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9 ANDRÉ JULIANO NEPOMUCENO MONTEIRO LOBATO E A CRÍTICA DA CULTURA BRASILEIRA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: MESTRADO EM TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA Agosto de 2005

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ANDRÉ JULIANO NEPOMUCENO

MONTEIRO LOBATO E A CRÍTICA DA CULTURA BRASILEIRA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: MESTRADO EM TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA

CULTURA

Agosto de 2005

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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSJ e submetida ao exame dos seguintes professores BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________

Profa. Dra. Suely da Fonseca Quintana – UFSJ Orientadora

-------------------------------------------------------------------------------------------- Profa. Dra. Terezinha Maria Scher Pereira – UFJF

-------------------------------------------------------------------------------------------- Prof. Dr. Alberto Ferreira da Rocha Júnior – UFSJ

-------------------------------------------------------------------------------------------- Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras

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25 de julho de 2005

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Aos meus pais, Iracema e Antônio, fontes inesgotáveis de amor, confiança e apoio; sem os

quais essa conquista não seria possível.

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Agradecimentos

A minha orientadora, Suely Quintana, cuja convivência foi bastante enriquecedora, e

pela acolhida, mostrando-se sempre profissional, compreensiva e acessível, abrindo

as portas de sua casa.

Aos meus irmãos – Alex, Jean, Adriano e Jussara – pelo incentivo e apoio.

Aos amigos Gilmar, Kelly, Gilberto e Tatiane e seus familiares que gentilmente me

acolheram nesses dois anos, sendo sempre prestativos.

Aos meus colegas de Mestrado, Carmem, Flávia, Estael, Eni, Adriana, Carolina,

Regina, Marcel, Hélder e Vicente, pela convivência prazerosa.

A CAPES por financiar os meus estudos durante o Mestrado.

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Resumo

Este trabalho de dissertação foi elaborado com o objetivo de analisar a argüição crítica e

cultural que Monteiro Lobato faz a respeito da sociedade brasileira, nas quatro primeiras

décadas da República. Nessa direção, foram considerados os conceitos de cultura,

nação, nacionalismo, moderno, modernidade e mundialização; à luz do estudo

comparativo entre os contos de Lobato e parte da sua obra não-ficcional. A presente

perspectiva de trabalho considerou, ainda, o contexto histórico, sócioeconômico e cultural

de Monteiro Lobato; a sua atuação multifacetada, como fazendeiro, escritor, editor,

tradutor e empresário; além de seu perfil moderno, positivista e empreendedor. A análise

parte das concepções literárias e culturais do autor diante da realidade do país, sob a

consciência de que, na atuação intensa de Lobato, literatura e cultura encontram-se

interligadas, apontando para uma vertente positivista que, por sua vez, envolve a

industrialização do Brasil, como fator iminente, mediante a decadência do setor agrário.

Considerando que o pensamento do autor encontra-se alicerçado sob a insígnia do

moderno e do progresso, propõe-se, aqui, a discutir o nacionalismo crítico de Lobato

calcado no conhecimento da realidade, na crítica da cultura e em sua convicção de que a

soberania nacional pressupõe a inserção do país no circuito mercadológico internacional;

ou seja, a nação afirmando-se como tal, por meio da mundialização de sua economia e

cultura. Sob esse enfoque, a análise traça um paralelo entre o nacionalismo crítico de

Lobato e o nacionalismo ufanista, ainda em voga na época do autor. Trata-se, portanto,

de levar ao conhecimento do leitor o posicionamento de Monteiro Lobato em torno

dessas questões e a forma como ele as aborda.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO-------------------------------------------------------------------------------------09

CAPÍTULO 1: A transição literária: Pré-Modernismo e Modernismo----------------18

CAPÍTULO 2: Um arquivo crítico do pensamento cultural brasileiro----------------41

CAPÍTULO 3: Monteiro Lobato: as propostas nacionalistas---------------------------63

CONCLUSÃO -------------------------------------------------------------------------------------86

BIBLIOGRAFIA------------------------------------------------------------------------------------95

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Introdução

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A vida de Monteiro Lobato é marcada por sua atuação e temperamento irrequietos,

sempre a enveredar-se na busca pelo novo. Ativo e dinâmico, o escritor vive de forma

intensa, procurando tornar realidade os seus sonhos, ideais e objetivos. Ousado, não só diz

o que pensa, como também mostra o seu espírito empreendedor e positivista, concebendo a

mudança como um fator necessário e inerente à própria vida. Ousar, acreditar e mudar são

atitudes que além de nortearem o seu pensamento, refletindo-se em sua vivência particular,

fazem parte de suas expectativas em relação ao Brasil. Monteiro Lobato nasceu em 1882, na

cidade de Taubaté e veio a falecer em 1948, na cidade de São Paulo.

Sua trajetória de vida envolve sua atuação multifacetada como fazendeiro, escritor,

editor, tradutor e empresário, atestando a sua intensa vivência. Como fazendeiro, ao herdar

do avô uma fazenda de grande porte, próxima ao município de Buquira, no Estado de São

Paulo, Lobato além de entregar-se, sem sucesso algum, à atividade de agricultor, conhece

os problemas do campo e a realidade do sertanejo. A partir dessa experiência, escreve os

ensaios Urupês e Velha praga, denunciando a situação do homem do campo.

Desiludido, vende a fazenda e compra a Revista do Brasil (para a qual já escrevia

os seus contos), iniciando-se como editor; tornando-se, assim, o precursor do mercado

editorial no Brasil. Lobato edita os seus próprios livros juntamente com os de outros autores,

na intenção de que o livro circule em todo o país, estando mais acessível à população.

Ampliando os seus horizontes, ele funda a Editora Monteiro Lobato e Cia. e, posteriormente,

a Editora Companhia Nacional, em sociedade com Otacílio Marcondes.

Lobato escreve uma vasta obra literária que se divide em uma literatura adulta, em

que se destacam os seus contos, e uma literatura infanto-juvenil, na qual ele se consagra,

sendo considerado o grande expoente desse gênero literário no Brasil.

Como empresário, constam como seus empreendimentos a criação do mercado

editorial brasileiro e as tentativas de explorar petróleo e ferro em solo nacional –

considerados matérias-primas de uma indústria de base. Convicto da existência dessas

riquezas minerais no Brasil e da importância de sua extração para o progresso do país,

engaja-se em campanhas de conscientização a esse respeito.

Em sua trajetória de vida, deve-se ressaltar, ainda, a sua residência na Argentina e

nos Estados Unidos, atuando como adido comercial. O contato com culturas diferentes foi

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decisivo para a sua análise a respeito do Brasil, identificando nelas aspectos indicativos de

progresso, ausente, porém, em nosso país, como é o caso da exploração de ferro e petróleo

nos Estados Unidos.

Não obstante o fato de Lobato iniciar-se como literato, entre os anos de 1918 e

1920, com a publicação dos seus livros de contos Urupês (1918), Cidades mortas (1919) e

Negrinha (1920), e como editor a partir da década de 20, o recorte temporal que serve de

contexto para a pesquisa refere-se aos quatro decênios iniciais da República. Trata-se de

um período singular, marcado pelas conseqüências advindas da transição da Monarquia

para a República e por inúmeras e consistentes transformações não apenas no contexto

sócio-econômico e cultural brasileiro, como também no cenário mundial, tendo como fatos

marcantes o alvorecer do capitalismo e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ao final

desta, constatou-se em vários países uma mudança de concepção acerca do conceito de

nacionalismo.

Ao término da Primeira Guerra Mundial, muitos intelectuais voltaram as suas

atenções para os problemas nacionais, trazendo à luz da discussão inúmeros

acontecimentos e circunstâncias de ordem política, econômica e cultural. Em virtude disso, o

pensamento literário brasileiro – que antes se guiava pelos moldes estrangeiros – se

transforma, passando a enveredar pelos rumos do regionalismo.

Trata-se, portanto, de uma ruptura que sanciona uma atitude de emancipação e independência com relação à influência européia, priorizando tanto temas e comportamentos pertinentes à realidade brasileira, quanto uma análise literária que lhes seja o mais condizente possível. Nessas circunstâncias, o texto literário encarrega-se da incumbência de expor, abordar e criticar as mazelas e problemas nacionais.

Verifica-se, pois, que a vivência e atuação de Monteiro Lobato realçam a

importância e a proposta desse trabalho de dissertação: analisar a argüição que o autor faz a

respeito da sociedade brasileira de sua época, ressaltando o seu contexto sócio-histórico,

econômico e cultural, as suas concepções literárias e culturais em convergência com o seu

perfil moderno.

Constituem o corpus deste trabalho os contos Cidades mortas, Os perturbadores do silêncio, A vida em Oblivion, Café! Café!, O drama da geada, Nuvem de gafanhotos, Cabelos compridos, O comprador de fazendas, “O Resto de Onça”, os ensaios Urupês e “Velha praga”, e as obras não-ficcionais de Lobato, A barca de Gleyre (v.1 e 2), Prefácios

e entrevistas e Idéias de Jéca Tatú. Este trabalho de dissertação apresenta como traço

diferencial estabelecer uma relação entre as questões culturais e literárias propostas por

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Monteiro Lobato e a sua literatura adulta, por meio de uma abordagem comparativa entre

suas obras ficcionais e não-ficcionais.

Cidades mortas e Perturbadores do silêncio discutem o declínio da economia

cafeeira. Café! Café! e O drama da geada tematizam a mentalidade atrasada da

aristocracia rural e a monocultura do café. Nuvem de gafanhotos aborda a cultura

interessada, ao passo que Cabelos compridos, O comprador de fazendas, “O Resto de Onça” e A vida em Oblivion trazem ao conhecimento do leitor o pitoresco do ambiente

representado por Lobato. Finalmente, os ensaios Urupês e “Velha Praga”, de aspectos

críticos acirrados, denunciam a indigência do homem do campo.

Paralelamente a esses ensaios e aos respectivos contos, encontram-se as obras A

barca de Gleyre, Prefácios e entrevistas e Idéias de Jéca Tatú. A barca de Gleyre, em seus

dois volumes, corresponde à compilação das cartas de Lobato endereçadas a Godofredo

Rangel, entre 1903 e 1948. Essas cartas foram reunidas por Edgard Cavalheiro – amigo e

um dos principais biógrafos do autor. Nesse longo período de correspondência, Lobato trata

de assuntos como literatura, política, filosofia e cultura.

Nessas cartas, o autor profere as suas concepções literárias que vão desde a sua

apreciação e repulsa em relação a determinados autores literários, até os parâmetros que

julga coerentes com o fazer literário. Nelas encontram-se, ainda, as suas concepções sobre

cultura, de um modo geral, e, principalmente, sobre a cultura e economia brasileiras. A tudo

isso, acrescenta-se, também, o relato de suas investidas empresariais como editor e sua luta

política pela exploração de ferro e petróleo no Brasil.

A propósito do título A barca de Gleyre, explica que no Minarete – um pequeno

chalé situado no bairro Belenzinho, na cidade de São Paulo – onde Lobato e seus amigos se

reuniam, havia, fixado na parede, um quadro chamado “Ilusões Perdidas”, de autoria de

Charles Gleyre. Este quadro trazia a figura de uma nau, cuja proa voltava-se para o cais,

onde se encontrava um velho com o braço estendido sobre uma lira. Ao reunir as cartas em

um livro, Edgard Cavalheiro lhe dá o sugestivo nome de A barca de Gleyre, em alusão

explícita ao quadro. Sugestivo, pois a leitura das cartas indica que, ao final de sua vida,

Lobato já havia perdido muito das suas ilusões em relação ao Brasil. Ilusões estas, de

conhecimento do biógrafo e descritas na longa correspondência do autor com Godofredo

Rangel. Nas cartas finais, o leitor depara-se com um homem abatido e descrente, ao

contrário do escritor otimista e entusiasta presente nas cartas anteriores.

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Prefácios e entrevistas traz ao conhecimento do leitor uma série de textos de

Monteiro Lobato, representantes de diferentes épocas e modos de pensar do autor. Lobato

prefaciou livros os quais julgava, de algum modo, interessantes; assim como concedeu

várias entrevistas a periódicos e, sobretudo, a jornais, quando questionado sobre os mais

variados assuntos. Entretanto, algumas de suas concepções literárias, culturais, políticas e,

mesmo, econômicas não se manifestam exclusivamente nas entrevistas. Elas estão

presentes também nos prefácios, mesmo porque, acredita-se que Lobato, ao concedê-los a

determinados livros, fazia-o em virtude dessas concepções porque, de alguma forma, esses

livros eram condizentes com a sua forma de pensar e agir.

Idéias de Jéca Tatú constitui uma coletânea de artigos nos quais Lobato discorre

sobre a problemática da imitação cultural do Brasil, principalmente em relação à cultura

francesa. O título evoca um dos mais famosos personagens do autor – o Jeca Tatu – como

autêntico símbolo do Brasil, que se contrapõe à imitação cultural.

Em virtude dessa nova perspectiva nacionalista, incidente sobre a literatura

brasileira no século XX, um dos personagens mais marcantes de Monteiro Lobato, o Jeca-

Tatu (enquanto caricatura do caboclo outrora estilizado, a denunciar a indigência do homem

do campo) implica a ruptura com o índio gentil e civilizado, representante do “bom selvagem”

presente nas obras de José de Alencar, por ocasião do Romantismo brasileiro embebido nas

concepções literárias européias.

Desse modo, o pensamento literário e cultural de Lobato pode ser analisado por um

viés duplo: ao mesmo tempo em que representa uma atitude engajada, tomando para si o

encargo de denunciar e criticar as mazelas sociais; também busca repensar a realidade

brasileira não mais do ponto de vista do locus paradisíaco (emblema sustentado pelo

Romantismo), mas a partir de seus problemas que urgem solução.

O Brasil recém saído da Monarquia e, lentamente, se adaptando à República,

aparece representado no corpus selecionado, com vistas à abordagem crítica e à reflexão

das transformações sócio-econômicas, políticas e culturais ocorridas nesse mesmo período

de fundamental importância para a discussão dos passos iniciais da formação nacional

brasileira, em face de um novo contexto político, embora ainda marcado pelo final escravista

do século XIX.

Nesse contexto, paralelamente aos fazendeiros de café que constituíam a oligarquia

rural e política do país (a gozar, com exclusividade, de toda sorte de benefícios e favores

advindos do governo republicano) encontra-se uma burguesia industrial que, embora

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incipiente a princípio, passará juntamente com a classe dos profissionais liberais a exercer

influência sobre as decisões políticas e econômicas do país.

Diante desse quadro, evidencia-se que os contos de Lobato e os seus registros presentes sob forma de cartas, prefácios, entrevistas e artigos captam um Brasil em crise. Atrelado a estruturas arcaicas, o país se deixa seduzir pelos benefícios do progresso, ao mesmo tempo em que é arrastado para um mercado político e econômico, de caráter mundial, que nem sempre se coaduna com as idéias liberais transplantadas para o Brasil. O pensamento, a literatura e a atuação de Lobato tornam-se fecundos, por considerar as contradições sociais que lhe são contemporâneas.

Não bastasse o texto e o pensamento lobatianos representarem uma atitude de

ruptura ideológica, literária e até mesmo estética (haja vista a forma com que o autor lida

com a linguagem), eles atuam no sentido de apreender o contraditório e conflituoso contexto

sócio-cultural brasileiro. Nesse sentido, Lobato deliberadamente se propõe a argüir uma

sociedade cindida entre sistemas e instituições arcaicos (como por exemplo, a questão

agrária, o monopólio do café e a conservadora aristocracia rural) e o alvorecer do capitalismo

e da indústria – enquanto realidades discrepantes que deflagram a crise econômica e

cultural existente em seu tempo.

Em ambos os casos, na obra ficcional e não-ficcional de Lobato, busca-se identificar

os procedimentos de linguagem e o recurso da caricatura utilizados pelo autor e que possam

traduzir o seu pensamento e argüição crítica diante da sociedade brasileira de sua época.

De acordo com a proposta geral deste trabalho, que é analisar a argüição crítica que

Monteiro Lobato faz sobre a sociedade brasileira das quatro primeiras décadas da República

(proveniente de sua atuação intensa como escritor, editor, tradutor e empresário), este

trabalho buscou subsídios teóricos nos seguintes autores: Antonio Candido, João Luiz

Lafetá, Silviano Santiago, Octavio Paz, Roberto Schwarz, José Murilo de Carvalho e Renato

Ortiz.

Em Antonio Candido deparamo-nos com a discussão do Modernismo como

proposta de ruptura, uma vez que o autor considera o tratamento inovador da linguagem e a

sondagem social presentes em seu desenvolvimento como parâmetros de um novo fazer

literário, em oposição à estética passadista do movimento romântico. Ao traçar o perfil do

caboclo paulista, ele analisa o Pré-Modernismo e o Modernismo, à luz dos conceitos de

transição e ruptura. No seu entender, o Modernismo compreende a real ruptura tanto por

operar de forma inovadora com a linguagem poética e narrativa, quanto por se dispor à

sondagem da realidade brasileira.

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Como contraponto da análise aqui empreendida, recolhe-se em João Luiz Lafetá

uma reflexão diversa de Antonio Candido no que tange ao caráter inovador do Modernismo.

Lafetá compreende o Modernismo em face do que ele chama de projeto estético e projeto

ideológico, propondo uma cisão no interior do movimento modernista, a partir da qual ele

estuda a sua evolução. Segundo ele, o projeto ideológico modernista tem sua gênese no

Pré-Modernismo – quando já se faziam especulações acerca da realidade brasileira. É nesse

sentido que o ponto de partida para discutir Monteiro Lobato será o contexto modernista,

como se apresenta em João Luiz Lafetá. Além do fato de o grande eixo condutor dessa

análise ser o aspecto moderno, contextualizado à luz dos autores teóricos escolhidos.

Em posição análoga à de Lafetá, Silviano Santiago discute o Modernismo, com base

no conceito de tradição, para analisar a relação entre este e o Pré-Modernismo, buscando

confirmar o retorno modernista às manifestações ideológicas pré-modernistas. Toma-se por

base o princípio de que Pré-Modernismo e Modernismo correspondem a um período de

transição e aprofundamento das discussões sobre cultura, literatura, formação e

transformação da idéia de brasilidade.

Octavio Paz lida com o conceito de tradição da ruptura, presente na concepção de

moderno. Tratando da “banalização” das rupturas por sua incorporação no cotidiano, Paz

afirma que o moderno se faz pela tradição do “novo pelo novo”, o que parece endossar o

posicionamento de Lafetá e Santiago, para os quais a grande discussão se dá em torno do

que, de fato, se entende por moderno e modernista. Até que ponto o novo inaugura uma

ruptura ou, por mais paradoxal que pareça, uma nova tradição? Esses pontos são

fundamentais para estabelecer uma análise crítica de Lobato, contemporâneo e tão distinto,

e tão semelhante ao mesmo tempo dos modernistas e dos pré-modernistas.

Ainda tendo em vista o período das quatro primeiras décadas do século XX, como

cenário das discussões aqui propostas, recupera-se aqui o texto “As idéias fora do lugar”,

de Roberto Schwarz, que de certa forma trata do nacionalismo de forma indireta,

reportando-se mais às questões de ordem cultural e mesmo estruturais na passagem do

Brasil colonial e escravista para o mundo das idéias do Liberalismo europeu.

Recuperando o que Schwarz trata no texto “Nacional por subtração”, afirmando que os

problemas brasileiros são de ordem estrutural, compreende-se melhor o embate entre a

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necessidade de se construir um Brasil como nação autônoma e ao mesmo tempo ver

como inevitável o contato com os modelos político-econômicos e culturais da Europa.

Modelos que nos chegam de várias formas e que influenciam na literatura aqui produzida

e contra a qual a Lobato se insurge. Modelo ou cópia, apropriação ou imitação?

Antropofagia? Nessa linha de raciocínio apresenta-se uma discussão já postulada por

autores como Eliana Yunes – Lobato Modernista? Retoma-se esse ponto em outro ponto

da dissertação, lançando uma contribuição nesse controvertido e fascinante Lobato.

José Murilo de Carvalho, em seu texto “Brasil: Nações Imaginadas”, aborda os

conceitos de nação e nacionalismo, traçando a sua evolução entre os períodos de 1822,

1930 e 1945; e, sobretudo, discutindo a idealização em torno desses conceitos. Esses

pontos desenvolvidos por ele contribuem para se acompanhar a formação e transformação

dos vários nacionalismos definidos e redefinidos por Lobato.

Por fim, Renato Ortiz, cuja abordagem do conceito de nação tende para a análise do

tema da mundialização, participa como contraponto para as idéias progressistas de Lobato,

que muitas vezes foi criticado por seu fascínio pelos norte-americanos. Para Ortiz, a

mundialização corresponde à expansão das fronteiras nacionais, ou seja, sua inserção em

um contexto mundializado – justamente a busca de Lobato pela inserção do Brasil no espaço

cultural do mundo – um modernista? Essa é mais importante discussão para o ponto de vista

da crítica literária, uma vez que classificar e caracterizar os autores apenas por escolas ou

tempo de gerações não responde ao modo e extensão de seus trabalhos, obras e

contribuições à cultura.

Para tratar dessas questões, a presente dissertação será dividida em três capítulos,

nos quais análise e crítica estarão presentes de acordo com os passos e recortes

estabelecidos para tratar das obras do corpus. Não haverá uma separação em capítulos

essencialmente teóricos ou de análise. Idas e vindas, como Monteiro Lobato.

No primeiro capítulo, A transição literária: Pré-Modernismo e Modernismo,

propõe-se a análise do percurso do mapa de leituras que fizeram parte da formação cultural

de Monteiro Lobato. Com isso busca-se compreender a relação entre a produção crítica e

literária de Lobato e os movimentos estéticos conhecidos como Pré-Modernismo e

Modernismo. Os textos mais utilizados nesse capítulo são A barca de Gleyre, Prefácios e

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entrevistas e Idéias de Jéca Tatú, porque neles se pode acompanhar de forma mais explícita

que nos textos literários as propostas renovadoras de Lobato.

No segundo capítulo, Monteiro Lobato: um arquivo crítico do pensamento cultural brasileiro, abordaremos as concepções culturais de Lobato. Essas concepções são

retomadas nos seguintes aspectos: econômicos, políticos e culturais. Devido à atuação

multifacetada de Lobato, no que se refere ao seu papel como editor, escritor, crítico e

empresário, foi possível traçar um paralelo entre a escrita ficcional e não-ficcional desse

autor, percorrendo desde os grandes caminhos apontados por ele até as pequenas trilhas

vislumbradas, as quais apontam novas possibilidades críticas. Um grande eixo crítico desse

capítulo trata-se da visão de progresso do autor, presente nos conceitos de taylorismo e

georgismo, analisados nos seus ensaios Urupês e “Velha Praga”, nos contos Cidades mortas, Café! Café!, O comprador de fazendas, A vida em Oblivion, Cabelos Compridos e O “Resto de Onça” e n’ A barca de Gleyre e Prefácios e entrevistas.

No terceiro capítulo, Monteiro Lobato: as propostas nacionalistas, se estabelece

uma discussão em torno do nacionalismo de Monteiro Lobato, levando em consideração o

seu perfil moderno. A noção de nacionalismo e de nação no autor está ligada à idéia de

progresso e de soberania. A percepção de nação em Lobato envolve questões como a

educação, o direito de expressão, somada à autonomia do país frente ao mercado mundial

por meio das relações econômicas estabelecidas em torno da produção de ferro e petróleo.

Um Estado Nacional soberano para ele deveria estar em consonância com o mercado e o

estabelecimento de relações comerciais que fossem vantajosas não apenas para os países

mais desenvolvidos. A possibilidade de progresso deveria estar necessariamente ligada ao

ensino, pois através dos atos de leitura, informação e cultura, o país se tornaria soberano,

colocando-se em igualdade para discutir seus direitos frente aos outros países.

Diante desse quadro, evidencia-se que o corpus analisado capta um Brasil em crise,

atrelado a estruturas arcaicas. Se por um lado o país se deixa seduzir pelos benefícios do

progresso, por outro é arrastado para um mercado político e econômico, de caráter mundial,

que nem sempre se coaduna com idéias liberais transplantadas para o Brasil. A literatura de

Lobato torna-se, portanto, fecunda, por nutrir-se em sua construção, das contradições que

lhe são contemporâneas.

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A transição literária: Pré-Modernismo e Modernismo

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O presente capítulo pretende analisar o pensamento literário de Monteiro Lobato, à luz da crítica do Pré-Modernismo e do Modernismo e das leituras do autor no decorrer de sua formação como literato, sob o intuito de abordar suas concepções estéticas e literárias. Busca-se também verificar se sua produção apresenta pontos de contato entre o Pré-Modernismo e o Modernismo brasileiro. Sob essa perspectiva, buscou-se fundamentação teórica nos autores Antonio Candido, João Luiz Lafetá, Silviano Santiago e Octavio Paz, cujos estudos referem-se a esses dois movimentos literários.

A princípio, torna-se difícil apreender tanto as concepções literárias de Lobato quanto a sua produção, se atentarmos para o perfil moderno do autor e a sua inserção cronológica no Pré-Modernismo, cujo entendimento requer a necessidade de nos reportarmos ao Modernismo. Entretanto, antes de adentrarmos propriamente no pensamento e na produção literária de Lobato, devemos nos ater, inicialmente, na distinção entre moderno e Modernismo, sob a consciência de que, embora diferentes, esses termos se inter-relacionam.

