Anexo - Traço e prosa

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Publicação inédita no campo editorial do país, o livro reúne depoimentos, em primeira pessoa, de doze dos mais importantes ilustradores de livros infantojuvenis brasileiros. Foram mais de sete anos de trabalho. Os ilustradores Odilon Moraes e Maurício Paraguassu e a educadora Rona Hanning passaram por três estados do Brasil com uma difícil missão: entrevistar doze ilustradores de destaque no mercado nacional e internacional e montar, a partir dos depoimentos coletados, um panorama da história da edição de livros infantojuvenis no país. E não de qualquer tipo de livro, mas sim dos livros ilustrados. O resultado desta empreitada está em Traço e prosa. Mais do que uma obra que se propõe apresentar a biografia desses artistas, é uma referência para se discutir o conceito de livro ilustrado, a partir daqueles que o produzem.

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traço e prosaentrevistas com ilustradores de livros infantojuvenis por odilon moraes, rona hanning e maurício paraguassu

Quarta capa: Edmir PerrottiCapa: brochura com orelhasMiolo: 4 coresFormato: 24 x 28 cmPáginas: 256Ilustrações: 292Tiragem: 3 000Preço: R$ 49,00ISBN: 978-85-405-0223-9

Page 3: Anexo - Traço e prosa

Entrevistas com:Eliardo FrançaRui de Oliveira

Eva FurnariAlcy Linares

Ricardo AzevedoHelena Alexandrino

Nelson CruzMarilda Castanha

Graça LimaMariana Massarani

Roger MelloAngela Lago

1514 |

A minha relação com o desenho é uterina. Sou menino do interior, nasci em

Santos Dumont, que é uma cidade perto de Juiz de Fora [mg], onde morei até

os dezessete anos. Quando me lembro da minha infância, o desenho está

presente da mesma maneira que as brincadeiras de mocinho e bandido, de

pique, carrinho de rolimã, bolinha de gude e atiradeira. A gente brincava na rua

mesmo, porque ali os únicos bandidos éramos nós, brincando de bandido e

mocinho. Então ficava na rua e a mãe chamava: ‘Hora do almoço! Vem se arru-

mar para a escola!’, o terror da hora era a escola, não existe nada mais terrível

do que o menino brincando na rua e a mãe chamar para tomar banho! É uma

coisa diabólica, não é?”

eliardofrança

32 |

A mais remota lembrança que tenho de mim mesmo sempre foi com papel e

lápis na mão, relação que se prolonga até hoje, e espero que seja sempre assim.

O desenho sempre teve um significado de concórdia comigo mesmo, muito

antes de se tornar uma atividade profissional. Sou filho de paraenses, nasci

no Rio de Janeiro, no bairro de São Cristóvão. Em casa, exceto meus irmãos, to-

dos falavam com outro sotaque, tinham outra cultura e uma explícita nostalgia.

Morávamos num bairro isolado, que hoje em dia praticamente não existe mais.

Infelizmente, meu pai morreu muito cedo, e meus dois irmãos, por motivo de

sobrevivência da família, tiveram que sair e trabalhar. Por ser o mais novo, fiquei

só com a minha mãe. Toda a minha adolescência foi triste e solitária. Meu veí-

culo de expressão, há muito, já era o desenho. A leitura e o desenho, sempre e

até hoje, expressaram a minha necessidade de ficar comigo mesmo.”

rui de oliveira

48 |

Eu me lembro bem do momento em que tudo começou. Eu devia ter seis ou

sete anos quando desenhei um ‘homem-palito’ pela primeira vez. Na hora

pensei: ‘Esse homem está muito magro’; então dei-lhe camisa, calça, sapato e

fiz uma grande descoberta: ‘Eu sei desenhar!’. Pouco tempo depois eu já tinha

pretensões bem audaciosas, olhava para a pintura de uma natureza-morta nos

corredores da escola e tinha certeza: ‘Se tivesse tinta, eu poderia fazer isso…’

[risos], que louca!”

evafurnari

68 |

Eu sou de São Paulo. Quer dizer, aprendi a andar em São Paulo. Nasci no inte-

rior do Estado, mas vim para São Paulo ainda de colo. Nasci na região de Bauru.

