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O “Caminho Quilombola”:
Interpretação constitucional e reconhecimento de direitos étnicos.
André Luiz Videira de Figueiredo
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Doutor em Sociologia.
Orientador: Luiz Jorge Werneck Vianna
Rio de Janeiro
Abril de 2008
ii
O “Caminho Quilombola”:
Interpretação constitucional e reconhecimento de direitos étnicos.
André Luiz Videira de Figueiredo
Orientador: Luiz Jorge Werneck Vianna
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Sociologia.
Aprovada por:
________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Jorge Werneck Vianna (Orientador)
_________________________________________________ Prof. Dr. José Monroe Eisenberg (Presidente)
_________________________________________________ Profª. Drª. Diana Nogueira de Oliveira Lima
_______________________________________________ Profª. Drª. Maria Alice Rezende de Carvalho
______________________________________________ Prof. Dr. José Maurício Paiva Andion Arruti
Rio de Janeiro
Abril de 2008
iii
Figueiredo, André Luiz Videira de.
O “Caminho Quilombola”: interpretação constitucional e reconhecimento de
direitos étnicos/ André Luiz Videira de Figueiredo. Rio de Janeiro: UCAM/ IUPERJ, 2008.
vi, 264 p.
Tese de Doutorado – Universidade Candido Mendes, Instituto Universitário de Pesquisa do
Rio de Janeiro.
1. Comunidades remanescentes de quilombos. 2. Políticas de reconhecimento. 3.
Judicialização da política. 4. Sociologia do Direito. 5. Campesinato negro.
(Doutor, UCAM/ IUPERJ).
I. Título.
iv
Resumo
O “Caminho Quilombola”:
Interpretação constitucional e reconhecimento de direitos étnicos.
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Sociologia.
Considerando que os direitos das comunidades remanescentes de quilombo foram
instituídos pelo Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da
Constituição Federal de 1988, esta tese aborda a construção da identidade étnica como o
resultado de um exercício coletivo de interpretação constitucional. Desta comunidade
aberta de intérpretes fazem parte não apenas legisladores e juízes, mas atores da sociedade
civil, formadores de opinião e as próprias comunidades interessadas. Tais atores estão
envolvidos, todos, em disputas interpretativas que constroem, para a questão quilombola,
um campo de posições possíveis. É neste cenário que abordo o processo de reconhecimento
de uma família de camponeses negros do Vale do Paraíba fluminense, articulado em torno
de uma conjunção possível entre valores e interesses. A comunidade remanescente de
quilombo de Alto da Serra constitui um caso exemplar do quanto o reconhecimento étnico,
embora possa encontrar como ponto de partida demandas objetivas como a permanência na
terra, opera, a partir do direito, um arranjo moderno da identidade, cujo impacto ultrapassa
as demandas originais, redundando na ampliação da auto-estima do grupo. Neste processo,
no qual as formas locais de reconhecimento deverão ser traduzidas para a linguagem do
direito, e vice-versa, os grupos concretos deverão articular uma interpretação da
Constituição que garanta, ao mesmo tempo, a integridade do direito e sua própria
integridade moral como grupo étnico.
264 p.
Palavras-chave: comunidades remanescentes de quilombos; políticas de reconhecimento;
judicialização da política; sociologia do direito; campesinato negro.
v
Agradecimentos
Não se completa um trajeto longo e tortuoso como este sem que se adquira um
considerável número de dívidas de gratidão. Felizmente, tais dívidas são sempre pagas
prazerosamente, o que torna estas páginas primeiras especialmente importantes para mim.
Antes de qualquer coisa, agradeço aos membros da família Leite por me permitirem
não apenas compartilhar de sua história, mas fazer parte dela. A hospitalidade com que me
receberam, nos últimos anos, fez com que eu me sentisse sempre em casa. Agradeço, em
especial, a Dona Terezinha e seu Dito pelo carinho e pela confiança, aos quais espero ter
feito jus.
Sou grato ao meu orientador, Luiz Werneck Vianna, pela confiança que depositou
em mim, pelo estímulo constante e pelo norte sem os quais este trabalho não seria possível.
Aos colegas do IUPERJ, agradeço pela convivência e pelo profícuo ambiente de debates,
em especial a Carla Soares, Helga Gahyva, João Marcelo Ehlert Maia, Caroline Brandão e
Guilherme Vargues. Aos professores, agradeço pelas valiosas lições e pela honra de me
fazer parte de seu corpo discente. Sou especialmente grato à professora Maria Alice
Rezende de Carvalho, pelo carinho com que se dispôs a ensinar, nas mais variadas
situações; as sessões do Seminário de Tese constituíram experiências inestimáveis.
Aos companheiros de Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, sou grato para
muito além desta tese de doutorado. Agradeço pela inesperada experiência de conjugar
termos nem sempre coincidentes como militância e pensamento, trabalho e prazer, família e
amizade. Agradeço, na pessoa de Rafael Soares, secretário-executivo, pela acolhida
afetuosa, cujo resultado foi o sentimento de pertença. A José Maurício Arruti, em especial,
pela generosidade com que se dispôs a uma parceria que tem rendido preciosos frutos na
reflexão e na ação, na razão e no afeto.
À minha família agradeço pelo porto seguro, pelo compartilhar de alegrias e
tristezas. A Rosa por, mesmo longe, se fazer tão perto, por vezes apesar de mim. À minha
vi
mãe porque, sempre acreditando, me fez acreditar. Finalmente ao meu pai que, tendo
partido no decorrer deste meu trajeto, não pode ver completada a caminhada pela qual tanto
lhe devo.
Aos amigos, agradeço pela presença constante, mesmo quando me fiz ausente. A
Nilton e Wilca, minha outra família. A Lúcia Helena e Ana Emília, companheiras pelos
muitos territórios negros. A Yabeta e Débora, com saudades dos tempos de “quinto
elemento”. Ao “coletivo Nós da Casa”, porque me fizeram um deles. Ao “Conselho”, por
se tornarem referências.
Sou grato, ainda, aos companheiros da Faculdade de Direito Candido Mendes –
Centro, minha casa nos últimos dez anos. Agradeço especialmente a Nilton Santos, Flavia
Bruno, Fábio Feliciano e Jadir Brito por, de diferentes maneiras e em diferentes momentos,
me oferecerem seu apoio nesta empreitada. Jamais poderei agradecer o suficiente ao
professor Miguel Baldez pelo exemplo, pelo ombro a ombro das lutas, por me ajudar a
descobrir minha militância. Esta tese não seria possível sem o apoio do professor José
Baptista de Oliveira Jr., diretor da FDCM, a quem também agradeço. Às chefes do
Departamento de Sociologia do Colégio Pedro II, Maria Lúcia Pandolfo e Fátima Martins
Ferreira, sou grato por me possibilitarem a licença sem a qual este trabalho não seria viável.
Finalmente, agradeço a Letícia, minha mulher, simplesmente porque estava lá. Seu
amor quase tangível me alimentou, sobretudo nas horas mais duras. É a ela que dedico este
trabalho, pequeno presente diante de tudo o que este “Nós” já me deu.
1
ÍNDICE
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 3
a questão quilombola, hoje ............................................................................................. 4 o estudo de caso ............................................................................................................ 10
PARTE I – ENTRE O DIREITO E A POLÍTICA: CAMPO JURÍDICO E PROCESSOS POLÍTICOS DE RECONHECIMENTO DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO. ........................................................................... 14
CAPÍTULO 1 – ELEMENTOS PARA UMA SOCIOLOGIA JURÍDICA DO RECONHECIMENTO ÉTNICO. ............................................................................................................................ 16
desrespeito e reconhecimento ....................................................................................... 17 os outros significativos ................................................................................................. 20 as políticas de reconhecimento .................................................................................... 24 reconhecimento e etnicidade ........................................................................................ 28
CAPÍTULO 2 – ENTRE A LETRA E O ESPÍRITO: POLÍTICA QUILOMBOLA E INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL. ............................................................................... 35
Constituição e reconhecimento .................................................................................... 36 o artigo 68 e as possibilidades interpretativas ............................................................. 44 As primeiras interpretações: os marcos regulatórios e a ressemantização ................. 50 os governos e seus quilombos ....................................................................................... 58 a política quilombola, entre reconhecimento e redistribuição .................................... 64
CAPÍTULO 3 – O QUILOMBO EM DISPUTA: A PRODUÇÃO PÚBLICA DO DISSENSO. ......... 72 as disputas interpretativas ............................................................................................ 72 Os quilombos nos tribunais .......................................................................................... 76 a constitucionalização do debate político .................................................................... 84 a retórica da reação: a questão quilombola na imprensa brasileira .......................... 89 entre a ressemantização e a dicionarização do quilombo ......................................... 100
PARTE 2 – “CADA UM É DO SEU JEITO”: RECONHECIMENTO E IDENTIDADE EM UMA COMUNIDADE NEGRA RURAL..................................... 105
CAPÍTULO 4 – RAÍZES HISTÓRICAS DO CAMPESINATO NEGRO DO VALE DO PARAÍBA ........................................................................................................................................ 108 CAPÍTULO 5 – “NA CASA DE MEU PAI HÁ MUITAS MORADAS”: TRAJETÓRIAS FAMILIARES, IDENTIDADE E TERRITORIALIDADE ENTRE CAMPONESES NEGROS. ........ 125
no rastro do carvão: processo de formação de uma família camponesa negra ........ 125 “o pessoal do Dito Leite”: a família camponesa como grupo étnico ........................ 145
CAPÍTULO 6 - O ENCONTRO COM A JUSTIÇA: A EXPERIÊNCIA JURÍDICA DO DESRESPEITO .................................................................................................................. 169
a ação judicial ............................................................................................................ 171 os vários sentidos de posse e propriedade ................................................................. 186 a juridificação dos conflitos como forma de desrespeito ........................................... 196
CAPÍTULO 7 - O “CAMINHO QUILOMBOLA”: PROCESSO DE IDENTIFICAÇÃO E RECONHECIMENTO DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE ALTO DA SERRA. ................... 202
2
a mediação dos intelectuais ........................................................................................ 203 as formas de organização e a formação da liderança ............................................... 216 O conhecimento do direito e o reconhecimento dos direitos ..................................... 225 as formas de reconhecimento ..................................................................................... 232
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 238
ANEXO – FOTOS DA COMUNIDADE E DO TERRITÓRIO DE ALTO DA SERRA ................................................................................ ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................. 255
3
Introdução
Na convocação afixada na parede, constava como item de pauta da assembléia de
fundação da Associação da Comunidade de Remanescentes de Quilombo do Alto da Serra
do Mar: “feijoada às 12 horas”. A chuva fina cobria o vale que cerca o rio Piraí, onde a
família Leite vive há cerca de 50 anos, apertando o passo dos que deixavam a pequena
congregação protestante situada no quintal da casa de Benedito, liderança familiar. Entre os
Leite de Alto da Serra, o domingo é, como para todos os protestantes, dia do Senhor,
reservado para a labuta religiosa. Para esta família negra, entretanto, é também, há alguns
anos, dia para se reunir em torno de outra luta: aquela pela conquista do reconhecimento de
seu território étnico. Dia de “reunião”, termo genérico para nomear qualquer encontro da
comunidade, que, em geral, acontece durante as tardes, entre a “escola dominical” matutina
e o culto noturno, numa dialética na qual os parentes, convertidos em “irmãos”, se forjam
companheiros numa campanha na qual a herança dos céus não substitui a conquista da
terra.
Naquela manhã de domingo, portanto, a pressa tinha outra motivação, para além da
chuva. A “reunião” aconteceria no prédio de uma antiga escola municipal, vizinha à
comunidade. O clima era de festa, e o primeiro item da pauta era a lauta feijoada, oferecida
pela família Leite àqueles que, nos últimos anos, se constituíram aliados e amigos. Afinal,
cinco anos após terem ouvido falar pela primeira vez em remanescentes de quilombo, em
um processo no qual se organizaram politicamente, formaram uma liderança sólida,
conheceram outros remanescentes, finalmente os quilombolas de Alto da Serra aprovavam
o estatuto de sua associação, a ARQUISERRA, condição para a concretização de seu
processo de reconhecimento e titulação junto ao INCRA.
Após compartilhar a feijoada (prato carregado de implicações simbólicas) com os
velhos e novos companheiros, era hora de compartilhar a apreensão da decisão. Isaías Leite,
que herdara a liderança de seu pai, acompanhava atento a leitura pública do estatuto a ser
aprovado. Antes da sua aprovação, ciente dos riscos e oportunidades que cada porta aberta
lhes apresentara nos últimos cinco anos, alerta sua comunidade para a importância da
4
decisão em jogo: “é uma coisa que vai deixar de ser coisa da gente, pra virar coisa
jurídica”.
“Virar coisa jurídica” pode ser entendido como reconhecimento, por parte do direito
e do Estado, da legitimidade das formas locais de organização e, por conseqüência, do seu
estatuto de sujeitos de direitos especiais. Pode significar, em contrapartida, que o ato de
expropriação que funda a produção do direito formal aliena os indivíduos de sua própria
produção política, submetendo-os a normas e princípios que lhes são externos. Os
quilombolas de Alto da Serra sabem das duas implicações, conhecem suas exigências,
apostam nos seus resultados. Aquela tarde chuvosa de domingo era, na verdade, o resultado
dos investimentos do grupo em traduzir sua história, sua identidade, sua relação com a terra
e suas expectativas de futuro em “coisa jurídica”. Com cuidado, talvez fosse possível fazê-
lo sem que deixasse de ser – pelo menos completamente - “coisa da gente”.
a questão quilombola, hoje
A década de 1980 marcou não apenas o retorno do Estado brasileiro às instituições
democráticas, mas a uma concepção de cidadania que somava aos direitos de primeira
(civis e políticos) e segunda geração (direitos sociais) um rol bastante ampliado de direitos
coletivos: direitos relativos a gênero e geração, de minorias raciais e étnicas, ou ainda
aqueles que incidiam sobre todo o povo brasileiro, como os culturais, consumeristas e
ambientais. Resultantes da diversidade das lutas dos movimentos sociais, tais concepções
de direitos encontraram seu marco jurídico fundamental na Constituição de 1988. Dentre os
novos sujeitos coletivos de direitos afirmados pela Carta Magna, o Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias faz referência aos “remanescentes das comunidades dos
quilombos”, sobre os quais incide o direito à propriedade definitiva das terras que ocupam1.
A garantia de direitos para a população quilombola no Brasil se coloca hoje como
tema relevante e objeto privilegiado para a sociologia, não apenas pelo seu impacto no que
se refere à expansão dos direitos para setores subalternizados, mas também pelos entraves à
1 O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias declara que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
5
sua efetiva realização. Vinte anos depois da afirmação constitucional dos direitos
territoriais dos “remanescentes das comunidades dos quilombos”, a Secretaria Especial de
Promoção de Políticas para a Igualdade Racial do Governo Federal (SEPPIR) contabiliza
3250 comunidades quilombolas reconhecidas, com cerca de 2,5 milhões de pessoas. Até
novembro de 2007, 81 territórios quilombolas foram titulados, alcançando 136
comunidades e 8.742 famílias2. Somados, os territórios titulados alcançam uma extensão de
933.327,32 ha, abrangendo 13 dos 24 estados da Federação. Destes 81 territórios, apenas 27
foram titulados pelo Governo Federal, sendo 20 no governo de Fernando Henrique Cardoso
e apenas sete no governo Lula, o que aponta para a relevância do tema nos contextos
estaduais, em especial nos estados do Pará e do Maranhão, onde foram titulados,
respectivamente, 35 e 20 territórios.
A atribuição ao INCRA da competência para a identificação, demarcação e titulação
dos territórios quilombolas3, em 2003, apontou para um movimento de retomada do
protagonismo por parte do Executivo Federal: hoje, 450 processos se encontram abertos e
em curso no órgão, abrangendo 23 estados da federação, com destaque para os estados do
Maranhão (89 processos) e Minas Gerais (69 processos). Entretanto, os dados da CPI-SP
não geram otimismo: do total de processos, 284 deles haviam recebido, até novembro de
2007, apenas um número de protocolo.
Em 2004, o Governo Federal lançou o programa Brasil Quilombola, de
responsabilidade da Secretaria Especial de Promoção de Políticas para a Igualdade Racial
(SEPPIR), do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Ministério da Cultura
(MinC), envolvendo 17 ministérios e cinco secretarias especiais. O orçamento do Brasil
Quilombola é de R$ 208.910.873,14 para os 04 anos de duração do Plano Plurianual, e em
2007 estavam previstos gastos de R$ 55.025.082,30. Entretanto, também aqui a efetividade
das políticas apresenta graves limitações: segundo o Instituto Nacional de Estudos Sócio-
Econômicos (INESC), entre os anos de 2004 e 2006 o Governo Federal deixou de gastar
2 Dados da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) <www.cpisp.org.br>. Segundo a CPI-SP, nove destas comunidades foram tituladas, em 2000, pela Fundação Cultural Palmares (FCP), sem a devida anulação ou a desapropriação dos títulos sobrepostos, o que resultou na abertura de novos processos quando, no governo Lula, a competência para tratar da matéria foi transferida para o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). 3 Resultado do Decreto nº. 4887, de novembro de 2003.
6
certa de R$ 100 milhões com políticas para populações quilombolas e, até julho de 2007,
havia gasto apenas 6,39% do orçamento previsto.
A relevância recentemente atribuída à questão quilombola pode ser relacionada à
emergência mais ampla do direito ao reconhecimento. Para além dos imperativos políticos
da igualdade jurídica e material, o tema do reconhecimento trata da afirmação das
diferenças e das prerrogativas de determinados grupos minoritários: mulheres e minorias
sexuais de forma mais ampla, e, em contextos específicos, nacionalidades minoritárias,
imigrantes, povos indígenas e comunidades negras rurais. A perspectiva do reconhecimento
multicultural aponta para a garantia de direitos especiais, relativos a língua, religião,
historicidade e territorialidade próprias, mas pode também implicar o acesso diferenciado a
direitos sociais, como educação, trabalho e segurança, a demandar do Estado a aplicação de
políticas afirmativas.
A esta transformação no campo da política corresponde uma mudança de
paradigmas no campo da sociologia, da filosofia social e, em certa medida, do próprio
direito. A teoria do reconhecimento diz respeito às formas como os sujeitos sociais se
percebem e se afirmam em contraposição aos outros, o que pode se dar em relações de
reconhecimento ou em relações de desrespeito. No plano político, isso implica uma análise
dos conflitos sociais não mais a partir da perspectiva estreita dos interesses materiais ou de
classe, mas fundamentalmente a partir dos imperativos morais do comportamento coletivo
(Honneth, 2003), o que significa dizer, a partir das demandas concretas dos grupos sociais
em relação ao reconhecimento de suas identidades coletivas. O reconhecimento passa a ser
tratado, portanto, como condição para a emancipação de grupos sociais subalternizados, o
que lhe confere a dimensão de projeto político (Taylor, 1994). A perspectiva da reparação
de injustiças culturais passa a conviver com a anterior, da reparação das injustiças
econômicas (Fraser, 2001), em um jogo de superposições e mútuas interferências4.
Na América Latina, as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pelo
reconhecimento e afirmação dos direitos de minorias étnicas, fundamentalmente
4 Aí reside a particularidade e o caráter heurístico da questão quilombola, que emerge no campo da cultura, mas ganha consistência no campo dos direitos fundiários.
7
comunidades negras rurais e povos originários. Embora tais formas de reconhecimento
passem pela afirmação de direitos culturais, como uso e ensino da língua, manutenção de
práticas culturais e religiosas, ou ainda ao direito de consulta no que diz respeito a decisões
políticas que lhes digam respeito ou que, de alguma forma, incidam sobre esses povos,
onde quer que tenham sido afirmados, a base para o reconhecimento dos direitos de tais
minorias étnicas tem sido a garantia do território que ocupam, quer seja pelo dispositivo da
propriedade, quer seja pela garantia do direito de uso.
No caso dos direitos territoriais das comunidades quilombolas, um problema se
colocava desde o primeiro momento de sua afirmação: considerando que o dispositivo
constitucional não explicita os critérios para a definição do que seja “remanescente das
comunidades de quilombos”, ou para a definição das terras a que tais grupos têm direito,
como operar a sua aplicação? Se, a princípio, a categoria remanescente de quilombo
evocava o sentido histórico de quilombo como comunidade de negros fugidos à época da
escravidão, o processo de interpretação do dispositivo constitucional, por outro lado, não
tardaria a operar a sua tradução para outra categoria, a de comunidade negra rural5, a partir
da mediação do conceito antropológico de grupo étnico. Mais adequada para dar conta das
demandas de grupos concretos, esta interpretação tornou o artigo 68-ADCT uma
possibilidade de acesso ao reconhecimento identitário e à garantia de direitos a um
contingente populacional que não encontrara lugar na ordem social competitiva: o
campesinato negro formado a partir da desarticulação da ordem mercantil escravista.
A abertura interpretativa, entretanto, teve por conseqüência a organização de um
forte movimento de oposição às políticas quilombolas, tanto no campo político quanto na
formação da opinião, articulando, na maioria das vezes, a alegada multiracialidade da
sociedade brasileira. Além das habituais polêmicas em torno das ações afirmativas, meios
de comunicação de massa e discursos políticos apontam para os riscos da emergência de
grupos auto-definidos como quilombolas, bem como para as possíveis irregularidades das
ações governamentais em torno de tal identidade. Uma análise tanto dos discursos
contrários quanto dos atores que se mobilizam em torno deles, entretanto, revela que esta
5 Apesar da emergência, nos últimos anos, de grupos quilombolas urbanos, em boa parte resultado do processo de urbanização (ou peri-urbanização) das comunidades negras rurais.
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oposição não se encontra no campo dos debates raciais, mas em outro, o dos interesses
agrários, angariando as objeções do agronegócio e de políticos ligados aos seus interesses, a
apontar para os riscos de uma “revolução quilombola”, derivação e nova face da ameaça
dos movimentos sociais no campo, cuja maior expressão até então fora o movimento de
trabalhadores rurais sem-terra.
O debate em torno da melhor interpretação para o artigo 68-ADCT contou com a
pródiga participação dos antropólogos. Através da Associação Brasileira de Antropologia,
este corpo de especialistas assumiu o protagonismo do processo interpretativo do artigo
constitucional, oferecendo um conjunto organizado de significados que foi consolidado, no
decorrer dos anos, em peças legislativas e regulatórias, em políticas de governo e em
decisões judiciais. Se, por um lado, o debate político em torno da questão quilombola se
constituiu a partir desta poderosa intervenção dos intelectuais, em contrapartida o campo
acadêmico se organizou em torno de uma produção que respondia a imperativos da razão
prática, consubstanciados em etnografias produzidas originalmente para alimentar
relatórios técnicos e laudos antropológicos6.
Embora os antropólogos estivessem, juntamente com os juristas, na ponta das
interpretações em torno do Artigo 68 do ADCT, e mesmo das práticas de intervenção e
assessoria, poucas iniciativas de explicação sociológica sobre a configuração deste campo
podem ser contabilizadas, constituindo-se a produção antropológica basicamente de obras
de caráter etnográfico. Dentre os poucos esforços para a constituição do reconhecimento
dos direitos quilombolas em objeto, destaquem-se dois autores. Em primeiro lugar, Alfredo
Wagner Berno de Almeida (1989; 1998; 2002; 2005), cujo trabalho seminal ajudou a
configurar o próprio campo de debates. Além dele, o trabalho de José Maurício Arruti
opera duas conversões analíticas importantes: a primeira, da análise sociológica da questão
quilombola para uma “sociologia do artigo 68-ADCT”, e a segunda, de uma descrição
etnográfica dos sinais diacríticos para uma análise dos processos sociais e jurídicos de
reconhecimento e identificação, uma sociologia do reconhecimento dos direitos étnicos
(1997; 2001; 2006). É no rastro destas duas conversões que me proponho a uma análise
6 Aspecto no qual, como veremos, este trabalho não constitui exceção.
9
sociológica da hermenêutica constitucional em torno do reconhecimento étnico, o que torna
a obra de Arruti objeto de investimentos para uma interlocução.
Partamos da definição de Boaventura de Souza Santos, segundo a qual o direito
constitui um conjunto ordenado de práticas de resolução, prevenção e instauração de
conflitos, de caráter argumentativo e público e com pretensões de legitimidade (Santos,
1988, pág. 72). Minha análise do processo de interpretação do artigo 68-ADCT partirá do
pressuposto de que o direito, na contemporaneidade, extrapola o espaço restrito das
instituições judiciárias, contaminando e sendo contaminado pelo mundo da política, onde
passa a mediar os processos de produção da verdade (Foucault, 2003; Habermas, 2005). O
exercício da política, neste sentido, pode ser entendido como parte do processo de
interpretação do direito, para cuja compreensão se deve levar em conta tanto seus
imperativos lógicos quanto seus determinantes externos (Bourdieu, 1989; Dworkin, 1999),
tomados, ambos, como elementos balizadores e legitimadores das construções de uma
comunidade aberta de intérpretes (Häberle, 1997).
O reconhecimento dos direitos relativos às comunidades quilombolas, quer seja no
campo de debates públicos em torno dos significados das categorias constitucionais, quer
seja nas práticas interpretativas locais, é tomado, aqui, como exemplar do exercício de
interpretação do direito por uma comunidade ampliada de intérpretes. Assumindo a
perspectiva do multiculturalismo como um primeiro referencial possível para a
interpretação do artigo 68 do ADCT da Constituição de 1988, a primeira parte da tese
empreende uma análise do reconhecimento dos direitos quilombolas desde a afirmação do
dispositivo constitucional até suas múltiplas interpretações em decisões administrativas,
debates legislativos, processos judiciais e movimentos da opinião, naquilo que Arruti
denominou “processo de nominação” (2006). Em seu conjunto, peças normativas, decisões
judiciais, políticas públicas e discursos jornalísticos são tomados como resultado de
práticas discursivas que constroem um sistema de significados em torno do artigo 68-
ADCT, que conforma o que podemos chamar de um campo de possibilidades
interpretativas da questão quilombola, a partir do qual os agentes locais podem balizar suas
práticas.
10
o estudo de caso
A distinção entre dois níveis de atividades da comunidade aberta de intérpretes, um
de abrangência nacional e caracterizado pelo exercício da generalização, e outro de
dimensão local e caracterizado pelo esforço de adequação das fórmulas generalizantes aos
casos concretos, revela uma relação dialética entre eles. As formulações generalizantes dos
debates públicos da comunidade ampliada de intérpretes informam as práticas locais,
indicando caminhos possíveis, ao mesmo tempo em que essas práticas desvelam novas
possibilidades interpretativas.
Na segunda parte desta tese me deterei sobre as condições para a interpretação do
dispositivo constitucional no plano local, a partir da análise de caso do processo de
reconhecimento da comunidade remanescente de quilombo de Alto da Serra, nome pelo
qual hoje se chama a família negra dos Leite, residente na zona rural do município de Rio
Claro, na região do Médio Paraíba fluminense. Parte do campesinato negro que se formou
nos vales dos rios Paraíba e Piraí, na passagem do século XIX para o século XX, em razão
da crise do café e da exploração do carvão, a comunidade de Alto da Serra se apresenta,
hoje, como um dos grupos mais mobilizados no contexto fluminense, apresentando um alto
grau de organização e uma forte adesão à identidade quilombola. A identificação como
remanescente de quilombo produziu um forte impacto nas formas de organização do grupo
e na sua relação com agentes externos, e sua liderança ocupa posições importantes no
movimento quilombola fluminense.
Um dos objetivos da análise de caso será compreender de que modo a família Leite
operou a adesão ao rótulo constitucional e a partir de que bases o fez. Trata-se de um grupo
camponês negro de raiz protestante, cuja ocupação data de cerca de cinqüenta anos, sem a
presença de traços característicos da “influência africana”, seja no campo da religião, seja
no campo da cultura. Em seu processo de identificação (Arruti, 2006), o grupo passou por
um relativamente longo exercício de reflexão coletiva acerca das implicações jurídicas e
políticas do reconhecimento, sobretudo no que tange à relação com a terra. Apesar de
movidos, a princípio, pelos interesses fundiários, o reconhecimento produziu uma
ampliação das demandas da comunidade, que passou a identificar as velhas formas locais
11
de relação como experiências de desrespeito. O resultado foi, do ponto de vista interno, a
produção de uma racionália autojustificadora (Becker, 1977) fortemente ancorada em uma
gramática dos direitos e do conhecimento. Do ponto de vista externo, significou uma
ampliação do reconhecimento do grupo, de sua manifestação local para o plano político,
redundando na abertura do processo de reconhecimento e titulação da comunidade junto ao
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, ou seja, em reconhecimento formal.
O processo pelo qual a comunidade construiu sua identidade pública será pensado
como um exercício de hermenêutica constitucional, uma vez que, como veremos, estamos
diante de um caso que radicaliza o exercício interpretativo da Constituição sem que, com
isso, sua integridade seja afetada. A identidade quilombola será abordada, aqui, não como
algo previamente construído, mas como resultado ao mesmo tempo do adensamento da
sensibilidade moral do grupo, produzindo a demanda por reconhecimento, e da apropriação
de categorias jurídicas e constitucionais, a partir de cálculo racional acerca de suas
implicações. Foi a partir da criação de condições de acesso a uma gramática dos direitos
que os quilombolas de Alto da Serra foram capazes de enquadrar sua própria história à
narrativa ampla e generalizante da luta dos remanescentes de quilombos.
A questão que se impõe, na verificação desta relação dialética entre formas locais de
articulação da identidade e os significados em torno do rótulo genérico de comunidade
remanescente de quilombo, diz respeito às condições de liberdade para o exercício de
interpretação legítima do artigo constitucional. A partir de que ponto a liberdade
discricionária dos intérpretes deixa de oferecer novos subsídios para a conformação do
campo quilombola e passa a constituir uma ameaça ao próprio direito? Atribuindo à
questão quilombola o caráter de exemplaridade da abertura da comunidade de intérpretes da
constituição, quais os limites para uma interpretação até que ela, enfim, fira a integridade
do direito (Dworkin, 1999)? Tal questão nos levará à articulação do ideal de integridade ao
papel da comunidade de intérpretes da Constituição, manifesta na forma de empresários
morais (Becker, op. cit.), cuja atuação põe em questão o tema dos interesses e dos valores
na produção da identidade quilombola.
12
Minha aproximação da comunidade quilombola de Alto da Serra se deu em 2003,
como voluntário do Programa Egbé – Territórios Negros de Koinonia, momento no qual
me aproximava, também, da questão quilombola. Koinonia Presença Ecumênica e Serviço
é uma associação sem fins lucrativos que tem entre seus objetivos a assessoria aos
movimentos sociais. A atuação do Programa Egbé – Territórios Negros no Rio de Janeiro
data do ano 2000, e vem se construindo a partir dois vetores fundamentais. Em primeiro
lugar, na produção de informações acerca das comunidades remanescentes de quilombos do
estado, quer seja através de peças de caráter técnico, como relatórios de caracterização e
laudos antropológicos, quer seja no diálogo com atores do mundo do direito mais próximos
dos movimentos sociais, particularmente defensores públicos e procuradores da República.
Por outro lado, o programa tem atuado junto às comunidades, através de encontros e
oficinas, na expectativa da democratização do conhecimento e do acesso a instrumentos
jurídicos para garantia de direitos fundamentais. O pressuposto desta forma de atuação é
que construção de conhecimento e assessoria aos grupos interessados constituem formas de
trabalho complementares. A equipe do Programa Egbé – Territórios Negros atuou no
processo de formação dos camponeses negros de Alto da Serra desde o início da sua
mobilização. Tenho participado, portanto, de toda a trajetória da comunidade, não apenas
como observador privilegiado, mas como ator envolvido no processo de intervenção.
Em 2007, meu trabalho de campo culminou na produção de relatório antropológico
sobre o grupo, parte integrante do Relatório Técnico de Identificação e Demarcação, peça
obrigatória no processo de titulação do território quilombola pelo Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Assim, uma análise crítica do processo de
reconhecimento do grupo exigirá que me torne, eu mesmo, personagem deste drama e,
portanto, parte de minha própria análise.
As informações relativas à história do município e do Vale do Paraíba foram obtidas
através de fontes secundárias, citadas na bibliografia, mas contei também com fac símiles
dos relatórios de província do Rio de Janeiro entre os anos de 1902 e 1930, pelo que
agradeço a Daniela Yabeta. Alguns depoimentos de membros da comunidade foram
retirados do relatório do projeto Balcão de Direitos, promovido por Koinonia e coordenado
por Roberta Rodrigues. O mapa do território demandado pelo grupo foi resultado de
13
oficinas territoriais realizadas na comunidade no período de trabalho de campo, e uma
versão preliminar do mapa foi desenhada por mim em conjunto com os quilombolas.
Finalmente, o perfil sócio-econômico da comunidade contou com dados da pesquisa
realizada por Fabiene dos Santos, em relatório também citado na bibliografia, e com os
resultados do diagnóstico participativo realizado na comunidade no ano de 2005 pela
equipe do projeto Etnodesenvolvimento Quilombola, financiado pelo Ministério do
Desenvolvimento Agrário, no qual atuei como supervisor.
14
Parte I – Entre o Direito e a Política: campo jurídico e processos políticos de reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombo.
Afirmado na Constituição de 1988, o direito das comunidades quilombolas a seus
territórios é emblemático não apenas das mudanças operadas no regime jurídico da terra,
mas da expansão dos direitos coletivos. Entretanto, tal dispositivo constitucional só foi
regulamentado em 2001, 13 anos após a promulgação da Carta de 1988, por um decreto
presidencial do governo de Fernando Henrique Cardoso. Tal decreto foi revogado por um
novo decreto, em 20 de novembro 2003, a apontar, já no governo Lula, para uma
compreensão diametralmente oposta acerca da definição dos novos quilombos, seus
ocupantes e territórios. Neste meio tempo, os significados atribuídos aos termos do artigo
constitucional foram alvo de disputas internas e externas aos órgãos do Estado.
O reconhecimento, por parte do Estado administrativo, dos direitos destes grupos
étnicos não se deu em uma ambiente de consenso em torno dos significados relativos ao
artigo 68-ADCT. A aparente hegemonia conquistada pela interpretação consolidada no
decreto presidencial de 2003 tem sido contestada, em uma disputa que tem por ambientes
não apenas os órgãos do Executivo, mas as casas legislativas, os tribunais, a mídia, a
academia e as redes relacionadas a grupos de interesse. Diante deste quadro, ficam-nos as
perguntas, que esta parte da tese pretende responder: como se tem dado, desde 1988 até
hoje, a disputa por tais significados? Como se desenhou a política de reconhecimento
quilombola no plano nacional, e que conjunto de interpretações ela aciona? Que relações
tais disputas estabelece, para termos de análise, entre os campos da política e do direito?