O moderno equivale a rupturas com padrões e parâmetros de comportamento, alicerçado sob as insígnias do novo e da descontinuidade. Alguns teóricos e estudiosos postulam que o pensamento moderno envolve dois momentos marcantes: o Renascimento, no início do século XVI, e a Revolução Industrial, no século XVIII. Tendo em vista a importância deste último acontecimento, alguns sociólogos definem o pensamento moderno pelo seu caráter de mobilidade: mobilidade das técnicas, mobilidade social (relação dos indivíduos entre si, com os lugares, com o trabalho), mobilidade intelectual (assimilação de mudanças no conhecimento e na prática).

É interessante falar de mobilidade das técnicas, pois esta se tornou possível graças à Revolução Industrial que, naquela época, possibilitou um significativo avanço tecnológico. O mesmo se pode dizer em relação à mobilidade social, tendo em vista que aquilo que convencionalmente denominou-se de moderno caracteriza-se, também, pelo despontar burguês; tanto que, para Marx, o termo moderno designaria a ascensão da burguesia, somada ao crescimento econômico, ao estabelecimento do capitalismo e a suas manifestações políticas.

O moderno deve ser concebido como o apelo incessante pelo novo em oposição ao considerado antigo ou passado; sendo, portanto, um ponto de cisão respaldado e apreciado por significar, ao mesmo tempo, uma transformação nas formas de sentir, pensar e agir, e por implicar uma mudança nos padrões de comportamento e cultura que norteiam a relação entre o homem e o mundo. O moderno, em seu momento de aparição, comporta o traço da contemporaneidade, da atualidade e do novo.

Na verdade, entende-se o moderno como o “novo pelo novo”; ou por mais paradoxal que possa parecer, como uma descontinuidade contínua. Por essa razão, Baudelaire julga o moderno como efêmero, identificando-o com a concepção que se faz da moda, cuja acepção não mais significaria regularidade na mudança e previsibilidade dos ciclos; ao contrário, designaria imprevisibilidade e encanto criados por artistas espontâneos. O

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moderno passaria a condicionar as manifestações de ordem cultural, artística e intelectual; assim como determinar novas formas de viver, possibilitadas, em grande parte, pelo surgimento de tecnologias específicas. Conseqüentemente, a dimensão do moderno vai delinear o movimento modernista assinalado pelo culto exacerbado ao novo, ao moderno, à atualidade mutável.

O Modernismo compreende manifestações singulares, ou seja, em cada país ele é assimilado de forma distinta, dando origem, portanto, a uma manifestação modernista de ordem específica. Assim, o movimento modernista português difere do ocorrido no Brasil. Entretanto, o Modernismo possui um traço unificador a todas essas diferentes manifestações: a necessidade de repensar o local.

O entendimento do Modernismo brasileiro põe em foco a importância do que vinha sendo gestado no Pré-Modernismo. Se para alguns teóricos, como Alfredo Bosi, o Modernismo foi um procedimento de grande ruptura, para outros, como Antonio Candido e João Luiz Lafetá, esse momento cuida em aprofundar questões já expostas no Pré-Modernismo.

Ao analisar criticamente a proposta estética e ideológica do Modernismo, João Luiz

Lafetá (1974) orienta a sua análise, enfocando duas questões: primeiramente em que

medida essa linguagem é realmente nova; e, ainda, as necessidades de se determinar as

relações entre esse movimento, que se quer novo, e o contexto cultural pertinente a sua

manifestação. Colocado de outra maneira, trata-se de situar na história da Literatura

Brasileira o movimento modernista.

Essa percepção de Lafetá determina que o Modernismo deva ser visto, concomitantemente, como projeto estético (instaurando modificações operadas na linguagem) e enquanto projeto ideológico (como forma de se questionar o pensamento de uma época). Não obstante, o autor ressalta que o projeto estético constitui-se em uma co-extensão do projeto ideológico, concebendo-os como duas faces complementares, às vezes em uma relação de tensão, dentro do movimento modernista. Por outras vias, o ataque às maneiras de dizer se assimila ao ataque às maneiras de se ver, de ser e de conhecer, comuns a uma época.

Entretanto, a ressalva que Lafetá faz à ocorrência ocasional de uma tensão entre o

estético e o ideológico reside no fato de o autor considerar a ideologia como capaz de se

disfarçar em fórmulas múltiplas de linguagem, revestindo-se de meios expressivos diversos

dos anteriores, podendo, pois, passar por novo e crítico o que permanece velho e apenas

diferente. Lafetá cita como exemplo o Futurismo de Marinetti que, a despeito de julgar-se

como uma expressão da moderna vida industrial, representava factualmente o

prolongamento anacrônico da consciência burguesa otimista e progressista do século XIX.

O que Lafetá deseja enfatizar é que, embora o Modernismo apresente inovações na literatura e no diálogo desta com a sociedade, tais inovações, entendidas como rupturas com o passado, são apenas rupturas parciais. Pode se dizer que o Modernismo (pelo menos em sua fase experimental) ao inaugurar a estética da ruptura com a tradição, paradoxalmente instaura a tradição da ruptura; ou seja, o que era novo, ao ser adotado à

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exaustão, torna-se tradição. Percebe-se uma contradição imanente ao próprio movimento modernista: a manutenção da tradição (embora por vias diferentes) que ele mesmo se propõe a destruir. Semelhante controvérsia parece nortear o pensamento moderno de Lobato: embora ele crie o Jeca Tatu, aludindo a tudo aquilo que ele considera como anacrônico e arcaico, subjacente há a sua convicção de não abandonar o campo.

Em síntese, o projeto estético seria revolucionário ao propor uma visão de obra de

arte não mais como mímese da natureza, mas como objeto de qualidade diversa e portador

de uma relativa autonomia. Ao passo que o projeto ideológico, com ênfase no conhecimento

e na interpretação da realidade nacional, não se limitou ao desmascaramento da estética

passadista, mas buscou, também, desmantelar a visão que se tinha acerca do país,

subjacente à produção literária e cultural anterior a sua emergência.

Apesar da tensão entre esses dois projetos tributários do Modernismo, há, segundo

Lafetá, um ponto em que eles se mostram convergentes: a modernidade de seus

procedimentos expressionais que permitiu ao Modernismo romper com a linguagem

bacharelesca, artificial e idealizante, em voga na literatura passadista de 1890 -1920. Além

disso, houve a ruptura com a consciência ideológica da oligarquia rural que administrava as

estruturas arcaicas que, ao menos em parte, desapareceriam devido à emergência de um

processo de modernização, favorecido por fatores tais como: a imigração, o surto industrial e

a urbanização. Nesse ponto já é possível verificar a convergência entre Lobato e o

pensamento modernista, visto que o autor, através de seus contos, além de censurar a

oligarquia rural e as estruturas arcaicas do Brasil dessa época, também enfatiza a

necessidade de modernizar o Brasil. Assim, sensível e paralelo ao processo de

modernização pelo qual passava o país, o Modernismo irrompe sob a insígnia do progresso,

disposto a romper com uma linguagem e ideologia “oficializadas”, através da literatura

popular e do folclore. Uma ruptura operada, sobretudo, pela linguagem, marcada pela

ampliação do léxico, por arranjos sintáticos e pela criação de imagens e temas diferentes.

Para Antonio Candido (1985), o intelectual brasileiro vive inserido no jogo dialético

que determina a sua produção literária – um jogo dialético marcado pelo contraste entre o

local (substância de expressão) e os moldes herdados da tradição européia (formas de

expressão). Ele considera haver dois momentos decisivos na Literatura Brasileira: o

Romantismo e o Modernismo – ambos como processo de auto-afirmação. O primeiro

procura superar a influência portuguesa e o segundo a desconstrói. É sob essa afirmação,

ou seja, à luz da importância do Romantismo e do Modernismo, que o crítico situa o Pré-

modernismo, enquanto movimento intermediário, de transição e não de ruptura.

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Em Prefácios e entrevistas, Lobato nos mostra, de forma humorística, essa função

de dessacralização do sistema ideológico e imaginário do Romantismo: José de Alencar,

com um viveiro de araras e graúnas e índios e até uma “virgem morena de lábios de mel”,

que temos de traduzir para “índia cor de cuia, com o beiço humido de saliva”. (LOBATO,

1948, p. 47, aspas do autor).

Segundo Antonio Candido, o Pré-modernismo falhou ao não corresponder ao

interesse multiplicado pelas coisas e pelos homens do interior do Brasil, que se isolaram no

retardamento das culturas rústicas. Percebe-se que este parece ser o caso de Lobato com a

sua visão unilateral do caboclo, olhando o campo apenas pela ótica desse personagem do

interior. De acordo com Candido, os críticos desse período se eximiram de renovar e

aprofundar os seus pontos de vista. Há, portanto, um conformismo e uma superficialidade,

indicando o esgotamento da crítica nacionalista e a incapacidade de orientar-se para rumos

mais estéticos e menos científicos. O Pré-modernismo aparece como uma literatura de

permanência, seguindo os mesmos traços do Pós-romantismo (1880 - 900), optando mais

por um equilíbrio do que pela ruptura.

Candido afirma que, no período de 1900 a 1922, o caboclo passou por um processo de idealização, o qual se encerra com o Modernismo. Este parece ser o caso de Lobato que, do ponto de vista negativo, idealiza o caboclo. Diferentemente do Pré-modernismo, o Modernismo interpreta as deficiências brasileiras, supostas ou reais, como superioridades, havendo, conseqüentemente, uma revisão do primitivismo: fonte de inspiração e não mais empecilho à elaboração da cultura. Dentro do ideal de moderno perseguido por Lobato, essa perspectiva já não seria possível, pois para o autor tais deficiências deveriam ser suprimidas. O Modernismo, conforme Candido, é que melhor soube articular o local e o universal como forma de expressão da realidade brasileira.

O Pré-Modernismo, portanto, não deve ser concebido como uma escola literária, mas como um movimento de transição entre a tradição literária do século XIX e a real ruptura desta, ocasionada pelo Modernismo. Embora Lobato seja considerado como pré-modernista, a compreensão a respeito da relação entre esses dois movimentos é essencial à análise do pensamento do autor, tendo em mente que a noção de moderno é comum a ele e a esses dois movimentos.

O contexto sócio-cultural foi favorável ao surgimento do Modernismo no Brasil, uma

vez que a cidade de São Paulo, em seu processo de industrialização, tornou-se o único lugar

onde, de fato, o Modernismo poderia ser articulado. Isso porque a literatura moderna estava

estreitamente ligada à sociedade industrial, tanto em termos de procedimento (a

simultaneidade, a rapidez, as técnicas de montagem, a economia e a racionalização da

síntese), quanto em termos de técnica.

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O processo de industrialização da capital paulista, capaz de torná-la um centro

cosmopolita, foi decisivo para o surgimento do Modernismo brasileiro. Contudo, a despeito

da industrialização paulista, o Modernismo deve o seu patrocínio ao campo, ou melhor, à

refinada oligarquia rural, detentora das grandes fortunas de café e que acolhia e prestigiava

os escritores e artistas modernos.

Esse paradoxo – de um movimento artístico e intelectual que, apesar de apregoar

os valores de uma sociedade industrial, alcança patrocínio junto a uma parcela refinada da

aristocracia rural – se esclarece, ao menos em parte, pela nossa divisão de classes durante

a década de 20. Sabe-se que as relações de produção no campo paulista já possuíam um

aspecto capitalista, embora por essa ocasião a injeção de capital no setor rural fosse pouco

significativa, pois os fazendeiros usavam grande parte de seu dinheiro na aquisição de terras

e de mão-de-obra.

Contudo, uma renomada fração da burguesia industrial provinha da aristocracia

rural, assim como uma grande quantidade de capital que viabilizou o processo de

industrialização; ou seja, a cidade e a indústria eram sustentadas pelo campo. Essa parcela

refinada da aristocracia rural, educada na Europa e adaptada aos estilos e padrões da vida

moderna, não apenas dava respaldo ao movimento modernista como, ainda, dele não

prescindia.

É bom mencionar, no entanto, tal como o faz Lafetá, que essa camada social,

apesar de seu “cosmopolitismo”, não se furtava à necessidade e à oportunidade de ostentar

a sua origem privilegiada de grandes senhores de terras, cuja “nobreza” precisava ser

justificada por uma tradição marcante e distintiva: um genuíno caráter nacional, do qual ela

seria a representante máxima, devido ao seu grau de refinamento. Portanto, os artistas do

Modernismo e os senhores do café somavam o culto da modernidade nacional à prática da

tradição brasileira – o que explica o caráter “localista” do Modernismo.

Pela análise crítica que se faz do Modernismo brasileiro, de acordo com Lafetá, o

movimento se divide em duas fases: a fase experimental ou fase heróica (que vai da

Semana de Arte Moderna, em 1922, até 1930) e a fase construtiva, de 1930 a 1945, a qual

trata de uma releitura do movimento em sua fase inicial. Esta análise põe em pauta a

correlação entre o Modernismo e outras séries da vida social brasileira, principalmente com o

desenvolvimento da economia capitalista no Brasil, reportando ao período de efervescência

política, ocorrido nos anos vinte. Um período marcado por transformações profundas,

configurando-se, conseqüentemente, em um quadro econômico-estrutural muito mais

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complexo do que o rudimentar sistema agrário-exportador, herdado do Império. Na verdade,

essas transformações no sistema econômico antecedem ao período republicano da década

de 20. Elas antecedem mesmo à Abolição, com o emprego do trabalho assalariado,

passando por sucessivos surtos de industrialização, pela política do Encilhamento (grande

movimento de especulação bolsista nos primeiros anos da República), pelas várias levas de

imigrantes e por inúmeras agitações operárias no início do século. Esses fatores em

conjunto deram uma complexidade tanto econômica quanto cultural ao cenário brasileiro.

Nesse contexto, constata-se uma burguesia (comercial, financeira e industrial) em vias de

ascensão, assim como o crescimento de uma classe média e do proletariado que,

ocasionalmente, demonstrava a sua insatisfação. No entanto, a presença dessas classes

sociais não significou o fim do poder exercido pelas oligarquias rurais – o que viria a

acontecer somente com a Revolução de 30, decorrente desse imperativo de mudanças que

marcaram as três décadas iniciais da República.

As estruturas ainda em vigor, entre elas, a permanência política dos governadores a

serviço das oligarquias, a permanência da política financeira e protecionista do café

(causando atritos com a burguesia industrial) mostraram-se resistentes, apesar de serem

rigorosamente combatidas, em síntese, pelo processo de implantação do capitalismo no

Brasil e pela ascensão da burguesia.

A concomitância entre esse quadro de modernização e a corrente artística

renovadora, sob o despontar burguês, proporcionou uma abertura para a expressão de

outras classes, abrangendo, por conseguinte, à totalidade da nação, como forma de criticar

radicalmente as instituições já ultrapassadas. Nesse instante preciso, o Modernismo retoma

de forma mais profunda uma tradição iniciada por Euclides da Cunha, passando por Lima

Barreto, Graça Aranha e Monteiro Lobato: a denúncia do Brasil arcaico, fruto de uma política

ineficaz e incompetente. Os contos de Lobato oferecem a dimensão de tal tradição, seja por

sua crítica ao sistema agrário brasileiro, por sua censura à aristocracia rural ou pela

indagação a respeito da decadência do interior do Brasil.

No entanto, conforme nos diz Lafetá, as aspirações do movimento modernista em

sua fase experimental restringem-se ao âmbito da burguesia: ainda que haja a denúncia das

precárias condições de vida do povo (à semelhança do Pré-modernismo), não há

consciência da possibilidade ou da necessidade de uma revolução proletária. Isso porque

tanto as massas quanto o proletariado só adquirem, de fato, notoriedade a partir de 1930.

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A partir disso, instaura-se a diferença entre a primeira fase do Modernismo (fase

heróica ou experimental) e a segunda fase construtiva, cujo início é a década de 30. Nesse

período, o cenário mundial se constitui em uma arena de luta ideológica, em que forças

como o nazismo, fascismo, comunismo, socialismo e liberalismo se digladiam; ao passo que

os imperialismos se expandem e o capitalismo monopolista se consolida, apesar da

oposição das Frentes Populares. No Brasil, por sua vez, evidencia-se a fase de crescimento

do Partido Comunista, a organização Aliança Nacional Liberal, a atuação da Ação

Integralista de Getúlio Vargas e seu populismo trabalhista.

Assim, enquanto nos anos vinte o Modernismo atendia à necessidade de

atualização das estruturas, pretendida por algumas classes dominantes; nos anos trinta,

esse projeto transcende os limites da burguesia, abraçando as concepções esquerdistas

(denúncia dos males sociais, descrição do operário e do camponês). Repare-se aqui, a

convergência entre essas concepções e algumas manifestações literárias como, por

exemplo, os contos de Lobato, pertinentes ao Pré-modernismo, nos quais ele discute a

indigência do homem do campo, as relações de poder que presidem a convivência entre

latifundiários e agregados, a política local e outros assuntos. No entanto, o Modernismo,

ainda assim, abrigava posições reacionárias, conservadoras e de direita (literatura

espiritualista, essencialista, metafísica e ainda definições políticas tradicionalistas, como a de

Gilberto Freyre, ou reacionárias como o Integralismo).

Conforme frisa Lafetá, a passagem da primeira fase para a segunda e a

subseqüente diferença entre os seus projetos estético e ideológico implicam o despertar de

uma consciência política mais aguda. O anarquismo da década de vinte redescobre o país,

ao desmascarar a idealização mantida pela literatura comum às oligarquias e estruturas

tradicionais. Cria-se, assim, uma nova visão e uma nova linguagem que, a despeito de se

mostrarem contrárias ao “ufanismo”, apresentam um cunho pitoresco, otimista e eufórico,

dando vazão a um olhar carnavalesco, cujo imperativo era o humorismo como a grande

arma desse primeiro momento do Modernismo. Embora Lobato possua o mesmo alvo de

crítica que os modernistas, ele não desfruta desse olhar carnavalesco em relação ao Brasil,

sendo que o seu otimismo é mais sóbrio e pragmático, ou seja, o pensamento moderno do

autor não se limita apenas ao plano literário, dada a sua atuação como editor e empresário.

No decênio de trinta, a “politização” ecoa mais forte, tendo em vista a preocupação

mais direta com os problemas sociais – manifestada através dos ensaios sociológicos, do

romance de denúncia e da poesia militante. Trata-se de reformar, revolucionar a realidade, e

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não mais de “ajustar” o quadro cultural brasileiro a uma realidade modernista. Contudo,

Lafetá adverte que embora houvesse uma mudança no arcabouço das doutrinas do

Modernismo, não se pode tomá-la como uma mudança radical. O que houve, segundo ele,

foi uma mudança de ênfase da consciência otimista e anarquista dos anos vinte à pré-

consciência do subdesenvolvimento, já nos anos trinta.

Essa mudança progressiva do movimento modernista – da revolução literária à

literatura revolucionária – relega, no final da década de trinta, a um plano inferior o marco do

Modernismo inicial: a estética da ruptura.

Após a Revolução de 30, o que se constata nessa segunda fase do Modernismo é a

sua inscrição no campo dos problemas sociais, buscando inquirir a vida do povo no campo e

na cidade; ou o drama da seca, posto que a própria Revolução de 30 indicasse a

necessidade urgente de se conhecer o país, além de aflorar a sensibilidade dos autores

rumo a essa perspectiva.

Segundo Lafetá, à medida que a revolucionária linguagem vai sendo incorporada,

ou seja, aceita e praticada, ela começa a perder o seu efeito contundente – comum aos

livros radicais e combativos da fase experimental. Há, portanto, no dizer de Antonio Candido

(1985), uma “banalização” da estética da linguagem como forma de ruptura. Esse processo

de diluição torna-se mais agudo na segunda metade da década de 30, através da

kitschização da vanguarda, a resultar, conseqüentemente, já nos anos quarenta, em uma

literatura – nos termos de Lafetá – incolor e pouco inventiva e em uma linguagem novamente

preciosa, “passadista”, típica da geração de 45.

Lafetá encerra seu pensamento salientando a importância da crítica nos momentos

em que nos deparamos com grandes revisões referentes aos procedimentos literários e às

mudanças radicais nas concepções estéticas. Uma crítica que flua através da consciência

literária, mostrando ter compreendido a essência da modernidade: a ruptura. É este,

segundo ele, o pressuposto básico para o estudo da crítica literária da década de 30: uma

crítica que se aproxima da consciência da linguagem. Uma crítica que, partindo dessa

consciência, saiba perceber as nuanças entre momentos diferentes dentro de um mesmo

movimento: dessa forma, a década de 20 inaugura no Brasil a modernidade; ao passo que a

década de 30 opera dialeticamente, na medida em que, ao mesmo tempo em que absorve e

desenvolve alguns dos aspectos das doutrinas modernistas, inicia também o seu processo

de diluição. Uma diluição que encontra a sua razão de ser no fato de a consciência estética –

sob a pressão da problemática política e social – ceder lugar à consciência ideológica.

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Em síntese, propõe-se que a análise da crítica literária do decênio de trinta

considere a rotinização e o desenvolvimento dos pressupostos modernistas, sua diluição e

as relações que isso mantém com os problemas políticos e sociais do momento.

As considerações de Lafetá encontram ressonância no pensamento de Silviano

Santiago (2002). Santiago menciona que o projeto básico do Modernismo visava à

atualização da arte brasileira através da escrita e a modernização da sociedade através de

um governo revolucionário. Para ele, o Modernismo de 22 é enterrado em 1936, com a

insurreição de um intelectual de perfil intolerante e autoritário que, apesar de revolucionário

nas suas intenções de modernizar o Brasil, mostra-se pouco democrático, propondo a

atualização da arte brasileira e do país pelo aniquilamento de seu oposto, em um contexto

em que esquerda e direita unem-se em um integralismo contra um inimigo comum: o

liberalismo, contra o qual se coloca o Estado Novo.

Nesse percurso, Santiago faz uma crítica à tradição modernista, uma crítica que se

justifica, entre outros fatores, pelo fato de negligenciar outros autores, cuja análise mais

profunda significaria uma releitura do movimento modernista – dentre eles, Menotti del

Picchia e Guilherme de Almeida.

Silviano Santiago, ao tratar do pós-Modernismo, faz um recuo maior, destacando do

Pré-Modernismo os escritores Euclides da Cunha e Lima Barreto, pois, na sua concepção, o

Pós-Modernismo talvez se reporte mais ao Pré-modernismo do que, propriamente, ao

Modernismo. Por se projetarem para além dos padrões estéticos e ideológicos da estética

pré-modernista, esses dois autores contribuem para a releitura do Modernismo. Lima Barreto

por se valer da redundância (como recurso estilístico) capaz de ampliar o leque de leitores,

ou seja, atingindo as camadas populares, em contraponto ao recurso da elipse presente no

texto modernista, cujo tom enigmático se restringe somente à compreensão do leitor culto. A

estratégia de redundância é notavelmente apreciada e utilizada pelo leitor comum no

contexto atual, porque ele se sente mais à vontade com o explicado do que com o enigma,

sendo que a redundância implica explicação. A consciência da importância do estilo literário

de Lima Barreto, devido a esses motivos, reside no pensamento de Lobato, como podemos

ver em sua correspondência a Godofredo Rangel:

Conheces Lima Barreto? Li dele, na Águia, dois contos, e pelos jornais soube do triunfo do Policarpo Quaresma, cuja segunda edição já lá se foi. A ajuizar pelo que li, este sujeito me é romancista de deitar sombras em todos os seus colegas coevos e coelhos, inclusive o Neto. Facilimo na lingua,

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engenhoso, fino, dá impressão de escrever sem torturamento – ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua corda d’agua. Vou ver se encontro um Policarpo e aí o terás. Bacoreja-me que temos pela proa o romancista brasileiro que faltava. (LOBATO, 1956, p.108 v. 2)

Quanto a Euclides, Silviano Santiago o destaca pelo seu amadurecimento na

constituição de sua obra, Os sertões, passando do entusiasmo republicano (a República

como o fim das mazelas proporcionadas pelo regime monárquico e pela escravatura) a uma

postura mais crítica ao sistema republicano, ao presenciar a carnificina injustificável em

Canudos. E ao fazê-lo, Euclides se contrapõe às formas de poder vigentes (em especial à

política) denunciando o massacre de Canudos, ao mesmo tempo em que renuncia aos

esquemas de pensamento, predominantes e legitimadores de poder em sua época. Lobato,

por sua vez, reconhece que com Euclides da Cunha, a Literatura Brasileira ganha clareza:

Volto ao Euclides. Estive a le-lo e pareceu-me que a sobria e vigorosa beleza do seu estilo vem de não estar cancerado de nenhum dos cancros do estilo de toda gente – estilo que o jornalismo apurou até ao ponto-de-bala academico, tornando-o untuoso, arredondado e impessoal. (LOBATO, 1956, 312 v.1)

Para Santiago, o recente romance brasileiro pode usufruir do legado deixado por

Barreto (que opta por uma escrita mais popular, porém não menos crítica) e Euclides (cujo

saber se desvincula do autoritarismo do grupo que o detém, voltando os seus olhos para os

vencidos e massacrados em virtude do pretexto da modernização e do progresso), em sinal

de ruptura com um saber hermenêutico, advindo de um intelectualismo autoritário.

Santiago, em seu texto, “A permanência do discurso da tradição no modernismo”

(2002), atenta para o fato de que geralmente inseridos no discurso da tradição modernista,

muitos críticos e teóricos literários encaram o Modernismo dentro da tradição da ruptura,

como forma de destruir os valores do passado, vendo na paródia um dos recursos mais

privilegiados, e cujo autor mais célebre é Oswald de Andrade. Basta lembrar a paródia

oswaldiana do poema Canção do exílio, de Gonçalves Dias (“Minha terra tem palmeiras” /

“Minha terra tem palmares”). O autor menciona, ainda, o concretismo como marca profunda

dentro do Modernismo brasileiro, instaurando a estética do “novo pelo novo”. O pensamento

moderno do autor de Urupês, devido ao seu objetivo de suplantar os valores do passado,

parece, portanto, aderir a essa tradição da ruptura.