Eu sempre desenhei, como acredito que qualquer criança desenhe, mas algu-

mas param, não sei por quê. O que eu posso dizer é que eu não parei. Talvez por

causa do estímulo que eu tinha, porque os adultos ao meu redor gostavam de

me ver desenhando e me ‘estimulavam’: ‘Ah, mas olha como você está dese-

nhando, falta o pé’. Eu estava desenhando e nem tinha chegado no pé. Ou, às

vezes, começava pelo pé e falavam: ‘Mas está faltando o braço!’.”

alcylinares

Venho de uma casa na qual a literatura tinha grande valor. Meu pai era professor

universitário e autor de livros didáticos de geografia. Desde moleque, sempre

tive muito contato com livros. Gostava de desenhar, mas, talvez pelo ambiente

voltado a livros e textos, nunca valorizei o desenho, achava algo sem impor-

tância. O colégio em que estudei reafirmou essa espécie de desprezo pelo

desenho. Vivia desenhando no caderno inteiro, levava bronca na escola, mas

eu mesmo não notava com clareza que desenhar era uma coisa importante

para mim. Aos dezessete anos, li na revista Humboldt, de intercâmbio cultural

Brasil-Alemanha, Três contos para criança, de um autor suíço chamado Peter

Bischel, e fiquei fascinado! Pensei: ‘Puxa, gostaria de escrever como esse cara!’.

Na escola, fazia as redações e tirava boas notas, e isso era algo de muito valor,

porque de resto eu era mau aluno. A leitura dos textos do Bischel foi como uma

janela que se abriu para mim. Senti que ele falava num patamar muito interes-

sante: era para criança, mas ao mesmo tempo não era, tratava de temas com-

plexos de uma forma poética e acessível, achei riquíssimo! Foi esse autor que

me levou a pensar em literatura infantil. Percebi também que ela me permitiria

escrever e desenhar. Nessa época, motivado pela leitura dos contos de Bischel,

escrevi meu primeiro texto para valer, ao qual dei o nome de Um autor de con-

tos para crianças. Muitos anos depois, foi publicado como Um homem no só-

tão, meu segundo livro. Lembro que parti de indagações como: ‘O que é ser um

autor? O que é escrever uma história? O que é realidade e o que é fantasia?’.”

ricardoazevedo

109108 |

Tudo começou assim: as minhas primeiras sensações em relação à imagem

vêm da infância. Quando eu era menina e ficava emocionada, gostava de cor-

rer. Se ficava triste, se ficava alegre, se ficava com medo, desandava a correr.

Quando você está correndo, o mundo é outro. No bairro onde eu morava, Vila

Madalena, em São Paulo, tinha muita rua de terra, aquele vermelho ferroso, as

árvores que passavam por mim formavam outra realidade, eu ficava muito feliz

com aquilo e me perdia naquela paisagem. Sempre fui muito magra, achava até

que ia sair voando. Mas, quando fiz quatro anos de idade, fiquei muito doente e

imobilizada na cama durante um ano. Minha mãe era dona de casa, minhas tias

moravam conosco, e eu ficava num colchãozinho na cozinha vendo-as cozi-

nhar, lavar, passar, bordar, costurar. Aquelas mulheres o tempo todo ali, traba-

lhando, trabalhando, era uma coisa de conto de fada. Eu não sabia ler, mas elas

me davam uns livrinhos ilustrados, aqueles de jornaleiro, e eu ficava olhando,

olhava também as palavras; tanto que, quando entrei na escola, já estava muito

familiarizada com as letras.”

