ANDRIOLI. Auschwitz a "indústria da morte"

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Auschwitz: a “indústria da morte” “Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa linguagem não tem palavras para expressar essa ofensa, essa aniquilação do ser humano” (*Primo Levi! **Por Antônio Inácio And rioli Para todos aqueles que veem na racionalidade e no progresso tecnol"gico a esperança de um mundo melhor, a lem#rança de $usch%itz, certamente, & paradoxal! $ “ind'stria da morte”, idealizada e organizada com o aux lio da tecnologia e da #urocracia mais avançada da &poca, & incompar)vel qualquer #ar#)rie anterior registrada na hist"ria da humanidade! $o visitar somente o que restou de $usch%itz, + anos ap"s, uma pergunta não quer calar- como o ser humano foi capaz de tudo isso. $ pr"pria pergunta /) revela nossa crença num possvel  progresso da sociedade humana rumo a uma maior humanização ou civilização! 0e rrvel & ter de admitir que aquilo que costumamos chamar de civilização produziu a moderna #ar#)rie, uma situação que nem o mais pessimista dos fil"sofos alemães anteriores ao nazismo poderia sequer imaginar ou prever! $ exist1ncia de campos de extermnio de pessoas, como o de $usch%itz, pode ser compreendida como a concretização extrema de um mpeto presente em muitas assim chamadas civilizaç2es, ou se/a, a eliminação intenc ionalmente pl ane/ada de seres humanos qu e es te/ am o#struindo interesses de gr upos so ciais hegemonicamente esta#elecidos! 3itler afirmava claramente, em novem#ro de 4567, em seu discurso dirigido ao 8inistro do 9xterior e aos seus principais lderes militares, que em seu regime não se tratava de conquistar pessoas e sim territ"rios! : programa do partido nazista anunciava a necessidade de conquistar terra para alimentar o povo e assentar o excedente populacional alemão! $ ideologia nazista, alicerçada na ideia de que o povo alemão & superior aos demais, se encarregava de pregar o "dio contra a democracia, o marxismo, os /udeus e todos os que não se enquadrassem nos padr2es e prop"sitos da dominação totalit)ria- os povos eslavos, os homossexuais, os deficientes fsicos, os ciganos e os opositores polticos! ;om o o#/etivo de anexar territ"rios e a#rir a passagem para o leste europeu a ser conquistado, a Pol<nia  precisava ser arrasada! 3itler ordenava suas tropas para o extermnio sem piedade de homens, mulheres e crianças de origem polonesa, alegando que, somente assim, a $lemanha conquistaria o espaço necess)rio para so#reviver, aca#ando com a população residente e ocupando a )rea com assentamentos alemães! ;omo a Pol<nia contava com cerca de 6 milh2es de /udeus (4= da população do pas, a construção de um campo de extermnio neste pas não foi o#ra do acaso! $ escolha de $usch%itz foi estrat&gica, tanto do ponto de vista do isolamento das vtimas, como na perspectiva da efici1ncia para o transporte, ao exterminar o inimigo no territ"rio em que ele existia em maior n'mero e que deveria ser “li#erado” para a ocupação nazista, com vistas ao avanço em direção ao inimigo maior- o  #olchevismo /udeu! 9stima>se que para $usch%itz foram deportados, no mnimo, 4,4 milh2es de /udeus (a maioria da 3ungria e da Pol<nia, 4? mil presos polticos poloneses, @6 mil ciganos, 4? mil presos de guerra sovi&ticos e mais @? mil presos de outras nacionalidades, especialmente tchecos, franceses, iugoslavos, russos, ucranianos e alemães! : plano dos nazistas previa o extermnio total dos /udeus, chegando a anunciar o genocdio de 44 milh2es na 9uropa e estima>se que tenha atingido, no total, + milh2es de vtimas! $ f)#rica da morte em $usch%itz foi  pro/etada e construda, prioritariamente, para exterminar /udeus, enquanto outros campos de extermnio se ocupavam com os demais “inimigos declarados pelo nazismo”! : “crime” dos /udeus era terem “nascido /udeus” e o governo nazista se encarregava de classific)>los e envi)>los a $usch%itz, com a falsa promessa de que iriam ao leste para tra#alhar! Paralelamente, a “ind'stria da morte” em $usch%itz contri#ua com setores da ind'stria capitalista alemã, atrav&s do tra#alho forçado, em função do fornecimento de g)s para as cAmaras de extermnio e, inclusive, atrav&s da apropriação dos #ens das vtimas! $s v timas podiam levar at& ? Bg de #agagem, a qual era confiscada /) na chegada em $usch%itz! Coupas, calçados, instrumentos de tra#alho, o#/etos de uso pessoal eram simplesmente rou#ados, classificados e enviados de volta $lemanha! :s o#/etos de maior valor, como dinheiro e ouro (tam#&m o ouro dos dentes das vtimas eram enviados diretamente ao Danco ;entral $lemão e não são raros os casos em que os soldados se apropriavam, imediatamente, de parte desses #ens! Logo ap"s a chegada, as vtimas eram o#rigadas a se despir e entrar na “sala de desinfecção” onde rece#iam uma roupa padronizada, um n'mero em forma de tatuagem no #raço e o ca#elo era cortado, armazenado e enviado para a $ lemanha, como “mat&ria>prima” para a ind'stria t1xtil! Para ilustrar isso, quando as tropas sovi&ticas ocuparam $usch%itz, foram encontradas 7 toneladas de ca#elo e uma infinidade de o#/etos das vtimas que ai nda não haviam sido enviadas $lemanha! : extermnio foi racionalmente organizado, de tal forma, que pudesse eliminar o m)ximo de pessoas em menos tempo, com os menores custos e a maior efici1ncia do ponto de vista operativo! $ rg ida divisão do tra#alho e a extrema organização da Eind'stria da morteE, incorporou o conhecimento de geniais arquitetos, administradores, antrop"logos, m&dicos, qumicos, #i"logos, enfim, parte do conhecimento e da tecnologia mais avançada a serviço da destruição de seres humanos! Para 3itler e os principais lderes nazistas, havia, entretanto, mais um ingrediente

