Angus Tia Desejo

A ANGSTIA NO CAMINHO DA DESVALORIZAO DO DESEJO(Anguish on the Way of Desire Devaluation)Claudia Murta1

Resumo: A ltima frase do Seminrio A Angstia, de Jacques Lacan, articula a psicanlise ao Conceito de Angstia do filsofo Soren Kierkegaard. A referncia ao Conceito de Angstia produz uma retomada sobre o tema do desejo, ao articul-lo ao objeto a. A referncia de Lacan a Kierkegaard se insere em um contexto de retomada da dialtica hegeliana, tendo em vista que o texto deste ltimo se baseia em uma crtica ao sistema hegeliano. A angstia lacaniana pensada a partir do texto de Kierkegaard se apresenta como uma via alternativa para a desvalorizao do desejo. Lacan parte da angstia em seu seminrio porque este caminho revivifica toda a dialtica do desejo em relao emergncia de um objeto que no como os outros e tem a caracterstica de se reduzir a zero. Assim, nesse recorte que me propus a fazer do tema da angstia, vou verificar a proposio da angstia como aquilo que revivifica a dialtica do desejo a partir da proposio do objeto a. Para tratar o tema, abordo, primeiramente, uma referncia dialtica hegeliana; posteriormente, apresento a crtica proposta por Kierkegaard ao tema da mediao, via o conceito de angstia e, por ltimo, o reposicionamento de Lacan quanto dialtica do desejo.

Palavras-Chave: Desejo; Angstia; Dialtica.

Abstract: The last sentence of the seminar on Anguish by Jacques Lacan binds the psychoanalysis with the Concept of Anguish given by the philosopher Soren Kierkegaard. The reference to the Concept of Anguish provides a returning to the theme of desire while linking it to object a. The reference of Lacan to Kierkegaard is in a context of resuming the hegelian dialectic since Kierkegaard's text is based on a critique of the hegelian system. The lacanian anguish, considered from Kierkegaard's text, represents an alternative way of desire devaluation. In his seminar, Lacan discuss anguish because it revives all the dialectic of desire in relation to an emerging object that is not like the others and has the characteristic of vanishing. Thus in this work on anguish we intend to verify the proposition of anguish as something that revives the dialectic of desire from the proposition of the object a. In order to treat this theme, we initially address the hegelian dialectic. Later we present the critique proposed by Kierkegaard to the mediation theme, through the concept of anguish, and finally the reposition of Lacan in relation to the dialectic of desire.

Key-words: Desire; Anguish; Dialectic

A dialtica hegelianaNo texto da Fenomenologia do Esprito, Hegel faz um itinerrio da conscincia

que vai se configurando com a manifestao do saber. Ele parte do senso comum, do ponto de vista da conscincia ingnua e mostra que a conscincia est sempre sendo impulsionada a ultrapassar-se. Segundo Lima Vaz, o ponto de partida da

62 A Angstia no Caminho da Desvalorizao do Desejo

Fenomenologia dado pela forma mais elementar que pode assumir o problema da inadequao da certeza do sujeito cognoscente e da verdade do objeto conhecido (2008, p. 16). A partir da Hegel nos conduz a formas de conhecimento cada vez mais complexas, at o momento em que tomamos conscincia de que o interior e o exterior, a certeza e a verdade, o sujeito e o objeto se identificam no Saber Absoluto. Desde o incio do processo dialtico, o Absoluto est presente e justifica a verdadeira estrutura desse movimento circular. Nesse sentido, o Saber Absoluto j se encontra imanente, impulsionando a sucesso de figuras que a conscincia transitar em seu percurso.

Essa circularidade a base do mtodo dialtico. Ao produzir um determinado saber sobre o objeto, o sujeito produz em si mesmo um novo objeto. A emergncia do novo objeto ir corresponder a uma nova realidade para o sujeito, o que altera novamente a posio do objeto em relao a ele que foi transformado pelo seu prprio saber. O saber da conscincia est na prpria conscincia e ela est continuamente indo alm desse saber.

a figura do infinito que opera a passagem da Conscincia Conscincia-de-si. O infinito permite, deste modo, uma convivncia com as diferenas, o que possibilita o surgimento de uma identidade na diferena: ser o Mesmo e o Outro numa unidade. A conscincia-de-si se afirma numa dualidade de objetos: um objeto exterior e um objeto interior que ela mesma. Nas diferentes experincias da conscincia que precederam a emergncia da conscincia-de-si, a conscincia tinha um objeto distinto dela: o objeto era o dado imediato na certeza sensvel.

