Andrew jennings brasil em jogo

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  1. 1. Sobre Brasil em jogo Juca Kfouri Ter um olhar crtico sobre os megaeventos no Brasil no patritico nem antipatritico. apenas o necessrio olhar crtico. E que, enm, se precisar ser definido alm disso, muito mais a favor do Brasil do que contra. Gilberto Maringoni No vai ter Copa foi uma das palavras de ordem que emergiram das ruas de junho de 2013. Expressa indignao com gastos faranicos e faz um chamado rebelio. Mais que uma palavra de ordem, uma ordem em si, um apelo fechado, sem margens para mediaes ou dvidas. Em outras situaes da Histria, ativistas e militantes buscaram agregar gente com brados terminativos. Foi o caso de No pasarn!, dos republicanos espanhis, nos anos 1930, e de No recuaremos nem um milmetro, dito em vrios momentos. Na maior parte dos casos, houve recuos brutais. Vrias ebulies macias da Histria moderna foram sintetizadas em expresses simples, concretas e abertas. Movimentos vitoriosos, dirigidos com boa percepo do mundo ao redor, geraram conclamaes quase poticas, que eletrizaram multides. Liberdade, igualdade e fraternidade, Paz, po e terra e Diretas j! so alguns exemplos. Melhor que No vai ter Copa dizer Ocupa Copa, ou Copa pra quem?. Esse esprito amplo e exvel d o tom nos captulos deste livro, que disseca, com enfoques variados, as rotas do dinheiro e do poder nas cidades-sede da Copa e das Olimpadas e o legado de tais iniciativas para os brasileiros.
  2. 2. Sumrio Nota da editora Um teatro milionrio, Joo Sette Whitaker Ferreira A Copa do Mundo no Brasil: tsunami de capitais aprofunda a desigualdade urbana, Ermnia Maricato Jogo espetculo, jogo negcio, Nelma Gusmo de Oliveira Lei Geral da Copa: explicitao do estado de exceo permanente, Jorge Luiz Souto Maior Transformaes na identidade nacional construda atravs do futebol: lies de duas derrotas histricas, Jos Sergio Leite Lopes A mfia dos esportes e o capitalismo global, Andrew Jennings Para alm dos Jogos: os grandes eventos esportivos e a agenda do desenvolvimento nacional, Luis Fernandes Megaeventos: direito moradia em cidades venda, Raquel Rolnik Como sero nossas cidades aps a Copa e as Olimpadas?, Carlos Vainer A Copa, a imagem do Brasil e a batalha da comunicao, Antonio Lassance O que quer o MTST?, Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto Cronologia dos megaeventos esportivos Imagens Sobre os autores Crditos
  3. 3. Nota da editora Idealizada e organizada coletivamente, esta obra lana olhares multifacetados sobre os megaeventos esportivos sediados pelo Brasil, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olmpicos e Paraolmpicos de 2016, e, em especial, sobre sua relao com a cidade. A partir de uma pauta elaborada pelas equipes da Boitempo e da Carta Maior, encomendou-se a maioria dos textos diretamente aos autores, que, para tornar o livro mais acessvel, abriram mo de receber remunerao pela publicao de seus artigos. A parceria com a Carta Maior essencial para que esta obra possa alcanar o maior nmero de pessoas, estimulando, quem sabe, seu olhar crtico e o desejo de lutar efetivamente pelos direitos do cidado. Agradecemos ao MdiaNINJA (que tambm colaborou nos volumes anteriores desta coleo), ao Ministrio do Esporte e ao fotgrafo Apu Gomes pela cesso das imagens que ilustram este livro. ]Antecedido por Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas ](2012) e Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestaes que tomaram as ruas do Brasil ](2013), este Brasil em jogo: o que ca da Copa e das Olimpadas? ] o terceiro volume da coleo Tinta Vermelha, que rene obras de interveno e teorizao sobre acontecimentos atuais. O ttulo da coleo uma referncia ao discurso de Slavoj iek aos manifestantes do Occupy Wall Street, na Liberty Plaza (Nova York), em 9 de outubro de 2011. O lsofo esloveno usou a metfora da tinta vermelha para expressar a encruzilhada ideolgica do sculo XXI: Temos toda a liberdade que desejamos a nica coisa que falta a tinta vermelha: nos sentimos livres porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade. A ntegra do discurso est disponvel em: . Com a colaborao dos autores deste livro e de outros que fazem parte do catlogo da editora, seguiremos, at o nal das Olimpadas, alimentando a reexo no Blog da Boitempo, em um dossi disponvel em: .
  4. 4. Apresentao Um teatro milionrio Joo Sette Whitaker Ferreira Primeiro ato: uma boa ideia de marketing urbano Meados dos anos 1980. Os pases desenvolvidos vivem a crise da chamada reestruturao produtiva. Reduz-se a disposio dos Estados de bem-estar para manter polticas sociais universais e gratuitas, ainda mais face ao aumento signicativo de imigrantes. Hegemoniza-se a mudana para um modelo neoliberal, liderada por Thatcher na Gr-Bretanha e Reagan nos Estados Unidos: os investimentos pblicos tornam-se cada vez mais pontuais e exclusivistas, politicamente mais bem-recebidos pelos segmentos de alta renda, em detrimento dos programas sociais estruturais. A economia mundial se nanceiriza e se endivida, consolidando um modelo que iria estourar dcadas depois, na crise de 2008. A disputa por investimentos torna-se acirrada. No mbito urbanstico, parques industriais e equipamentos (como estaes de trem) tornam-se obsoletos. Os centros urbanos popularizam-se e absorvem milhares de imigrantes; o desemprego bate forte e a crise nas cidades se instaura. A palavra renovao urbana soa como msica para enfrentar uma situao social que no agrada nem s elites nem aos governantes. O modelo de bem-estar social comea a se esfacelar, dando lugar ao combate chamada degradao urbana. Paradoxalmente, foi um governo socialista, do francs Mitterand, que inaugurou o que se tornaria uma soluo para essas reas: transform-las por meio da construo de grandes equipamentos culturais (museus, peras e ans), smbolos arquitetnicos que aquecem o mercado imobilirio e da construo civil, do um lustre moderno gura do governante, dinamizam o turismo e revigoram o chamado marketing da cidade, ao preo de uma forte valorizao e elitizao[1]. A ideia difundida era a de que os gastos concentrados muito menores do que polticas sociais em grande escala gerariam uma imagem positiva da cidade, capaz de atrair os fluxos do novo capital financeiro. Segundo ato: uma receita de urbanismo Nos anos 1990, a receita espalhou-se pelo mundo desenvolvido com tanto sucesso
  5. 5. que importantes urbanistas como Ermnia Maricato e Carlos Vainer, que escrevem neste livro chegaram a apontar a hegemonizao de um pensamento nico nas cidades[2]. Em suas pretenses globais, as wannabe world cities[3] passam a disputar os uxos de capitais nanceiros. Multiplicam-se as obras simblicas, assinadas por grandes arquitetos, emergentes de um novo jet set internacional da profisso. A renovao das docas de Londres e o museu Guggenheim em Bilbao so alguns dos incontveis exemplos de renovaes urbanas realizadas segundo essa receita de urbanismo do espetculo, como Maricato aponta no artigo publicado neste volume. O aspecto central que, em todas elas, foi fenomenal o comprometimento de recursos pblicos, sempre com a justicativa de que as obras, minas de ouro para o mercado imobilirio e da construo civil, eram necessrias nova competitividade global. Porm, nem sempre as requalicaes de bairros obsoletos com dinheiro pblico tiveram a aceitao esperada, apesar do selo cultural. Na crise econmica, a estratgia de comprometer recursos foi negativamente cotejada com a reduo dos investimentos nas polticas sociais. Era necessrio legitimar esse modelo de alguma forma. Percebeu-se ento que grandes eventos, sobretudo os esportivos, que movem paixes nacionais, tinham a grande qualidade de serem popularmente aceitos. A ideia era associar esses eventos s obras de requalicao urbana desejadas. Assim, ao redor de um grande estdio, de um pavilho de exposies, comearam a ser erguidos centros de negcios, bairros de alto padro etc. Operaes casadas em que governantes e investidores saam ganhando, com a vantagem do apoio popular. A Copa do Mundo da Fifa e os Jogos Olmpicos do COI, os megaeventos mais importantes nesse cardpio, passaram a ser disputados ferozmente pelas cidades do mundo. Como demonstra Nelma Gusmo de Oliveira, a Fifa e o COI perceberam o poder que tinham nas mos. Governantes passaram a trat-los como fontes milagrosas de capitais. Quem obtivesse o direito de sediar seus eventos teria uma justicativa de inquestionvel popularidade para dispor de rios de dinheiro pblico em nome da modernizao da cidade, alavancando negcios milionrios para o setor privado. Porm, necessidades legitimamente urbansticas e, em geral, mais urgentes eram passadas para trs. Em 1992, Barcelona, cidade que j dispunha de excepcional plano urbanstico desde o comeo do sculo XX, inaugurou com certo sucesso essa frmula, que seria ento vendida ao planeta. Urbanistas catales, como Jordi Borja, percorreram o mundo como verdadeiros gurus. Polticos da cidade alaram voos mais altos. Joan Clos, responsvel nanceiro nos Jogos Olmpicos e por duas vezes prefeito da cidade, hoje diretor executivo da UN-Habitat, da ONU. Tanto a Fifa quanto o COI souberam transformar espetculos esportivos em grandes negcios, como observa Nelma Gusmo de Oliveira, seguindo uma escola bem brasileira de trato com o poder vide Joo Havelange dirigente da Fifa e do COI por
  6. 6. dcadas. Favores, comisses e outras formas de negociao pouco transparentes passaram a ditar a escolha das cidades-sede, mas sobretudo os processos subsequentes de organizao dos eventos. A Fifa, o COI e mesmo a FIA, da Frmula 1, viram-se frequentemente envolvidas em escndalos de corrupo. E uma voz quase solitria passou a denunciar corajosamente tais descalabros: a do jornalista escocs Andrew Jennings, presente neste volume com o belo depoimento A ma dos esportes e o capitalismo global. Entreatos: quem ganha com os eventos? O lucro dos megaeventos redunda em ganhos fabulosos para as instituies organizadoras. O evento por si s j uma mquina de dinheiro, com a venda de ingressos, direitos televisivos, de publicidade e imagem. Porm, se para a Fifa o negcio lucrativo, com zero por cento de riscos, no to seguro assim para os patrocinadores. Por isso, alis, eles caram apavorados com as manifestaes de junho de 2013 no Brasil e exigiram medidas draconianas para proteger sua exclusividade. A regra clara: todo lucro deve ser garantido s empresas que pagaram por isso. Para os governos, porm, a conta no to certa, pelo menos em termos monetrios. O suposto grande lucro poltico-eleitoral. Governantes veem sua imagem abrilhantada pela competncia em ter conseguido atrair um evento globalmente popular, que coloca a cidade ou o pas-sede na vitrine do mundo. No entanto, do ponto de vista nanceiro, at hoje no se mostrou, na ponta do lpis, o resultado nal da equao entre os montantes de dinheiro pblico investidos, os custos da manuteno dos equipamentos aps os eventos e os resultados comerciais efetivos no turismo e no comrcio. H casos de Jogos Olmpicos cujos lucros foram nmos, como em Atlanta (1996), ou que geraram signicativo dcit, como em Montreal (1976) e Atenas (2004). Muitas vezes trata-se to somente de transferncias indiretas de recursos pblicos para setores especcos (como o de hotelaria), e os custos sociais e ambientais so de difcil medio. Mas o que ajuda a transformar megaeventos em minas de ouro so as obras que alavancam. Exigidas pelos rgos organizadores em comum acordo com os governos hospedeiros, alimentam os mercados da construo civil, fundirio e imobilirio. A valorizao fundiria espetacular, gerando disputas locais ferozes. Como mostra Ermnia Maricato neste livro, nos pases em desenvolvimento, o tsunami de capitais envolvidos aprofunda a dinmica estrutural de desigualdade urbana e segregao socioeconmica. Junto a estdios, ginsios ou pavilhes, estruturam-se empreendimentos comerciais e bairros de negcios e so construdas importantes vias de acesso que interessam especialmente aos organizadores e raramente so prioritrias para a cidade. O caso de So Paulo na Copa de 2014 exemplar: mobilizaram-se recursos