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Auschwitz: a “indústria da morte”

“Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa linguagem não tem palavras para expressar essa ofensa,essa aniquilação do ser humano” (*Primo Levi!

**Por Antônio Inácio Andrioli

Para todos aqueles que veem na racionalidade e no progresso tecnol"gico a esperança de um mundomelhor, a lem#rança de $usch%itz, certamente, & paradoxal! $ “ind'stria da morte”, idealizada e organizada com oauxlio da tecnologia e da #urocracia mais avançada da &poca, & incompar)vel qualquer #ar#)rie anterior registrada na hist"ria da humanidade! $o visitar somente o que restou de $usch%itz, + anos ap"s, uma perguntanão quer calar- como o ser humano foi capaz de tudo isso. $ pr"pria pergunta /) revela nossa crença num possvel progresso da sociedade humana rumo a uma maior humanização ou civilização! 0errvel & ter de admitir que aquiloque costumamos chamar de civilização produziu a moderna #ar#)rie, uma situação que nem o mais pessimista dosfil"sofos alemães anteriores ao nazismo poderia sequer imaginar ou prever!

$ exist1ncia de campos de extermnio de pessoas, como o de $usch%itz, pode ser compreendida como aconcretização extrema de um mpeto presente em muitas assim chamadas civilizaç2es, ou se/a, a eliminaçãointencionalmente plane/ada de seres humanos que este/am o#struindo interesses de grupos sociaishegemonicamente esta#elecidos! 3itler afirmava claramente, em novem#ro de 4567, em seu discurso dirigido ao

8inistro do 9xterior e aos seus principais lderes militares, que em seu regime não se tratava de conquistar pessoase sim territ"rios! : programa do partido nazista anunciava a necessidade de conquistar terra para alimentar o povoe assentar o excedente populacional alemão! $ ideologia nazista, alicerçada na ideia de que o povo alemão &superior aos demais, se encarregava de pregar o "dio contra a democracia, o marxismo, os /udeus e todos os quenão se enquadrassem nos padr2es e prop"sitos da dominação totalit)ria- os povos eslavos, os homossexuais, osdeficientes fsicos, os ciganos e os opositores polticos!

;om o o#/etivo de anexar territ"rios e a#rir a passagem para o leste europeu a ser conquistado, a Pol<nia precisava ser arrasada! 3itler ordenava suas tropas para o extermnio sem piedade de homens, mulheres e criançasde origem polonesa, alegando que, somente assim, a $lemanha conquistaria o espaço necess)rio para so#reviver,aca#ando com a população residente e ocupando a )rea com assentamentos alemães! ;omo a Pol<nia contava comcerca de 6 milh2es de /udeus (4= da população do pas, a construção de um campo de extermnio neste pas nãofoi o#ra do acaso! $ escolha de $usch%itz foi estrat&gica, tanto do ponto de vista do isolamento das vtimas, como

na perspectiva da efici1ncia para o transporte, ao exterminar o inimigo no territ"rio em que ele existia em maior n'mero e que deveria ser “li#erado” para a ocupação nazista, com vistas ao avanço em direção ao inimigo maior- o #olchevismo /udeu! 9stima>se que para $usch%itz foram deportados, no mnimo, 4,4 milh2es de /udeus (a maioriada 3ungria e da Pol<nia, 4? mil presos polticos poloneses, @6 mil ciganos, 4? mil presos de guerra sovi&ticos emais @? mil presos de outras nacionalidades, especialmente tchecos, franceses, iugoslavos, russos, ucranianos ealemães!