Nessa nova volta, a conscincia se torna objeto para si mesma. Nesse momento, a conscincia se volta sobre si mesma, procurando a verdade de sua certeza e tomando conscincia de seu prprio saber. Para Lima Vaz, o desejo surge como primeira figura que a conscincia-de-si assume na sua certeza de ser a verdade do mundo. .../... A satisfao do desejo verdadeiramente a reflexo da conscincia-de-si em si mesma ou a certeza tornada verdade (2008, p.20-21). Observa-se a a revelao da identidade do eu consigo mesmo. Antes, a conscincia estava na exterioridade do mundo, agora ela se volta para sua prpria identidade interior.

No primeiro momento, a conscincia-de-si precisa da diferena, do Outro, do mundo sensvel para, no segundo momento neg-lo, absorv-lo na sua identidade. Nessa passagem do mundo sensvel como fenmeno para a identidade consigo mesma, d-se um movimento; esse movimento o desejo. Hegel discorre que a conscincia a tem um duplo objeto. A relao constitutiva entre esses dois objetos torna-se essencial conscincia-de-si, possibilitando a sua emergncia como desejo geral.

O desejo como primeira figura da conscincia-de-si o movimento em torno do qual a conscincia nega esse mundo. A conscincia se apropria do objeto, negando-o. Como tal, nega sua exterioridade, para disso fazer somente um meio. A conscincia se dirige ao mundo modificando-o, visando com essa anulao adquirir a plena certeza de si mesma. Nessa etapa da dialtica, o objeto do desejo ainda no realizou sua experincia de independncia. Sua verdade ser negado para que a conscincia-de-si permanea em si mesma. Nesse momento da conscincia, o que ela deseja , na verdade, a sua prpria unidade e a anulao daquilo que exterior sua igualdade primordial.

Nesse movimento, o desejo se depara com um objeto que capaz de retornar sobre si mesmo e com isso buscar sua prpria independncia. Esse objeto a vida e tem uma estrutura homloga da conscincia-de-si. A esse respeito, Hegel afirma que o objeto da conscincia-de-si tambm independente nessa negatividade de si mesmo e assim , para si mesmo, gnero, universal fluidez na peculiaridade de sua distino: uma conscincia-de-si viva (HEGEL, 2008, p. 142).

Revista AdVerbum 5 (2): Ago a Dez de 2010: pp. 61-68

Cludia Murta 63

A vida, como objeto, o infinito. Ela , tambm, o puro movimento e, ao mesmo tempo, o repouso absoluto. O conceito de vida e o conceito de infinito so equivalentes. A vida passa a ser esse circuito em sua totalidade. Com as determinaes do processo da vida, a conscincia-de-si passou a ter como objeto outra conscincia-de-si, estabelecendo-se nessa etapa do processo, uma identidade concreta.

Trata-se da questo do reconhecimento. De acordo com Lima Vaz, a dialtica do desejo deve encontrar sua verdade na dialtica do reconhecimento (2008, p. 22). Nesse momento, as duas conscincias que se confrontam ainda no tm a verdade que as torna conscincia-de-si. No incio, a conscincia-de-si ser-para-si simples na sua igualdade consigo mesma e o Outro marcado pela negatividade. No entanto, esse Outro uma conscincia-de-si com igual independncia. O conceito de reconhecimento s possvel quando cada um opera em si para o Outro, essa pura abstrao do ser para-si, por sua prpria operao e pela operao do Outro. A vida encontra-se abstrada nesse ser para-si.