As lutas em torno dos direitos das comunidades negras rurais são formuladas, via de
regra, em um campo caracterizado pela liminaridade: por um lado, tais direitos são
afirmados em torno da terra, entendida como meio de produção e reprodução dos grupos;
por outro, trata-se do reconhecimento de uma identidade coletiva própria e particular,
traduzida no campo jurídico-político pelo termo remanescentes de quilombo, identidade
racializada e historicamente referida. Tanto no debate teórico quanto na formulação de
políticas públicas, ora a questão quilombola é referida como questão fundiária, ora é
15
entendida como questão racial e étnica, muitas vezes articulada em torno de um viés
cultural. Uma investigação precisa dos modos como tais discursos interpretativos se
articulam poderá revelar o quanto esta liminaridade é tributária da confusão na propositura
de leis e políticas governamentais para as chamadas comunidades remanescentes de
quilombos, e o quanto ela seria própria do objeto a que se destinam tais leis e políticas.
O primeiro capítulo empreende uma breve sistematização da produção em torno dos
direitos e das políticas de reconhecimento, com particular referência às identidades étnicas,
relacionando este aporte teórico a uma reflexão acerca dos processos sociais de gênese,
imposição e interpretação das normas jurídicas e constitucionais. O objetivo do capítulo é
apresentar os balizamentos teóricos aos quais grande parte da tese estará referida, e aos
quais retornaremos a guisa de conclusão, e que são definidos a partir de um conjunto de
pares dicotômicos - igualdade/diferença; reconhecimento/distribuição; cultura/etnia –, a
ensejar diferentes soluções por parte dos autores.
O segundo capítulo apresenta uma análise dos significados em torno da afirmação
constitucional dos direitos territoriais dos “remanescentes das comunidades de quilombo”,
buscando seu sentido tanto no corpo do sistema constitucional quanto no ambiente
internacional, assumindo a perspectiva do multiculturalismo como um primeiro referencial
possível para a interpretação do artigo 68-ADCT. Em seguida, pretende-se explorar as suas
múltiplas interpretações em decisões administrativas e debates legislativos para, no terceiro
capítulo, abordar a produção pública do dissenso em torno da questão quilombola nos
tribunais, nos debates políticos e nos movimentos da opinião, naquilo que Arruti
denominou “processo de nominação” (2006). Em seu conjunto, peças normativas, políticas
públicas, discursos políticos e matérias jornalísticas são tomados como resultado de práticas
discursivas que constroem um sistema de significados em torno do artigo 68-ADCT, a
partir do qual os agentes locais podem balizar suas práticas. Tais práticas discursivas
operam a partir de um consenso no dissenso, definindo o que Bourdieu (1989) classificou
como um campo de tomada de posições possíveis, em torno das quais os intérpretes em
disputa se movimentam.
16
Capítulo 1 – Elementos para uma Sociologia Jurídica do Reconhecimento Étnico.
A sociologia tem sido marcada, nos últimos anos, por uma reflexão acerca da
emergência, no plano político-jurídico, dos direitos de minorias de diversas ordens, reflexão
que tem se organizado em torno da sistematização de uma teoria do reconhecimento. As
políticas de reconhecimento apresentam, em relação às políticas sociais tradicionais, uma
dupla marca: em primeiro lugar, elas fazem referência à afirmação da diferença, mais que
ao combate à desigualdade; em segundo lugar, tais políticas estão diretamente relacionadas
ao processo de expansão dos sujeitos coletivos de direito que se seguiu, no plano
internacional, à derrocada do Estado de Bem-Estar Social e, entre nós, ao desmonte do
Estado autoritário. Trata-se, portanto, da propositura de um novo modelo democrático de
expansão de direitos, por um lado deslocado do eixo econômico, por outro voltado para a
afirmação dos interesses das minorias sobre a vontade da maioria.
O tema do reconhecimento está ligado, portanto, à emergência dos direitos de
terceira e quarta geração, resultado da progressiva coletivização do comportamento, quer
seja no sentido de que nossas ações estão cada vez mais referidas aos grupos dos quais
fazemos parte, quer seja na medida em que os impactos de nossas decisões incidem sobre
coletividades cada vez maiores (Cappelletti, 1999). A crescente interdependência das ações
humanas acaba por fazer referência a interesses e demandas de grandes coletividades,
atingindo tanto o plano das relações internacionais quanto o dos direitos internos aos
Estados. A primeira percepção disto no cenário internacional se deu a partir do pós-guerra,
na percepção de que eram necessárias garantias para além daquelas instituídas pelas formas
estatais de direito.
Desta reflexão surgiram os direitos de terceira geração, articulados a partir de duas
idéias fundamentais: em primeiro lugar, direitos cujos sujeitos são coletividades, e não
indivíduos; em segundo lugar, direitos que têm por paradigma fundamental a idéia de
solidariedade e de interdependência entre os povos. Caracterizados pela indivisibilidade de
seu objeto, os direitos de terceira geração podem apresentar como sujeitos desde grupos
sociais até nações (ou os “povos”, em seu direito à autodeterminação), ou ainda a própria
17
humanidade, como no caso do direito à paz ou ao meio ambiente sustentável. A estes se
somam os direitos de quarta geração, produto da globalização e suas conseqüências: o
avanço nas tecnologias de mídia põe em jogo o direito à informação, enquanto o
encurtamento das distâncias aponta para a necessidade de traduzir para o dialeto dos
direitos a emergência de formas diversas de pluralismo: cultural, político, jurídico, etc. É
nesta perspectiva pluralista que se coloca, hoje, tanto no plano da teoria quanto das práticas,
o problema do reconhecimento.
desrespeito e reconhecimento
Um primeiro sentido do termo reconhecimento faz referência ao processo através do
qual, a partir das relações intersubjetivas, nas quais um sujeito se impõe e se contrapõe a
outro, as identidades individuais e coletivas são afirmadas (Honneth, 2003; Taylor, 1994).
A inserção do reconhecimento nas agendas políticas e no repertório de concepções de
justiça, entretanto, teria sido resultado do aumento de nossa sensibilidade moral, a voltar os
novos movimentos sociais para as implicações políticas das experiências de desrespeito
social e cultural (Honneth, 2007). A emergência, nas últimas três décadas, destas demandas
por direitos relativos à diferença levou a política a um “passo além”, adicionando aos
aspectos civil, político e social da cidadania7 um quarto aspecto, de natureza moral.
É neste sentido que Honneth se refere à “luta pelo reconhecimento”, entendida a
partir de um modelo de ação coletiva no qual o desrespeito8 a uma determinada forma de
ser no mundo enseja um conflito cujo principal resultado é a “evolução moral” da
sociedade. A partir do aporte hegeliano, Honneth estabelece uma relação entre a produção
intersubjetiva da auto-consciência e o progresso moral da sociedade. As instituições sociais,
nesta chave, são pensadas como o resultado desta luta moral dos sujeitos pelo
reconhecimento mútuo, a colaborar para a construção e garantia de uma comunidade ética.
7 Para lembrar a concepção tripartite de cidadania de T. H. Marshall (1967). 8 Ao se referir às chamadas “injustiças culturais”, formas de negação da cidadania fundadas na imposição de padrões sociais de representação e interpretação do outro, Nancy Fraser faz a distinção entre “desrespeito” (“ser difamado habitualmente em representações públicas estereotipadas”), “não-reconhecimento” (ser considerado invisível pelas práticas interpretativas de uma cultura) e “dominação cultural” (estar sujeito a padrões de interpretações do outro) (2001, pág. 250). Entretanto, para fins de análise, adotarei o termo genérico “desrespeito”, adotado por Honneth, para me referir a qualquer comportamento de um grupo ou indivíduo sobre o outro que não esteja fundado no reconhecimento pleno e positivo de sua subjetividade.
18
O conflito é tomado, desta perspectiva, não apenas em uma chave positiva, mas como um
“acontecimento ético”: mais do que restituir relações de reconhecimento rompidas, opera
como um “médium moral” para novas formas de reconhecimento.
A análise de Honneth desta trajetória moral dos sujeitos aponta para a percepção de
três formas de reconhecimento, referentes a três eixos de relações a compor o processo de
construção da subjetividade. A cada um destas formas de reconhecimento, condição para
que o sujeito mantenha uma relação de integridade consigo, corresponde um tipo particular
de desrespeito, a produzir uma lesão da compreensão de si. As relações afetivas concretas
demandam o reconhecimento da autonomia corporal, cuja manifestação de desrespeito é a
violação física, a produzir a perda da capacidade de se relacionar afetivamente. As relações
jurídicas estão fundadas no reconhecimento de sujeitos abstratos de direitos, cuja negação
os aliena de um conjunto de pretensões legítimas dispostas sob o valor da igualdade
jurídica, bem como da atribuição da imputabilidade moral. Finalmente, as relações
comunitárias, nas quais o sujeito será respeitado em seu singular modo de ser, encontra
como forma de desrespeito a degradação, entendida como forma de ofensa à honra social
de indivíduos ou de grupos, a partir da negação da possibilidade de se atribuir valor social
às suas capacidades ou ao seu estilo de vida (2003; 2007). A constituição de uma
comunidade ética exige, segundo Honneth, que os sujeitos em relação sejam capazes de
operar uma dupla passagem, do respeito mútuo nas relações afetivas para o reconhecimento
universal da igualdade, e deste para o respeito aos diferentes estilos de vida.
As formas de desrespeito tipologizadas por Honneth podem se superpor na
experiência concreta. Assim, para além de constituir o tipo-ideal da violação física como
forma de desrespeito, a tortura corresponde, nos Estados democráticos, a uma forma de
negação de direitos9. Do mesmo modo, a negação da particularidade de determinados
grupos, seu “estilo de vida”, também pode ser entendida, em contextos políticos fundados
no reconhecimento jurídico das diferenças, como violações de direitos constitucionalmente
garantidos. Este é o caso dos direitos de minorias religiosas, nacionais ou étnicas ao
9 A tortura explicita o quanto a consideração de uma forma de tratamento como desrespeito depende do entendimento da injúria como ofensa moral: como mostra Pierre Clastres, em certas sociedades tribais a tortura pode ser entendida como signo de inclusão, constituindo a resistência a ela uma marca moralmente positiva (Clastres, 1978).
19
respeito – inclusive e principalmente por parte do Estado – relativamente às suas práticas
culturais, língua e religião, consubstanciado em efetivas garantias legais. É o caso,
sobretudo no que nos interessa, da negação dos “estilos de vida” das comunidades
quilombolas, manifestos nos seus modos particulares de se relacionar com a terra e com as
noções de posse e de propriedade.
O desrespeito é entendido, por Honneth, como fonte motivacional das resistências
sociais. A possibilidade de que as reações ao desrespeito se convertam em resistências
políticas, entretanto, dependerá das possibilidades de articulação das demandas pelos
movimentos sociais. Neste sentido, apenas as duas últimas formas de reconhecimento,
jurídico e do estilo de vida, poderão se tornar demandas de uma luta coletiva, na medida em
que apenas as duas últimas formas de desrespeito, a negação do direito e a degradação, são
passíveis de um movimento de generalização, no qual os indivíduos lesados podem
elaborar o desrespeito sofrido como estendido a um grupo. A reflexão acerca da afirmação
da identidade étnica, portanto, deverá operar exclusivamente com estas duas formas de
reconhecimento, inclusive na percepção de que a distinção entre uma e outra só será
possível no plano analítico.
João Feres Jr. propõe uma tipologia alternativa das formas de desrespeito, a partir da
percepção de que pares conceituais foram usados na história das relações entre grupos e
sociedades como forma de identificação mútua e, na medida em que foram usados
assimetricamente, como instrumentos para definição positiva do Eu e de exclusão do Outro
(2002, 2005). A assimetria no uso dos pares conceituais tanto retira de um dos grupos o
direito de se auto-definir, incorrendo em não-reconhecimento, quanto possibilita que sua
definição pelo Outro se dê de forma distorcida, como mera inversão do auto-
reconhecimento do sujeito desrespeitoso, levando ao reconhecimento distorcido.
Feres propõe, então, sua própria tipologia das formas de desrespeito, a partir dos
“contraconceitos assimétricos” de Reinhart Koselleck: dos significados em torno do par
hellenos/barbaros retira uma oposição assimétrica cultural, na qual o Outro é definido
negativamente pela ausência de costumes e instituições. Do mesmo modo, deduz do par
conceitual cristão/pagão uma oposição assimétrica temporal, na qual a diferença cultural
20
é atribuída ao “primitivismo” do Outro, forma de desrespeito que constituiu, na história dos
contatos culturais, instrumento privilegiado para a submissão de povos ou grupos tidos
como “atrasados” ou “não-modernos”. Finalmente, do binômio ariano/não-ariano,
depreende uma oposição assimétrica racial, na qual o Outro é definido pela atribuição de
uma defasagem física ou psicológica em relação à concepção do Eu coletivo.
Esta tipologia não encontra, como em Honneth, uma correspondência com outra,
positiva, das formas de reconhecimento. Feres propõe tal ausência como uma peculiaridade
de sua tipologia, já que ela permite que se pense a rejeição ao desrespeito sem
necessariamente impor a necessidade do reconhecimento de uma identidade específica.
Ambas as tipologias, entretanto, apontam para a percepção de que as demandas por
reconhecimento têm como ponto de partida a percepção das formas de desrespeito a
particulares modos de ser, quer sejam aquelas percebidas nas relações entre diferentes
culturas e sociedades na história, quer sejam aquelas manifestas nas relações
intersubjetivas.
os outros significativos
A afirmação do reconhecimento como condição para a emancipação dos sujeitos
sociais aponta para o caráter dialógico da produção das identidades, definidas a partir
daquilo que nossos “outros importantes” vêem ou querem ver em nós (Taylor, op. cit.). O
que configura uma forma de injúria em injustiça moral, segundo Honneth, é a sua
percepção, pela vítima, como ato intencional de desprezo a um aspecto fundamental de sua
subjetividade (2007, p. 85). É a partir desta concepção da identidade como negociada num
processo dialógico que se afirma a importância do reconhecimento, a princípio como
condição para as relações intersubjetivas, o que Taylor chama de “esfera íntima”, mas hoje,
fundamentalmente, como política de Estado, na “esfera pública” (op. cit., p.57).
Essa percepção do papel dos “outros significativos” no processo de construção da
auto-imagem e da imagem pública já aparece em Herbert Mead, fundador do
interacionismo simbólico, mobilizado por Honneth na expectativa de impor a seu aporte
hegeliano uma inflexão empírica (2003). Para Mead, somente quando o sujeito encontra-se
em condições de suscitar em si os mesmos significados que produz em outros ele alcança a
21
compreensão de suas ações. A essa imagem de si, produto da internalização de uma
perspectiva excêntrica e carregada de expectativas normativas, Mead chama de “Me”, a
partir da qual nos tornamos capazes de elaborar juízos morais que orientem nossas ações. O
controle das ações se dá, assim, pela previsão da ação de um “outro generalizado”, cujo
grau de generalização será tanto mais ampliado quanto mais amplo for o círculo de relação.
A esta concepção do Me como instância de socialização podemos contrapor o que
Mead chama de “I”, e que outros autores, como Charles Taylor, denominarão “Self”
(Taylor, 2007). Considerando a multiplicidade de identidades sociais que um sujeito
concreto pode assumir, o Self pode ser entendido como a agência de ordenação e
articulação das escolhas individuais (Cardoso de Oliveira, 2006). O Self atua, neste sentido,
de forma reflexiva no processo segundo o qual os sujeitos, considerando os interesses em
jogo em uma determinada situação social, articulam uma “identidade possível”, de modo a
preservar sua integridade moral. O Self pode ser interpretado como o “agente humano
responsável” capaz de elaborar aquelas escolhas qualitativas que Taylor chama de
“avaliações fortes” (2007), exercícios de valoração dos desejos que, adicionados às
“avaliações fracas”, de ordem prática, permitem a ponderação entre interesses e valores.
Nas avaliações fortes um desejo não é perseguido ou evitado por ser mais ou menos
desejável, mas por sua compatibilidade com um determinado estilo de vida,
disponibilizando uma “linguagem de distinções avaliativas”, uma gramática moral
contrastiva, que dispõe as alternativas de escolha sempre as qualificando como dignas ou
não-dignas, nobres ou vulgares, virtuosas ou não virtuosas.
É nesta forma de auto-estima construída pelo sujeito a partir das escolhas reflexivas
sobre suas qualidades particulares, na qual o Eu, espaço de impulsividade e criatividade,
põe em questão o Me, entendido como incorporação das normas, que se dá o
desenvolvimento moral de indivíduos e sociedades e que se produzem novas formas de
reconhecimento. 10
10 Embora Mead se alinhe a Hegel na percepção da incompletude do reconhecimento jurídico, já que
o sujeito só pode se referir positivamente a si quando afirma suas características particulares, poderíamos pensar o quanto a própria dimensão jurídica do reconhecimento dos direitos particulares a determinados grupos diz respeito a muito mais do que o acesso a determinados bens e serviços, mas à recuperação ou
22
Ao evocar Mead, Honneth aponta para a presença dos rudimentos da teoria do
reconhecimento no interacionismo simbólico. De fato, a percepção da importância do
reconhecimento do ser pelo “outro significativo”, bem como do impacto social e político
das experiências de desrespeito, apresentam-se já esboçadas no interacionismo. A escola
interacionista nasceu combinando a perspectiva teórica segundo a qual os processos
interativos se caracterizam por uma reciprocidade fundada no caráter simbólico da ação
com a preocupação política relativa ao processo de integração de grupos minoritários na
industrializada Chicago da primeira metade do século XX. Desta combinação,
consubstanciada em estudos empíricos como, por exemplo, os relativos a minorias étnicas,
operários e grupos desviantes, deduziu-se um modelo de análise que privilegiava os
conflitos, tanto os interpessoais quanto os entre grupos sociais, como constitutivos da
ordem social (Coulon, 1995; Becker, 1996).
As análises dos padrões interativos fundados no desrespeito partem do pressuposto
de que estabelecemos, em determinados ambientes sociais, formas de categorização social a
partir dos atributos interpretados como normais naqueles ambientes, produzindo um
conjunto de expectativas normativas (Goffman, 1982). Em alguns casos, pode haver um
descompasso entre as expectativas produzidas em relação aos atributos de determinado
sujeito (o que Goffman chama de identidade social virtual) e os atributos que ele de fato
apresenta (a identidade social real), produzida pela presença de algum atributo indesejável,
levando à consideração do sujeito como estando em uma categoria inferior. A estes
atributos desqualificadores Goffman dá o nome de estigmas, resultantes de “uma
discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real” (op. cit.,
p. 12). A identidade deteriorada, neste sentido, constitui o resultado de relações de
desrespeito, de não-reconhecimento das particularidades dos sujeitos, devendo ser
entendida de uma perspectiva relacional: o estigma é produzido na relação entre um
reconstrução de auto-imagens negadas ou distorcidas. Ou seja, a dimensão simbólica das políticas de reconhecimento não pode ser ignorada em nome de avaliações restritas aos seus impactos materiais. Isso é verdade, por exemplo, para algumas formas de política afirmativas, no que diz respeito ao impacto na auto-imagem e na imagem pública do público-alvo, como o aumento do número de universitários negros a partir de programas de acesso diferenciado ao ensino superior. Como veremos mais adiante, também no caso das comunidades quilombolas, organizadas em torno da demanda pelo direito à terra, o reconhecimento jurídico acaba por produzir efeitos de ordem moral, na medida em que os sujeitos passam a perceber um aumento do grau de respeito nas suas relações comunitárias.
23
atributo e um estereótipo, que por sua vez é produzido em um determinado “ambiente
social”, vale dizer, por um determinado sistema de relações.
Goffman trata, portanto, de experiências de desrespeito, no sentido de não-
reconhecimento das particularidades do sujeito, sobretudo quando se refere aos sujeitos
“desacreditados”, aqueles que têm suas características distintivas já conhecidas por todos.
Apesar de se referir fundamentalmente aos sujeitos individuais, o conceito de estigma
permite seu uso para a análise de experiências de desrespeito de sujeitos coletivos. Assim,
as políticas de ação afirmativa – quer sejam as aplicadas com critérios étnico-raciais, quer
sejam as aplicadas com critérios de gênero – podem ser fundamentadas na percepção de
que, em determinados ambientes de trabalho, por exemplo, os atributos de gênero e raça
são tomados como estigmas, uma vez que produzem uma defasagem entre a identidade
social virtual e a identidade social real de um profissional.
Goffman elenca três tipos de estigma. Em primeiro lugar, os atributos físicos, o que
chama de “abominações do corpo”, deformações físicas que caracterizam um sujeito como
imperfeito e inadequado para certos papéis. Em segundo lugar, atributos
comportamentais, interpretados em determinados ambientes como falhas morais, tais
como alcoolismo, desemprego, etc. Finalmente, atributos “tribais”, relativos a raça, etnia e
religião (diríamos também, nacionalidade), transmissíveis pela “linhagem” do sujeito. Ao
apontar tal tipologia de estigmas, Goffman possibilita a percepção de três formas de
desrespeito, relativas à natureza dos atributos não-reconhecidos: físicos, morais e tribais.
Podemos somar esta tipologia dos atributos não-reconhecidos (físicos, morais e tribais)
às outras tipologias até aqui apontadas: a tipologia processual de Honneth, uma tipologia
dos níveis de não-reconhecimento (maus-tratos, negação de direitos, depreciação do estilo
de vida) e uma tipologia da natureza da diferença (cultural, temporal e racial), proposta
por Feres Jr.. Temos, assim, três tipologias das formas de desrespeito, não-excludentes
entre si, passíveis de serem encontradas combinadas na realidade social. Importante
ressaltar que apenas uma delas, a de Honneth, encontra correspondência em uma tipologia
positiva das formas de reconhecimento.
24
A produção de significados em torno dos atributos discrepantes ocorre no que
Goffman chama de “contatos mistos”, situações sociais nas quais estigmatizados e
“normais”, aqueles cujos atributos não discrepam do estereótipo, encontram-se em um
padrão de “interação angustiada” que pode resultar tanto na produção da indiferença quanto
no extremo controle de impressões. Em contrapartida, o desacreditado estabelecerá,
segundo Goffman, uma rede de relações fundada no reconhecimento de sua condição
humana, construída em torno dos “iguais”, aqueles que compartilham de seu estigma, e dos
“informados”, normais dispostos a endereçar estima social aos estigmatizados, seja porque
mantém com os estes laços afetivos, seja porque sua atuação junto à categoria lhes conferiu
esta condição. Tais grupos oferecem um suporte para o estigmatizado, a partir do qual
poderá constituir um tipo de vida coletiva particular, uma “comunidade”, a lhe oferecer
orientações práticas, um estilo de vida positivo ou um “círculo social de lamentações”. Tais
grupos de estigmatizados, entretanto, podem organizar “agentes e agências” de
representação, formadas por intelectuais orgânicos cujo papel é promover publicamente
uma versão positiva da identidade deteriorada. Para Goffman, portanto, a organização
coletiva dos estigmatizados tem por objetivo tanto o reconhecimento nas relações face-a-
face, estabelecidas com os outros concretos, quanto o reconhecimento público, na relação
com o Outro generalizado, a partir do jogo político da representação11.
as políticas de reconhecimento
O não-reconhecimento, ou o reconhecimento distorcido, não apenas afeta
negativamente a formação da identidade, objetivando atribuições subjetivas e produzindo
uma auto-imagem depreciativa, mas constitui uma forma de opressão e um bloqueio ao
processo de emancipação social (Taylor, 1994). Mais do que uma forma de desrespeito
intersubjetiva, portanto, a falta de reconhecimento implica uma forma de dominação, cuja
reparação é uma condição democrática a evocar a premência de uma efetiva política de
reconhecimento. Enquanto Honneth se pretende a elaborar um modelo de teoria social no
sentido mais amplo, com pouca preocupação em definir modelos de políticas, Charles
11 Não estava na agenda pública, naquele momento, o reconhecimento de direitos pelo Estado, este
Outro burocratizado e juridicizado em torno do qual se organizam, hoje, os “agentes e agências” formados tanto por iguais quanto por informados.
25
Taylor elabora uma justificativa moral para políticas de minorias, articulando seu
argumento a partir da esfera pública.
Taylor aponta para dois significados possíveis das políticas do reconhecimento: uma
política universalista, fundada na igual dignidade, cujo paradigma de ação é a não-
discriminação, e uma política de diferença, propositora de formas de discriminação
positiva. Entre elas, outra forma de política de dignidade que, a exemplo das políticas de
cotas, pretendem-se temporárias, tendo em vista mitigar desigualdades imediatas,
restaurando a condição de igualdade12.
Se a idéia de dignidade individual está vinculada à afirmação de um potencial
humano que, sendo universal, torna a todos merecedores de respeito, as políticas de
diferença estão referidas ao potencial das coletividades para formar e definir suas próprias
identidades. Taylor, neste sentido, não está argumentando que todas as culturas têm um
valor em si, mas, ao afirmar o potencial como princípio, não permite que se diga que uma
cultura é menos valiosa que outra. A construção da identidade a partir das escolhas fortes
orienta a consideração da diversidade cultural como diversidade de repertório para a
produção do Self. Pode-se perceber na relação entre dignidade e diferença um paralelo com
o que Honneth chamou de reconhecimento jurídico e reconhecimento pela estima social.
Em Taylor, entretanto, tal dualidade não remete a estágios de reconhecimento, mas a
orientações distintas e até mesmo antagônicas. Esse antagonismo se complexifica na
medida em que temos todos o duplo papel de respeitar a todos igualmente e reconhecer as
particularidades.
Diante do conflito entre a afirmação das liberdades individuais e a garantia de
direitos de corte cultural, Taylor desenha duas possibilidades. O liberalismo processual
afirma a neutralidade do Estado no que se refere a valores, na percepção de que objetivos
coletivos podem conflitar com as garantias individuais, gerando práticas discriminatórias e
de restrição das liberdades. Em contraposição a este, um liberalismo de outro tipo, que
conjugue objetivos comuns, direitos fundamentais e respeito à diversidade. Este outro
12 Taylor aponta que este terceiro modelo não está incluído entre as políticas de identidade, posto que se refere a diferenças que se pretende apagar.
26
modelo de liberalismo, substantivo, distingue aqueles direitos considerados fundamentais
de outro conjunto de matérias nas quais determinados conteúdos podem, em nome da
sobrevivência cultural, sobreporem-se às liberdades individuais. Taylor não titubeia em
declarar-se tendente a este modelo, que ele crê o mais adequado aos contextos de
sociedades multiculturais.
Diante do fenômeno do multiculturalismo impõe-se, portanto, a construção de um
modelo alternativo ao liberalismo processual, já que este não seria capaz, por seus próprios
viezes culturais, de cumprir sua promessa de neutralidade. O que motiva o reconhecimento
de conteúdos substantivos em contextos multiculturais, segundo Taylor, não é o valor em si
da cultura não-hegemônica, mas a importância de que grupos minoritários não estejam
submetidos a imagens deturpadas de si, de seus valores e de suas práticas. Se o pressuposto
do comunitarismo é de que a comunidade política compartilha um projeto de vida boa que
deverá ser incorporado pelo ordenamento jurídico-constitucional, o multiculturalismo
comunitarista de Taylor aponta para a necessidade de que o Estado reconheça a pluralidade
de concepções de vida boa vigentes na multicultural comunidade política. Estes
pressupostos taylorianos, ao contrário do pressuposto do igual valor, não exigem juízos a
priori, mas a disposição para a experiência e para a comparação.
A defesa de políticas afirmativas da diversidade cultural passa, portanto, por um
senso moral da possibilidade de limitação da cultura hegemônica e, portanto, pela
necessidade de olhar o outro por uma espécie de dívida de generosidade. Pode-se objetar
que esta necessidade do desejo de conhecer o Outro constitui um imperativo político fraco,
insuficiente para justificar a aplicação de políticas afirmativas, sobretudo quando falamos
de um “desejo” que deve ser professado através do aparato estatal. A manifestação deste
imperativo, entretanto, é muito mais externa que interna ao Estado, não apenas na medida
em que o reconhecimento passou a fazer parte da agenda democrática internacional, a
constranger os ordenamentos jurídicos estatais, mas também na pressão que passam a
exercer, sobre o aparato administrativo, as várias forças políticas da sociedade civil
organizada.
27
O comunitarismo aponta para os limites do liberalismo processual em garantir a
justiça sem definição de conteúdos substantivos para a regulação da vida. Apesar de se
definir como liberal, Taylor pode ser incluído na corrente comunitarista, já que defende a
aplicação de “versões de vida boa” pelo direito e pelo Estado. Um “comunitarismo liberal”,
a combinar a percepção do contexto normativo das práticas políticas, a afirmação das
liberdades individuais e a percepção neo-hegeliana, professada por Honneth, de que a vida
social é eticamente orientada por um conjunto de inclinações intersubjetivas que produzem,
através dos conflitos, um “desenvolvimento espiral” do reconhecimento (Souza, 2000, p.
97).
A crítica liberal ao multiculturalismo comunitarista pode passar tanto pela refutação
de seus pressupostos, ao apontar para o fato de que nem todas as particularidades
identitárias são desejáveis, como no caso dos estereótipos negativos em torno das mulheres,
quanto pelo questionamento de suas conclusões, na medida em que a maior injustiça do
não-reconhecimento teria a ver não com o valor de uma cultura, mas com o insulto aos
indivíduos que, uma vez vivendo o desrespeito às suas particularidades culturais, vêem-se
feridos na possibilidade de entenderem-se como membros da totalidade social (Wolf,
1994). Um direito dos indivíduos, portanto, e não da cultura sobre os indivíduos, cujo bem
maior a ser garantido não seria o acesso ao que as culturas possam oferecer, mas “nos
reconhecer como comunidade multicultural e respeitar os membros da comunidade em sua
diversidade” (pág. 102)13.
O modelo liberal de política de reconhecimento multicultural pode apresentar como
justificativa um argumento declaradamente pragmático: diante do desafio dos Estados
nacionais de preservar sua identidade em contextos multiculturais, a garantia de direitos às
minorias culturais é a única alternativa democrática à assimilação ou ao isolamento, desde
que garantidos os direitos individuais e dos demais grupos (Kimlicka, 2003). A
13 Susan Wolf nos permite perceber um problema das tentativas de generalização acerca das lutas por reconhecimento, a saber, a generalização de modelos a partir da observação de experiências de grupos muito específicos. Nesta crítica, entretanto, a autora acaba caindo na armadilha que armou para Taylor: o direito individual ao reconhecimento de uma “comunidade multicultural”, em substituição ao direito de coletividades de verem reconhecidas suas formas particulares de vida em contextos multiculturais, como veremos, não dá conta das demandas por reconhecimento dos grupos étnicos, quando menos porque a realização de quaisquer de suas demandas tem por pressuposto a garantia anterior de seus direitos territoriais, o que significa proteção às suas próprias formas de gerir o território, superpondo-se a formas privadas de apropriação da terra.
28
interpretação das ações afirmativas como injustas com os grupos não atingidos (ou com a
maioria) e a acusação de que causam um rompimento na cultura cívica constituem, para
Kimlicka, os “novos fronts” das políticas de minorias, diante dos quais o culturalismo
liberal afirma o reconhecimento identitário como elemento fundamental para a construção
do senso de respeito próprio e para o aumento da autonomia e da liberdade do indivíduo.
reconhecimento e etnicidade
A emergência das identidades étnicas nos coloca a questão relativa à passagem do
nível do reconhecimento que funda um modelo de comunidade ética para o reconhecimento
de comunidades específicas dentro de uma comunidade hegemônica. A afirmação dos
sujeitos étnicos de direitos exige o esforço de pensar o sentido de pertença dos sujeitos
individuais como dividido entre duas manifestações possíveis da idéia de comunidade: por
um lado, o Estado como comunidade política, resultado do contrato político entre
indivíduos unidos pelo estatuto jurídico da igualdade; por outro lado, a comunidade
entendida como coletividade constituída a partir das singularidades dos seus membros,
singularidades subjetivamente reunidas sob o signo da “identidade” e afirmadas
contrastivamente. A afirmação da “honra” como elemento moral que se manifesta na forma
de auto-atribuição, neste sentido, desloca-se da relação do indivíduo consigo próprio
possibilitada pelo reconhecimento intersubjetivo (Honneth, 2003), para dar conta do
impacto das relações de reconhecimento na produção da auto-estima de determinados
grupos sociais.
Ao definir o sentido de pertença a partir das formas como os atores sociais
significam suas interações, o conceito de grupo étnico permite que se projete a concepção
de “outros significativos” para dar conta não apenas das relações intersubjetivas entre
indivíduos, mas entre coletividades e mesmo instituições. A definição de Barth14 (2000) de
grupos étnicos a partir da delimitação de critérios intersubjetivos de pertença e não-pertença
(da delimitação das fronteiras de pertencimento) parte não apenas da percepção de que
essas fronteiras étnicas se mantêm apesar do fluxo dos indivíduos que compõem os grupos,
14 O trabalho de Fredrik Barth não apenas tornou-se um clássico da literatura antropológica acerca da etnicidade, mas também, o que importa mais no contexto de nossa discussão, foi o grande referente para a interpretação do artigo 68-ADCT da Constituição Federal.
29
mas de que as relações sociais que atravessam essas fronteiras ensejam um exercício de
dicotomização a partir da qual a identidade é instituída. Em outras palavras, Barth
demonstra que o contato entre grupos étnicos diferentes não é um impeditivo da
manutenção da fronteira; ao contrário, é constitutivo dela.
As abordagens a partir conceito de grupo étnico, neste sentido, se distinguem das
abordagens culturalistas, caracterizadoras dos grupos por traços culturais, na medida em
que a cultura comum deixa de ser um aspecto definidor do grupo étnico e passa a ser uma
conseqüência dos processos interativos e de suas significações. Assim, Barth afirma que um
grupo étnico, se estendendo espacialmente, pode apresentar, em função de variações
ecológicas, uma diversidade de práticas, mantendo-se a identidade comum. Os grupos
étnicos são entendidos, portanto, como formas de organização social definidas por auto-
atribuição e atribuição por outros, não se tratando de diferenças objetivas, mas de distinções
intersubjetivamente construídas, sem que haja correspondência necessária entre etnia e
cultura. O objeto de análise para a verificação dos grupos étnicos, portanto, não são as
singularidades e diferenças culturais, mas a existência e manutenção das fronteiras,
constituídas por um lado a partir do compartilhamento de critérios intersubjetivos de
avaliação e julgamento de si e dos outros, e por outro pelo contato constante com aqueles
que são considerados como externos ao grupo.
Segundo Roberto Cardoso de Oliveira (2006), se a afinidade eletiva entre os
conceitos de etnicidade e identidade, consubstanciada no conceito de identidade étnica, por
um lado, dota o conceito de identidade de um referencial empírico, por outro confere à
definição de etnia uma condição subjetiva e relacional, na qual se destaca o papel dos
outros significativos como doadores de sentido. A adjetivação étnica da questão identitária
coloca o problema do reconhecimento em uma nova dimensão, ajudando a resolver a
relação entre o cultural e o étnico, recorrente nos discursos políticos e jurídicos. A cultura é
definida, neste sentido, não como um repertório de traços de comportamento, mas como um
conjunto de valores compartilhados, a produzir uma determinada “concepção de nós”, uma
“ideologia étnica”. Tomado em seu sentido geertziano, o conceito de cultura aponta para a
30
percepção do contato interétnico como a superposição de teias de significados diferentes, a
demandar, em contextos multiculturais, um conjunto específico de políticas públicas15.