  7. 7. federais especcos para a construo de um monotrilho suspenso que serviria o estdio da abertura da Copa, na Zona Sudoeste da cidade. Porm, por disputas locais e presso da Fifa, optou-se pela construo de um estdio novo, na Zona Leste, a custos e comisses muito mais altos. Mas o monotrilho da Copa continuou a ser construdo para levar torcedores ao estdio anterior. O novo estdio, por sua vez, foi implantado sem nenhum projeto de integrao com a malha urbana local. Alm disso, as entidades esportivas indicam empresas amigas para os projetos de engenharia, interferem nas escolhas das empreiteiras e pressionam os governos a abrirem pesadas linhas de nanciamento. Sua fora tanta, e a submisso dos polticos locais to gritante, que conseguem forar a aprovao de leis especcas e excepcionais para garantir seus privilgios como mostram neste livro Carlos Vainer e Jorge Luiz Souto Maior. Nos pases desenvolvidos, entretanto, tais procedimentos no passam despercebidos. A diculdade em equacionar os investimentos pblicos e os lucros eventuais, o dcit estrondoso de alguns eventos e as acusaes de corrupo comeam a mobilizar a sociedade civil, que protesta cada vez mais veementemente vide a desistncia de Estocolmo em concorrer para os Jogos Olmpicos de Inverno de 2022. Terceiro ato: a caminhada para o Sul Ao longo dos anos 1980 e 1990, com exceo do Mxico em 1986, todas as Copas da Fifa foram realizadas em pases desenvolvidos, alavancando grandes obras de reabilitao urbana, como no caso do Stade de France, localizado na periferia norte da capital francesa. A Copa de 2002 marcou uma transio ao ser coorganizada por um pas desenvolvido, o Japo, com um tigre asitico em ascenso, a Coreia do Sul. Era o comeo de uma movimentao em direo aos pases em desenvolvimento. frica do Sul, Brasil, Rssia e Catar, com democracias ainda jovens (com exceo do totalitrio Catar), foram escolhidos para sediar as Copas de 2010 a 2022. Muitos analistas, dentre os quais me incluo, avaliam que esse deslocamento foi claramente estratgico, devido aos protestos cada vez mais frequentes contra os megaeventos nos pases do Norte. Mais do que isso, as estruturas governamentais dos novos antries, geralmente contaminadas por uma corrupo estrutural, so especialmente vulnerveis s presses exercidas pelos grandes players dos megaeventos, sendo mais fcil dobrar os polticos locais para aprovar leis de exceo, mesmo que representem retrocessos gritantes em suas conquistas sociais, como mostra parte dos textos desta coletnea. Externamente, os pases em desenvolvimento mas em ascenso no cenrio econmico mundial, usam os megaeventos esportivos como vitrines de seu sucesso econmico. O caso da China sintomtico: com investimentos de mais de US$ 40
  8. 8. bilhes para promover os Jogos Olmpicos, rmou sua imagem de grande potncia internacional. No Brasil, o empenho do presidente Lula na candidatura para a Copa e as Olimpadas diz muito sobre o papel estratgico desses eventos para a imagem de um pas. Trata-se de posicionar-se no capitalismo nanceiro global como um bom lugar para investimentos. Internamente, em pases com severas insucincias de logstica e infraestrutura e sedentos por investimentos que lhes permitam constru-las, esse discurso facilmente apoiado pela opinio pblica. O discurso do legado dos megaeventos ento amplamente difundido. Estabelece-se uma coalizo poltico-econmica que envolve diversos atores: os organismos esportivos internacionais e seus pares nacionais, os governos locais e os rgos pblicos de nanciamento, as grandes empreiteiras, as elites fundirias e imobilirias. Todos se mobilizam para fazer funcionar uma mquina de crescimento. Porm, como habitual, confunde-se crescimento econmico com desenvolvimento. E a iluso tem pernas curtas. As experincias de outros pases, como China, Grcia, Canad, frica do Sul ou at mesmo Frana, mostram que os equipamentos construdos para os megaeventos tm uma capacidade muito baixa de integrao aps a concluso dos eventos[4]. Linhas de transporte mostram-se superdimensionadas aps o evento, e elefantes brancos surgem no meio do nada, exigindo enormes custos de manuteno. O estdio Olmpico de Montreal um exemplo simblico, que se repetiu na China e na frica do Sul. No Brasil, a paixo futebolstica e o tamanho de certas torcidas ameniza um pouco esse problema, porm, em Braslia, Manaus ou Natal, cidades que nem sequer tm equipes na primeira diviso nacional, isso certamente se evidenciar. Essa discrepncia entre a construo de equipamentos e sua integrao posterior vida econmica e urbana local evidentemente mais dramtica nos pases subdesenvolvidos. A Alemanha alega que a Copa do Mundo de 2006 lhe permitiu reestruturar seu sistema de vias frreas, o que muito provvel. Mas pases como a frica do Sul ou o Brasil ainda apresentam carncias enormes de servios bsicos, como saneamento, equipamentos pblicos ou mesmo habitao digna. E justamente a populao mais pobre a mais atingida pelos megaeventos, como mostram Raquel Rolnik e o MTST neste livro. A proliferao de empreendimentos imobilirios de alto padro nas proximidades dos estdios e outras obras emergenciais provocam um duplo processo de expulso da populao mais pobre, seja pela remoo sumria e violenta dos assentamentos, seja pela expulso natural decorrente da forte e nada regulada valorizao imobiliria consequente. A Copa e os Jogos, nesse sentido, acirram nosso apartheid urbano. Por m, h uma externalidade que se exacerba nos pases em desenvolvimento, acrescentando um toque trgico barbrie: a intensicao da explorao sexual (incluindo infantil) decorrente do turismo sexual que se escamoteia por trs das viagens oficiais de muitos torcedores
  9. 9. ltimo ato: uma Copa eleitoral A Copa do Mundo do Brasil tem, para completar, uma peculiaridade: ocorre a poucos meses de uma eleio presidencial. Pouca gente bem informada no pas acreditaria que o ento presidente Lula tenha sido ingnuo e no percebera essa coincidncia quando da candidatura brasileira. Trata-se, evidente, de uma aposta poltica. Arriscada, mas, em caso de sucesso, extremamente lucrativa: se o Brasil organizar bem a Copa (e, ainda por cima, venc-la), nada mais impedir a ampla aceitao dos Jogos Olmpicos do Rio e os louros polticos para o governo. Resta saber se Lula havia previsto os eventos de junho de 2013, que abalaram o pas justamente na ocasio da Copa das Confederaes. As manifestaes que ento mobilizaram a juventude brasileira foram a expresso de uma revoluo geracional[5]. Jovens que cresceram em um ambiente democrtico, com enorme disponibilidade de informao, conscientizaram-se de que o pas carece de um legtimo sentido pblico, e a razo que os levou s ruas, originalmente, foi a reivindicao de polticas pblicas universais. Nesse ambiente crtico, era natural que se questionasse a insensatez dos gastos com os megaeventos. Em um pas ainda pobre apesar de muito rico (o que caracteriza a modernizao conservadora e a condio de subdesenvolvimento), com indecente concentrao da renda, em que as polticas pblicas mostram-se constrangedoramente inecazes, a concentrao de recursos pblicos nos equipamentos da Copa revelou-se incoerente e antagnica com o prprio discurso governista ocial de acabar com a pobreza no pas. Essa incoerncia foi cobrada, nas manifestaes de 2013, do governo federal, que se defendeu dizendo que os recursos pblicos vinham sobretudo dos Estados que aceitaram receber a Copa. De maneira geral, a justicativa governista ampara-se na sinergia econmica gerada pelos investimentos, permitindo obras de infraestrutura e modernizao e, consequentemente, aquecendo a economia. esse o argumento central sustentado neste livro por Luis Fernandes, secretrio executivo do Ministrio do Esporte. Se esse discurso tem aspectos verdadeiros (alguma modernizao nos aeroportos, por exemplo), ele se fragiliza quando cotejado, pelos jovens, com uma realidade em que o dinheiro pblico frequentemente desviado pela corrupo e, principalmente, o setor privado mostra estar mais interessado em sua lucratividade do que em contribuir com a modernizao do pas. Alm do mais, rpida a proliferao de notcias mostrando o asco nanceiro de vrios desses to festejados megaeventos, ainda mais em ano eleitoral, em que os aspectos negativos seriam, obviamente, capitalizados pela oposio. Com isso, a Ptria do Futebol, ironicamente, deu uma lio ao resto do mundo na Copa das Confederaes: nunca havia se visto tamanha mobilizao de protesto contra um evento cuja popularidade ainda to dominante. Repercutia no mundo que o povo
  10. 10. brasileiro, cuja identidade, como esmiua Jos Sergio Leite Lopes neste livro, se confunde com o futebol, era contra a Copa. E tanto a Fifa quanto o governo sentiram o golpe. Mas se as manifestaes haviam comeado com protestos legtimos por maior moralidade poltica, foram rapidamente manipuladas pela grande mdia corporativa e transformadas em um movimento oposicionista antidemocrtico. Slogans como O gigante acordou e Vem pra rua voc tambm e a induo s vestes brancas ou verde-amarelas contra tudo que est a tornaram-se as palavras de ordem de uma mobilizao vaga em objetivos, claramente insuada pelo poder econmico e miditico para atingir e desestabilizar a presidenta e o regime democrtico. Muito antes da Copa vir para o Brasil, a mobilizao contrria aos megaeventos era expressada isoladamente por setores de esquerda da intelectualidade acadmica, vozes isoladas perante a fora ideolgica do discurso pr-Copa e perdedoras no jogo poltico nacional. Nada parecia impedir a coalizo de interesses que se formara em favor da Copa e dos Jogos, envolvendo amplos setores do empresariado e da grande mdia. A disputa eleitoral e a polarizao poltica no Brasil iriam, entretanto, desfazer esse consenso. A pauta foi repentinamente encampada, com os mesmos argumentos, pelos setores mais conservadores da sociedade, em clara manobra eleitoral de oposio ao governo. Para seu desconforto, os que vinham construindo uma forte e bem embasada argumentao contra os megaeventos esportivos durante anos, de forma isolada e batendo de frente contra a opinio da maioria, viram alinhar-se a seu lado guras do extremo oposto do espectro poltico. Nada pior para os oposicionistas originais, por assim dizer. Da noite para o dia, nas redes sociais, na grande mdia corporativa, gente mais habituada aos shoppings-centers e carros blindados passou a indignar-se com a pobreza e a proferir um discurso que no lhe cabia. Setores empresariais e miditicos que de incio festejaram os provveis negcios engendrados pelos megaeventos tornaram-se preocupados com a m qualidade da educao, da sade ou dos transportes, repetindo um apropriado slogan de rpida aceitao por parte da opinio pblica menos politizada: Imagina na Copa. claro que h por trs disso uma supervalorizao especulativa. Primeiro porque, apesar do exagero da Fifa em suas exigncias, a Copa do Mundo no mais do que uma srie de jogos de futebol espalhados pelo territrio, em um pas habituado a ver semanalmente seus estdios lotados. Se os jogos da Copa tm um grau de exigncia organizativa maior, ainda assim isso no os difere tanto daquilo com que j estamos bastante habituados. Alm disso, nenhum dos grandes problemas previstos realmente indito: notcias de desorganizao e confuses de todo tipo na logstica de Copas do Primeiro Mundo, seja na Frana ou na Itlia, existem profuso. Nem mesmo a represso a manifestaes, to temidas por aqui, tem sido especialmente pior do que se v nas manifestaes europeias. Houve, deve-se dizer, um exagero politicamente certeiro nas previses alarmistas da Copa, que se revertem em um pessimismo com relao ao pas. Nada mais oportuno para contrabalancear o discurso
  11. 11. eufrico de prxima grande potncia mundial que Lula havia cuidadosamente construdo, associando-o sua imagem. Os movimentos sociais, por sua vez, tm tambm timo sentido de oportunidade, e de repente, valendo-se do interesse da mdia em polemizar sobre o evento, passam a associar inteligentemente todas as suas aes Copa. Mas o que deve ser ressaltado que suas reivindicaes vo muito alm das preocupaes conjunturais com os gargalos logsticos e de infraestrutura turstica, e no se encerraram com a nal da Copa do Mundo, pois a educao pblica no pas continuar precria e a falta de moradia, crnica, assim como a prostituio infantil e a ao predadora do grande capital imobilirio continuaro sendo problemas relevantes. [1] Ver Carlos Vainer, Os liberais tambm fazem planejamento urbano, em Otlia Arantes, Ermnia Maricato e Carlos Vainer (orgs.), A cidade do pensamento nico: desmanchando consensos (Petrpolis, Vozes, 2000), p. 117- 9, col. Zero Esquerda. [2] Ver Otlia Arantes, Ermnia Maricato e Carlos Vainer (orgs.), A cidade do pensamento nico, cit. [3] Como as chamou John Short, Urban Imagineers, em Andrew E. Jonas e David Wilson, The Urban Growth Machine: Critical Perspectives Two Decades Later (Nova York, State University of New York Press, 1999). [4] Sylvain Lefebvre e Romain Roux, Laprs-JO. Reconversion et rutilisation des quipements olympiques, Espaces, Loisirs et Tourisme, n. 263, 2008, p. 30-42. [5] Ver Joo Sette Whitaker Ferreira, Uma revoluo geracional?, blog Cidades para que(m)?, disponvel em: .