Com a pura abstrao da conscincia-de-si, ocorre o desapego pela vida. Arriscando a vida, o indivduo visa morte do Outro. A vida alheia no vale mais que a prpria. Disso resulta que a prpria verdade que se queria pr em relevo suprimida por meio da morte. Mediante a morte do Outro, cada conscincia tende a obter a certeza-de-si. Enquanto a vida ocupa uma posio natural da conscincia, a morte passa a ser a negao natural dessa mesma conscincia. Assim, o que resulta desse embate entre a vida e a morte que a conscincia-de-si fica sabendo que a vida lhe to essencial quanto a pura conscincia-de-si. Nas palavras de Hegel:

Esta apresentao o agir duplicado: o agir do Outro e o agir por meio de si mesmo. Enquanto agir do Outro, cada um tende, pois, morte do Outro. Mas a est tambm presente o segundo agir, o agir por meio de si mesmo, pois aquele agir do Outro inclui o arriscar a prpria vida. Portanto, a relao das duas conscincias-de-si determinada de tal modo que elas se provam a si mesmas e uma a outra atravs de uma luta de vida ou morte. (HEGEL, p. 145)

Anteriormente a conscincia-de-si tinha como objeto absoluto o Eu simples. A partir dessa experincia nova, esse objeto torna-se uma absoluta mediao. Da primeira experincia resultou a ciso do objeto: de um lado, a pura conscincia-de-si e, de outra parte, uma conscincia que no puramente para-si, mas que para outra conscincia-de-si, totalmente inversa no elemento do ser, como um ser vivo qualquer. So momentos essenciais que configuram dois tipos opostos de conscincia uma independente, ser-para-si, essencial, a do Senhor; a outra, dependente, que tem por essncia a vida ou o ser para a outra, a do Escravo. O movimento da luta pelo reconhecimento se d na relao do Senhor e do Escravo.

Para Hegel a conscincia-de-si faz, pois, a experincia da luta pelo reconhecimento, mas a verdade dessa experincia engendra outra experincia, aquela das relaes de desigualdade no reconhecimento, a experincia da dominao e da servido ( p. 164). A dialtica do senhor e do escravo contm uma formulao de constituio do eu a partir da relao com o Outro, numa relao dialtica e conflituosa, posto que a conscincia vai agir sobre o Outro da mesma forma que age sobre as coisas. Ela vai se impor e tomar o outro pela negatividade, isto , suprassum-lo e incorpor-lo. Esse vai ser o movimento de uma conscincia-de-si em relao a outra conscincia-de-si, para o devir de uma sobre a outra.

Nesse ponto, no Seminrio A Angstia, Lacan comenta esse captulo de A Fenomenologia do Esprito e, no seu entender:

No sentido hegeliano, o desejo de desejo desejo que um desejo responda ao apelo do sujeito. Ele desejo de um desejante. Desse desejante que o Outro, por que o sujeito tem necessidade? Ele indicado do modo mais articulado em



Hegel que ele tem necessidade para que o Outro o reconhea, para receber dele o reconhecimento. O que isso quer dizer? Que o Outro v instituir alguma coisa, designada por a, que isso do que se trata no nvel daquele que deseja. a que est todo o impasse. Exigindo ser reconhecido, l onde eu sou reconhecido, eu s sou reconhecido como objeto. Eu obtenho o que eu desejo, eu sou objeto, e eu no posso me suportar como objeto, pois esse objeto que eu sou em sua essncia uma conscincia, uma Selbst-bewsstsein. Eu no posso me suportar reconhecido no modo, o nico modo de reconhecimento que eu posso obter. necessrio ento a qualquer preo que decidamos entre nossas duas conscincias. No existe outra mediao seno a da violncia. Tal a sorte do desejo em Hegel. (LACAN, 2004, [1963],p. 34)

Para Lacan, ento, a mediao violenta e ele acrescenta que esse incio da fenomenologia do esprito muito estreitamente centrado sobre o imaginrio. muito bonito de dizer que a servido do escravo plena de devir at o saber absoluto, mas, politicamente, isso quer dizer que, at o fim dos tempos, o escravo continuar escravo (p. 35). Essa pontuao lacaniana aponta para a dialtica hegeliana, a vertente imaginria do desejo. E ele acrescenta que a angstia que d a verdade da frmula hegeliana (LACAN, p. 35) e, nas palavras do prprio Hegel: a conscincia escrava sentiu a angstia, no por isto ou aquilo, no por este ou aquele instante, mas sim atravs de sua essncia toda, pois sentiu medo da morte, do senhor absoluto (HEGEL, p. 149).