A questão norteadora da análise de Santiago é a de se saber o porquê do retorno à

tradição ao final do modernismo, ou, em outros termos, porque que na avaliação do moderno

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e do Modernismo ficou a estética da ruptura, do “novo pelo novo”, relegada a segundo plano.

Em resposta a esse questionamento, ele tem em mente que a questão da tradição (encarada

como passadismo pelos olhos da década de 20) não esteve realmente ausente da produção

de alguns autores modernos, ou da produção artística dos modernistas brasileiros. Havendo,

portanto, a permanência sintomática da tradição dentro do moderno e do Modernismo. Aliás,

ele insiste na distinção entre moderno, referindo-se ao movimento estético proveniente do

Iluminismo, e Modernismo, referindo-se à crítica brasileira ao passadismo, efetuada a partir

da Semana de Arte Moderna de 22. Nessa acepção, o moderno remete ao universal, e o

Modernismo, ao particular.

Santiago concebe paralelamente o ocaso das vanguardas e o aparecimento do pós-

moderno em que não há vontade de destruir o passado e, sim, há a convivência de estilos e

épocas diferentes. Verifica-se, pois, o distanciamento da paródia (como força destrutiva) e da

ironia em relação ao passado; adotando, conseqüentemente, o método do pastiche, para

reincorporar o passado e a tradição dentro de uma ótica pluralista.

Em sua revisão crítica da tradição no discurso modernista, Santiago considera

importante o conceito de tradição da analogia, proposto por Octavio Paz, como capaz de

traduzir uma visão do universo como um sistema de correspondência e uma linguagem que

é uma espécie de duplo do universo. Nessa concepção, a tradição funciona como uma

reação aos princípios da modernidade, entre eles, o “novo pelo novo”.

Desfrutando de um pensamento análogo ao de Silviano Santiago, Octavio Paz, em

seu artigo “A tradição da ruptura” (1984), enfatiza que o discurso da tradição se inscreve no

discurso do moderno, postulando que o moderno é tradicionalmente marcado por

interrupções, sendo que cada ruptura instaura um novo começo que já surge mediante a

possibilidade de ser interrompido. Assim, a prática de rupturas comum à concepção do

moderno, a instaurar sempre o “novo pelo novo”, torna-se uma tradição.

No entanto, a coexistência entre moderno e tradição pode, à primeira vista, causar

uma desconfiança decorrente da contradição que esses conceitos comportam, sendo até

natural que o leitor sinta dificuldade em assimilar a descontinuidade como um ato de

tradição. Ou, então, como encarar como tradição algo que suplanta o passado, que o

desconhece?

Esse desconforto tem sua explicação no fato de que, do ponto de vista da

semântica e da cultura, os conceitos de tradição e de moderno são irreconciliáveis dentro do

senso-comum. Contudo, essa sensação de contradição pode ser depurada, ou, ao menos,

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amenizada pela seguinte argumentação de Octavio Paz: em vez de dizer que a modernidade

é uma tradição, ele diz que ela é uma outra tradição. A relação de Lobato com o campo,

apontando os seus problemas, sem dele abrir mão, apostando na mudança, talvez explique

o que Paz está querendo dizer com a expressão “outra tradição” dentro da modernidade.

Uma tradição polêmica por desalojar uma tradição já existente para, posteriormente, também

ceder lugar, por sua vez, a uma outra que virá. Visto de outra forma, é o contínuo

descontinuar que caracteriza a modernidade tanto pelo novo, como pela tradição da

heterogeneidade.

Nesse ponto, Paz diz que o conceito de modernidade propõe a distinção de dois

tipos de tradição: a tradição antiga como sendo sempre a mesma, e a tradição moderna

como sendo sempre diferente. A primeira preza a unidade entre passado e presente, ao

passo que a segunda, além de ressaltar a diferença entre eles, afirma a pluralidade do

passado. Paz retoma a questão da contradição entre moderno e tradição inscrita na

modernidade, para dizer que o moderno em sua auto-suficiência, ao surgir, cria a sua própria

tradição.

O que se pode intuir das palavras de Paz é que a aceleração vertiginosa do tempo atribuiu à modernidade um caráter fluído, e tal fluidez é marcada pelo constante jogo de rupturas (em que o novo tão logo seja incorporado ao cotidiano, inscreve-se no discurso da tradição, e, conseqüentemente, tende a ser rompido). Em outros termos, a contradição se resolve no fluxo ininterrupto do tempo. Basta pensar no inverso: o que hoje (em se tratando da modernidade e não da pós-modernidade) se considera como tradição, cujo rompimento é necessário, em sua época de imanência certamente foi visto como novo e inusitado. Para ele, aquilo que se concebe como tradição moderna seria duplamente uma crítica do passado, da tradição; e uma negativa repetida vez ou outra ao longo dos últimos séculos, por fundamentar uma tradição no único princípio imune a critica, por fundir-se com ela mesma: a mudança, a história.

Essa digressão em torno do Modernismo é importante, posto que sua compreensão

signifique entender o próprio Pré-Modernismo como um movimento literário de transição (e

não de ruptura) que se desata da estética da idealização e do pensamento ideológico de

criar um passado mítico nacional cultuado pelo Romantismo. Embora em termos de

ideologia, o Pré-Modernismo se assemelhe ao Modernismo (em sua segunda fase) pelo

intuito de denunciar as mazelas e os problemas nacionais; em termos de estética, ele

encontra-se aquém do movimento modernista, em sua primeira fase, cuja palavra de ordem

era a ruptura, operada pelo uso inovador da linguagem.

A despeito das diferenças entre eles, não se pode negar que o Pré-Modernismo

(embora não tão complexo e desenvolvido quanto o seu sucessor), à semelhança do

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Modernismo, buscou argüir a realidade brasileira, com o objetivo de redefinir a identidade

nacional. Todavia, não somente no plano ideológico, mas também no plano estético do

Modernismo, envolvendo inovações quanto ao trato da linguagem, podemos verificar que

Lobato se assemelha aos modernistas.

Segundo Eliana Yunes, ao tratar da literatura infanto-juvenil de Lobato, a liberação

da linguagem dos rígidos cânones literários, a inserção da oralidade e a preocupação em

apresentar a realidade brasileira são marcas revolucionárias condizentes com o

Modernismo. Isso se percebe, também, em sua literatura adulta e nas suas obras não-

ficcionais.

Retomando a discussão anteriormente proposta por Eliana Yunes, sobre alguns

aspectos modernistas presentes na literatura de Lobato, muito embora ele não se admita

como simpatizante do movimento, verifica-se que a semelhança entre o autor e os

modernistas vai além das questões ideológicas e de linguagem. Essa discussão encontra

sua gênese na antiga celeuma referente ao posicionamento do autor frente ao

Modernismo, causada a partir de seu artigo, “Paranóia ou mistificação?”, no qual Lobato

repreende severamente a exposição da pintora Anita Malfatti, acusando-a de desperdiçar

o seu talento com teorias deslumbradas, inconsistentes e transitórias. As considerações a

esse respeito, visando a situá-lo frente ao movimento modernista, são oportunas à

apreensão de seu pensamento literário e, até mesmo, de visão progressista.

Em seu artigo “Paranóia ou mistificação”, Lobato critica a pintura cubista de Anita

Malfatti, que, segundo ele, se deixa seduzir por uma arte que sob o jargão técnico

(futurismo, cubismo, impressionismo...) arroga para si o status de moderna, sendo,

porém, fruto de modelos importados e em nada capazes de expressar a realidade

brasileira, tal como ele se justifica, em Idéias de Jeca Tatu: Estas considerações são

provocadas pela exposição da sra. Malfatti, onde se notam acentuadissimas tendencias

para uma atitude estetica forçada no sentido das extravagancias de Picasso & Cia.

(LOBATO,1961, p. 61)

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A polêmica em torno desse artigo atingiu uma proporção tal que, além de inibir o talento

de Anita Malfatti, expôs o meio artístico a um julgamento de valores, causando, assim, a

sua cisão, quando Lobato afirma haver duas espécies de artistas. A primeira seria

composta por aqueles que, de acordo com a sua opinião, vêem normalmente as coisas, e

a segunda formada pelos que possuem um olhar distorcido da natureza e, por

conseqüência, interpretam-na à luz de teorias efêmeras e incoerentes.

Para Lobato, a pintura cubista de Anita Malfatti, realizada em harmonia com as bases

teóricas do Modernismo brasileiro, não passaria de uma arte caricatural:

Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo, e tutti quanti não

passam de outros tantos ramos da arte caricatural. É a extensão da

caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da côr,

caricatura da forma – mas caricatura que não visa, como a verdadeira,

ressaltar uma ideia, mas sim desnortear, aparvalhar, atordoar a ingenuidade

do espectador. (LOBATO, 1961, p. 61)

Ao reconhecer o traço caricatural da pintura de Anita Malfatti (considerando tal caricatura

muito aquém daquela que julga como verdadeira), Lobato, despercebidamente, deixa

transparecer um ponto análogo entre ele e os modernistas: o apreço pela caricatura como

forma de expressão. De fato, a caricatura é bastante recorrente em Lobato, não apenas

na sua obra ficcional, mas também, nas suas cartas, entrevistas e prefácios, sempre

visando a salientar uma determinada idéia, ponto de vista ou situação. A semelhança

entre Lobato e Mário de Andrade se faz notar pela caricatura: sendo que o personagem

Jeca Tatu constitui uma caricatura do homem do campo e da própria estagnação

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brasileira; enquanto que o caricatural Macunaíma representa a síntese étnica e cultural do

povo brasileiro.

A simplificação da linguagem seria outra característica comum entre Lobato e os

modernistas de 1922. Uma linguagem mais concisa, direta e objetiva, alheia ao

academicismo e à “literatice”. Em correspondência a Godofredo Rangel, em A barca de

Gleyre, Lobato recorre à metáfora do verbo podar, para explanar o seu ideal de um estilo

mais simples e com características da linguagem brasileira:

Não ha duvida, os teus Pioneiros ganharão com algum desbaste a foice,

sabiamente feito nalguns trechos que me parecem muito copados. É o que

estou fazendo aqui numa chacara que foi de meu avô: desbastando,

derrubando tudo quanto é arvore inutil. Só ficam as arvores que dão renda.

Pés de cambucá que produzem mal e frutas enferrujadas – machado neles!

(... ) No romance tambem é assim. Tudo que for inutil ao progressivo efeito

central pede foice e machado. Podar, podar! Eis o grande segredo.

Desbastar. O que fica eleva-se, ganha realce. (LOBATO, 1956, p. 303-304 v

1)

Escritores reconhecidamente modernistas, como Mário de Andrade e Oswald de

Andrade, assim como Lobato, também deram ênfase a uma linguagem menos rebuscada

e mais objetiva, ao mesmo tempo em que permitiram a inserção da linguagem coloquial

no texto literário. Os três reconheceram a importância de uma literatura brasileira com

feições mais nacionais e que, concomitantemente, tratasse de temas brasileiros e

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refletisse os valores da nação. Uma literatura que, por isso mesmo, fizesse parte do

processo identitário e cultural brasileiro.

Do ponto de vista ideológico, Lobato e os modernistas brasileiros também eram

análogos: eles nutriam um desejo de buscar uma identidade brasileira (através da

expressão literária) que ostentasse o status de originalidade e independência, ainda que

por caminhos diferentes. Os modernistas julgavam a assimilação das vanguardas

européias (cubismo, futurismo, impressionismo, dadaísmo...) como o único meio de

indagar a realidade nacional, sob essa perspectiva identitária. Lobato, por sua vez,

propunha a problematização da realidade brasileira através de um pensamento

originalmente nacional, que não se reportasse, de modo algum, a um arcabouço teórico

estrangeiro.

Todavia, apesar de Lobato repudiar as vanguardas européias – fato que

conseqüentemente nos leva a pensar uma possível repulsa de sua parte em relação ao

Modernismo – podemos considerar o seu pensamento como sendo modernista, no

sentido da seleção e assimilação de idéias, tal como Oswald de Andrade propõe em seu

“Manifesto Antropófago”. Muito exemplar a esse respeito é a forma seletiva com que ele

se coloca diante de autores estrangeiros, em particular os franceses: Balzac e

Maupassant, por exemplo, ele os exalta; ao passo que Zola e Flaubert, ele os refuta.

A importância da obra A barca de Gleyre, compilando a correspondência das cartas

de Lobato enviadas a Godofredo Rangel, durante aproximadamente quarenta anos, reside

no fato de que nelas encontramos a gênese do pensamento literário, e mesmo cultural, de

Lobato.

Assim posto, é muito significativo, em relação ao pensamento literário de Lobato, o

seu percurso como leitor. Durante a sua formação intelectual, ele entra em contato com

diversos autores, alguns dos quais ele posteriormente rejeita e outros os quais ele consagra.

Autores cujas produções de um modo ou de outro foram decisivas quanto aos parâmetros

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que Lobato julga coerentes e plausíveis para com a sua produção literária, tanto pela

empatia que ele demonstra em relação a determinadas obras, quanto pela repulsa em

relação a outras.

Esse mapeamento das leituras de formação de Lobato é, ainda, relevante por

indicar algumas de suas mudanças de perspectiva no decorrer de sua vida. Um exemplo

muito ilustrativo a esse respeito é a leitura que ele faz de Nietzsche, durante a sua

juventude, a quem Lobato, a princípio, enaltece:

Nietzsche é um polen. O que ele diz cai sobre os nossos estames e põe em movimento todas as ideias – germens que nos vão vindo e nunca adquirem forma. “Eu sou um homem-toupeira que cavo subterraneamente as veneraveis raizes das mais solidas verdades absolutas.” E é. Roi o miolo das arvores – e deixa que elas caiam por si. Possui um estilo maravilhoso, cheio de invenções e liberdades. (LOBATO, 1956, p. 56 v. 1 – destaques do autor)

A filosofia de Nietzsche caracteriza-se por seu perfil niilista, ou seja, por uma

descrença absoluta no homem e nos valores morais e éticos por ele propagados, assim

como na incredulidade na religião. Para Nietzsche, o homem seria um ser deturpado, em

oposição àquilo que ele sugere como o “super-homem”, alguém além do bem e do mal,

portador de um “espírito livre”. O pessimismo de Nietzsche é tamanho, que filósofo chega

considerar o ser humano (enquanto indivíduo e ser social) e a sociedade como fadados ao

fracasso.

Em contrapartida, à medida que o pensamento positivista e progressista de Lobato

vai aflorando, a ponto mesmo de tornar-se um marco de sua personalidade, ele se confronta

com a filosofia de Nietzsche, conforme comenta em sua correspondência com Godofredo

Rangel.

O mesmo se pode dizer de Lobato em relação a Taine, cuja teoria determinista

embasada nos fatores de raça, meio e momento como capazes de explicar a produção

artística e, principalmente, o desenvolvimento mental do homem e os fatos históricos, torna-

se incompatível com a concepção de progresso intencionada por Lobato. A redenção do

caboclo representado pela personagem lobatiana Jeca Tatu (elevado a símbolo da

decadência nacional), através do engajamento do autor nas campanhas sanitaristas é

reveladora dessa incompatibilidade: ao mudar o meio endêmico em que vive o sertanejo

acometido pela verminose, por meio da adoção de hábitos de higiene, Lobato acredita que o

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homem do campo possa progredir; não estando, portanto, determinado pelo meio a uma vida

de miséria. Na verdade, o seu pensamento projeta-se em relação ao contexto nacional, pois

Lobato, de fato, não acreditava que o Brasil estivesse fadado ao fracasso, desde que

houvesse mudanças tanto em termos de economia quanto em termos de mentalidade.

Retornando ao âmbito literário, ainda com relação ao mapeamento das leituras do

autor, deparamo-nos com Kipling, muito apreciado por Lobato, devido ao fato de esse autor

inglês dispor de um pensamento autóctone, procurando valorizar as coisas da terra. A

empatia de Lobato por Kipling justifica-se quando, em correspondência com Rangel, ele

menciona a necessidade de incorporar à literatura brasileira o folclore nacional – conforme

exemplifica uma pesquisa antropológica sobre o saci organizada por Lobato, no jornal O

Estado de São Paulo, em 1917, em contraponto ao crescente interesse brasileiro pela arte

estrangeira.

Para Lobato, a verdadeira literatura seria pragmática, estando, conseqüentemente,

comprometida com o social e com a realidade, como instrumento de reflexão e crítica. Diante

dessa percepção acerca da literatura, ele destaca autores como Balzac, Camilo Castelo

Branco e Machado de Assis, cujo fazer literário flui a esse favor.

O escritor francês Honoré de Balzac é considerado o fundador do Realismo na

literatura moderna, buscando retratar todos os níveis da sociedade francesa, sobretudo, a

burguesia, conforme pode ser visto em sua obra, A comédia humana. Balzac denunciou os

problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar e da constituição dos verdadeiros

poderes na França liberal. A despeito de Lobato apresentar-se contra a influência francesa

em nossa literatura (tal como é o caso do Parnasianismo que, enquanto escola literária

francesa, preconizou a “arte pela arte”, desprovida de um sentido utilitário), o autor de

Urupês enfatiza a presença de Balzac no cenário da literatura moderna:

Porque Balzac – só agora o percebi – é o Grande Genio da literatura

moderna. Compreendes? Balzac é o genio da alma moderna, como

Shakespeare foi o genio da alma antiga. Penetrar, como Balzac o fez, no

fundo do pensamento moderno, e pôr a nu todas as almas, quem mais que

Balzac o fez? (LOBATO, 1956, p. 215-216 v.1)

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Quanto a Camilo Castelo Branco, Lobato o prestigia por sua crônica de costumes,

expondo as mazelas e hipocrisias da sociedade portuguesa, usando de uma linguagem

mais solta:

Li ou estou lendo a Mulher Fatal – conheces? Que otimo está ali o Camilo!

Eu agora não o largo mais. Paro defronte das minhas estantes, corro os

olhos sobre centenas de lombadas e invariavelmente pego um Camilo. Que

desprezo de todas as regras da composição francesa! Quando se lhe depara

lance de morder num adversario, larga da cena romantica com que está

maçando o leitor e desanca. Na Mulher Fatal ha isto. (LOBATO, 1956, p. 148

v. 2)

Em contraponto a Castelo Branco, Lobato desabona, o também escritor português, Eça

de Queirós, por sua linguagem empertigada e por sua adesão ao estilo literário francês.

Dentre os escritores brasileiros, um dos que Lobato mais prestigiou foi Machado de

Assis, pois o escritor além de realizar em sua literatura uma contundente crítica social

sobre a sociedade carioca do século XIX, tratou de temas universais com a “cor local”. No

seu entender, Machado é célebre por unir um estilo apurado (que ao nosso conhecimento

envolve a típica ironia machadiana) a uma linguagem simples para a sua época. É

interessante notar que mediante sua preocupação com o estilo, Lobato acompanha o

amadurecimento de Machado como escritor:

Estilos, estilos... Eu só conheço uma centena na literatura universal e entre nós só

um, o do Machadão. E, ademais, estilo é a ultima coisa que nasce num literato – é o

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dente do sizo. Quando já está quarentão e já cristalizou uma filosofia propria, quando

possui uma luneta só dele e para ele fabricada sob medida, quando já não é

suscetivel da influenciação por mais ninguem, quando alcança a perfeita maturidade

da inteligencia, então, sim, aparece o estilo. Como a côr, o sabor e o perfume duma

fruta só aparecem em plena maturação. Repare no Machado. Quando lhe aparece a

côr, o sabor, o perfume? No Braz Cubas, um livro quarentão. Que estilo tem ele em

Helena ou Yayá Garcia? Uma bostinha de estilo igual ao nosso. (LOBATO, 1956,

p.101 v.1)

Ainda no rol dos escritores, cuja produção literária procurou tratar das questões sociais,

Lobato destaca o escritor russo Tolstoi, pois em seu livro, Anna Karenina, o autor russo

denuncia a mentira social e a ilusão do amor: Eu bem que vivia a berrar louvores a

Tolstoi, sem que me desses ouvidos. Tolstoi é genio, de sentar á mão direita de

Shakespeare. (LOBATO, 1956, p. 267 v.1). Tolstoi também se sobressai aos olhos de

Lobato, por sua forma simples e direta de escrever; de acordo com o propósito de uma

literatura concisa, desejada pelo autor de Urupês, com economia de meios, sem deixar,

porém, de dizer o essencial:

Tolstoi só usa o adjetivo quando incisivamente qualifica ou determina o

substantivo. Tenho que o maior mal da nossa literatura é o “avanço” do

adjetivo. Mal surge um pobre substantivo na frase, vinte adjetivos lançam-se

sobre ele e ficam “encostados” como os encostados das repartições

publicas. (LOBATO, 1956, p. 107 v. 1)

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A predileção de Lobato pelo conto leva-o a admirar o contista francês Guy de

Maupassant, a quem ele toma como modelo ao escrever seus próprios contos.

Maupassant, em sua obra, buscou focalizar os aspectos sombrios dos costumes e da

psicologia das várias camadas francesas de seu tempo – razão pela qual ele o admira:

Sou partidario do conto, que é como o soneto na poesia. Mas quero contos

como os de Maupassant ou Kipling, contos concentrados em que haja drama

ou que deixem entrever dramas. Contos com perspectivas. Contos que

façam o leitor interromper a leitura e olhar para uma mosca invisivel, com

olhos grandes, parados. Contos-estopins, deflagradores das coisas, das

ideias, das imagens, dos desejos, de tudo quanto exista informe e sem

expressão dentro do leitor. E conto que ele possa resumir e contar a um

amigo – e que interesse a esse amigo. (LOBATO, 1956, p. 243-244 v. 1)

Rui Barbosa é outro autor por quem Lobato tem grande simpatia, dada sua erudição e a

projeção que ele faz do Brasil no exterior:

Ruy Barbosa me dá a impressão, na ciencia, duma superposição de autores;

no estilo, duma superposição de classicos. Vejo nele Vieira, Bernardes,

Latino, Frei Luiz, Herculano, Camilo – dele pessoalmente só a sabedoria e a

fina arte de misturador. (...) Toda a ciencia, toda literatura de todos os

tempos e povos converge seus raios naquele refletor mental que os

emburilha, funde e dá – como as cores fundidas dão a luz branca – esse

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clarão cegante, excessivo, que atrai todas as mariposas e afugenta os

morcegos: RUY BARBOSA. (LOBATO, 1956, p. 155-156 v. 2)

Todavia, outros lhe despertam desprezo e, mesmo, indignação como é o caso de Coelho

Neto, cuja linguagem rebuscada e o nacionalismo ufanista contradizem o seu ideal de

uma literatura simples e realista. Aqui se enquadra, também, Cornélio Pires, sobre quem

Lobato faz o seguinte comentário:

O caboclo de Cornelio é uma bonita estilização – sentimental, poetica, ultra-

romantica, fulgurante de piadas – e rendosa. O Cornelio vive, e passa bem,

ganha dinheiro gordo, com as exibições que faz do “seu Caboclo”. Dá

caboclo em conferencias a 5 mil réis a cadeira e o público mija de tanto rir.

(...) Ora, o meu Urupês veiu estragar o caboclo do Cornelio – estragar o

caboclismo. (LOBATO, 1956, p. 40 v. 2)

O próprio personagem lobatiano Jeca Tatu – caricatura do homem do campo, doente e

miserável – como marco da literatura realista de Lobato contradiz as idealizações não

apenas do caboclo (tal qual faz Cornélio Pires), mas, também, toda e qualquer idealização

a respeito da realidade brasileira.

Outro dois autores que não escapam à crítica do autor de Cidades mortas são os

escritores franceses Emile Zola e Gustave Flaubert. Zola porque, como o precursor do

Naturalismo, adota em sua literatura o rigor metodológico dos trabalhos científicos. O

Naturalismo (1860-1880) corresponde a uma escola literária que aplicava à arte os

métodos da ciência positiva, visando a reproduzir a realidade com uma objetividade

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perfeita em todos os aspectos, mesmos os mais vulgares. Dele fizeram parte, além de

Zola e Flaubert, os irmãos Gouncourt por sua preocupação documental, sendo também

censurados por Lobato. Flaubert e outros autores pertencentes à corrente naturalista

atendem a uma descrição minuciosa de todos os detalhes e pormenores em suas obras,

o que contraria Lobato quanto a sua concepção de uma literatura concisa, objetiva e de

fácil apreensão por parte do leitor, conforme ele registra em A barca de Gleyre:

A canseira que o excessivo trabalho do estilo dava a Flaubert penetra

tambem o leitor. Cansaço por indução. Para mim é como se assistisse a

uma opera em teatro de vidro, onde os cenarios e as paredes transparentes

deixassem ver toda a maquinaria oculta. (...) O trabalho de Flaubert

transparece em toda a sua obra – ou é sugestão minha por saber que ele

trabalhava demais as frases? Ás vezes gastava todo um dia com uma delas,

a esguela-la em todas os tons. (LOBATO, 1956, p. 105-106 v.1)

Como podemos ver, o pensamento literário de Lobato é formado por uma vasta leitura,

em que ele, seletivamente, vai assimilando aquilo que julga como parâmetro pertinente à

criação de uma noção de literatura que se volta para a reflexão da realidade e que, por

isso mesmo, não se restrinja a um quadro de idealizações e à apreciação de poucos.