As situações de contato interétnico podem estar fundadas em avaliações
desrespeitosas acerca das diferenças culturais, a encontrar sua contraparte na constituição
de “consciências alienadas”. Segundo Cardoso de Oliveira, a passagem de uma
“consciência alienada” para uma “consciência indígena”, no Brasil, dependeu de uma
reconfiguração da identidade e do movimento indígenas, uma transformação de ordem
moral e política. A “consciência alienada”, resultado do “olhar a si mesmo com os olhos do
branco” (op. cit., pág. 44), se manifesta tanto na forma de categorias (auto) classificatórias
depreciativas, sintomáticas da dominação econômica e política em áreas de fricção
interétnica, quanto em estratégias de invisibilização, na tentativa de determinados
indivíduos de “passar” de uma identidade indígena para outra, não-indígena.
Cardoso de Oliveira identifica, assim, “três modelos de reconhecimento identitário
voltados para a busca de respeito próprio” (p. 45): o alto significado atribuído pelo indígena
ao reconhecimento pelo outro, sobretudo pelo etnólogo, a constatação do desrespeito pelos
regionais e a manipulação esvaziadora da identidade étnica, quando isto pode produzir o
aumento do respeito individual. A pretensão do autor é produzir, a partir da experiência
indigenista, modelos generalizáveis de situações de fricção interétnica. Parece-me,
entretanto, que ele se aproxima mais de produzir outra tipologia tripartite de desrespeito,
relativa às formas como ele se manifesta na produção do Self: a interiorização do olhar do
outro, a constatação do desrespeito nas relações locais e a invisibilização da identidade
étnica16.
A passagem do desrespeito ao reconhecimento das identidades indígenas estaria
relacionada, segundo o autor, a um processo de modernização dos grupos étnicos, do que a
elevação da escolaridade de sua jovem liderança é um indício. Os Selves, “enredados numa
mesma teia de significações”, corroboram para a afirmação da identidade como fenômeno 15 Na medida em que essas teias de significados incidem sobre o espaço físico, constituindo territórios (Raffestin 1993), tais políticas públicas terão, necessariamente, uma base territorial, já que ao falarmos em territorialidade própria estamos nos referindo a um produto da especificidade cultural do grupo étnico. 16 A esta tipologia negativa poderíamos relacionar outra, de manifestações do reconhecimento na construção do Self: a positivação dos significados; a exigência do respeito; a assunção da identidade.
31
sócio-cultural, como Nós. Assim, embora tanto os regionais quanto o etnólogo atuem como
“doadores de sentido”, o auto-reconhecimento é condição moral para o reconhecimento
coletivo, sem o qual o indígena não realizaria as condições de possibilidade de uma vida
ética.
A construção da identidade étnica positiva se dá a partir da valorização de certas
características sobre outras, o que lhe confere uma dimensão política, na medida em que os
movimentos de emergência étnica passam justamente pela ressignificação de determinados
traços, a apontar para a singularidade do grupo, ou para sua semelhança em relação a outros
grupos. Os sujeitos sociais podem lançar mão de elementos identitários que se
sobreponham a diferenças culturais entre coletividades distintas, articulando - o que, por
vezes, significa “revitalizando” - elementos característicos de uma “tradição cultural”
comum a todos, na tentativa de superar diferenças internas (Cardoso de Oliveira, op. cit.).
Uma relação dialética na qual a luta por direitos é motivada pela carência de respeito pelos
modos de vida, ao mesmo tempo em que a luta mesma constitui processo pelo qual o grupo
constrói politicamente sua especificidade, como demonstrará José Maurício Arruti (2007).
Nos aproximamos, agora, da perspectiva segundo a qual a identidade étnica é
construída a partir de uma conjunção entre valores e interesses. Apesar de sua inegável
dimensão afetiva, ressaltada pelo aporte barthiano, a perspectiva da etnicidade como
processo, sugerida por Arruti, aponta para a dimensão mais racional da construção
identitária. Nesta outra versão da relação entre a teoria do reconhecimento e a teoria da
etnicidade, apesar da referência ao conceito de Barth, a definição weberiana de grupo
étnico oferece o contraponto: entendendo os grupos étnicos como unidades políticas, Arruti
define comunidades quilombolas como grupos que, a partir de um etnônimo a expressar
identidade coletiva, se mobilizam “em torno de um objetivo, em geral a conquista da terra”
(p. 37).
Arruti admite a propriedade do conceito barthiano de grupo étnico, a apontar não
apenas para a importância da percepção das fronteiras, mas dos mecanismos pelos quais
elas são criadas e mantidas. Sua crítica, entretanto, parte da percepção de que tal conceito,
centrado na contrastividade das relações intersubjetivas que dotam as fronteiras de sentido,
32
não dá conta, no contexto do multiculturalismo, da passagem da produção local das
identidades étnicas para a adesão dos grupos sociais concretos às categorias genéricas e
englobantes do direito e da política. Arruti toma como objeto justamente os processos pelos
quais grupos sociais distintos são englobados por tais categorias generalizantes,
submetendo-se a regras que lhes são externas, produzidas e impostas pelo Estado, a operar
como o grande ente genérico doador de sentido.
Em Pacheco de Oliveira (1998), o conceito de territorialização cumpre este papel,
na medida em que trata da conversão dos grupos sociais concretos em unidades político-
administrativas, através de sua associação a limites geográficos determinados e regulados.
Entretanto, aponta Arruti, a objetivação que o processo de territorialização opera é
precedido do movimento de auto-objetivação dos próprios grupos, a partir de seus
interesses em fazer cessar seus conflitos internos e externos. Assim, apesar de reconhecer a
importância do contexto estatal para a compreensão dos fenômenos de etnogênese, o autor
pretende descentrar sua análise do Estado, apontando para o protagonismo dos grupos na
construção do reconhecimento, tendo em vista lançar mão de direitos. Desta perspectiva, a
teoria do reconhecimento completa as lacunas deixadas pela teoria da etnicidade, na medida
em que, por um lado, dá conta do processo de formação política dos sujeitos morais
demandantes do reconhecimento, a partir da conversão de suas experiências concretas de
desrespeito em auto-atribuição de uma identidade coletiva positiva, e, por outro, aponta
para a articulação e recepção de tais demandas na agenda pública, traduzindo-as para o
campo semântico do direito de Estado.
Assim, Arruti propõe outra tipologia, dos processos pelos quais as demandas
concretas dos grupos étnicos são convertidas em reconhecimento formal por parte da
estrutura político-administrativa do Estado. Em primeiro lugar, a política de
reconhecimento étnico depende do processo segundo o qual o direito cria uma categoria de
alteridade, cujo objetivo é agregar o conjunto das coletividades singulares sob a formulação
abstrata de um sujeito coletivo de direitos. Neste “processo de nominação”, onde
rearranjos classificatórios são produzidos em razão dos objetivos políticos em jogo, os
grupos concretos são convertidos em objeto político-jurídico, uma vez tornados, pela
interpretação constitucional, enquadráveis na categoria generalizante. No plano local, a
33
passagem de um grupo da condição de desconhecimento para a constatação pública da
legitimidade de sua demanda corresponde a outra, de uma “gramática local de dominação”
para uma “gramática extra-local dos direitos fundamentais”, a produzir um “efeito de
reconhecimento” (pág. 126). Este movimento, pelo qual as experiências locais de
desrespeito são inseridas em um círculo ampliado de desrespeitos reprovados publicamente,
é chamado pelo autor de “processo de reconhecimento”, a encontrar, como sua
contraparte necessária, o “processo de identificação”, no qual as experiências concretas de
desrespeito ensejam a construção de identidades coletivas a operar como motor moral para
as lutas por respeito. O “processo de territorialização”, neste sentido, pode ser pensado
como a consolidação da conversão, pela via da construção identitária, de uma coletividade
concreta em sujeito coletivo de direitos e unidade jurídico-administrativa, em uma espécie
de contramão do processo de nominação.
Fundamental na análise de Arruti acerca do processo de construção da identidade
étnica, a perspectiva dos atores aponta tanto para o protagonismo dos grupos interessados
quanto para o papel central dos mediadores. O processo de nominação quilombola, no qual
o conjunto de intérpretes atrelou ao artigo 68-ADCT um sistema de significados, dependeu
da tomada de posição dos grupos envolvidos. O papel exercido pelos antropólogos neste
processo é exemplar da condição do intelectual: legitimados pelas instituições estatais
como enunciadores do saber técnico acerca do objeto em disputa, ocuparam lugar central
no campo através da produção de balizamentos conceituais para as interpretações possíveis
do dispositivo constitucional.
Na análise das lutas por reconhecimento de índios e quilombolas do sertão de
Sergipe, Arruti aponta o quanto a construção do grupo étnico como sujeito político e
jurídico passa pelas disputas dos agentes externos pela legitimidade do exercício de sua
mediação, a partir das quais operam a tradução das formas de vida locais para as categorias
classificatórias que informam sua militância. A construção política da fronteira étnica, na
qual o grupo ressignificou sua relação com os vizinhos tendo em vista a afirmação de sua
identidade, foi resultado de um artesanato institucional (pág. 145), definido a partir das
possibilidades legítimas de representação, mais do que uma produção relacional autônoma
dos grupos. A análise revela que se a construção da identidade étnica se dá a partir de um
34
cálculo que leva em consideração valores e interesses, os agentes externos, no papel de
mediadores, também devem ser considerados atores relevantes, movidos por interesses e
moralmente motivados.
O processo de identificação, entendido como a conversão, nas representações dos
membros das comunidades, de uma relação naturalizada de dominação em desrespeito à
condição do grupo de sujeito coletivo de direitos, aponta para o caráter político de
construção da memória por parte dos membros das comunidades étnicas. A etnogênese é
interpretada por Arruti como o resultado de reinvestimentos simbólicos do grupo sobre si
mesmo, sua história e organização, em um momento de perigo, de supressão de direitos ou
de percepção do desrespeito. A adesão do grupo a uma identidade etnicizada demanda a
construção de “pontes interpretativas” (pág. 202) nas quais os membros estabelecem
homologias não apenas entre as características concretas do grupo e os significados em
torno das categorias formais, mas entre sua trajetória e a trajetória de outras coletividades,
tendo em vista a construção de versões consistentes acerca de sua identidade étnica.
Este exercício de construção de “pontes interpretativas” é duplamente operado,
tanto nos processos locais de adesão ao rótulo constitucional, quanto nas disputas em torno
dos significados dos termos da lei. Tanto o processo de nominação, relativo aos embates em
torno da questão quilombola, quanto os processos de identificação e reconhecimento,
manifestos no plano local, podem ser entendidos como exercícios de interpretação do
direito, pelos quais a norma constitucional é dotada de sentido. A compreensão efetiva do
reconhecimento étnico como programa político exige, nesta chave, a sua análise como
resultado das disputas interpretativas sobre o direito entre um conjunto de atores sociais
interessados, diferencialmente dispostos na tensão entre o genérico e o específico, e dotados
de diferentes recursos econômicos, políticos e discursivos.
35
Capítulo 2 – Entre a Letra e o Espírito: política quilombola e interpretação constitucional.
A reflexão sociológica em torno do direito, particularmente no que tange à sua
gênese, passa, via de regra, pela relação entre os fatos e as normas. Há um senso comum no
campo do direito no sentido de polarizar as condições deste processo criativo em duas
modalidades: ou o direito é produzido de forma divorciada dos fenômenos que pretende
regular, e neste sentido os fatos devem se adequar à norma instituída, ou, de outra forma, a
norma é pensada em função das demandas sociais concretas, se adequando a elas. No que
diz respeito ao direito à terra das comunidades quilombolas, pode-se dizer que nem uma
coisa nem outra ocorreu. Na verdade, ao declarar que “aos remanescentes das comunidades
dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva”, a
Constituição Federal não estava garantindo direito algum, na medida em que não se havia
ainda constituído os sujeitos e os objetos deste direito.
Os critérios para a identificação de comunidades remanescentes de quilombos
estiveram, portanto, em discussão e disputa desde o primeiro momento, na medida em que
a garantia constitucional não se fez acompanhar de norma reguladora que, entre outras
coisas, definisse o que era e o que não era remanescente de quilombo. Segundo Arruti
(2006), a emergência da garantia do direito à terra para as chamadas comunidades
quilombolas se dá a partir do momento em que os diversos grupos interessados tomam
conhecimento do texto legal (2006). Neste momento, afirma o autor, criam-se não apenas
novos direitos, mas novos sujeitos sociais. Se, como vimos, o reconhecimento jurídico
constitui o resultado das lutas dos grupos previamente organizados a partir das experiências
de desrespeito, no caso das comunidades remanescentes de quilombos o reconhecimento no
plano legal, não sendo produto das lutas específicas dos grupos diretamente interessados,
constituiu tão somente ponto de partida para as lutas por reconhecimento. Será a partir do
“processo de nominação” que as comunidades negras rurais concretas irão acumular
condições de produzir um modelo genérico de alteridade, tornando-se objeto de ação do
Estado, com condições para uma efetiva política de reconhecimento (Arruti, op. cit.).
36
O processo de nominação quilombola parte da afirmação do artigo constitucional,
ato segundo o qual novas categorias são fundadas, mas só se completa na medida em que
um conjunto de significados é articulado a estas categorias, através da interpretação do
artigo 68-ADCT pela comunidade aberta de intérpretes, agenciando novos termos. Na
medida em que tal interpretação constitucional encontra-se em constante disputa, os atos de
nominação configuram-se em um processo ininterrupto, tornando a própria categoria
constitucional, neste sentido, aberta. A questão que anima este capítulo diz respeito a estes
repertórios de significados em disputas interpretativas entre o cultural e o agrário, entre raça
e classe, entre direitos individuais e coletivos. Repertórios discursivos, manifestos em
políticas, decisões judiciais e peças normativas, a partir do qual os grupos sociais concretos
se movimentarão.
Constituição e reconhecimento
A Carta de 1988 constitui marco não apenas do retorno da sociedade brasileira às
instituições democráticas, mas da fundação de um novo modelo de democracia, cuja
expressão jurídica é o chamado neoconstitucionalismo. De inspiração “pós-positivista”, o
neoconstitucionalismo marca um retorno do direito ao debate ético e à política, sem abrir
mão da perspectiva positivista, em um processo de constitucionalização do direito fundado
na centralidade dos direitos fundamentais e na concepção da norma constitucional como
norma jurídica vinculante, mais do que um programa político de ação (Barroso, 2005).
Assim, “pela primeira vez na história brasileira uma Constituição definiu os objetivos
fundamentais do Estado e, ao fazê-lo, orientou a compreensão e interpretação do
ordenamento constitucional pelo critério do sistema de direitos fundamentais” (Cittadino,
2004, pág. 13). Além disso, a Constituição de 1988 consagra a instituição dos direitos
coletivos e de um conjunto de dispositivos que será diferencialmente agenciado para a sua
expansão, permitindo uma concepção ampliada de “dignidade da pessoa humana”.
Tais garantias constitucionais se apresentam, em primeiro lugar, na prescrição de
que a ninguém será dada uma forma distorcida de reconhecimento da identidade individual,
a partir de qualquer atributo que possa ser considerado estigmatizante. Assim, o artigo 3º da
Constituição aponta como “objetivo fundamental da República” a promoção do bem
37
comum, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação”, enquanto o artigo 4º, inciso VIII, estabelece, como princípio do Estado
brasileiro, o repúdio ao racismo, considerado crime inafiançável e imprescritível no artigo
5º, inciso XLII. A criminalização do racismo foi regulada um ano depois, por Lei proposta
pelo Deputado Carlos Alberto Caó17, que define os crimes resultantes de preconceito não
apenas de raça ou cor, como também de etnia, religião e nacionalidade. Apesar de tais
dispositivos terem por paradigma fundamental a idéia de igualdade, tratava-se de afirmar
um conceito de igualdade que pressupunha a diferença.
Além disso, o texto constitucional pressupõe que a garantia da dignidade da pessoa
humana exigirá uma atuação especial do Estado no caso de coletividades que, por algum
motivo, encontrem-se em situação de vulnerabilidade, como no caso dos direitos dos presos
(artigo 5º, XLIX), dos índios (art. 22; 129, V; 231 e 232), da criança e do adolescente (art.
227) e do idoso (art. 230). Além de ter disposto o rol de direito sociais em um capítulo
específico, em separado da ordem econômica e social, o que constitui uma inovação, a CF
elenca um conjunto de interesses coletivos indisponíveis, cuja garantia é definidora do
status de cidadão, como, por exemplo, direito à informação (artigo 5º, XIV) à associação
(artigo 5º, XVI ao XXI), à proteção das relações de consumo (inciso XXXII) e do meio
ambiente (art. 5º, LXXIII; 23 VI; 24, VI e VIII; 200, VII; 225).
Tais direitos, nomeados na nossa legislação como transindividuais, foram
consolidados em 1990, no Código de Defesa do Consumidor, e classificados em três tipos:
direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos18. A afirmação dos interesses coletivos
lato sensu se fez acompanhar de uma “revolução processual”, tendo em vista a
compatibilização entre a natureza dos interesses tutelados e os instrumentos necessários à
sua efetiva garantia (Werneck Vianna, 2002), e a Constituição de 1988 definiu um conjunto
17 Lei nº. 7.716 de 05 de janeiro de 1989, também conhecida como “Lei Caó”. 18 São direitos difusos aqueles de natureza indivisível, individualmente indisponíveis e coletivamente gozáveis, dos quais são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato, e cuja coisa julgada produz efeito erga omnes, como por exemplo o direito ao meio ambiente equilibrado. Direitos coletivos são aqueles também de natureza indivisível, mas cujo titular é um grupo composto por pessoas ligadas por um vínculo jurídico, como por exemplo direitos trabalhistas ou os direitos étnicos. Direitos individuais homogêneos, por sua vez, dizem respeito a bens ou interesses divisíveis, individualmente disponíveis e gozáveis, mas que decorrem de uma origem comum e cuja coisa julgada produz também efeito erga omnes, como é o caso do direito de consumidores de um bem produzido em série (Arantes, 2002).
38
de instrumentos processuais adequados à garantia desses direitos. Este foi um dos primeiros
desafios à efetivação destes novos direitos, já que, nestes casos, não há necessária
coincidência entre o titular da ação e o titular do direito. A Constituição Federal consagra
um conjunto de instrumentos processuais que, regulados no decorrer da década de 80,
permitem que determinadas entidades atuem como substitutas processuais de coletividades
cujos interesses estariam em jogo, rompendo com o paradigma individualista do nosso
direito processual19. Assim, a Constituição define o mandado de segurança coletivo (artigo
5º, inciso LXX) como instrumento sumário, pelo qual partidos políticos e sindicatos podem
atuar na defesa de interesses coletivos (no caso do segundo, no que diz respeito aos
interesses de seus associados); a ação popular como instrumento legítimo para a proteção
do patrimônio público, histórico e cultural, da moralidade administrativa e do meio
ambiente; a ação civil pública para a proteção dos interesses difusos e coletivos (art. 129).
A reconstrução dos mecanismos democráticos, entre nós, apresentou, neste sentido, uma
dupla inovação: do ponto de vista material, uma concepção coletivista de democracia; do
ponto de vista procedimental, uma democracia judicializada, na qual os dispositivos
jurídicos constituiriam mecanismos privilegiados para conquistas políticas.
Segundo Gisele Cittadino, o pluralismo, afirmado como princípio na Constituição
de 1988, pode ter dois sentidos: ou faz referência à multiplicidade de concepções
individuais de vida boa, em uma leitura liberal, de corte rawlsiano e dworkiano, ou à
diversidade cultural, em uma versão comunitarista a la Taylor e Walzer. Os
constitucionalistas que participaram do processo constituinte dos anos 80, segundo a leitura
de Cittadino, lhe imprimiram uma marca comunitarista, tornando a Constituição “uma
estrutura normativa que incorpora os valores de uma comunidade histórica concreta” (pág.
4), razão pela qual a autora se refere a um “constitucionalismo comunitário brasileiro”.
No que tange ao modelo de direito a ser adotado, o comunitarismo multiculturalista
se opõe à perspectiva liberal por afirmar que não é possível elaborar uma concepção
19 Arantes aponta para o fato de que “as ações coletivas confrontam um dos princípios clássicos do processo judicial: o de que a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não afetando positiva ou negativamente a vida de terceiros” (págs. 308 e 309). Segundo o autor, a amplitude dos efeitos da coisa julgada no caso das ações coletivas é tomada como ponto controverso, havendo quem ache que o efeito erga omnes usurpa a competência do Supremo Tribunal Federal.
39
imparcial de justiça, num contexto de pluralismo entendido como diversidade cultural. Daí
a necessidade de imposição, por parte da Constituição, de um consenso ético. Entre o ideal
liberal da liberdade e a lógica democrática da igualdade, os comunitaristas põem o acento
na soberania popular, já que a autonomia pública, ao pressupor a possibilidade de
tratamento diferenciado do Estado a determinados grupos, é mais adequada às exigências
da democracia contemporânea do que a autonomia privada. Por conseqüência, em oposição
à “Constituição-garantia” dos liberais, orientada pelos princípios e centrada nas liberdades
negativas, os comunitaristas apresentam uma concepção teleológica de Constituição,
tomando-a como expressão de um projeto social moralmente informado. (Cittadino, op.
cit.). Assim, a Constituição é entendida pelos comunitaristas brasileiros como normatização
de um conjunto de valores compartilhados pela comunidade política, o que produziria uma
solução de continuidade entre a Constituição e os “elementos constitucionais do grupo
social”, nas palavras de José Afonso da Silva, vale dizer, os valores inscritos na cultura da
comunidade política.
No bojo das novas concepções, de caráter coletivista, acerca da igualdade e da
dignidade da pessoa humana, a Constituição consagra os princípios da teoria do
reconhecimento, definindo a própria sociedade brasileira de uma perspectiva
multiculturalista. Se esta concepção já está suposta no preâmbulo da Constituição, na
definição da sociedade brasileira como “pluralista”, o multiculturalismo ganhará
consistência em dois capítulos da ordem social: o referente a educação, cultura e desporto e
aquele relativo aos direitos indígenas. Os chamados “direitos culturais” têm por sujeito,
numa primeira visada, o próprio povo brasileiro; assim, encontra-se garantida, na
Constituição, a preservação das “fontes da cultura nacional”, em suas manifestações
materiais e imateriais, entendidas essas fontes como marcadas pela diversidade, incluídas e
discriminadas as manifestações culturais “populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (art. 215). Entretanto, é
possível que se entenda como sujeitos dos direitos culturais os grupos etnicamente
diferenciados, como permite supor os parágrafo 2º do mesmo artigo: “a lei disporá sobre a
fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos
nacionais”. É neste capítulo da Constituição que encontramos a primeira referência aos
40
quilombos, aqui entendidos no sentido histórico (“antigos”) e como patrimônio a ser
protegido:
Art. 216 – Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (...)
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico e científico. (...)
§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos.
No que se refere aos direitos indígenas, a Constituição os reconhece como direitos
culturais de um grupo específico, para manutenção de “sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam” (art. 231), e que devem ser protegidos da assimilação pela cultura nacional. O
dispositivo que regulava os direitos indígenas anteriorimente20, que tomava como
fundamento o disposto no Código Civil de 1919, dispunha que os grupos indígenas, dada a
sua condição de “relativamente capazes”, deveriam ter seus direitos e deveres tutelados
pelo Estado, até sua plena integração. Neste sentido, apesar de importar boa parte da
legislação anterior, a Constituição inova ao reconhecer o caráter pleno e permanente dos
direitos indígenas, inclusive no que tange às terras ocupadas. São “terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios”, segundo o mesmo artigo, “as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação
dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução
física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (parágrafo 1º). Não se trata aqui,
entretanto, de alteração no direito fundiário, já que, de acordo com o artigo 20, inciso XI, as
terras indígenas são bens da União, mantida, portanto, a relação de tutela entre os grupos
indígenas e o Estado. Neste mesmo sentido, toda a competência para tratar da matéria
20 Lei nº. 6001, de 19 de dezembro de 1973.
41
indígena é dos órgãos federais: compete à União legislar sobre populações indígenas (art.
22, XIV) e aos juízes federais julgar matéria relativa aos seus direitos (art. 109, XI).
Entendido como direito cultural, a disposição constitucional acerca das terras indígenas
ganharia um caráter heurístico na interpretação do direito à terra quilombola,
caracterizando-o, para além de sua dimensão fundiária, como direito a um território
tradicional.
Podemos perceber, portanto, que a Constituição de 1988 adere à perspectiva do
comunitarismo liberal de Taylor e Honneth, combinando dispositivos garantidores da
igualdade, tanto do ponto de vista material quanto processual, com outros definidores de
determinadas concepções de “vida boa” (ou estilos de vida). Mais do que isto, no que diz
respeito à diversidade cultural, o texto constitucional expressa um projeto multiculturalista,
na percepção de que, em contextos de pluralismo, a justiça não pode ser alcançada por
formas imparciais de normatividade.
Este projeto multicultural já se desenhava, no plano internacional, desde a década de
1960, através de um conjunto de dispositivos que apontavam para a afirmação de direitos
culturais. Adotado por resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas em 1966, o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ratificado e promulgado no Brasil em 1992,
garante, “nos Estado em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas”, que os
pertencentes a tais minorias tenham garantidos os direitos a ”sua própria vida cultural, de
professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua” (artigo 27), numa
formulação destes direitos ainda como direitos individuais. No mesmo ano, o Pacto dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais garantiria o direito à não-discriminação. Em 1992,
no bojo da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,
foi promulgada a Convenção Sobre a Diversidade Biológica, ratificada como norma interna
brasileira por Decreto Legislativo em 1994, criando medidas protetivas das formas de
conhecimento e práticas de populações indígenas e tradicionais, definidos, desta feita, como
direitos coletivos. Foi, entretanto, a Convenção nº. 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), ao tratar de “populações indígenas e tribais”, a que mais avançou, no plano
internacional, para a consolidação do direito ao reconhecimento de minorias étnicas.
42
A Convenção nº. 169 da OIT define povos tribais como aqueles “cujas condições
sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e
que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por
legislação especial”, estabelecendo como critério para a identificação de um povo como
indígena ou tribal “a consciência de sua identidade” (artigo 1º.), definindoprovos tribais,
portanto como grupos étnicos, no sentido apontado no capítulo anterior. O conjunto de
direitos garantidos pela Convenção passa pela garantia de condições de igualdade perante
os demais membros da nacionalidade, pela promoção de políticas de eliminação das
desigualdades sócio-econômicas e pelo respeito às diferenças de identidades e às
instituições particulares destes povos, incluindo o direito à consulta acerca de políticas e
atos legislativos que incidam sobre eles (artigo 2º). O texto da convenção dedica especial
atenção ao direito à terra, entendendo o termo como relativo ao “conceito de territórios, o
que abrange a totalidade habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam
de alguma outra forma” (artigo 13), determinando que se reconheça “aos povos
interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente
ocupam”, inclusive aquelas “que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às
quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de
subsistência”, cabendo aos governos a adoção de medidas protetivas (artigo 14).
No contexto americano, além da Convenção Interamericana sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial, de 2003, a Organização dos Estados
Americanos (OEA) promulgou, em 1969, a Convenção Americana de Direitos Humanos.
Além de dispor acerca dos direitos dos indivíduos às especificidades culturais e identitárias,
a Convenção cria duas instâncias para o encaminhamento de demandas, a Comissão
Interamericana e Corte Interamericana de Direitos Humanos, facultando à Comissão
intervir, em casos de violações de direitos, por iniciativa própria ou se provocada por uma
petição, que pode ser interposta por cidadãos, grupos ou organizações não-governamentais
dos países ratificantes.
As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pela emergência de um
constitucionalismo multiculturalista na América Latina, consubstanciado em garantias de
direitos étnicos para as populações negras tradicionais. A Constituição Colombiana, de
43
1991, assume um caráter multiculturalista ao afirmar, no seu artigo sete, que “reconhece e
protege a diversidade étnica e cultural da Nação Colombiana”, garantindo, no artigo 55 de
suas disposições transitórias, os direitos territoriais das “comunidades negras que ocupam
terras públicas nas zonas rurais ribeirinhas dos rios da bacia do Pacífico, de acordo com
suas práticas tradicionais de produção”21. A Constituição da Nicarágua, promulgada em
1987 e reformada em 1995, dedica um capítulo especial às “comunidades da Costa
Atlântica”, às quais, somados aos direitos da igualdade, garante o “direito de preservar e
desenvolver sua identidade cultural na unidade nacional, dotar-se de suas próprias formas
de organização social e administrar seus assuntos locais conforme suas tradições”,
reconhecendo “as formas comunais de propriedade das terras” e garantindo “o gozo, uso e
desfrute das águas e bosques de suas terras comunais” (art. 89). São garantidos, ainda, os
direitos relativos à expressão e à preservação de suas línguas, arte e cultura. Finalmente, a
Constituição equatoriana, de 1998, afirma, no capítulo referente aos direitos coletivos, os
direitos dos “povos indígenas e negros ou afro-equatorianos”.
As décadas de 1980 e 1990 também apontam para avanços nas garantias de direitos
étnicos para os chamados “povos originários” latino-americanos, principalmente nas
demandas por direitos territoriais e de participação. Em 1996 o Estado boliviano
reconheceu as demandas indígenas, através da Lei nº. 1715, a “Lei INRA”, que cria a figura
das “Terras Comunitárias de Origem” (TCO). O Paraguai promulgou, em 1981, o “Estatuto
das Comunidades Indígenas”, garantindo os direitos a preservação social e cultural, defesa
do patrimônio e das tradições, desenvolvimento econômico e participação e propriedade da
terra e dos recursos produtivos, tendo ratificado, em 1993, a Convenção nº 169 da OIT. A
Argentina incorporou a Convenção nº 169 em 1992, promovendo, em 1994, uma reforma
constitucional que, no mesmo espírito da Convenção, reconheceu a preexistência étnica e
cultural dos povos indígenas, garantindo seus direitos a identidade, educação bilíngüe e
intercultural, reconhecimento da pessoa jurídica das comunidades e posse e propriedade
comunal das terras de ocupação tradicional.
21 Em 1993, atendendo aos ditames constitucionais, a “Lei dos Negros” regulou o Artigo Transitório 55 da Constituição Federal, definindo as comunidades negras rurais como grupo étnico.
44
o artigo 68 e as possibilidades interpretativas
É neste cenário que a Constituição brasileira estabelece, no artigo 68 dos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias, que “aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Antes de quaisquer observações
acerca das condições sob as quais o artigo constitucional foi produzido, a adoção das
perspectivas comunitarista e multicultural nos leva a uma dupla percepção: em primeiro
lugar, a interpretação do artigo 68 do ADCT deve tomar como pressuposto o
multiculturalismo como projeto constituinte; entretanto, o inegável caráter aberto da
comunidade de intérpretes da Constituição, somado às condições nas quais o artigo 68-
ADCT foi produzido (Arruti, 2006), se opõe a qualquer consideração absoluta quanto a
uma “vontade do legislador”.
Ao contrário de outros grupos cujos direitos foram garantidos na Constituição de
1988, os remanescentes de quilombos, entendidos aqui como grupos étnicos de
ancestralidade negra com historicidade e territorialidade próprias, quaisquer que fossem os
nomes pelos quais se chamavam ou eram chamados, não haviam organizado suas demandas
antes da Constituição de 1988. Registrem-se exceções, como a articulação das comunidades
negras rurais no estado do Maranhão que, a partir do Movimento Negro estadual, se
reuniram desde 1986, para demandar direitos de natureza territorial, notadamente a garantia
das formas tradicionais de uso de seu território (PVN, 2002).
Tal descompasso entre a articulação no campo político nacional de coletividades
interessadas e a garantia constitucional de direitos territoriais se deve, segundo Arruti, às
condições do debate acerca do artigo (op. cit.). Em primeiro lugar, porque sua redação
partiu de um conhecimento limitado dos grupos a serem atingidos pela norma
constitucional. Em segundo lugar, porque a discussão apontava para o passado, para uma
concepção histórica e arqueológica de quilombo, e não para uma concepção presencial,
relativa aos grupos sociais existentes. Além disso, ressalta o autor, o artigo foi formulado
no “apagar das luzes” da Constituição, a partir da articulação de representantes do
movimento negro do Rio de Janeiro, diante da percepção do momento propício, uma vez
45
que a promulgação da Constituição Federal coincidiria com a comemoração do centenário
da abolição. O resultado final, segundo Arruti, teria sido um artigo cuja referência era o
sentido de metáfora política do termo quilombo, compondo o pacote simbólico de
dispositivos que marcavam a luta contra o racismo. Uma proposta objetiva parecia,
entretanto, informar a afirmação dos direitos territoriais dos “remanescentes das
comunidades dos quilombos”: a idéia de “reparação dos prejuízos trazidos pelo processo de
escravidão e por uma abolição que não foi acompanhada por nenhuma forma de
compensação, como acesso à terra” (op. cit., pág. 68).
Não é de pouca importância, para a análise das possibilidades oferecidas pelo artigo
68-ADCT em termos de uma política de reconhecimento, o fato de que ele encontra-se
disposto no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O ADCT é composto por
disposições constitucionais que, apesar de terem o caráter transitório, possuem a mesma
rigidez e eficácia das disposições permanentes. Sua presença na Constituição de 1988,
entretanto, se deve ao pressuposto de que determinadas normas constitucionais tinham por
objetivo regular a transição para a ordem jurídica democrática, perdendo, com o tempo, sua
validade, ficando tacitamente revogadas; este é o caso, por exemplo, da norma que definia a
data da primeira eleição para Presidente da República (Silva, 2007).
A narrativa de Arruti, entretanto, sugere que a presença dos direitos territoriais dos
“remanescentes das comunidades dos quilombos” no ADCT se deve menos a considerações
acerca da transitoriedade do dispositivo – e, portanto, ao pressuposto de que, em
determinado momento, todas as terras de quilombo estariam efetivamente tituladas – e mais
a arranjos possíveis para a inserção do artigo na Constituição. Arruti narra que, a princípio,
o tombamento dos sítios históricos relativos aos antigos quilombos e a garantia da titulação
da terra constavam num mesmo artigo, de autoria do deputado Caó, acrescentado às
disposições transitórias. A resistência à permanência de um dispositivo que interferisse no
regime da propriedade levou a que o artigo fosse desmembrado, com a migração do
tombamento dos antigos quilombos para o corpo permanente da Constituição, para o
capítulo relativo à cultura, ficando apenas o direito fundiário no corpo das disposições
transitórias (pág. 70).