: plano dos nazistas previa o extermnio total dos /udeus, chegando a anunciar o genocdio de 44 milh2esna 9uropa e estima>se que tenha atingido, no total, + milh2es de vtimas! $ f)#rica da morte em $usch%itz foi pro/etada e construda, prioritariamente, para exterminar /udeus, enquanto outros campos de extermnio seocupavam com os demais “inimigos declarados pelo nazismo”! : “crime” dos /udeus era terem “nascido /udeus” eo governo nazista se encarregava de classific)>los e envi)>los a $usch%itz, com a falsa promessa de que iriam aoleste para tra#alhar! Paralelamente, a “ind'stria da morte” em $usch%itz contri#ua com setores da ind'stria

capitalista alemã, atrav&s do tra#alho forçado, em função do fornecimento de g)s para as cAmaras de extermnio e,inclusive, atrav&s da apropriação dos #ens das vtimas!

$s vtimas podiam levar at& ? Bg de #agagem, a qual era confiscada /) na chegada em $usch%itz!Coupas, calçados, instrumentos de tra#alho, o#/etos de uso pessoal eram simplesmente rou#ados, classificados eenviados de volta $lemanha! :s o#/etos de maior valor, como dinheiro e ouro (tam#&m o ouro dos dentes dasvtimas eram enviados diretamente ao Danco ;entral $lemão e não são raros os casos em que os soldados seapropriavam, imediatamente, de parte desses #ens! Logo ap"s a chegada, as vtimas eram o#rigadas a se despir eentrar na “sala de desinfecção” onde rece#iam uma roupa padronizada, um n'mero em forma de tatuagem no #raçoe o ca#elo era cortado, armazenado e enviado para a $lemanha, como “mat&ria>prima” para a ind'stria t1xtil! Parailustrar isso, quando as tropas sovi&ticas ocuparam $usch%itz, foram encontradas 7 toneladas de ca#elo e umainfinidade de o#/etos das vtimas que ainda não haviam sido enviadas $lemanha!

: extermnio foi racionalmente organizado, de tal forma, que pudesse eliminar o m)ximo de pessoas emmenos tempo, com os menores custos e a maior efici1ncia do ponto de vista operativo! $ rgida divisão do tra#alhoe a extrema organização da Eind'stria da morteE, incorporou o conhecimento de geniais arquitetos, administradores,antrop"logos, m&dicos, qumicos, #i"logos, enfim, parte do conhecimento e da tecnologia mais avançada a serviçoda destruição de seres humanos! Para 3itler e os principais lderes nazistas, havia, entretanto, mais um ingrediente

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importante na “ind'stria da morte”- o uso do terror como arma poltica! Fegundo 3itler, qualquer um que tivesse aintenção de atacar o governo alemão iria rever sua posição ao sa#er do que o esperava nos campos de extermnio!

9sse efeito do terror so#re a sociedade os nazistas aproveitavam para dar o passo seguinte, de tal forma,que aquilo que, at& então, parecia inimagin)vel razão humana de que acontecesse, /) estava sendo assimiladocomo conduta na l"gica do extermnio! $ssim, se sucederam os experimentos com as vtimas, usadas como co#aias para o desenvolvimento da medicina e da ind'stria farmac1utica alemã! $s atrocidades mais famosas são asconduzidas pelo m&dico Gosef 8engele com g1meos e liliputianos! $ documentação atualmente existente revela, noentanto, 47H diferentes tipos de experimentos m&dicos realizados, incluindo crueldades como in/eç2es no olho sem

anestesia com a intenção de mudar a cor, esterilizaç2es, contaminação com vrus e #act&rias causadores de doenças,amputaç2es e retirada de "rgãos!