Em A barca de Gleyre, tem-se um bom exemplo dessa apropriação da tradição literária

européia realizada por Lobato, quanto a sua literatura infanto-juvenil: Ando com varias

ideias. Uma: vestir á nacional as velhas fabulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e

mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. (LOBATO, 1956, p. 104 v. 2).

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O mesmo se pode afirmar do autor em relação à cultura norte-americana, da qual ele

apenas admira a noção de progresso. O pensamento progressista de Lobato remete ao

fato de que ele se inscreve no discurso modernista, através do culto à maquina como

advento do futuro, típico do Futurismo de Marinetti que, junto com outras vanguardas

européias, serviu de inspiração para os modernistas brasileiros. O Futurismo foi, em

linhas gerais, um movimento estético caracterizado por seus manifestos. Exaltando a vida

moderna, o Futurismo procurou estabelecer o culto à máquina e à velocidade, pregando,

ao mesmo tempo, a destruição do passado. A exaltação de Lobato perante a indústria

automobilística americana Ford demonstra a analogia.

Portanto, a menção dessas circunstâncias indica-nos que a classificação de Monteiro

Lobato como sendo essencialmente um pré-modernista representa uma visão unilateral, à

medida que a análise de sua proposta e produção literária deixa entrever alguns indícios

de atitudes tipicamente modernistas. A par dessa questão e conscientes de que Lobato

não endossa as vanguardas européias, concluímos que o autor de Urupês situa-se, de

forma muito singular em relação a outros autores pertencentes aos dois movimentos

literários: como um ponto de interseção entre o Pré-Modernismo e o Modernismo.

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Um arquivo crítico do pensamento cultural brasileiro

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Este capítulo discute o pensamento cultural e crítico de Monteiro Lobato, inscrito nas

obras: A barca de Gleyre, composta por dois volumes das cartas trocadas entre ele e

Godofredo Rangel e Prefácios e entrevistas, com escritos de Lobato em diversas datas. A

análise desses textos se pauta mais pelo perfil cultural do que pelo perfil literário do autor,

tendo em vista o crítico da cultura brasileira, cujo interesse em inquirir as questões culturais

de sua época segue delineando uma forma de pensar que não aparece totalmente nas suas

obras ficcionais, principalmente, naquela dirigida ao público adulto. Ao longo desse estudo

percebe-se que o pensamento cultural de Lobato (com ênfase no progresso) encontra

ressonância no pensamento de críticos como Roberto Schwarz e Antonio Candido.

Schwarz, em seu texto “As idéias fora do lugar” (1981), apresenta uma dimensão do

Brasil como um país caracterizado pela existência de paradoxos que lhe são imanentes,

constitutivos de sua identidade e, em muito, condizente com a argumentação de Lobato.

Schwarz faz uma reflexão crítica sobre a discrepância entre a sociedade brasileira

escravocrata e as idéias do liberalismo europeu transplantadas em nosso país. Essa

discrepância torna-se perceptível, tendo em vista que na Europa as prerrogativas ideológicas

(liberdade de trabalho, igualdade perante a lei e outras) eram em certa medida condizentes

com a situação de organização social dos países europeus, ao passo que o mesmo não

ocorria com a sociedade brasileira.

O autor ressalta que o pensamento liberal, enquanto proposta ideológica, consegue

camuflar a exploração do trabalho no contexto europeu. Todavia, no contexto brasileiro, o

pensamento liberal não é capaz de disfarçar a exploração do trabalho. Esta asserção

justifica-se uma vez que se considera o contexto histórico brasileiro: país essencialmente

agrário, com uma agricultura rudimentar, caracterizado pelo regime de latifúndio e por uma

produção dependente do trabalho escravo e do mercado externo, no caso da exportação de

café.

É, ainda, interessante notar – com base no texto de Schwarz – a inconsistência da

República brasileira, embasada, por sua vez, nas idéias liberais européias, pois a sociedade

republicana ainda comporta traços culturais remanescentes do período imperial. Por

exemplo, o negro na sociedade escravocrata, por mais paradoxal que seja, ocupa um papel

social. Já na República, após a Abolição, ele sequer ocupa a designação social de escravo,

não sendo também um trabalhador totalmente independente, pois, na maioria das vezes,

não tem qualificação profissional para ocupar o papel de trabalhador livre, como um outro

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trabalhador branco. Essa desfiguração social sofrida pelo negro aponta para o entrave que a

escravatura representou para a racionalização produtiva; sendo esta, caracterizada pela

exigência do trabalho em um mínimo de tempo possível, ou seja, pela demanda da produção

em série.

Talvez, aqui, seja necessário um breve esboço do que vem a ser o taylorismo, em

parte presente nas concepções progressistas de Lobato, tanto que em correspondência com

Godofredo Rangel (A barca de Gleyre), Lobato, ao pedir a este que o ajude a lançar uma

série de livros para crianças, faz a seguinte alusão à máxima taylorista, “Time is money” : (...)

o teu tempo aí absolutamente não é “money”. (LOBATO, 1956, p. 233 v. 2); vendo que o

tempo de Godofredo Rangel não é contabilizado pelo dinheiro, por viver em lugar pequeno,

onde o tempo está mais à disposição e ao controle do próprio homem.

O talylorismo foi criado pelo engenheiro americano Frederick Winslow Taylor (1856-

1915), como um conjunto de estudos desenvolvidos e aplicados nas indústrias de todo o

mundo, determinando a organização do processo de trabalho contemporâneo. Em linhas

gerais, o taylorismo corresponde ao método de racionalizar a produção, possibilitando o

aumento da produtividade do trabalho, “economizando tempo”, suprimindo gestos

desnecessários e comportamentos supérfluos no interior do processo produtivo. O taylorismo

aperfeiçoou a divisão social do trabalho, introduzida pelo sistema de fábrica, assegurando

devidamente o controle do tempo do trabalhador pela classe dominante.

É interessante notar que o taylorismo coincide com o processo de concentração e de

centralização de capitais que se intensifica justamente na fase monopolista do capitalismo.

Isso porque o despontar do capitalismo se reflete no crescimento cada vez maior de fábricas

que vão reunir milhares de operários em um mesmo espaço de trabalho.

Desde o início, Taylor insistia que, em virtude da crescente complexidade do setor

fabril, o processo de produção não poderia ser deixado sob a responsabilidade dos próprios

trabalhadores. Primeiro porque ele acreditava que eles procuravam retardar o ritmo de

produção; e segundo, porque ele não os julgava capazes de gerenciar o processo produtivo.

Os princípios defendidos por Taylor, fixados na sua obstinação produtivista,

defrontaram-se com aquilo que ele chama de estado de “indolência” voluntária e sistemática

dos trabalhadores, abalados com os efeitos da grande depressão do final do século XIX. Há,

aqui, um ponto análogo entre Taylor e Lobato, pois este, a princípio, também censurava a

indolência do caboclo brasileiro, como a causa de todos os seus males, até perceber,

posteriormente, que ele era vítima de suas próprias condições de vida. Para Taylor, o estado

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de “indolência” dos trabalhadores americanos significava a origem dos problemas de sua

sociedade e do próprio proletariado.

Tomado não apenas por sua dimensão econômica, mas, também, por sua dimensão

política, o taylorismo atende ao propósito de dominação burguesa, voltado para a

constituição de um trabalhador dócil e economicamente rentável.

Permitindo a dissociação entre o trabalhador e sua habilidade profissional, o

taylorismo assegura a gestão do processo de produção como arma do capital, a impor ao

operário o tempo e o ritmo da produção de acordo com suas exigências lucrativas, sem usar

de métodos visivelmente violentos de sujeitar o trabalhador.

Nessas proporções, o taylorismo pode ser concebido como sistema “democrático” de

agenciamento do trabalhador no espaço produtivo, a requerer, simultaneamente, o trabalho

como atividade essencial ao homem (decretando o fim do ócio) e o “homem-robô”: forte,

ativo, produtivo, mas destituído de consciência crítica e de criatividade. Sintetizando, o

taylorismo dispõe de uma utopia de reduzir o homem a um “apêndice” da máquina, em

função sempre de sua máxima “Time is money!” e da lógica capitalista.

Essa digressão em torno do taylorismo justifica-se, pois, a despeito de seus

inconvenientes, não se pode negar que esse sistema proclama a idéia de progresso,

apregoando que este é necessário e positivo – razão pela qual encontramos no discurso

progressista de Lobato ecos dessa proposta.

Entusiasta do progresso, o pensamento lobatiano se insurge contra o que ele

considera anacrônico, passadista, rançoso e tradicionalista. A começar pelo fato de Lobato

ter erigido o caboclo – nas figuras dos personagens Jeca-Tatu e Zé Brasil – como símbolo

da decadência econômica e cultural brasileira, como fruto de uma estrutura econômica, cujos

sinais de exaustão eram evidentes. Conseqüentemente, esses personagens lobatianos

representam uma crítica à economia nacional calcada praticamente em um sistema agrário

rudimentar que, por sua vez, encontra a sua razão de ser no regime latifundiário, na

produção dependente do trabalho semi-escravo e do mercado externo e na monocultura

cafeeira.

Em seu livro Os parceiros do Rio Bonito (1977), Antonio Candido trata dos aspectos

referentes à obtenção dos meios de vida, visando a verificar se ela se enquadra nas

situações sócio-culturais mínimas. Sob esse prisma, ele analisa os elementos ligados à

manutenção da vida, mormente a exploração dos recursos naturais para a elaboração da

dieta, passando, em seguida, ao estudo das formas de vida social que permitem aos

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agrupamentos rústicos a sobrevivência em grupo; centrando-se, em ambos os casos, sobre

as características culturais subjacentes à vida do velho paulista rural.

Candido menciona que a sociedade caipira tradicional criou técnicas que permitiram

tornar estáveis a relação do grupo com o meio (ainda que hoje as consideremos precárias),

através do conhecimento satisfatório dos recursos naturais, de sua exploração sistemática e

do estabelecimento de uma dieta compatível com o mínimo vital – a favorecer a persistência

de um tipo de vida fechado, estruturado sobre uma base econômica de subsistência .

Essa situação, segundo o autor, se esclarece à luz da compreensão da natureza do

povoamento paulista, desde o início condicionado pela atividade nômade e predatória das

bandeiras. Nessas proporções, o bandeirismo acarretou, de um lado, um processo de

invasão ecológica; e, de outro, um determinado tipo de sociabilidade, com formas próprias

de ocupação do solo e de determinação das relações intergrupais e intragrupais.

Segundo Candido, todo o processo teve como determinante os tipos de ajustamento

do grupo ao meio e a fusão entre a herança portuguesa e a do habitante primitivo da terra.

Um processo cuja análise possibilita a compreensão da economia seminômade, a qual

caracterizou a dieta e o caráter do paulista.

Não é, por acaso, que Sérgio Buarque de Holanda, considerando essa situação,

permite reconstruir o tipo de equilíbrio entre o grupo e o meio, típico da cultura caipira:

alcançado através da elaboração original das heranças culturais que recebeu. Essa reflexão

é, do ponto de vista de Antonio Candido, importante para a compreensão da sociedade

paulista formada entre os séculos XVI e XVIII, na medida em que discute as sucessivas

acomodações pelas quais passou, no Estado de São Paulo, o colonizador, sem perder de

vista as suas vicissitudes provenientes de sua intensa mobilidade. Portanto, a vida social do

caipira consta da introjeção e da preservação dos elementos condicionados pelas suas

origens nômades. Assim, a fusão entre os traços indígenas e portugueses submeteu-se ao

ritmo nômade do bandeirante e do povoador, conservando, conseqüentemente, as

características de uma economia amplamente pautada pelas atividades de caça e coleta,

imputada, por sua vez, por uma estrutura instável, devido à mobilidade dos indivíduos e dos

grupos. Por essa razão, tal como Antonio Candido assinala, o provisório da aventura é uma

constituinte da cultura caipira e que se reflete na sua habitação, dieta e caráter. No ensaio

Urupês, Lobato refere-se ao perfil itinerante do caboclo, ao descrever a moradia do Jeca

Tatu: Remendo... Para quê? se uma casa dura dez anos e faltam “apenas” nove para que

ele abandone aquela? Esta filosofia economiza reparos. (LOBATO, 1994, p. 169).

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Candido, pelo fato de o próprio caipira denominar a moradia de rancho, como se

exprimisse o seu caráter de servir apenas para pouso, considera que o caipira tem uma vida

marcada pelo provisório. Esse rancho é descrito como sendo um abrigo de palha, erguido

sobre paredes de pau-a-pique, ou até mesmo, de varas não barreadas, levemente pousadas

no chão. Repare-se que a estrutura rudimentar e precária desse tipo de “casa” parece

endossar o caráter provisório e seminômade do caipira.

Com base em documentos, Candido assinala que a rusticidade do caipira e de seus

modos de viver são condizentes com uma economia seminômade advinda do bandeirante.

Uma vez descendente deste, o caipira paulista apresenta os seguintes traços

comportamentais: o perfil esquivo, o laconismo e a rusticidade. O aspecto arisco do caipira

(lembrando que Candido trata exclusivamente do caipira paulista) era decorrente do tipo de

economia e povoamento, que isolava as choupanas e bairros em função da agricultura

itinerante de subsistência.

De fato, o caipira do Estado de São Paulo surge aos olhos dos historiadores e dos

viajantes como um indivíduo de aspecto repulsivo, indigente e hostil. Saint-Hilaire, por

exemplo, via o caipira como um sujeito primitivo e brutal, macambúzio, desprovido de

civilidade e pouco ameno; embora o próprio Antonio Candido tenha justificado esse

primitivismo e falta de amenidade, como costumes resultantes da atividade agrícola

seminômade e do povoamento esparso, a inviabilizar o seu desenvolvimento mental e social.

Todas essas circunstâncias, comportamentos e situações mencionados remetem a

condições de vida determinadas por uma economia fechada, baseada no trabalho isolado,

enquanto forma retrógrada de se ajustar ao meio.

Essa economia fechada, de subsistência e seminômade constitui-se tanto como um

prolongamento dos hábitos nômades dos bandeirantes, quanto como a sua reapropriação

em uma agricultura itinerante a partir do século XVIII.

Todavia a agricultura itinerante deu-se não apenas à custa de imensas reservas de

terras férteis, como ainda por meio do sistema de posse. A posse, nesse contexto entendida

como ocupação pura e simples, sem qualquer ônus de compra ou venda, significava para o

caipira a possibilidade constante de renovar o seu chão de plantio.

Deve-se ressaltar, porém, que o atraso do caipira não advém unicamente de sua

cultura fechada, incorpora-se a ele a sua incapacidade de adaptar-se rapidamente às formas

mais produtivas e exaustivas de trabalho, no latifúndio da cana e do café, ao contrário do

escravo e do colono europeu. Diante dessa inadaptação, o caipira foi progressivamente

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marginalizado. Desprovido da posse da terra e, por causa disso mesmo, expulso dela por

posseiros, resta-lhe como alternativa única a condição de agregado errante. O personagem

Zé Brasil, de Lobato, sintetiza essa situação. Portanto, a cultura do caipira caracteriza-se por

sua incompatibilidade com o progresso, visto que ela se estabelece por precários tipos de

ajustamento social e biológico ao meio, a ponto de qualquer mudança de cunho progressista

sancionar o seu fim.

Contudo, conforme o próprio Antonio Candido nos adverte, não se deve considerar

radicalmente a inércia do caipira e sua inadaptação a formas de trabalho mais complexas e

ágeis, simplesmente como um ato de vadiagem, pois elas resultam de condições sócio-

econômicas e culturais injustas. Tais condições não o fazem sentir, propriamente, aversão

ao trabalho, antes, fazem com que ele não sinta a real necessidade de trabalhar, em virtude

de seu precário ajustamento ao meio. Em outras palavras, o homem do sertão, ao mesmo

tempo em que opta pela auto-suficiência, considerava desnecessária a introdução de hábitos

mais rígidos de trabalho, em grande parte, pela sua incerteza em relação à posse da terra.

Tanto que sua opção pelo plantio de grãos, como por exemplo, o milho, justifica-se por sua

colheita ser feita em poucos meses, não correndo o risco de ser expulso antes que ela fosse

realizada; além de facilitar a sua mobilidade.

Na verdade, esses personagens, Jeca Tatu e Zé Brasil, convertem-se em uma crítica

a esse sistema retrógrado, justamente por serem decorrentes dele. De 1900 a 1930,

constatou-se no Brasil um grande número de latifúndios, em sua maioria, inativos, sem

serem explorados, ou, ao contrário, quando explorados, o eram parcialmente por processos

arcaicos, e não sob a forma capitalista. O latifúndio foi prejudicial à economia brasileira, entre

outros fatores, por impor e ratificar o sistema semi-feudal, em função do qual se

estabeleciam as relações pessoais e de produção entre os grandes proprietários de terras e

os simples lavradores que nelas trabalhavam, em detrimento das relações econômicas

modernas que se instalavam no país. Não sendo, portanto, de se estranhar o atraso

econômico do país, nem tampouco seria surpresa a crise estrutural e econômica de 1930.

Ela é, antes, um acontecimento resultante do embate existente entre o desenvolvimento

capitalista e o sistema latifundiário. Este último era simultaneamente sustentado pelo

estabelecimento de relações semi-feudais e semi-escravistas entre os proprietários de terras

e os trabalhadores a ele agregados e pela persistência de uma cultura agrícola ultrapassada.

Os pequenos lavradores destituídos de terras tinham por opção apenas empregar-se

como colonos da grande fazenda e, por conseguinte, submeter-se à exploração por parte do

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proprietário desta, ou se estabelecer em terras devolutas, correndo o risco de serem

expulsos, por ocasião da colheita, pelos posseiros, com apoio de juízes, escrivães e

policiais. Esse sistema de produção com base no trabalho semi-escravo e no semi-

feudalismo não dispunha propriamente de trabalhadores livres. O que está implícito aqui são

as relações de ideologia e poder, as quais delineavam a relação entre proprietários e

agregados, dentro de um sistema agrário rudimentar e fechado como o do Brasil nas

primeiras décadas da República.

Dentre as inúmeras definições de ideologia esboçadas por Terry Eagleton, optou-se,

neste trabalho, pela definição de ideologia como idéias que ajudam a legitimar um poder

político dominante, ou seja, ideologia como forma de se legitimar um determinado poder. A

escolha não foi aleatória, ao contrário, optou-se por essa definição de ideologia (mesmo

sabendo que ela não encerra a questão) pelo fato de a mesma mostrar-se, em relação a

outras, mais pertinente à análise das relações sociais de produção mantidas entre

proprietários e agregados, no início da República. A saga do personagem lobatiano Zé Brasil

é muito ilustrativa a esse respeito. Trabalhando sob injusto regime meeiro (em que a metade

maior e mais graúda da safra pertencia ao coronel), o personagem acaba sendo

posteriormente expulso pelo próprio coronel, após a colheita. A narrativa desse personagem

significa uma crítica explícita a esse sistema agrário retrógrado, fixado por um sistema semi-

feudal configurado pelas relações de ideologia e de poder. Nada mais natural do que a

vigência desse sistema no início da República, pois sendo o Brasil considerado pela

burguesia agrária como um país essencialmente agrícola, a posse de imensas propriedades

de terras outorgava poder aos seus proprietários.

A vida rudimentar e precária do sertanejo alude a um outro ideal progressista

almejado por Lobato: o georgismo. Criado pelo economista e reformador norte-americano

Henry George (1839-1897), o georgismo consiste, em linhas gerais, na idéia de que a renda

do Estado deve provir da terra, razão pela qual o imposto único sobre o solo inativo seria

suficiente para, anualmente, assegurar ao Estado rendas cujo porte proporcionaria às

comunidades obras de infra-estrutura destinadas à educação e à assistência social. Além

desses benefícios, o georgismo implicaria, por meio de tal imposto a ser cobrado, o fim do

latifúndio: retirando das mãos de poucos proprietários grandes extensões de terras inativas e

redistribuindo-as entre pequenos lavradores, aos quais caberia o compromisso de torná-las

férteis, visando ao enriquecimento da nação. Em virtude dessas características, Lobato (em

conformidade com o seu espírito progressista e com o seu apreço pelo modelo de progresso

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norte-americano) adere ao georgismo, vendo-o como uma forma de revolução pacífica que

poria fim ao estado de pobreza tanto do povo quanto do país. A seguinte passagem em que

Lobato se dirige a Octaviano Alves de Lima é bastante enfática a esse respeito:

Estou radiante. Pressinto no bojo desse fato o começo, o espermatozóide do Brasil com que você e eu sonhamos, o país arrancado afinal do feudalismo em que apodrece e morre, e posto nos trilhos do georgismo. (Apud. NUNES, 1983, p. 85)

Certamente, o seu posicionamento progressista advém de uma postura realista

quanto ao Brasil, tendo em vista que nas cartas da Barca de Gleyre, Lobato critica Bernardo

de Guimarães, alegando que este produz um romance sertanista desprovido de realismo e

dotado de muito romantismo. Ainda no mesmo livro de cartas, deixando-se guiar pela

tendência realista, Lobato faz um apelo pela objetividade literária:

Toda literatura, todo romance, todo poema, por mais impessoal que procure

ser, não passa de um julgamento. A ideia moral, que domina mesmo o autor

mais liberto de tudo, não permite a simples pintura objetiva. E essa pintura

seria um susto e um assombro para o homem, que não consegue jamais

conhecer-se a si mesmo porque ninguem o desnuda. (LOBATO, 1956, p.

341 v.1 grifos do autor)

Dentro da linguagem e do pensamento realista de Lobato, embasados numa visão

positivista com vistas ao progresso, nota-se uma projeção da situação miserável do

homem do campo como correspondente da própria miséria nacional, na medida em que a

degradação do sertanejo é decorrente da omissão do próprio governo que não dispunha

de medidas de incentivo à agricultura brasileira em escala comercial (à exceção do café);

chegando ao absurdo de importar produtos que poderiam ser facilmente cultivados em

solo nacional, como protesta Lobato, em Prefácios e entrevistas:

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(...) um país de mais de 8 milhões de Km2 de territorio com todos os climas,

temos de recorrer ao exterior para não morrermos de fome. O pão de trigo

vem de fora; vem de fora a fruta - maçã, pera, uva; vêm de fora doces e

queijos – e até ovos e frangos... e café! (LOBATO,1946, p. 123)

Ainda visando a frisar a estagnação agrária do Brasil, Lobato menciona em uma

de suas cartas a Godofredo Rangel, na Barca de Gleyre, a fartura da Argentina. Um conto

significativo de Lobato a respeito desse assunto é Café! Café!. Neste conto, é narrada a

história de um velho fazendeiro que leva às últimas conseqüências o plantio do café,

ignorando a desvalorização do produto e mesmo a possibilidade de outros cultivos. Essa

narrativa realiza uma crítica à mentalidade política e econômica da aristocracia rural que

cuidou exclusivamente do café (considerado o principal produto de exportação desde

meados do século XIX) e à própria oligarquia cafeeira que não se fez de rogada ao exigir

do governo apoio, proteção e incentivo exclusivos. A partir disso, originou-se uma “política

do café” (contra a qual se insurge esse conto de Lobato), caracterizada pelo fato de que

todas as atenções voltam-se para esse produto, tanto que o crédito agrícola limitava-se

ao plantio do café, sob o pretexto de que o café “pagava tudo”.

Como conseqüência desse apreço à lavoura cafeeira, por parte da elite rural e do

governo, deu-se a derrocada de outros produtos nacionais como o fumo, a borracha, o

milho e o açúcar; ocasionando a subseqüente derrocada econômica do país, pois a

lavoura cafeeira, enquanto suporte econômico do Brasil, durante as três primeiras

décadas da República, ao ruir principia a decadência econômica nacional. Como a

cotação do café era estabelecida pelo mercado internacional, a situação se agrava, visto

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que a queda da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, significou a ruína financeira

do Brasil, porque com a desvalorização do café, o campo vai à falência e, em

conseqüência, as cidades também, na medida em que o comércio, a indústria e, mesmo o

setor artístico-intelectual (como é o caso do Modernismo de 1922), eram sustentados pela

economia agrária.

Contos como Café! Café! e O drama da geada constituem, dentro da linha progressista

de Lobato, um julgamento crítico à aristocracia rural – como instituição retrógrada – que

além de se mostrar conservadora e resistente a transformações, disputa com a indústria a

atenção do governo. Uma elite rural a sustentar-se exclusivamente pela monocultura do

café, cuja instabilidade econômica era contornada pelas medidas protecionistas do

governo. Em Café!Café!, a narrativa conta a história de um fazendeiro que planta café

insistentemente, passando a ignorar a baixa cotação do produto, sempre em queda.

Desprezando as advertências que os outros lhe fazem a esse respeito, o fazendeiro vai,

aos poucos, desfazendo de seu patrimônio para saldar as dívidas decorrentes de seu

fracasso. Vão-se as benfeitorias e os seus agregados o abandonam. A fazenda, antes

vistosa, agora, aos cuidados somente do fazendeiro, fica abandonada. O mesmo

acontece com ele, tornando-se desleixado com a própria aparência, tendo a barba e

cabelos compridos e sujos, passando os dias embrenhado no campo. A plantação

cafeeira se vê tomada por ervas daninhas, contra as quais o proprietário luta sem

sucesso. No entanto, quando incitado ao plantio de outros produtos, ele protestava de

forma veemente a favor do café.

Ainda sim, na ruína total e desfigurado, ele se ilude esperando que a cotação do

café suba vertiginosamente. A ironia desse conto é que o café de fonte de riqueza passa

a ser a causa da espoliação do agricultor, em alusão crítica à própria máxima “O café

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paga tudo”. Esse conto alude às crises de superprodução do café, ocorrida nas décadas

de 1920 e 1930, no Brasil, criticando, portanto, a falta de um mercado interno que

abarcasse com a produção e a dependência em relação ao mercado externo.