  12. 12. A Copa do Mundo no Brasil: tsunami de capitais aprofunda a desigualdade urbana[a] Ermnia Maricato Revitalizao, reabilitao, revalorizao, requalicao, reforma, no importa o nome dado ao processo que rene capitais internacionais especializados no urbanismo do espetculo e que utiliza como libi megaeventos esportivos, culturais ou tecnolgicos: com frequncia, so as mesmas instituies nanceiras, as mesmas megaconstrutoras e incorporadoras e os mesmos arquitetos do star system que promovem um arrasto empresarial a m de garantir certas caractersticas a um pedao da cidade que se assemelha, no mais das vezes, a um parque temtico[1]. Endividamento, especulao imobiliria e gentricao so marcas que, com raras excees, acompanham essas custosas transformaes, to comumente alardeadas como vantajosas. No caso da Copa do Mundo, as exigncias feitas pela Federao Internacional de Futebol Associado (Fifa) e pelo Comit Olmpico Internacional (COI) impactam profundamente o contexto jurdico, econmico, social e urbanstico dos pases-sede, de forma a denir os padres para os projetos e obras, os contratos comerciais para a veiculao das imagens e os produtos a serem vendidos, de acordo com os patrocinadores. Aos grandes capitais internacionais ligados aos megaeventos somam-se capitais nacionais e locais das reas de construo civil, mercado imobilirio, turismo, gastronomia e hotelaria. Polticos de planto integram essa mquina de crescimento, apostando na visibilidade de suas iniciativas e no apoio econmico para futuras campanhas. A dilapidao do fundo pblico, seguindo leis casusticas e apressadas, alm de projetos incompletos, se d sob o argumento do legado que, aps o megaevento, restar em benefcio de toda a populao. No entanto, a experincia mostra que esse cenrio tende a contrariar as necessidades locais e sobrar como um conjunto de elefantes brancos, como aconteceu com o Ninho de Pssaro em Pequim ou com o estdio construdo na Cidade do Cabo para a Copa de 2010 cuja demolio chegou a ser cogitada. Algo semelhante ocorre com as obras de mobilidade e de moradia. O interesse social libi para um milionrio movimento de construo, que, entretanto, ignora as reais necessidades populares. Uma tendncia geral de expulso dos pobres da cidade, com a valorizao imobiliria vinculando-se distino de classe, o que se verica.
  13. 13. Ainda assim, apesar de reconhecer a montona regularidade das estratgias territoriais (e sociais) que acompanham os megaeventos no mundo, impossvel conter a perplexidade diante do que acontece hoje com as cidades brasileiras na Copa de 2014, em especial com a violentada metrpole do Rio de Janeiro, que sediar tambm os Jogos Olmpicos de 2016[2]. O urbanismo do espetculo e os megaeventos Antes de mencionar a especicidade da relao entre megaeventos e cidade, preciso lembrar o papel das cidades na chamada globalizao neoliberal. O processo de assalto s economias nacionais, com propostas de renovaes urbanas que incluem grandes obras e exibilizao da normativa urbanstica, no acontece exclusivamente em funo dos grandes eventos: pode-se dizer que uma das estratgias regulares da globalizao neoliberal. Com os megaeventos, essa tendncia se potencializa. As cidades ocupam um papel importante no processo de acumulao no capitalismo globalizado, do qual, por ocasies dos meganegcios, o espao urbano, as obras de infraestrutura e as edificaes constituem parte essencial. De fato, o m do Estado provedor e a emergncia da globalizao neoliberal entre anos 1970 e 1980 tiveram um impacto profundo nas cidades, em especial nas do capitalismo perifrico, que nunca viveram a plenitude dos direitos sociais. Ao lado do recuo das polticas sociais e do aumento do desemprego, da pobreza e da violncia, um novo iderio de planejamento urbano substituiu o ideal de urbanismo modernista. Desregulamentao, exibilizao e privatizao so prticas que acompanharam a reestruturao das cidades no intuito de abrir espao para os capitais imobilirios e de infraestrutura e servios. preciso entender as foras que tomam o comando desse processo e o iderio urbanstico que o acompanha. As privatizaes foram ampliadas sob a argumentao da inecincia do Estado e ecincia do mercado, ideia construda por uma campanha mundial espetacular sustentada por agncias multilaterais (incluindo o Banco Mundial e o FMI) e conglomerados internacionais. A palavra de ordem mais mercado, menos Estado mostrou-se falaciosa, pois o que se constatou foi menos Estado para investimentos e polticas sociais, mas mais Estado para proteger e sustentar as foras do mercado, como comprova a inacreditvel trajetria das dvidas externas dos pases perifricos[3]. Apesar da roupagem democrtica e participativa, inspirada inicialmente na experincia de Barcelona, as propostas dos planos estratgicos combinaram-se perfeitamente ao iderio neoliberal que orientou o ajuste das polticas econmicas nacionais por meio do Consenso de Washington, a m de que as cidades se adequassem aos novos tempos de reestruturao produtiva no mundo ou, mais exatamente, de relao de subordinao s novas exigncias do processo de
  14. 14. acumulao capitalista ainda sob o Imprio norte-americano. Por aqui, o plano estratgico cumpre o papel de, ao mesmo tempo, desregular, privatizar e fragmentar, dando ao mercado um espao absoluto e reforando a ideia da cidade autnoma que necessita instrumentar-se para competir com as demais na disputa por investimentos, de modo a transform-la em uma mquina urbana de produzir renda[4]. A cidade deve agir corporativamente (leia-se, minimizando os conitos internos) para sobreviver e vencer. Trata-se da cidade corporativa ou cidade-ptria, que cobra o esforo e o consenso de todos em torno dessa abrangente viso de futuro. Para tanto, ela deve apresentar os servios e equipamentos exigidos das cidades globais: hotis cinco estrelas, centros de convenes, polos de pesquisa tecnolgica, aeroportos internacionais etc., a m de vender-se com competncia. Trata-se da cidade-mercadoria, da cidade-empresa que deve ser gerida como tal[5]. A conjuntura urbana brasileira no momento da Copa Os primeiros impactos da globalizao no Brasil prepararam o pas para assumir um papel de ponta na produo de commodities agrcolas e pecurias. Um esforo nacional de pesquisas no setor contribuiu para isso e, ao longo das dcadas de 1980 e 1990, as cidades restaram sem investimentos signicativos nas reas de habitao, saneamento e transporte urbano[6]. Aps a virada do sculo, o retorno do investimento pblico e privado no espao urbano inaugurou uma nova fase para as cidades e para o processo de acumulao de capital, na qual a nanceirizao da economia liga-se especialmente com os processos imobilirios. Na prtica, o neodesenvolvimentismo isto , a incluso das cidades na poltica de crescimento econmico vai contra as cidades, pois ignora a poltica urbana e seu requisito central, o uso e a regulao do solo[7]. Estamos diante da grande trava social: o n da terra ou da propriedade patrimonial que sustenta a desigualdade urbana. As propostas dos movimentos de reforma urbana simplesmente desapareceram da agenda poltica, desde a escala local at a nacional. Um grande nmero de obras de infraestrutura, voltadas em sua maior parte para a circulao do automvel e para a expanso do mercado imobilirio, passou a constituir a poltica urbana, contrariando o plano diretor municipal e em funo do nanciamento de campanhas eleitorais. A desigualdade social e a segregao territorial so lembradas apenas retoricamente para justificar mais obras. Assim, enquanto o transporte coletivo urbano permaneceu em runas por dcadas, a desonerao scal para compra de automveis promoveu o literal congestionamento de todas as cidades de mdio ou grande porte. A retomada dos investimentos por meio dos Programas de Acelerao do Crescimento (PAC) de 2007 e 2011 pelo governo federal, junto do nanciamento habitacional[8], atraiu os capitais da especulao
  15. 15. urbana. Sem dvida esse movimento de obras teve impacto positivo no emprego e no crescimento econmico, como revelam os dados do IBGE, mas custa de um preo altssimo para as cidades e seus moradores, que no participam dos ganhos rentistas fundirios. O boom imobilirio que se seguiu ao lanamento do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) acarretou um aumento de 185% no preo dos imveis do Rio de Janeiro entre 2009 e 2012, conforme o ndice FipeZap. A perspectiva da realizao tanto da Copa quanto das Olimpadas no Brasil tambm contribuiu para essa febre imobiliria. Com o aumento no preo de aluguis e imveis, parte da populao trabalhadora foi expulsa para novas fronteiras da periferia urbana, ampliando a extenso das cidades e comprometendo reas de proteo ambiental ou de risco geotcnico[9]. A estratgia da poltica de segurana tambm observa essa lgica territorial, como ca evidente no caso carioca: as Unidades de Polcia Pacicadora (UPP) foram instaladas nas favelas, a m de distinguir a cidade como espao voltado para o turismo e para o mercado. Situadas em reas desvalorizadas, as favelas so entregues ao poder das milcias ou do crime organizado[10]. O conceito de Estado de exceo de Agamben[11] refere-se ao Estado que se utiliza de dispositivos legais como meio para exercer o poder de forma ilimitada, negando a prpria legalidade e o direito dos cidados. Estado de stio, guerras e emergncias so momentos que o antecedem, contraditoriamente perenizados por construes legais. A dialtica entre Estado de exceo e Estado de direito destri a poltica, que subordina-se economia. A m de adaptar as cidades ao urbanismo do espetculo, operaes urbanas denem os espaos que merecem tratamento diferenciado o entorno dos estdios, por exemplo , e parcerias pblico-privadas garantem para o setor privado a segurana dos investimentos (incluindo emprstimos dos fundos pblicos) e a exceo das leis, admitindo direito de operaes que antes eram prerrogativas exclusivas do Estado. A anlise embasada no conceito do Estado de exceo de Agamben se aplica ao urbanismo praticado sob iderio neoliberal; cabe, porm, um reparo no que se refere ao processo de urbanizao tpico da periferia do capitalismo. Como no enxergar um Estado de exceo permanente nessa urbanizao dos baixos salrios, j que parte das cidades (invisvel e ignorada pelo Estado) construda pelos prprios trabalhadores, margem das leis urbansticas? A lei, uma vez que aplicada de acordo com interesses de classe, passa a ser utilizada para excluir da cidade, do mercado e das polticas pblicas grande parcela da populao. Ao mesmo tempo, essa contradio entre a lei, a realidade que a nega e sua aplicao discriminatria que garante um mercado altamente especulativo.