helenaalexandrino

127126 |

Quando criança, nos anos 1960, lembro que minha mãe encerava a casa e

depois cobria o piso com folhas de jornal para não sujar. A gente pisava nos

jornais e, um dia, descobri que estava pisando em desenhos. Eram cartuns, na

verdade, eram páginas da revista O Pasquim – que meu irmão comprava, lia,

ria às gargalhadas, mas não tinha o cuidado de preservar. Um dia olhei para o

chão e vi nos jornais desenhos do Henfil, do Ziraldo, do Jaguar. Aquilo me fasci-

nou. Eu estava na escola primária e já desenhava. Que eu me lembre, desenho

desde os cinco, seis anos. A descoberta dos desenhos, a minha timidez e uma

gagueira por conta… por conta da timidez. Não havia outra alternativa para

mim. Até na escola, sempre opressora, os cadernos eram todos desenhados.

Uma escola pública aterrorizante de periferia do bairro Nova Cintra, em Belo

Horizonte. Lá, havia dois policiais que tomavam conta da escola e para quem

as professoras entregavam os meninos que faziam bagunça nas salas. Eles

castigavam os meninos batendo com o cassetete ou com a lateral da espada.

Também obrigavam os meninos a fazerem exercícios físicos no pátio para que

todos vissem. Ou seja, o que a gente chama hoje de tortura, já havia na escola

que eu frequentava…”

nelsoncruz

147146 |

Somos três filhas. Eu sou a do meio. Morávamos em Santa Efigênia [bairro de

Belo Horizonte] com um tio, três tias, e vovó, mãe da mamãe. Era uma casa

meio surrealista. Se o cachorro estava nervoso, colocavam-no dentro de uma

gaiola [risos]. Coisas muito inesperadas aconteciam. Uma casa com imagens

meio malucas. Papai surpreendia sempre. Ele gostava de criar galinhas, tinha

um galinheiro em casa. Então colhia os ovos e, para garantir que os mais velhos

fossem consumidos primeiro, ele numerava cada um. Guardo a imagem do

pente de ovos, com a letra dele e os números escritos a lápis. Quando li Cem

anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez, eu não acreditava. Era como lá em

casa, até a tesoura velha daquela avó! Mamãe era dona de casa e costureira. Pa-

pai, funcionário público. Na minha infância, o bairro ainda tinha resquícios de

uma cidadezinha do interior. Não tínhamos grades nas janelas nem muro alto.

Engraçado que, para ir ao centro de Belo Horizonte, falávamos: ‘Vou na cidade’.

E, no meio disto tudo, surgiu o interesse pelo desenho e pela pintura. ”

marildacastanha

165164 |

Quando me perguntam sobre como comecei a desenhar, eu conto uma histó-

ria. A minha mãe não gostava que eu desenhasse nas paredes da casa, e eu ado-

rava fazer isso. Então, ela me castigava e, para fugir dela, eu tinha que arranjar

uma saída para aquela situação. Naquela época, não existia essa parafernália

de canetinhas de hidrocor, só tinha giz. Na casa da minha mãe, tinha uns mó-

veis imensos, escuros, e eu entrava embaixo do móvel e desenhava, deitada,

no fundo do móvel todo: era um quadro negro [risos].Eu ficava lá com lápis de

cera e giz, só que eu nunca tive consciência disso. Eu era muito pequena, sumia

por tanto tempo, e a minha mãe não sabia onde eu estava. Uma vez ela chamou

o Corpo de Bombeiros porque achou que eu tinha sido sequestrada. E onde

é que eu estava? Eu tinha entrado no armário para desenhar por dentro, que

também era preto, e dormi… dentro do armário!

