabilidade do Estado com a responsabilidade individual. Esse novo modelo,

    embora não tenha adotado tal nomenclatura ou um elemento conceitual a seu

    tempo, posteriormente foi inserido também naquilo que se convencionou chamar de

    justiça de transição.

    1.2 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO – CONTORNOS E CONCEITOS

    O vocábulo “transição”, por si, pode ser considerado como a condição que

    indica a passagem de uma condição a outra em qualquer esfera26. Para a teoria

    política e constitucional, contudo, a transição é passível de ser identificada como um

    intervalo entre um regime político e outro, que abarca tanto a mudança no sistema

    político como o produto da anterior experiência que vai influenciar no novo regime27.

    Embora a mudança de regimes não seja algo novo na história da

    humanidade, o conceito de justiça de transição, baseado em um direito

    internacional, com o reconhecimento da importância da justiça nos processos de

    transição, é algo absolutamente recente.

    Por conseguinte, a “justiça de transição”, nos termos propostos no presente

    estudo, pode ser entendida como um conceito que surge da transição política e vai

    emergir no direito, com o objetivo de aplicar e inserir o direito em uma sociedade em

    transição. Aqui a preocupação é não só com a transição real, das forças sociais,

    mas, prioritariamente, com o papel do direito enquanto condutor de

    24 TORELLI, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito: Perspectiva

    Teórico-Comparativa e Análise do Caso Brasileiro, p. 49. 25 SIKKINK, Kathryn. A era da responsabilização: a ascensão da responsabilização penal individual,

    p. 41. 26 MEZETTI, Luca. Teoria e Prasi delle Transizioni Constituzionali e del Consolidamento

    Democratico. Padova/Itália: CEDAN, 2003. p. 4. 27 MEZETTI, Luca. Teoria e Prasi delle Transizioni Constituzionali e del Consolidamento

    Democratico, p. 4.

  • 27

    responsabilização nessas sociedades. O objetivo é tanto julgar os agentes do

    regime que está no poder de forma equânime, como de buscar a paz para a

    continuidade da sociedade que vai adentrar na transição, por meio de vários e

    distintos instrumentos.

    Embora o conceito de justiça de transição não conte com uma opinião

    unânime, é possível encontrar algumas definições capazes de traçar alguns

    contornos mínimos em termos de conceituação.

    Flávia Piovesan28, por exemplo, identifica que a justiça de transição tem “o

    delicado desafio de como romper com o passado autoritário e viabilizar o ritual de

    passagem à ordem democrática”. Swensson29 aduz tratar-se de “um olhar sobre o

    passado, quando pendências do regime anterior são revistas e rediscutidas, para

    então serem decididas e solucionadas”.

    A Justiça de transição é conceituada também no Relatório S/2004/616 do

    Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU):

    A noção de “justiça de transição” discutida no presente relatório compreende o conjunto de processos e mecanismos associados às tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legado de abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas de seus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. Tais mecanismos podem ser judiciais e extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais, reparações, busca da verdade, reforma institucional, investigação de antecedentes, a destituição de um cargo ou a combinação de todos esses procedimentos.30

    Para Paul Van Zyl31:

    O objetivo da justiça transicional implica em processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradoras de abuso e promover a reconciliação. O que foi mencionado anteriormente exige um conjunto inclusivo de estratégias formuladas para enfrentar o passado assim como para olhar o futuro, a fim de evitar o reaparecimento do conflito e das violações.

    28 PIOVESAN, Flávia. Direito internacional dos direitos humanos e a lei de anistia: o caso brasileiro.

    Revista da Faculdade de Direito da FMP, Porto Alegre, FMP, n. 4, 2007, p. 113. 29 SWENSSON JR., Lauro Joppert. Anistia Penal. Problemas de validade da lei de anistia

    brasileira (Lei 6.682/79). Curitiba: Juruá, 2007. p. 77. 30 NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Relatório do Secretário Geral nº S/2004/616. O

    Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, Ministério da Justiça, v. 1, 2009, p. 325. Disponível em: . Acesso em: 1º jul. 2014.

    31 ZYL, Paul van. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília: Ministério da Justiça, 2009.p. 19.

  • 28

    Considerando que, com frequência, as estratégias da justiça transicional são arquitetadas em contextos nos quais a paz é frágil ou os perpetradores conservam um poder real, deve-se equilibrar cuidadosamente as exigências da justiça e a realidade do que pode ser efetuado a curto, médio e longo prazo.

    Paulo Abrão e Tarso Genro32 dão a seguinte conceituação ao tema:

    A justiça de transição é um conjunto de respostas concretas ao legado de violência deixado pelos regimes autoritários e/ou conflitos civis em escala e que vem sendo empreendidas por via dos planos internacionais, regional ou interno. Seu objetivo é o (re)estabelecimento do Estado de Direito, o reconhecimento das violações aos direitos humanos – suas vítimas e seus autores – e a promoção de possibilidade de aprofundamento democrático, pela justiça, verdade, reparação, memória e reformas das instituições.