  16. 16. Em sntese, a Copa no Brasil Tentemos resumir alguns aspectos que se repetem nos processos que acompanham os megaeventos. 1. Como foi explicitado anteriormente, as cidades so objeto fundamental do processo de acumulao de capital na globalizao neoliberal, e os megaeventos constituem momentos especiais, potencializados, desse processo. A busca de consenso em torno da preparao do pas e das cidades inclui deixar os conitos para segundo plano. 2. A esttica do ambiente resultante disso pautada pela arquitetura e pelo urbanismo do espetculo, seguindo as ideias de alienao diante do fetiche desenvolvidas por Guy Debord[12]. Soma-se ao quadro a explorao de smbolos e imagens por meio do show miditico de alcance planetrio, transmitido para um pblico de mais de 1 bilho de pessoas em 204 pases. Venda e explorao de imagens so parte importante do negcio. 3. Os pases emergentes tm sido a escolha preferencial desde o m da dcada passada para sediar grandes eventos esportivos. 4. O Estado tem um papel central na construo da megaoperao, seja por meio do nanciamento de obras monumentais, seja pela exibilizao das normas urbansticas ou das parcerias com o capital privado, ou ainda pelas garantias dadas aos investimentos privados, entre outras adaptaes. Leis especcas como a do Regime Diferenciado de Contratao (RDC) concedem privilgios Fifa e a seus membros, parceiros, difusores, prestadores de servio e associados, como subvenes, iseno de tributos ou monoplios de venda. 5. O suposto legado que car no pas como herana positiva tem mostrado muitos aspectos negativos nas experincias anteriores: obras monumentais sem utilidade, servios que fogem prioridade social, dvidas enormes[13]. No Brasil chama ateno a condio absurda dos custos e das dimenses dos estdios que foram construdos. Em Porto Alegre, a reforma do Beira-Rio foi orada em R$ 330 milhes, dos quais R$ 271,5 milhes so emprstimo do BNDES construtora Andrade Gutierrez. Manaus colocou abaixo o maior estdio j construdo na regio Norte do Brasil, com capacidade para 40 mil pessoas, para construir outro com capacidade para 44 mil. A demolio custou R$ 32 milhes oriundos de fundo pblico, e o novo estdio custou R$ 500 milhes. 6. Em geral, os oramentos foram subestimados e os projetos iniciaram-se sem desenhos executivos. Segundo reportagem do jornal Gazeta do Povo de 24 de fevereiro de 2013, foi constatado que as contrapartidas da prefeitura de Curitiba pelas obras de mobilidade da Copa saltaram dos R$ 11,1 milhes previstos inicialmente para R$ 146,8 milhes. 7. Mas a maior operao imobiliria em curso se d no Rio de Janeiro e leva o nome de Porto Maravilha. Trata-se de uma megainterveno que busca renovar o
  17. 17. waterfront porturio seguindo a receita de vrias cidades mundiais, como Londres, Nova York e Buenos Aires, com forte simbologia ligada esttica do espetculo segundo um iderio que mal encobre a nalidade do negcio incluir residncias e escritrios num espao de distino. A operao combina todos os expedientes j mencionados aqui: legislao de exceo, recursos governamentais milionrios e coordenao delegada s empresas privadas. 8. Segurana e vigilncia so mercados novos que se ampliam nos megaeventos sediados em pases perifricos. No Brasil foi criada a Secretaria Extraordinria de Segurana para Grandes Eventos. Quando os jovens entram em cena: junho de 2013 Em junho de 2013 mobilizaes sociais tomaram conta das ruas das cidades brasileiras, a princpio pelo aumento da tarifa dos transportes pblicos. Mas protestos contra os excessos de gastos pelas obras da Copa h muito j estavam nas ruas, organizados pelos Comits Populares da Copa. A partir daquele ms, os movimentos sociais, notadamente os de luta pela moradia, ganharam visibilidade e no abandonaram os espaos pblicos, conquistando importantes vitrias. No que se refere aos fatos aqui descritos, a maior delas, por enquanto, foi a suspenso da privatizao do estdio do Maracan. A campanha O Maraca nosso, de iniciativa popular, alegou como principais motivos de oposio privatizao a remoo forada de comunidades do entorno, a falta de transparncia e de participao popular, o favorecimento explcito a grupos empresariais e as ms condies de trabalho nas obras, entre outros. Na privatizao, estavam includas ainda as demolies do Estdio de Atletismo Clio de Barros, do Parque Aqutico Jlio Delamare, da Escola Municipal Friedenreich e do prdio histrico do antigo Museu do ndio, que foram canceladas. Em So Paulo, um dos acontecimentos mais elucidativos nos ltimos anos foi o cancelamento de uma megaobra orada em US$ 1,5 bilho um tnel de 3 km no qual seria impedida a circulao de nibus e bicicletas. Essas so apenas algumas das conquistas. O jogo no acabou. Continuamos a viver a plenitude da disputa nas ruas, e impossvel prever o rumo que essa histria vai tomar. No entanto, pode-se armar que h algo novo no ar alm do ataque s cidades por parte dos megaeventos. [a] Uma primeira verso deste texto foi escrita em dezembro de 2013, includa em Fernando Carrion e Maria Jos Rodriguez (orgs.), Futbol y ciudad (Quito, Flacso, no prelo). (N. E.) [1]Ver Otlia Arantes, Berlim e Barcelona: duas imagens estratgicas (So Paulo, Annablume, 2012). [2] Ver artigo de Fernanda Snchez em Fernanda Snchez, Glauco Bienenstein, Fabrcio Leal de Oliveira e Pedro
  18. 18. Novais (orgs.), A copa do mundo e as cidades: polticas, projetos e resistncias (Niteri, UFF, 2014). [3] Ver Luiz Carlos Azenha, Maria Lucia Fattorelli: Banqueiros capturaram o Estado brasileiro, disponvel em: , acesso em 5 dez. 2013. [4] Ver Otlia Arantes, Uma estratgia fatal: a cultura nas novas gestes urbanas, em Otlia Arantes, Carlos Vainer e Ermnia Maricato (orgs.), A cidade do pensamento nico: desmanchando consensos (Petrpolis, Vozes, 2000), p. 11-74, col. Zero Esquerda. [5] Cf. Otlia Arantes, Carlos Vainer e Ermnia Maricato (orgs.), A cidade do pensamento nico, cit. [6] Ver Erimnia Maricato, Cidades no Brasil: neodesenvolvimentismo ou crescimento perifrico predatrio, Poltica Social e Desenvolvimento, Campinas, v.1, n.1, ano 1, p. 16-55, nov. 2013. [7] Luiz Carlos Bresser-Pereira, Do antigo ao novo desenvolvimentismo na Amrica Latina, Texto para Discusso, FGV-SP, n. 275, nov. 2010. [8] Desde 2005, pela parceria entre a Caixa Econmica Federal e o Ministrio das Cidades, mas mais decisivamente a partir de 2009, com o programa federal Minha Casa Minha Vida (MCMV). [9] Analisando o mercado imobilirio brasileiro na conjuntura da Copa do Mundo, Robert J. Shiller costuma apontar a ocorrncia de uma bolha imobiliria no Brasil, j que os preos tm subido ininterruptamente h cinco anos. [10] Entende-se por milcia um grupo militar ou paramilitar composto por ex-policiais e cidados comuns que exercem poder de domnio em determinado lugar, disputando hegemonia com o crime organizado. [11] Ver Giorgio Agamben, Estado de exceo (So Paulo, Boitempo, 2004), col. Estado de Stio, e Carlos Vainer, Cidade de exceo: reexes a partir do Rio de Janeiro, em Anais do XIV Encontro da Associao Brasileira de Planejamento Urbano e Regional, Rio de Janeiro, 2011. [12] Ver seu clssico de 1967 A sociedade do espetculo (Rio de Janeiro, Contraponto, 2014). [13] Em suas entrevistas, David Harvey insiste no impacto que as Olimpadas tiveram na dvida que a Grcia contraiu, o que contribuiu para lev-la ao pedido de moratria internacional; ver David Harvey, Urbanizao incompleta estratgia do capital, Brasil de Fato, 25 nov. 2013.