Essa cultura cafeeira, levada à exaustão, implicando a derrocada do país, também

aparece censurada no conto de sugestivo nome Cidades mortas, em que o narrador

descreve a decrepitude e o marasmo das cidades do Vale do Paraíba, após a decadência

do ciclo econômico do café. Estas cidades surgem com a economia cafeeira, mas

empobrecem vertiginosamente com o colapso da agricultura brasileira; pois, conforme o

narrador desse conto menciona, o café passa por elas como um “Átila” e debanda-se em

busca de novas terras férteis, após o esgotamento do solo, causado pelo plantio do

produto, anos a fio, sem nenhuma técnica de renovação ou melhoria do solo. O que resta

nessas cidades são as “vergônteas famílias mortiças”, remanescentes do período “áureo”

da economia cafeeira. O comércio nelas existente fecha as suas portas, comprovando a

sua dependência junto ao campo.

As “cidades mortas” são o retrato metonímico e realista do Brasil, cujo estado de

dormência econômica e cultural, também aparece representado na sugestiva metáfora do

silêncio, no conto Os perturbadores do silêncio, em que Lobato narra o pitoresco da

pequena e fictícia cidade de Oblivion, a qual tem como característica o perpétuo silêncio.

Um silêncio interrompido momentaneamente pelo raspar das enxadas durante a capina

trimestral das ruas; pelo sino da igreja, badalando alegre pela missa aos domingos, ou

“chorando” fúnebre algum defunto; e pelos meninos, que ao final da aula deixam o Grupo

Escolar, em algazarra, a gritar e a cantar. Mas, o mais curioso desses rotineiros

perturbadores do silêncio é o carrinho da Câmara, que devido a sua pouca utilização, tem

o eixo das rodas tomado pela ferrugem, e ao rodar, emite um rangido insidioso. Em face

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do marasmo e da pasmaceira de Oblivion, o rangido do carrinho se sobrepõe ao silêncio

reinante na cidade.

O drama da geada narra a história de um fazendeiro que, diante de um hóspede

(o narrador), vislumbra a sua plantação de café, gabando-se dos lucros que ela lhe

ofereceria, por ocasião da colheita. No decorrer da conversa, ele menciona que todo o

seu patrimônio estava investido na lavoura cafeeira e que, se esta não vingasse, ele iria à

falência. No entanto, o agricultor mostra-se tranqüilo, pois o único risco possível que era a

geada, já não ocorria há anos; e que ele havia plantado em terras altas, onde a incidência

desse fenômeno climático não era de se esperar. No entanto, para a sua surpresa,

naquela madrugada, houve uma forte geada que ressecou toda a sua plantação. O

cafezal verde, após a dissipação da geada, surge diante de seus olhos esturricado.

Desesperado, o fazendeiro desaparece, sendo encontrado pelo amigo e pela mulher, no

dia seguinte. Eles se estarrecem ao vê-lo fora de si, de pincel na mão, pintando de verde

cada pé de café. O conto termina com essa cena que possui um aspecto caricatural, em

que reside a crítica à conservadora oligarquia cafeeira.

É interessante notar como a produção literária de Lobato reflete suas concepções

culturais presentes nas cartas que envia a Godofredo Rangel. Basta ver, por exemplo,

como a pobreza e o abandono das Cidades mortas remetem ao comportamento

provinciano e apático da cidade de Taubaté, descrita por Lobato em carta a Godofredo

Rangel, na Barca de Gleyre:

Ha uma semana que estou preso em casa porque lá fora a semana é santa.

Ha procissões de pretos e brancos a atravancar as ruas. Nas igrejas, muito

consumo de aguinhas e fumaças cheirosas, e litanias (...)

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A Plebe, só ela, com seu fatras democrático e religioso a expluir vulgaridade

e chateza. (LOBATO, 1956, p. 157-158 v. 1)

Todavia, o pensamento de progresso e modernização de Lobato não se restringe

ao campo, embora, devido à sua fracassada experiência como agricultor, ele conceba a

revolução do sistema agrário brasileiro como marco inicial de seu projeto modernizador. A

sua campanha em prol do petróleo e do ferro, como elementos indispensáveis ao

progresso e à inserção do Brasil no mercado econômico internacional, presente em

algumas de suas cartas compiladas na Barca de Gleyre, é muito significativa nesse

sentido.

Antes, é preciso dizer que o entusiasmo de Lobato pelo ferro e pelo petróleo, como

elementos capazes de promover a sonhada redenção econômica e cultural da sociedade

brasileira, provém de sua estada nos Estados Unidos, como adido comercial, entre os

anos de1927 e 1931. A partir de sua vivência no país norte-americano, Monteiro Lobato

prega para o Brasil a exploração de ferro e petróleo, como produtos que ele acredita

serem a causa do progresso norte-americano. Aliás, um modelo de progresso que o leva

a comparar o Brasil e os Estados Unidos como países de origem análoga, mas com

destinos muito diferentes – idéia que desenvolve no livro Prefácios e entrevistas:

O problema focalizara-se em meu espirito sob uma forma simplista: Por que,

dos dois maiores países da America, descobertos no mesmo ciclo, povoados

com os mesmos elementos (europeu, indio e negro), libertados politicamente

quasi na mesma epoca, com territorios equivalentes, um se tornou o mais

rico e poderoso do mundo e o outro permanece encruado?

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A atenta observação do fenomeno americano deu-me a resposta clara:

Porque nos Estados Unidos o homem adquiriu elevada eficiencia e no Brasil

a eficiencia do homem está pouco acima da do homem natural. (LOBATO,

1948, p. 59)

Segundo a sua concepção cultural, essa falta de eficiência do povo brasileiro

advém da ignorância do Brasil acerca de si mesmo, de suas potencialidades (ou seja, os

recursos e riquezas naturais, dentre os quais estariam o petróleo e o ferro) e da realidade

de seus habitantes, conforme ele nos diz: Sentados em cima de gigantescas riquezas

potenciais somos um país de pé-no-chão, miseravelmente vestido, miseravelmente

alimentado e miseravelmente governado (...). (LOBATO, 1948, p. 66).

É em função desse desejo e necessidade de conhecer a realidade brasileira que

Lobato, na Barca de Gleyre, elogia o livro Os sertões, de Euclides da Cunha, publicado

em 1902, pela iniciativa do autor em expor tanto as vicissitudes por que passa o

sertanejo, quanto por mostrar, através do retrato do sertão, um Brasil pobre, indigente e

abandonado, em contraposição a um Brasil litorâneo, culto e moderno sobre o qual

recaem os olhos da elite intelectual e política. Da mesma forma, também na Barca de

Gleyre, Lobato não poupa elogios ao livro Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima

Barreto, que usando de uma linguagem simples, direta e objetiva, alheia a

rebuscamentos, e à semelhança de Euclides, ou seja, através de uma literatura

problematizadora dos problemas e questões nacionais, opera uma reflexão crítica sobre a

realidade brasileira, indagando os entraves do campo, a inautenticidade de nossa cultura

e o autoritarismo do sistema republicano.

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Em síntese, pode se dizer que Lobato prestigia Euclides e Lima Barreto,

considerando que esses dois escritores, ao argüirem em suas obras a realidade do Brasil,

operam um fazer literário iconoclástico, rompendo, portanto, com o “locus paradisíaco”,

ostentado pela estética literária romântica.

De fato, a simpatia de Lobato por Euclides da Cunha e Lima Barreto não é algo

gratuito, podendo ser esclarecida à luz do posicionamento em que eles se inscrevem, pois

eles se baseiam no pensamento Positivista de Augusto Comte bem como em Spencer.

Esses dois pensadores são citados por Lobato muitas vezes em suas cartas a Godofredo

Rangel, considerando que esses princípios evolucionistas são a base para a interpretação

da realidade. Portanto, Lobato, numa linguagem realista, desenvolve a crença no

progresso e na ascensão da civilização pela técnica e pela indústria. Nesse sentido, o

imperativo era de que transformar uma determinada realidade implicava, antes, em

conhecê-la, apreender os fatos e as circunstâncias que a moldaram.

Mediante essas considerações, torna-se mais fácil apreender o pensamento

progressista de Lobato e, mesmo, compreender suas constantes críticas ao Naturalismo.

Este movimento estético, ancorado no determinismo, propunha que o homem e a

sociedade estavam condicionados à raça, ao meio e ao momento histórico, além de ver

esses seres sociais como organismos patológicos. O pensamento progressista de

Monteiro Lobato parece aproximar-se dessa visão patológica, quando considera Jeca

Tatu apenas um homem doente e improdutivo, além de indolente. Ao tomar conhecimento

dos estudos de saúde pública, promovidos pelos sanitaristas Belisário Pena e Artur Neiva,

Lobato reconsidera sua visão do caboclo: ele não seria indolente e preguiçoso, nem

fadado ao determinismo do meio. Esse homem está doente por ser acometido por

verminoses, ancilostomose e fatores que o levam à desnutrição. Esses fatores estão

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ligados ao abandono do campo, ao subdesenvolvimento e à exclusão social desse

homem. Esse novo pensamento de Lobato frente ao Jeca Tatu (como símbolo de um país

endêmico) autoriza-nos afirmar que o pensamento de Lobato não se configura pelo

determinismo; ao contrário, ele acredita que a redenção econômica e cultural do homem

do campo, bem como o progresso do Brasil iriam mudar substancialmente o meio e, com

isso, o indvíduo também mudaria. Portanto, temos uma vertente positivista em Lobato,

mas não uma crença no determinismo.

Outro aspecto do pensamento moderno de Lobato refere-se ao fato de que o autor

compreende o progresso nacional como forma pela qual o país pode romper com o cerco

econômico do imperialismo americano, que está se iniciando de forma maciça pelo

capital, como nos mostra o fragmento de Prefácios e entrevistas:

Por que não enriquecemos? Porque o estrangeiro paga pelos nossos

produtos o que quer pagar, já que é ele quem os distribue. Quando

queremos um produto americano, como a gasolina, perguntamos ao

distribuidor localizado aqui: “Por quanto nos vende um tambor de gasolina?”

e ele dá o seu preço. Mas quando vamos vender um produto nacional a

nossa pergunta é outra: “Quanto vocês nos oferecem por uma saca de

café?” e o comprador estrangeiro nos impõe o preço que lhe convem, seja

ou não ruinoso para a nossa lavoura cafeeira. Isso porque organizamos a

nossa produção de café mas deixamos que a segunda parte, a distribuição

comercial do café, fosse organizada pelos interessados estrangeiros.

(LOBATO, 1948, p. 75)

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Outra questão cultural brasileira muito censurada por Lobato diz respeito ao favoritismo.

Retomando Schwarz, vemos que ele apreende a sociedade brasileira em três classes

distintas: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”. Entre o primeiro e o terceiro,

Schwarz diz haver uma relação ideológica: o favor. Este, a exemplo do escravismo,

desmente as idéias liberais, devido ao fato de que estas preconizam a autonomia da

pessoa, a universalidade da lei, a cultura desinteressada, a remuneração objetiva e a

ética do trabalho. O favor, como lembra Schwarz, engendra a dependência da pessoa, a

exceção, a cultura interessada e os serviços pessoais.

No livro, A barca de Gleyre, Lobato repele o favoritismo presente na imprensa jornalística,

cuja crítica literária, segundo ele, se exerce sob relações de camaradagem:

O jornal nos sufoca todas as tentativas de literatura, com os seus reporters

analfabetos, com a sua meia lingua engalicada, com os seus criticos de

camaradagem ou de “passa cá cinco mil réis”, com paredros a receberem de

genio para cima (O Paiz) ou de gatuno para baixo (Correio da Manhã)... Um

“nome novo” consegue nos jornais amigos um “lançamento” igual ao do

Tropon ou do Gelol. Parece que o mesmo homem que lança um, Gelol,

lança um novo genio – e o publico “passa” os dois, a panaceia e o genio.

Balcão e camaradagem – eis a nossa imprensa. Há um “cafagestismo” que

invade tudo – já invadiu o governo e vai invadindo toda a intelectualidade.

(LOBATO, 1956, p. 79 v. 2)

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No conto, A nuvem de gafanhotos, Lobato faz uma crítica ao favoritismo, ao

narrar a história de um modesto fazendeiro que tem seu sítio “invadido” por uma família

que se apresenta como seus parentes, e durante uma estada de duas semanas, devora-

lhe todo o seu mantimento, deixando-o à míngua. O próprio título é irônico porque não há

gafanhotos – estes são, na verdade, os “parentes” que ali se abancam intencionalmente,

a fim de explorar o fazendeiro. Os hóspedes – marido, esposa e filhas – vêem no campo a

possibilidade de uma estada farta e prazerosa. O pai desbasta-lhe as laranjeiras, uma das

filhas devora-lhe as galinhas da raça Orpingtons, ao passo que a mãe dá cabo dos

leitões. Acontece o mesmo com os ovos e com as lingüiças estocados na dispensa. A

ironia está no fato de que Venâncio, o dono da fazenda, que via no campo a promessa de

uma vida tranqüila e abastada, retorna, falido, à cidade e ao seu “empreguinho”, como se

refere a sua mulher. Além do seu patrimônio, os “gafanhotos” roubam-lhe a ilusão e o

entusiasmo quanto à agricultura, demonstrados em suas palestras, na cidade. Nesse

conto, Lobato mostra que as relações de interesse não se limitam apenas à alta

sociedade, aos centros urbanos ou à política, elas se estendem a todas as camadas

sociais.

A mesma situação também se aplica ao funcionalismo público e ao bacharelismo,

cuja crítica se mostra muito recorrente nos contos de Lobato. Ter um filho bacharel em

Direito indica um “ranço” cultural presente em muitas famílias: formar um filho, dar-lhe um

título, era prova de ascensão social. Caso não conseguissem, os pais sentiam-se

constrangidos, visto que viria à tona a sua inferioridade econômica e/ou social. O próprio

Lobato tornou-se bacharel por imposição do avô. Portanto, na década de 1920, o

bacharelismo e o funcionalismo público proliferam de forma desmedida, como

instrumentos de ascensão social.

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Na articulação entre as suas concepções culturais e o seu ideal de progresso,

Lobato coloca-se contra essas duas situações: a dependência pessoal e a cultura

interessada. Em outras palavras, ele, acreditando no progresso, busca questionar os

entraves da sociedade brasileira, a fim de solucionar os problemas deles provenientes.

O pensamento de Roberto Schwarz é bastante esclarecedor quanto ao impasse

cultural questionado por Lobato. Embora teoricamente o Brasil tenha adotado as idéias

liberais da burguesia européia, contra o arbítrio e a escravidão, na prática, os próprios

debatedores (uma elite intelectual), sustentados pelo latifúndio, dão voz ao favoritismo,

perpetuando, conseqüentemente, a exploração do trabalho e do favor. Conforme se

mencionou antes, o semi-feudalismo foi exemplar dessa situação, porque o agregado

(considerado como o “favorecido”) condiciona-se ao proprietário de terras (o “benfeitor”),

em detrimento do seu livre arbítrio.

Mesmo quando n’ A barca de Gleyre Lobato só se reporta à literatura,

percebemos que suas concepções literárias são organizadas mediante a sua concepção

cultural e o seu ideal de progresso, tendo em vista que ele propõe um modelo unificador

de literatura. Uma literatura nacional “abrasileirada”, isto é, que se mostre alheia ao

rebuscamento da linguagem e à temática européia, em especial a francesa. Nessa

perspectiva, Lobato considera a importância de Machado de Assis que, segundo ele,

consegue não apenas adequar a idéia à forma, como também é capaz de tratar de temas

universais com a “cor” local, fato que o torna sempre atual: Já o Braz Cubaz é eterno pois

enquanto o mundo for mundo haverá Virgilias e Brazes; mas Milkau é um metafísico de

hoje, tem ideais de hoje e filosofa hojemente; amanhã só será lido pelos futuros Melos

Morais. (LOBATO, 1956, p. 46 v.1).

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É muito recorrente uma apreciação crítica que Lobato faz de Camilo Castelo

Branco e Balzac, elogiando-os devido ao fato de ambos empreenderem uma crônica de

costumes, expondo as hipocrisias sociais, os desmandos do clero e a superficialidade da

burguesia.

Todavia, Lobato não apenas reivindica uma literatura que julga de qualidade,

mas também reivindica a valorização comercial da literatura: É preciso que a literatura

renda ao menos para o papel, a tinta e os selos. A primeira coisa paga que escrevi foram

artigos sobre o Paraná, coisa de outiva. (LOBATO, 1956, p. 239 v. 1).

Lobato propõe modernizar a literatura, transformando a mentalidade brasileira

em relação ao livro, visto que esta não considerava o livro como prioridade, mas como um

artigo de luxo. Para o autor, a leitura é um meio democrático de difundir a cultura e de

divulgar idéias e valores novos, e não apenas os das elites. Perseguindo esse

pensamento, ele torna-se editor, sendo o precursor do mercado editorial no Brasil. Ao

comprar a Revista do Brasil, ele se empenha em fazer com que o livro faça parte do

cotidiano da população brasileira, conforme indica o seguinte trecho de A barca de

Gleyre:

A maquina está montada – a maquina de gavar gansos ou de obrigar este

país a ler á força. O nosso sistema não é esperar que o leitor venha; vamos

onde ele está, como o caçador. Perseguimos a caça. Fazemos o livro cair no

nariz de todos os possiveis leitores desta terra. Não nos limitamos ás

capitais, como os velhos editores. Afundamos por quanta biboca existe.

(LOBATO, 1956, p. 239 v. 2).

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No entanto, é preciso frisar que Lobato requer para construção a literária o

mesmo dinamismo exigido pelo processo editorial. Por essa razão, ele insiste no sistema

que ele chama de “desliteralização” da literatura, para o qual ele usa a metáfora do verbo

podar. A partir dessa atitude, a literatura passaria a ser mais concisa, consistindo em dizer

o essencial; não teria a sobrecarga de adjetivos e de sistemas descritivos comuns ao

Romantismo e ao Naturalismo. Flaubert, por exemplo, por sua literatura naturalista e

excessivamente descritiva é alvo constante de sua crítica. É, também, sintomático desse

comportamento a preferência de Lobato pelo conto ao romance, dada a sua brevidade:

Tenho mais fé em contos do que em romances, porque a preguiça nacional aumenta e o

conto é mais curto. (LOBATO, 1956, p. 206 v. 2).

Percebe-se que a modernização da literatura e sua subseqüente acessibilidade

junto ao público, pela difusão do livro, reportam à preocupação de Lobato com a

educação, como instrumento indispensável ao progresso da nação. O autor censura o

sistema educacional brasileiro, primeiro por tratar-se de um privilégio ao alcance de

poucos. Haja vista que uma grande parcela da população, ou seja, a maioria pobre, não

tinha acesso às escolas, criando-se um país caracterizado pelo analfabetismo. E, em

segundo lugar, por ser uma diligência do governo e não da iniciativa privada; o que por

sua vez, de acordo com o autor, torna o ensino tendencioso, partidário ao governo,

convertendo-se em um meio de difusão de idéias governamentais, a exemplo do que

ocorreu na Alemanha. Ao contrário, no dizer de Lobato, o ensino deveria passar do

Estado (após este fornecer a instrução primária às crianças) para as mãos da iniciativa

privada, conforme ocorreu nos Estados Unidos.

Um outro comportamento cultural comum a sua época e contra o qual Lobato

protesta veementemente era a tendência da elite brasileira em valorizar e aderir aos

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modelos culturais estrangeiros – aos quais ele denominava de “cultura importada” – em

detrimento da cultura nacional. Essa situação evidencia-se na Semana de Arte Moderna

de 1922, ocorrida em São Paulo, quando ele se opôs ao cubismo, ao futurismo e ao

expressionismo (estéticas preconizadas e difundidas pelo movimento modernista,

caracterizado por sua tendência de vanguarda), e, também, por sua crítica severa à

pintora Anita Malfatti. As palavras de Lobato mostram a sua repulsa à valorização da

cultura estrangeira em nosso país:

(...) ficamos a imaginar que neste país de duas “culturas” tão diversas, a

letrada e a iletrada, talvez seja a iletrada a mais interessante, a mais original,

a mais rica em poesia. Pelo menos a poesia que nela existe é local, inedita,

nascida aqui mesmo como os musgos, as avencas, as orelhas de pau.

(LOBATO, 1948, p. 40).

A falta de liberdade de expressão era outro fator cultural e político, implantado

pelo Estado Novo, e contra o qual se manifesta Lobato. O autor teve o seu livro O

escândalo do petróleo, censurado pela ditadura de Getúlio Vargas. Esse livro tratava de

um assunto polêmico, que de certa forma atentava contra o Estado, pois narra os

percalços do seu projeto petrolífero em atrito constante com a política governamental. O

poder político é dotado de tamanha influência, capaz de promover a entrada de Getúlio na

Academia Brasileira de Letras – fato que contraria Lobato. Aliás, o autor censura a

Academia por promover uma literatura institucionalizada.

No entanto, em seus contos, Lobato não trata apenas das questões culturais

ditas problemáticas. Ele procura também expressar a tradição e a cultura local,

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enfatizando o cotidiano e o pitoresco. Em A vida em Oblivion, Lobato narra, com humor,

o fato de a cidade ter como fonte de educação literária três livros: La mare d’Auteuil, de

Paulo de Kock, destinado aos conhecedores do francês; alguns volumes do Rocambole

(do escritor francês Ponson du Terrail) para deleite das “imaginações femininas”; e Ilha

maldita, de Bernardo Guimarães, para o prazer dos paladares nacionalistas. Esses três

livros, juntamente com os jornais que trazem a Oblivion o rumor do mundo, constituem a

única fonte de leitura da cidade, disponível somente àqueles seis indivíduos a quem o

narrador se refere como a aristocracia mental da cidade. Encardidos pelo uso e por

passarem de mão em mão, esses três livros têm o seu paradeiro reclamado na, não

menos pitoresca, rodinha da farmácia, de onde se sabe com quem eles estão. Esse conto

se destaca, ainda, por aludir tanto ao fato de que o livro não faz parte do cotidiano da

população brasileira em geral, quanto ao desejo de Lobato, como editor, em torná-lo um

artigo acessível.

A situação da mulher, principalmente nos primeiros decênios da república, é

outro aspecto cultural interessante, abordado pelo autor. No conto Cidades mortas, o

narrador descreve a criação da mulher para a finalidade exclusiva do casamento:

Da geração nova, os rapazes debandam cedo, quase meninos ainda; só

ficam as moças – sempre fincadas de cotovelos à janela, negaceando um

marido que é um mito em terra assim, donde os casadouros fogem. Pescam,

às vezes, as mais jeitosas, o seu promotorzinho, o seu delegadozinho de

carreira – e o caso vira prodigioso acontecimento histórico, criador de

lendas. (LOBATO, 1994, p. 23).

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No campo, essa situação torna-se mais dramática, como nos mostra a

personagem do conto, O comprador de fazendas, Zilda – moça ingênua e extremamente

romântica, cujo sonho de casar-se com um bom partido a faz cair na lábia de um

aproveitador. Este conto se refere, também, à decadência do campo, narrando a história

de um escroque que quer ao mesmo tempo casar a única filha (Zilda) e vender seu

decadente sítio para mudar-se para a cidade. Diante desse objetivo, o proprietário faz de

tudo para torná-lo o mais atraente possível aos olhos de um comprador. Entretanto, ele

depara-se com outro escroque, Pedro Trancoso, que se faz passar por comprador.

Trancoso ilude a todos, mostrando-se sempre disposto a pagar mais pela propriedade;

enquanto vai angariando a simpatia dos proprietários, ele se acomoda no sítio às custas

deles, galanteando a jovem e elogiando os saborosos pratos que a dona da casa lhe

serve.

Se para algumas moças, que embora se mostrassem mais jeitosas, casar era

algo difícil; para outras, como a personagem Das Dores, do conto Cabelos compridos, o

casamento se tornaria um objetivo inatingível. A descrição de Das Dores explica o porquê:

-Coitada da Das Dores, tão boazinha...

Das Dores é isso, só isso – boazinha. Não possui outra qualidade. É feia, é

desengraçada, é inelegante, é magérrima, não tem seios nem cadeiras nem

nenhuma rotundidade posterior; é pobre de bens e de espírito; e é filha do

Joaquim da Venda, ilhéu de burrice ebúrnea – isto é, dura como marfim.

Moça que não tem onde se lhe pegue fica sendo apenas isso – boazinha.

-Coitada da Das Dores, tão boazinha...

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Só tem uma coisa a mais que as outras – cabelo. A fita de sua trança toca-

lhe a barra de sua saia. Em compensação, suas idéias medem-se por

frações de milímetro, tão curtinhas são. Cabelos compridos, idéias curtas –

já o dizia Schopenhauer. (LOBATO, 1994, p. 65).

Aliás, nesse mesmo conto, Lobato discute, também com humor, a questão da

religiosidade presente, sobretudo, no cotidiano do interior, mais como um ato social (em

função do qual os indivíduos se reúnem) e como tradição assimilada, muitas vezes, sem

reflexão, do que propriamente um ato de fé. A personagem Das Dores, por exemplo,

quando reza, o faz irrefletidamente, tendo como pretexto para o ato de rezar o fato de os

outros rezarem – pretexto que se estende a todas as suas atitudes: os outros. Ao ouvir,

certa vez, a prédica de um padre, em que ele pedia aos fiéis que refletissem sobre cada

palavra de suas orações cotidianas, Das Dores (cuja pobreza de espírito a faz interpretar

as coisas ao pé da letra) mostra a inocuidade de suas orações:

Das Dores meteu-se na cama, cobriu a cabeça com o lençol e deu início à

novidade. Abriu com o padre-nosso.