Quando eu fiquei adulta e fui morar sozinha, minha mãe me deu a mesa da

casa dela. A gente foi botar a mesa no caminhão e, quando viramos, eu vi o desenho,

e lembrei: ‘Ah, eu fazia isso!’. Aí fomos olhar… todos os móveis eram desenhados!”

graçalima

183182 |

Quando eu era criança, queria ser pintora. Ganhei um cavalete e decidi ser pin-

tora: ‘Não pode, não dá para viver de pintura’, me diziam. O mesmo com a gra-

vura, que eu adorava. Aí, já adulta, comecei a ter uns clientes que falavam: ‘Ado-

rei, só que eu queria em outra cor’. Também fiz joias, mas, vender para perua? Eu

queria que o meu trabalho fosse mais útil. E de livro eu sempre gostei. Mamãe

comprava muito livro. De moderno, tinha O menino do dedo verde, do Maurice

Druon, O menino mágico, da Rachel de Queiroz com ilustração do Gian Calvi,

que era modernão, tinha a Maria Clara Machado, que fez O cavalinho azul – era

linda aquela ilustração. Mamãe também comprava livro importado, tinha uma

livraria que fazia umas promoções de um monte de livros norte-americanos, de

capa dura… Meu avô também trazia uns livros, era uma briga! Nós éramos em

quatro irmãos, além do meu pai e da minha mãe. Quem leria primeiro o Tintin, o

Asterix? Era o máximo. Os livros do Monteiro Lobato li da edição da minha mãe

de 1937, as ilustrações eram lindas, uns eu achava ótimos e outros eram muito

chatos, como o da gramática… Eu gostava do Reinações de Narizinho, Caçadas

de Pedrinho, Viagem à Lua, o resto eu achava meio cacete, mas os desenhos

eram legais. Também tinha uns livros cafonas, mas que eu amava, da Condessa

de Ségur, Os desastres de Sophia, cheio de moral, mas também com desenhos

muito legais…”

marianamassarani

201200 |

Não vejo diferença entre a imagem e a palavra. Imagem e palavra não se dis-

sociam. A minha relação com a imagem é verbal, assim como a minha relação

com a palavra começa pela espacialização dessa palavra em si. Penso sempre

numa imagem que conta alguma coisa. É uma busca da narrativa e é um exer-

cício plástico. É sempre um exercício plástico-narrativo. Meu desenho sempre

foi uma maneira de expressão, desde criança. Comecei desenhando bicho e,

depois, gente. De um modo ou de outro, a imagem, a letra, sempre estavam

ligadas a esse desenho. Assim eu comecei a escrever, a aprender a escrever a

letra, que tem realmente a mesma função de imagem que o desenho.”

rogermello

223222 |

Nasci em Belo Horizonte, minha mãe é filha de imigrante italiano e meu pai é

de família de fazendeiros de Bom Despacho. Minha mãe nasceu no Brasil, o

pai italiano e a mãe de origem portuguesa. Meu lado mineiro é o mais forte.

Eu passava as férias e os finais de semana em fazenda, às vezes com o meu

avô escutando cantorias, desafios e casos. Éramos seis irmãos.

Meu pai tinha muita expectativa em relação aos estudos de cada um dos

filhos e nos incentivava a superar os limites e as dificuldades. Tive desde pe-

quena uma biblioteca formidável em casa. Meu pai pôs à disposição da gente

coisas que só eram comuns em grandes bibliotecas, enciclopédias diversas,

inclusive a Espassa, os clássicos da literatura e bonitas coleções de livros sobre

arte. Guardo alguma coisa desta época como A divina comédia e Dom Quixote,

ilustrado por Gustave Doré, cujo trabalho me impressionava.”

angelalago

Page 4: Anexo - Traço e prosa

Entrar em contato com artistas que vêm construindo um fenômeno cultural novo e fundamental no país é oportunidade rara e feliz para se conhecer parte da história do livro infantil brasileiro e seus destinos nas últimas quatro décadas. Da mesma forma, possibilidade especial de mergulhar nos mistérios e nas grandezas dos atos de criação.”

edmir perroti em texto de quarta capa de traço e prosa

Page 5: Anexo - Traço e prosa

ilustradores contam a história por trás de suas histórias

Publicação inédita no campo editorial do país reúne

depoimentos, em primeira pessoa, de doze dos mais

importantes ilustradores de livros infantojuvenis brasileiros.