    Elemento abstrato nessa conceituação é o que se entende por “justiça”,

    conceito que é aberto e peça integrante da própria definição da transição. Kai

    Ambos33 adverte que o elemento justiça, nesse sentido, tem que ser entendido de

    maneira ampla, indo além da mera justiça penal e incluindo certos elementos-chave,

    tais como a responsabilidade, equidade (fairnesss) na proteção e reivindicação de

    direitos e punição de infrações.

    Por isso mesmo que o conceito de justiça de transição não se circunscreve ao

    aspecto penal de responsabilização pessoal, mas sim em todo o arcabouço de

    respostas capazes de serem empregadas pela sociedade ao final do conflito ou do

    regime autoritário.

    Paulo Abrão e Tarso Genro34, por exemplo, estabelecem as seguintes

    iniciativas como necessárias ao processo transicional: a aplicação do sistema de

    justiça para apuração e responsabilização dos crimes ocorridos, com o afastamento

    de anistiais e prescrições para os crimes contra a humanidade; a criação de

    comissões de verdade; programas de reparação às vítimas; reformas institucionais

    dos sistemas de segurança e justiça; políticas públicas de memória; depuração dos

    agentes públicos envolvidos no regime autoritário e ações de educação para a

    cidadania.

    Os citados autores, com esses instrumentos, ainda concluem que:

    32 ABRÃO, Paulo; GENRO, Tarso. Os Direitos da Transição e a Democracia no Brasil: Estudos

    sobre Justiça de Transição e Teoria da Democracia. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 34. 33 AMBOS, Kai. Anistia, justiça e impunidade: reflexões sobre a justiça de transição no Brasil.

    Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 24. 34 ABRÃO, Paulo; GENRO, Tarso. Os Direitos da Transição e a Democracia no Brasil: Estudos

    sobre Justiça de Transição e Teoria da Democracia. p. 35-37.

  • 29

    Justiça de transição em sentido amplo, é uma forma de justiça na qual as sociedades transformam a si mesmas depois de um período de violação generalizada de direitos humanos, e nesse ambiente de auto-reconstrução e de reconhecimento de uma democracia sem fim, contribuem na institucionalização de novas práticas políticas e novos direitos.35

    Para Torelly36, seguindo essa linha de instrumentos de transição, é possível

    identificar três fases da justiça transicional. A primeira fase entre 1945 até meados

    de 1970, a qual deteve um caráter internacional e punitivo, com a responsabilização

    dos responsáveis pelas atrocidades da Segunda Guerra. Nessa fase, dois

    elementos de políticas transicionais foram marcantes: a reforma das instituições e a

    responsabilização criminal dos agentes.

    A segunda fase é identificada entre 1970 e 1989, com a bipolarização mundial

    advinda da guerra fria. Nesse período, justamente por conta das vinculações e

    intervenções ideológicas, passou-se a repudiar as intervenções de outros países nas

    justiças internas. Decorrência disso foi a criação de duas novas medidas

    transicionais; as reparações às vítimas e a implementação de comissões de

    verdade, como maneira de prestação de contas37.

    A terceira fase tem início em 1989 e se estende até hoje. A característica

    mais marcante deste momento é o acionamento de tribunais internacionais com o

    intuito de devolver à esfera jurídica as questões tratadas no plano político durante as

    transições38.

    Ao final, é possível atribuir quatro dimensões fundamentais à justiça de

    transição: a) a reparação (direito à verdade); b) o fortalecimento da verdade e a

    construção da memória (direito à verdade e à memória); c) a regularização da

    justiça, com o restabelecimento da igualdade perante a lei (direito e justiça); d) a

    reforma das instituições perpetradoras de violações contra os direitos humanos39.

    35 ABRÃO, Paulo; GENRO, Tarso. Os Direitos da Transição e a Democracia no Brasil. Estudos

    sobre Justiça de Transição e Teoria da Democracia, p. 47. 36 TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito: Perspectiva

    Teórico-Comparativa e Análise do Caso Brasileiro, p. 37. 37 TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito: Perspectiva

    Teórico-Comparativa e Análise do Caso Brasileiro, p. 40. 38 TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito: Perspectiva

    Teórico-Comparativa e Análise do Caso Brasileiro, p. 41. 39 RODRIGUES, Natália Centeno; VERAS NETO, Francisco Quintanilha. Justiça de Transição: um

    breve relato sobre a experiência brasileira. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da (Org.). Justiça de transição no Brasil: violência justiça e segurança. Porto Alegre. EDIPUCRS, 2012. p. 260. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2016.

  • 30

    1.3 O DIREITO À JUSTIÇA – A TERCEIRA DIMENSÃO DA JUSTIÇA TRANSICIONAL

    Para os fins do presente trabalho, passamos à análise do direito à justiça.