46
Finalmente, o artigo constitucional afirma direitos e sujeitos sem qualquer
definição, no seu texto, quanto ao que sejam os remanescentes e suas terras. No que diz
respeito ao sujeito do direito, apesar de não haver nenhum registro, a redação sugere
sujeitos individuais: os “remanescentes das comunidades dos quilombos”, e não as
“comunidades remanescentes de quilombos”, termo que seria consagrado mais tarde, em
peças normativas, na literatura antropológica, em políticas públicas e pelo movimento
social. Quanto ao objeto, as “terras que estejam ocupando”, não há qualquer referência aos
critérios para sua definição, quer sejam os mais restritivos (terra efetivamente ocupada para
moradia e produção), quer sejam os mais ampliados, os relativos à idéia de ocupação
tradicional. Compare-se esta indefinição com a definição constitucional do que sejam terras
indígenas, disposta no artigo 231: “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as
por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas,
as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as
necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
A disposição constitucional acerca dos quilombos acabou dividida em dois
dispositivos: por um lado, um dispositivo de natureza cultural e preservacionista, afirmando
um direito cujo sujeito pode ser entendido como a sociedade brasileira como um todo,
sugerindo uma política de reconhecimento da diversidade cultural brasileira; por outro lado,
um dispositivo de natureza fundiária, trazendo consigo o caráter de reparação de injustiças
distributivas racialmente construídas, a apontar, portanto, para a possibilidade de uma
política de caráter redistributivo. A bipartição da disposição constitucional acerca dos
quilombos apontava já para uma primazia da dimensão cultural sobre a agrária, dada pela
valorização do artigo 216 em relação ao artigo 68-ADCT. Esse era o começo, também, de
uma disputa entre atores do Estado ligados aos dois campos, o cultural e o agrário: a
Fundação Cultural Palmares fora criada no mesmo ano da promulgação da Constituição,
como órgão do Ministério da Cultura cujo objetivo era a “preservação dos valores culturais,
sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”
(Lei 7.668/88); entretanto, a competência para a demarcação e titulação das terras ocupadas
pelos remanescentes de quilombos foi dada ao Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA), órgão do Ministério do Desenvolvimento Agrário responsável
pela administração das terras desapropriadas por interesse social, pela regularização das
47
ocupações, bem como pelo assentamento de comunidades rurais no processo de reforma
agrária.
O artigo 68-ADCT apresentava, assim, possibilidades de incrementar o pacote da
reforma agrária, constituindo mais uma alteração constitucional no regime da propriedade.
A Constituição de 1988 representa uma inovação radical no que tange ao direito à
propriedade, em razão da imposição do cumprimento da sua função social, entendida não
apenas como mera limitação de uso, mas sim como um “elemento da estrutura e do regime
jurídico da propriedade” (Silva, op.cit.). Mas o potencial transformador do regime da
propriedade do artigo 68-ADCT ainda estava longe de ser totalmente explorado, sobretudo
se considerarmos as indefinições acerca dos sujeitos titulares do direito em questão.
A tensão não resolvida entre direitos culturais e fundiários, a indefinição de seus
termos e a sugestão individualizante no que tange à definição de seu sujeito, demonstrando
a baixa compreensão de se tratar de um direito coletivo, mostram o quanto o artigo 68-
ADCT oferecia, sozinho, instrumentos débeis para a instauração de uma efetiva política de
reconhecimento, já que se apresentava como uma virtualidade interpretativa. Se lida na sua
literalidade, a norma constitucional apontava para uma interpretação restritiva, de caráter
exclusivamente reparatório, individualizante na definição de seu sujeito de direito e cujo
objeto era definido exclusivamente no campo do direito agrário. Interpretado no contexto
comunitarista da Constituição de 1988, e mesmo no contexto mais ampliado de
reconhecimento do multiculturalismo pelos mecanismos de direito internacional, apontava
para a abertura que se produziu pelos movimentos, que definiu os sujeitos como grupos
étnico-raciais e o direito à terra como direito ao reconhecimento das formas particulares de
territorialidade22.. Será justamente este processo de interpretação constitucional que dotará
o dispositivo de elementos para a implementação de uma política de ação afirmativa.
22 Os exemplos de Dworkin, um dos expoentes do pós-positivismo neoconstitucionalista, apontam para as divergências teóricas que animam a produção do direito a partir deste novo paradigma. Diante do imperativo de estabelecer o vínculo entre o texto da lei e o sentido de direito que ela cria quando disposta no ordenamento, a interpretação abre possibilidade para o debate em torno da “vontade do legislador”, ora definida a partir do significado literal e acontextual da norma, mesmo em casos em que gere “decisões absurdas” (ou pelo menos na incerteza de que o legislador desejasse outra coisa), ora deduzida pelo sentido do ordenamento, definido a partir do bom senso, ou mesmo em razão de considerações acerca do bem estar público (Dworkin, 1999).
48
O processo de constitucionalização dos direitos impõe o problema da sua
regulamentação. Já na década de 1980, Cappelletti apontava para o caráter programático da
atividade legiferante no contexto nomeado por ele de “pós-welfare” (Cappelletti, op. cit.),
marcado pela expansão dos direitos coletivos, e o quanto a natureza principiológica desta
produção legislativa abria um campo de disputas pela regulamentação de direitos, das quais
participariam, além dos próprios legisladores, agências do Estado administrativo e órgãos
judiciais.
O chamado neoconstitucionalismo combina a natureza principiológica da
Constituição com um modelo de interpretação decorrente da sua força normativa, a evocar
um conjunto de princípios interpretativos próprios. Se no modelo tradicional de
interpretação jurídica a norma é entendida como regra a ser seguida, em relação à qual cabe
ao juiz o papel técnico de identificar a norma adequável ao fato, segundo a “nova
interpretação constitucional” a norma nem sempre se apresenta como suficiente, e o juiz é
co-participante na produção do direito, elaborando “valorações de sentido para as cláusulas
abertas” (Barroso, op. cit.). Seja na medida em que a Constituição se apresenta como
“cláusulas gerais”, composta por categorias abertas cujo significado é complementado a
partir do caso concreto, seja pela sua condição principiológica, ou ainda pela possibilidade
de choques potenciais entre normas constitucionais, a “nova interpretação constitucional”
chama a atenção para o protagonismo da comunidade de intérpretes, sobretudo no que
tange à discricionariedade do juiz, ou ainda, para seu papel criador do direito (Cappelletti,
op. cit.).
O comunitarismo, assim, se põe contrário a um certo interpretativismo auto-
reflexivo, que não percebe que o direito sofre interferências de interesses, projetos e valores
externos a ele. Uma interpretação comunitarista recorrerá ao “processo histórico, os valores
e princípios substantivos, os precedentes e outros conceitos ancorados num determinado
ethos social, tudo isso com o objetivo de julgar em conformidade com o ‘projeto de
constituição’” (Cittadino, op. cit., pág. 27). Esta concepção do processo de interpretação
constitucional permite aos comunitaristas afirmar que as conquistas de uma cidadania
fortemente mobilizada não poderiam ser deslegitimadas pelo Judiciário: segundo
Ackerman, a Suprema Corte não pode declarar inconstitucionais conquistas históricas do
49
povo, integradas à história constitucional de uma comunidade política (Ackerman apud
Cittadino, pág. 27). Aqui também o contexto pluralista não permite que se entenda “povo”
ou “comunidade”, ao menos em sua manifestação concreta, senão através da diversidade
das formas de mobilização coletiva.
Segundo Cittadino, “as Constituições dos Estados democráticos, pela via da
abertura constitucional, se abrem a outros conteúdos, tanto normativos (direito
comunitário), como extranormativos (usos e costumes) e metanormativos (valores e
postulados morais)” (Cittadino, op. cit., págs. 16 e 17). Assim, se os direitos fundamentais e
a dignidade humana constituem o cerne da Constituição, a compreensão ampliada dos seus
limites interpretativos aponta para uma compreensão destes direitos não como valores
absolutos e abstratos, mas como parte da “consciência ético-jurídica de uma comunidade
histórica” (pág. 18). Em um contexto pluralista, os padrões de dignidade deverão variar em
razão dos modos de vida particulares aos grupos, em torno dos quais o rol de direitos
considerados fundamentais serão definidos. Daí a importância da abertura do processo de
interpretação constitucional, já que é no alargamento da comunidade de intérpretes (que
passa a contar com partidos, associações, imprensa, cidadãos, etc.) que se constrói essa
dimensão ética que conforma o direito. A questão aqui, como Häberle a coloca, é
justamente quanto aos limites do exercício de alargamento.
Como não estamos falando de uma comunidade política com um conjunto de
valores unívoco ou um projeto político consensual, ou ainda de uma Constituição que
abrigue todos os valores em jogo, a interpretação constitucional deve permitir o confronto
das “forças políticas portadoras de projetos”, nos termos de Häberle, constituindo o
resultado de uma luta política entre projetos concorrentes. O Poder Judiciário, neste
sentido, se apresenta como o “último intérprete da Constituição”, poderíamos dizer, como
aquele que consolida a interpretação da comunidade aberta de intérpretes. A realização dos
dispositivos constitucionais, nesta chave, poderia ser pensada como o resultado da
participação jurídico-política da comunidade somada ao papel dos agentes conformadores
da norma (ou concretizadores da Constituição), a consagrar uma das interpretações.
Assim, diante da abertura interpretativa do dispositivo constitucional, os diversos
grupos interessados na produção de sentidos em torno do tema articularão seus recursos
50
discursivos, tendo em vista conformar seus projetos em norma jurídica. Em torno do campo
quilombola recém criado, encontraremos empresários morais cuja iniciativa os caracteriza
como “cruzados” (Becker, 1977), aqueles que orientam sua prática de interpretação da
norma por uma ética da convicção, pelo compromisso moral com os conteúdos e com o
impacto dos conteúdos na comunidade política, como é o caso de certas categorias de
intelectuais, notadamente os antropólogos. Em contrapartida, alguns destes empresários
(mesmo alguns “cruzados”) irão se mover neste campo tendo em vista manter suas
posições, ou como exigência da condição que ocupam, agindo segundo uma ética da
responsabilidade, como parece ter sido o caso dos agentes estatais. Nas disputas
interpretativas entre tais empresários para a regulação do artigo, recursos políticos não
prescindiam de uma prática argumentativa que fosse capaz articular a versão encampada
pelo empresário como a mais coerente com o sistema de direitos fundamentais.
As primeiras interpretações: os marcos regulatórios e a ressemantização
Os direitos fundiários dos remanescentes de quilombos estavam, a partir da
promulgação da Carta Constitucional, abertos a uma intensa disputa pelo enunciado
legítimo de seus significados, e desta disputa participaram, desde o primeiro momento, o
Ministério Público Federal, órgãos de diferentes ministérios, legisladores e a própria
Presidência da República. Se o reconhecimento jurídico das comunidades negras rurais e
sua territorialidade não foi produto dos conflitos morais das comunidades concretas, mas da
manifestação dos ideais políticos do movimento negro urbano, será no jogo interpretativo
que ocorrerá o deslocamento para uma outra esfera de conflitos morais. As primeiras
tentativas de interpretação do artigo 68-ADCT aconteceram na década de 90, a partir de
iniciativas oficiais da Fundação Cultural Palmares como a constituição de uma
Subcomissão de Estudos e Pesquisa, cujos resultados apontavam ainda para uma noção de
quilombo ligada à idéia de patrimônio histórico. Em 1994, a FCP assume a concepção
presencial de comunidade remanescente de quilombos, produzida a partir da categoria
comunidades negras rurais (Arruti, op. cit.). Neste momento, todas as interpretações do
artigo constitucional passam a entendê-lo como referente a direito territorial coletivo,
direito das comunidades remanescentes, e não dos remanescentes das comunidades. Tal
postulação colocava em questão a operacionalização da garantia jurídica - como conferir o
51
título de propriedade a uma coletividade? – e ainda levantava a questão acerca dos critérios
pelos quais tais propriedades seriam delimitadas.
No mesmo ano, a Associação Brasileira de Antropologia apresentou sua proposta de
interpretação da categoria constitucional, consolidada no “Documento do Grupo de
Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais”. Nesta carta, a ABA apontava que, apesar do
conteúdo histórico, a categoria quilombo vinha sendo ressemantizada “para designar a
situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos”, passando a se
referir não a “resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação
biológica” ou “grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea”, mas
“grupos étnicos conceitualmente definidos pela Antropologia como um tipo organizacional
que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou
exclusão”. Além disso, “no que diz respeito à territorialidade desses grupos, a ocupação da
terra não é feita em termos de lotes individuais, predominando seu uso comum (...)
caracterizando diferentes formas de uso e ocupação do espaço, que tomam por base laços
de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade”23.
Na carta da ABA encontram-se presentes todos os elementos característicos da
chamada ressemantização da categoria remanescentes de quilombos: a definição de
quilombo como um grupo étnico com identidade auto-atribuída, a modalidade coletiva de
apropriação da terra e a organização social baseada em laços de reciprocidade24. Arruti (op.
cit.) argumenta que tal ressemantização se construiu a partir da retomada, por parte dos
antropólogos, de estudos da década de 70 acerca de comunidades negras rurais, em uma
aproximação do objeto sociológico para a interpretação do texto legal. Por outro lado, a
própria carta da ABA é clara em dizer, tal ressignificação já vinha sendo ensaiada em ações
de algumas ONGs e do próprio movimento negro. É a partir deste movimento, capitaneado
23 Tais entendimentos seriam confirmados, em 2000, em documento da Associação Brasileira de Antropologia, relativo às suas posições acerca dos laudos antropológicos, conhecido como a “carta de Ponta das Canas”. 24 Arruti elenca os três paradigmas presentes na “ressemantização”: a subjetivação do termo “remanescentes”, que, além de estabelecer a analogia com a questão indígena, justifica o direito pela ancestralidade, e não pelos resquícios (“reminiscências”), dando à formulação um sentido coletivo; o conceito de “terras de uso comum”, que investe a categoria da noção de territorialidade, além do pressuposto da autonomia jurídica; finalmente, “etnicidade”, a lançar as bases para a conceituação de quilombos como grupos definidos a partir da identidade (op. cit., pp. 79-97).
52
pelos antropólogos, que se consolidará a compreensão de que o direito relativo aos
remanescentes de quilombos não apenas constitui direito coletivo, mas direito étnico;
portanto direito que, mais que o sentido de reparação de injustiças raciais, traz consigo
significados relativos ao reconhecimento de formas próprias de organização da vida social.
A etnicização do conceito de quilombo se dá, neste primeiro momento, a partir de
iniciativas externas ao Estado, na abertura da comunidade de intérpretes da Constituição,
em uma aproximação entre a prática política dos movimentos sociais, os modos de
organização social e territorial das comunidades negras rurais e o instrumental teórico da
antropologia, articulados para conferir novos sentidos ao artigo 68-ADCT.
Tendo tomado uma posição em relação ao tema no primeiro momento, a Associação
Brasileira de Antropologia assumiu a condição de intelectual coletivo, na medida em que,
operando a partir de um argumento de competência legitimado pelo campo acadêmico
(Coelho, 2005), assumiu papel de autoridade nos debates públicos (Margato e Gomes,
2004), autoridade que se estendeu a cada um de seus membros, e aos antropólogos de
forma geral. Neste nível, os antropólogos cumpriram, através de sua associação, o papel de
intelectuais em um sentido mais francês, marcando sua posição a partir de documentos
públicos, cartas e manifestos (Coelho, op. cit., pág. 15). A posição “de esquerda” destes
intelectuais, a colocá-los no pólo da afirmação dos direitos coletivos, se deveu não apenas à
atribuída vocação do intelectual para articular seu saber como uma forma de contra-poder
(Coelho, op. cit.; Foucault, 2003), mas às características do próprio conhecimento
antropológico, responsável pela etnicização do sujeito de direito. Como veremos, a
emergência de um governo atrelado a ideais de esquerda levou a que os antropólogos
passassem a defender algumas posições formais do governo, manifestando suas oposições
às posições conservadoras da “mão direita” do Estado.
O papel exercido pela ABA é ilustrativo da condição do intelectual no contexto do
multiculturalismo, menos como um porta-voz da sociedade e mais de “cruzado” na defesa
dos direitos de grupos minoritários, lutando contra “focos particulares de poder” (Margato e
Gomes, op. cit.). Assim, segundo Coelho, com o “clima de relativismo” próprio da pós-
modernidade, o intelectual encontra dificuldade em “apresentar-se como testemunha do
universal” (op. cit., pág. 21), dos “valores fundamentais da realidade”. Diante da ausência
53
de um telos e de um sujeito histórico universal, o intelectual contemporâneo se teria
convertido em um tradutor entre códigos sociais distintos, entre formas de conhecimento,
entre política e pensamento. Antes de sistematizar os critérios para tal tradução, o campo
antropológico apresentou, ele mesmo, um processo de conversão de formas classificatórias,
nos quais grupos que eram nomeados de outras formas, como “campesinato livre
comunal”25, passaram a ser classificados como comunidades remanescentes de quilombo.
No ano seguinte, a interpretação da ABA seria acolhida oficialmente, através de
uma portaria do Ministério da Cultura, responsável pelo estabelecimento das normas para a
“identificação e delimitação das Terras ocupadas por comunidades remanescentes de
quilombos, de modo geral, também autodenominadas Terras de Preto (...)” (Portaria nº. 25,
de 15 de agosto de 1995). Em 1998, uma nova portaria da FCP reafirmaria tal aceitação do
conceito ressemantizado e, ainda em 1995, o termo comunidade remanescente de quilombo
viria a aparecer, novamente, em uma portaria do INCRA relativa à demarcação e titulação
dos territórios (Portaria INCRA/P/nº 307, de 22 de novembro de 1995).
Note-se, em primeiro lugar, que a portaria da FCP de 1995 opera uma retomada do
termo proposto no debate constituinte e consagrado na ressemantização: “comunidades
remanescentes de quilombos”, em contraposição ao termo literal da norma constitucional,
“remanescentes das comunidades dos quilombos”. Mais do que uma alteração
terminológica, tal opção revela a recepção, por parte da FCP, da compreensão de que o
direito garantido pelo artigo 68-ADCT é direito coletivo, das comunidades, e não
individual, dos remanescentes. Além disso, antes mesmo de passar, a partir do artigo 2º, à
explicitação das normas que regeriam os processos de identificação, a portaria já
identificava tais comunidades por outra categoria, “Terras de Preto”, que, além de constituir
termo segundo o qual alguns grupos se autodenominam (o que nunca é o caso do próprio
termo “quilombo”), remete a texto seminal do antropólogo Alfredo Wagner Berno de
Almeida (1989), que não apenas sistematizou a noção de Terra de Uso Comum, mas
constituiu um dos textos mais importantes para a construção atual do significado da
categoria remanescente de quilombo.
25 Como no caso do trabalho de Laís Mourão Sá acerca das comunidades negras rurais de Alcântara, no Maranhão (2007).
54
O conceito de Terra de Uso Comum foi construído por Almeida26 como instrumento
teórico para dar conta da multiplicidade das formas de regulação da terra nas diversas
comunidades negras rurais. Segundo o antropólogo, essas várias formas de relação com a
terra correspondem a verdadeiros sistemas jurídicos autônomos, com concepções próprias
de direitos e obrigações, organizados sob uma multiplicidade de nomes: “terras de santo”,
“terras do santíssimo”, “terras da pobreza”, “terras de herança”, “terras de preto”, “terras de
índio” (Almeida, 1989). Em comum, todas essas formas de relação com a terra têm um
caráter coletivo, entendendo a terra como bem indisponível individualmente: são “terras de
uso comum”. Constituem um território, no sentido dado por Raffestin (op. cit.) - espaço
físico trabalhado pelos atores, material e simbolicamente. A territorialização do espaço,
neste sentido, corresponde a um processo de ocupação deste mesmo espaço por um
conjunto de representações construídas por determinada coletividade, no curso de sua
reprodução material. O entendimento das terras ocupadas pelas comunidades
remanescentes de quilombos como territórios corresponde, portanto, ao reconhecimento da
legitimidade destas construções subjetivas.
A definição de comunidade remanescente de quilombo como grupo étnico,
definição importada de Fredrik Barth, é combinada, nas peças normativas, ao conceito de
“terra de uso comum”. Assim, a noção de etnicidade é somada, no processo de
ressemantização do artigo 68-ADCT, a outra, de territorialidade, o que leva, já nas
primeiras peças normativas do INCRA, à concepção de que os procedimentos para
delimitação das terras quilombolas, já então denominadas “territórios”, deverão adotar
como critério fundamental as concepções locais de territorialidade, consideradas as
condições para a reprodução econômica, social, cultural e ambiental dos grupos.
Ainda em 1995, tais interpretações são aplicadas na primeira titulação de uma
comunidade remanescente de quilombo, a comunidade de Boa Vista, no município de
Oriximiná, Estado do Pará, conferindo efetividade à ressemantização do artigo 68-ADCT.
Foram tituladas 112 famílias, em um território de 1.125 ha, em nome da Associação da
26 A trajetória intelectual de Alfredo Wagner Berno de Almeida cruza com sua militância junto às comunidades negras rurais de Alcântara (MA). Almeida organizou o Projeto Vida de Negro, do Centro de Cultura Negra do Maranhão, responsável pelo levantamento, nos anos de 1988 e 1989, das chamadas “Terras de Preto” no estado (PVN, 2002).
55
Comunidade Remanescente de Quilombo Boa Vista, com cláusula de indivisibilidade e
impenhorabilidade. Consolidava-se, assim, outra compreensão que informava as
interpretações do artigo naquele momento: a de que o artigo 68-ADCT era auto-aplicável,
não dependendo de legislação infraconstitucional que o regulasse para sua efetivação. Tal
interpretação apresentava-se como bastante conveniente para um momento no qual o artigo
constitucional pairava no ar, sem nenhuma forma de regulação em lei ordinária, embora,
por um lado, setores da sociedade civil se articulassem em torno do seu interesse e, por
outro, o INCRA e a FCP já houvessem produzido normatizações que interpretavam as
categorias e definiam procedimentos. No período entre 1995 e 2000, 24 outros territórios
foram titulados na ausência de norma reguladora, quase metade dos 54 titulados até hoje,
contando apenas com as peças normativas internas aos órgãos, que funcionavam, na
prática, como regulamentações do dispositivo constitucional.
Esta compreensão do artigo como auto-aplicável aparece associada a outra, de que
ele teria um efeito meramente declaratório, constituindo o direito dos quilombolas direito
originário, anterior à Constituição e mesmo ao direito de propriedade dos portadores de
títulos válidos. É verdade que a própria redação do artigo sugeria seu caráter originário, ao
declarar que a Constituição “reconhecia” a propriedade. Além disso, fazia coro a esta
interpretação o Ministério Público Federal, através de sua Sexta Câmara, responsável pela
população indígena e minorias. Na “Carta de Santarém”, resultado do II Encontro Nacional
sobre a Atuação do Ministério Público Federal na Defesa das Comunidades Indígenas e
Minorias, os procuradores da Sexta Câmara declaram que
“faz-se necessária a adoção de medidas imediatas para a titulação das
terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades de quilombos, na
forma que lhes é garantida pelo art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias; (...) e, assim, declara ser prioritária a
atuação do Ministério Público Federal tendente a promover a titulação
das terras ocupadas por remanescentes de comunidades de quilombos e
das populações ribeirinhas” (abril de 1998).
56
Três anos mais tarde, no II Encontro, a Sexta Câmara ratificaria tal compreensão.
Embora, na prática, isto significasse dizer que o INCRA não teria mais necessidade de
desapropriar os imóveis que estivessem superpostos aos territórios quilombolas, o
Ministério Público antecipava uma posição acerca da possibilidade de que proprietários de
títulos válidos fossem indenizados:
“o art. 68 do ADCT já operou a transmissão da propriedade às
comunidades remanescentes de quilombos, sendo desnecessária a
desapropriação prévia das áreas tituladas em nome de pessoas ou
entidades privadas. Nestas hipóteses caberá, no entanto, o pagamento
de indenização ao antigo proprietário privado, quando for o caso”
(Carta de Florianópolis, 2001).
Essa compreensão do direito à propriedade como direito originário é um dos pontos
de encontro entre a normatização da política quilombola e os termos já consagrados pela
política indigenista, ambas entendidas como política de reconhecimento étnico. Em parte, a
compreensão do direito à terra pelos quilombolas como direito originário se deve ao fato de
que o modelo indigenista foi uma das matrizes interpretativas do artigo 68-ADCT.
Em 1995 o Senado Federal apresentou um projeto para a regulamentação do artigo
constitucional (Projeto de Lei n. 129 do Senado Federal, de 1995). Este projeto, “discutido
entre deputados, senadores e, excepcionalmente, entre estes e o movimento negro
organizado das cidades e do campo, o Ministério Público Federal e organizações da
sociedade civil” (Arruti, op. cit., pág. 22), assumiu e adensou os elementos contidos nos
documentos anteriores dos órgãos executivos. Em primeiro lugar, porque ratificou o termo
consagrado pelos documentos anteriores, comunidades remanescentes dos quilombos. Em
segundo lugar, porque discriminou como terras sobre as quais recairiam tais direitos os
territórios que, embora não fossem ocupados por estas comunidades quando da entrada em
vigor da Constituição, são "devidamente reconhecidos por seus usos, costumes e tradições”
ou se tratam de áreas "detentoras de recursos ambientais necessários à conservação dos
usos, costumes e tradições", reafirmando a compreensão do direito coletivo das
comunidades e destas como grupos étnicos que compartilham suas terras em regime de uso
57
comum. Além destes, reconheceu, no mesmo artigo, o direito de propriedade sobre “os
sítios com reminiscências históricas dos quilombos”, rompendo com a lógica perversa da
Constituição Federal, que distinguia a questão fundiária da do patrimônio histórico.
A conceituação das comunidades remanescentes de quilombos como grupos étnicos
com identidade auto-atribuída, conforme definido nos debates da ABA, é explicitada no
artigo 2º do texto, onde se define o sujeito do direito: “grupos étnicos de preponderância
negra, encontráveis em todo o território nacional, identificáveis segundo categoria de
autodefinição habitualmente designados por ‘Terras de Preto’, ‘Comunidades Negras
Rurais’, ‘Mocambos’ ou ‘Quilombos’”. Outro elemento do projeto que reafirmava o caráter
coletivo do direito dizia respeito à legitimidade conferida ao Ministério Público para
“propor ação que vise ao reconhecimento de comunidades como remanescentes de
quilombos”, uma vez que é atribuição do MPF, segundo a própria Constituição Federal,
zelar pela garantia dos interesses coletivos.
Uma das grandes novidades da década de 1990, cujo marco legal foi a Constituição
de 1988, foi a conversão do Ministério Público em ator político relevante na consolidação
dos direitos transidividuais e na consecução de políticas públicas (Arantes, 2002; Castilho e
Sadeck, 1988; Kerche, 1999; Werneck Vianna e Burgos, 2002 e 2005), fundamentalmente
por conta de duas mudanças: por um lado, a alteração de seu perfil institucional, sobretudo
no que tange à autonomia funcional em relação ao Executivo; por outro lado, a ampliação
de suas atribuições, para além da persecução penal, na titularidade da defesa dos direitos
indisponíveis. Assim, é nessa dupla configuração constitucional do Ministério Público que
reside a explicação, no plano formal, para o papel assumido pela instituição, ampliada tanto
em seus poderes quanto em seu papel, já que “se o Ministério Público não tivesse a
autonomia (...) ações civis contra o governo seriam praticamente inviáveis. Por outro lado,
se o Ministério Público não fosse o agente privilegiado para acionar a Justiça através do
poderoso mecanismo da ação civil pública, mesmo com a independência que goza hoje, seu
campo de influência político seria restrito à ação penal e, consequentemente, limitado”
(Kerche, op. cit., pág. 64).
58
Este novo papel institucional e político, e mesmo as alterações constitucionais e
legais que o promoveram, se deve àquilo que Arantes chamou de voluntarismo do
Ministério Público: as mudanças no plano legal foram resultado da eficiência do lobby da
Confederação Nacional do Ministério Público, que apresentou uma proposta na forma de
texto legal (Kerche, op. cit.), e das pressões dos membros do MP junto aos constituintes, a
partir do argumento de que esta era uma demanda da própria sociedade, mais do que da
instituição (Arantes, op. cit.). A inserção do Ministério Público no Projeto de Lei para
regulação do artigo 68-ADCT se deveu, também, à intensa participação de seus quadros
ligados à Sexta Câmara nos debates em torno da questão quilombola. Como veremos,
embora o texto do projeto não tenha sido aprovado, o Ministério Público Federal vem
cumprindo papel fundamental na garantia dos direitos das comunidades remanescentes de
quilombos, sobretudo na titularidade da ação civil pública.
os governos e seus quilombos
Em 2001, o artigo 68-ADCT foi regulamentado, não por uma iniciativa do
Legislativo, mas por um decreto do Poder Executivo (nº 3912, de 10 de setembro de 2001).
O espírito deste decreto, que acompanhará todo o período do governo de Fernando
Henrique Cardoso, já tinha sido antecipado dois anos antes, quando uma Medida Provisória
incorporou às demais atribuições do Ministério da Cultura o cumprimento do disposto no
artigo 68-ADCT. No ano seguinte, a Portaria Ministerial número 447 delegou a
competência pela titulação das terras de quilombo à Fundação Cultural Palmares,
deslegitimando a atuação do INCRA. Mais tarde, em 2001, a subchefia para Assuntos
Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República, através do parecer SAJ número 1.490,
consagrou a interpretação de que a Carta Magna teria apenas reconhecido o direito
preexistente dos remanescentes das comunidades dos quilombos, tendo a norma eficácia
declaratória, cumprindo a dívida histórica com as comunidades negras rurais.
A compreensão do direito à terra quilombola como originário, entretanto, vinculava-
se a um princípio de interpretação restritiva do dispositivo constitucional. A garantia desse
direito seria, nesta interpretação, decorrência da posse prolongada, pacífica e com animus
domini, já que essas pessoas ocupariam as terras desde o período imperial, caracterizando,
59
segundo o parecer, a situação de posse inequívoca, mantida desde há muito tempo. Logo,
seria inaceitável qualquer atuação do Poder Público no sentido de desapropriar terras
particulares com a pretensão de dar cumprimento ao artigo 68-ADCT, concluindo-se pela
incompetência tanto do Ministério do Desenvolvimento Agrário quanto do INCRA para
essas ações de desapropriação.
Importante notar que o parecer da Casa Civil está datado do mesmo dia da
promulgação do decreto presidencial 3.912, 10 de setembro de 2001, cujo objetivo era
regulamentar “as disposições relativas ao processo administrativo para identificação dos
remanescentes das comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a
demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles ocupadas”. As
conclusões alcançadas a partir da consulta à SAJ são corroboradas pelo decreto
subseqüente. O parecer da SAJ adiciona à interpretação de direito originário a
caracterização das terras a serem tituladas como sendo aquelas comprovadamente
ocupadas, continuamente, de forma pacífica e com intenção de dono, entre 1888 e 1988. O
decreto, por sua vez, consagrava o retrocesso relativamente à recepção oficial da
ressemantização, tanto na conceituação individualizada do sujeito do direito - pelo retorno
ao uso do termo remanescentes das comunidades de quilombos - quanto na caracterização
das terras a serem tituladas: o texto tratava daquelas terras que “eram ocupadas por
quilombos em 1888” e “estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos em 5 de outubro de 1988”, retornando-se assim à conceituação historicizante ao
mesmo tempo em que se restringe a titulação às terras usadas para habitação, excluindo-se
aquelas relativas à reprodução material e simbólica dos grupos. Além disso, estava
descaracterizada a política de reconhecimento étnico, ganhando o artigo 68-ADCT apenas o
caráter de reparação, já que optava pelo racial sobre o étnico.
No ano seguinte, terminada a tramitação do projeto de lei do Senado Federal, este
seria vetado integralmente pelo Executivo, “por inconstitucionalidade e contrariedade ao
interesse público” (Despachos do Presidente da República - Mensagem n. 370, de 13 de
maio de 2002). A explicitação dos motivos do veto, a partir de pareceres dos Ministérios da
Cultura e da Justiça, sintetiza o embate de posições que se desenhava já nas interpretações
anteriores. Após argumentar contrariedade ao interesse público e “retrocesso legislativo”
60
em razão de “já haver decreto regulando” o artigo 68-ADCT, o primeiro argumento em prol
da inconstitucionalidade é a atribuição, por parte do projeto, do direito de propriedade às
comunidades remanescentes e não aos remanescentes das comunidades. A posição, que
podia ser presumida pela análise da Medida Provisória e do Decreto anteriores, fica agora
explicitada:
(...) esse dispositivo constitucional confere o direito de propriedade "aos
remanescentes das comunidades dos quilombos" e não "às comunidades
remanescentes dos quilombos”, como estabelecido no art. 1o do
autógrafo, que está, na verdade, a transferir o direito de propriedade
assegurado constitucionalmente aos remanescentes para a comunidade da
qual fazem parte. Vale dizer: o direito individual dos remanescentes fica
transformado, por força do projeto, em direito coletivo da comunidade.
Sem dúvida, ao assim preceituar, o art. 1o do projeto contraria o art. 68
do ADCT e, por isso, é inconstitucional.
Ou, como mais bem expresso em outro trecho,
De fato, a emissão dos títulos de propriedade, que é, por imposição do art.
68 do ADCT, dever do Estado, deve favorecer, ainda segundo esse mesmo
artigo constitucional, os remanescentes das comunidades dos quilombos e
não as comunidades remanescentes dos quilombos. Repita-se: o direito de
propriedade foi reconhecido pela Constituição àqueles e não a estas.
O argumento pela inconstitucionalidade da postulação da ação do Ministério
Público Federal vai pelo mesmo caminho: o MPF tem legitimidade para defender direitos
difusos e coletivos e direitos individuais indisponíveis. O direito à terra dos remanescentes
das comunidades, entretanto, era, no entendimento do Ministério da Justiça, direito
individual disponível, escapando da alçada daquele órgão.
Poder-se-ia argumentar que, em uma leitura estreita da lei, o projeto era, de fato,
inconstitucional e que uma interpretação “mais fiel” ao artigo levaria à consideração do
direito como individual (dos “remanescentes das comunidades dos quilombos”) e do objeto
61
a ser tutelado como terreno efetivamente ocupado (“que estejam ocupando suas terras”).
Entretanto, estamos aqui diante das disputas travadas entre os projetos políticos dos agentes
da comunidade aberta de intérpretes. Assim, o que a literatura antropológica chama de
ressemantização pode ser entendido como processo de interpretação constitucional que,
ainda que não tivesse sido ratificado em norma ordinária ou em decisão judicial, fora
consagrado pelo seu uso tanto na militância na sociedade civil quanto em algumas decisões
de órgãos do governo.
Entretanto, não poderíamos considerar a leitura expressa pelo veto presidencial, por
outro lado, como uma leitura fiel à “letra da lei”, ou à letra da norma constitucional. Como
se poderá perceber, o veto é bastante criativo ao considerar quais seriam os grupos
depositários do direito garantido pelo artigo 68-ADCT, retirando deste a compreensão de
tal direito se estendia apenas aos grupos assentados até 1888, ano da abolição:
Com efeito, no art. 68 do ADCT a expressão "remanescentes das
comunidades dos quilombos" tem um significado mais reduzido do que,
a princípio, se poderia imaginar. Em realidade, o dispositivo
contemplou apenas aqueles remanescentes "que estejam ocupando suas
terras" no momento da promulgação da Constituição de 1988. Foram
excluídos, portanto, os remanescentes que, em 5 de outubro de 1988,
não mais ocupavam as terras que até a abolição da escravidão
formavam aquelas comunidades. Conclui-se, portanto, que o
constituinte de 1988 visou a beneficiar tão-somente os moradores dos
quilombos que viviam, até 1888, nas terras sobre as quais estavam
localizadas aquelas comunidades, e que continuaram a ocupá-las, ou os
seus remanescentes, após o citado ano até 5 de outubro de 1988. (grifo
meu)
O veto, consoante ao decreto que lhe era anterior, não apenas limita os grupos a
serem atingidos, mas a extensão das terras a serem tituladas, argumentando que a
Constituição prevê apenas o tombamento dos sítios históricos, e não sua titulação, como
previa o projeto de lei. Reacende, assim, a dicotomização dos direitos fundiários e culturais,
62
garantindo o último pelo seu desacoplamento do primeiro. No que diz respeito à exigência
de uma ocupação que remonte à época da escravidão, cabe lembrar que o MPF já julgara tal
interpretação inconstitucional quando da Medida Provisória.