Foram mais de sete anos de trabalho. Os ilustradores Odilon Moraes e Maurício Paraguassu e a educadora Rona Hanning passaram por três estados do Brasil – São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais – com uma difícil missão: entrevistar doze ilustradores de destaque no mercado nacional e internacional e montar, a partir dos depoimentos coletados, um panorama da história da edição de livros infantojuvenis no país.

As entrevistas foram realizadas no ateliê de cada ilustrador. O caráter informal dos encontros permitiu que eles estivessem à vontade para debater questões importantes de seu processo de criação artística e relembrar a carreira. Mesmo após editados, os textos guardam o tom de prosa do momento em que foram coletados. No espaço de intimidade dos artistas, os entrevistadores abordaram desde a relação deles com desenho e com livros na infância até reflexões mais profundas sobre o trabalho já consolidado – e, em muitos casos, com reconhecimento internacional.

Neste processo, cada ilustrador mergulhou em uma pesquisa pessoal em busca de seu próprio traço, de sua própria história. Helena Alexandrino, por exemplo, contou que, quando menina, gostava de correr e se perdia na paisagem que passava enquanto corria. Nelson Cruz relembrou que a pintura o libertou de uma gagueira. Rui de Oliveira, ainda menino, descobriu no desenho um veículo de comunicação para driblar sua timidez. Já Ricardo Azevedo começou a ilustrar tardiamente, após escrever seus primeiros livros. Graça Lima, quando criança, se escondia dentro do armário para desenhar... e dormia por lá mesmo.

Page 6: Anexo - Traço e prosa

UM LIVRO SOBRE LIVROS

O maior desafio na concepção gráfica de Traço e prosa foi encontrar uma linguagem que acolhesse a variedade de traços e de cores das ilustrações e, mesmo assim, tivesse personalidade e clareza. Linhas coloridas identificam cada entrevista, facilitando o reconhecimento do artista pelo leitor.

9190 |

Fale um pouco sobre sua formação como ilustrador.

Quando terminei o colegial, eu pretendia fazer jornalismo. Me inscrevi no curso de comunicações da Faculdade Armando Álvares Penteado [Faap] por-que tinha curso noturno e eu precisava trabalhar. Acabei fazendo cursinho na própria Faap, mas, na época, tanto o cursinho como a própria faculdade, recém-inaugurada, eram muito fracos. Então, eu e outros colegas, que hoje são grandes amigos, decidimos, de uma hora para a outra, fazer artes plás-ticas. Este curso funcionava no mesmo prédio e era muito mais bem estru-turado. Tive o privilégio de ter aulas com Vilém Flusser, Herbert Duschenes, Donato Ferrari, Mario Ishikawa, Julio Plaza, Haron Cohen, Antônio Carelli, Raphael Buongermino e Walter Zanini. Foi um curso excelente! Continuei escrevendo mas, durante esse período, mergulhei de cabeça nas artes vi-suais, no desenho, na história da arte, nas questões de estética. Vale no-tar, porém, que não se falava em ilustração na faculdade. Lá, ela também era considerada algo menor. Mas eu tinha clareza de que queria ilustrar os meus textos. Nunca me interessou ser pintor ou programador visual. Eu queria aprender a desenhar para fazer a ponte com os meus textos.

De certa forma, seu primeiro texto é sobre a dificuldade de escrever…

Sim, e também sobre certas questões éticas envolvidas no ato de escrever. Por exemplo, o autor da minha história parte de prejulgamentos e de estereótipos para criar suas personagens que, então, saem furiosas da cabeça dele, discordam, fazem reclamações e exigem mudanças no texto. Preciso dizer que o desfecho da primeira versão dessa história era diferente, bem mais dramático, coisa de jovem. Era o seguinte: cansado de ter que lidar com personagens que saíam de sua cabeça, o protago-nista acha que também deve estar na cabeça de seu autor, e sente von-tade de sair para, a exemplo das personagens de seu texto, fazer as suas reclamações. Vê uma janela aberta, acha que é a saída da cabeça de seu autor, faz uma lista de reclamações, pula e morre. O meu Um autor de contos para crianças tinha, portanto, um final típico de um cara de dezessete anos, cheio de inquietações.