Se, para Lacan, a angstia que d a verdade da frmula hegeliana, Kierkegaard que, no seu entender, apresenta a verdade da frmula hegeliana (p. 35). Assim, procuramos nos aproximar do pensamento de Kierkegaard para perceber como ele opera com essa frmula e, mais ainda, qual a importncia dessa operao.

O conceito de angstiaA ltima frase do Seminrio de Lacan sobre a angstia, sua referncia final,

articula a psicanlise ao Conceito de angstia de Kierkegaard por meio da articulao do desejo e do objeto a. Em seus termos, convm que o analista seja esse que, por pouco que seja, por algum vis, por alguma borda, tenha feito entrar seu desejo nesse a irredutvel para oferecer questo do conceito da angstia uma garantia real (LACAN, 2004, [1963], p. 390). A referncia ao Conceito da angstia produz uma retomada sobre o conceito de desejo ao articul-lo ao objeto a.

A referncia de Lacan a Kierkegaard se insere em um contexto de retomada crtica da dialtica hegeliana, tendo em vista que o texto deste ltimo se baseia em uma crtica ao sistema hegeliano. Lacan, tal como Kierkegaard, mantm a dialtica, mas uma dialtica que interrompe a sntese. Em suas palavras: a diferena que h entre o pensamento dialtico e nossa experincia, que ns no cremos na sntese (LACAN, p. 313). Segundo o comentrio de Jean Wahl, em seus Estudos kierkegaardianos, toda a filosofia de Kierkegaard se apresenta como um dilogo com o sistema hegeliano.

No Conceito de angstia, a crtica ao sistema hegeliano se pauta nos princpios expostos na Cincia da Lgica. Mas como anuncia o prprio Hegel no prefcio Fenomenologia, o movimento pertence Lgica, ou melhor, a prpria Lgica (HEGEL, p.53). Kierkergaard critica a proposta hegeliana de dar movimento lgica. Para ele, a lgica imobilidade pura e o movimento no pode ser inserido na lgica, pois contrrio sua natureza. Para Kierkegaard, a realidade e a lgica no se interpenetram. No seu entender, o sistema quer o idntico, tendo em vista que a lgica eletica. O sistema quer dizer totalidade fechada e completa, imanncia. Enquanto a existncia qualidade de descontinuidade e transcendncia. A existncia estar fora do sistema.


Cludia Murta 65

Quando o sistema quer explicar e unificar, a existncia se acaba, no tem mais existncia, tudo absorvido, at mesmo o autor do sistema. O pensador s se pensa completamente ao destruir sua existncia. Segundo Jean Wahl, o que est no fundo do pensamento de Kierkegaard um sentimento intenso de existncia naquilo que ela tem de irracional. A afirmao da identidade entre ser e pensamento , para Kierkegaard, a expresso do fato de que o pensamento abstrato destri a existncia. Em seus termos, usa-se na Lgica o negativo como fora propulsora que tudo pe em movimento, dado que na Lgica necessrio o movimento, no importa de que modo, custe o que custar, por bem ou por mal (KIERKEGAARD, 2007 [1844], p. 18).

Pode-se encontrar no texto de Hegel, respaldo para tal observao: Esse meio-termo , por sua vez, uma essncia consciente, pois um agir que mediatiza a conscincia enquanto tal; o contedo desse agir o aniquilamento (HEGEL, p. 169). Aniquilamento uma palavra que descreve bem a violncia da mediao. Kierkegaard postula que, na lgica, nenhum movimento se tornar devir seno pela fora, tal como o faz Hegel. O devir no pode ser tratado como uma parte da lgica. O movimento inserido na lgica traz a idia de passagem, de negao, de mediao que pretende explicar tudo, mas que no , de modo algum, explicada. Para ele, Hegel fora o movimento que no deveria haver no campo da lgica.