    Em linhas gerais, pode-se dizer que o direito à justiça visa garantir a

    investigação, processamento e julgamento dos crimes perpetrados pelos agentes de

    Estado durante os regimes autoritários40.

    Como aduz Lucia Bastos41, “a transição para a democracia normalmente

    impõe uma pergunta crucial: o novo governo deve ou não investigar e punir os

    crimes de seus antecessores?”.

    Sem maior profundidade, poderia se chegar a uma resposta de certo modo

    simples. Para tanto, basta utilizar o exemplo de Lucia Bastos, ao lembrar que, embora

    a Declaração Universal dos Direitos Humanos não detalhe os direitos que devem ser

    garantidos ao acusado no momento da prisão, ao menos o Pacto Internacional dos

    Direitos Civis e Políticos prevê que a detenção deve seguir um procedimento

    apropriado. O acusado deve ser informado sobre os motivos da prisão, apresentado

    ao juiz, pode contestar a legalidade de sua detenção e, em regra, tem direito à fiança

    ou a responder ao feito em liberdade. Pois bem, de todos os crimes que usualmente

    são perdoados por meio de anistias em sociedades transicionais, o exemplo mais

    marcante é o do chamado ‘desaparecimento forçado’, um método que foi largamente

    utilizado no Cone-Sul para dispor de dissidentes suspeitos sem a inconveniência de

    provar sua responsabilidade em julgamentos demorados e nem sempre com a

    garantia desejada pelo regime, além de ser um meio de aterrorizar outras possíveis

    atitudes similares. Isso porque o desaparecimento forçado, inegavelmente, acaba por

    resultar na total abnegação dos direitos humanos previstos no Pacto, já que, em uma

    só conduta, todos os direitos humanos básicos são violados, a vítima nunca terá uma

    ação julgada por um Tribunal, não pode contestar a acusação, não tem direito a

    recurso, a juiz, defesa e sequer acusador oficial. É a única que, no final, arca com uma

    pena, e é a pior possível. Logo, toda a primeira esfera garantidora dos direitos

    humanos é violada em casos tais42.

    40 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. ed. São

    Paulo: Saraiva, 2010. p. 15-16 e p. 98. 41 FERREIRA BASTOS, Lucia Elena Arantes. Anistia: as leis internacionais e o caso brasileiro,

    p. 38. 42 FERREIRA BASTOS, Lucia Elena Arantes. Anistia: as leis internacionais e o caso brasileiro,

    p. 34.

  • 31

    Então, como negar ou ao menos discutir tal situação quando as anistias nas

    Américas, por exemplo, são acusadas de acobertarem ou encamparem delitos de

    tortura e desaparecimento forçado, totalmente contraditórios às declarações

    universais de direitos humanos e continuar a se falar em integridade desses direitos?

    A par disso e não obstante eventual concordância com essa questão, é

    inegável que a punição dos agentes do antigo regime em novos tribunais não é um

    processo que seja imune a críticas e tampouco não mereça certa reflexão.

    Talvez a primeira e mais célebre dessas críticas tenha vindo de Hanna

    Arendt43 em sua cobertura do julgamento de Otto Adolf Eichamn em Jerusalém, que

    posteriormente restou documentada integralmente no célebre Eichman em

    Jerusalém. Arendt, nesse campo, apresentou três críticas a essa forma de justiça,

    quais sejam: o problema da predefinição da justiça na corte dos vitoriosos; uma

    definição válida de crimes contra a humanidade e um reconhecimento claro do novo

    tipo criminoso que comete esse crime.

    As razões da existência da pena, para além de seu discurso simbólico ou

    reparatório do direito penal, também é ponto que merece reflexão, principalmente

    em sociedades em que o regime ditatorial já deixou o poder há bastante tempo.

    Pena como punição ou simbologia? Vingança, justiça ou prevenção?

    Em regra, o ponto de comum aceitação é que o julgamento serve à não

    repetição de tais violações, inclusive para a concretização da democracia

    consequente. Além do que, obviamente, ninguém discorda que é justo punir

    torturadores.

    Não fosse só isso, em aspecto de certo modo utilitário a reforçar tal tese,

    Kathryn Sikking44 desenvolveu um estudo de escala da violência transicional, o qual

    revelou que nos países em que se procedeu a julgamentos e comissões de

    verdades, os índices do que ela chamou de poltical terror scale só decresceram, ao

    passo que no Brasil esse índice subiu de 3.2 a 4.1 (em uma escala de 1 a 5).

    43 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. Tradução

    de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 297. 44 SIKKINK, Kathryn. The justice cascade: how human rights prosecutions are changing world

    politics. Nova York/Londres: W.W. Norton & Company, 2011. p. 4.