Finalmente, quanto aos critérios de caracterização dos remanescentes, o veto julgava
inconstitucional a definição de quilombos no projeto de lei a partir de categorias de
autodefinição como “Terras de Preto” ou “Mocambos”. Curiosamente, em 1998, uma
portaria do Ministério da Cultura, parecerista no veto, falava de “comunidades
remanescentes de quilombos, de modo geral, também autodenominadas, ‘Terras de Preto’,
‘Comunidades Negras’, ‘Mocambos’, ‘Quilombos’, dentre outras denominações
congêneres”, como no projeto de lei (Portaria nº 8, de 23 de abril de 1998).
Por último, é de se considerar o fato de que, entre os anos de 2002 e 2003, vinte
territórios foram titulados por governos estaduais em nome de associações quilombolas,
descumprindo as determinações do decreto então vigente.
Em 2003, com a mudança do governo Fernando Henrique Cardoso para o de Luiz
Inácio Lula da Silva, novamente em função de uma articulação envolvendo Governo
Federal, organizações da sociedade civil e Ministério Público Federal, um novo decreto foi
promulgado, revogando o anterior (decreto nº 4887, de 20 de novembro de 2003). Nele,
embora se mantenha o termo remanescentes das comunidades dos quilombos, estes são
entendidos como os “grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com
trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”, sendo
atestada sua caracterização “mediante autodefinição da própria comunidade” e
considerando-se terras ocupadas “as utilizadas para a garantia de sua reprodução física,
social, econômica e cultural”. Retorna, portanto, aos termos da ressemantização, formaliza
a definição de comunidades remanescentes de quilombos como grupo étnico e estabelece
como principal critério para o reconhecimento de uma comunidade quilombola a auto-
atribuição, o que significa que o reconhecimento não está mais submetido à produção de
laudos antropológicos, como até então.
63
O decreto 4887 foi apenas uma das peças legislativas promulgadas pelo governo
Lula na intenção de programar uma efetiva política de reconhecimento étnico. Em abril do
ano seguinte, 2004, o Decreto nº 5.051 promulgou a Convenção nº 169 da OIT, dando-lhe o
caráter de legislação pátria. Juntos, o decreto nº. 4887 e a ratificação da Convenção nº. 169
permitiram a inclusão das comunidades remanescentes de quilombo no plano de uma
política internacional de proteção das minorias étnicas, já que o decreto nº. 4887 define
comunidades quilombolas como grupo étnico, enquanto a Convenção 169 aproxima os
conceitos de grupo étnico e povos tribais. Assim, a partir do conceito de grupo étnico, os
direitos das comunidades remanescentes de quilombos passam a ser protegidos – e mesmo
ampliados – pela Convenção 169 da OIT.
O decreto nº 4887 transferia de volta para o INCRA a competência pela
“identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas
pelos remanescentes das comunidades de quilombos”. A transferência da competência da
FCP para o INCRA, do Ministério da Cultura para o Ministério do Desenvolvimento
Agrário, mais do que marcar a passagem do trato da questão quilombola como política
cultural para o plano fundiário, como manifesto a um primeiro olhar, consolida seu
entendimento como política de reconhecimento étnico. Não apenas por se tratar de uma
mudança promovida por um governo que tem se caracterizado pela ênfase nas políticas
étnicas, mas, fundamentalmente, porque o reconhecimento da territorialidade própria é
elemento constitutivo da identidade étnica das comunidades quilombolas. De fato, a
concepção comum de uma territorialidade étnica é o que define a maioria das comunidades
remanescentes de quilombo, mais que quaisquer traços culturais.
O ponto mais polêmico do Decreto nº 4887 é, sem dúvida, a previsão de
desapropriação com indenização, em casos de existência de “títulos de domínio particular
não invalidados por nulidade” (art. 13). Em primeiro lugar porque ela contraria um dos
únicos pontos consensuais nas interpretações do artigo 68-ADCT, qual seja, o de que se
trata de direito originário, a exemplo dos direitos territoriais indígenas, anteriores a
qualquer outro direito de propriedade, não cabendo indenização a eventuais portadores de
títulos. Entretanto, nas articulações em torno do decreto nº 4887, a desapropriação foi
encampada como proposta, menos por conta das crenças ideológicas ou dos entendimentos
64
jurídicos dos que participavam das discussões, e mais como o resultado de um cálculo
pragmático, a partir da especulação acerca de possíveis reduções nos conflitos locais,
garantidas as indenizações dos proprietários.
As iniciativas no plano legislativo federal cessaram a partir do veto ao Projeto de
Lei do Senado. Diante da ausência de debates no Legislativo, e do baixo impacto das ações
judiciais na esfera pública, é ainda na atuação do Executivo que os significados do artigo
68-ADCT seriam formalizados, não mais apenas a partir de peças regulatórias internas aos
órgãos responsáveis pelo tema, mas através de decretos presidenciais. A leitura dos dois
decretos lança as bases para a discussão acerca do campo de disputas interpretativas que se
estabelece em torno do artigo 68-ADCT, já que definem duas posições, em torno das quais
os diversos agentes interessados se posicionarão nos anos seguintes.
a política quilombola, entre reconhecimento e redistribuição
Em 2004, o governo lançou o programa interministerial Brasil Quilombola, sob a
coordenação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR). Em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério da
Cultura. A partir da centralidade da idéia de “igualdade racial” nas iniciativas do governo
Lula, assume como finalidade “coordenar as ações governamentais para as comunidades
remanescentes de quilombos por meio de articulações transversais, setoriais e
interinstitucionais”. O programa define quatro eixos de ação: “regularização fundiária”,
“infra-estrutura e serviços”, o que significa ampliação da rede de serviços sociais,
“desenvolvimento econômico e social”, abarcando iniciativas relativas a sustentabilidade
econômica, cultural, social, política e ambiental, e “controle e participação social”,
incentivando a participação de representantes quilombolas nos fóruns de políticas públicas.
O rol de ações listadas envolve 17 ministérios e 5 secretarias: regularização
fundiária e mediação de conflitos; promoção de igualdade racial; incentivo à participação
de lideranças negras; desenvolvimento sustentável e implementação de pacotes de políticas
sociais; “ações culturais”, com ênfase em atividades de cunho artístico; segurança
alimentar; extensão para a clientela quilombola de programas sociais como o Bolsa
Família, o Programa de Erradicação do Trabalho infantil, Saúde de Família, Luz para
65
Todos, etc.; políticas de geração de renda e políticas com ênfase em gênero; serviços de
natureza jurídica, como Balcão de Direitos e Registro Civil, além de iniciativas em
educação, meio ambiente, esportes e previdência social.
É na distribuição do “Orçamento Quilombola” que percebemos de que modo se dá a
partilha de recursos entre ações de natureza cultural e aquelas de cunho social. Dos
R$51.778.273,00 previstos para 2004, R$14.845.486,00 foram destinados à “Gestão de
Política de Promoção da Igualdade Racial”, destinando-se R$13.693.486,00 para
“publicidade de utilidade pública” e “qualificação de Afro-descendentes em gestão
pública”. R$16.426.549,00 foram destinado à rubrica “Cultura Afro-Brasileira”, para
implantação de Unidades do Centro Nacional de Cidadania Negra, construção do Centro
Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra (nenhum dos dois programas foi
implementado no ano de 2005), promoção de “intercâmbio de eventos culturais afro-
brasileiros”, preservação de bens culturais afro-brasileiros materiais e imateriais e outras
políticas do gênero. Assim, 43,8% do Orçamento Quilombola do ano de 2004 estavam
destinados a políticas que podemos caracterizar como culturais, com ênfase na construção
de imagens positivas em torno das tradições afro-brasileiras. Por outro lado, os outros
R$21.585.296,00 do orçamento estavam destinados a políticas de caráter social, com forte
ênfase na titulação de territórios quilombolas.
Tal formulação das políticas públicas aponta para a contraposição entre as
demandas por reconhecimento e por redistribuição, referentes a duas formas distintas de
injustiça, as culturais e as econômicas, portanto a duas concepções de direitos, à diferença e
à igualdade (Fraser, 2001, 2007). Tal distinção de políticas e de direitos estaria referida a
uma mudança de paradigmas, dos interesses de classe como motor privilegiado para a
mobilização política para as diferenças culturais como mobilizadoras de identidades.
Segundo Nancy Fraser, esta mudança na gramática política seria resultado da falência do
projeto de igualdade material assumido pelo Estado de bem-estar frente à selvageria do
livre-mercado, resultando na afirmação de uma política de caráter culturalista, justo quando
as circunstâncias requeriam redistribuição (2007).
66
Honneth, em contrapartida, atribui a passagem das políticas da igualdade para as
políticas da diferença como resultado do acréscimo na sensibilidade moral dos sujeitos
políticos (Honneth, 2007). Neste sentido, as lutas pela igualdade no século XIX e as
políticas de corte social na primeira metade do século XX devem também ser entendidas
como lutas pelo reconhecimento, a apontar para o avanço histórico do fundamento da
comunidade ética, referindo-se a demandas distintas e diferencialmente postas no tempo –
aquelas relativas à igual consideração dos sujeitos de direitos e aquelas referentes às formas
particulares de ser no mundo.
Para Fraser, entretanto, injustiça cultural e injustiça econômica encontram-se
imbricadas na realidade social, reforçando-se mutuamente, o que demanda a integração de
políticas de reconhecimento e redistribuição (2001). Esta imbricação, para a autora, impõe
um dilema, na medida em que os dois tipos de injustiça exigiriam remédios cujas
orientações podem ser contraditórias. Sua análise está empiricamente ancorada em grupos
dilemáticos, nomeadamente minorias raciais e de gênero, exemplares do caráter integrado
das demandas por redistribuição e reconhecimento. Em tais casos, políticas redistributivas
respondem à percepção da divisão sexual e racial do trabalho como forma de exclusão
econômica, enquanto políticas de reconhecimento partem da afirmação de que tanto
mulheres quanto negros sofrem outro tipo de opressão, no qual elementos culturalmente
considerados intrínsecos a estes grupos são avaliados depreciativamente.
O problema da abordagem de Fraser está justamente na sua tentativa de resolução
do dilema, combinando a dicotomia redistribuição-reconhecimento com outra, relativa à
forma como se articula a solução aos desafios propostos por cada uma das duas demandas.
Propõe uma tipologia composta por quatro modelos de políticas, produzida pelo
cruzamento entre as duas dicotomias. Reconhecimento afirmativo repara o desrespeito
reforçando significados positivos para as identidades desvalorizadas, enquanto
reconhecimento transformativo pretende reparar o desrespeito desconstruindo as
diferenças entre os grupos. Do mesmo modo, redistribuição afirmativa está associada a
políticas de bem-estar, no qual se pretende dirimir desigualdades sem alterar a estrutura
67
econômica, enquanto redistribuição transformativa, de caráter socialista27, está vinculada
à reestruturação das relações de produção. Segundo Fraser, é o par de políticas
transformativas de redistribuição e reconhecimento o único capaz de escapar do dilema
apresentado. Práticas de redistribuição transformativas não ferem o ideal do
reconhecimento universalista, uma vez que pretenderiam desmontar os critérios de raça ou
gênero como elementos estruturais da divisão social do trabalho, combinando tais práticas
com políticas transformativas de reconhecimento, que consistiriam na desconstrução das
diferenças culturais e valorativas entre mulheres e homens, brancos e negros.
A contraposição à solução apontada pela autora parte da percepção de que a
proposta de remédios transformativos de reconhecimento está fundada na negação das
particularidades culturais. Políticas transformativas são contrárias à própria lógica do
reconhecimento cultural, constituindo o tipo de remédio característico do paradigma da
redistribuição. Ao propor soluções transformativas de reconhecimento, Fraser pretende
negar as construções culturais sobre as quais as identidades se assentam, como se fosse
possível, através de uma política, fazer tabula rasa da cultura e refundar o mundo social28.
Tal modelo de política reduz o cultural ao econômico, na medida em que a solução
socialismo/desconstrução das diferenças reassume o primado da classe, partindo da
primazia da redistribuição sobre o reconhecimento.
A crítica de Fraser ao fato de que os remédios econômicos afirmativos, ao
produzirem uma clientela perpétua, criam uma diferenciação estigmatizante é mais
adequada aos casos mais próximos do tipo puro da redistribuição, como classe social. No
caso dos grupos em que estejam em jogo diferenças econômicas fundadas na dimensão
cultural, como no caso dos negros e das mulheres, o não reconhecimento é o pressuposto da
subordinação econômica, e não o seu produto. As políticas de cotas, neste sentido, são
afirmativas, mas não são puramente redistributivas, apresentando também um caráter de
reconhecimento. Além disso, seria um erro colocar gênero e raça em condições políticas e
27 “Socialismo” é usado, por Fraser, como referência à idéia-chave de reestruturação das relações de produção, mais do que a um modelo histórico ou ideologicamente referido (Matos, op. cit.). 28 A própria autora admite que em alguns casos essa desconstrução da identidade não é possível, pois “algumas pessoas com auto-respeito não podem agir de outro modo senão afirmando agressivamente e abraçando a ‘raça’ enquanto uma fonte de orgulho” (Fraser, 2001, pág. 279).
68
epistemológicas similares. O feminismo, como a própria crítica de Susan Wolf a Taylor
apontou, parece pouco vocacionado para o reconhecimento, na medida em que permanece
centrado no questionamento dos critérios de distribuição.
É possível reconciliar a perspectiva do redistributivismo com as políticas de
reconhecimento, tanto no campo teórico quanto nas práticas. Dworkin aponta para tal
possibilidade, ao resgatar o ideal da igualdade distributiva como materialização econômica
do ideal abstrato da igualdade de consideração do destino de todos, “virtude soberana” de
todo governo (Dworkin, 2005). Ser “tratado como um igual”, na proposta do igualitarismo
liberal dworkiniano, consiste em ser tratado com o mesmo respeito, o que permite ao autor
construir uma perspectiva que fuja à tensão entre a igualdade distributiva de viés socialista
e a igualdade jurídica liberal, do mesmo modo que nos permite escapar da dicotomia
redistribuição/reconhecimento. Esta versão do igualitarismo liberal não adere à proposta de
distribuição equânime de riquezas, posto que opera com a valorização das escolhas
individuais; entretanto, não atribui a estas escolhas condição de causalidade única das
diferenças de trajetórias, combinando com elas a consideração das diferentes
circunstâncias. Assim, ao considerar as circunstâncias como causas não desejáveis das
diferenças de trajetórias, a teoria dworkiniana nos levará a avalizar políticas cujo objetivo
seja tornar tais circunstâncias – quaisquer que sejam elas – objeto de correção. Tudo isto
para que apenas o primado da escolha interfira na produção de diferentes padrões de
aquisição de recursos, a produzir diferentes concepções pessoais de bem-estar.
Nesta chave, não apenas a justiça distributiva não é antagônica aos ideais de
igualdade e liberdade, como também não se opõe a reconhecimento. Políticas
redistributivas deverão ser aplicadas levando em consideração as circunstâncias que
interfiram na distribuição igualitária de recursos no mercado. Esta perspectiva desvincula
justiça distributiva do viés de classe: se tais circunstâncias passam por avaliações sociais
negativas relativamente a cor, gênero, religião ou nacionalidade, então são essas as
variáveis importantes nas políticas de redistribuição. A política racial nas universidades de
elite americanas constitui, para Dworkin, um exemplo bem-sucedido de política de caráter
69
racial, com resultados tanto nos padrões de redistribuição quanto nas formas de
reconhecimento intersubjetivo29.
No caso brasileiro, os direitos relativos às diferenças foram afirmados juntamente
com os demais direitos coletivos, não na crise do welfare state, a partir da incompletude
dos direitos sociais, mas na redemocratização pós-ditadura, somando-se às demandas por
direitos civis e políticos e a uma rearticulação dos direitos sociais. Desta forma, entre nós, a
década de 1980 constituiu oportunidade política de manifestações de diversas ordens, desde
os tipicamente redistributivistas, como sindicatos e movimentos ligados aos camponeses
sem terra, até os típicos do reconhecimento, como movimentos raciais e de gênero, e que
foram consolidados e sistematizados na Constituição. Tal combinação de reconhecimento e
redistribuição se manifestará nas formulações das políticas étnicas, como veremos, não
apenas a partir do suposto de que a afirmação de determinadas identidades não é factível
sem que se garantam condições mínimas de vida digna, mas também na medida em que a
afirmação dos direitos étnicos demanda, em alguns casos, a realocação de recursos
produtivos, como a terra.
A singularidade do caso das demandas raciais no Brasil pode sugerir um modelo
ternário, ao invés do binário proposto pela autora: políticas afirmativas de reconhecimento
em resposta à dominação cultural branca/europocêntrica; políticas redistributivas
transformativas, no que a desigualdade tem de razão meramente econômica; e, na medida
em que negros pobres têm condições sócio-econômicas que são subproduto das relações
raciais, tratando-se de injustiças culturais em formato econômico, políticas de redistribuição
afirmativa. O Programa Brasil Quilombola, neste sentido, aponta para a possibilidade de
políticas de reconhecimento das duas naturezas, afirmativas no que diz respeito aos
impactos desejados na auto-imagem e na imagem pública da população negra, ou na
29 Dworkin legitima teoricamente as ações afirmativas, para então legitimá-las do ponto de vista da razão política. A partir da avaliação de um criterioso estudo feito sobre uma base de dados de 28 faculdades e universidades americanas que aplicaram políticas raciais nos últimos 30 anos, argumenta que as ações afirmativas funcionam: elas efetivamente aumentam o número de estudantes universitários negros; não constituem desperdício de oportunidades com uma clientela incapaz; acompanhadas de uma efetiva política de incentivos financeiros, ampliam as chances de sucesso de sua clientela; produzem um grau alto de satisfação; produzem profissionais negros mais bem-sucedidos; aumentam o número de negros cultos nos papéis de lideranças políticas; ajudam a dissolver estereótipos, garantindo a diversidade racial; geram apoio dos não-atingidos; produzem uma auto-imagem positiva no público-alvo (Dworkin, 2005).
70
promoção de manifestações culturais e políticas de preservação de patrimônio, e
transformativas no que diz respeito à distribuição de bens e recursos, inclusive e
principalmente a terra.
A imbricação entre reconhecimento e redistribuição é marcante na definição dos
contornos da política quilombola no Brasil. Políticas quilombolas apresentam, como vimos,
uma natureza híbrida, combinando não apenas redistribuição e reconhecimento como
também confundindo o étnico e o cultural. Objeto de constantes disputas e ataques, com um
farto mercado de significados em torno dos seus termos definidores, a questão quilombola
encontra-se na fronteira entre raça, cultura, etnia e classe. Se os critérios legais para
definição de comunidade remanescente de quilombo a definem como grupo étnico, a
clientela de tais políticas apresenta um inegável viés de classe: trata-se de campesinato
pobre, via de regra vivendo situações de privação e violência, quase todas elas relativas a
práticas expropriatórias, organizando suas demandas em contextos de perigo. Além disso,
apesar da definição formal como grupo étnico, tais identidades ainda estão vinculados aos
fortes significados em torno do conceito de raça, sobretudo em uma “afinidade eletiva”
entre negritude e cultura (Arruti, op. cit.), claramente perceptível na definição das políticas.
Assim, se na interpretação ressemantizada do artigo constitucional o étnico se
afirma no afastamento tanto do cultural, relativo a traços verificáveis, quanto do racial, no
que faz referência a critérios biologizantes, na institucionalização das políticas o étnico
oscilará entre o cultural e o agrário, o que aponta para ambivalência das políticas e de seus
sujeitos, entre as demandas de reconhecimento e redistribuição. As políticas de
reconhecimento ganham contornos agrários, no Brasil, não apenas na inclusão dos
remanescentes de quilombo, mas também a partir da afirmação das comunidades
tradicionais como sujeitos de direitos, na criação, em fevereiro de 2007, da Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
(PNPCT), cuja promoção passa a ser da Comissão Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), criada no ano anterior.
É de se ressaltar, entretanto, o caráter sistêmico das definições de tais políticas: o
PNPCT conceitua povos e comunidades tradicionais como “grupos culturalmente
71
diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização
social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição” (artigo 3º); como grupo étnico,
portanto30. Assim como as interpretações em torno da política quilombola se deram por
homologia ao campo indigenista, a definição legal de povos e populações tradicionais
assumiu o paradigma étnico produzido pela ressemantização do Artigo 68 do ADCT.
Na medida mesmo em que a reprodução dos grupos étnicos exige tanto a garantia de
condições de sustentabilidade quanto a preservação dos modos tradicionais de organização
social, o conceito de etnia opera, no campo das políticas, como sintetizador das demandas
por reconhecimento e redistribuição. A terra, nesta interpretação ressemantizada de
quilombo, é elemento que traz consigo esta duplicidade: constitui a garantia fundamental de
reprodução material do grupo, espaço de produção, ao tempo em que opera como suporte
material para a produção simbólica da territorialidade.
30 O conceito de população tradicional corresponde à articulação, no plano das políticas ambientais, de demandas dos grupos étnicos e a necessidade de conservação dos recursos naturais. Estende a perspectiva do reconhecimento, entretanto, para além de índios e quilombolas, abarcando populações ribeirinhas, caiçaras, populações de fundo de pasto, seringueiros, etc., diante da percepção da superposição das unidades de conservação e dos territórios tradicionais. Trata-se de uma articulação do conceito de grupo étnico da perspectiva ambientalista – aliando reconhecimento (que significa aqui tanto respeito às formas locais quanto participação nas políticas) e conservação.
72
Capítulo 3 – O Quilombo em Disputa: a produção pública do dissenso.
Apesar das vozes dissonantes em relação à definição ressemantizada de quilombo
terem se manifestado desde o nascedouro dos debates institucionais em torno do tema, foi
apenas a partir da formulação de uma política nacional de garantia dos direitos quilombolas
que se pode perceber a instituição de um dissenso público acerca das definições de
comunidade e terra de quilombo. Essa produção pública do dissenso apontou para a divisão
do campo interpretativo do artigo 68-ADCT em dois pólos, que chamarei aqui de pólos da
ressemantização e da dicionarização do conceito de quilombo, a partir dos quais os atores
sociais envolvidos se movimentam.
as disputas interpretativas
Seja na versão marxiana, na qual o Estado é a transcendência de princípios da
moralidade e do direito que são constituídos pela comunidade política (Marx, 2005), seja na
versão durkheimiana, na qual a produção ético-jurídica do Estado oferece um grau de
universalização que deve ser conjugado à vida moral particular dos grupos (Durkheim,
2002), a sociologia clássica do direito já apresentava elementos para a compreensão do
papel dos grupos sociais no processo de produção, imposição e interpretação do direito e
das formas como tais construções são legitimadas pelo aparelho jurídico-político do Estado.
A leitura do jovem Marx, particularmente no que nos remete à tensão entre as garantias
constitucionais como acúmulos racionais do passado e o exercício da vontade dos membros
da comunidade política, oferece o mote para uma teoria da vontade popular como
procedimento, como apresentada por Jürgen Habermas (2005).
Se, para Habermas, o principal legado da Revolução Francesa é a mentalidade
política fundada na relação entre a autodeterminação do social como princípio de
construção do sistema jurídico e a razão como seu princípio de organização, importa pensar
de que modo essa dinâmica se operacionaliza, a combinar o grau de institucionalização do
direito com uma cultura política fundada em um pluralismo jurídico que reedita a
percepção de uma revolução permanente. A solução habermasiana para o conflito moderno
73
entre razão e vontade condiciona a democracia à formação de uma esfera pública
discursiva, resolvendo a antinomia a partir da afirmação de uma prática política
comunicativa. A mediação entre a formação da opinião de todos e a formação da vontade
da maioria constitui a possibilidade de que o sistema de direito se afirme como construto
racionalmente motivado, mas uma racionalidade de natureza comunicativa, a proteger os
direitos constitucionais tanto de possíveis assédios da vontade majoritária quanto de
normatizações cristalizadoras. Este conceito procedimental de democracia aponta para a
“equïprocedência” entre autonomia privada, entendida como condição de liberdade, e
autonomia pública, entendida como a capacidade dos sujeitos de produzir entendimentos
consolidados no direito (2002, pág. 234).
A crítica de Habermas à proposta comunitarista para políticas de reconhecimento
parte do pressuposto de que ela oferece ameaças à autonomia privada, permitindo
intervenções normalizadoras e estigmatizantes por parte do direito, enquanto o liberalismo,
centrado nos direitos individuais, não daria conta da autonomia pública. Neste debate,
Habermas oferece uma saída pelo procedimentalismo: uma compreensão do processo
democrático como interdependência das autonomias privada e pública, do cidadão e do
indivíduo, no qual o direito é considerado legítimo não apenas quando garante direitos
fundamentais, mas também quando é resultado de um consenso comunicativo, obtido
através de procedimentos democráticos.
A “questão dos direitos” é, para Habermas, a que realmente importa no que tange
papel do reconhecimento no Estado moderno, já que as políticas de reconhecimento,
demandadas a partir dos movimentos, deverão se configurar juridicamente, a partir de um
conjunto de “pressuposições normativas” próprias do sistema jurídico. Uma teoria dos
direitos corretamente entendida, segundo o autor, exige uma política de reconhecimento
que proteja a integridade dos indivíduos nos contextos formadores de identidades
particulares, constituindo os direitos coletivos atualizações no sistema de direitos
produzidas a partir dos movimentos sociais.
No modelo procedimentalista, a produção do direito está aberta às influencias dos
objetivos políticos da sociedade, sejam aqueles mais genéricos, sejam os de uma
74
coletividade em particular. A partir das lutas coletivas, tais objetivos manifestam-se em
decisões políticas que, traduzidas pelas decisões legislativas, operam a atualização do
sistema jurídico. O que se destaca, na batalha, é a possibilidade de participação de toda a
comunidade política nos procedimentos democráticos. A idéia das políticas de
reconhecimento como atualizações do direito, e não como resultado de um auto-
entendimento ético-político dos cidadãos, no sentido de Taylor, não ignora que tais
atualizações precisam ser transpostas para o discurso do auto-entendimento, ao mesmo
tempo em que produz alterações neste mesmo auto-entendimento.
Não é, portanto, em qualquer expressão ética de “vida boa” que Habermas
encontrará o lastro das garantias constitucionais, mas na construção de procedimentos
democráticos de expressão da opinião e da vontade. Não há em Habermas uma teoria
moral, mas a expectativa de uma prática discursiva, destituída de qualquer moralidade.
Procedimentos, não conteúdos, criam as bases para uma teoria comunicativa do
reconhecimento, fundada na possibilidade de que organizações não-institucionalizadas
assediem e colonizem as instituições estatais. O papel democrático do direito, portanto, não
é expressar objetivos e interesses quaisquer, mas garantir procedimentos para afirmação das
diferenças, permitindo a disputa de projetos.
Neste sentido, o reconhecimento quilombola encontrará neste multiculturalismo
procedimentalista uma chave explicativa. Se, por um lado, o artigo 68 do ADCT da
Constituição Federal, que garante o direito territorial dos “remanescentes das comunidades
de quilombos”, abria espaço para disputas em torno de sua interpretação, por outro lado, a
versão consagrada das comunidades quilombolas como grupos étnicos dessubstancializou a
categoria constitucional de eventuais conteúdos culturais, fundados na verificação de
traços. O fundamento multiculturalista da Constituição Federal e dos dispositivos
internacionais ofereceu, desde o primeiro momento, uma gramática e um conjunto de
mecanismos a partir dos quais os grupos concretos puderam disputar o reconhecimento de
seus projetos políticos e estilos de vida, mais do que um conjunto de conteúdos fechados
reveladores de versões de vida boa.
75
No caso dos remanescentes de quilombo, como vimos, a conversão do dispositivo
constitucional em base para uma política de reconhecimento étnico dependeu
fundamentalmente de movimentos da comunidade política, considerada por Häberle
(1997), ao mesmo tempo, como uma comunidade aberta de intérpretes da Constituição, da
qual fazem parte não apenas os atores sociais vinculados ao Estado, mas todos os “cidadãos
e grupos”, entendidos como “agentes conformadores da ‘realidade constitucional’”. Neste
sentido, estão incluídos entre os intérpretes da Constituição desde a própria doutrina
constitucional, a Corte Constitucional, os juizes, o Legislativo e o Executivo, até os
requerentes e requeridos de um processo judicial, os outros participantes deste processo,
como peritos, grupos de pressão e “opinião pública” em geral. Esta afirmação significa, em
última instância, que todos aqueles que vivem uma norma (em alguns casos uma norma
constitucional) estão envolvidos, direta ou indiretamente, em sua interpretação, ou pelo
menos em uma pré-interpretação, cabendo ao analista avaliar de que modo esta pluralidade
interfere nas decisões dos intérpretes estatais.
Uma avaliação dos impactos de tais interpretações não prescinde da percepção de
que, apesar da crescente “democratização” da interpretação constitucional, o acesso aos
instrumentos políticos e discursivos para tal participação ainda são desigualmente
distribuídos. A comunidade de intérpretes não é livre expressão do poder constituinte, mas
o resultado das lutas entre grupos com capacidades distintas de articulação de recursos para
a implementação de uma norma. Portanto, embora do ponto de vista teórico possamos
considerar a afirmação de Häberle de que todo ato referido a uma norma é um ato
interpretativo que resulta em uma contribuição ao processo coletivo de construção do
direito, do ponto de vista das condições sociais somos obrigados a pensar as restrições à
abertura da comunidade de intérpretes.
Se a produção e interpretação das normas são resultantes dos embates dos grupos a
partir de seus interesses (Becker, 1977), por outro lado a interpretação do direito não pode
se sustentar em argumentos puramente pragmáticos – é preciso que se conformem a um
conjunto coerente de princípios. A “história natural” de produção (ou interpretação) de uma
norma revela o processo pelo qual aquele conjunto de orientações normativas difusas que
Becker denomina valores é diferencialmente agenciado pelos grupos, ou por seus
76
representantes, em um ato de iniciativa interessada. Neste processo, cada grupo agenciará
seus empresários morais, sujeitos que articulam os recursos políticos, econômicos e
discursivos disponíveis para criação, imposição e interpretação de uma norma jurídica. Os
embates de interesses, desta forma, se consubstanciam em debates argumentativos,
fundados em valores, que deverão ser articulados como coerentes com os princípios do
direito. O agente conformador da norma de Häberle (o juiz ou o legislador) é, neste sentido,
ele mesmo um empresário, embora também susceptível aos outros empresários envolvidos,
mas constitui aquele responsável por converter as disputas políticas para a linguagem
neutralizante do direito.
Os quilombos nos tribunais31
Embora as lutas interpretativas em torno do artigo 68-ADCT tenham encontrado na
política sua principal arena, desde o final da década de 1990 as demandas das comunidades
quilombolas vêm encontrando espaço de manifestação nas instituições do mundo do direito.
Boa parte das pesquisas recentes no campo da sociologia do direito tem partido do
pressuposto de que os processos de resolução de conflitos nas sociedades democráticas
contemporâneas devem ser pensados a partir do conceito de judicialização, entendida como
a recorrência do primado das decisões judiciais sobre temas da política e processos de
resolução de conflitos, em um processo de politização do direito.
O termo judicialização refere-se, segundo Tate & Valinder (1995), ao domínio dos
tribunais e dos juízes sobre a produção de políticas públicas, ou ainda à infusão dos
processos decisórios judiciais e dos procedimentos dos tribunais na arena política. Este
crescimento da atividade criativa dos juízes – e conseqüentemente de seu papel político –
não se deve, no diagnóstico dos autores, a qualquer pendor ativista do judiciário. Antes, a
razões externas à corporação, relativas ao caráter principiológico e programático do direito
na sociedade pós-welfare, a delegar ao juiz o papel de regulador dos direitos
constitucionais, conseqüentemente de policy maker. Dispositivos como o judicial review,
31 Os dados relativos às ações judiciais envolvendo comunidades quilombolas foram coligidos pela Comissão Pró-Índio de São Paulo, no âmbito do projeto “Ações Judiciais e Terras de Quilombo”, e estão disponíveis no endereço eletrônico www.cpisp.org.br/acoes/. Os dados referentes à comunidade de Marambaia foram obtidos em Arruti, 2001.
77
típicos dos países da common law, passam a ser adotados pelos países de tradição da civil
law, em uma aproximação das tradições jurídicas (Cappelletti, 1993). Além disso, a
existência de um contexto político democrático, a separação dos poderes, uma política de
direitos constitucionalmente garantida, a manifestação de grupos de interesse ou de
oposição, a ineficiência das instituições representativas e mesmo o exercício de delegação
intencional por parte das instituições majoritárias, nos casos em que a decisão implica altos
custos políticos e riscos de afetar o desempenho eleitoral, seriam fatores a conduzir os
tribunais a operarem como instâncias políticas (Tate & Valinder, op. cit.).
A hoje “robusta” democracia brasileira, apesar de constituir um “rico laboratório de
práticas e instituições representativas”, vive também, em alguma medida, uma crise de
representação política, em razão do abismo criado entre o mundo da opinião e o mundo da
vontade (Werneck Vianna e Burgos, 2005). Neste contexto, a sociedade civil brasileira tem
buscado outros canais de expressão de sua opinião, encontrando-o no Judiciário, no
caminho da representação funcional, criando uma “nova e efetiva arena para o exercício da
democracia brasileira”.
Tal invasão da esfera política pelo direito no Brasil não se deve também, segundo os
autores, a um voluntarismo dos juízes, “ainda sob forte influência do princípio da separação
dos Poderes e de uma adesão ao direito sob a forma de códigos” (Werneck Vianna,
Carvalho, Melo e Burgos, 1997, pág. 12), mas fundamentalmente ao ativismo legislativo da
década de 1990, seja na formulação de novos direitos coletivos, seja na criação de novos
instrumentos processuais, ou ainda na redefinição do papel de atores jurídicos como o
Ministério Público (Werneck Vianna e Burgos, 2005).
Os autores ressaltam, entretanto, que a judicialização opera de modo limitado, “em
registro seletivo”, e seus caminhos “não detêm, por si sós, o condão de democratizar o
Estado e as relações da dimensão sistêmica da economia com a cidadania”. Tais limites se
verificam não apenas em casos nos quais a composição jurídica é menos custosa a
determinados empreendimentos econômicos, mas também naqueles casos em que se
revelam os entraves ao acesso à justiça, ou mesmo ao conhecimento do potencial
democrático das vias do direito.