A esse respeito, Lacan comenta que na dialtica hegeliana no tem outra mediao seno a da violncia (LACAN, p.34). O Conceito de angstia, aquilo que no engana, traz a objeo irredutvel ao sistema hegeliano. O que est no fundo da polmica de Kierkegaard contra o hegelianismo so as idias de subjetivo, de nico, de segredo, de instante, de dialtica qualitativa e de existncia. Para Kierkegaard, impossvel ser um existente sem provar a paixo, tal como enuncia nas Migalhas filosficas que um amante sem paixo um tipo medocre. Para Hegel. o anti-humano, o animalesco, consiste em ficar no estgio do sentimento, e em s poder comunicar-se atravs do sentimento (HEGEL, p.68).

O essencial do pensamento de Hegel se resume na idia de Aufhebung. O essencial da idia de Kierkegaard se concentra na manuteno do paradoxo. Hegel levou o mais longe possvel a racionalizao do cristianismo. Kierkegaard levou to longe quanto possvel a irracionalizao do cristianismo. A encarnao, para Hegel, o smbolo da homogeneidade entre o humano e o divino; para Kierkegaard, ela a marca da heterogeneidade; ela no smbolo, mas escndalo. Tudo era imanncia no hegelianismo.

Para Kierkegaard, todo lao com a imanncia rompido pelo pecado e tambm pela graa. Entre o tempo e o eterno subsiste sempre o pecado e a graa. Assim, possvel dizer que a dialtica qualitativa de Kierkegaard conserva sempre o sentimento de pecado. O pecado tratado por Kierkegaard no Conceito de Angstia. Contudo, tal como o pecado, a angstia tambm no pode ser um conceito, pois um conceito um objeto de estudo para uma cincia. Nem o pecado, nem a angstia tm lugar na cincia. O pecado e a angstia so da ordem do existente. O pecado no um objeto de pensamento, ele individual, positivo, transcendente, descontnuo. O pecado positivo e no pode ser concebido; ele transcendente e se apresenta em ruptura com a imanncia. Sua descontinuidade se mostra pela via do salto. Segundo Kierkegaard, toda coisa nova surge pela via do salto e de maneira abrupta.

O cerne do Conceito de Angstia a anlise da histria de Ado e Eva; tal como a cada gerao, esta se renova. Trata-se de uma reflexo sobre a falta, uma releitura da histria do pecado original. Segundo Kierkegaard, Ado designa a si mesmo, alm do gnero humano; de tal modo que o pecado entra no mundo a cada gerao. Contudo, Ado j habitava o pecado sem o saber e ele se descobre como pecador quando fala



consigo mesmo. D-se, ento, a diviso subjetiva de Ado na tomada do significante. Segundo Kierkegaard, bastante, portanto, imaginar que Ado falou consigo mesmo. Essa suposio elimina a imperfeio da narrao que faz com que algum fale a Ado daquilo que este no compreende (KIERKEGAARD, p.54).

O centro do problema do pecado original a angstia. A angstia aparece como conseqncia das diferentes formas que a negatividade atravessa a queda do pecado original. A angstia se determina dialeticamente, seguindo direes imanentes. Ela opera quando,

No Gnesis, Deus declara a Ado: Porm, os frutos da rvore do Bem e do Mal no comers, est claro que, no ntimo, Ado no entendia essa frase; porque, como poderia entender a diferena entre o bem e o mal se a diferenciao apenas se fixou aps ter sido saboreado o fruto? (KIERKEGAARD, p.53).

A condio original do homem a inocncia ou, ainda, ignorncia. Essa ignorncia um estado, uma qualidade maior que o saber, pois ela no pode ser suprimida pelo pecado. Para cada homem, como para Ado, Kierkegaard concebe um estado pr-admico, esse estado no qual ressoa a interdio divina. A ignorncia do significado de bem e mal tornou-o sensvel angstia ligada a essa designao. A partir desse momento sua inocncia lhe revelada, mas como falta de saber. A falta do pecado original a transcendncia do mistrio primeiro. Antes de se descobrir como pecador, ele se descobre como inocente.