  • 32

    Com base nessa escala, Sikking45 vai desenvolver o conceito de justiça em

    cascata para se referir a uma nova mudança na política mundial no que respeita à

    responsabilização criminal de agentes de Estado. Esse conceito não implica uma

    fatal condenação dos perpetradores, ao contrário, ele remete a um deslocamento a

    respeito da legitimidade das normas sobre responsabilidade individual por violações

    de direitos fundamentais e um sucessivo aumento de persecuções criminais em

    nome daquela norma. A ideia da autora é que a mudança começa lentamente, como

    pequenos córregos que vão ganhando força e varrendo um número maior de

    agentes. Os julgamentos de Nuremberg e Tóquio seriam o início dessa mudança.

    Entretanto, a par de tais apontamentos, aos quais se juntam outros tantos e

    que serão retomados no capítulo III, é preciso avaliar, com precisão, a necessidade

    e as razões da pena em casos tais, inclusive analisando as críticas a esses

    institutos. Afinal, como lembra, Swensson Júnior46:

    [...] em um país onde sobram penas e falta direito penal, e diante de todo o esforço da ciência penal moderna em sustentar que o fim da pena não deve ser simplesmente a retribuição do mal para a expiação da culpa (teoria da retribuição), mas a prevenção à prática de novos delitos pelo condenado (prevenção especial negativa), a sua ressocialização (prevenção especial positiva) e/ou o efeito instrutivo à sociedade da garantia de punição a todo aquele que atenta contra o direito (prevenção geral), como justificar, numa argumentação que não se restrinja à justificação legal, a necessidade de pena a pessoas de idade avançada, que hoje vivem socialmente integradas e que já não representam nenhum perigo? Por que é justo, afinal, punir essas pessoas?

    Para explicar essas razões, é necessário verificar, antes, os pontos que

    sustentam toda a lógica da justiça de transição afeta à punição dos antigos agentes

    do regime. A validade e a realidade das leis de anistia; o que são, afinal, os crimes

    contra a humanidade? Como o sistema internacional se definiu para tais prevenções

    e como solidificou sua jurisprudência? O que cabe aos Estados nesse ponto e como

    a justiça de transição tem sido aplicada em distintos Estados? Pela sua importância

    para o presente estudo, esses aspectos serão analisados no decorrer da pesquisa.

    45 SIKKINK, Kathryn. The justice cascade: how human rights prosecutions are changing world

    politics. 46 SWENSSON JUNIOR, Lauro Joppert. “Ao julgar a justiça te enganas”. Apontamentos sobre a

    Justiça da Justiça de Transição no Brasil. Revista Anistia, Política e Justiça de Transição, Brasília, Ministério da Justiça, n. 4. 2001, p. 92.

  • 33

    1.4 A ESTRUTURA DO SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

    Para compreender como o sistema de justiça tem tratado as violações de

    direitos em sociedades em transição, é preciso esclarecer a sistemática de

    estruturação e funcionamento do sistema internacional de proteção.

    Como já se disse, o pós-guerra foi o paradigma que orientou a nova ordem

    internacional em termos de direitos humanos. Foi nessa linha que em 10 de

    dezembro de 1948 foi aprovada a Declaração Universal de Direitos Humanos,

    instrumento que introduziu o ideário contemporâneo de direitos humanos,

    caracterizados pela universalidade e indivisibilidade. Essa nova concepção

    estabeleceu duas importantes consequências: a revisão da tradicional noção de

    soberania e a cristalização da ideia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos

    na esfera internacional, na condição de sujeito de direitos, pela sua própria

    existência47.

    Esse processo de universalização, a seu turno, permitiu a formação de um

    sistema internacional de proteção. Esse novo sistema projetou-se em duas esferas:

    o sistema global e os sistemas regionais.

    1.4.1 O sistema global – visão geral

    A partir da Declaração Universal de 1948, o sistema normativo global passou

    a se desenvolver por meio de uma sistemática embasada em normas e tratados.

    Para temas gerais, estabeleceram-se pactos, como o Pacto de Direitos Civis e

    Políticos de 1966. Para temas e grupos de proteção específicos, como a proteção de

    crianças, mulheres ou combate à tortura, dentre outros, estabeleceram-se as

    Convenções. Por meio dessa sistemática, os dois sistemas – geral e especial de

    proteção – passaram a coexistir no plano global.

    Para a resolução dos temas no âmbito global, criou-se a Corte Internacional

    de Justiça, a qual é competente para se pronunciar em casos de controvérsia entre

    dois ou mais Estados no que tange à interpretação ou aplicação das convenções,

    além de tratar de questões afetas à proteção dos direitos humanos48.

    47 PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos; a Convenção

    Interamericana de Direitos Humanos, p. 18. 48 Por exemplo, em um de seus interessantes casos – Atividades Militares e Paramilitares na e

    contra a Nicarágua (Estados Unidos c. Nicarágua) – a Corte teve a oportunidade de se

  • 34

    A par do sistema global, estabeleceram-se sistemas regionais de proteção,

    mais especificamente os sistemas Europeu, Americano e Africano. Cada um desses

    sistemas dispõe de um aparato jurídico próprio a embasar seu funcionamento. O

    sistema europeu conta com a Convenção Europeia de Direitos Humanos de 1950. O

    sistema africano tem como principal instrumento a Carta Africana de Direitos

    Humanos de 1981 – Carta de Banjul. Enquanto isso, o sistema interamericano é

    fundado na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969.