- Padre nosso que estais no céu; padre, padre; os padres, padre Pereira,

padre vigário... Padre Luís... Coitado, já morreu, e que morte feia –

estuporado!... Padre... Que idéia do seu cônego mandar a gente pensar nas

palavras! Nem se pode rezar direito...

- ... nosso; nosso é o que é da gente; nossa casa; nossa vida; nosso pai...

Pra quem seria que foi o nosso-pai ontem? Para a nhá Veva não é, que ela

já melhorou. Seria para o major Lesbão? Coitado! Quem sabe se a estas

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horas já não está no outro mundo? Bom homem, aquele... Tão caridoso... Ó

diabo! Estou me distraindo! “Nosso”, “nosso”... Em certas palavras não se

tem jeito de pensar... (LOBATO, 1994, p. 67)

No conto “O Resto de Onça”, Lobato traz ao conhecimento do leitor o hábito,

típico do interior, de contar casos entre uma roda de indivíduos, como uma das poucas

formas de entretenimento, em um ambiente em que a certa hora do dia pouco se pode

fazer para passar o tempo. Em síntese, o conto narra a história de um sujeito caçador que

é parcialmente dilacerado por uma onça, perdendo o braço direito, um dos olhos e parte

da face; ficando, por esse motivo, conhecido pela alcunha de “Resto de Onça”. Este, por

sua vez, conta a sua “peripécia” a Quim da Peroba que a conta ao seu patrão Cerqueira

César, e, este último, segue narrando-a a uma roda de amigos. De fato, o costume de

narrar casos ou histórias, independentemente de sua veracidade, é um comportamento

cultural comum no interior e que proporciona o entrosamento social entre os habitantes de

povoados e de zonas rurais. O interessante é que esse conto, além de retratar esse

comportamento, apresenta-se como uma metalinguagem do próprio conto, não apenas

por inserir um conto dentro do outro, mas também por mencionar algumas considerações

sobre a confecção do conto:

-Então, que lhes dizia eu? – comentou, voltando-se para os companheiros, o

que prometera extrair um conto ao primeiro conhecido que passasse.

-Sim – retrucou o ranzinza do grupo –, mas não é bem um conto, não passa

dum conto, duma anedota de caçador.

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-Está enganado. Tem todas as qualidades do conto e tem a principal: poder

ser contado adiante, de modo a interessar por um momento o auditório.

Dê ao fato forma literária, umas pitadas de descritivo, pronomes pr’ali, uns

enfeites pimpões e pronto!, vira conto dos autênticos, dos quais não secam a

paciência da humanidade com a arquimaçadora psicologia do sr. Alberto de

Oliveira... (LOBATO, 1994, p. 74).

Lobato não apenas se propõe a discutir os problemas e questões nacionais

(entre eles, a situação de indigência do sertanejo; a retrógrada aristocracia rural; as

possibilidades de progresso do país; a valorização excessiva dos modelos estrangeiros; a

educação; a presença do livro como difusor da cultura e do conhecimento; e a recorrência

do bacharelismo e do funcionalismo público no país) como procurar também, valorizar os

aspectos mais pitorescos e originais dessa cultura: o cotidiano, as crenças e tradições

locais que em conjunto apontam para a inserção do social e cultural em sua forma de

pensar o Brasil, ou seja, a partir da realidade nacional.

Em virtude dos fatos mencionados, conclui-se que Lobato nutre um aguçado

interesse pelas manifestações de ordem cultural, principalmente as que dizem respeito ao

Brasil e à nossa sociedade, com seus contrastes – interesse que incide sobre a sua obra

– ficcional ou não – e que se apresenta condizente com o seu perfil progressista de

desvendar o Brasil aos olhos do leitor.

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MONTEIRO LOBATO: AS PROPOSTAS NACIONALISTAS

O presente capítulo pretende argüir a concepção crítica do nacionalismo operada

por Monteiro Lobato e inscrita em suas obras Idéias de Jeca Tatu, A barca de Gleyre e

Prefácios e entrevistas; buscando intuir como o pensamento do autor representa em uma

proposta nacionalista crítica em oposição ao pensamento nacional ufanista e romântico,

no intuito de projetar o Brasil no âmbito do moderno. Perseguindo esse objetivo, buscou-

se embasamento teórico nos autores José Murilo de Carvalho, Roberto Schwarz e Renato

Ortiz, tendo em vista que eles abordam questões pertinentes com o tema tratado.

José Murilo de Carvalho (1995), em seu texto “Brasil: Nações Imaginadas”,

esboça a formação do espírito nacionalista e da concepção de nação no Brasil, no

período de 1822 a 1945. Inicialmente, José Murilo atenta para o fato de as imagens que

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se faz da nação serem determinadas pela elite ou por setores dominantes, ou seja, elas

se circunscrevem a instâncias e relações de poder. O autor destaca três imagens da

nação construídas em períodos distintos: de 1822, data da Independência, passando

pela grande transformação iniciada em 1930 até 1945, seu ponto final. Apesar de

diferentes (visto que a primeira se caracteriza pela ausência do povo; a segunda, pela

visão negativa do povo; e, a terceira, pela visão paternalista do povo), segundo José

Murilo, elas possuem em comum o fato de o povo não fazer parte do seu processo de

construção – razão pela qual podemos considerá-las como nações imaginadas.

A falta de uma unidade do Brasil contribuiu para esse processo imaginário, pois,

desde a Colônia, o país era representado não em termos de nação, mas, sim, em termos

de províncias, as quais lutavam apenas em prol de suas reivindicações particulares.

Mesmo em pleno século XX, nas duas primeiras décadas da República, o problema

ainda persistiria, posto que Monteiro Lobato censura a existência de regionalismos

separatistas no Brasil. O autor de Cidades mortas constata que o nosso país era em si

mesmo fragmentado, com regiões e Estados que não efetuavam uma intercomunicação,

estando, portanto, propensos a se estagnarem. Em sua visão moderna, a estagnação

desses implicaria a própria estagnação nacional, porque, segundo o pensamento

unificador de Lobato, somente a unidade garantiria o progresso do país. O seu

engajamento com a campanha de exploração de ferro e de petróleo em solo brasileiro

não visava somente à inserção do Brasil no mercado internacional (conforme já

mencionado), mas, também, à coesão nacional.

Reportando ao texto “Brasil: Nações Imaginadas”, constata-se que, somada à

precariedade das condições de comunicação e ao isolamento, a existência de um grande

contingente de indivíduos rurais e analfabetos dispersos pelo vasto território brasileiro

constitui um obstáculo à formação e sedimentação da identidade nacional, pois grande

parte da população brasileira, nessas circunstâncias, mostrava-se alheia à política. Esta

constatação é similar ao pensamento de Lobato, para quem o Brasil ainda não se

constituiu como uma nação, uma nacionalidade ou mesmo um espírito de unidade: Não

somos ainda uma nação, uma nacionalidade. As enciclopedias francesas começam o

artigo sobre o Brasil assim: “Une vaste contrée...” Não somos país, somos região. O que

ha a fazer aqui é ganhar dinheiro e cada um que viva como lhe apraz aos instintos.

(LOBATO, 1956, p. 32 v. 2). Essa falta de coesão nacional a que Lobato se refere é,

segundo ele, agravada pela desigualdade entre os Estados. Comparando os Estados de

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São Paulo e Mato Grosso, o autor esboça essa desigualdade, referindo-se à auto-

suficiência do primeiro e à dependência do segundo, em Prefácios e entrevistas:

São Paulo é um pequeno país, capaz de viver por si mesmo, bastando-se a si proprio em tudo. Mato Grosso, que fica lá atrás, não passa de uma dependencia de São Paulo, especie de fundo de quintal. Mas é isso mesmo. Pelas suas realizações na agricultura e na industria, São Paulo é uma pequena nação que se basta a si mesma. Não ha quem desconheça o fato, e estão aí as estatisticas dos variadissimos produtos que saem das fazendas e fabricas de São Paulo para o demonstrar. E no dia em que alguem puder dizer o mesmo de todas as outras unidades da federação, nesse dia o Brasil estará um dos maiores paises do mundo em desenvolvimento e riqueza. (LOBATO, 1948, p. 251-252)

Em contraposição a São Paulo, ele menciona Mato Grosso:

Mato Grosso é tambem, de fato, uma especie de fundo de quintal de São Paulo. Esse imenso trecho de terras que vai da costa atlantica até ás fronteiras do Paraguai e da Bolivia, está politicamente dividido em duas seções, uma com o nome de São Paulo e outra com o nome de Mato Grosso. Mas geograficamente é um trato de terra continuo que nenhum acidente geografico divide. A fachada desse trato de terra, a frente que dá para o mar, é São Paulo; o fundo é Mato Grosso. A parte povoada, já desenvolvida, é São Paulo; a parte quasi deserta a desenvolver-se é Mato Grosso. (...) O quintal matogrossense tem a sua saída natural através da casa paulista. Os negocios do Mato Grosso são com São Paulo. O desenvolvimento do Mato Grosso está condicionado ao desenvolvimento de São Paulo. (LOBATO, 1948, p. 252)

Outro fator que, aos olhos de Lobato, inviabiliza a consolidação da nação, diz

respeito aos regionalismos responsáveis pela estagnação local e, em conjunto, nacional.

Segundo o autor, esses regionalismos, decorrentes da falta de intercomunicação entre

os Estados e regiões, impossibilitam a criação de um país onde as partes efetivamente

contribuíssem para a formação do todo. Sua constatação surge de sua vivência nos

Estados Unidos, tal como observamos em Prefácios e entrevistas:

Em vez de um país á moda dos Estados Unidos, absolutamente homogeneo, com uma conciencia coletiva que reage da mesma maneira de norte a sul e de léste a oéste, ficamos uma série de compartimentos estanques – a Amazonia, o Nordeste, São Paulo, Minas, o Rio Grande,

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separados, fortemente diferenciados, cada região com sua conciencia regional, sua psiquica regional, sua politica regional – e dia a dia cada vez mais antagonizados. Chegamos a tal ponto de separação que os choques interregionais já começaram. Tivemos em 1930 e em 1932 guerras entre estados. (LOBATO, 1948, p. 254)

Para Lobato, esse separatismo só poderá ser suprimido à base do

desenvolvimento econômico e tecnológico, obtido através da exploração do ferro e do

petróleo no Brasil:

O meio inteligene de sustar o separatismo e o comunismo é indireto: é dando ferro e petroleo ao país. Ferro, materia prima da maquina; petroleo, materia prima da energia que move a maquina. Com a maquina teremos transporte e, portanto, mobilização das riquezas nacionais. Essa mobilização trará onimoda riqueza, trará destruição dos regionalismos hostis, trará alivio á miseria do povo, causa de todos os comunismos desesperados. (LOBATO, 1948, p. 255)

É interessante notar que, esse separatismo ao qual Lobato se refere, embora

envolva questões econômicas (haja vista que a solução deles proposta pelo autor é de

ordem econômica), trata-se, também, da sedimentação do sentimento de nacionalidade,

de coesão nacional e da concepção de nação que envolve tais fatores. O autor, ao que

tudo indica, queixa-se da ausência de um espírito da nacionalidade por parte da

população brasileira.

A coesão nacional, no entendimento de Lobato, dependeria ainda da língua. Em

um país onde a norma culta, legada pela gramática portuguesa, convive com a forma

coloquial, há sempre a estigmatização daqueles que utilizam a segunda. Assim, tem-se

de um lado, a norma culta restrita ao uso dos entendidos e aplicada muito mais à escrita

do que à fala, e, de outro, a linguagem coloquial, mais sintética e fácil. Em face dessa

divergência, Lobato sugere o que ele denomina de “basificação” do Português, tomando

como exemplo a língua inglesa, cujo aprendizado, segundo ele, torna-se mais fácil em

virtude da ausência de tantas flexões, comuns ao Português. No prefácio que faz ao livro

“Contas de Capiá”, de Nho Bento, Lobato elogia a oralidade e a espontaneidade da

língua presente no livro. Essa cisão da língua portuguesa no Brasil – norma padrão

versus linguagem coloquial – remete àquilo que Lobato considera uma cisão cultural em

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oposição ao seu espírito nacionalista de caráter unificador, como podemos ver em

Prefácios e entrevistas:

Temos duas civilizações ou melhor duas “culturas”: a cultura importada, dos que vivem nas cidades, e sabem ler e escrever e até escrevem livros! e a “cultura local”, filha da terra como um cogumelo é filho dum pau podre, desenvolvida pelos homens do mato – o caboclo, o caipira, o jéca, em suma. Como o jéca nunca leu nada e nem escreve, a sua cultura se foi fazendo ao tipo primitivo, por lentas acessões e restritas experiencias locais – e com a transmissão sempre oral. O assunto é grande demais para caber num prefacio; exige livros, já que se trata de uma “cultura” de 15 milhões de seres humanos. Mas cumpre-nos aqui considerar a galope um dos aspectos dessa “cultura”: a lingua, pois foi na lingua do jéca que Nho Bento nos encantou. (LOBATO, 1948, p. 29)

Quando o autor define, de fato, quem é o jeca, entende-se o seu apreço por uma

linguagem mais espontânea, mais natural e sem resbuscamentos, entendida por todos:

Este nosso país é um assombro. Nascemos aqui, vivemos e morremos aqui e não o conhecemos. Conhecemo-lo tão pouco que quando apareceu o primeiro retrato d’aprés nature do jéca foi um espanto geral e uma celeuma que durou anos e ainda repercute. É que ninguem sabia quem era o jéca – e sabem quantos jécas ha neste país? Milhões. Talvez 15 milhões, isto é, a terceira parte da nação! Mas esses milhões de nacionais vivem de tal modo segregados da civilização das cidades grandes e pequenas, tão alheios á cultura geral, que somos etnograficamente um balde de dois terços de agua e um de azeite – coisas imisturaveis. (LOBATO, 1948, p. 28-29)

Considerando a existência dessa parte marginalizada da população brasileira,

Lobato menciona tal idéia de um Português “básico” que, como elemento unificador,

abolisse a visão negativa que se tem da variação lingüística.

A ausência de uma educação de qualidade (empenhada em difundir o espírito

nacionalista) e a carência de livros portadores de uma temática nacional são apontadas

por José Murilo como um retardo à constituição de nossa identidade nacional, muito

embora ele mencione tanto a preocupação de estudiosos como José Veríssimo e Manoel

Bonfim a esse respeito; assim como o fato de Olavo Bilac, em parceira com Coelho Neto,

produzir uma literatura patriótica para crianças, cuja linguagem fosse acessível a elas.

Para Lobato, a liberdade de expressão é determinante na construção de um

Brasil ideal. Em seu pensamento nacionalista, ele não abre mão dela, mesmo porque, ao

denunciar a sabotagem em torno das tentativas de explorar o petróleo no país, acabou

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sendo preso. Liberdade que julga necessária justamente para poder denunciar o que ele

considera como os principais “desvios” de comportamento do Brasil: (...) a descrença do

povo, a retração dos capitalistas, o emperro e as manobras hostis do governo e a guerra

dos trusts estrangeiros (...) (LOBATO, 1948, p. 256). Em entrevista ao Jornal do Brasil,

Lobato afirma ter quase pronta uma obra sobre os Direitos Humanos, cujo título seria “Da

Necessidade Fundamental da Liberdade Política para Sobrevivência e Dignidade dos

Povos”. Não bastasse a sua experiência pessoal, o autor justifica essa obra com o

seguinte comentário, em Prefácios e entrevistas:

E o que hoje se publica é palha apenas, porque os autores são obrigados a engolir suas ideias. Ha no Estado Novo um medo panico da liberdade de pensamento – daí opressão. E ninguem cá fora reage. Tudo quanto se publica peca por falta de substancia. Não vejo nada sincero, nada do que eu desejava ver. (LOBATO, 1948, p. 305)

Lobato desfruta da mesma preocupação no que se refere à educação, como

elemento imprescindível à consciência e ao progresso nacionais. Basta mencionar a sua

célebre frase: “Um país se faz com homens e livros.” O seu esforço como editor pela

difusão do livro, conquanto atendesse a um estímulo empresarial, era também fruto de

sua percepção da educação como elemento unificador e propício à difusão do

conhecimento. Todavia, embora alguns escritores como Coelho Neto e Olavo Bilac se

dispusessem ao propósito de uma literatura patriótica e portadora de uma linguagem

mais acessível junto ao público infanto-juvenil, eles não foram poupados da crítica de

Lobato. O autor de Urupês, além de optar pelo “abrasileiramento” da linguagem, censura

a ambos – Neto e Bilac – pelo patriotismo ufanista comum às suas obras e que ele julga

ingênuo. Na mesma medida encontra-se o livro Porque me ufano do meu país, de

Afonso Celso, lançado em 1900, também de perfil ufanista, a exaltar a natureza e a

cordialidade do povo brasileiro (povo pacífico, bom e sem preconceito). A esse tom

laudatório, Lobato contrapõe um nacionalismo crítico, censurando o patriotismo, nesses

termos, como distorção da realidade, tal qual podemos conferir em Prefácios e

entrevistas:

Habituamo-nos de tal modo ao regime da mentira convencional que a verdade nos doi e causa indignação ao “patriota”. Patriota é o sujeito que mente, o que falsifica os fatos, o que esconde as mazelas, o que transmite ás crianças a sordida porcaria que recebeu de trás. (LOBATO, 1948, p. 256- 257).

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Ainda no que diz respeito a sua preocupação com a educação, Lobato repele o

sistema educacional brasileiro, considerando-o como um produto burguês e restritivo, a

divulgar os valores condizentes com a classe dominante, e ao qual não tinham acesso as

classes menos favorecidas.

Outro fator interessante no que se refere à construção do nacionalismo e da

concepção de nação, apontado por José Murilo de Carvalho, é que, durante o Segundo

Reinado, a representação da nação deu-se através da figura indígena, principalmente

durante e após a Guerra do Paraguai (1865-1870), enquanto movimento histórico e

político, cujas primeiras vitórias insuflaram o entusiasmo cívico e patriótico. Em função

disso, a revista Semana Ilustrada buscou registrar essa insurreição nacionalista através

de cartuns. No primeiro, intitulado “Brasileiros! As armas”!, o país surge representado por

um índio sentado no trono imperial, a segurar a bandeira nacional e recebendo a

vassalagem da província. O segundo traz a pátria representada sob a forma de uma

índia, com o nome Concórdia, tendo aos seus pés as armas nacionais, reunindo

conservadores e liberais em função da causa nacionalista. É interessante mencionar

ambas as representações da nação, porque elas possuem um estilo idealizado, comum

aos romances indianistas de José de Alencar. Uma das características da revisão crítica

nacionalista realizada por Lobato refere-se justamente a uma censura a essa visão

romântica e idealizada, conforme percebemos no ensaio Urupês:

Morreu Peri, incomparável idealização dum homem natural como o sonhava Rousseau, protótipo de tantas perfeições humanas, que no romance, ombro a ombro com altos tipos civilizados, a todos sobreleva em beleza d’alma e corpo. Contrapôs-lhe a cruel etnologia dos sertanistas modernos um selvagem real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante, tão incapaz, muscularmente, de arrancar uma palmeira, como incapaz, moralmente, de amar Ceci (LOBATO, 1994, p. 165)

Aliás, essa ruptura com a estética da idealização romântica é o ponto de partida

da crítica nacionalista de Lobato, frisando a necessidade de se conhecer a realidade

brasileira com os seus descompassos e problemas. Em decorrência desse desejo de

ruptura, o caboclo torna-se muito recorrente em sua literatura adulta, tanto nas figuras

dos personagens Jeca Tatu e Zé Brasil, quanto em alguns de seus contos, tratando-se

de um indivíduo social fruto dos entraves inerentes à realidade nacional. Vemos,

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portanto, que, sob essa perspectiva, a literatura de Lobato, por si só, enquadra-se no

conjunto de suas propostas nacionalistas, tal como nos mostra o ensaio Urupês:

No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês floridos derramam feitiços no ambiente e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro, abre a dança dos tangarás; onde há abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachôo permanente, o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas. Só ele não fala, não canta, não ri, não ama. Só ele, no meio de tanta vida, não vive... (LOBATO, 1994, p. 176)

Vemos que o narrador ironicamente utiliza um tom descritivo minucioso e laudatório

quanto à natureza, muito à moda de Alencar, para, em seguida, mencionar o caboclo

como indivíduo destoante, opaco e inerte, frente a esse quadro de vida exuberante. Por

meio dessa passagem, Lobato incita o leitor a enxergar além das idealizações, a

perceber que estas se esvaem por completo diante da realidade. Nessas condições, sua

literatura opta por um regionalismo sério que expressa o real entrosamento entre o

homem e o meio, como elementos indissociáveis, a ponto tal que o conhecimento de um

expusesse a verdade sobre o outro; ou seja, o caipira denunciaria o meio e vice-versa.

Um outro aspecto interessante é o diálogo entre Triste fim de Policarpo Quaresma,

de Lima Barreto e o pensamento de Monteiro Lobato. A obra de Lima Barreto narra o drama

do velho aposentado, Policarpo Quaresma, que ingenuamente se dispõe a lutar pela

salvação do Brasil. Ostentando um nacionalismo xenófobo, o protagonista propõe a adoção

do tupi-guarani como língua oficial; alimenta-se somente de comidas brasileiras; recebe as

visitas chorando tal como um verdadeiro índio goitacá; além de ater-se a pesquisas

folclóricas. Visto como insano, devido à distância entre o seu nacionalismo ufanista e a

realidade brasileira, é internado em um hospício. Ao receber alta, resolve adquirir um sítio,

com o objetivo de promover a policultura, mostrando que o desenvolvimento da agrícola no

Brasil era possível. No entanto, fracassa.

Policarpo nutre um desejo convicto de melhorar o país. Tomado por esse desejo, e,

aos poucos, adquirindo uma consciência mais crítica, o personagem cresce humana e

socialmente. Ao estourar a Revolta da Armada (ocasião em que o protagonista adere

incondicionalmente ao presidente Floriano Peixoto), Policarpo já possui plena consciência

dos verdadeiros problemas que afligem o país. Entretanto, ao presenciar a matança de

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rebeldes no Boqueirão, escreve uma carta de denúncia e protesto ao presidente, sendo por

essa razão preso e fuzilado. Como se pode perceber, o projeto ufanista de revitalização do

Brasil proposto por Policarpo envolve respectivamente os setores cultural, agrícola e político.

Conquanto tratar-se de um romance urbano, O triste fim de Policarpo Quaresma

não se furta à oportunidade de especular criticamente os percalços da agricultura brasileira,

nos dois primeiros decênios da República, como nos mostra o capítulo intitulado “No

Sossego”. Em seu entusiasmo e afã de revolucionar o Brasil através da agricultura, o

personagem adquire um sítio abandonado e maltratado, tendo em mente explorar as

potencialidades do solo brasileiro e desenvolver aqui a policultura. Embalado por essa

ilusão, Quaresma inocentemente visualiza o cultivo de milho, feijão, batata, abóbora, frutas

(laranjas, abacates, pêssegos, abacaxis...), que lhe dessem um rendimento anual de mais

de quatro contos. O narrador descreve o deslumbramento do personagem: ... o que era

principal á grandeza da pátria estremecida, era uma base agrícola, um culto pelo seu solo

ubérrimo, para alicerçar fortemente todos os outros destinos que ela tinha de preencher.

(BARRETO, 1986, p. 67). Entretanto, ao se pôr em ação, Policarpo depara-se com a

exaustão da terra, a presença de saúvas e de ervas daninhas; sem contar, que dispunha da

enxada, como instrumento único de trabalho. Além disso, perde metade de suas galinhas,

perus e patos acometidos pela peste.

Na verdade, Lobato e Lima Barreto dialogam entre si, em virtude de

dialogarem e convergirem com o contexto histórico-social do qual emanam. Há tanto no

pensamento e nos texto de Lobato, quanto no livro de Lima Barreto, uma denúncia e crítica

à cultura interessada, à ausência da liberdade de expressão e aos flagelos que de fato

imperavam sobre o homem do campo.

Lima Barreto e Monteiro Lobato (este principalmente) prestam-se a narrar e

descrever o interior do Brasil que, subjugado pelo domínio da aristocracia rural, configura o

retrato da quietude, monotonia, opilação e ignorância comuns ao país. Veja a descrição das

cidades do Vale do Paraíba no conto Cidades mortas:

Pelas ruas ermas, onde o transeunte é raro, não matracoleja sequer uma carroça (...) Avultam-se em número, nas ruas centrais casas e janelas, só portas três e quatro: antigos armazéns hoje fechados porque o comércio desertou também (...) Isso nas cidades. No campo não é menor a desolação. Léguas a fio se sucedem de moraria áspera, onde reinam soberanos a saúva e seus aliados, o sapê e a samambaia. Por ela passou o Café, como um Átila. (LOBATO, 1995, p. 23)

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A mesma visão desoladora angustia Olga, afilhada de Quaresma:

O que mais a impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de cultivo, o ar triste, abatido da gente pobre (...) Por que ao redor dessas casas, não havia culturas, uma horta, um pomar? (...) Mesmo nas fazendas, o espetáculo não era mais animador, todas soturnas, baixas, quase sem o pomar olente e a horta suculenta. A não ser um café e um milharal, aqui e ali, ela não pôde ver outra lavoura, outra indústria agrícola. (BARRETO: 1986, p. 90)

Observa-se nas citações acima, o tratamento que os dois escritores dispensam à

linguagem: além de evitar a adjetivação excessiva na intenção de dizer o essencial, eles se

afastam da linguagem rebuscada – denotando uma maior preocupação com o conteúdo (o

enfoque social) em detrimento da forma. Embora dêem preferência a uma linguagem mais

simples, Lima Barreto e Monteiro Lobato utilizam-se de alguns recursos estilísticos para

denunciar a decrepitude e o marasmo típicos do país, tais como: o nome “Sossego” atribuído

ao sítio de Policarpo, e o silêncio reinante na cidade de Oblivion em Os perturbadores do silêncio (Cidades mortas), enquanto metáforas da apatia cultural e econômica do Brasil.