  19. 19. Jogo espetculo, jogo negcio Nelma Gusmo de Oliveira Imagens fortes, rituais e simbolismo so elementos que conferem sustentao aos eventos esportivos. difcil imagin-los sem pensar no fair play, na celebrao ou no encontro fraterno entre atletas de diferentes culturas. Cenas mgicas das cerimnias de abertura ou encerramento, momentos de superao, conquistas inditas e o choro emocionado do torcedor ao ver seu pas consagrado campeo compem esse imaginrio. Envolvidos numa produo espetacular, os Jogos Olmpicos se realizam sob o signo de ideais universalistas e assertivas morais. Progressivamente agregado a outros valores igualmente abstratos, esse discurso tambm incorporado a eventos organizados por instituies integrantes do Movimento Olmpico[1], dentre as quais a Federao Internacional de Futebol Associado (Fifa). Mas como se deu a passagem do esporte amador para o grande negcio do esporte? Pode o espetculo ser considerado esporte quando todos os signos que o compem se convertem em mercadoria? O amadorismo e sua passagem profissionalizao Aristteles, em sua tica a Nicmaco, referia-se aos entretenimentos como um m em si prprio. Na mesma direo, Kant, na Crtica da faculdade do juzo, tambm denia o jogo, em oposio ao trabalho, como uma ocupao agradvel por si prpria. Foi consubstanciado nesse conceito de jogo amador, desinteressado e despolitizado, que, durante os sculos XVIII e XIX, originou-se o esporte moderno nas public schools inglesas destinadas s elites da sociedade burguesa e aristocrtica[2]. Na dcada de 1890, um grupo de aristocratas europeus, liderados pelo baro de Coubertin, se articulou em torno da ideia de uma retomada dos Jogos Olmpicos praticados na Grcia Antiga entre os sculos XVIII a. C. e IV d. C.[3]. O esporte moderno se coloca, ento, como algo inteiramente novo e diferente em relao s atividades normalmente apresentadas como suas ancestrais. Vale notar, nesse discurso de uma suposta re(?)naissanse em relao aos Jogos da Antiguidade, a sustentao de uma herana seletiva, que invoca apenas os aspectos considerados gloriosos pela tica burguesa e deixa de lado aqueles pouco ticos ou no civilizados, segundo os padres morais da sociedade moderna como, por exemplo, o alto grau de tolerncia violncia fsica. As competies da Antiguidade e o esporte moderno amador possuem, contudo,
  20. 20. uma coisa em comum: o carter elitista. Ao no admitir remunerao relacionada atividade esportiva, o amadorismo caracterstico dos dois momentos pressupe a existncia de atletas com posses sucientes para se sustentar durante o longo tempo dedicado ao treinamento. Esteado no amadorismo, o esporte moderno contribuiu para a construo de uma moral fundamentada na virilidade, na coragem e na disciplina, pilares que muito bem se adquam formao do ethos burgus. A permanncia nessas bases veio legitimar a pretenso de autonomia do esporte, facultando-lhe o poder de constituir uma estrutura poltica e nanceira prpria, juridicamente autnoma em relao s regras gerais da sociedade. Marcada por disputas, a construo dessa autonomia se relaciona a permanentes questes: atividade ldica ou funcional? Jogo de elite ou jogo de massa? Fair play ou negcio? Diverso ou espetculo? A depender da correlao de foras em cada momento, diferentes respostas se apresentavam como dominantes. No obstante o discurso de desinteresse econmico, a comercializao dos Jogos Olmpicos atravs de anncios publicitrios j se dava desde a realizao de sua primeira edio, em Atenas, em 1896. Em 1920 propagandas eram introduzidas na programao impressa e em 1924 j havia painis publicitrios nos locais de competio[4]. Na Carta Olmpica[5] daquele ano, contudo, o COI proibiu denitivamente a publicidade nos locais de competio e impressos ociais, fortalecendo o discurso original de desinteresse econmico. Quando assistiram primeira reproduo de imagens (desfocadas) dos Jogos Olmpicos de 1936 em Berlim, nenhum dos 162 mil telespectadores, tampouco os organizadores do evento, poderiam imaginar a complexidade que as relaes entre eventos esportivos e televiso atingiriam. Aps a primeira transmisso direta dos Jogos Olmpicos de 1960 em Roma, ganhavam corpo as primeiras regras de proteo da marca olmpica, j esboadas em 1944, e as primeiras diretrizes para os contratos televisivos. Assim como o capitalismo na poca, o espetculo esportivo ainda negava o papel do mercado na denio de seus procedimentos. Durante a dcada de 1970, enquanto surgiam as primeiras manifestaes da crise capitalista, comeava um gradual processo de prossionalizao do esporte, explcito em sucessivas regras do COI e que culminou em 1978, quando o termo amador desapareceu por completo do texto da Carta Olmpica. Paralelamente, cresciam os mecanismos de proteo marca olmpica e de controle para a transmisso. Ainda na dcada de 1970, restries foram impostas ao uso de logomarcas em equipamentos e vestimentas; o controle publicitrio se estendia ao espao areo. A espetacularizao: o mercado como meta
  21. 21. Os princpios da formao moral e da unio entre os povos atravs do esporte, citados nas celebraes da Grcia Antiga, foram sintetizados na concepo moderna do Olimpismo, apresentado na Carta Olmpica como losoa de vida a servio do desenvolvimento harmonioso da humanidade. Uma tenso se estabelece entre a busca da autonomia nanceira e esse discurso desinteressado do Olimpismo. No m do sculo XX, entretanto, a conjuntura imensamente favorvel ao mercado criaria as bases para a legtima conciliao entre as duas lgicas, a princpio antagnicas. O caminho adotado para resolver o paradoxo foi promover a ideia de juntar o mercado e os valores morais do Olimpismo, conforme proposto por Michael Payne[6], idealizador do atual programa de marketing do COI. A chave utilizada foi comercializar exatamente o conjunto de valores associados ao Movimento Olmpico, altamente estimados pelo marketing empresarial: honra, integridade, determinao, competitividade e excelncia, entre outros. Embora de modo menos institucionalizado, com regras menos claras e menor preocupao em manter imaculados os valores de sua marca, a Fifa tambm chegaria autonomia financeira, atravs de um programa de marketing global semelhante. No apenas o discurso do amor ao esporte que une a Fifa e o COI. frente das duas instituies, em sua virada comercial, se encontravam dois homens fortes e autoritrios. Na Fifa, como presidente entre 1974 e 1998, estava Joo Havelange, amigo dos generais da ditadura militar no Brasil. No COI, entre 1980 e 2001, estava Juan Samaranch, que traz no currculo longa participao no governo fascista de Franco, na Espanha. Por trs desses dois homens estava Horst Dassler. Objetivando divulgar os materiais esportivos de sua empresa, a Adidas, Dassler estabeleceu laos com os principais dirigentes esportivos do planeta e se tornou o homem mais poderoso do universo dos esportes at sua morte, em 1987, inuenciando eleies para cargos esportivos no mundo inteiro. Fazia parte de sua estratgia manter executivos de sua conana em cargos importantes em federaes e agncias de atletismo. Foi ele que levou Payne para o COI e Joseph Blatter para a Fifa, por exemplo. Ao assumir a presidncia do COI, em 1980, Samaranch encontrou o Movimento Olmpico beira do colapso. Depois do assassinato de onze atletas israelenses por terroristas nos Jogos Olmpicos de 1972 em Berlim, da dvida contrada por Montreal na organizao dos Jogos de Vero de 1976, da desistncia de Denver (escolhida para sediar os Jogos de Inverno daquele ano) e do boicote de 66 pases aos Jogos de 1980 em Moscou, a tarefa de encontrar cidades dispostas a sediar o evento era rdua. Diante de tal conjuntura e com o caixa em diculdades, Samaranch, com a ajuda do amigo Dassler e sua empresa de marketing esportivo, a International Sport and Leisure (ISL), enfrentou o desao de aumentar as receitas com transmisses de TV e programas de patrocnio. Em relao transmisso de TV, a estratgia do COI foi assumir diretamente o controle das negociaes, feitas inicialmente em conjunto com o Comit Organizador
  22. 22. dos Jogos Olmpicos (Cojo) em questo. Com a implantao, a partir de meados dos anos 1990, de uma nova estratgia de contratos de longa durao, que envolvia mais de um evento, o COI conseguiu eliminar a presena do Cojo da negociao. Foi tambm a ISL que apresentou em 1982 a ideia de um programa nico de patrocnio em escala mundial, o The Olympic Partners (TOP). Com a proposta de exclusividade por categoria de produtos e servios, envolvendo o Movimento Olmpico como um todo, o programa do TOP inaugurava um modo de negociao e distribuio das receitas centralizado no COI, acabando com a prtica anterior de negociao direta com os Cojos e demais Comits Olmpicos Nacionais (CONs). Alm do programa TOP e da transmisso de TV, as receitas do marketing Olmpico (que atingiram a soma de US$ 8,04 bilhes no perodo 2009-2012) contam com bilheteria, venda de licena da marca olmpica para produtos e souvenirs e patrocnio domstico. Adotando prticas que diferem em alguns aspectos das do COI, a Fifa chegou ao nal da Copa do Mundo de 2010, na frica do Sul, com resultados nanceiros igualmente slidos. Com um faturamento de aproximadamente US$ 4,2 bilhes no quadrinio 2007-2010, a Fifa tambm concentra sua principal receita na venda dos direitos de transmisso e de marketing. Para chegar presidncia da Fifa, a principal promessa de campanha de Havelange aos dirigentes de federaes nacionais era aumentar o nmero de pases nos campeonatos mundiais. De fato, ele conseguiu dobrar o nmero de participantes na Copa do Mundo, passando de 16 pases, em 1974, para 32, em 1998. Para tal faanha, precisou de dinheiro, e a estratgia foi transformar, com a ajuda de Dassler, o futebol em uma das maiores commodities do mundo. Apesar das semelhanas de estratgias e resultados, alguns aspectos diferenciam a Fifa e o COI. Se o marketing da Fifa se apoia na paixo pelo futebol, o que vendido pelo COI, com exclusividade por territrio ou categoria de produto, a associao entre determinada marca ou rede de TV aos valores no comerciais do Olimpismo. E enquanto a Fifa vende espaos publicitrios, exatamente a ausncia desses espaos que valoriza a marca do COI, da a importncia da restrio de publicidade na tela ou dentro dos locais de competio durante as provas. Se, em caso de escndalos e denncias de corrupo, o COI trata de encontrar rapidamente alguns culpados, a m de puni-los, a Fifa mantm os responsveis impunes at que a situao se torne insustentvel. E o que tem isso a ver com as cidades? Se os programas de marketing rendem o suciente para manter satisfeitas as instituies envolvidas na promoo do espetculo esportivo, tal rendimento se revela insignicante quando comparado aos investimentos em infraestrutura, instalaes e servios para a produo desses mesmos eventos dentro dos padres impostos pelos parceiros. Facilitada pelo discurso de um suposto legado, a estratgia adotada a
  23. 23. transferncia de responsabilidade nanceira para cidades e pases-sede, atravs de rigoroso controle poltico e jurdico sobre esses territrios. exatamente nesse ponto que a produo do espetculo esportivo e a da cidade neoliberal convergem. Na busca de agentes capazes de bancar as condies materiais de realizao do megaevento, as instituies promotoras encontram mquinas burocrticas sedentas por realizar tal proeza em troca de exposio miditica e legitimao para projetos nababescos e de dificuldade de aprovao em circunstncias normais. Identica-se ento uma engrenagem movida por trs rodas de disputas: dos difusores, pela exclusividade de transmisso em cada territrio, dos patrocinadores, pela exclusividade por categoria de produto e das cidades, por sediar os eventos. O valor da marca (olmpica ou Fifa) depende do giro contnuo dessa engrenagem. E, quanto mais valorizada a marca, maior a disputa entre cidades e produtos por se associar a ela. Portanto, maior o poder de barganha da instituio promotora em relao s cidades e mais espetacular o evento, ainda que a custos (econmicos, sociais e polticos) muito altos. Quanto mais espetacular o evento, mais satisfeitos os parceiros, e maior a disputa pelos direitos de marketing e de transmisso (pois maior o nmero de espectadores), retroalimentando a valorizao da marca. Caso uma dessas rodas emperre, a engrenagem se v ameaada. Por outro lado, nas cidades e pases, outras engrenagens se movimentam, articulando outros interesses. As exigncias impostas pelas instituies internacionais, objetivando satisfazer seus parceiros, se adquam legitimao de medidas que viabilizam interesses locais e, desse modo, mantm a disputa das cidades em movimento. H, entretanto, uma contradio proporcional fora de rotao da engrenagem, na medida em que traz consigo o fantasma de esfriamento do interesse das cidades. A crescente demanda por investimentos, os elefantes brancos que cam e as atitudes autoritrias esto entre os vrios argumentos crticos que colocam a marca na iminncia da desvalorizao[7]. nesse sentido que novos discursos, como o do legado, vo sendo incorporados. Sempre que a sociedade civil interpela o poder do espetculo, ele se v constrangido a se reinventar, a mudar as regras do jogo, e isso o que vem ocorrendo atualmente, especialmente a partir das crescentes aes questionadoras no Brasil. Os resultados dessas disputas, embora ainda em aberto, indicam que esse poder no absoluto. Ele pode e deve ser desafiado. [1] Sob a autoridade do Comit Olmpico Internacional (COI), o Movimento Olmpico rene todas as instituies e os indivduos envolvidos na promoo do espetculo esportivo e possui como condio de participao a concordncia com as regras e os princpios da Carta Olmpica. [2] Ver Pierre Bourdieu, Como possvel ser esportivo?, em Questes de sociologia (Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983), p. 136-53. [3] Ver, por exemplo, as Cartas Olmpicas de 1933 e 1950.