    Os sistemas regionais de proteção e o sistema global não são estabelecidos

    em uma ordem hierárquica, tampouco há incompatibilidade entre eles. Cada um dos

    sistemas, e consequentemente dos tribunais internacionais, têm sua jurisdição

    fundamentada em um tratado ou instrumento internacional próprio e distinto49.

    Em linhas gerais, pode-se dizer que o sistema global é responsável por um

    standard normativo mínimo, ao passo que os sistemas regionais e seus instrumentos

    são responsáveis por adicionar novos direitos e aperfeiçoá-los50.

    Não obstante, pode haver direitos protegidos por tratados e convenções tanto

    afetos ao plano global quanto regional. Nesses casos, ao contrário do que possa

    parecer à primeira vista, não há incompatibilidade ou problemas processuais. Isso

    porque, os sistemas de proteção atuam de forma complementar, formando o que

    Cançado Trindade51 chama de uma “rede policêntrica, com coordenação e

    complementaridade”.

    manifestar contra a ilicitude, de acordo com as regras de direito internacional, do uso da força unilateral por parte de um Estado (no presente caso, os Estados Unidos) contra outro (Nicarágua), utilizando como pretexto a proteção dos direitos humanos. Neste sentido, a Corte afirma que, de qualquer forma, se os Estados Unidos podem certamente ter sua própria apreciação sobre a situação dos direitos humanos na Nicarágua, o uso da força não pode ser o método apropriado para verificar e assegurar o respeito de tais direitos. Quanto às medidas que de fato tomou, a proteção dos direitos humanos, visto seu caráter estritamente humanitário, não é de forma alguma compatível com a destruição de portos, de instalações petrolíferas, ou com o treinamento, armamento e equipamento dos ‘contra’. A Corte conclui que o motivo baseado na preservação dos direitos humanos na Nicarágua não pode justificar juridicamente a conduta dos Estados Unidos, e que não se harmoniza, em qualquer caso, com a estratégia judicial do Estado demandado fundada no direito à legítima defesa coletiva. (BRANT, Leonardo Nemer Caldeira; BORGES, Leonardo Estrela. O Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos: perspectivas e desafios. p. 20. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2016.

    49 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os tribunais internacionais contemporâneos e a busca da realização do ideal da justiça internacional. Revista da Faculdade de Direito FMG, Belo Horizonte, n. 57, p. 37-68, 2010, p. 46.

    50 PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos; a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, p. 19.

    51 CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Os tribunais internacionais contemporâneos e a busca da realização do ideal da justiça internacional, p. 46.

  • 35

    Com efeito, o propósito da coexistência dos distintos instrumentos jurídicos

    garantindo os mesmos direitos é ampliar e fortalecer a proteção dos direitos

    humanos, uma vez que vige no direito internacional dos direitos humanos o critério

    da primazia da norma mais favorável ao indivíduo52.

    Por conta disso, cabe ao indivíduo que sofreu a violação a escolha do aparato

    mais favorável, tendo em vista que eventualmente um direito pode ser tutelado por

    dois ou mais instrumentos de alcance global e regional. Como lembra Flávia

    Piovesan53, “ao adotar o sistema da primazia da pessoa humana, esses sistemas se

    complementam, interagindo com o sistema nacional de proteção, a fim de

    proporcionar maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos

    fundamentais.

    Cançado Trindade54 estabelece claramente a importância dessa sistemática:

    Cada Tribunal internacional tem sua importância, dependendo do domínio do Direito Internacional de que se trate. O que, em última análise, realmente importa, é a realização da justiça internacional, e não a busca estéril de protagonismos sem sentido. Não existe uma hierarquia entre tribunais internacionais, e cada um deles deve preocupar-se, antes de tudo, com a excelência de suas próprias sentenças e não em tentar exercer ascendência sobre os demais.

    52 A chamada primazia da norma mais favorável significa que deve ser aplicada pelo intérprete

    necessariamente a norma que mais favoreça o indivíduo. Assim, a primazia da norma mais favorável nos leva a aplicar quer a norma internacional, quer a norma interna, a depender de qual seja a mais favorável ao indivíduo. Cabe lembrar que tal princípio é verdadeiro dispositivo convencional internacional, ou seja, é cláusula prevista em tratado internacional. Com efeito, o princípio da norma mais favorável é regra tradicional insculpida nos tratados internacionais de direitos humanos e consiste na impossibilidade de se invocar uma norma internacional para reduzir direitos já garantidos em outros tratados ou mesmo na legislação interna. [...]