Bischel, segundo você, escrevia para crianças e adultos. Fale um pouco

sobre isso.

Não acredito que exista uma literatura exclusivamente para crianças, salvo se pensarmos em livros didáticos e afins. Existe uma grande e diver-sificada literatura que se pretende popular e, dentro dela, muitos livros são também acessíveis e conseguem interessar às crianças. Estes po-dem ser considerados literatura infantil. Meu interesse por Peter Bischel surgiu justamente por causa disso. Seus textos não eram escritos exclu-sivamente para crianças, mas também para elas. E traziam questões capazes de interessar a todos nós. Para quem escreve ou ilustra, pensar nesses termos é muito mais rico e instigante do que imaginar que está se dirigindo exclusivamente a crianças. Em suma, creio que uma lite-ratura popular pode ser mil vezes mais complexa e cheia de possibili-dades do que a literatura apenas infantil. Aliás, cabe a pergunta: esse

“infantil” diz respeito a que crianças? Pessoas de dez anos de idade, por exemplo, têm vivências, culturas, crenças, marcas familiares e caracte-rísticas pessoais que podem ser muito diferentes. Dizer que crianças da mesma idade formam um grupo homogêneo de pessoas é simplesmente uma bobagem.

Ricardo Azevedo

Um homem no sótão [1982]

São Paulo: Ática, 2001.

Esta é uma edição reilustrada

de seu segundo livro, escrito

em 1982, cuja história fala

sobre um autor de livros para

crianças que é visitado por

suas próprias personagens,

que pedem alterações no

enredo. Ricardo Azevedo

gosta de brincar com

elementos de uma cena que

reaparecerão em outros

momentos.Nesta ilustração,

a imagem do quadro no livro

impresso servirá de cenário

para a ilustração de outra

página da mesma obra.

Imagens representativas da carreira de cada ilustrador

legendas comentadas pelos entrevistadores

reprodução de página da entrevista de ricardo azevedo

cores indentificam os entrevistados

estrutura de perguntas e respostas

Page 7: Anexo - Traço e prosa

reprodução de página da entrevista de eliardo frança

Para acompanhar a prosa, foram selecionadas oito imagens representativas dos principais livros de cada ilustrador. Dispostas em formato grande, algumas vêm acompanhadas de legendas com curiosidade sobre a técnica ou seu contexto de produção. Além disso, ao final de cada entrevista, uma dupla contendo páginas abertas de quatro livros fotografados permite ao leitor observar como a ilustração se relaciona com o texto e com o projeto gráfico das obras.

LEIA A SEGUIR AS ABERTURAS DE ALGUMAS DAS ENTREVISTAS

3130 |

Clave de lua é um livro no qual poemas de Leo Cunha são ilustrados com detalhes de pinturas do portfólio

de Eliardo.

Mas sua parceira na grande maioria dos livros é Mary França, cujo texto simples e bem construído,

aliado a imagens limpas e fluídas de Eliardo, resultam em obras pensadas para leitores iniciantes, nas quais

a imagem e a palavra caminham juntos. É o caso das coleções Os Pingos, Gato e Rato e do título Foge, tatu!.

Já em Tapas e beijos da comadre onça, para público jovem, as ilustrações feitas de pinceladas densas e

expressivas marcam alguns pontos específicos da narrativa.

Leo Cunha [texto]

Eliardo França [ils.]

Clave de lua

São Paulo: Paulinas, 2001.

Mary França [texto]

Eliardo França [ils.]

Nem aqui, nem ali

São Paulo: Ática, 1994.

Mary França [texto]

Eliardo França [ils.]

Foge, tatu! [1986]

Porto Alegre: Mercado

Aberto, 1995.

Mary França [texto]

Eliardo França [ils.]

Tapas e beijos da comadre

onça – Um passeio pelo folclore

São Paulo: Global, 2006.