78
Na questão quilombola, a judicialização encontra o fenômeno da juridificação dos
conflitos agrários como entrave à sua realização como alternativa democrática. Apesar
disto, a federalização dos conflitos a partir da adesão à categoria constitucional, algumas
vezes a partir da mediação do Ministério Público Federal, tem constituído estratégia dos
grupos ameaçados e de suas assessorias, não apenas no sentido de que o litígio agora deverá
incorporar uma outra gramática, relativa aos direitos étnicos, mas no sentido mais prosaico
de que este movimento desloca os litigantes e o próprio litígio das arenas locais,
atravessadas por relações pessoais. Apesar dos entraves, o número de ações judiciais
envolvendo territórios quilombolas não é desprezível. A pesquisa da Comissão Pró-Índio
de São Paulo levantou, até agosto de 2007, 129 ações judiciais referentes a comunidades
quilombolas, estando 82 em curso32, 14 suspensas e 37 arquivadas. Das 82 ações
atualmente em curso, 62 transcorrem na Justiça Federal.
Das ações em curso, a Comissão Pró-Índio identificou 35 ações contrárias e 47
favoráveis aos interesses dos quilombolas. O principal instrumento jurídico de resistência
dos proprietários às garantias para os quilombos é a ação possessória33: dentre as 25
propostas, apenas duas foram impetradas por órgãos responsáveis pela titulação dos
territórios quilombolas (INCRA e FCP), tendo em vista a garantia dos interesses das
comunidades (nos estados do Rio Grande do Sul e do Pará). Das 23 ações restantes, 21
foram propostas por interesses particulares e duas pela União, todas com vistas à retirada
dos remanescentes de seus territórios34. Segundo a Comissão Pró-Índio de São Paulo, a
maioria das ações possessórias redundou em decisões desfavoráveis aos quilombolas. Este
instrumento jurídico opera a individualização dos conflitos, constituindo meio pelo qual o
campo jurídico descaracteriza o caráter coletivo e étnico da relação com a terra: das 23
possessórias contrárias aos quilombolas, 18 foram propostas contra membros das
32 Envolvendo 37 territórios quilombolas. Dentre as ações em curso, constam 25 Ações Possessórias, 17 Ações Civis Públicas, 10 Ações de Desapropriação, nove Mandados de Segurança, quatro Ações de Indenização, três Ações Discriminatórias, três Ações de Usucapião, duas Ações de Nulidade de Ato Administrativo, uma Ação de Reconhecimento de Domínio, uma Ação Anulatória, uma Ação Popular, uma ADIn e oito Ações Ordinárias de natureza diversa. 33 Há três tipos possíveis de ação possessória: a ação de reintegração de posse, instrumento usado quando a posse é esbulhada, a ação de manutenção de posse, em casos de turbação (quando o detentor da posse não dispõe de condições para seu pleno exercício) e o interdito proibitório, quando há ameaça à posse. 34 As duas ações possessórias movidas pela União dizem respeito às tentativas da Marinha de retirada dos moradores da Ilha da Marambaia, RJ, onde está instalado um Centro de Adestramento (CADIM).
79
comunidades individualmente, e apenas cinco foram propostas contra três associações de
remanescentes de quilombo.
Além das possessórias, a pesquisa registrou, dentre as ações contrárias aos
interesses quilombolas, ações de indenização, mandados de segurança e algumas ações
ordinárias, além de ações de desapropriação movidas pela União contra remanescentes de
quilombo de Alcântara, no Maranhão. Alguns destas ações travam o debate no campo dos
interesses coletivos, embora por vezes para descaracterizá-lo, como no caso de dois
mandados de segurança no Rio Grande do Sul, impetrado por particulares contra a FCP
visando à suspensão dos efeitos da Portaria nº 19/04, que reconhece oficialmente 29
comunidades como quilombolas. Dentre as ações contrárias aos interesses quilombolas,
apenas a ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Democratas questiona
diretamente a legislação quilombola.
Das 47 ações judiciais favoráveis às comunidades quilombolas, 19 são ações de
desapropriação propostas pela União Federal contra particulares, no estado do Maranhão, e
17 são ações civis públicas, consagrando o instrumento como recurso privilegiado para a
garantia de direitos étnicos35. Das ACPs em curso, 15 são de autoria do Ministério Público
Federal, (sendo uma delas em co-autoria com a FCP, e outra com o Ministério Público
Estadual de São Paulo), uma é de autoria do estado do Pará, e outra do Ministério Público
Estadual de Minas Gerais.
O papel preponderante das ações civis públicas na defesa dos interesses das
comunidades remanescentes de quilombo é parte de um fenômeno mais amplo, de
redefinição do sentido da representação funcional após a Constituição de 1988, erigindo a
ACP como objeto privilegiado para o exercício de uma “representação generalizada” e de
uma “cidadania complexa” (Werneck Vianna e Burgos, 2002, pág. 387). A garantia da
titularidade concorrente da ação civil pública, resultado da participação ativa dos
procuradores nos debates em torno da sua regularização, acabou por, na prática, produzir
um quase-monopólio do Ministério Público, autor da grande maioria das ações civis
35 Já há, segundo a Comissão Pró-Índio, decisões favoráveis nas ações civis públicas envolvendo as comunidades de Alcântara (MA), Brejo dos Crioulos (MG), Cacau e Ovos (PA), Lagoinha de Baixo (MT), Marambaia (RJ), Morro Alto (RS) e Santiago (MG).
80
públicas impetradas. Entretanto, segundo Werneck Vianna e Burgos, antes de apontar para
uma dessubstancialização da vida associativa, o ativismo do Ministério Público indica uma
rearticulação da produção das demandas sociais, na medida em que é agenciado como uma
mediação estratégica: conforme aponta Arantes (2002), o MP apresenta, em relação às
associações, vantagens na obtenção de informações, poder de requisitar documentos, a
possibilidade de instaurar o inquérito civil, acumulando vantagens para a propositura da
ação civil pública. Apesar disto, apontam Werneck Vianna e Burgos, os últimos anos têm
marcado “uma significativa mudança no perfil dos seus autores” (2002, pág. 432), com o
crescimento da presença das organizações da sociedade civil, principalmente associações
de consumidores. Em 2001, como dizem os autores, o percentual de ações civis públicas de
autoria das organizações da sociedade civil era de 37,3%, contra 28,6% de autoria do MP.
Tal observação é relevante na medida em que, segundo os autores (Arantes, 2002;
Castilho e Sadeck, 1998), a atuação do Ministério Público na defesa dos interesses
transindividuais esteve marcado pela reelaboração de um velho argumento das elites
brasileiras, a saber, de que a sociedade brasileira é “hipossuficiente”, ou seja, incapaz de se
organizar autonomamente para a defesa de seus próprios direitos, demandando, portanto,
uma ação tutelar, ao tempo em que os Três Poderes, neste mesmo argumento, são
estruturalmente incapazes de atender a estas demandas coletivas. Duplo argumento que tem
legitimado o surgimento de formas de poder externas, não-representativas e autônomas36.
Segundo Arantes, a concepção da sociedade civil como hipossuficiente encontra-se
combinada, nas representações dos procuradores, a outra, segundo a qual o Ministério
Público deve operar como “canal de demandas sociais com vistas ao alargamento do acesso
à justiça” (op. cit., pág. 128), com o que concordam os procuradores entrevistados pelo
IDESP. Esse conjunto de representações concorre para que parte dos quadros do Ministério
Público confira à sua atuação profissional o sentido de uma militância (Silva, 2001), para o
que colabora a autonomia quanto à propositura das ações civis públicas. Essa possibilidade
de escolha, na qual diferentes membros do Ministério Público definem autonomamente
seus parâmetros de ação, muitas vezes em função de seu viés ideológico, acaba, no
36 Para Castilho e Sadeck, entretanto, que 63,5% dos procuradores entrevistados pelo IDESP
“concordem em termos” com o argumento da hipossuficiência é indicativo de uma relativização da força das instituições, em nome da atuação autônoma dos organismos da sociedade civil.
81
entender de alguns dos autores, por plasmar uma das principais características da atuação
do órgão na defesa dos interesses coletivos e sociais: o voluntarismo de seus membros.
Arantes (2002) afirma que este voluntarismo constitui a marca da judicialização da política
no Brasil. Segundo Kerche (1999), o caráter amplo e pouco regulamentado dos direitos
transindividuais permite que os membros do Ministério Público atuem em questões que,
tradicionalmente, eram reservadas aos agentes políticos.
Como ressalta Arantes (2002), tais ações se constroem sem o amparo da legislação
infraconstitucional, invocando-se diretamente a Constituição. Poderíamos dizer que,
acompanhando o raciocínio de Castilho e Sadeck (1998), o caráter monocrático do
Ministério Público, instituição independente desde 1988 e que garante constitucionalmente
a autonomia funcional de seus membros, permite a cada promotor, mais do que representar
a instituição, “presentar” o MP e, conseqüentemente o Estado, definindo, mais a partir de
sua prática do que por parâmetros legais, o perfil de atuação do órgão. Neste sentido, a
atuação mais ou menos progressista do Ministério Público encontra-se à mercê das opções
da militância de cada um dos seus membros.
O único caso de ação civil pública com decisão já prolatada favorável a uma
comunidade quilombola é referente à Ilha da Marambaia, no litoral de Mangaratiba, em
uma “área de interesse militar” que abriga um Centro de Adestramento sob administração
da Marinha. Tomarei aqui o caso da Marambaia como exemplar das possibilidades de uso,
por parte do Ministério Público, dos novos instrumentos processuais para tutela de direitos
transindividuais e, no que diz respeito aos remanescentes de quilombos, para sua
caracterização como sujeitos coletivos de direito. Neste sentido, o caso da Marambaia é
expressivo do uso de instrumentos do campo do direito coletivo nas disputas interpretativas
em torno do Artigo 68-ADCT.
A população da Ilha da Marambaia descende dos antigos escravos pertencentes ao
Comendador Joaquim José de Souza Breves, que mantinha na “ilha”, que na verdade é a
ponta de uma restinga, uma fazenda de “quarentena” de escravos desde 1846 (Arruti,
2001). Segundo o mito fundador da comunidade, Breves teria, um ano após o fim da
escravidão, voltado à ilha, e distribuído suas praias entre as famílias dos escravos que lá
82
permaneceram, doação que nunca teria sido formalizada. Em 1971, com a instalação do
Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia (CADIM), os ilhéus passaram a ser alvo de
tentativas continuadas de inviabilização de sua permanência na ilha, como a proibição da
reforma das casas, sob o argumento de constituírem patrimônio da União. A tais tentativas
internas o CADIM adicionou a estratégia de retirada de moradores através de ações
possessórias, acentuando o caráter individualizador de tal estratégia pelo fato de correrem
os processos em varas diferentes.
Em fevereiro de 2002, o Ministério Público Federal impetrou uma ação civil pública
em favor dos quilombolas da Marambaia, tendo por réus a União e, como pólo passivo, a
Fundação Cultural Palmares37. Outras duas ações seriam propostas no caso da Marambaia:
um Mandado de Segurança Coletivo, proposto pela Associação de Remanescentes de
Quilombo da Ilha da Marambaia (Arquimar), em reação à portaria do INCRA que, em 15
de agosto daquele ano, sustava a publicação do Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação relativo à comunidade, e uma segunda ação civil pública, também de autoria
do MPF, que, em setembro de 2006, exigia o ressarcimento por danos causados ao
patrimônio pela referida sustação.
O primeiro movimento de generalização dos conflitos na Marambaia se deu por
iniciativa da Pastoral Rural da Diocese de Itaguaí que, em 1988, organizou um dossiê e o
enviou a autoridades, o que redundou na tentativa frustrada de entrada na ilha por uma
advogada da Fundação Cultural Palmares. Em 2001, novamente os conflitos ganham
notoriedade, agora a partir de uma articulação formada no ano anterior, envolvendo
militantes, alunos de ciências sociais e direito, advogados populares, defensores públicos e
procuradores da república, organizado pelo Programa Egbé-Territórios Negros de
Koinonia, sob a orientação de Miguel Baldez, professor e ex-Procurador do Estado. O
objetivo desta articulação era discutir tanto as implicações jurídicas dos processos de
reconhecimento quilombola quanto conflitos fundiários envolvendo comunidades negras
rurais no Rio de Janeiro. Quando o CADIM retomou a prática das ações de reintegração de
posse, em 2000, Koinonia e o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP), da
37 Mais tarde, a FCP seria substituída, como pólo passivo da ação, pelo INCRA, em razão das alterações produzidas pelo decreto nº. 4887, de novembro de 2003.
83
Universidade Federal Fluminense, acompanhavam os conflitos vividos pela comunidade. A
participação de um procurador da república no Rio de Janeiro naquela rede de
monitoramento jurídico levou a que, em 2001, o Ministério Público Federal solicitasse a
Koinonia um relatório preliminar da situação. Informado por este documento, o Ministério
Público impetrou a ACP.
O Ministério Público Federal alegava, na inicial da ACP, que os moradores da ilha
constituíam uma comunidade remanescente de quilombo, já que viviam na Marambaia “em
harmonia” desde o século XIX. Exigia, com pedido de liminar, “a condenação da União
Federal a tolerar a permanência dos integrantes da comunidade de Marambaia dentro das
áreas que ocupem na ilha, abstendo-se de qualquer medida que vise à retirada dos mesmos,
ou à destruição ou danificação de suas casas e construções, bem como a tolerar que esses
mesmos integrantes da comunidade em questão mantenham o seu tradicional estilo de vida,
não cerceando o seu direito de cultivar as roças nas áreas que ocupam ou ampliar suas
casas, ou ainda, construir, no interior de suas terras, novas casas para seus descendentes”, e
ainda que permitisse o retorno daqueles moradores que foram desalojados por medidas
judiciais e extrajudiciais. Em relação ao pólo passivo da ação, o INCRA (outrora, a FCP),
exigia que concluísse, no prazo de um ano, o processo de reconhecimento e titulação da
comunidade.
Em maio de 2002 o pedido de liminar foi julgado parcialmente procedente pelo juiz
responsável, impedindo que a União adotasse medidas para a desocupação da ilha,
permitindo a manutenção das roças e a reforma das casas, mantendo “seu estilo de vida
tradicional”, mas não permitiu o retorno daqueles que já haviam sido desalojados. Em
março de 2007, entretanto, a ação foi julgada totalmente procedente. Em sua decisão, o juiz
faz referência à contestação da União, a argumentar pela ilegitimidade ativa do MPF, por se
tratar de conflitos de interesses individuais, e não coletivos. Assim, faz referência ao artigo
129 da Constituição, que estabelece como função institucional do Ministério Público
“promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e
social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”, interpretando o
patrimônio cultural nacional, protegido pelo artigo 216 como parte do patrimônio público,
conforme entendimento do STJ.
84
O caso da Marambaia é expressivo do quanto a garantia dos direitos quilombolas,
no campo jurídico, dependeu de uma conjunção entre ativismo social e voluntarismo dos
atores do Ministério Público, a transformar a ação civil pública em instrumento de
conquista de direitos. Assim, se do ponto de vista da efetividade meramente jurídica, a ação
civil pública da Marambaia não redundou na titulação do território étnico da comunidade,
somou-se ao conjunto de fatos políticos que deram visibilidade à luta dos ilhéus da
Marambaia, garantindo sua permanência no território, e conferindo ao caso o sentido de
umacontrovérsia. Mais do que isto, conferiu publicamente à Marambaia o caráter de caso
exemplar de interpretação ressemantizada do conceito de quilombo.
a constitucionalização do debate político
Se a federalização dos conflitos jurídicos constituiu uma configuração específica da
judicialização da política étnica, por outro lado a reação à expansão dos direitos
quilombolas se deu na forma da constitucionalização do embate político. Em um primeiro
momento através do recurso, por parte dos agentes do legislativo, ao instrumento
processual de controle direto da constitucionalidade. Assim, em junho de 2004, o Decreto
nº. 4887 foi alvo de uma ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo outrora Partido
da Frente Liberal, hoje Democratas.
De forma geral, os termos da ADIn repetem os argumentos das peças do governo
Fernando Henrique Cardoso. A novidade é que argumenta pela inconstitucionalidade da
regulamentação da norma constitucional por Decreto Presidencial, dizendo que “invade
esfera reservada à lei”. Repete as críticas à auto-atribuição como critério para identificação
e insiste na caracterização do território quilombola a partir da concepção de terra ocupada
para a moradia e produção. Finalmente, adiciona ao argumento da auto-aplicabilidade da
norma constitucional o argumento de que se trata de direito originário, por se tratar de sítios
históricos datados do período imperial, não cabendo, portanto, desapropriação ou
indenização.
A ADIn do PFL marca o início de um debate público acerca das interpretações
legítimas do dispositivo constitucional que, nos anos seguintes, terá como palco não apenas
o Judiciário, mas também o Legislativo, a partir de um Projeto de Decreto Legislativo
85
(PDC) cujo objetivo será sustar os efeitos do decreto presidencial de 2003, e os veículos de
imprensa. Movimentam-se neste campo discursivo, como empresários morais, deputados
ligados aos interesses fundiários, órgãos do governo, formadores de opinião, intelectuais,
ONGs, grupos de interesse e movimentos sociais.
Os debates em torno da ADIn revelam que, para além dos argumentos informados
pelas posições político-ideológicas dos atores e por concepções de direitos, as posições
seriam determinadas pelos interesses em jogo. Assim, um curioso debate toma forma, no
qual o movimento quilombola, por um cálculo pragmático, tendo em vista a perspectiva de
arrefecer os conflitos com proprietários nas áreas em litígio, se articula a outros atores,
como o Ministério Público, para garantir, no decreto presidencial, o direito à
desapropriação em casos de títulos válidos superpostos ao território. Em contrapartida, o
texto da ADIn manifesta a estratégia do Partido da Frente Liberal para derrubar o Decreto
promulgado pelo Presidente Lula, opondo-se à desapropriação sob o argumento de, a
exemplo dos direitos indígenas, tratar-se o direito quilombola ao território de direito
originário, invertendo-se, entre os atores, posições que são entendidas, no senso comum
político, como mais à direita (o primeiro) ou mais à esquerda (o segundo).
Ainda em tramitação no STF, a ADIn do DEM obteve, como resposta, dois
pareceres favoráveis à constitucionalidade do decreto: um da Advocacia Geral da União e
outro do Ministério Público Federal. O parecer da AGU rejeitava o argumento de
impropriedade da regulação por decreto incorporando o argumento da auto-aplicabilidade
do dispositivo constitucional. Adere à posição do Ministério Público, de que “o art. 68 do
ADCT é norma constitucional de eficácia plena e, por isso, não depende de edição de lei
para ter plena aplicabilidade”, sendo o decreto apenas um dispositivo definidor de
procedimentos administrativos. Esta compreensão seria ratificada por decisão Tribunal
Regional Federal da 1ª Região, em fevereiro de 2008, relativa à ação impetrada pela Ordem
Terceira de São Francisco da Penitência para a interrupção do processo de regulação
fundiária do quilombo da Pedra do Sal, no Rio de Janeiro. Além disso, o parecer da
Procuradoria-Geral da República, de setembro de 2004, confirmando as posições do
Ministério Público Federal na questão quilombola, assume todos os marcos antropológicos
da ressemantização, sob a alegação (jurídica, mais que antropológica) de que “o artigo 68
86
do ADCT requer cuidadosa interpretação, de modo a ampliar ao máximo seu âmbito
normativo (...)”, devendo sua interpretação “emprestar-lhe a máxima eficácia”, por tratar-se
“de verdadeiro direito fundamental” (pág. 9).
À ADIn, entretanto, somou-se o uso de um dispositivo de caráter legislativo. Em
maio de 2007, o deputado Valdir Colatto, do PMDB catarinense, e o deputado Waldir
Neves, do PSDB do Mato Grosso do Sul, propuseram um Projeto de Decreto Legislativo
(PDC) cujo objetivo era sustar os efeitos do decreto nº. 4887. O argumento central do PDC
é de que o Poder Excutivo, ao legislar acerca de dispositivo constitucional através de um
decreto, determinando titulares e forma de delimitação do território e criando direitos,
extrapolou em suas atribuições e usurpou as atribuições típicas do Poder Legislativo. Além
disso, o decreto implicaria uma espécie de usurpação da competência do próprio Executivo,
na medida em que permite “às pessoas” que se auto-atribuam a condição de remanescentes
de quilombo, tarefa que caberia ao próprio Executivo. Adiciona a este argumento outros,
relativos a supressão e direitos, nomeadamente o direito ao contraditório e à propriedade.
O PDC refere-se a um caso específico no estado de Santa Catarina como exemplar
dos conflitos de interesses que podem advir da aplicação do decreto 4887. O caso do
reconhecimento territorial da comunidade quilombola de Invernada dos Negros, nos
municípios de Campos Novos e Abdon Batista, no estado de Santa Catarina, manifestaria,
nos termos do PDC, uma “política separatista”, “que poderá gerar sérios conflitos entre
amigos e vizinhos, que pretendem separar pela cor ou tom da pele”. Além disso, a garantia
dos direitos territoriais da comunidade em questão prejudicaria “pessoas do campo que
possuem raiz com a terra, de onde tiram seu sustento e das quais não querem se desfazer”.
Se a ação direta de inconstitucionalidade revelava a oposição ao governo petista
como motor para novas interpretações do artigo 68-ADCT por parte do PFL, inclusive na
medida em que lançava mão de argumento ideologicamente incompatível com a orientação
partidária, no caso do PDC identificam-se, nas trajetórias de seus propositores, as marcas de
determinados grupos de interesse. Valdir Colatto, engenheiro agrônomo por formação, atua
na Frente Parlamentar da Agropecuária, fundou o “Movimento dos Com Terra” e é
representante, na bancada ruralista, dos suinocultores de seu estado, tendo atuado, antes da
87
proposição do PDC, na tentativa de sustação dos efeitos de demarcação de terras indígenas
em Santa Catarina. Waldir Neves é produtor rural no estado do Mato Grosso do Sul, tendo
marcado seu mandato, tanto quanto Colatto, pela defesa dos produtores rurais e pela
oposição à demarcação de terras indígenas em seu estado. Assim, embora o PDL articule
argumentos de constitucionalidade, além de argumentos raciais, os interesses em questão
eram explicitamente fundiários.
O Projeto de Decreto Legislativo ensejou uma articulação das redes de movimentos
sociais atuantes na questão quilombola, no sentido de enviar pareceres autônomos acerca da
proposta à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, cuja
relatoria ficou a cargo da deputada Iriny Lopes, do PT do Espírito Santo. A seguir,
sumarizo o parecer apresentado por antropólogos e advogados de Koinonia Presença
Ecumênica e Serviço, naquilo em que ele é exemplar do consenso assumido pelas
assessorias dos movimentos quilombolas em relação ao PDC.
Segundo o parecer, o decreto não usurpa a competência do Legislativo, na medida
em que apenas dá concretude ao dispositivo constitucional que, até 2001, vinha sendo
aplicado tendo por referência apenas os dispositivos internos aos órgãos competentes, como
também não usurpa as atribuições do Executivo, já que a auto-atribuição pelo grupo (e não
pelas “pessoas”) é critério definido pelo próprio decreto, com base na Convenção 169 da
OIT, a considerar as comunidades quilombolas como grupos étnicos. Além disso, a
indicação, pelos próprios quilombolas, dos critérios de territorialidade, a constar em
relatório antropológico, não retira do INCRA a competência para a delimitação e
demarcação da área titulada. Ainda segundo o parecer, o decreto não implica a criação de
novos direitos, já que o direito em tela está disposto no artigo constitucional, nem na
restrição de direitos, já que prevê prazos de contestação e direitos indenizatórios, em casos
cabíveis de desapropriação que não ofendam o direito à propriedade. Quanto aos direitos
étnicos, argumenta que devem ser vistos como reparação histórica, e não como privilégios,
em consonância com os princípios e objetivos inscritos na Constituição da República
Federativa do Brasil, não sendo incompatível com o direito à igualdade.
88
Em outubro de 2007, a Comissão de Direitos Humanos opinou unanimemente pela
rejeição do PDC. Em seu parecer, a relatora faz referência a parecer do Procurador Geral da
República, rejeitando o argumento de inconstitucionalidade sob a alegação de que o artigo
68-ADCT teria “suficiente densidade normativa, sendo autoaplicável”, não constituindo o
decreto forma de regulamentação direta do dispositivo constitucional, mas de
regulamentação de “aspectos meramente administrativos”. O restante do parecer traz
argumentos que se resumem à esfera política. Em primeiro lugar, o fato de que o decreto
3912, de 2001, não teve, a seu tempo, sua constitucionalidade questionada, o que revelaria
a “verdadeira” objeção do PDC como sendo às garantias dos direitos quilombolas, e não à
regulação pelo executivo de norma constitucional. Segundo o parecer da relatora, o PDC
incorreria em um retrocesso nas conquistas dos movimentos sociais “que lutam por direitos
garantidos”.
O PDC passaria por mais duas comissões. A Comissão de Agricultura, Pecuária,
Abastecimento e Desenvolvimento Rural aprovou o PDC em dezembro de 2007. Em seu
relatório, o Deputado Eduardo Sciarra, do Democratas do Paraná, interpretou o decreto
como inconstitucional, acatando os argumentos do PDC. Afirmou ainda que o decreto, ao
dar interpretação extensiva à norma constitucional, pôs em lados opostos “pretensos
beneficiários” e proprietários rurais. Ao invés disso, o artigo constitucional deveria sofrer
uma interpretação restritiva, de caráter transitório e relativo a casos excepcionais. Além
disso, adotado em sua literalidade, o artigo 68 do ADCT faria referência a direitos
individuais. O relator, entretanto, se permitiu um movimento hermenêutico segundo o qual
o artigo 68-ADCT, se lido em conseqüência do artigo 191, que prevê as condições para
desapropriação, diria respeito apenas a comunidades quilombolas em terras devolutas: se a
Constituição veda a usucapião de terras devolutas, o artigo 68-ADCT estaria a criar uma
excepcionalidade, permitindo a regularização fundiária de ocupação de terras públicas.
Propôs, neste sentido, que o decreto fosse mantido, já que o artigo constitucional não
prescinde de norma que regule procedimentos administrativos, mas emendado, de modo a
retirar todos os dispositivos que, segundo o relator, importam para o direito “critérios
antropológicos que não podem se superpor à Constituição”. A Comissão de Constituição e
Justiça, por sua vez, acolheu os argumentos de inconstitucionalidade da CAPADR, no que
89
dizia respeito à extrapolação do Executivo em suas atribuições, aderindo à proposta
emendada de decreto.
a retórica da reação: a questão quilombola na imprensa brasileira
Em 2007 a discussão em torno dos direitos territoriais das comunidades
remanescentes de quilombos ganhou espaço na opinião pública, a partir de um conjunto de
matérias jornalísticas que apontam para outro pólo do campo discursivo em torno do artigo
68-ADCT, oposto ao da ressemantização38. A leitura deste conjunto de matérias aponta
para uma estratégia, por parte dos órgãos de imprensa, de generalização acerca dos
conteúdos relativos aos direitos quilombolas a partir da narrativa (na forma de “denúncia”)
de casos que seriam exemplares da má interpretação (e aplicação) do dispositivo
constitucional. O primeiro destes supostos “casos exemplares” foi o de São Francisco do
Paraguaçu, no estado da Bahia.
Em 15 de maio de 2007, o Jornal Nacional anunciou o “resultado estarrecedor” de
uma investigação sobre a comunidade, apontando para “indícios de fraude” no seu
reconhecimento como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares em
2005. Segundo a matéria, tal reconhecimento teria se dado por iniciativa de um grupo de
moradores, sem a realização de “pesquisas históricas e antropológicas [que] comprovem a
existência do quilombo”, anunciadas como exigências legais. Em seguida, coleciona
depoimentos de “moradores” e “pescadores” que nunca teriam ouvido falar de quilombos
na região, valendo-se do fato de que, como vimos, a categoria jurídica “remanescente de
quilombo” é externa aos grupos assim caracterizáveis, consistindo a aplicação do
dispositivo constitucional um ato de tradução das formas locais de nominação para o termo
genérico do direito. A sugestão da fraude na produção do abaixo-assinado que redundou no
pedido de reconhecimento à FCP estava ancorada na alegação de que os pescadores teriam
assinado um termo para pedido de uma canoa. Adicionava a estes argumentos a fala de um
38 Tais matérias foram cuidadosamente coligidas pelo Observatório Quilombola de Koinonia Presença Ecumênica e Serviço e estão disponíveis em http://www.koinonia.org.br/oq/dossies.asp. O Observatório Quilombola atribuiu a este conjunto de matérias o caráter sistemático de uma “campanha anti-quilombola”, não apenas em razão do grande número de ocorrências, mas à recorrência do uso de determinados argumentos e estratégias.
90
fazendeiro, segundo a qual os supostos quilombolas teriam chegado à região na década de
1930.
Subsidiário a estes argumentos, o risco de depredação dos “últimos fragmentos de
mata atlântica no Recôncavo Baiano” é consubstanciado na percepção de que “os
descendentes de quilombolas, futuros proprietários da área, estão interessados mesmo é na
madeira da mata atlântica”, afirmação que tem como base o flagrante de um suposto
“quilombola” transportando madeira ilegalmente retirada. Ao suposto desmatamento
promovido pelos remanescentes de quilombo o Jornal Nacional opõe a atitude
preservacionista de uma “reserva ecológica particular”, ameaçada pela “propriedade
quilombola”, pondo em risco o Olho de Fogo Rendado, espécie de pássaro em extinção que
encontra naquela região seu “território”.
No dia seguinte àquela matéria no Jornal Nacional, o mesmo veículo faz nova
referência a São Francisco do Paraguaçu, “um lugar que está prestes a ser reconhecido
oficialmente como remanescente de um quilombo, mas que, segundo os próprios
moradores, nunca foi habitado por escravos”, e onde “nem os mais antigos se consideram
descendentes de quilombolas”. Nesta nova matéria, o caráter exemplar do caso é manifesto,
já que soma às observações específicas sobre a comunidade o grande número de grupos
envolvidos no tema: “mais de cem comunidades” já reconhecidas oficialmente e outros 500
processos em andamento. A palavra autorizada de um historiador é evocada, no sentido de
caracterizar o decreto 4887 como facilitador das possíveis fraudes, ao substituir “critérios
científicos” de “pesquisa antropológica, histórica, rígida” pela auto-atribuição,
desacreditando “as comunidades realmente autênticas de quilombos”. No dia 24 de maio, a
Agência Senado faz coro à matéria do jornal Nacional, na voz do Senador Gerson Camata
que, além de reafirmar “invasão” e “intensa depredação” dos “invasores” “pretensos
quilombolas” na região, “alertou para o que classificou como uma guerra racial iminente,
que pode atingir diversos estados”, já que “dos estados da Federação, apenas Roraima e
Acre não tinham registro de comunidades quilombolas”39.
39 Camata voltaria a ser citado em 11 de julho, pelo Estado de São Paulo e pelo A Tarde. Em outra notícia, aparece anunciando uma “revolução cubana” no Brasil (Agência Senado, 11 de julho de 2007).
91
Como repercussão às matérias do Jornal Nacional, organizações da sociedade civil e
ligadas ao movimento quilombola publicaram notas de repúdio contra a Rede Globo e de
apoio à comunidade. Em 18 de maio, o Centro de Cultura Luiz Freire manifestou seu
repudio pelo que considerou adesão da Rede Globo a uma campanha pela criminalização
do movimento quilombola, ressaltando o fato de que a matéria não buscou ouvir as razões
daqueles que se consideram remanescentes de quilombo. A Coordenação Nacional das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) questionou o papel das emissoras de
TV como concessionárias de serviços públicos e chamou a atenção para o fato de que
apenas aos quilombolas cabe definirem-se como quilombolas ou não. A própria
comunidade publicou uma nota de repúdio, em 18 de maio, no qual denuncia o “teatro que
foi armado por ocasião das filmagens,onde boa parte da comunidade envolvida na luta
pela regularização do território quilombola nem sequer foi ouvida, visto que a equipe de
reportagem se recusou a registrar qualquer versão contrária aos interesses dos
fazendeiros, cortando falas e utilizando de métodos persuasivos”, revelando a “vinculação
da reportagem com os poderosos locais que tentam explorar nossa comunidade”, no caso
madeireiros e criadores da gado, reafirmando sua presença ancestral no território.
Em nota publicada em 14 de maio, a antropóloga responsável pelo laudo da
comunidade, Camila Dutervil, além de tecer considerações acerca da demanda legítima do
grupo, denunciou a manipulação de informações pela equipe de reportagem, sobretudo no
que diz respeito às pessoas entrevistadas (todas mantendo relações de compadrio ou mesmo
empregatícias com os grandes fazendeiros conflitantes) e à área desmatada, falsamente
apresentada como sendo parte do território quilombola. Em 22 de maio, foi a vez da
Fundação Cultural Palmares publicar nota de apoio à comunidade. Em 11 de junho, uma
matéria da TV Itapoan, sucursal baiana da TV Record, apresentou matéria na qual
moradores de São Francisco do Paraguaçu protestavam contra a reportagem do Jornal
Nacional. Entretanto, como conseqüência das pressões sobre a opinião, a Fundação Cultural
Palmares criou, em 11 de julho, um Grupo de Trabalho cujo objetivo era responder às
denúncias da Rede Globo. Embora a FCP tenha concluído, no mês seguinte, pela
inconsistência das denúnicias, em 22 de agosto a 11a. Vara Federal da seção Judiciária da
Bahia concedeu liminar de reintegração de posse à fazendeira que moveu ação contra a
92
comunidade. Em 11 de outubro, o Jornal Nacional apresentou outra matéria, noticiando o
resultado da decisão judicial.
Em 20 de maio, o Jornal O Globo publicou, em sua edição de domingo, matéria de
capa elegendo um segundo caso exemplar de interpretação indevida do artigo 68-ADCT: a
comunidade remanescente de quilombo da Ilha da Marambaia, no litoral de Mangaratiba,
no Rio de Janeiro. A tônica da matéria era a ameaça de retirada da Marinha, que mantém
um centro de adestramento na ilha, caso a área – cuja comunidade já fora reconhecida –
fosse titulada como território quilombola. A suposta ameaça estava vinculada, na matéria,
ao risco ambiental: “uma das últimas áreas de manguezais e floresta de Mata Atlântica
ainda intocadas”, a área estaria sujeita a “especulação imobiliária, invasões e favelização”,
não apenas diante das dificuldades de “fiscalizar” a preservação, mas em razão de uma
ameaça difusa da Marinha de saída da ilha caso a titulação seja concedida, apesar da área
quilombola a ser titulada não incluir as instalações do centro de adestramento. Assim, a
matéria sugere uma espécie de ponderação entre direitos étnicos e ambientais, para
privilégio dos segundos, já que afirma que “apesar de o direito à terra no casos dos
quilombolas ser inalienável, existe o risco de superpopulação e ocupação desordenada da
ilha, considerada área de proteção ambiental e de segurança nacional”. Argumentando
constituir o território, em tamanho, “o equivalente a quase 70 Maracanãs para cada
família”, a matéria manipula a desinformação acerca da natureza da titulação do território
quilombola, já que se trata de terra de uso coletivo, e que deverá manter as condições para
reprodução econômica, social e cultural do grupo, além de preservar suas fontes de recursos
naturais. Utiliza um artifício argumentativo que faz pensar a propriedade coletiva como um
consórcio de terras familiares, além de traduzir as dimensões de um campo de futebol (o
que seria a área equivalente para cada família) para a imagem grandiosa do estádio Mário
Filho.