  24. 24. [4] Ver International Olympic Committee, Olympic Marketing Fact File (Lausanne, International Olympic Committee, 2012). [5] Publicada pela primeira vez em 1908, essa Carta estabelece as regras de funcionamento do Movimento Olmpico. Aps ter assumidos vrios formatos e nomenclaturas, a partir de 1978 passou a adotar denitivamente o nome Carta Olmpica. [6] Ver Michael Payne, A virada olmpica: como os Jogos Olmpicos tornaram-se a marca mais valorizada do mundo (Rio de Janeiro, Casa da Palavra/COB, 2006). [7] A recusa de cidades como Munique ou Estocolmo em disputar os Jogos de Inverno de 2022 ilustram a situao.
  25. 25. Lei Geral da Copa: explicitao do estado de exceo permanente Jorge Luiz Souto Maior A sociedade inaugurada pelo modelo de produo capitalista, que se consolidou aps longo perodo de acumulao de capital e de formao do denominado exrcito de mo de obra, tem como caractersticas principais a criao do dinheiro como equivalente universal de troca e a xao do valor das coisas por intermdio da noo de mercado, que se rege pela lei da oferta e da procura e tambm pelo fetiche da mercadoria, sendo que as coisas, os bens de consumo, necessrios ou no, produzem- se por intermdio da compra do trabalho humano, que tambm coisicado e integrado ao mercado sob a mesma lgica, para efeito de favorecer a reproduo do capital. Para consolidar-se, requereu, como decorrncia de exigncias lgicas, a construo de instituies voltadas principalmente preservao do mercado de consumo e da estabilizao das relaes sociais, favorecendo a racionalidade baseada na previsibilidade de condutas, na organizao hierrquica produtiva e no planejamento. Constituram-se, assim, o Estado moderno e o direito. O Estado moderno e o direito, notadamente o direito constitucional, servem institucionalizao de um poder central, que, do ponto de vista da teoria liberal, consentido pelos indivduos, que adquirem a qualidade poltica e jurdica de cidados, para a preservao da ordem. A vida em sociedade regulada pela Constituio, tornada coercitiva pelo poder do Estado, o qual tambm se rege pela mesma estrutura jurdica, como forma de garantir que o poder entregue ao governo se exera em nome do povo e para o povo, falando-se, assim, de soberania popular. Porm, os conitos sociais decorrentes do reconhecimento da injustia social por sua vez impulsionada pela liberdade prpria da venda da fora de trabalho, que favorece o processo de acumulao nas mos de poucos da riqueza socialmente produzida e induzidos pela reivindicao de direitos tambm constitucionalmente consagrados tendem a orescer, e, quando a situao gera o risco do desarranjo, no sendo mais possvel o controle pela via retrica da reserva do possvel e implicando guerra civil interna, a prpria ordem constitucional organiza o modo como o governante, a quem, ento, se conferem poderes amplos, atuar sem a completude dos limites da ordem jurdica tudo em nome da recomposio da situao pretrita. H, portanto, na formao do estado de exceo, previsto na prpria ordem
  26. 26. vigente, uma lgica de continusmo, que faz da exceo um apndice da prpria regra, a m de no permitir a revelao das contradies do sistema. Como a situao de desajuste se apresenta em risco cada vez mais crescente, o estado de exceo se edifica como estado permanente, fazendo-o de modo que no se apresente explicitamente. O importante, para a preservao da ordem de exceo permanente, que as contradies no sejam reveladas e a frmula bsica para o desenvolvimento de uma racionalidade reacionria a de tratar os fenmenos sociais de forma pontual, como que descontextualizados da histria, destacando apenas os aspectos que possam justificar o resultado que se pretenda para preservao do status quo. Na direo inversa, ou seja, para revelar as contradies de um sistema baseado na regra da exceo permanente, que serve a um continusmo a servio de uma classe dominante, h de se fazer uma anlise totalizante da realidade, interligando fatos a partir do pressuposto da forma de atuao do modo de acumulao, buscando ainda uma contextualizao dialtica da formao histrica da realidade examinada. No caso da Copa do Mundo de 2014, a partir desse mtodo, fcil perceber o quanto o evento se prestou a reproduzir o modo de produo capitalista por meio da utilizao da lgica inserta no estado de exceo, que impulsionou uma visualizao restritiva do evento, pautada por uma justicativa atomizada, sem contextualizao histrica e feita de forma parcial, para no permitir a revelao de suas intensas contradies. Historicamente, cumpre lembrar que a Lei Geral da Copa (LGC), n. 12.663/2012, foi, assumidamente, fruto de um ajuste rmado entre o governo brasileiro e a Fifa, uma entidade privada, visando atender os denominados padres Fifa de organizao de eventos, para possibilitar a realizao da Copa das Confederaes em 2013 e a Copa do Mundo em 2014. Esse acordo, com propsitos econmicos e polticos, mascarados de felicidade do povo, implicou a suspenso da vigncia de vrias normas constitucionais. O artigo 11 da referida lei criou uma rua exclusiva para a Fifa e seus parceiros, excluindo at mesmo a possibilidade do funcionamento de estabelecimentos existentes no tal local ocial de competio, que abrange o permetro de dois quilmetros ao redor dos estdios, caso o comrcio em questo se relacione de alguma forma ao evento. Mas a rea pblica tornada, provisoriamente, uma propriedade privada no se limita ao entorno dos estdios: est tambm no mesmo permetro em volta do Fan Fest. Sobre o Fan Fest, ademais, oportuno esclarecer que se trata de um evento ocial da Copa, que deve ser organizado e custeado pelas cidades-sede, para que os excludos dos estdios possam assistir aos jogos por um telo, com o acompanhamento de shows. Esse evento, organizado e pago pelo Estado[1] e realizado em espao pblico, atende aos interesses privados da Fifa e suas parceiras. No caso da cidade de So Paulo, ao se impedir a comercializao na rea reservada, a Prefeitura acabou interrompendo um processo de negociao iniciado em
  27. 27. maio de 2012 com os ambulantes que atuavam na cidade, em especial na regio central, onde se situa o Vale do Anhangaba, e cuja licena havia sido cassada no contexto de uma poltica de endurecimento muito forte quanto scalizao de sua atuao, que fora intensicada justamente a partir de 2011, quando houve a assinatura do termo de compromisso, anunciando So Paulo como uma das cidades- sede da Copa. Em 2012, foram canceladas todas as 5.137 licenas dos ambulantes, e at hoje, mesmo aps instaurado, desde 2012, um grupo de trabalho tripartite trabalhadores, sociedade civil e prefeitura (Frum dos Ambulantes) para a discusso do problema, nada se resolveu e, em concreto, ao editar o Chamamento Pblico citado, a Prefeitura acabou dicultando sobremaneira a pretenso dos ambulantes de terem alguma atuao comercial durante a Copa. Pela Lei Geral da Copa, ainda, a Unio obrigou-se a indenizar a Fifa por qualquer leso sofrida pela entidade, inclusive quanto transgresso do comrcio exclusivo no local ocial anteriormente referido (art. 21), sendo essa responsabilidade objetiva, na forma do 6o do artigo 37 da Constituio Federal (art. 22). A propsito, oportuno lembrar que no tem sido essa a postura desse mesmo governo no que se refere aos danos causados aos trabalhadores que lhe prestam servios por intermdio do processo (inconstitucional, diga-se de passagem) da terceirizao, e muito menos a mesma eccia jurdica se conferiu aos interesses dos trabalhadores que esto executando as obras da Copa, muitos dos quais submetidos a excessivas jornadas de trabalho para que se consigam concluir os servios. H suspeitas de no recebimento das horas extras (ou recebidas por meio de pagamento por fora) e largos atrasos no pagamento de salrios, sem falar nos trgicos acidentes que geraram mortes, no se tendo qualquer notcia no sentido de que o governo tenha intervindo para buscar a eccia plena dos direitos desrespeitados e para garantir s vtimas uma imediata indenizao. Alm disso, fez letra-morta das normas constitucionais, inseridas na rbita dos direitos fundamentais de proteo ao trabalhador, ao permitir o trabalho voluntrio nas atividades ligadas Copa, fazendo-o de modo, isto sim, a institucionalizar o trabalho em condies anlogas s de escravido, uma vez que o que se pretende, concretamente, o desprezo aos direitos trabalhistas, contrariando inclusive o prprio compromisso pblico assumido pelo governo e pela Fifa no que se refere ao trabalho descente, conforme consta expressamente no artigo 29 da prpria Lei Geral da Copa. Ora, o trabalho decente um conceito difundido pela Organizao Internacional do Trabalho exatamente para impedir a execuo de trabalho sem as garantias trabalhistas. Verdade que a Lei n. 9.608/98, de discutvel constitucionalidade, permite o trabalho voluntrio, sem a garantia dos direitos trabalhistas, mas esse servio, que pode ser prestado a entidade pblica de qualquer natureza, ou a instituio privada de ns no lucrativos, deve possuir objetivos cvicos, culturais, educacionais, cientficos, recreativos ou de assistncia social, inclusive mutualidade. A Fifa est longe de ser uma entidade sem ns lucrativos, e qualquer servio