Páginas internas dão uma amostra da trajetória do traço de cada um dos entrevistados

Page 8: Anexo - Traço e prosa

223222 |

Nasci em Belo Horizonte, minha mãe é filha de imigrante italiano e meu pai é

de família de fazendeiros de Bom Despacho. Minha mãe nasceu no Brasil, o

pai italiano e a mãe de origem portuguesa. Meu lado mineiro é o mais forte.

Eu passava as férias e os finais de semana em fazenda, às vezes com o meu

avô escutando cantorias, desafios e casos. Éramos seis irmãos.

Meu pai tinha muita expectativa em relação aos estudos de cada um dos

filhos e nos incentivava a superar os limites e as dificuldades. Tive desde pe-

quena uma biblioteca formidável em casa. Meu pai pôs à disposição da gente

coisas que só eram comuns em grandes bibliotecas, enciclopédias diversas,

inclusive a Espassa, os clássicos da literatura e bonitas coleções de livros sobre

arte. Guardo alguma coisa desta época como A divina comédia e Dom Quixote,

ilustrado por Gustave Doré, cujo trabalho me impressionava.”

angelalago

Page 9: Anexo - Traço e prosa

223222 |

Nasci em Belo Horizonte, minha mãe é filha de imigrante italiano e meu pai é

de família de fazendeiros de Bom Despacho. Minha mãe nasceu no Brasil, o

pai italiano e a mãe de origem portuguesa. Meu lado mineiro é o mais forte.

Eu passava as férias e os finais de semana em fazenda, às vezes com o meu

avô escutando cantorias, desafios e casos. Éramos seis irmãos.

Meu pai tinha muita expectativa em relação aos estudos de cada um dos

filhos e nos incentivava a superar os limites e as dificuldades. Tive desde pe-

quena uma biblioteca formidável em casa. Meu pai pôs à disposição da gente

coisas que só eram comuns em grandes bibliotecas, enciclopédias diversas,

inclusive a Espassa, os clássicos da literatura e bonitas coleções de livros sobre

arte. Guardo alguma coisa desta época como A divina comédia e Dom Quixote,

ilustrado por Gustave Doré, cujo trabalho me impressionava.”

angelalago

Page 10: Anexo - Traço e prosa

201200 |

Não vejo diferença entre a imagem e a palavra. Imagem e palavra não se dis-

sociam. A minha relação com a imagem é verbal, assim como a minha relação

com a palavra começa pela espacialização dessa palavra em si. Penso sempre

numa imagem que conta alguma coisa. É uma busca da narrativa e é um exer-

cício plástico. É sempre um exercício plástico-narrativo. Meu desenho sempre

foi uma maneira de expressão, desde criança. Comecei desenhando bicho e,

depois, gente. De um modo ou de outro, a imagem, a letra, sempre estavam

ligadas a esse desenho. Assim eu comecei a escrever, a aprender a escrever a

letra, que tem realmente a mesma função de imagem que o desenho.”

rogermello

Page 11: Anexo - Traço e prosa

201200 |

Não vejo diferença entre a imagem e a palavra. Imagem e palavra não se dis-

sociam. A minha relação com a imagem é verbal, assim como a minha relação

com a palavra começa pela espacialização dessa palavra em si. Penso sempre

numa imagem que conta alguma coisa. É uma busca da narrativa e é um exer-

cício plástico. É sempre um exercício plástico-narrativo. Meu desenho sempre

foi uma maneira de expressão, desde criança. Comecei desenhando bicho e,

depois, gente. De um modo ou de outro, a imagem, a letra, sempre estavam

ligadas a esse desenho. Assim eu comecei a escrever, a aprender a escrever a

letra, que tem realmente a mesma função de imagem que o desenho.”

rogermello

Page 12: Anexo - Traço e prosa

48 |

Eu me lembro bem do momento em que tudo começou. Eu devia ter seis ou

sete anos quando desenhei um ‘homem-palito’ pela primeira vez. Na hora

pensei: ‘Esse homem está muito magro’; então dei-lhe camisa, calça, sapato e

fiz uma grande descoberta: ‘Eu sei desenhar!’. Pouco tempo depois eu já tinha

pretensões bem audaciosas, olhava para a pintura de uma natureza-morta nos

corredores da escola e tinha certeza: ‘Se tivesse tinta, eu poderia fazer isso…’