    É o próprio direito internacional, por meio de cláusulas previstas em tratados internacionais, que possibilita a aplicação de norma interna, desde que mais favorável ao indivíduo. De fato, essa cláusula de primazia da norma mais favorável é assaz comum em tratados de direitos humanos, nos quais firma-se, em geral, que as disposições da referida convenção não poderão ser utilizadas como justificativa para diminuição ou eliminação de maior proteção oferecida por outro tratado. Como exemplo, lembra-se que tal cláusula é encontrada no artigo 5.2 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), no artigo 5º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no artigo 60 da Convenção Europeia de Direitos Humanos e no artigo 29, b, da Convenção Americana de Direitos Humanos (RAMOS, André de Carvalho. Supremo Tribunal Federal Brasileiro e o Controle de Convencionalidade: Levando a Sério os Tratados de Direitos Humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 104, p. 241-286, jan./dez. 2009, p. 254.

    53 PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos; a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, p. 25-26.

    54 CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Os tribunais internacionais contemporâneos e a busca da realização do ideal da justiça internacional, p. 45.

  • 36

    Em verdade, como se vê, o que importa para o sistema internacional é a

    ampliação dos direitos humanos e o grau de proteção e eficácia das vítimas, daí a

    aceitação da primazia da norma mais favorável.

    Partindo daí, é necessária uma melhor análise do sistema interamericano de

    direitos humanos, objeto de maior interesse ao presente estudo.

    1.4.2 O Sistema Interamericano de Direitos Humanos

    O sistema de proteção dos direitos humanos nas Américas é formado por

    quatro diplomas normativos de suma importância: a Declaração Americana de

    Direitos e Deveres do Homem, a Carta da Organização dos Estados Americanos, a

    Convenção Americana de Direitos Humanos e o Protocolo de San Salvador. Esses

    diplomas forjaram dois sistemas de proteção interligados: a Organização dos

    Estados Americanos (OEA) e o Sistema da Convenção de Direitos Humanos, criado

    no bojo da própria OEA55.

    O enfoque que será dado nesta pesquisa é relativo ao sistema da Convenção

    Americana de Direitos humanos.

    1.4.2.1 A Convenção Americana de Direitos Humanos

    O instrumento de maior importância no sistema interamericano é a

    Convenção de Direitos Humanos, conhecida como o Pacto de San José da Costa

    Rica. A convenção herdou esse título justamente porque foi assinada na capital

    Costa-riquenha em 1969.

    Em síntese, a Convenção reconhece e assegura um catálogo de direitos civis,

    similar ao previsto pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, com

    destaque para o direito à personalidade jurídica, à vida, à não escravidão, a um

    julgamento justo, à compensação em caso de erro judiciário, à liberdade de

    expressão, à igualdade, à proteção judicial, dentre outros. A Convenção não

    enuncia, de forma específica, qualquer direito social ou econômico, limitando-se a

    determinar que os Estados alcancem progressivamente a realização dos direitos,

    55 RAMOS, André de Carvalho. Proteção Internacional dos Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo:

    Saraiva, 2012. Título IV, p. 185.

  • 37

    mediante a adoção de medidas legislativas e/ou de outra natureza que se mostrem

    pertinentes ao atingimento de seus preceitos56.

    Aliás, não passa despercebido o fato de que a Convenção foi criada em 1969,

    depois de aprovado seu anteprojeto em 1967, justamente à época em que vários

    países da América do Sul passavam ou estavam às vésperas de sangrentas

    ditaduras. O Brasil, por exemplo, havia acabado de editar o AI-5 e entrava na fase

    mais sangrenta do regime militar. Ainda assim, o então Presidente, General Emílio

    Garrastazu Médice, enviou representantes à Conferência de Direitos Humanos em

    San José na Costa Rica, que foram recebidos normalmente pela OEA e participaram

    das discussões e votações57/58.

    André de Carvalho Ramos59 explica tal paradoxo, lembrando que as ditaduras

    da época tentavam transmitir uma aparência de normalidade do regime, como

    qualquer outro Estado internacional, buscando obter, com isso, uma suposta

    legitimação. Para tanto, “nada melhor que mimetizar o discurso de respeito a direitos

    humanos e democracia, mesmo sem qualquer intenção de pô-lo em prática”.

    Entrementes, a Convenção só entrou em vigor em 18 de julho de 1978, quase

    uma década após sua aprovação, quando o 11º instrumento de ratificação (era esse

    56 PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos; a Convenção

    Interamericana de Direitos Humanos, p. 31. 57 RAMOS, André de Carvalho. Proteção Internacional dos Direitos Humanos, p. 187. 58 Essa situação foi claramente oposta ao contexto vivido pela Europa quando da Convenção