  28. 28. prestado na Copa do Mundo, megaevento voltado a uma lgica sabidamente econmica que , ademais, o que justicou, na viso do prprio governo, sua realizao no Brasil , est longe de possuir algum dos objetivos anteriormente destacados. A medida em questo auxilia tambm o interesse econmico do prprio governo brasileiro, que planeja valer-se da previso normativa de excepcionalidade em questo para angariar o trabalho de at 18 mil voluntrios, sendo que a previso de voluntrios da Fifa de 15 mil. Ou seja, um dos legados concretos da Copa ser o histrico de que, durante sua ocorrncia, foi negada a condio de cidadania a pelo menos 33 mil pessoas. E, por falar nisso, lembremo-nos de Jos Afonso de Oliveira Rodrigues, Raimundo Nonato Lima Costa, Fbio Luiz Pereira, Ronaldo Oliveira dos Santos, Marcleudo de Melo Ferreira, Jos Antnio do Nascimento, Antnio Jos Pitta Martins e Fabio Hamilton da Cruz, mortos nas obras dos estdios, e das cerca de 170 mil famlias removidas compulsoriamente de suas casas (segundo dados dos Comits Populares da Copa) para dar lugar s obras destinadas realizao do evento em Cuiab, Curitiba, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Manaus, So Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza. No bastassem essas supresses constitucionais, ainda se instituiu: a) o permissivo, conferido pela Recomendao n. 3/2013, do CNJ, da explorao do trabalho infantil em atividades ligadas aos jogos, incluindo a de gandula, o que, ainda que com bastante atraso, desde 2004 proibido em torneios organizados pela Confederao Brasileira de Futebol , seguindo a previso constitucional e o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA); b) a liberdade para a Fifa de atuar no mercado sem qualquer interveno do Estado, podendo xar o preo dos ingressos como bem lhe aprouver (artigo 25 da Lei Geral da Copa); c) a eliminao quase plena do direito meia-entrada; e d) o afastamento da aplicao do Cdigo de Defesa do Consumidor, deixando-se os critrios para cancelamento, devoluo e reembolso de ingressos, assim como para alocao, realocao, marcao, remarcao e cancelamento de assentos nos locais dos eventos, definio exclusiva da Fifa. E quando os trabalhadores, saindo da invisibilidade, se apresentaram no cenrio poltico e econmico para se expressarem no sentido de que planejam uma organizao coletiva para, por meio de reivindicaes grevistas, buscar atrair para si uma parte maior do capital posto em circulao em funo da Copa, logo um economista de planto veio a pblico com a ameaa de que tais ganhos podem resultar em demisses futuras[2]. Essa possibilidade aventada pelos trabalhadores de se fazerem ouvir na Copa, que pode, em concreto, minimizar seu prejuzo enquanto classe no processo de acumulao e do pas, na evaso de riquezas, provocou uma reao institucional imediata, anal o compromisso assumido pelo Estado brasileiro foi o de permitir que a Fifa obtivesse o maior lucro de sua histria[3]. Ento, a Justia do Trabalho se adiantou divulgando o estabelecimento de um sistema de planto para julgar, com a mxima celeridade (de um dia para o outro), as greves ocorridas
  29. 29. durante a Copa, com o pressuposto j anunciado de que as greves tm custo para os trabalhadores, empregadores e populao, sendo certo que a Copa no pode ser usada para expor o pas a uma humilhao internacional, como no Carnaval, quando houve greve de garis[4]. A iniciativa repressiva da Justia, alis, foi aplaudida rapidamente pelo editorial do jornal Folha de S.Paulo, que, inclusive em declarao no mnimo infeliz, chamou os trabalhadores de oportunistas: uma iniciativa elogivel para evitar o excesso de oportunismo sindical, que no hesita em prejudicar o pblico e ameaar o principal evento do ano no pas[5]. Ou seja, todo mundo pode ganhar, menos os trabalhadores. Parodiando a mxima penal, como se lhes fosse dito: tudo que vocs ganharem pode ser utilizado contra vocs mesmos... Como foram as condies de trabalho nas obras? Quantos trabalhadores no receberam ainda seus direitos por servios que prestaram para a realizao da Copa? Segundo preconizado pelo vis dessa preocupao, nada disso vem ao caso... Na viso dos que s veem imperativo obrigacional de realizar a Copa como questo de honra, custe o que custar, o que importa que o pblico receba o proveito dos servios dos trabalhadores, e se estes no ganham salrio digno ou se trabalham em condies indignas no h como trazer tona, a m de que no se impea a realizao do evento nem se abale a imagem do Brasil l fora. Mas, concretamente, que situao pode constranger mais a gura do Brasil no exterior? O Brasil que faz greves? Ou o Brasil em que os trabalhadores, em geral invisveis aos olhos das instituies brasileiras, so submetidos a condies subumanas de trabalho, proibidos de se insurgirem contra essa situao, tendo de aproveitar o momento de um grande evento para, enm, ganhar visibilidade, inclusive internacional? Na verdade, a humilhao internacional a qual o Brasil no quer se submeter a de que o mundo saiba como o capitalismo se desenvolve por aqui, ainda marcado pelos resqucios culturais de quase quatrocentos anos de escravido, sem ter sequer os limites concretos da eccia dos direitos humanos e sociais, promovendo, de fato, uma das sociedades mais injustas da Terra. [1] Em So Paulo, os Fan Fest se do mediante parceria com o setor privado, conforme o Comunicado de Chamamento Pblico n. 01/2014/SMSP, que estabeleceu o prazo de uma semana para o oferecimento de ofertas. [2] Vide reportagem da Folha de S.Paulo, Copa vira chamariz para temporada de greves por reajustes, 13 abr. 2014, p. B-1. [3] A Fifa deve arrecadar 5 bilhes de dlares com a Copa no Brasil, valor 36% superior ao do Mundial da frica do Sul e 110% maior que o da Alemanha, cf. Miguel Martins e Rodrigo Martins, A Copa do Mundo, aos 45 do 2o tempo, CartaCapital, 16 abr. 2014. [4] Declarao de Rafael Edson Pugliesi Ribeiro, presidente da Seo de Dissdios Coletivos do TRT de So Paulo,
  30. 30. em Justia do Trabalho arma planto extra para onda de greves na Copa, Folha de S.Paulo, 17 abr. 2014, p. B-1. [5] Editorial: greves oportunistas, Folha de S.Paulo, 18 abr. 2014, p. A-2.
  31. 31. Transformaes na identidade nacional construda atravs do futebol: lies de duas derrotas histricas[1] Jos Sergio Leite Lopes A comparao entre as explicaes para a derrota brasileira na nal de 1950, em casa, e na de 1998, na Frana, pode ilustrar algumas das transformaes na construo e no sentimento de identidade nacional atravs do futebol no Brasil. Sabe-se que a construo da identidade nacional passa por vrias mediaes internacionais, desde condies sociais advindas de transformaes histricas at canais de comunicao e uma aguda observao de novos marcadores de nacionalidade de outros pases. Na Europa, essa construo teve lugar desde ns do sculo XVIII e por todo o XIX. Os pases da Amrica Latina, contudo, tm parte fundamental de sua identidade construda j em pleno sculo XX. No caso do Brasil e de pelo menos dois de seus vizinhos, Uruguai e Argentina, essa fase intensa, de tradies inventadas, coincidiu com a rpida difuso do futebol no pas, quando so institudas tambm as Copas do Mundo. Nessa instncia de competio internacional, elabora-se a apresentao pblica da nacionalidade. E bem conhecido o valioso efeito das vitrias para a exibio das qualidades nacionais. Mas e o poder das derrotas, sobretudo as exemplares? Que reflexes e fantasias coletivas so desencadeadas nessas ocasies? Sobre a derrota brasileira na Copa de 1950 h considervel produo bibliogrca. Sobre a de 1998 h muita cobertura jornalstica e alguns ensaios. A comparao entre ambas tem sido mencionada, embora de forma ainda pouco sistemtica. O esboo dessa comparao tem a vantagem de ao menos avaliar as transformaes ocorridas no futebol brasileiro no perodo, das quais destacam-se: (I) a grande ascenso na cena internacional entre 1958 e 1970, quando os jogadores brasileiros faziam carreira em casa, e (II) a intensicao da circulao de jogadores nos clubes europeus, na busca de um prossionalismo global nos anos 1980 e 1990. Quanto ao futebol capitalista globalizado que vimos eclodir com clareza na Copa de 1998, podemos estender algumas consideraes sobre o fato de sedi-lo em 2014. A Copa de 1950: uma autorreflexo coletiva depois da tragdia nacional
  32. 32. A Copa de 1950 o pice de um processo anterior de democratizao no futebol, e esse caminho exemplar que a derrota ameaar. O futebol brasileiro j podia se apresentar ao mundo em 1950 como a mais bem acabada apropriao de um produto ingls. De 1933 a 1950 foram dezessete anos de uma ascenso linear do futebol prossional, que tivera como modelo o futebol europeu e, de forma mais prxima, o argentino e o uruguaio. O destaque da atuao brasileira na Copa de 1938, com um time que reetia os avanos democratizantes do prossionalismo, estimulou intelectuais, mediadores da indstria cultural e o pblico crescente a iniciar uma construo de identidade nacional atravs do futebol. A competio esportiva fornecia o contexto para a exibio de qualidades nacionais que nos campos econmico e poltico ocupam ainda lugar perifrico e subalterno. O que vinha sendo observado desde os anos 1930 por folcloristas como a principal qualidade das artes e tradies populares era justamente sua capacidade de atualizarem-se atravs do corpo e de tcnicas corporais, como ocorria com danas e folguedos. A Copa de 1938 serviu para evidenciar dois fenmenos originais da difuso futebolstica no Brasil: o legado tnico negro e a incorporao da msica e da dana na forma de se jogar; e parte dos intelectuais modernistas que, nos anos 1920, tinham detectado na msica os critrios e as fontes de brasilidade via no futebol um novo campo de atividades, capaz de reunir uma prtica urbana e moderna autenticidade tradicional da cultura popular[2]. Essa incorporao de tradies inventadas consolidou-se em estilo prprio nos anos 1940. A Copa de 1950 seria o momento de mostrar isso ao mundo novamente, adequando a esttica do estilo vitria. Para o Brasil, era uma honra sediar um evento internacional desse porte. Aps sua boa performance em 1938, a candidatura brasileira era oportuna diante da Europa do ps-guerra, em reconstruo. E erguer um estdio na capital federal marcava a responsabilidade prvia do pas-sede antes mesmo de seu desempenho em campo. A organizao da equipe se d em torno do tcnico Flvio Costa, que havia dirigido os dois clubes mais populares do Rio de Janeiro nos anos 1940, o Flamengo e o Vasco da Gama. A base da seleo era constituda por jogadores do Vasco, complementados por outros do Rio e alguns de So Paulo. E a rivalidade entre o Rio de Janeiro e So Paulo pela primazia no esporte ocupava os esforos polticos de montagem do time. Naquela Copa, foi se constituindo uma nova maneira de torcer: a presena de mulheres e crianas, de famlias inteiras, contrastava com o pblico masculino habitual. Alm disso, as dimenses do estdio, que reuniu na partida nal 10% da populao do Rio na poca, acabavam produzindo uma nova e marcante forma de sociabilidade, um sentimento coletivo de visualizao imediata, construdo de forma extraordinria. A cantoria de msicas de carnaval improvisadas no contexto dos jogos com uma organizao de torcida pequena provocava a teatralizao coletiva de um sentimento cultural e ldico de nacionalidade dissociado da poltica e do contexto patritico militar habitual.