O traço característico do pensamento de Lobato é a busca pela realidade

brasileira, trazendo à tona a sua inquietação diante das mais variadas representações

que dela se faz, as quais, segundo ele, são exemplos de mitificação. Basta citar –

retomando José Murilo de Carvalho – o fato de o governo imperial, aproveitando-se da

Guerra do Paraguai com o objetivo de promover e difundir o patriotismo, encomendar

aos renomados pintores Pedro Américo e Vítor Meireles, respectivamente, os quadros, A

Batalha do Avaí e A batalha do Riachuelo. Em Idéias de Jeca Tatu, Lobato faz uma

comparação entre Pedro Américo e Almeida Júnior, elogiando este, que, ao contrário do

primeiro, expressaria a realidade brasileira com todos os seus contrastes, tal como

mostra o seu quadro, o Caipira picando fumo. No oposto, conforme a opinião de Lobato

estaria Pedro Américo, que apesar do talento e de pintar temas nacionais, ele o faz

sobre a influência européia: Capaz de rasgar sendas novas, conducentes á criação de

uma arte genuinamente brasilica, desdenhou essa vereda aspera e fez-se europeu.

(LOBATO, 1961, p. 76).

Contudo, a crítica de Lobato não se limita apenas ao estilo importado de nossa

arte, tratando, também, do condicionamento que ela sofre. Sob esse prisma, a arte não

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seria uma manifestação espontânea; ela se encontraria determinada por fatores de

ordem política, ideológica ou econômica; ou seja, de forma de se expressar, a arte

passaria a uma demanda, como é o caso do quadro, A Batalha do Avaí, de Pedro

Américo, encomendado por D. Pedro II. Este quadro atende a uma dupla ideologia: forjar

uma história de glória para o Brasil e camuflar a verdadeira história da guerra do

Paraguai. Contra esse imperativo de forças que condicionam a produção artística

nacional, Lobato profere o seguinte protesto:

A teoria dos tres fatores de Taine, pela qual o artista é um produto conjugado do homem, do meio e do momento, sofre no Imperio a interpolação anomala de um quarto fator. Todos os grandes artistas, poetas, estadistas, sabios e tecnicos daquele venturoso periodo são o produto do homem, do meio, do momento e de Pedro Segundo. (LOBATO, 1961, p. 74)

Nesse fragmento acima, Lobato, de forma irônica, oblitera o determinismo,

mostrando que o contexto é configurado por relações de poder, mais do que por

qualquer outra coisa.

Revendo, mais uma vez, o texto de José Murilo de Carvalho, percebe-se que ele

conclui que a Independência e a República foram vitórias parciais, haja vista que a

constituição definitiva da nação dependeria, ainda, daquilo que ele chama de revolução

da dignidade econômica. A fim de esclarecer essa revolução, José Murilo cita Manoel

Bonfim como representante do americanismo, para quem o atraso do Brasil se deve ao

parasitismo. Dessa forma, as colônias, após anos a fio serem parasitadas pela metrópole

ibérica, quando alcançam a sua independência, não eliminam de dentro de si o germe

parasita: o senhor parasitava o escravo; os dominadores, os dominados; o Estado

parasitava o povo; e a nação estrangeira, o Brasil.

A metáfora do parasitismo também é recorrente no pensamento de Lobato, em

se tratando do seu personagem Jeca Tatu – parasitado pela injunção de fatores como as

instituições arcaicas brasileiras, as relações de poder, a omissão do governo e a

exploração do trabalho. O nome “urupês”, que nomeia tanto um de seus ensaios quanto

um dos seus livros de contos, refere-se a um fungo parasita presente na madeira em

estado de apodrecimento. Na mesma condição está o caboclo parasitando o meio,

buscando tirar dele o mínimo possível para a sua sobrevivência.

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A esse parasitismo, José Murilo acrescenta que, na tentativa de criar tanto uma

nação quanto um sentimento de nacionalidade, o Brasil procurou copiar os Estados

Unidos em termos de instituição, a começar por sua Constituição Republicana de1891;

considerando a nação norte-americana como a imagem da liberdade, do progresso e da

iniciativa, constituindo-se, conseqüentemente, em um modelo a ser seguido.

A questão da cópia dos moldes estrangeiros é muito combatida por Lobato. Muito

embora tenhamos a consciência de que ele, além de exaltar o progresso norte-

americano, apropria-se também da tradição literária européia, através de autores como

Camilo Castelo Branco, Balzac, Guy de Maupassant e Kipling. Parece haver, portanto,

um impasse no próprio pensamento de Lobato – hesitante entre a cópia e a sua repulsa.

O impasse se elucida, sabendo-se que em sua revisão crítica do nacionalismo, Lobato

repudia as influências européias, sobretudo a francesa, na produção literária e na cultura

brasileira. O autor de Cidades mortas insiste na idéia de que a nação e o sistema

republicano devem a sua inconsistência em grande parte à imitação de modelos em

nada condizentes com a realidade brasileira. Em Idéias de Jeca Tatu e em algumas

passagens de A barca de Gleyre, há situações por meio das quais Lobato exemplifica o

que considera como descompasso entre a cultura importada e a realidade do país. Na

seguinte passagem de A barca de Gleyre, o autor instaura a dimensão desse

descompasso:

Tenho de colocar-me longe para olhar e ver se o Brasil é coisa que mereça consideração. Possuem os que na America não são bugres puros, duas patrias: a mãe nativa, a mestiça simploria que nos pariu por obra e graça duma fecundação de europeu, e a mãe-de-criação, a Europa, que nos dá desde o berço uma lingua, aos 15 anos nos dá Robinson e Julio Verne, aos 20 nos dá toda a França e daí por diante nos dá a “heimatlandia”, essa coisa sem patria, formada da secreção de toda a mentalidade universal. Acho penoso viver toda vida no regaço da mãe tapuia, ainda de argolas nos beiços da alma, embora vestida de Eloys Chaves e Freitas Vale ao colo. (LOBATO, 1956, p. 166-167 v. 2)

Essa percepção do contraditório, inerente à formação da nação brasileira –

englobando a sua cultura e literatura – segue delineando a visão crítica de Lobato. Essa

contradição revela-se à luz da crítica do autor, quando ele narra, de forma caricatural, em

Idéias de Jeca Tatu, a vinda de D. João VI e da corte portuguesa para o Brasil: A

Soberania Nacional, coitadinha, desembarca numa padiola; está muito doente, sem

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sangue, com ares de tuberculosa. (LOBATO, 1961, p. 12). O mesmo também em outra

passagem: Entre as coisas avariadas pela agua do mar apareceu a Urna – a Urna das

Eleições! Remendaram-na como puderam, mas nunca funcionou a contento nas terras

do Brasil. Algo de essencial se perdeu na travessia. (LOBATO, 1961, p.14).

Apesar de mencionar a questão da soberania reportando à chegada da corte

portuguesa ao Brasil, Lobato se refere, de fato, ao seu próprio contexto. O autor insinua

que, a despeito do estabelecimento da República, o nosso país não adquiriu a sua

soberania, tendo em vista que além de o regime republicano significar, até a década de

1930, a perpetuação de muitos entraves existentes na Monarquia, o Brasil mantinha uma

considerável dependência cultural e econômica junto às grandes metrópoles como

França, Inglaterra e, posteriormente, os Estados Unidos. Esses dois fatores impediram

que o país se impusesse como nação soberana e autárquica.

O mesmo pode ser dito em relação a sua alusão irônica à urna eleitoral –

considerada como símbolo de uma democracia que se mostrava ausente no governo

republicano. Verifica-se que, em ambos os casos, o autor utiliza-se do recurso da

caricatura, como forma de acentuar ou revelar um determinado aspecto ou circunstância.

Ele próprio enfatiza a importância da caricatura, dentro de sua visão crítica nacionalista:

E em nada se estampa melhor a alma de uma nação, do que na obra de seus

caricaturistas. Parece que o modo de pensar coletivo tem seu resumo nessa forma de

riso. (LOBATO, 1961, p. 7).

O desconforto do pensamento de Lobato frente a nossa imitação cultural torna-se

radical se pensarmos em Roberto Schwarz. Em seu texto, “Nacional por subtração”

(1987), Schwarz faz uma reflexão crítica sobre o caráter “postiço”, inautêntico e imitado

da cultura brasileira e do mal-estar que ele nos provoca. Ao tratar nesse texto da origem

do mal-estar gerado pelo caráter de imitação da nossa cultura, Schwarz retoma a

questão da disparidade entre as idéias liberais importadas (igualdade perante a lei, a

dissociação entre o público e privado, as liberdades civis...) e o conservadorismo de

algumas de nossas principais instituições (o tráfico negreiro, a escravidão, o latifúndio...)

discutidas antes, em seu texto, “As idéias fora do lugar”. Um embate caracterizado pela

oscilação entre as diferentes formas de encarar as circunstâncias que o geravam:

enquanto para alguns a herança colonial representava um resquício cultural a ser

suplantado pelo progresso; para outros, ela seria o resíduo da autenticidade da cultura

brasileira, a salvo da influência das idéias estrangeiras.

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Controvérsias à parte, o fato é que as idéias de origem européia, aqui transplantadas,

encontraram no contexto brasileiro uma articulação social e uma base econômica

(praticamente agrária) diferentes do seu contexto de origem. Conquanto, teoricamente

fossem as mesmas, na prática, o seu significado e efeito mudavam em relação ao Brasil.

Entretanto, segundo Schwarz, a dissonância entre um Brasil litorâneo, culto e civilizado versus um Brasil interiorano, rude e atrasado, não consta de nossa natureza imitativa (como requer o próprio Lobato), mas da contradição latente entre uma base de trabalho escravo (cuja exaustão é sancionada pela Revolução Industrial Inglesa) e a formação de um Estado nacional conveniente com as propostas da burguesia sobre essa mesma base.

Para Roberto Schwarz, os entraves econômicos, sociais e culturais não podem ser

vistos, e muito menos resolvidos, pela ótica da imitação – esta como pretexto e causa para

aqueles. Esses entraves procedem não do ato de imitar, mas da contraditória estrutura social

do país. Em virtude de tal estrutura, atribuímos a nossa cultura um caráter insustentável, a

ponto de necessitar sempre de um modelo. Desse ponto de vista, não faz sentido atribuir os

“males” nacionais à imitação das idéias européias, pois a base escravocrata brasileira já

estaria incluída no rol das imitações.

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A crítica de Schwarz recai, portanto, sobre o uso intencional e ideológico da

questão da cópia cultural como justificativa para os problemas nacionais. Na verdade,

esses são de ordem estrutural e não comportamental – como requer a imitação. Como

se bastasse a repressão desse comportamento para que eles sejam resolvidos. Dessa

forma, a hipótese da imitação cultural é tanto reducionista (por centrar toda a questão

no binarismo nacional/estrangeiro, original/cópia, centro/periferia) quanto ideológica

(por disfarçar as relações de poder que presidem a organização da estrutura social e

econômica do país).

Encarada pela ótica de Schwarz, a questão da imitação cultural passa a ser

vista não como mero ato de imitar – indicativo da ausência de personalidade – mas

como uma apropriação cultural inerente à formação de países de cultura híbrida e de

passado colonial. Uma apropriação cultural cuja tentativa de mediação encontra-se no

Modernismo de 1922, com a Semana de Arte Moderna e, em particular, no movimento

antropófago proposto por Oswald de Andrade – pautando-se pela seleção dos

aspectos, movimentos e tendências culturais européias a serem incorporadas pelo

Brasil.

Todavia, a despeito de Lobato repudiar as vanguardas européias, podemos

considerar o seu pensamento como modernista, no sentido da seleção e assimilação

de idéias, tal como o faz Oswald de Andrade, em seu Manifesto Antropófago.

Sintomático e revelador desse processo seletivo, presente em Lobato é a sua relação

com os Estados Unidos, país onde viveu como adido comercial entre os anos de 1927

e 1931. Da cultura norte-americana, Lobato pleiteava para o Brasil apenas a sua

estrutura de progresso, dentro de um modelo industrial auto-sustentável a partir da

exploração de ferro e de petróleo. Assim, desejando o progresso nacional, o autor

inicia uma campanha em prol da exploração de ferro e petróleo em solo brasileiro,

principalmente do último que, ao lado do primeiro, além de constituir o alicerce de uma

indústria de base, torna-se o emblema da era moderna. Na Barca de Gleyre, Lobato

explicita melhor seu propósito:

Quanto ao petroleo, continuo com esperanças de dá-lo ao Brasil num ano ou dois. Estou imprimindo um prospecto para o lançamento da Companhia Petroleos do Brasil. Primeira fase: pequeno capital só para as experiencias com o aparelho Romero, o Indicador de Óleo e Gas. Bem sucedidos que sejamos, virá a companhia perfuradora e exploradora – e havemos de afogar em petroleo este país que nega as verdadeiras riquezas que tem. (LOBATO, 1956, p. 325 v. 2)

A importância do petróleo na sociedade moderna adquire tamanha dimensão

que ele passa a remodelar as relações comerciais e econômicas entre as nações.

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Diante de tal consciência, Lobato pondera que a aquisição do petróleo não se

restringe à viabilidade do progresso tecnológico e econômico. Na verdade, ela

implicava, também, o estabelecimento e a manutenção da soberania nacional. Isso

porque em plena era moderna, a soberania nacional encontra-se perpassada pelas

relações comerciais impostas pelo mercado internacional, instituindo, assim, que a

dependência econômica significa um obstáculo à supremacia reclamada para cada

país.

Nesses termos, o monopólio da produção petrolífera asseguraria a uma

determinada nação o jugo econômico das demais. Por essa razão, Lobato protesta

contra o jogo econômico realizado pela política dos trustes internacionais, ou seja, o

acordo entre empresas, com o objetivo de restringir qualquer concorrência e controlar

os preços. Empresas como Standard Oil e a Royal Dutch e Shell, por exemplo, foram

rechaçadas pelo autor, primeiro porque, em função do monopólio petrolífero, elas

subjugavam bancos e finanças, e, ao fazê-lo, dominavam, conseqüentemente, o

governo e as instituições administrativas. Segundo, porque elas, com o auxílio de

funcionários do governo federal, empenharam-se para que a existência do petróleo em

solo brasileiro não fosse declarada, ou melhor, que esse mineral fosse dado como

inexistente no território nacional.

O mesmo ocorreu com relação à exploração de ferro, pois além de não

dispormos, naquela ocasião, de capitais para a sua extração, empresas estrangeiras,

dentre elas a Itabira Iron, aproveitando-se desse fato, detinham o controle de nossas

reservas minerais, com o objetivo de impedir o seu acesso à concorrência sem,

contudo, explorá-las.

Em luta pela obtenção do petróleo nacional, o autor viaja pelo país, escreve em

revistas e jornais, buscando, em ambos os casos, persuadir àqueles que julgava

necessário, sobre a consistência de seu projeto; assim como consultou técnicos e

engenheiros, além de angariar capitais. A importância do petróleo para o Brasil, em

termos de progresso, independência econômica, soberania e participação no mercado

internacional, era tão contundente no pensamento de Lobato, que ele tratou de

sensibilizar até mesmo as crianças a esse respeito, através de seu livro infanto-juvenil,

O poço do Visconde. Nesse livro, o autor aborda toda a problemática do petróleo.

Assim, em junho de 1932, forma-se, em São Paulo, a Companhia de Petróleo

do Brasil, com capital de 3.000 contos, e cujos testes iniciais foram em Riacho Doce,

no Estado de Alagoas. A partir dessa primeira experiência, Lobato preside a formação

da Companhia de Petróleo Nacional, com sede no Rio de Janeiro.

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Entretanto, os esforços do autor confrontaram-se com a burocracia do governo

brasileiro, acompanhada da política dos trustes internacionais, conforme ele protesta

em A barca de Gleyre:

A idéia da Tebaida é boa – e quem sabe? Um “retiro espiritual” antes do vôo... Mas tudo depende de mil coisas neste encrencadissimo país. Estamos agora em luta tremenda contra o maior obstaculo que ainda defrontou o nosso petroleo, obstaculo oficial mais duro que a diabase do Araquá. Imagine que a Cia. Petroleos foi impedida de continuar a perfuração de seu poço lindo, que já estava em 1530 metros; e a Cia. Matogrossense, coitada, com duas sondas erguidas em Porto Esperança, com oficinas lá e o diabo, e engenheiros e o pessoal a postos, até agora não teve licença para perfurar! Já um ano e seis meses de espera. Espera de licença para tirar petroleo e salvar este país da miseria que o roi... Inda hoje escrevi uma grande carta ao chefe do governo denunciando a patifaria. Dará resultado? (LOBATO, 1956, p. 333 v. 2)

De fato, o autor não se cala diante dessa situação, escrevendo, em 1940, uma

carta ao então Presidente da República, Getúlio Vargas, acusando o Setor Geológico

(transformado em Departamento Nacional de Produção Mineral) de sabotar as

pesquisas referentes ao petróleo, promovidas pelas Companhias Nacionais; sendo,

por causa dessa denúncia, preso.

A consciência de Lobato quanto a importância do petróleo e do ferro para o

Brasil, por sua vez, remete ao culto à máquina, como símbolo do progresso e da

modernidade, conforme comprova o seguinte fragmento de A barca de Gleyre:

Que sonho lindo! Que maravilha! Morar e ter negocio na maior cidade

do mundo, onde os homens se envenenam com o fedor da Gasolina

de 800 mil automoveis! America, a terra de Henry Ford, o Jesus

Cristo da Industria! (LOBATO, 1956, p. 300 v. 2)

Outro aspecto importante de Lobato, quanto ao seu perfil moderno e

progressista, refere-se a sua condição de editor e tradutor. Como editor, ele insere o

Brasil dentro do mercado editorial, criando a indústria do livro. Na gênese desse

processo, ele compra a Revista do Brasil. É importante atentarmos para o perfil dessa

revista que, como assinala José Antônio Pereira Ribeiro, buscava formar uma

“Consciência Social Coletiva” e, como completa Cassiano Nunes, era considerada um

importante órgão da literatura paulista e brasileira. Entretanto, a revista, sob a

influência do Estado, distancia-se de seu propósito de agregar os brasileiros em torno

dos temas, assuntos e questões nacionais. No entanto, ao adquiri-la, Lobato a

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reorganiza, para que ela atue sob a sua orientação, no sentido de promover ao país o

conhecimento acerca de si mesmo. De posse da Revista do Brasil, ele inicia-se como

editor, editando, a princípio, os seus próprios livros, inclusive Urupês, em 1918,

trazendo uma coleção de contos e dois ensaios, Urupês e Velha praga, nos quais,

para a perplexidade da elite litorânea, ele discorre sobre a decadente realidade do

homem sertanejo, a partir de sua experiência como fazendeiro e da sua visão do Vale

do Paraíba.

Entretanto, o seu projeto editorial se defronta com a ausência de livrarias

responsáveis pela distribuição do livro, havendo no Brasil aproximadamente 50

unidades. Assim, visando a resolver o problema, Lobato põe em prática o processo de

consignação. Por meio desse processo, Lobato redige uma circular a vários

estabelecimentos comerciais, propondo que estes se dispusessem a vender os seus

livros, sob uma comissão de 30%; bastando devolvê-los, caso não os conseguissem

vender. Esta foi a forma revolucionária com qual ele conseguiu escoar o livro pelo

Brasil, antes da implantação da indústria editorial. A circular consta das seguintes

palavras:

“Vossa Senhoria tem o seu negocio montado e quanto mais coisas

vender maior será o lucro. Quer vender também uma coisa chamada

“livro”? Vossa Senhoria não precisa inteirar-se do que essa coisa é. É

um artigo comercial como qualquer outro, batata, querozene ou

bacalhau. E como Vossa Senhoria receberá o artigo em consignação,

não perderá coisa alguma no que propomos. Se vender os tais

“livros”, terá uma comissão de 30%; se não vende-los, no-los

devolverá pelo correio, com o porte por nossa conta. Responda se

topa ou não topa”. Todos toparam e nós passamos de quarenta

vendedores, que eram as livrarias, para mil e duzentos “pontos de

venda”, fosse livraria ou açougue. (LOBATO, 1948, p. 213)

Seguindo a mesma trajetória, ele funda a primeira editora nacional,

denominada Monteiro Lobato & Cia., que embora no início prosperasse, com a

revolução Paulista de 1924 e com a queda de fornecimento de energia pela Light, em

decorrência de uma seca prolongada, acabou falindo. Tão logo decretada a falência

dessa, o autor criou a Companhia Editora Nacional, dedicando-se também ao livro

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didático, que até esse momento era impresso em Portugal. Aqui, se deve mencionar,

novamente, José Murilo de Carvalho que relata em seu texto, “Brasil: Nações

Imaginadas”, a ausência de livros didáticos produzidos no Brasil e portadores de uma

temática nacional. Com Lobato à frente do mercado editorial, a situação começa, aos

poucos, a se modificar: a modernização da educação no sentido de não tolher a

imaginação da criança e de a estimular a não aceitar a realidade como algo

previamente determinado. Ainda como editor, Lobato possui um posicionamento

moderno em relação aos editores tradicionais: procurou editar autores desconhecidos,

lançando novos nomes no mercado.

A atuação de Lobato no mercado editorial é significativa tanto pela produção do

livro em série, traço marcante da sociedade moderna em ritmo de industrialização,

quanto pelo fato de inserir a “leitura” do Brasil em outros países como, por exemplo, na

Argentina, onde sua obra infanto-juvenil foi bastante difundida. Assim posto, o Brasil

passa a ser visto, a partir de sua própria percepção, pelos olhos estrangeiros. Lobato

como editor, no entanto, nos sugere mais do que um “difusor da cultura”; tratando-se,

também, de um empresário que via em seu negócio oportunidades e empregos.

O processo também ocorria em mão dupla, pois como editor, Lobato, do ponto

de vista antropofágico e modernista, edita e traduz, seletivamente, obras estrangeiras,

as quais julgava merecedoras de leitura, no ensejo de colocar o nosso país a par de

um cânone literário, político e cultural condizente com a sua forma de pensar o Brasil.

Traduzia somente aquilo que lhe aprouvesse, que no tocante satisfizesse o seu

espírito ávido pelo novo, ou aquilo que considerasse indispensável e necessário ao

leitor brasileiro. Um caso exemplar seria a sua tradução do livro Um mundo só, de

Wendell Willkie. O próprio Lobato justifica a sua resolução em traduzi-lo, em Prefácios

e entrevistas:

-Willkie não admite mais imperialismos: nem o britanico, nem sequer

os imperialismos internos dos Estados Unidos. Quer uma extensão

da liberdade humana a mais larga possivel. Quer a liberdade da Índia

e de todos os povos coloniais, embora reconhecendo que em muitos

casos essa libertação tenha que ser realizada gradativamente.

Tambem não admite nenhuma especie de ditadura, não concebe

nenhum governo que não seja de pura emanação popular. Um

governo deve sair de um povo como sai a fumaça de uma fogueira.

(LOBATO, 1948, p. 185)

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Concordando com Willkie, Lobato reclama a ausência de um governo que se

identifique com o povo, que se mostre solidário com os seus problemas e

necessidades e que atenda às suas expectativas. Por esse motivo, ele considera

indispensável a tradução e leitura de Um mundo só. O mesmo também vale para o

livro Poder Soviético, do Deão de Canterbury, apreciado e traduzido por Lobato, a seu

ver, em função de desmentir uma série de noções falsas sobre o povo soviético e

sobre a extinta Rússia daquela época. Estima-se que Lobato tenha traduzido mais de

oitenta obras estrangeiras, entre elas, romances, livros de ciências e de filosofia, por

conceber a sua leitura de algum modo essencial. Todavia, apesar de fiel à

transposição das idéias e pensamentos dos autores para a Língua Portuguesa, ele

não se prendeu a uma tradução literal; preferiu usar a linguagem de forma mais

acessível ao leitor.

Todas essas questões até agora apontadas são, de fato, indicativas do perfil

positivista e progressista de Lobato, referente ao seu posicionamento crítico do

nacionalismo. No entanto, a presença delas não é suficiente para apontar a

modernidade em Lobato. Muito oportuno, nesse sentido, é o texto “Cultura e

sociedade global” (1996), de Renato Ortiz. Nele, Ortiz aborda a questão da

globalização, considerando a sua complexidade e o fato de tratar-se de um processo

em movimento permanente. Dentro dessa abordagem, ele se atém à distinção entre

internacionalização e globalização, proposta por economistas, como ponto de partida

da sua análise.

A primeira consistiria no aumento da extensão geográfica das atividades

econômicas para além das fronteiras nacionais; ao passo que a segunda

corresponderia a um processo de internacionalização mais amplo e complexo, através

da integração entre as atividades econômicas dispersas. Em outras palavras, a

globalização significa a produção, a distribuição e o consumo de bens e serviços,

dentro de uma escala mundial. Entende-se que para Ortiz, o que ele chama de

internacionalização corresponde ao processo de mundialização.