    Europeia de Direitos Humanos de 1950, a qual surgiu no pós-guerra, em um mundo abismado com o legado do totalitarismo e ansioso por democracia e desenvolvimento igualitário. Como estabelece Flávia Piovesan: “Em 1978, quando a Convenção Americana de Direitos Humanos entrou em vigor, muitos dos Estados da América Central e do Sul eram governados por ditaduras. Dos 11 Estados-partes da Convenção à época, menos que a metade tinha governos eleitos democraticamente, ao passo que hoje quase a totalidade dos Estados latino-americanos na região tem governos eleitos democraticamente. Diversamente do sistema regional europeu que teve como fonte inspiradora a tríade indissociável Estado de Direito, Democracia e Direitos Humanos, o sistema regional interamericano tem em sua origem o paradoxo de nascer em um ambiente acentuadamente autoritário, que não permitia qualquer associação direta e imediata entre Democracia, Estado de Direito e Direitos Humanos. Ademais, neste contexto, os direitos humanos eram tradicionalmente concebidos como uma agenda contra o Estado. Diversamente do sistema europeu, que surge como fruto do processo de integração européia e tem servido como relevante instrumento para fortalecer este processo de integração, no caso interamericano havia tão somente um movimento ainda embrionário de integração regional.” (PIOVESAN, Flávia. Força integradora e catalizadora do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos: desafios para a pavimentação de um constitucionalismo regional. In: OTERO, Paulo; QUADROS, Fausto de; SOUSA, Marcelo Rebelo de (Coords.). Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda. Coimbra: Coimbra, 2012. v. 5: Direito internacional e direito da União Europeia: direito internacional privado e direito marítimo: direito financeiro e direito fiscal, p. 101-116.

    59 RAMOS, André de Carvalho. Proteção Internacional dos Direitos Humanos, p. 187.

  • 38

    o número mínimo de Estados previstos no artigo 74.2 da Convenção) foi depositado

    pelo Peru60.

    O Brasil só aderiu à Convenção em 25 de setembro de 1992, sendo um dos

    Estados que mais tardiamente aderiram ao instrumento61. Ainda assim, nesse

    primeiro momento, o Brasil estabeleceu que sua ratificação não reconhecia a

    jurisdição automática da Corte Interamericana de Direitos Humanos e tampouco o

    direito automático de visitas e inspeções in loco da Comissão de Direitos Humanos62.

    A aceitação completa do instrumento pelo País só ocorreu em 3 de dezembro

    de 1998, quando passou a aceitar a jurisdição da Corte63. Ainda assim, a aceitação

    da jurisdição da Corte foi feita com a ressalva temporal de que o Brasil só aceitava a

    jurisdição para fatos ocorridos após a data oficial de seu reconhecimento –

    dezembro de 1998. Desse modo, claramente, o país tentou eximir-se de seus atos

    passados, como, por exemplo, os praticados no contexto da ditadura militar64.

    Dos 35 Estados-membros da OEA, 25 aderiram à Convenção, com destaque

    para a não adesão de importantes membros, como os Estados Unidos (sede da

    OEA) e Canadá65.

    Perante a Convenção Americana, os Estados assumem obrigações positivas

    e negativas. Negativas, no sentido de não violar direitos individuais (não torturar por

    exemplo). Positivas, no sentido de assegurar as condições para o exercício dos

    direitos garantidos pela Convenção, como estabelecer estruturas capazes de

    prevenir, investigar e punir toda violação pública ou privada dos direitos humanos –

    as medidas de garantia66.

    O procedimento estabelecido pela Convenção prevê dois outros órgãos

    destinados ao monitoramento e implementação dos direitos que enuncia: a

    60 RAMOS, André de Carvalho. Proteção Internacional dos Direitos Humanos, p. 187. 61 PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos; a Convenção

    Interamericana de Direitos Humanos, p. 33. 62 O reconhecimento da Jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos é cláusula

    facultativa no Pacto. 63 RAMOS, André de Carvalho. Proteção Internacional dos Direitos Humanos, p. 189. 64 A Mensagem Presidencial 1070 enviada pelo Poder Executivo federal ao Congresso solicitou a

    aprovação para fazer a declaração de reconhecimento de competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos para fatos ocorridos a partir do reconhecimento de acordo com o previsto no parágrafo primeiro do artigo 62 daquele instrumento.

    65 A lista dos Estados signatários está disponível em: . Aceso em: 17 abr. 2106.

    66 RAMOS, André de Carvalho. Proteção Internacional dos Direitos Humanos, p. 190.

  • 39

    Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos

    Humanos.

    1.4.2.2 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos

    Integrada por sete membros, a Comissão tem importante papel e distintas

    funções. Cabe a ela fazer recomendações aos governos dos Estados-parte, preparar

    estudos e relatórios e principalmente examinar as petições encaminhadas por

    indivíduos ou grupos de indivíduos que contenham denúncias de violação a direitos

    consagrados pela Convenção que o Estado envolvido seja parte67.

    Esse procedimento é de suma importância, uma vez que os indivíduos não

    detêm legitimidade para propor petições diretamente à Corte Interamericana. Deste

    modo, cabe à Comissão um papel de “acusador” no procedimento, como único

    legitimado a tal. Da análise da Comissão não cabe qualquer recurso à vítima ou

    seus familiares. Logo, a Comissão acaba tendo um papel decisivo na interpretação

    da Convenção, e em muitos casos torna-se seu último e único intérprete.