[risos], que louca!”

evafurnari

Page 13: Anexo - Traço e prosa

48 |

Eu me lembro bem do momento em que tudo começou. Eu devia ter seis ou

sete anos quando desenhei um ‘homem-palito’ pela primeira vez. Na hora

pensei: ‘Esse homem está muito magro’; então dei-lhe camisa, calça, sapato e

fiz uma grande descoberta: ‘Eu sei desenhar!’. Pouco tempo depois eu já tinha

pretensões bem audaciosas, olhava para a pintura de uma natureza-morta nos

corredores da escola e tinha certeza: ‘Se tivesse tinta, eu poderia fazer isso…’

[risos], que louca!”

evafurnari

Page 14: Anexo - Traço e prosa

147146 |

Somos três filhas. Eu sou a do meio. Morávamos em Santa Efigênia [bairro de

Belo Horizonte] com um tio, três tias, e vovó, mãe da mamãe. Era uma casa

meio surrealista. Se o cachorro estava nervoso, colocavam-no dentro de uma

gaiola [risos]. Coisas muito inesperadas aconteciam. Uma casa com imagens

meio malucas. Papai surpreendia sempre. Ele gostava de criar galinhas, tinha

um galinheiro em casa. Então colhia os ovos e, para garantir que os mais velhos

fossem consumidos primeiro, ele numerava cada um. Guardo a imagem do

pente de ovos, com a letra dele e os números escritos a lápis. Quando li Cem

anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez, eu não acreditava. Era como lá em

casa, até a tesoura velha daquela avó! Mamãe era dona de casa e costureira. Pa-

pai, funcionário público. Na minha infância, o bairro ainda tinha resquícios de

uma cidadezinha do interior. Não tínhamos grades nas janelas nem muro alto.

Engraçado que, para ir ao centro de Belo Horizonte, falávamos: ‘Vou na cidade’.

E, no meio disto tudo, surgiu o interesse pelo desenho e pela pintura. ”

marildacastanha

Page 15: Anexo - Traço e prosa

147146 |

Somos três filhas. Eu sou a do meio. Morávamos em Santa Efigênia [bairro de

Belo Horizonte] com um tio, três tias, e vovó, mãe da mamãe. Era uma casa

meio surrealista. Se o cachorro estava nervoso, colocavam-no dentro de uma

gaiola [risos]. Coisas muito inesperadas aconteciam. Uma casa com imagens

meio malucas. Papai surpreendia sempre. Ele gostava de criar galinhas, tinha

um galinheiro em casa. Então colhia os ovos e, para garantir que os mais velhos

fossem consumidos primeiro, ele numerava cada um. Guardo a imagem do

pente de ovos, com a letra dele e os números escritos a lápis. Quando li Cem

anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez, eu não acreditava. Era como lá em

casa, até a tesoura velha daquela avó! Mamãe era dona de casa e costureira. Pa-

pai, funcionário público. Na minha infância, o bairro ainda tinha resquícios de

uma cidadezinha do interior. Não tínhamos grades nas janelas nem muro alto.

Engraçado que, para ir ao centro de Belo Horizonte, falávamos: ‘Vou na cidade’.

E, no meio disto tudo, surgiu o interesse pelo desenho e pela pintura. ”

marildacastanha

Page 16: Anexo - Traço e prosa
Page 17: Anexo - Traço e prosa

LEIA TAMBÉM

Era uma vez uma capa (2008) Alan Powers Para ler o livro ilustrado (2011)

Sophie Van der Linen

Livro ilustrado: palavras e imagens (2011) Carole Scott, Maria Nikolajeva

Crítica, teoria, e literatura infantil (2010) Peter Hunt

Page 18: Anexo - Traço e prosa

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