Nem inocncia, nem pecado preexistem intruso do significante. A partir da intruso, Ado se descobre como inocente, mas uma inocncia que se apresenta como ignorncia ou falta de saber. Da, ele experimenta a angstia e, finalmente, se torna culpado. A proibio deixa inquieto Ado, porque nele desperta a possibilidade da liberdade (p.53). Ado no compreende o contedo da sano que lhe feita. somente certa possibilidade de poder que lhe apresentada como falta para a qual no existe nenhuma representao. H apenas a conscincia de uma possibilidade angstiante de poder, sem que ele saiba o que significa esse poder. H apenas o sentimento de alguma coisa que perturba e da qual ele se sente culpado.

A liberdade desperta a angstia, pois ela cativa de si mesma como possibilidade que atrai e repele. Na angstia se apresenta uma potncia do nada. Livre, ento culpado, prisioneiro da alternativa significante. A angstia a vertigem da liberdade. Ela a liberdade cativa dela mesma. A possibilidade de alguma coisa que , e ao mesmo tempo no , passa a ser sentida como aquilo que atrai e repulsa. Segundo Kierkegaard, a angstia simpatia antiptica e antipatia simptica. Ela essencialmente ambivalente e se apresenta como um sentimento no sistemtico.

A angstia o limite entre a inocncia e o pecado, pois o pecado se d no instante em que angstia. No fenmeno da angstia se revela a positividade do nada. A angstia se apresenta no instante em que ainda no se culpado e, contudo, j se perdeu a inocncia. O futuro culpado inocente e o inocente se sente culpado. O devir desconhecido vivido pelo homem como angstia. Todo homem sente angstia depois de Ado, pois ele o representante de toda a espcie humana. O pecado individual e ao mesmo tempo um trao que marca a espcie humana.

O fenmeno da angstia, graas sua ligao com o nada, mostra como o ato humano no se explica nem pela necessidade, nem por uma liberdade abstrata, mais abstrata ainda que a necessidade; graas a seu carter de ambigidade que prepara uma ruptura, explicita a mistura de liberdade e determinao que est no pecado e por mostrar como o pecado , ao mesmo tempo, individual e universal. O fato de a angstia preceder e seguir o pecado permite encontrar na prpria angstia um elemento comum entre o pecado original e os outros. Para Kierkegaard, todo homem angstiado, mesmo


Cludia Murta 67

o mais feliz de todos. A Angstia caracterstica humana. Quanto maior a sua angstia, mais humanizado se torna o homem.

O pecado hereditrio designa a incidncia do significante no destino do ser falante, paralelamente, seu ponto de perda. Ao comentar a questo do pecado e da queda a partir do texto de Kierkegaard, Lacan enuncia:

O lugar da alma deve ser situado no nvel do a residual, do objeto cado. No tem concepo viva da alma, com todo o cortejo dramtico em que essa noo aparece em nossa cultura, seno acompanhada, do modo mais essencial, da imagem da queda. Tudo o que articula Kierkegaard apenas referncia a esses fundamentos estruturais (LACAN, p. 193).

O comentrio de Lacan indica que a imagem da queda proposta por Kierkegaard ligada formao do objeto a, base de toda a sua articulao no Seminrio A Angstia. Lacan interpreta a estrutura da angstia como potncia da falta, como ato que atesta que a falta se d, quando no lugar do objeto a do desejo aparece algo.

Quando a angstia revivifica a dialtica do desejoA articulao de Lacan no Seminrio A Angstia trata da constituio do desejo,

que j no a mesma da doutrina clssica de Lacan. At esse seminrio, Lacan prope que o desejo est sempre estruturado pela intencionalidade. O modelo que at ento estruturava a cena do desejo para Lacan a de um desejo que tem o objeto diante de si. o desejo fascinado pelo objeto. Nesse sentido, a dialtica hegeliana fundamental para a proposio lacaniana do desejo. Em suas palavras: em Hegel, concernente dependncia de meu desejo em relao ao desejante que o Outro, eu me relaciono, da maneira mais certa e mais articulada, ao Outro como conscincia. O Outro aquele que me v (LACAN, p. 33). a fascinao do meu desejo diante do desejo do Outro, j que o Outro est diante de mim e me v. Nesse sentido, o desejo articulado com outro desejo, o desejo do Outro.