  33. 33. A derrota na nal, portanto, traumatizou essa construo coletiva. Com uma campanha muito melhor que a do time uruguaio, a seleo brasileira foi inuenciada pelo pblico e pela imprensa, que davam a vitria como certa. Ao contrrio das goleadas dos dois jogos anteriores, o empate sem gols persistiu at o incio do segundo tempo, quando o Brasil fez o primeiro gol. O pblico nalmente pde explodir de alegria. Mas quando veio o empate, num contra-ataque uruguaio, o silncio se apossou do estdio, incrdulo, e permaneceu nos momentos seguintes, num sentimento de decepo ante a ausncia do que deveria ser uma exibio de gala. A sensao de medo parece contagiar a equipe, e o desempate uruguaio se d em novo contra- ataque. Com o insucesso das desesperadas tentativas de empate nos minutos nais e o encerramento da partida, tem-se o silncio coletivo e a emergncia de um luto social muito intenso, desde a sada do estdio at os dias, meses e anos seguintes. Nenhuma outra nal de Copa do Mundo produziu tal tragdia no pblico da casa. Somente a Sucia foi derrotada em 1958 pelo Brasil na nal da Copa que ela organizou. Mas a seleo brasileira j se constitua como superior, e, diferena da nossa, a nacionalidade sueca no se colocava atravs do futebol. Todos os outros pases organizadores ou ganharam a Copa ou no disputaram as finais. A derrota tambm pode ser um importante marcador de sentimento de nacionalidade, uma forma de compartilhar coletivamente uma dor profunda e culturalmente construda. Foi o caso da derrota da Copa de 1950, que recebeu as mais variadas explicaes desde o assdio aos jogadores por parte de polticos e da imprensa, que teria desconcentrado os atletas, at as instrues do tcnico no sentido de no revidar s provocaes dos uruguaios, o que teria contido a agressividade dos defensores brasileiros. Ao nal, quem fortemente demonstrou fair play e civilidade foi a plateia, que permaneceu no estdio at a premiao da equipe vencedora e saiu em ordem, apesar da grande tristeza. Tal civilidade teve uma face de ao direta mais violenta, com a destruio do busto do prefeito da cidade, na entrada do estdio, entendida como uma usurpao poltica de um sentimento esportivo maior[3]. A civilidade do pblico acabou ganhando a imprensa internacional, tornando-se um consolo, assim como o foi o fato de a seleo ter sido considerada a melhor, incluindo o goleiro, Barbosa, eleito pela imprensa o melhor da competio. Mas a autoconteno em campo foi vista como falta de energia e de vontade, alegao que se somou a explicaes conservadoras do pensamento social brasileiro sobre a inaptido de negros e mestios para competies. No por acaso os gols uruguaios foram creditados como falhas de dois zagueiros e do goleiro, todos negros. Essa perspectiva estaria relacionada com as anteriores prticas dissimuladas de excluso dos jogadores das classes populares, algo que parecia ter se enfraquecido com o sucesso dos clubes de maior popularidade nos anos 1930 e 1940. Originalmente constatada e criticada por Mario Filho, jornalista militante da democratizao do futebol brasileiro, essa explicao retomada por vrios jornalistas e analistas sociais. A diculdade na evidenciao do peso dos esteretipos se d pelo fato de constiturem um senso comum
  34. 34. oral e muitas vezes sutil. A elaborao de intelectuais como Gilberto Freyre, a propsito das caractersticas de marcador da nacionalidade fornecidas pelo futebol brasileiro, poderia ser interpretada por sua homologia com tcnicas corporais advindas de uma socializao atravs de prticas tradicionais tidas como folclricas. Tambm poderia ser feita uma interpretao substancialista, da contribuio da raa e da etnia negra ao futebol brasileiro, como resposta a seus adversrios racistas o que cairia, contudo, na armadilha de se centrar menos nas relaes que nas substncias. Esses argumentos voltam cena com a derrota de 1950, numa reexo de autoculpabilizao coletiva, erudita (proveniente do darwinismo social) e popular, sobre as alegadas decincias da mestiagem do povo brasileiro. No toa que Nelson Rodrigues denomina esse sentimento autodepreciativo de complexo de vira- latas, a m de combat-lo s vsperas da Copa de 1958 e antever o sucesso do futebol brasileiro. A prpria atuao da seleo durante essa edio parece fornecer, atravs de suas modicaes internas, a vitria nal da inverso da estigmatizao anterior, com a progressiva morenizao dos jogadores vide Pel, Garrincha, Vav, Zito e Djalma Santos. A vitria nalmente alcanada em 1958 e repetida em 1962 e 1970 pde ter seus efeitos incorporados a um forte sentimento de nacionalidade graas tambm ao sofrimento e reexo coletiva advindos da derrota de 1950. Essa alternncia entre grande oportunidade perdida em casa e vitrias no exterior na continuidade de um mesmo estilo de jogo acabou proporcionando algo de uma exibio das qualidades nacionais, em que caractersticas culturais se imprimem nas tcnicas corporais dentro dos limites possveis das regras do jogo. A Copa de 1998 e a politizao da derrota que renega a tradio conquistada A interpretao da derrota da Copa de 1998, a nica na nal alm da de 1950, difere da anterior. A no mais se elabora um processo de culpabilizao de jogadores, como representantes das carncias populares e da nacionalidade brasileira. A explicao da derrota voltou-se para a estrutura de prossionalizao e do comercialismo globalizado do futebol, assim como seu mau uso pelos dirigentes do esporte. Na Copa de 1998 est no auge um processo de internacionalizao dos jogadores de futebol iniciado nos anos 1980. A grande era do futebol brasileiro se deu quando os jogadores faziam carreira no Brasil. Na segunda metade dos anos 1980 e nos anos 1990, a maioria dos grandes jogadores brasileiros estava em clubes estrangeiros. Tambm os tcnicos e seus auxiliares, com muito menos chances que os jogadores no futebol europeu, passaram a ir para o Oriente Mdio a partir dos anos 1970, abrindo uma rede secundria para jogadores. Tcnicos de seleo brasileira como Zagallo, Parreira, Tel Santana e Felipo estiveram nesses pases e ali constituram um bom patrimnio.
  35. 35. Assim como em 1950, as vsperas da nal de 1998 foram decisivas. Enquanto em 1950 a concentrao da seleo era invadida por polticos e jornalistas, a derrota de 1998 teria incio no descanso aps o almoo do prprio dia da deciso. E sobre o jogador Ronaldo parecia se concentrar todo o stress vivido pela equipe nas contingncias do futebol globalizado. Alm da presso dos contratos, por diferentes empresas, que criava tenso e dividia o time, sobre Ronaldo pesava ainda, alm do joelho machucado e da vigilncia da imprensa sobre sua ento namorada, um histrico pessoal de sonambulismo. Esse distrbio do sono teria provocado uma convulso de diagnstico controverso , que, assistida pelos jogadores, teria desequilibrado emocionalmente a equipe. A falta de informaes entre a equipe dirigente e os jogadores no desenrolar da crise que acometeu Ronaldo levou desorientao completa do time[4]. Ao contrrio da partida de 1950, em 1998 o Brasil jogou contra a torcida majoritria da casa. Irreconhecvel em campo, a seleo perdia por 2 x 0 j no m do primeiro tempo. Sem conseguir reverter a situao, levou mais um gol ao nal da partida. Toda a equipe esteve mal, e no foi possvel associar as falhas a um ou outro jogador como em 1950. Mas Ronaldo, por seu distrbio de sade, atraiu a responsabilidade da derrota. Em sua trajetria peculiar, Ronaldo carrega muitas caractersticas do padro tradicional dos jogadores brasileiros. Morador do subrbio humilde do Rio, tinha dificuldades financeiras para treinar no futebol de salo e na equipe do So Cristvo, time tradicional da segunda diviso carioca onde, pelas mos do ex-campeo de 1970 Jairzinho, conseguiu se fazer notar por olheiros da CBF e ser convocado para a seleo brasileira sub-17 para disputar um torneio sul-americano. Como Pel, Ronaldo foi convocado para a Copa de 1994 com 16 anos de idade, mas diferentemente do Rei, no jogou. Alm disso, enquanto Pel permaneceria no Santos nas Copas seguintes, Ronaldo j havia sido transferido para o PSV de Eindhoven, na Holanda, e, depois, iria para o Barcelona e para a Inter de Milo. Atravs de seus empresrios, assinou sucessivos contratos com empresas de renome mundial, incluindo a Nike, que via na seleo brasileira importante foco de investimentos. No momento da derrota para a Frana, Ronaldo simbolizava as contradies do futebol globalizado. Os altos salrios tinham por contrapartida bons desempenhos nos clubes e eventualmente na seleo, mas o ritmo acelerado de treinos, jogos e negcios instalaram fortes incompatibilidades e dramas no corpo do jogador. Ele era, alm disso, a ilustrao mais radicalizada e bem-sucedida daquilo que estava ocorrendo com inmeros jogadores do futebol brasileiro e de outros pases perifricos. O crescente comercialismo associado era do alcance mundial das transmisses televisivas e dos contratos milionrios de imagem publicitria no s quebra o equilbrio dos clubes nacionais como alimenta a importncia do esporte perante grandes parcelas da populao jovem. Cria-se assim um circuito restrito de superjogadores hiper-remunerados, esvaziando precocemente o esporte local[5].
  36. 36. As explicaes da derrota de 1998 tambm diferiam daquelas que se produziram em 1950. Assim como em 1950, identicava-se a arrogncia do favoritismo. Mas com a grande diferena de que, com as quatro vitrias anteriores, j havia sido incorporada uma histria de sucesso. Esse autofavoritismo era potencializado pela promoo feita em torno da seleo pela imprensa internacional e pelos patrocinadores, tornando-a uma atrao parte, bastante explorada em anncios publicitrios. Assim, as explicaes visavam menos os jogadores (supostos representantes de um povo com baixa autoestima e em busca de sua identidade coletiva, como apontado em 1950) e mais os dirigentes, que haviam gerido mal todo o favoritismo. Ronaldo, centro do drama, era visto como a engrenagem partida de uma estrutura maior, da qual se destacava uma administrao sem transparncia ou prestao de contas e com contratos secretos com a Nike. Tambm os jogadores foram considerados mercenrios, que, sem suciente amor camisa, jogavam em times estrangeiros por salrios milionrios[6]. A inconformidade com o desfecho da nal de 1998 acabou trazendo assim uma politizao das explicaes da derrota. A identidade nacional atravs do futebol, consolidada nas dcadas anteriores, no estava ameaada como em 1950. Em 1970, o incio da transmisso direta pela TV fornece uma visibilidade indita para o pblico geral. Daquele ano, alguns autores destacam ainda a paradoxal autonomia relativa dos jogadores, aps a passagem de Joo Saldanha pela seleo, ante o contexto militar. Tal participao ativa por parte dos jogadores dava continuidade tradio de experincias como a da equipe de 1958 e as do Botafogo e do Santos dos anos 1960, sucedidas pela experincia da democracia corinthiana do incio dos anos 1980, quando o pas atravessava um perodo de redemocratizao e de fora dos movimentos sociais[7]. Em 1994 a equipe vence, o que contribui para o favoritismo de 1998. Mas a derrota no signica um julgamento negativo do povo representado pelos jogadores. Agora no h mais essa representao, e justamente esse ato de delegao que se pe em questo, pela ao duvidosa dos dirigentes, por suspeitas de corrupo, por falta de empenho dos jogadores. A derrota de 1998 desencadeia ento um processo que leva a duas Comisses Parlamentares de Inqurito no Congresso Nacional, uma na Cmara dos Deputados, para investigar o contrato entre CBF e Nike, e outra no Senado, tendo por objeto os negcios ilegais envolvendo dirigentes. 2002 e depois: uma vitria, um novo ciclo de derrotas e as singularidades de sediar a Copa pela segunda vez Embora a participao brasileira na Copa de 2002 se desse no mesmo contexto do futebol globalizado e de crise recente do futebol nacional, as provaes passadas pela seleo foram capazes de fortalecer a equipe, levando-a vitria nal contra a Alemanha, num duelo indito entre as duas selees que mais Copas haviam ganhado.
  37. 37. Os fracassos da seleo nesse interregno entre a Copa de 1998 e as vsperas da de 2002 pareciam reetir a crise poltica de toda a organizao do futebol brasileiro, vasculhada pelas citadas CPIs. A fraca atuao da seleo nas eliminatrias foi o pice desse longo percurso de insucessos, com entrada e sada de tcnicos, at o recurso de ltima hora equipe de Felipo. Essa situ