: nazistas demonstraram claramente humanidade que & perfeitamente possvel estimular a ci1ncia eutiliz)>la a serviço da destruição do pr"prio ser humano e pasmem- sem que os respons)veis pela produção doconhecimento e sua utilização tenham algum peso na consci1ncia ou um sentimento de culpa quanto a isso! :ssoldados nazistas que estiveram em $usch%itz e que ainda estão vivos, ao serem perguntados so#re suaresponsa#ilidade no genocdio, respondem que, simplesmente, procuram não pensar no que aconteceu com asvtimas, que eles estavam cumprindo ordens e assim conseguem viver de forma #em tranquila com seu passado! :mesmo comportamento & verific)vel no Am#ito de muitas )reas da ci1ncia contemporAnea dominadas pela razãoinstrumental, onde os pesquisadores sequer questionam as consequ1ncias da utilização do seu conhecimento, comose o uso e a produção do conhecimento estivessem isolados! Fão os efeitos daquilo que 3er#ert 8arcusedenominou de car)ter ideol"gico da t&cnica e da ci1ncia, fruto do racionalismo moderno, com potencial de produção da #ar#)rie em patamares ainda desconhecidos!

Por isso, a diferença entre $ussch%itz e as #ar#)ries anteriores da hist"ria humana não & s" gradual pelasua intensidade, mas foi produzida de maneira su#stancialmente diferenciada, ao incorporar, de forma original, aracionalidade a serviço da destruição humana, de tal forma, que o efeito comparativo se anula! $usch%itz inaugura,assim, uma nova versão da #ar#)rie, a qual opera como ind'stria, como uma m)quina, diante da qual os protagonistas aparecem de forma invertida, se/a como pseudo>vtimas, se/a como cola#oradores de um processoexterminador, no qual o contato direto com as vtimas &, parcialmente, isolado pela pr"pria l"gica da organização!

9sse & um detalhe passvel de verificação em $usch%itz- as pr"prias vtimas eram o#rigadas a executar astarefas mais degradantes ao ser humano, se/a a retirada dos corpos das cAmaras de g)s como sua transfer1ncia aosfornos de cremação! $s vtimas não somente imaginavam o que, em seguida, iria acontecer com elas, como /)vivenciavam, concretamente, sua exterminação coletiva, na qual eram o#rigadas a contri#uir na forma de tra#alho

forçado! $ destruição da humanidade das vtimas, portanto, /) se dava antes da sua destruição fsica! ;omodescreve Primo Levi, um dos so#reviventes do 3olocausto, um campo de concentração & uma grande engrenagem pro/etada para transformar seres humanos em animais! Cesistir l"gica desta m)quina desumanizadora & muitodifcil e doloroso!

: que aconteceu em $usch%itz mudou as noç2es de #ar#)rie que a humanidade conheceu ao longo dahist"ria e mostrou, o#/etivamente, do que o ser humano & capaz! : paradoxo da civilização moderna que 0heodor $dorno, em suas o#ras Dialektik der Auflärung ( Dialética do Esclarecimento, de 45II, e Minima Moralia, de45I?, corretamente caracterizou de progresso regressivo, aconteceu e continua atual em nossa geração, marcada pelo predomnio da racionalidade instrumental! : car)ter contradit"rio do progresso e da civilização nos temposmodernos, #rilhantemente a#ordado e discutido pela tradição da 9scola de JranKfurt, merece uma atenção especialquando nos confrontamos com as #rutalidades e genocdios presentes em nosso tempo!

$usch%itz & um exemplo para demonstrar que, se não temos como provar, o#/etivamente, a vig1ncia de um

 perodo na hist"ria em que a exploração e a destruição humanas não tenham existido, sua intensificação eaprofundamento são perfeitamente possveis! Parafraseando $dorno, como a #ar#)rie continua em curso, o desafioracional da nossa exist1ncia & construir a anttese na sociedade, de tal forma que se/a possvel hist"ria produzir uma sntese mais humana do que a que temos consci1ncia, para que genocdios como os de $usch%itz não serepitam /amais!

*  Primo Levi (4545>45H7 foi um qumico e escritor italiano! 9screveu mem"rias, contos, poemas, e novelas! maisconhecido por seu tra#alho so#re o 3olocausto, em particular, por ter sido um prisioneiro em $usch%itz>DirKenau!

** $nt<nio Mn)cio $ndrioli & doutorando em ;i1ncias Fociais na Nniversidade de :sna#rOcK $lemanha!

J:Q09- $QRCM:LM, $nt<nio Mn)cio! $usch%itz- a “ind'stria da morte”! Revista Espaço Acadêmico (versão online)! Fet!@?! Risponvel em S http-TT%%%!espacoacademico!com!#rT?@T?@andrioli!htmU! $cesso em 7 set! @4?!