A auto-atribuição é novamente criticada como uma distorção do reconhecimento
quilombola, novamente em uma leitura banalizadora do dispositivo, que não é apresentado
como um recurso coletivo de construção da identidade étnica, mas um expediente
individual, a ser usado por qualquer “morador”: “o critério para se definir como
remanescente de quilombola é o da ‘auto-definição’, segundo o decreto 4.887, de 20 de
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novembro de 2003, cuja constitucionalidade está sendo questionada no Supremo. Basta o
morador dizer que é descendente para que comece junto ao Incra o processo de
reivindicação da posse da terra”. A atuação dos antropólogos era posta em suspeição,
assumindo a classificação da Marinha acerca do laudo produzido para a Fundação Cultural
Palmares como “unilateral e tendencioso”. No dia seguinte, uma nova matéria no mesmo
jornal voltaria a chamar a atenção para o fato de que a constitucionalidade do decreto 4887
estaria sendo questionada no STF, sem maiores informações acerca a ADIn do PFL ou dos
pareceres já disponíveis. Na terça-feira, dia 22, uma nota editorial d’O Globo classificaria,
em seu título, o reconhecimento e titulação da comunidade quilombola da Ilha da
Marambaia como “crime ambiental”:
“Uma simples declaração de famílias de que seriam descendentes de
quilombolas deflagrou um processo que, em nome da reparação de
supostas dívidas históricas, pode entregar uma enorme extensão de
terra a esses pretensos herdeiros de escravos foragidos. No caso, está
em jogo o futuro da Restinga da Marambaia, uma região do Rio só
preservada por causa da presença da Marinha. Mas, se for aceita a
reivindicação, teremos mais uma frente de favelização, e num santuário
ecológico. Nada justifica que isso possa ocorrer”.
A mesma expressão, “crime ambiental”, já fora usada no jornal O Globo, dois anos
antes, somada a uma outra, “erro histórico”, em título de artigo de opinião que, em 25 e
fevereiro de 2005, sintetizava as posições do prefeito César Maia acerca da questão
quilombola. Ali aparecia já o argumento ambiental, segundo o qual a restinga, “um dos
patrimônios ambientais do Estado do Rio de Janeiro”, devia sua preservação à presença das
forças armadas, inclusive aquela parte chamada de “ilha”, onde a Marinha mantém seu
centro de adestramento “e consegue manter o equilíbrio entre suas atividades de
treinamento de pessoal — em especial fuzileiros navais — a preservação da área —
ambiental e historicamente — e o apoio à população local remanescente”.
O artigo era, antes de qualquer coisa, contra o decreto 4.887, que “define as
condições da Ilha da Marambaia — enquanto sede de quilombos — e estabelece direitos
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sobre o solo”. O “erro histórico” atribuído se deveria ao fato de ter sido a ilha uma fazenda
de engorda na segunda metade do século XIX, onde o comendador Breves descarregava
seus escravos, e seria viabilizado justamente pelo decreto, a partir do qual “esta
identificação será feita por ‘auto-atribuição’, ou seja: quem se disser descendente dos
hipotéticos quilombos terá imediatamente direito à terra que teria pertencido a seus
ancestrais”, o que “abre espaço para um sem-número de alegações e para o parcelamento
completo da Ilha da Marambaia”, transformando a APA em “área residencial precária de
economia informal, vinculada à pesca artesanal”. Novamente a leitura banalizadora do
dispositivo da auto-atribuição é atrelada estrategicamente à consideração da garantia da
terra como individual e à interpretação de quilombo pela reificação de seu uso
historiográfico.
Essa estratégia de reificação do quilombo histórico constitui um dos principais
elementos do pólo interpretativo oposto à ressemantização, e aparece em outras matérias
que fazem oposição ao reconhecimento étnico na ilha da Marambaia. Em 29 de março de
2007, o site de notícias ambientais O Eco assinala que “quilombola, no Brasil, virou
licença poética. Ou melhor, política. Desde que o governo Lula baixou, com o Decreto
4.887, as normas para a regulamentação fundiária dos quilombos, como manda a
Constituição de 1988, a palavra fugiu dos dicionários”, constituindo hoje, “em vez de
núcleo rebelde”, “reduto de oficialismo”. A ilha da Marambaia, um “dos últimos trechos
ainda verdes do litoral do Rio”, é, nos termos da matéria, um caso no qual “a palavra se
aplica a uma história mal contada que, passando em julgado por aquele canto da Baía de
Sepetiba, tende a pegar no Brasil inteiro”.
Tanto o artigo do prefeito César Maia, em 2005, quanto a seqüência de matérias do
jornal O Globo, em 2007, provocaram reações tanto do movimento quilombola quanto das
assessorias. Em resposta ao artigo do prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Célia Ravera,
presidente do Instituto de Terras do Rio de Janeiro, entre outros argumentos, considerando
a história da doação da ilha aos negros libertos e o regime de uso comum da terra e dos
recursos naturais, aponta para a razoabilidade da caracterização da Ilha da Marambaia
como “terra de preto”, fazendo referência ao conceito proposto por Alfredo Wagner Berno
de Almeida e apropriado no processo de ressemantização do artigo 68-ADCT. Além dos
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argumentos contrários ao pressuposto de que os treinos militares são realizados em
equilíbrio com a preservação ambiental e histórica, José Maurício Arruti, coordenador do
laudo encomendado pela FCP, denuncia a estratégia do prefeito de superpor o debate sobre
o caso específico da Marambaia e aquele em torno do decreto presidencial “sobrepondo-os
como se fossem um só”, estratégia que, como vimos, seria replicada em outras matérias
contrárias à ressemantização. A crítica à auto-atribuição é rebatida, em sua resposta, como
resultado da confusão e manipulação do articulista, na afirmação do artigo constitucional
como um ato de criação jurídica, em cuja interpretação corrente o caso da Marambaia se
enquadraria perfeitamente. Finalmente, a própria comunidade responderia ao prefeito,
atribuindo os erros de seu artigo ao desconhecimento da própria realidade de seus
moradores.
Em 29 de maio de 2007 o Jornal Nacional voltaria a apresentar um caso exemplar
de desvio interpretativo do artigo constitucional: a comunidade remanescente de quilombo
da Pedra do Sal, referida na matéria como um grupo que, no Morro da Conceição, zona
portuária da cidade do Rio de Janeiro, foi reconhecido pela FCP como comunidade
quilombola. Novamente o uso dicionarizado do termo quilombo é reificado, sob a
autoridade de um historiador contratado pela Ordem Terceira da Penitência, proprietária da
área: “Seria impossível um quilombo aqui, um mercado de escravos ali do lado e um
quilombo do outro. Seria algo impossível, além do que no topo do morro, desde 1717 tem
uma fortaleza do Exército. Você acha que o Exército ia permitir um quilombo do lado?”
Em 04 de junho a TV Globo de Goiânia apresentou uma matéria na qual
contrapunha “quilombos reais”, cujo reconhecimento constitui “forma oficial de reparar
injustiças históricas, de proteger a riqueza cultural dessas comunidades” a “quilombos
suspeitos”, citando, como exemplo, a comunidade de Brejão dos Negros, que apresentaria
as mesmas características listadas nos casos anteriores: moradores que desconhecem o uso
do termo “quilombo” para referir-se ao local e ausência de documentos históricos. A
comunidade de Kalunga apresentaria, na mesma matéria, uma das marcas caracterizadoras
de um “quilombo real”: o isolamento geográfico. A mesma percepção da ausência do termo
“quilombo” no local e a “ausência de registro” é usado tanto na denúncia de um deputado
(Campo Grande News, 17 de maio de 2007) quanto em notícia do site Agora MS (25 de
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junho de 2007), acerca da comunidade de Picadinha, em Mato Grosso do Sul, em mais um
caso no qual o sentido dicionarizado do termo quilombo é agenciado como princípio de
aplicação restritiva do dispositivo constitucional, descaracterizando comunidades como
quilombolas.
Em julho de 2007 foi a vez de Santo Antonio do Guaporé ser alvo de ataques do
Estado de São Paulo, nos dias quatro e cinco, e do site Eco, no dia nove. Depois da
denúncia do Eco de que a comunidade quilombola estaria ameaçando a preservação da
reserva ecológica superposta ao território, novamente a crítica à “auto-declaração” e à
ausência de uma “peça técnica” é projetada do caso concreto para a avaliação do decreto
4887, considerado como causador da “expansão quilombólica”, fruto da primazia do
“exagero ideológico” sobre “quaisquer dados antropológicos”.
Invernada dos Negros, em Santa Catarina, citada no PDC já analisado, constituiria
outro caso exemplar, segundo a revista Exame de 12 de julho de 2007, já que estaria
ameaçando a produção de pinus, conduzindo ao fechamento de empresas e criando
conflitos raciais na cidade de Campos Novos. Novamente, se atribui ao decreto a causa de
tais conflitos, deslocando o argumento para o plano nacional, apresentando os números da
expansão, além de outros casos, nos quais empresas como a Aracruz Celulose, no Espírito
Santo, ou a Marinha de Guerra, no Rio de Janeiro, estariam sob ameaça das conseqüências
do levante dos quilombolas. O Estado de São Paulo, em 12 de agosto, repete os
argumentos correntes, acrescentando erros grosseiros, como a afirmação de que os
territórios quilombolas, juntos, somavam, em extensão, uma área equivalente ao estado de
São Paulo, de novo evocando o tema da soberania. O último dos grupos a assumirem a
condição de exemplaridade das supostas distorções produzidas pelo decreto 4886 foi a
comunidade da Sacopã, na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Uma matéria do RJ TV
apresenta o caso do quilombo urbano, numa “localização privilegiada”, na Lagoa Rodrigo
de Freitas, “com vista para o mar”, sobreposto a um parque municipal, articulando os
mesmos argumentos recorrentes em outras matérias.
As notícias também dão conta da articulação dos proprietários de terra na oposição à
política quilombola, e muitos veículos se prestam ao papel de divulgares desta articulação.
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O portal Pantanal News, em 25 de abril de 2007, noticia o Fórum Agrário Empresarial, no
qual o tema dos quilombos seria central, e para o qual o movimento quilombola é entendido
como um entrave à produtividade, juntamente com sem terras e indígenas, pelo seu
potencial de conflituosidade. A perspectiva de um “campo tranqüilo”40 é, naquele discurso,
fundamental para que se atraia os investimentos estrangeiros e se desenvolva o
agronegócio. Para este movimento, a autodefinição, além de intensificar os conflitos no
campo, dado seu potencial para agregar demandas de grupos diversos, é inconstitucional,
não apenas porque extrapola o que garante o artigo 68, mas porque fere o direito à
propriedade (Agência CNA, 19 de abril de 2007). Em 22 de junho de 2007, o Portal Terra
anuncia a criação do Movimento dos Com Terra, cuja liderança é do deputado Valdir
Colatto, para quem os movimentos de garantia de direitos territoriais terminariam por
transformar o Brasil “numa Rússia ou China”.
A reação na grande imprensa à política de reconhecimento quilombola não tardaria
a ganhar seu intelectual. Denis Rosenfield, doutor em filosofia e professor titular da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vem se notabilizando como defensor da
propriedade privada como condição para o gozo da liberdade e destacou-se, em seus artigos
nas páginas de opinião da grande imprensa, pela oposição aos movimentos agrários, entre
eles o quilombola. A política quilombola decorrente da interpretação do artigo 68 conforme
a ressemantização é entendida por Rosenfield como parte de um movimento maior de
“relatizivização da propriedade privada” que, travestida de “função racial da propriedade”,
impõe o risco da perda das liberdades civis (O Globo, 14 de maio de 2007), em um projeto
de contornos “stalinistas”, de autoria do Partido dos Trabalhadores e dos movimentos
sociais.
No que diz respeito à “função racial da propriedade”, seu principal instrumento seria
o decreto 4887, através do dispositivo da auto-atribuição, avalizado por laudos de
antropólogos e professores comprometidos com a “causa” da relativização da propriedade
(O Globo, 19 de setembro de 2007). O risco revolucionário teria sido ampliado com a
inclusão de terras urbanas, atribuída por Rosenfield ao Estatuto da Igualdade Racial,
40 Valor manifesto também no nome dado ao movimento de proprietários rurais contrários às políticas agrárias governamentais, “Paz no Campo”.
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bastando, a partir de então, “um grupo autodesignar-se como preto e indicar uma terra
como sua”, com o aval de “antropólogos da causa”, a partir de “critérios semânticos
esdrúxulos”. A leitura simplificadora do professor de filosofia, reduzindo a identidade
étnica de grupos à auto-designação de cor, confere ao movimento o caráter de “revolução”,
termo que seria usado em outras peças da campanha conservadora. Some-se a isto, segundo
o professor, o dispositivo segundo o qual o território quilombola será delimitado conforme
os critérios territoriais da própria comunidade.
Tal “manipulação da língua” (O Globo, 07 de agosto de 2007), produzida pelo
decreto 4887, levaria ao afastamento do sentido originário de quilombo que, “em bom
português, segundo o Houaiss”, significa “um local escondido, geralmente no mato, onde se
abrigavam escravos fugidos, uma povoação fortificada de negros fugidos do cativeiro,
dotada de divisões e organização interna”. Como o “Legislador” “falava português”, teria
pensado neste “quilombo”, e não em qualquer outro – simplificação que contrasta
radicalmente com as condições de produção do dispositivo constitucional descritas por
Arruti (2006), e que ignora por completo os movimentos da comunidade aberta de
intérpretes, da qual ele mesmo faz parte. Rosenfield atrela a simplificação do sentido
ressemantizado da categoria remanescente de quilombo, reduzida por ele “uma genérica
comunidade de cor, de cultura, de sentimentos e afinidades”, ou, como em outro artigo,
“qualquer comunidade cultural negra”, “sem nenhum vínculo territorial”, à simplificação
do processo de produção e interpretação constitucional, já que acusa “militantes” e
“políticos” de agirem como “verdadeiros constituintes”.
O caso da Marambaia seria referido por Rosenfield como exemplar da manipulação
de assessores que estariam a instigar um conflito racial em grupos miscigenados que teriam
vivido, até então, em relação pacífica com seus opressores (O Globo, 23 de julho de 2007).
Tais assessorias estariam criando ainda as demandas coletivas, em contextos de posses
familiares. Segundo o filósofo, “há todo um símbolo aqui em jogo. Se a Ilha da Marambaia
for desapropriada, a mensagem é a seguinte: se nem as forças armadas resistem a nós, o
caminho está aberto a novas ações que podem reformatar completamente as relações de
propriedade e, mesmo, partes inteiras do território nacional”, movimento que já se
desenharia em mapa produzido pela UNB, a mostrar Unidades da Federação “amputadas”.
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Em 21 de agosto de 2007, José de Souza Martins somou-se às vozes contrárias à
uma política quilombola, em artigo publicado no Estado de São Paulo. Martins se refere ao
“quilombismo” como manifestação da lógica de classes em uma política racial de contornos
agrários que, a partir do decreto 4887, abre espaço para “um novo tipo de capitão-do-mato”
que, mobilizando os grupos interessados, cria “enclaves fundiários e de privilégios”,
ameaçando o estatuto da igualdade. Apesar de destoar das críticas correntes pela qualidade
de sua análise, Martins incorre na mesma incompreensão que, na forma de afirmações
truncadas, mais desinforma que informa o leitor do jornal: na análise de Martins, a auto-
atribuição pode ser feita por uma “pessoa” que se declare “negra”, cuja demanda se limita à
terra entendida como unidade produtiva.
Os argumentos contrários aos remanescentes de quilombo articulam, por um lado,
os direitos individuais, sobretudo a propriedade, interpretada em um registro absolutizante,
claramente contrário à concepção de função social. Por outro lado, agenciam direitos
difusos, como o direito ao meio ambiente, como contrapostos aos direitos de coletividades
específicas, além de direitos ligados à nacionalidade, apresentando a perspectiva
multiculturalista como ameaça à soberania e ao território, logo ao projeto de nação, quer
seja pelo risco de um certo “federalismo de quilombos”, quer seja pela ameaça mais
alarmante de uma “revolução quilombola”. Apresenta, assim, uma leitura restritiva do
dispositivo constitucional, cujo objetivo explícito é diminuir drasticamente o número de
demandantes legítimos, baseada na reificação da definição dicionarizada de quilombo como
“reduto de fuga”, na exigência de peças periciais que comprovem a remanescência dos
demandantes e na limitação da titulação à “terra ocupada”, entendida como terra atualmente
usada para moradia e produção. O conceito restritivo permite que o movimento contrário à
política quilombola se anuncie como defensor dos direitos dos “verdadeiros quilombolas”,
embora, em apenas uma matéria, apenas uma comunidade – os Kalunga – tenha sido
reconhecidos como “verdadeiros quilombolas”.
Finalmente, as pressões políticas e da opinião redundaram em um movimento no
qual o atual governo internalizou as contradições em torno da política quilombola. A
Fundação Cultural Palmares suspendeu as certificações e, em 6 de julho de 2007, criou um
Grupo de Trabalho cujo objetivo era rever o processo de certificação sob ataque. A
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advocacia geral da União, por sua vez, instituiu um grupo de trabalho para definir a política
do órgão relativamente aos quilombolas, mas que acabou redundando em uma proposta de
alteração, de autoria interministerial, da Instrução Normativa que orienta o INCRA nos
processos de titulação. Esta alteração, em debate hoje entre governo e movimento,
apresenta critérios que têm sido entendidos pelos atores envolvidos como de caráter
restritivo, como, por exemplo, a exigência de uma lista de itens objetivos para o relatório
antropológico, a exigência de que o INCRA titule apenas as comunidades certificadas pela
FCP, ou a proibição de contratação, para a produção dos relatórios, de antropólogos que
possuam vínculos jurídicos com entidades vinculadas à questão quilombola.
entre a ressemantização e a dicionarização do quilombo
Se, num sentido mais amplo, podemos nos referir à ressemantização para explicar o
processo de reapropriações simbólicas pelas quais a categoria “quilombo” vem passando
desde antes de se tornar um termo jurídico, por outro lado podemos nos referir a
ressemantização para nomear um dos pólos interpretativos do campo discursivo em torno
da questão quilombola. Este pólo é composto por aqueles que, partindo do pressuposto de
que o artigo 68-ADCT faz referência a direitos fundamentais de sujeitos coletivos,
assumem a tarefa de empreender uma interpretação extensiva do dispositivo constitucional,
tanto no que diz respeito à ampliação da capacidade hermenêutica da norma, quanto na sua
maior abrangência no que diz respeito aos grupos sobre os quais ela vai incidir e à terra que
ela vai garantir. Os que se colocam neste pólo assumem uma posição ideológica de
esquerda, ou progressista: é o caso do próprio movimento quilombola, dos movimentos
sociais em geral, das assessorias populares, dos políticos de esquerda e dos procuradores da
república. Os que se colocam no pólo da ressemantização produzem uma interpretação que
é resultado tanto dos impactos do conhecimento antropológico sobre o direito quanto da
recepção do ideal político multiculturalista, explicitado na Convenção 169 da OIT.
Se, no primeiro momento, as interpretações do artigo 68-ADCT oscilaram em torno
da ressemantização, o debate público articulou um novo conjunto de significados que
poderíamos, em oposição à idéia-força da ressemantização, chamar de dicionarização, já
que o cerne do argumento legitimador desta interpretação é a adoção reificada do conceito
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dicionarizado de quilombo, entendido como refúgio de escravos fugidos41. Esta leitura
propositadamente restritiva do dispositivo constitucional afirma seu caráter transitório,
reduzindo-o a direito de natureza fundiária. Aqueles que assumem a dicionarização como
critério se propõem à leitura literal do artigo, fazendo referência ao direito individual às
terras que estejam sendo ocupadas para a moradia e produção no momento do
reconhecimento. Podem ser caracterizados como compondo o pólo da dicionarização
estratos políticos conservadores, como os grandes proprietários de terra e os políticos de
direita.
No que diz respeito à auto-aplicabilidade do dispositivo constitucional e à
concepção do direito que ele garante como sendo direito originário, tais posições não são
facilmente discerníveis. A auto-aplicabilidade é articulada como argumento tanto nas
tentativas de deslegitimar o decreto 4887, na atribuição de exorbitância ao ato executivo,
quanto nas tentativas de defendê-lo, argumentando seu caráter meramente administrativo.
Do mesmo modo, a interpretação do direito como originário parece informar as duas
posições, tanto da ressemantização, orientada pela homologia com o caso indígena, quanto
da dicionarização, atrelada à necessidade da verificação pericial da ancestralidade da
ocupação, neste caso se prestando, ainda, à deslegitimação da atuação do INCRA.
Finalmente, no que diz respeito à legitimidade da desapropriação em casos de títulos
válidos, explicitada nos decretos, no PDC e na Adin, as posições estão marcadas
pragmaticamente, produzindo uma inversão de afinidades.
41 O Dicionário Houaiss apresenta quatro sentidos para o vocábulo “quilombo”, três deles em referência à história do Brasil, e um quarto referente a uma modalidade de dança regional. O primeiro sentido faz referência a “acampamento fortificado”; o segundo, a “local escondido, geralmente no mato, onde se abrigavam escravos fugidos”; finalmente, o terceiro sentido faz referência a “povoação fortificada de negros fugidos do cativeiro, dotada de divisões e organização interna (onde também se acoitavam índios e eventualmente brancos socialmente desprivilegiados)”.
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Tabela 1 - Quadro sinóptico das interpretações do artigo 68-ADCT Ressemantização Dicionarização Sujeito Coletivo: “comunidades
remanescentes” Individual: “remanescentes das comunidades”
Objeto Território étnico Espaço ocupado para moradia e produção
Definição de quilombo Grupo étnico Espaço de fuga Forma de identificação Auto-atribuição Definição pericial Modelo de Política Reconhecimento Reparação Orientação interpretativa Interpretação extensiva Interpretação restritiva Natureza do artigo Permanente Transitório
O campo jurídico, no sentido que lhe atribui Bourdieu, apresenta duas dimensões: a
simbólica, de onde recebe sua linguagem, a apontar para “o campo das tomadas de posição
possíveis” (pág. 211), e a das relações objetivas entre agentes e instituições em
concorrência pelo monopólio de dizer o direito. Os debates em torno da atualização da
norma jurídica relativa à questão quilombola revelam, por sob os argumentos articulados, o
conjunto de interesses que atravessa a comunidade de intérpretes, posicionados no campo
de possibilidades interpretativas. A emergência de um governo historicamente
comprometido com ideais ditos de esquerda, entre eles a expansão dos direitos coletivos,
ampliou os canais de acesso dos movimentos ao sistema político, além de ensejar uma
política de reconhecimento avançada, pelo menos em suas propostas. Na divisão do
trabalho jurídico, os membros do Ministério Público vêm se destacando por assumir as
posições mais próximas do pólo da ressemantização, atrelada por eles a uma
democratização do uso dos instrumentos jurídicos, aproximando as bases de sua
operacionalização.
A análise do processo de regulação do artigo 68-ADCT e, portanto, de sua
interpretação, deverá buscar identificar os interesses articulados pelos diferentes
empresários morais, explicitando a relação entre o conjunto de interesses em disputa e as
posições teóricas possíveis de serem produzidas no campo. Como vimos, a efetividade de
uma política de reconhecimento étnico exigiu uma configuração do campo político que
permitisse que os grupos concretos interessados, aqueles passíveis de serem identificados
como remanescentes de quilombos, encontrassem, na sociedade civil, no mundo da
representação política e, em última análise, nas instâncias do direito, empresários morais
capazes de articular recursos suficientes para garantir a aceitabilidade de sua interpretação.
103
Esta responsividade crescente no papel dos atores do mundo jurídico, a delegar ao
direito a nova função de promoção do bem-estar social e aproximar as práticas jurídicas e
sociais (Cappelletti, op. cit., Nonet & Selznick, 1978), põe em debate o problema da
segurança jurídica42. Aplicada à questão quilombola, esta perspectiva dos atores leva a que
se pense nos riscos implícitos nestes movimentos interpretativos, o que quer dizer, nos
limites hermenêuticos da ressemantização. Diante de uma concepção de direito
irremediavelmente imiscuído no político e no social, a alternativa ao ideal da segurança
jurídica apontada por Ronald Dworkin (1999) é elevar a idéia de integridade à condição de
princípio do direito. Do mesmo modo, para Nonet & Selznick, é a referência aos princípios
do direito, à igualdade e à justiça, que garante a integridade no contexto de abertura do
direito responsivo, apesar de sua flexibilidade e permeabilidade, estabelecendo uma relação
dialética entre integridade e abertura.
O direito como integridade, na sua versão dwokiniana, é definido, fundamentalmente,
como um exercício de interpretação construtiva dos juízes, cujas decisões são entendidas
como atos morais relevantes43 (Dworkin, 1999). A especulação acerca de ser uma
proposição jurídica verdadeira ou falsa diz respeito, nesta chave, à sua adequação ou não
aos princípios do direito, a lhe conferir legitimidade, e é isto o que está em jogo em uma
decisão judicial. Mas, diante da crise do formalismo do direito, o ordenamento jurídico não
é capaz, por si só, de garantir a integridade. Assim, do ponto de vista político, para
Dworkin, a defesa do ideal de integridade depende da consideração da comunidade política
como um agente moral. Isso não constitui um retorno à perspectiva da solidariedade
mecânica durkheiminana: a comunidade deve ser vista como ente político porque é preciso
manter a integridade e não o contrário. Assim, o ideal político da integridade nos torna co-
partícipes das decisões políticas, produzindo um sentido de pertencimento. Neste sentido,
42 As perspectivas realistas do direito, das quais a sociological jurisprudence constitui o exemplo mais ilustre e mais radical, emergem como reações de juízes em relação aos efeitos petrificantes tanto da lei quanto dos precedentes, expressando uma índole reformista em relação à sociedade. Mais aberto à participação e aos interesses dos grupos sociais e, portanto, mais sensível às mudanças, este direito responsivo toma como referência uma concepção substantiva de justiça. 43 Trata-se de um conceito de direito centrado na experiência da common law, mas conveniente para o caso brasileiro, sobretudo em tempos de convergência das tradições jurídicas, como o que vivemos. A aplicação de uma teoria centrada na experiência da common law em nossa tradição jurídica romano-germânica, entretanto, pode ainda ensejar o uso do princípio da integridade para pensar o papel do legislador, para além da prática dos juízes.
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os juizes devem decidir (o que quer dizer, interpretar) a partir do pressuposto de que o
direito é a expressão de uma comunidade política.
A antinomia a ser resolvida, para Dworkin, não é entre vida social e princípios do
direito, diante da qual a segurança jurídica demanda fechamento, mas entre
discricionariedade do juiz e princípios políticos comunitários, diante da qual a integridade
exige permeabilidade. A imagem do direito como integridade é a de um “romance em
cadeia”. O juiz, ao interpretar, define uma “intenção” da comunidade política, de uma
tradição. Ao fazer isso, se inscreve nessa tradição e é, em relação a ela, intérprete e autor.
Assim, a interpretação deve ser adequada ao restante do “texto”, deve ter um poder
explicativo geral e apreender, em seu ato criativo, a maior parte do texto. É a partir deste
princípio que as “conquistas dos dominados” podem ser sancionadas e convertidas em
saber jurídico (Bourdieu, op. cit., 213).
105
Parte 2 – “Cada um é do seu jeito”: reconhecimento e identidade em uma
comunidade negra rural.
Se é verdade que os processos de reconhecimento e identificação de comunidades
quilombolas no Rio de Janeiro são todos tributários da interpretação ressemantizada do
artigo 68-ADCT (Arruti e Figueiredo, 2006), a identificação de Alto da Serra como
comunidade remanescente de quilombo radicaliza este exercício interpretativo, já que,
como veremos, trata-se de um grupo que ocupa a terra há cerca de cinqüenta anos. Apesar
disto, a adesão à identidade quilombola tem um forte impacto nas formas de organização do
grupo, que se apresenta, hoje, como um dos mais organizados e ativos do movimento
quilombola fluminense. O objetivo desta parte da tese é analisar o processo de auto-
reconhecimento e reconhecimento público da comunidade de Alto da Serra como
remanescente de quilombo, objetivando compreender como as formas locais de construção
da identidade étnica operam, também, como exercícios de interpretação constitucional,
viabilizados a partir – e no curso – de variadas e simultâneas mediações, de diversos atores
e campos do conhecimento: antropólogos, assessorias e políticas públicas.
Para tal, será necessário, no capítulo 4, empreender uma breve sociologia do
campesinato no Vale do Paraíba fluminense, do período escravista da produção de café até
o processo de regularização fundiária na década de 1970, passando pelo período de retração
econômica no início do século XX, do qual muitos de seus municípios jamais se
recuperaram. A territorialidade e a identidade próprias do grupo, para que não sejam
essencializadas e reificadas, devem ser entendidas como parte do processo histórico da
região. A conjunção entre o fim do regime escravocrata e a regulação do acesso à terra pelo
dispositivo da propriedade concorreram para que, na decadência da economia cafeeira do
Vale, se formasse um contingente de camponeses negros despossuídos. Esse campesinato
negro, sem lugar na nova ordem capitalista, seria reapropriado, nas primeiras décadas do
século XX, para a produção de carvão, atividade subsidiária à industrialização da região e
caracterizada pelo nomadismo e pela precariedade. A comunidade de Alto da Serra se
106
formou justamente a partir deste campesinato originado do fluxo de escravos no período
cafeeiro, libertos no final do século XIX e posto em circulação no início do século XX.
No capítulo 5 veremos de que maneira, no processo pelo qual a família Leite
ocupou a área que hoje define como seu território, se constituiu um conjunto de laços e
relações que definiram a família como um grupo étnico, tanto internamente a ela quanto na
relação com seus vizinhos, criando uma rede de reconhecimento local que lhes conferiu
elementos para sua auto-definição como comunidade remanescente de quilombo. O
território foi, até o final da década de cinqüenta, área de produção de carvão,
fundamentalmente por sua proximidade com Volta Redonda e Barra Mansa, e foi esta
atividade produtiva a responsável pelo processo de ocupação da família Leite na região do
Alto da Serra. Este processo de ocupação definiu não apenas uma identidade de caráter
familiar, mas também uma forma específica de relação com a terra, uma territorialidade
própria, construída pela passagem da atividade carvoeira para a agrícola. Duas
características são articuladas na formação da identidade interna e externa do grupo: a sua
condição de família negra e uma concepção coletiva de territorialidade. Elementos que
serão, mais tarde, fundamentais para sua identificação como remanescente de quilombo.
Os modos como esta territorialidade, acompanhada de uma concepção própria de
direito à terra, convive com a lógica da propriedade privada, tanto dentro quanto fora do
grupo, será tema fundamental do capítulo 6. Dois momentos importantes na trajetória do
grupo dramatizam tais relações entre a lógica da propriedade privada e as concepções locais
de terra e direitos: a ação de reintegração de posse sofrida por três de seus membros a partir
de 1992, momento em que as formas locais de acesso à terra são confrontadas com os
dispositivos do direito formal, e os debates em torno da proposta de território a ser
encaminhada ao INCRA, no curso do processo de regularização fundiária da comunidade,
momento em que a lógica da propriedade privada surge como entrave à própria formação
do grupo e, conseqüentemente, do território. A ação judicial será interpretada, ainda, como
experiência na qual o grupo vivenciou o desrespeito às suas formas próprias de
territorialidade, operando como motor para a luta por reconhecimento.
107
O capítulo 7 abordará a organização do grupo em associações e os recursos
utilizados para adequar sua própria história às categorias jurídicas e políticas em torno do
artigo 68-ADCT, conquistando o reconhecimento político como comunidade remanescente
de quilombo, ao mesmo tempo em que alguns de seus membros viviam intensas
transformações no campo das representações. Como veremos, este é um momento de
interpretação constitucional, já que o grupo teve de traduzir suas próprias concepções para
os termos da lei. Fundamental para este momento foi a intervenção de intelectuais
vinculados a Organizações Não-Governamentais e aos temas do direito, envolvidos, em
determinado momento, na aplicação de políticas públicas voltadas para grupos
quilombolas. Quer seja na luta pela terra, quer seja no agenciamento de um conjunto de
políticas voltadas para o desenvolvimento, a trajetória do grupo aponta para o esgotamento
das antigas formas de organização e identidade e o vislumbre de novas alternativas, a
valorizar o caráter familiar e comunal do grupo.
Desta forma, entendido, na parte 1, como se opera a expansão dos significados em
torno do artigo 68-ADCT a partir do exercício de interpretação constitucional, trata-se
agora de perceber como se dá o inverso: o movimento pelo qual os grupos traduzem suas
formas de organização para os termos da lei. Outra questão fundamental, que se segue a
esta, diz respeito às formas como essa operação pode produzir novas interpretações do
próprio artigo constitucional, ampliando seus significados e inserindo definitivamente os
grupos interessados na já ampliada comunidade de intérpretes.
108
Capítulo 4 – Raízes Históricas do Campesinato Negro do Vale do Paraíba
O território reivindicado pela comunidade remanescente de quilombo de Alto da
Serra fica situado no município de Rio Claro, na região do Médio Paraíba44 (fig. 1), mais
especificamente no distrito de Lídice. O território do Município é montanhoso e constitui-
se num extenso vale, tendo a oeste as elevações da Serra do Mar que declinam
gradativamente para leste. O rio Piraí e seus afluentes ocupam a posição central desse vale,
sendo o município banhado por vários outros rios, alguns deles represados para formar um
lago artificial, a represa de Ribeirão das Lajes. Apesar de não estar localizado
administrativamente na região da Baía da Ilha Grande, Rio Claro está economicamente
ligado a Angra dos Reis, hoje fundamentalmente em razão da oferta de postos de trabalho
em grandes empresas como Furnas. O distrito de Lídice, incrustado na Serra do Mar, a
cerca de 540 metros de altitude, fica no limite do município com Angra dos Reis. O
território da comunidade localiza-se em um vale entre a Serra da Casaca e a Serra do
Sinfrônio, cortado por um ainda jovem Rio Piraí.
44 A região Do médio Paraíba é composta por 12 municípios, a saber: Itatiaia, Resende, Porto Real, Quatis, Barra Mansa, Volta Redonda, Rio Claro, Piraí, Pinheiral, Barra do Piraí, Valença, Rio das Flores e Vassouras. Está localizada no vale do rio Paraíba do Sul, entre as Serras do Mar e Mantiqueira. O município de Rio Claro limita-se ao norte com os municípios de Barra Mansa e Piraí, a leste com os municípios de Piraí e Itaguaí, ao sul com os municípios de Mangaratiba e Angra dos Reis (municípios da região da Baía da Ilha Grande) e a oeste com os municípios de Angra dos Reis e Bananal, este no Estado de São Paulo.