No Seminrio A Angstia, Lacan recusa essa estrutura intencional. Mesmo mantendo sua formulao de que o desejo do homem o desejo do Outro, ele enfatiza que o Outro interessa meu desejo na medida do que lhe falta e que ele no sabe (p.33). A angstia funciona como um operador que produz o objeto causa do desejo. Procurar a causa do desejo pelo vis da angstia , para Lacan, o caminho que revivifica toda a dialtica do desejo (LACAN, p. 265), pois s esse caminho lhe permite introduzir a novidade da funo do objeto na relao com o desejo, que o retira do campo da relao significante que mortifica o desejo. Da luta de puro prestgio que engendra um desejo fascinado e mortificado pelo significante, Lacan passa a orientar o caminho do desejo pela via da angstia que o enlaa ao corpo vivo.

Por no enfatizar o desejo que possui um objeto diante de si, o desejo que, em suas palavras, uma iluso (p. 257), Lacan se encaminha para o campo da angstia que, no seu entender, aquilo que no engana. Tudo que da ordem do imaginrio passvel de engano. Para Lacan, a angstia real e no engana. Desse modo, o objeto que causa o desejo no est diante do desejo, e sim atrs dele. A proposta de Lacan no Seminrio A Angstia aponta para um estatuto do objeto anterior ao desejo. A angstia lacaniana uma via de acesso ao objeto a, que causa o desejo. Nesse sentido, a angstia est aqum do desejo. Para ele, o verdadeiro objeto causa do desejo est atrs e no na frente do desejo.

Segundo Miller, em seu comentrio do texto lacaniano, deve-se distinguir o objeto-meta do objeto-causa. O objeto-meta est diante do desejo e o objeto-causa est atrs, na causa do desejo. O estatuto tico do objeto-meta aponta para o amor e para o agalma, j o estatuto do objeto-causa aponta para a angstia e para o palea. Desde esta



perspectiva, o desejo se concebe com um objeto cado, cortado, caduco, separado, cedido e cujo paradigma o objeto a (MILLER, p. 75). O objeto como agalma a maravilha que ilude; perspectiva do objeto apontada por Lacan nos seminrios anteriores. O objeto como palea o resto decadente; o rgo desfalecido, cuja detumescncia o paradigma.

Sendo assim, nesse momento, o que acontece no pensamento lacaniano consiste numa desvalorizao do desejo; numa degradao do desejo como potncia. Por isso Hegel no mais a referncia, j que o desejo como potncia est desvalorizado. A Aufhebung se revela impotente diante desse objeto que no se presta dialtica e que se apresenta como resto. Lacan recorre angstia como uma via alternativa Aufhebung para evidenciar aquilo que escapa Aufhebung, aquilo que no significvel, que constitui resto de toda significao. A grande referncia desse seminrio passa ser Kierkegaard, que faz da queda a condio humana. No se trata mais de mediao no sentido hegeliano, mas de queda no sentido kierkegaardiano; tanto que, na ltima frase do Seminrio, Lacan enuncia que: convm asseguradamente que o analista seja aquele que, pouco que seja, por qualquer vis, por qualquer borda, tenha feito entrar seu desejo nesse a irredutvel para oferecer questo do conceito de angstia uma garantia real.

Notas1. Doutora em Filosofia pela Universit de Paris VIII, Professora Associada do Departamento de Filosofia e do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da UFES. Email: [email protected]

Referncias Bibliogrficas

HEGEL, G.W.F. (1807) Fenomenologia do Esprito. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.KIERKEGAARD, S. (1844) O Conceito de Angstia. So Paulo: Hemus, 2007.________________. (1844) Migalhas Filosficas. Petrpolis: Vozes, 2008.LACAN, J. (1962-63) Le Sminaire : Livre X Langoisse. Paris: Seuil. 2004.LIMA VAZ, H. C. A significao da Fenomenologia do Esprito. In: HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Esprito. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.MILLER, J.-A. La angstia Introduccin al Seminario X de Jacques Lacan. Madrid :

Lpez de Hoyos. 2007.WAHL, J. tudes Kierkegaardiennes. Paris: Vrin, 1974.


Angus Tia Desejo

Documents

Transcript of Angus Tia Desejo