    Mas, além de receber as petições individuais, a própria Comissão pode iniciar

    um processo, ex officio, desde que disponha de elementos para tanto. Além disso, a

    Comissão tem faculdade de realizar vistorias in loco nos Estados-parte para

    observação do cumprimento das decisões e para verificação de fatos denunciados.

    Acerca do procedimento, ao receber as petições individuais, a Comissão

    realiza o exame e o estudo da matéria, inclusive com a coleta de provas. Após essa

    fase, a Comissão pode buscar uma solução amistosa com o Estado demandado.

    Restando sem sucesso a solução amistosa, a Comissão elabora relatórios e pode

    submeter o caso à Corte de Direitos Humanos, inclusive com a possibilidade de

    buscar medidas cautelares68.

    1.4.2.3 A Corte Interamericana de Direitos Humanos

    A Corte Interamericana de Direitos Humanos é o órgão jurisdicional do

    sistema regional. É composta por sete juízes dos Estados-membros e tem

    competência consultiva e contenciosa.

    67 PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos; a Convenção

    Interamericana de Direitos Humanos, p. 36. 68 PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos; a Convenção

    Interamericana de Direitos Humanos, p. 50.

  • 40

    De acuerdo con lo dispuesto por los artículos 1 y 2 de su Estatuto, la Corte Interamericana pose dos atribuciones esenciales: la primera, de naturaliza consultiva sobre la interpretación de las disposiciones de la Convención Americana, así como la de otros tratados concernientes a la protección de los derechos humanos en los Estados Americanos; la segunda de carácter jurisdiccional, para resolver las controversias que se planteen respecto a la interpretación o aplicación de la propia Convención Americana.69

    No plano consultivo, qualquer membro da OEA, parte ou não da Convenção,

    pode solicitar o parecer da Corte em relação à interpretação da Convenção ou

    qualquer outro tratado que tenha referência com a proteção dos direitos humanos.

    As sentenças da Corte obrigam os Estados-parte ao seu cumprimento70,

    existindo a obrigação internacional derivada de cumprir de boa-fé tais decisões71.

    Em caso de não cumprimento, o artigo 65 da Convenção possibilita à Corte

    Interamericana a inclusão dos casos no seu relatório anual à Assembleia Geral da

    OEA, como mecanismo de coerção. A par disso, sabe-se que esse mecanismo tem

    se mostrado insuficiente, o que, inclusive, tem sido alvo de críticas por parte da

    doutrina internacional72.

    A fim de minimizar tal situação, a Corte tem estabelecido mecanismos de

    supervisão de suas sentenças, obrigando os Estados à apresentação de relatórios

    sobre os esforços envidados para cumprimento, mantendo uma condenação moral

    do Estado no plano internacional, sempre vigente até seu efetivo cumprimento73.

    1.5 AS LEIS DE ANISTIA NA VISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

    No que concerne às leis de anistia, estabelecidas na saída de regimes

    totalitários, no escopo da justiça de transição, as cortes internacionais vêm formado

    uma sólida e decisiva jurisprudência, lançando novas luzes na discussão dessa

    matéria em âmbito global, refletindo, inclusive, em decisões de cortes nacionais na

    alteração da justiça de transição adotada. Cabe assim, analisar os principais casos

    já decididos pela Corte IDH, que firmaram sua atual jurisprudência.

    69 ZAMUDIO, Héctor-Fix. Protección jurídica de los derechos humanos. México: Comisión

    Nacional de Derechos Humanos, 2001. p. 177. 70 Art. 68.1. “Os Estados-Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em

    todos os casos em que forem partes.” 71 RAMOS, André de Carvalho. Proteção Internacional dos Direitos Humanos, p. 236. 72 Nesse sentido, Victor Emanuel Rescia e Hector Fix-Zamudio, ambos citados por: RAMOS, André

    de Carvalho. Proteção Internacional dos Direitos Humanos, p. 238. 73 RAMOS, André de Carvalho. Proteção Internacional dos Direitos Humanos, p. 240.

  • 41

    1.5.1 Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras (1988) – A omissão investigativa estatal em casos de desaparecimento forçado de pessoas como violação de direitos humanos

    A primeira sentença proferida pela Corte diz respeito ao caso Velásquez

    Rodríguez versus Honduras. Refere-se ao desaparecimento forçado de Ángel

    Manfredo Velásquez Rodríguez pelas forças armadas do Estado de Honduras.

    Nesse caso, a Corte condenou o Estado de Honduras, em votação unânime,

    ao pagamento de indenização aos familiares do desaparecido, reconhecendo que o

    desaparecimento forçado de pessoas foi uma prática estatal generalizada em

    determinado período naquele país.

    Apesar de não tratar especificamente a respeito de leis de anistia, a sentença

    da Corte, no caso em questão, estabeleceu importante precedente ao impor um