Ao esboçar o surgimento da globalização, cujos primeiros indícios fazem-se

notar no início do século XX, o autor menciona o processo de mundialização que a

antecede – e que, em se tratando do pensamento moderno e nacionalista de Monteiro

Lobato, é o que nos interessa. A mundialização, ao contrário da globalização, não

implica a existência de uma inextrincável rede econômica entre as nações,

proporcionada pelo grande desenvolvimento tecnológico e pela profusão dos meios de

comunicação. No entanto, ela pressupõe uma economia-mundo, nascida em um

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circuito de trocas, em que a cultura e a economia não se restringem ao espaço

geográfico do país de sua origem.

Como gênese da globalização, a mundialização nasce com a expansão

industrial no século XIX, como ponto de cisão entre o que Renato Ortiz chama de

Antigo Regime (predominantemente agrário) e a nova ordem industrial. A passagem

de uma situação para a outra não corresponde apenas ao setor econômico, ela

acarreta mudanças sociais, visto que na sociedade agrária acentua-se a divisão de

classes, na medida em que uma minoria alfabetizada, formando a classe dirigente, se

sobressai em relação à maioria da população. Com os processos de industrialização,

a rigidez entre esses estamentos se desfaz, pois tais processos se caracterizam pela

maior mobilidade social, imposta pela divisão do trabalho que, por sua vez, exige a

pluralidade dos papéis funcionais desempenhados pelos indivíduos.

A importância da industrialização dentro desse quadro de mudanças é tanta

que Ortiz ressalta que “nação e industrialismo são faces distintas de um mesmo

fenômeno”. Nessa mesma perspectiva, o autor menciona Gellner, para quem “a

emergência da nação corresponde à passagem da sociedade agrária para a

industrial”. Em face da afirmação de Gellner, verifica-se que o conceito de nação, na

sociedade industrial, torna-se mais abrangente englobando relações comerciais e

culturais que se projetam para além do território nacional. Essa abrangência, por

conseguinte, remete ao fato de que a nação deve mostrar-se não apenas para os

seus, mas, também, assegurar a sua existência (aqui entendida como soberania e

autonomia) em outros contextos.

A nação, portanto, no entender de Ortiz, é a primeira manifestação da

mundialidade, a partir do momento em que ela manifesta a necessidade de prolongar-

se para além de seus domínios. Na verdade, essa necessidade lhe é infligida pelo

próprio processo de mundialização. Deve-se ressaltar, porém, que a mundialização

refere-se mais ao intercâmbio cultural do que propriamente às relações econômicas,

que marcam a globalização – embora estas perpassem a cultura.

Entendida como expansão cultural, a mundialização não prescinde da

industrialização, pois como nos adianta Ortiz, o processo industrial inserido no domínio

da cultura torna-se capaz de projetá-la no circuito mundial. Um caso exemplar de

mundialização cultural, citado pelo autor, é o cinema americano (e acrescentamos por

nossa conta o brasileiro) cujas produções não se limitam ao mercado nacional; ao

contrário, elas, em sua maioria, são produzidas mediante o objetivo de atingirem o

mercado internacional.

Quando pensamos em Monteiro Lobato, percebemos que a sua atuação como

escritor é sintomática e reveladora desse processo de mundialização da cultura, visto

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que o autor reconhece a necessidade de estender o Brasil, em termos de cultura, por

meio do livro, a outros países. Esse fato é perceptível em Prefácios e entrevistas, ao

ser questionado se sua obra estaria sendo divulgada em outros idiomas:

-Tenho contrato com a Editorial Americalee de Buenos Aires para a

publicação de 23 livros, que estão saindo um atrás do outro, em otima

tradução de Ramon Prieto e com desenhos de Baldassari. Em inglês,

tradução de Philip Carr, devem sair em Londres por Jonathan Cape. Estamos

em negociações. (LOBATO, 1948, p. 232)

Em sua atuação como editor, Lobato também aponta nessa direção, tendo em

vista que ele, por ocasião de sua mudança para os Estados Unidos, manifesta, em

correspondência a Godofredo Rangel (A barca de Gleyre), o seu desejo de fundar uma

editora em território norte-americano, que se chamaria Tupy Publishing Co., ao mesmo

tempo em que ele intenciona uma edição, também lá, de seu livro Choque das Raças.

Na mesma medida, como tradutor, Lobato torna o nosso país receptível e atento ao

que circula nesse mercado cultural.

Na sua tríplice face – de escritor, editor e tradutor – Monteiro Lobato projeta o

seu pensamento nacionalista no circuito da mundialização, estando convicto de que a

soberania e a autonomia nacionais requerem como respaldo de sua fundamentação o

reconhecimento do país no contexto internacional – possível somente em virtude de

sua inserção no circuito mercadológico cultural mundializado. Posto de outra maneira,

Lobato dispõe da certeza de que, fechada em si mesma, a nação tende a sucumbir-se

por não aderir a esse iminente processo de agregação de relações; ou seja, ela não é

auto-suficiente o bastante para se excluir dele. A quebra da Bolsa de Valores de Nova

Iorque, em 1929, afetando economicamente vários países, inclusive o Brasil, já

demonstrava o caráter unificador da mundialização.

Essa distinção, por sua vez, é muito conveniente à apreensão da modernidade

em Lobato, pois em virtude de seus projetos de modernização (criação do mercado

editorial brasileiro e extração de ferro e petróleo em nosso país) intui-se que o autor

tem a intenção de transmutar o Brasil para além de suas fronteiras, na tentativa de

inseri-lo em um circuito mercadológico cultural e econômico, sendo que a idéia de

nação, nessas proporções, rompe com o isolamento local. É justamente o que Renato

Ortiz afirma ao dizer que a cultura nacional corresponde a um grau de

desterritorialização, libertando os indivíduos do peso das tradições “locais”

geograficamente fixadas. A nação se constituiria, portanto, através da modernidade,

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pressupondo a sua inserção econômica e cultural no mundo. Dessa forma, constata-

se a coerência do pensamento de Lobato, tendo em vista que, mediante a iminente

expansão do capitalismo como elemento determinante nas relações entre as nações,

ele possui a consciência de que, fechada em si mesma, nação alguma seria auto-

suficiente. A modernidade de Lobato diz respeito justamente ao processo de

mundialização que antecede à globalização.

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Conclusão

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A vivência e atuação de Monteiro Lobato coincidem com a transição entre a

Monarquia e a República, mais precisamente com a implantação desta última. Sob a

ascensão paulatina do capitalismo e o despontar do sentimento nacionalista, o Estado

Republicano acarreta para o país uma série de mudanças, ao mesmo tempo em que

expõe os problemas de ordem cultural. Este quadro indica a emergência de novos

tempos. Entretanto, embora perceptíveis, essas mudanças não são imediatas, ao

contrário, elas ocorrem progressivamente, nos quatro primeiros decênios da República

– período em que Monteiro Lobato atuou mais intensamente.

Trata-se do momento em que o Brasil tenta adaptar-se a esse novo quadro

sócio-cultural. Falar em tentativa de adaptação ao novo regime não constitui uma

incoerência, na medida em que, no Brasil, a República foi decretada, não se

constituindo motivo de mobilização popular. A transição entre as duas formas de

governo, monarquia e república, deu-se de forma tão súbita que, em termos de

economia e cultura, muito do antigo regime ainda se refletia nos primórdios do Estado

republicano.

A consideração desse contexto histórico, econômico e cultural é fundamental

ao propósito dessa dissertação: analisar a argüição cultural que Monteiro Lobato faz

da sociedade brasileira, nas quatro primeiras décadas do século XX.

Primeiramente, ressalta-se que o pensamento crítico de Lobato envolve

questões como cultura, nação, nacionalismo, economia e literatura – consideradas

alicerces sobre os quais o Estado-nação se constitui. O reconhecimento da

importância desses fatores assegura a coerência do pensamento do autor, em termos

de crítica.

A primeira conclusão a que se chega é que, em Lobato, literatura e cultura

mesclam-se de forma inextrincável. A leitura das cartas d’A barca de Gleyre nos

fornece o ponto de vista do leitor Lobato, quando enuncia as suas preferências

literárias e as críticas daí advindas. A sua escolha por determinados autores em

detrimento de outros é guiada pelo fato de que os escritores apreciados dispõem de

um olhar crítico em relação à sociedade da qual fazem parte. Eles procuram promover

a inserção do social e do cultural, de forma crítica, em suas obras, tal como Lobato

busca nas suas realizações.

A predileção de Lobato por Camilo Castelo Branco, Balzac e Maupassant

aponta para a crítica social e de costumes na literatura, assim como o apreço por

Kipling revela a valorização que Lobato atribui ao que é autóctone, muito indicativo,

por sinal, do seu pensamento nacionalista. Em contrapartida, o seu desprezo em

relação a Flaubert (escritor naturalista) mostra que Lobato não percebe os conflitos da

sociedade como uma patologia, mas como um processo em evolução. A sua mudança

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de perspectiva frente a Nietzsche, a principio o apreciando e, depois, ignorando-o,

indica a sua vertente positivista.

Esse compromisso da literatura com a sociedade, apresentando-se como um

instrumento de reflexão social, é uma constante no pensamento de Lobato. Dentre

suas concepções literárias descritas em A barca de Gleyre, destaca-se a de uma

literatura engajada, tematizando questões dentro do contexto social, sob o propósito

de induzir o leitor à crítica.

A literatura apreciada por Lobato, do ponto de vista pragmático, isto é, exercendo uma função social, necessitava tornar-se o mais ampla e abrangente possível. Há, portanto, da parte do autor uma preocupação em torná-la acessível a todas as camadas e extratos sociais. Lendo as suas cartas, percebe-se o seu intuito de aproximar o público da literatura, seja através dos autores que ele traduz ou edita, pelo acesso mais fácil ao livro ou pela abordagem de temas com os quais o público se identificasse, através de uma linguagem simples e direta.

O tratamento dispensado à linguagem, estabelecendo uma forma mais concisa

e objetiva de se expressar, está imbricado no processo de “desliteralização” da

literatura, proposto insistentemente por Lobato em várias cartas d’A barca de Gleyre. A

economia de adjetivos, a simplicidade da sintaxe e a incorporação da oralidade no

texto literário fazem parte desse processo.

Esses cuidados com a linguagem, somados ao gosto pela caricatura como

forma de expressão, reforçam a idéia da proximidade entre Lobato e os modernistas,

mesmo sob o conhecimento de sua crítica à pintura cubista de Anita Malfatti, cujo texto

causou polêmica nos meios culturais da época, vendo-se nessa crítica um lado

reacionário de Lobato, criando-lhe alguns desafetos. Crítico sagaz, Monteiro Lobato

estava se insurgindo muito mais contra as influências das vanguardas européias no

Modernismo brasileiro, do que propriamente contra Anita e sua pintura iconoclasta –

adjetivo que muito bem ilustra Lobato. Cabe, porém, a ressalva de que esses laços

com o Modernismo são muito mais concretos em termos de ideologia, diante do

objetivo de indagar criticamente a sociedade brasileira. Para ele não havia

necessidade de buscar motivação lá fora, o próprio Brasil tinha temas de sobra para

matéria de uma arte genuína.

Nesse ponto, Lobato tem muito do Manifesto da poesia Pau-Brasil, de Oswald

de Andrade, pensando em uma arte brasileira em pé de igualdade e digna de

exportação. Por outro lado, a antropofagia se manifesta nele também, mesmo que de

forma paradoxal, quando rejeita a influência francesa e, ao mesmo tempo, pensa em

editar livros estrangeiros no Brasil, a fim de acelerar e acertar o passo do Brasil com a

cultura mundial. Em Lobato, presentificam-se algumas atitudes inovadoras quanto à

linguagem, como, por exemplo, a inserção da oralidade no texto literário, sem,

contudo, chegar ao experimentalismo formal dos modernistas. Elas são apenas o

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prelúdio da linguagem como forma de ruptura, sancionada pelo Modernismo em sua

fase inicial.

Ainda no plano ideológico, constata-se que o culto ao progresso e a exaltação

da tecnologia do novo e do moderno endossam as analogias entre Lobato e o

Modernismo, no que ele tem do Futurismo das vanguardas do início do século XX. As

campanhas pela exploração de ferro e petróleo no Brasil e a criação do mercado

editorial promovidas por Monteiro Lobato são relevantes a esse respeito; atestando

que a ideologia do novo e do moderno, consagrada pelo Movimento Modernista,

encontrava sua gênese em um autor considerado por alguns críticos como

essencialmente Pré-Modernista.

Analisado pela ótica da tradição da ruptura, observa-se que o Modernismo

mais uma vez se reporta a Lobato. A tradição da ruptura, tomada no sentido proposto

por Octavio Paz, como processo contínuo, e endossado por Silviano Santiago como

discurso que se inscreve na proposta modernista, tratando da rotinização das rupturas,

parece tornar-se uma constante na atuação do autor. Lobato rompe com os modelos

literários vigentes em sua época, entre eles a idealização e a linguagem empertigada;

rompe com a concepção de livro como artigo de luxo; com a estética artística oficial,

inspirada na cultura francesa; e com a sociedade agrária tradicional. Esta última

ruptura envolve, além dos aspectos culturais, os econômicos, que aparecem criticados

em seus personagens, Jeca Tatu e Zé Brasil. Esses personagens mostram que Lobato

também dispunha do plano ideológico do Modernismo: a crítica e a sondagem social.

Em Monteiro Lobato encontramos, portanto, a síntese da transição entre o Pré-

Modernismo e o Modernismo, na medida em que o pensamento dele e as suas

concepções literárias o fazem transitar entre esses dois movimentos: se esteticamente

ele se caracteriza mais como pré-modernista, em termos de ideologia, Lobato é

bastante análogo ao Modernismo. Essa posição singular do autor frente aos dois

movimentos torna inviável a sua classificação, tendendo exclusivamente para um

estilo, o que nos leva a considerá-lo como um ponto de interseção entre ambos.

A economia e o progresso, a seu ver, constituem “espelho” das manifestações

culturais, ou seja, o seu bom ou mau desempenho vai denunciar hábitos,

comportamentos e visão de mundo comuns à sociedade. Pelo viés do progresso e da

economia, percebemos que o autor explicita suas considerações em relação à

sociedade republicana, condenando de imediato, situações como: o favoritismo, a

burocracia e a cultura interessada, responsáveis em parte pelo atraso do país.

Para Lobato, a idéia de soberania nacional passa pelo viés da industrialização

e do progresso. Estes, por sua vez, estariam alicerçados nos conceitos de taylorismo e

de georgismo. O primeiro pressupondo o homem produtivo, a agilidade e a

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racionalização dos meios de produção; e o segundo buscando promover uma

revolução agrária, pondo fim ao latifúndio. Socializando a posse da terra, ele

acreditava que a sua produtividade seria maior.

Na mesma perspectiva, vê-se que para Lobato, a cultura envolve a Literatura,

tanto como fonte de expressão identitária de um povo, quanto em termos de denúncia

e reflexão. No primeiro caso, nos contos Cabelos compridos, “O Resto de Onça”, A vida em Oblivion, Cidades mortas e O comprador de fazendas, ao tratar do

cotidiano e do pitoresco, o autor reafirma o status da literatura como meio de

expressão cultural e como elemento que se integra ao contingente da cultura nacional.

Por essa razão, ele condena a influência da literatura francesa. No segundo caso, no

ensaio Urupês, e nos contos Café! Café!, Cidades mortas e O drama da geada

prevalece o pragmatismo do autor frente à Literatura, protestando contra a indigência

do homem do campo, a monocultura cafeeira, a tradicional aristocracia agrária e o

conservadorismo das instituições brasileiras.

Um texto também emblemático é Velha praga no qual o autor expõe a

rusticidade do ambiente do campo, por meio da figura do caboclo alheio à civilização,

cujos hábitos mais significativos são atear fogo na vegetação e extrair da natureza o

seu sustento que esta naturalmente lhe oferece. A “velha praga”, porém, não seria

propriamente o caboclo, mas as suas circunstâncias de vida: precariedade,

comodismo e ignorância.

Em ambas as situações – a literatura como elemento cultural e como instrumento

de reflexão – vê-se que Lobato insiste em seu processo de desliteralização. Mais

importante que afirmar que esse processo também o aproxima dos modernistas, é

considerar que ele propõe a aproximação entre o público e o texto literário pela

fluidez da linguagem. Esse posicionamento justifica o apreço de Lobato por Lima

Barreto, manifestado em suas cartas a Godofredo Rangel. A Literatura, portanto,

nessas circunstâncias, torna-se um elemento unificador, atingindo outras camadas

sociais pela abordagem de temas que lhe dizem respeito e pelo tratamento

dispensado à linguagem.

Percebe-se, ainda, que para Lobato a sociedade, a cultura e a Literatura não

podem prescindir da liberdade de expressão, vetada pelo Estado Novo. Em seus

contos e, de forma mais explícita, em suas cartas, entrevistas e prefácios, observa-se

que o autor não abre mão desse direito. O tom doutrinário de sua obra não-ficcional,

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por exemplo, sempre a ensinar, discutir ou propor algo em oposição à ordem já

existente, constitui um desafio à censura.

O mesmo direito Lobato pleiteava também para a educação, haja vista o fato

de o autor insistir que sob o domínio do governo, a educação, além de apresentar-se

como tendenciosa, minimizaria a capacidade de reflexão da criança; devendo,

portanto, ficar ao encargo da iniciativa privada. Vendo que educar significa formar um

espírito questionador, intuitivo e apto a mudanças, Monteiro Lobato cria uma Literatura

Infanto-juvenil alicerçada nessa prerrogativa. Embora essa dissertação não tenha

tratado de sua obra literária para crianças, a menção de seu livro infanto-juvenil, O

poço do Visconde, no qual ele expõe ao pequeno leitor os percalços da exploração do

petróleo no Brasil, é significativa ao mostrar que sua literatura dispõe de um perfil

pedagógico transparente – fator que não está presente de forma sistemática na

educação oferecida pelo Estado (considerado instância de poder conservadora dos

valores da elite).

Literatura, educação, linguagem e cultura fazem parte do nacionalismo crítico

de Lobato, que em síntese baseia-se numa proposta unificadora. Unificar o Brasil

através da cultura, da economia e do progresso constitui para o autor um caminho a

ser percorrido pelo país em busca do status de nação.

Como se pôde depreender do texto de José Murilo de Carvalho, a concepção

de nação e o sentimento de nacionalismo são construções imaginadas, ideológicas e

idealizadas, no sentido de se mostrarem caracterizadas pela ausência do povo.

Nessas circunstâncias, a concepção de nação constitui um projeto pedagógico em que

a idéia de nação conta com o respaldo da história oficial presente em livros e

documentos. Uma concepção criada por uma elite e adotada por todos.

Para Lobato, no entanto, o nacionalismo é algo empírico, que se constrói nas

experiências do cotidiano coletivo, na resolução dos problemas e na busca pelo novo.

Em sua visão, o sentimento de nacionalismo legitima-se a partir da consideração

desses fatores. Não se trata, portanto, de exaltar o Brasil como predispunha o

nacionalismo ufanista, mas de conhecê-lo em todas as suas nuanças. Deve-se

ressaltar, porém, que Lobato, embora desfrutasse dessa consciência, sua visão de

Brasil centrava-se no vale do Paraíba, em decorrência de suas circunstâncias de vida,

aliadas ao seu pragmatismo.

Seguindo o seu pensamento de sociedade brasileira como realidade

vivenciada, Lobato busca ampliar a coesão do país e o sentimento nacional através da

abolição da dicotomia da linguagem padrão versus linguagem coloquial,

principalmente na literatura, em favor de uma modalidade lingüística única e comum

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aos diversos estamentos sociais; na tentativa de incorporar culturalmente a massa de

indivíduos marginalizados a quem ele reconhece como os “jecas”.

Na mesma medida, estaria o livro como difusor da cultura e do conhecimento,

amenizando as distâncias entre indivíduos e regiões por meio da instrução. Fazer

circular o conhecimento e a cultura, em um país caracterizado por um vasto território e

por desigualdades econômicas e sociais, significaria para Lobato tanto um dos meios

para se promover a unidade nacional, quanto o primeiro passo a ser dado para se

corrigir essas desigualdades.

O progresso em si, para o autor, representa um fator de unificação nacional à

medida que este seria alavancado pelo petróleo e pelo ferro como elementos de uma

indústria de base capaz de unificar o país interligando as suas regiões por meio de

estradas de ferro e de rodagem. Para Monteiro Lobato, essa medida seria salutar na

superação dos regionalismos separatistas que, além de impedirem a visão do país

como um todo, uma unidade, favorecem a perpetuação das desigualdades internas.

É preciso mencionar, no entanto, que o sentimento nacional de Lobato estende-se

para além do território brasileiro. Na verdade, em seu pensamento nacionalista, o

autor concebe a nação a partir da articulação entre o interno e o externo. A sua

atuação como editor e tradutor, levando a outros países a nossa literatura e

trazendo para o Brasil obras estrangeiras, constitui uma das faces desse processo

de articulação. O mesmo pode ser dito em relação ao ferro e ao petróleo, não

apenas como fator de unificação nacional, mas como meio de inserir o Brasil no

mercado externo, de vencer o cerco do imperialismo e de o país afirmar-se como

nação auto-suficiente.

Diante disso, é possível intuir que o nacionalismo de Lobato caminha em

direção a um determinado telos: a modernidade, não no sentido de delimitação

temporal, mas como um ponto de evolução a ser atingido. Modernidade, progresso e

nação constituem a tríade do pensamento nacionalista de Lobato.

O moderno em Lobato encontra respaldo no fato de o autor pensar em uma

nação mundializada, mediada pelo intercâmbio econômico e cultural com outras

nações, através das relações industriais e capitalistas. Nesse sentido, o pensamento

de Renato Ortiz converge com o de Lobato, para quem a nação irrevogavelmente

prende-se nas malhas da mundialização.

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Da análise da atuação nacionalista de Monteiro Lobato, pôde-se depreender,

ainda, que, embora crítico, o nacionalismo do autor dispõe do perfil utópico presente

no nacionalismo ufanista, o qual ele repudiava. Os fatos que envolveram a atuação de

Lobato acabaram por revelar que a redenção do país, almejada por ele, não se

limitaria à exploração do ferro e do petróleo, à divulgação do livro e à revolução do

campo. A engrenagem do capitalismo emergente foi um fator de entrave ao livre

progresso, que Lobato não percebeu, devido a seu pensamento paradoxal e, de certa

forma, utópico.

Ao mesmo instante em que Lobato é moderno e revolucionário, ele não se

desprende totalmente de uma forma de tradição, pois ao mesmo tempo deseja um

país industrializado, sem, contudo, abrir mão da vocação agrária brasileira – dois pólos

da cultura nacional que nem sempre se desenvolvem em consonância.

Os interesses econômicos e políticos que movimentam a agricultura e a

indústria no Brasil são presididos por forças antagônicas das elites provenientes de

regiões geográficas e de classes sociais distintas, constituindo-se, portanto, em um

fator de extrema complexidade para o apagamento das desigualdades sociais e

resultando numa melhor distribuição de renda e de circulação dos bens culturais.

O lado lobatiano com reflexos do Futurismo, naquilo que o movimento tem de

iconoclasta, revela-se dialeticamente na construção do personagem Jeca Tatu, como

ícone de um país decadente, em oposição a um modelo de força. A sua proposta

nacionalista unificadora também constitui um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que

Lobato reconhece as diferenças brasileiras, ele parece insistir na sua

homogeneização, apagando-as. Ao Jeca não se justapõe um modelo positivo a ser

imitado, mas, sim, uma proposta de progresso, o que de certa forma descaracterizaria

esse caboclo, não naquilo que ele tem de brasileiro, mas naquilo que representa a

autenticidade que, de certa forma, Lobato busca no homem e no Brasil.

Conclusão não é bem uma palavra que combina com Monteiro Lobato, embora

o trabalho acadêmico assim o exija. Essa personalidade controversa pode combinar

com considerações, com reflexões, com pensamentos, com críticas e muita

controvérsia. No mapeamento feito em suas cartas, em suas entrevistas, nos seus

prefácios e, se é que se pode separar sua produção ficcional, verificam-se as várias

direções dialéticas, no sentido de movimento, que constituíram apenas um pequeno

recorte de análise. A contribuição que se pretendeu aqui foi iluminar criticamente uma

parte da obra lobatiana ainda pouco explorada.

Lobato pode ser considerado como uma construção de José Bento Monteiro

Lobato, uma mistura de ficção e realidade, cuja forma mais irreverente se estende

para Emília, tida por muitos críticos como o seu alter-ego. Tarefa, portanto, imensa,

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sendo difícil estabelecer uma única teoria crítica para suporte de análise da sua

produção. Por esse motivo é que as escolhas teóricas dessa dissertação foram

variadas, buscando textos de apoio pertinentes a uma obra, a um autor e a um

contexto muito específicos. Optou-se por não ir além da direção do moderno,

avançando pelos caminhos dos estudos da pós-modernidade. Pré-modernista por

classificação literária, modernista por atuação cultural, futurista, iconoclasta, com um

quê de nostalgia, Lobato é paradoxalmente moderno.

As pesquisas acadêmicas carregam muito de incerteza e muito de descoberta.

Colocar um ponto final é uma exigência do texto, mas não o seu fim, embora isso seja

um lugar-comum. Incomum são as concepções de Lobato, curioso até na última carta

que escreve a Godofredo Rangel, já perto de sua morte: Se morrer é apenas “passar”

de estado de vivo para o de não-vivo, que venha a morte, que será bem recebida.

Estou com uma curiosidade imensa de mergulhar no Além. (LOBATO, 1956, p. 382 v.

2).

Além da troça com os amigos ao dizer que queria saber afinal “se a morte era

virgula, ponto e virgula ou ponto final!”

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