109
FIGURA 1 – Município de Rio Claro, com indicação do território da comunidade de Alto da Serra
O processo de formação do campesinato negro do Médio Paraíba45 encontra sua
origem no movimento de ocupação da região em torno das estradas abertas para o
escoamento da produção aurífera de Minas Gerais. Até o século XVII, a ligação entre
Minas Gerais e o porto do Rio de Janeiro era feita pela Trilha dos Guaianases, também
conhecida como Caminho Velho. O caminho por terra passava pela província de São Paulo,
até Parati, de onde o transporte de ouro era feito por mar até o Rio de Janeiro. A partir de
1698, com a abertura do Caminho Novo, outros caminhos foram abertos, cortando o
interior do estado. O século XVIII é marcado pelo progressivo povoamento do entorno
destes caminhos, com o surgimento de povoados e propriedades rurais, principalmente para
sustento das tropas (SEAF, 1991).
Em função da economia do ouro, fazendeiros foram se instalando no oeste do
estado, especializando-se na produção agrícola e no comércio de tropas para Angra dos
Reis e Mangaratiba. Em 1728, o Rei de Portugal autorizou a construção de uma estrada, 45 Outros dois grupos de camponeses negros da região já foram reconhecidos como remanescentes de quilombos: as comunidades de Santana, no município de Quatis, e de São José da Serra, no município de Valença.
Alto da Serra
110
ainda para o transporte do ouro, conhecida como “Caminho de São Paulo”, concluída em
1733, que partia do Rio de Janeiro, passando por Santa Cruz, Ribeirão das Lages,
atravessando o Rio Piraí em direção àquele estado, permitindo assim que o caminho fosse
feito completamente por via terrestre. A construção desta estrada, em torno da qual surgiu o
povoado de São João Marcos, origem do município de Rio Claro, aliada à dispersão
produzida pela crise da atividade mineradora foram, segundo Dilma de Paula, fatores
determinantes para a ocupação do Vale do Paraíba (Paula, 2004). São João Marcos era uma
das 29 freguesias existentes na província em 1767, e seu crescimento se deveu
fundamentalmente à importância adquirida pela região com a abertura do Caminho de São
Paulo, e mais tarde com a expansão da economia cafeeira.
O período do café sucedeu outro, anterior à primeira metade do século XIX, de
retração da economia nacional. Diante da ausência de tecnologia e capital necessários para
o investimento em novas atividades produtivas, o Brasil precisava reintegrar-se ao mercado
internacional (Furtado, 1961). Como não era possível retornar às exportações dos antigos
produtos, como a cana-de-açúcar e o algodão, era preciso encontrar outro produto que
tivesse a terra como fator básico de produção, já que esta era o único abundante no país. O
final do século XVIII apontava para uma alta do preço do café, o que, aliado à crise da
produção haitiana, permitiu a entrada do Brasil neste mercado. É neste período que a
economia brasileira passa pelo processo de expansão da cafeicultura, e o Vale do Paraíba
torna-se uma das principais áreas produtoras de café, não apenas em razão de suas
condições climáticas, mas também por conta da infraestrutura disponibilizada pela
decadente economia do ouro, pela proximidade do porto do Rio de Janeiro e pela
abundância de mão-de-obra escrava. A primeira metade do século XIX verá a economia
cafeeira atingir o patamar de 40% das exportações no Brasil (Paula, op. cit.), e as
exportações de café quintuplicaram entre 1821-30 e 1841-50 (Furtado, op. cit.). Neste
período, os grandes produtores de café estavam no Vale do Paraíba: Resende, Barra Mansa,
Vassouras, São João Marcos e Passa Três. O café era transportado, até a construção das
ferrovias, pelas tropas de mulas, pelos caminhos por onde outrora escoara o ouro, e era
transportada por via marítima para a capital da província através de portos situados em
Mangaratiba, Mambucaba, Angra dos Reis e Paraty.
111
A menção mais antiga ao povoado de Rio Claro na cartografia brasileira é de 1767,
ainda de forma imprecisa, tendo sua localização sido consolidada em 1846 (Paula, op. cit.).
A ocupação da região de Rio Claro está ligada à chegada da família Portugal, por volta do
século XVIII. O arraial de Rio Claro, por apresentar crescimento rápido, recebeu jurisdição
de Freguesia em sete de maio de 1839, tendo seu território desmembrado do de São João do
Príncipe. Por sua hegemonia econômica na região, Rio Claro foi elevado à categoria de vila
em 19 de maio de 1849. O desbravamento do território municipal está relacionado com a
abertura da via de penetração de Angra dos Reis ao vale do Rio Paraíba e
conseqüentemente a Minas Gerais e São Paulo. Segundo Paula já há, em 1770, registros da
produção de café em São João Marcos, mas apenas em 1822 encontramos referência a
grandes plantações nos relatos de viajantes. Em 1850 a produção de café de São João
Marcos chegou a 382.800 arrobas, enquanto Rio Claro, já emancipado, produziu 64.000
arrobas (Paula, pág. 45).
O distrito de Lídice, localizado na serra entre a sede de Rio Claro e o município de
Angra dos Reis, tem sua origem na Fazenda de Santo Antonio da Cachoeira, originada da
sesmaria oferecida a Manuel Gonçalves Portugal por D. João, quando da abertura do
“caminho de São Paulo”. Tais sesmarias eram concedidas mediante compromisso dos
sesmeiros de cultivar a terra e manter o caminho trafegável. O documento pelo qual os
direitos e deveres de sesmeiro são atribuídos a Manuel Gonçalves Portugal é de 1797, ano
no qual o povoado de Capivary, que cresceu em torno da fazenda, contava já com 26
“fogos” (casas), 164 homens e mulheres livres e 170 escravos. Após a morte de Manoel
Gonçalves Portugal, seu filho Joaquim Gonçalves Portugal estendeu os domínios da família
para as fazendas do Rola e de Sant’Anna, já no início do século XIX. Em 1842 o Governo
da Província resolve criar a freguesia de Santo Antonio do Capivary, cuja vida econômica
girava em torno do caminho imperial, vivendo do comércio e do abastecimento das tropas
que passavam em direção a Angra dos Reis, e da produção de café dos Portugal, que
também escoava para Angra dos Reis enquanto, por outro lado, a produção de São João do
Príncipe era escoada para Mangaratiba. Segundo Paula, “pelo alto Piraí havia o tráfego de
cafezistas de Barra Mansa e Resende, de cidades mineiras e goianas” (pág. 113).
112
Figura 2 – Região do Vale do Paraíba, à época da expansão do café; no detalhe, o vale do rio Piraí, onde, ao redor dos caminhos, se desenvolveu uma rede econômica subsidiária à produção cafeeira. Planta da Província do Rio de Janeiro, 1830 (Fonte: SEAF, Atlas Fundiário do Estado do Rio de Janeiro).
A produção do café se dava no regime das plantations: monocultura e uso extensivo
de mão-de-obra escrava. Seus produtores, grandes proprietários de terra cujo poder se
estendia da atividade econômica à esfera política, ficaram conhecidos como “barões do
café”. Em São João Marcos, na segunda metade do século XIX, 50% da produção cafeeira
estava concentrada nas mãos de cinco produtores, entre eles o “rei do café”, o Comendador
113
Joaquim José de Souza Breves. O Comendador Breves, cujos negócios eram sediados na
fazenda da Gramma, hoje no território de Rio Claro, se notabilizou como um dos maiores
produtores de café do Vale do Paraíba e mesmo do Brasil. Chegou a possuir 30 fazendas,
que se espalhavam pelos municípios de Mangaratiba, Resende, Barra Mansa e Rio Claro,
no estado do Rio de Janeiro, e Bananal e Areias, no estado de São Paulo. Segundo Paula,
“dizia-se, na época, que se podia ir do oceano até Minas Gerais sem sair das terras do
Breves” (pág. 49). Nestas fazendas, quase todas equipadas para a plantação e
beneficiamento do café, trabalharam cerca de seis mil escravos. Breves chegou a ser
responsável por 26% da produção do café de São João Marcos e Rio Claro, e 1,45% da
produção nacional. Além disso, se notabilizou por sua atividade de traficante de escravos,
intensificada justamente no momento em que, diante da expansão do café, o Vale do
Paraíba demandava implementos na mão-de-obra. A ilha da Marambaia, no litoral de
Mangaratiba, operava como “estação de engorda” para os escravos recém-trazidos pelo
Comendador Breves e, nos últimos anos, se notabilizou pela organização de seus moradores
em torno da identidade quilombola.
A economia do café no século XIX foi responsável pelo significativo crescimento
da população escrava do Vale do Paraíba. No período da expansão cafeeira, o número de
escravos na província do Rio de Janeiro se elevou de 119.141 (em 1844) para 370.000
escravos (em 1877), com especial concentração desta força de trabalho no Vale do Paraíba:
em 1883, de um total de 268.831 escravos da província, 156.009 encontravam-se nos
municípios cafeeiros46. No Vale do Paraíba paulista, o tráfico interprovincial se intensificou
a partir de 1875, e entre os anos de 1871 e 1879 se percebeu uma sensível alta no preço dos
escravos. Essa valorização do trabalho escravo tinha por motivo sua importância na lavoura
cafeeira: dos 249 escravos transacionados nos municípios de Guaratinguetá e Silveiras na
década de 1870, 170 tinham por atividade produtiva o “serviço da roça” 47.
A década de 1960 marcou a sociologia brasileira pela emergência de um “grande
consenso teórico” segundo o qual a transição, no século XIX, da economia mercantil-
46 Machado, Cláudio Heleno, “Tráfico de Escravos na Região de Juiz de Fora na Segunda Metade do Século XIX” <www.unb.br/face/eco/bmueller/trafico_interno.pdf> . 47 Dados de Guaratinguetá, do período de 1872 a 1874 e de 1878 a 1879; dados de Silveiras, de 1871 a 1879. In Motta e Marcondes, 2000.
114
escravista para a ordem social competitiva trazia consigo a chave explicativa da sociedade
brasileira (Guimarães, 2002). Sob forte influência marxista, esta sociologia enfrentou o
desafio de compreender a crise da ordem escravocrata para além do esquema estreito de
sucessão de modos de produção. É a partir desta leitura crítica da historiografia anterior que
estes autores, clássicos do pensamento social brasileiro, iriam interpretar a economia
cafeeira do Vale do Paraíba48.
Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997) aponta para a centralidade do caráter
mercantil da economia colonial49 e da necessária organização, desde a cultura do açúcar, de
um sistema produtivo calcado na exploração de uma massa trabalhadora em regime
escravista. Se, no período açucareiro, produção mercantil e trabalho escravo eram
elementos complementares do sistema econômico, já que a mão-de-obra escrava atendia à
necessidade de aumento da produção mercantil, na economia do café se revelaria o que
Octavio Ianni (2004) considerava a contradição estrutural deste modelo produtivo.
Segundo Ianni, a contradição mercadoria-escravo ficaria evidente na segunda
metade do século XIX em razão de um conjunto de transformações econômico-sociais
pelas quais passava a sociedade brasileira: expansão da produção mercantil,
desenvolvimento da divisão social do trabalho, diferenciação interna do sistema social,
aparecimento e expansão de atividades não-agrícolas, etc. Na medida em que a mercadoria
assumia a condição de categoria fundamental do sistema, a coexistência entre sua produção
e o trabalho escravo tornar-se-ia impossível: segundo Ianni, a conversão da fazenda
cafeeira em um empreendimento capitalista apontava para o caráter anti-econômico da
escravidão, bem como para a necessidade de desvinculação entre trabalhador e meios de
produção. A expansão dos setores não-agrícolas teria um papel fundamental na criação de
um mercado de mão-de-obra livre, no qual negros e mulatos comporiam o exército de
reserva. Por outro lado, a emergência da contraposição entre cidade e campo traria à baila o 48 Vale notar que a quase totalidade dos autores acima referidos produzem suas análises a partir da experiência paulista. Assim, embora empreendam preciosos exercícios de generalização, em suas pesquisas não dão conta dos processos ocorridos em outros estados, como no caso do Rio de Janeiro. Da mesma maneira, como veremos, acabam por construir um tipo-ideal de camponês (e de grupos camponeses) tendo por base empírica o sitiante paulista. 49 José de Souza Martins (2004) define a economia colonial como aquela fundada no comércio exportador de produtos tropicais e baseada na grande propriedade fundiária; vigente, portanto, no período imperial, bem como na passagem da ordem escravocrata para a ordem social competitiva.
115
antagonismo escravidão-liberdade, manifestação ideológica da contradição escravo-
mercadoria.
Segundo Franco (op. cit.) a contradição mercadoria-escravo se deveu ao fato de que
o sistema colonial escravista se desenvolvera em ligação com o mundo europeu, o que, ao
mesmo tempo em que lhe deu vitalidade, o direcionou para uma progressiva diferenciação e
integração. Foi esta vinculação à economia européia que determinou que o incremento de
mão-de-obra escrava em áreas de cultura de subsistência, como São Paulo no século XVIII,
pressionasse a economia para a produção mercantil, levando à coexistência de duas formas
produtivas conflitantes. Não se tratava de uma “dualidade integrada”, a superposição de
formações socioeconômicas distintas, mas de uma “unidade contraditória”: a autora não
caracteriza o escravismo no Brasil como um modo de produção, mas apenas como uma
instituição, cujo sentido é dado por “outras determinações” na ordem capitalista.
A associação mercado-escravo não se deu por carência de população livre passível
de tornar-se mão-de-obra. Segundo Franco (op. cit.), somado ao modelo produtivo calcado
no latifúndio e na monocultura, o regime escravocrata deu origem a um contingente de
homens livres que jamais foram integrados à produção mercantil. A incidência de áreas
que, não sendo exploradas, estiveram disponíveis para a posse e exploração por parte destes
homens livres e pobres, permitiu que esta “ralé” permanecesse à margem da economia
mercantil, embora sua posição tenha sido sempre determinada por ela.
José de Souza Martins (2004) aponta justamente para o quanto as relações de
produção não-capitalistas foram centrais para a articulação da ordem capitalista no Brasil.
A personificação do capital na figura do fazendeiro-capitalista revestia de coerência esta
contradição, inerente ao sistema econômico. Personificado no fazendeiro, o capital
apresentava uma racionalidade que se esgotava na circulação, obliterando a percepção das
relações que o engendravam. A economia colonial se caracterizava pelo primado da esfera
da circulação sobre as relações de produção: o escravo era incorporado ao sistema como
objeto de comércio, antes de constituir produtor direto. Sua relação com o senhor se
configurava como relação entre um capitalista fundado no monopólio do trabalhador e um
trabalhador fundado na desigualdade jurídica, uma desigualdade que era condição, não
116
fator, do capital. Neste sentido, o preço do escravo deveria antecipar uma parte de seu
trabalho excedente, o que fazia dele forma capitalista de renda, capital convertido em renda
capitalizada, portanto elemento irracional no sistema capitalista.
A superação da contradição mercadoria-escravo exigia justamente, segundo Ianni, a
racionalização plena do sistema econômico, não apenas no plano da empresa e do
capitalista, mas também no plano do trabalhador, o que significou transformar a força de
trabalho em mercadoria, produtora de mais-valia (op. cit.). No plano político, isso
significou tornar o escravo em cidadão, já que a mercantilização da força de trabalho exigia
que seu detentor tivesse condições jurídicas e políticas para negociá-la. A liberdade foi,
portanto, condição para a transformação da força de trabalho em mercadoria, constituindo
elemento de racionalização não apenas política, mas também econômica.
Dada a centralidade da esfera de circulação, para Martins, as mudanças nas relações
de produção estiveram, na passagem para a ordem social competitiva, diretamente
relacionadas à dinâmica do abastecimento da força de trabalho. Sua análise aponta para a
relação entre duas mudanças articuladas neste período: transformação da renda
capitalizada, do escravo para a terra, e transformação das relações de produção, do escravo
para o imigrante.
O início do século XIX foi marcado pela intensificação da doação de sesmarias no
Vale do Paraíba, para a produção do café. “Muitas fazendas eram formadas via aquisição de
sesmarias, outras eram formadas pelo simples apossamento” (SEAF, op. cit., pág. 22).
Segundo Martins, entretanto, a ocupação pela concessão de sesmaria era típica dos grandes
fazendeiros, enquanto o apossamento constituía estratégia característica do pequeno
lavrador. O sistema de doação de sesmarias se encerrou com a proclamação da
independência, em 1822, iniciando-se o período conhecido como “império das posses”, no
qual a relação com a terra permaneceria, até 1850, sem qualquer forma de regulação. A
terra, na ausência de um mercado imobiliário, não possuía valor venal, e o valor da fazenda
era advindo do acúmulo de trabalho escravo. Segundo Martins, “em 1822, a Associação
Comercial de Santos estimava que, do valor de uma fazenda, uns 20% poderiam
corresponder à avaliação da terra” (op. cit., pág. 25).
117
Era, portanto, a propriedade do escravo que atribuía ao fazendeiro a condição de
classe dominante. Forma de renda capitalizada na economia colonial, o escravo era, além
de força de trabalho, fonte de crédito. Os empréstimos bancários impulsionaram a
cafeicultura no Vale na segunda metade do século XIX, e os escravos se prestaram ao papel
de garantias hipotecárias até a década de 1880, apesar da perspectiva da abolição
(Marcondes, 2002). A Lei Euzébio de Queiroz, de 1853, que tornava ilegal o tráfico
internacional de escravos, deu partida ao processo de abolição, mas também produziu, no
terceiro quartel do século XIX, uma alta no preço médio do escravo, aumentando o capital
disponível para os fazendeiros do Vale (Martins, op. cit.).
A proibição do tráfico transatlântico teve como impacto sobre o Vale do Paraíba o
forte incremento do tráfico interno, sobretudo de escravos vindos do Nordeste, além do
crescimento do comércio ilegal de escravos vindos da África, do qual o Comendador
Breves se valeu. A possibilidade de crescimento da mão-de-obra, entretanto, era
desproporcional ao crescimento da cafeicultura. Além disso, como aponta Martins, a
disponibilização do escravo como fonte de crédito apresentava uma contradição: se a
demanda por escravos subia seu preço, o que aumentava a capacidade de obtenção de
capital do fazendeiro, a empresa cafeeira exigia a crescente imobilização do capital na
forma de escravaria, o que levava à migração do capital dos fazendeiros para o comércio
negreiro, apontando a abolição como saída.
A iminência do fim da escravidão, entretanto, exigia a alteração do regime jurídico
da terra, de modo a impedir seu acesso não apenas pelos trabalhadores nacionais, mas
também pelo contingente imigrante. A Lei de Terras, de 1850, criou um novo regime
jurídico para a terra, suprindo o vácuo legislativo instaurado em 1822, regularizando todas
as áreas obtidas até então pela posse ou pela doação de sesmarias. A nova lei, além de criar
impedimentos para que o contingente de trabalhadores livres pobres tivessem acesso à
terra, a transformava em mercadoria, também passível de ser usada como garantia para o
118
financiamento da lavoura, o que se tornou possível a partir de 1873, com a extensão do
crédito hipotecário de base imobiliária50.
Apesar da regularização de posses e sesmarias em 1854, através do registro
paroquial, nos anos seguintes novos apossamentos seriam registrados com documentos
falsos, supostamente anteriores àquele ano. O processo de “grilagem”, entretanto, era um
recurso disponibilizado apenas aos grandes fazendeiros. Estava impedido, desta forma, o
acesso à terra pelos camponeses, tanto pelos meios legais quanto pelos meios ilegais, e
recriadas, portanto, as condições de sujeição da força de trabalho (Martins, op. cit.).
Assim, segundo o autor, a modificação do trabalho escravo para o trabalho livre
ocorreu para preservação da economia colonial, “padrão de realização do capitalismo no
Brasil”. Neste processo, antigos elementos se rearticularam: a renda capitalizada se
transferiu do escravo para a terra. No que tange à força de trabalho, a articulação de novas
formas de produção não-capitalistas, como o colonato no Vale do Paraíba paulista, assume
um papel central. Ao contrário do que afirma Ianni, a hipótese de Martins é de que, “onde a
vanguarda da expansão capitalista está no comércio”, o sistema econômico não apenas
subordina a irracionalidade de relações pré-capitalistas, mas engendra novas relações não-
capitalistas para a sua reprodução.
As mudanças legislativas da segunda metade do século XIX foram fundamentais
para a compreensão dos rumos da economia cafeeira e do campesinato no Vale do Paraíba.
Entendidas de forma integrada, as duas leis apontam para o processo no qual o senhorio do
escravo foi, na história brasileira, substituído pelo senhorio da terra: a propriedade se
transfere do primeiro para a segunda. No que tange ao Vale do Paraíba, as duas leis ajudam
a explicar as condições de formação de seu campesinato: impedindo o camponês livre de
acessar a “mercadoria” terra, a Lei de Terras criava um mercado de força de trabalho que
seria fortemente incrementado, a partir de 1888, pelos negros libertos. O campesinato do
Vale do Paraíba é originado desta massa de escravos importada no período cafeeiro e
liberta na passagem do século XIX para o XX.
50 Esta extensão do crédito se deu no sentido dos estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina, o que ajudou a consolidar a hegemonia paulista na produção cafeeira (Martins, op. cit.).
119
A produção cafeeira do Vale do Paraíba começou a entrar em crise nas últimas
décadas do século XIX, por conta de fatores como o esgotamento do solo, a queda do preço
do café no mercado internacional e o final do regime escravocrata. O Barão Francisco
Peixoto de Lacerda Werneck, produtor de café da região, já em 1858 antecipava o impacto
do esgotamento do solo na crise: “minha muito velha e estéril fazenda, de cujo solo tirou
meu pai toda sua fortuna, mas que a deixou estragada completamente” 51. A abolição, por
sua vez, foi determinante para a crise da cultura cafeeira no Vale fluminense e a emergência
da produção do Oeste paulista, que já contava com o sistema de colonato. Em
contrapartida, fortemente ancorados no trabalho escravo, os fazendeiros fluminenses se
viram descapitalizados após 1888. A conjunção entre abolição do regime escravista e
regulamentação da relação com a terra teve, no Vale do Paraíba, como conseqüências, a
monopolização do acesso à terra, a crise da cultura cafeeira e o aumento do contingente de
trabalhadores livres despossuídos.
Desta forma, as transformações nas relações de produção de que tratam os autores
não tiveram por objetivo alterar as condições de trabalho dos escravos, agora libertos, mas a
substituição sistemática desta força de trabalho por outra, composta por colonos imigrantes.
Florestan Fernandes (1964) explica o fim da escravidão e a conseqüente posição do “negro”
e do “mulato” na emergência do trabalho livre como o resultado de uma estratégia
econômica que, objetivando retirar os entraves ao afluxo de mão-de-obra estrangeira,
acabou por excluir os ex-escravos deste mercado de força de trabalho. Para Fernandes, a
ausência de quaisquer tipos de amparos legais e materiais aos libertos após 1888 tornou a
abolição uma “ironia atroz”: segundo Ianni (op. cit.), durante décadas, o negro continuaria a
ser apenas o ex-escravo.
Segundo Fernandes, os ex-escravos fracassaram na tentativa de inserção na nova
ordem, em benefício da força de trabalho imigrante, mesmo nas antigas ocupações, para as
quais eram considerados qualificados. Onde a produção atingia níveis altos, redundando na
formação de um mercado de trabalho, o negro liberto competia com a mão de obra
imigrante e com o exército de reserva formado pelos “trabalhadores nacionais”, mas em
franca desvantagem diante dos dois estratos. O resultado deste fracasso foi o deslocamento 51 Documentário “O Vale” (2000, João Moreira Salles e Marcos Sá Correa).
120
dos negros e escravos libertos para as áreas agrícolas em declínio, onde sofreram
ajustamentos reintegradores. Além disto, o temor de uma “rebelião negra” impediu a
organização da vida social dos escravos e libertos, o que não lhes permitiu nem a afirmação
como categoria social, nem a integração a categorias sociais abertas à participação. Tanto
no contexto emergente da vida urbana quanto na reestruturação do quadro rural, a
integração de “negros” e “mulatos” apresentou um caráter residual. A diferença, entretanto,
reside no fato de que, no campo, a implantação da ordem social competitiva se deu de
modo mais lento, e com diferentes graus de prosperidade, o que criou oportunidades de
acomodação dos ex-escravos que não existiam no ambiente urbano.
Para além da percepção de um projeto sistemático de exclusão dos negros e mulatos
do sistema produtivo, Fernandes identifica como causa deste cenário o conjunto de reações
de ex-escravos ao trabalho livre, em contraposição à atitude do branco, sobretudo do
imigrante. Enquanto os imigrantes assumiam uma postura mais pragmática diante da
relação de trabalho, entendida como uma oportunidade para a ascensão social pela via da
acumulação, os recém-libertos se colocavam moralmente diante de sua condição de
trabalhadores livres, comportando-se na relação de trabalho “como se estivessem em jogo
direitos substantivos sobre a própria pessoa”. A recusa de trabalhos degradantes, a
indisciplina em relação ao controle, o desinteresse pela acumulação, a resistência à
competição individual constituíam desvantagens deste contingente na nova ordem social,
sendo interpretados como modos de ação “pré e anti-capitalistas”. Jogados à competição
com a “plebe branca” pelas posições mais inferiores, para os ex-escravos tal inserção
apresentava-se como a permanência do antigo status, a apontar para o déficit de liberdade,
atingindo seu senso moral.
Assim, segundo Martins (op. cit.), na passagem do trabalhador na forma de renda
capitalizada para outro, na forma de trabalho contraposto ao capital, o ex-escravo
encontrava-se incapacitado pelo próprio regime escravista que o criou. Em um feixe de
relações no qual o elemento motivador para o trabalho deixava de ser a vontade do senhor
para ser a vontade do próprio trabalhador, o escravo, que não fora “educado” na ética
protestante weberiana, jamais ultrapassaria a motivação pela coerção física. Se, para o
negro liberto, a liberdade é a negação do trabalho, para o colono o trabalho é a realização
121
da liberdade, uma vez que constituía a única possibilidade de alcançar a condição de
proprietário.
O Vale do Paraíba fluminense apresentava-se, neste quadro, como área agrícola em
desagregação, contando com um considerável contingente de escravos quando do fim do
regime escravocrata. A estagnação econômica que se seguiu foi responsável pelo
deslocamento da força de trabalho para outras áreas do Rio de Janeiro, a partir de 1890. A
cafeicultura começava a se expandir no Norte da província, enquanto o Vale passava a
concentrar suas atividades na pecuária semi-extensiva e na horticultura. Em 1921, o
“Mappa Agrícola” do Ministério da Agricultura apontava para o resultado deste
deslocamento: municípios como Itaperuna, Cambucy e Santo Antonio de Pádua, no
extremo norte do estado, apresentavam áreas de mais de 9.000 ha cultivadas de café,
enquanto Rio Claro, que já fora destaque nacional no produto, estava entre os municípios
cuja área produtora de café oscilava entre 400 e 2000 ha, juntamente com Resende, Barra
Mansa e Vassouras. Em Valença a produção de café era inexpressiva, não chegando aos
400 ha plantados.
Em 1943, o Departamento Nacional do Café não registrava mais a presença de
cafeeiros no município de Rio Claro. A atividade agrícola do município passou a se
concentrar em outros produtos, como milho, arroz, cana, mandioca e feijão. A ênfase na
pecuária, entretanto, seria um dos fatores responsáveis pelo êxodo rural. A primeira metade
do século XX se caracteriza, em todo o estado, pela “desarticulação do quadro rural”, com
o predomínio das áreas de pastagem, tendência que se consolidaria na segunda metade do
século: 42% em 1950, 49% em 1960 e 56% em 1970 (SEAF, op. cit.). De maneira geral, a
virada do século marca o início de um período de crise no Vale do Paraíba. Em 1919,
Monteiro Lobato escreveu: “ali no Vale tudo foi e nada é. A riqueza transfez-se em
palacetes e ruínas, ou reentrou na circulação européia, pela forma de herdeiros dissipadores.
Nada é presente, tudo é pretérito, e o deserto lentamente retoma as posições perdidas”52.
A crise do café atingiu a região de São João Marcos e Rio Claro antes mesmo da
abolição da escravatura. Segundo Paula, “em 1873 havia 2.398 escravos em Rio Claro e
52 “O Vale” (2000, João Moreira Salles e Marcos Sá Correa).
122
7.810 em São João Marcos. Em 1885 esses números caíram para 1.389 no primeiro e 5.206
no segundo município, respectivamente” (pág. 73). Os dois municípios sofreriam, no início
do século XX, um impacto adicional à crise da economia cafeeira: a partir de 1905, a
“Light” (The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Co. Ltd., empresa anglo-
americano-canadense) passou a atuar na região, construindo sua primeira hidroelétrica no
município de Piraí e formando a represa de Ribeirão das Lages. São João Marcos, vizinho
de Piraí, começou a sofrer o impacto do empreendimento: agricultores perdiam suas
fazendas com o alagamento e uma epidemia de malária alastrou-se pelo município,
principalmente pelo distrito de São Sebastião do Arrozal, que foi depois completamente
alagado. Por outro lado, outros agricultores da região sofriam com a seca dos rios produzida
pelo represamento. O município percebeu uma queda de arrecadação: em 1904,
imediatamente antes do alagamento, foram recolhidos 7340$210 em impostos; em 1910, a
arrecadação caiu para 400$00. Inicia-se, neste período, um processo de deslocamento da
mão-de-obra disponível que caracterizaria a região pelos próximos anos.
A população marcossense foi reduzida de 18 mil habitantes, no final do século XIX,
para 7.100 na década de 192053. O crescente impacto da atuação da Light adensou a crise
econômica do município até que, em 1938, ele foi anexado a Rio Claro (que se emancipara
de São João Marcos em 1846). Nesta época, a Light empreendia uma campanha para
expansão da represa, o que implicaria o alagamento da própria cidade de São João Marcos,
o que levou o SPHAN (Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) a tombar a
cidade em 1939. Entretanto, neste mesmo ano, um decreto presidencial “destombou” a
cidade de São João Marcos, autorizando a desapropriação de prédios e terrenos para o
alagamento.
Na virada do século XX, com o processo de industrialização, alguns municípios do
Médio Paraíba foram capazes de se reestruturar economicamente; outros, como São João
Marcos e Rio Claro, passaram a viver exclusivamente da pecuária extensiva e da
horticultura, entrando em um longo período de retração econômica. A primeira fase da
industrialização do Vale do Paraíba se deu imediatamente após o fim do ciclo do café, nas
53 Parecer relativo ao pedido de tombamento do sítio histórico de São João Marcos (DEPROT/IPHAN/RJ nº. 001 2003).
123
décadas de 80 e 90 do século XIX, tendo em vista a infra-estrutura deixada pela atividade
cafeeira, principalmente a rede ferroviária. Produção de gás e óleo minerais,
beneficiamento de produtos agrícolas e indústria têxtil eram as atividades deste primeiro
período, que respondia à vocação produtiva da região. Para além da infra-estrutura
disponível, foi fundamental para a industrialização da região sua localização estratégica,
entre Rio de Janeiro e São Paulo.
Após passar por um período de recessão na República Velha, a região fluminense
do Médio Paraíba voltou a crescer na década de 1930. O crescimento do município do Rio
de Janeiro e a presença de um porto exportador adensaram o processo de industrialização e
a retração das atividades do setor primário em todo o estado: em 1940, 28,2% da população
economicamente ativa concentravam-se no setor primário, contra 19,1% no setor
secundário e 52,7% no terciário. Em 1960, esses números mudariam para 14,3%, 21% e
64,7%, respectivamente (SEAF, op. cit.). A região do Médio Paraíba concentrou o
movimento de industrialização, cuja ênfase foi no setor metalúrgico, com a criação da
Siderúrgica de Barra Mansa e a Metalúrgica Barbará, no final da década de 1930, e a Cia.
Siderúrgica de Volta Redonda, em 1945.
Este movimento coincide com a abertura, também na década de 40, da Rodovia
Presidente Dutra, ligando Rio de Janeiro a São Paulo, e cortando a região do Médio
Paraíba. Isso levou, consequentemente, ao esvaziamento do interior e à urbanização do
contingente populacional do estado: entre as décadas de 1940 e 1970, embora o Rio de
Janeiro tenha percebido um crescimento populacional acima da média nacional, sua
população rural diminuiu. No que diz respeito ao Vale, tal urbanização se deveu tanto ao
deslocamento populacional para outras regiões quando à metropolização da própria região,
cujo núcleo urbano se concentrou nos municípios de Volta Redonda, Resende e Barra
Mansa, atraindo inclusive novos fluxos migratórios. Nas décadas de 1970 e 1980 as taxas
de crescimento da população destes municípios chegaram a superar as da Região
Metropolitana.
Tal atividade demandou, já na primeira metade do século XX, um aumento da
produção de carvão vegetal, para alimentar os fornos das indústrias. O trabalho do carvão
124
inviabilizava quaisquer outras formas de produção. Segundo Coelho de Souza, “diferentes
tarefas na preparação do carvão vegetal exigem do carvoeiro atividade intensa, sem
interrupção e sem descanso. (...) Alguns deles, quando o dono da terra permite, têm suas
pequenas plantações e criações. Mas o mais comum é nada plantarem, adquirindo tudo na
cidade mais próxima” (1970, pág.).
Marcada pela ausência de alternativas, diante da expansão da pecuária no início do
século XX, a força de trabalho disponível nos vales do Paraíba e do Piraí não teve opção
senão aderir a uma atividade extrativista subsidiária à produção industrial. Assim como o
colonato constituiu a forma não-capitalista de relações de produção que criou as condições
necessárias para a reprodução da grande empresa agrícola em São Paulo (Martins, op. cit.),
a exploração do carvão foi uma das poucas alternativas disponíveis para o exército de mão-
de-obra de reserva em uma área agrícola em desagregação, mas em completa dependência
da industrialização.
Forma de trabalho familiar caracterizada pelo que Martins chamou de salário
aritimético, aquele “que entra na cabeça do capitalista, mas não entra no bolso do
trabalhador”, a exploração do carvão constituiu um dos elementos irracionais da relação
entre campo e cidade na industrialização da região do Médio Paraíba. Sua permanência, até
a década de 1950, foi responsável pela circulação da força de trabalho pela região que
outrora se caracterizara pela produção de café. A comunidade remanescente de quilombo
do Alto da Serra se formou, como veremos a seguir, justamente a partir de duas famílias de
trabalhadores negros que, descendentes dos escravos que ocuparam a região cafeeira,
engajaram-se na produção de carvão na primeira metade do século XX, circulando pelo
Vale do Paraíba, até que assumissem, na década de 1950, a condição de um campesinato
livre comunal.
125
Capítulo 5 – “Na Casa de Meu Pai Há Muitas Moradas”54: trajetórias
familiares, identidade e territorialidade entre camponeses negros.
no rastro do carvão: processo de formação de uma família camponesa negra
A comunidade remanescente de quilombo de Alto da Serra é formada a partir dos
cruzamentos matrimoniais das famílias Leite e Antero, que chegaram ao distrito de Lídice
na década de cinqüenta, impulsionadas pela produção de carvão vegetal. A exploração de
carvão vegetal na região está intimamente ligada ao processo de industrialização que tomou
conta do Vale do Paraíba nas primeiras décadas do século XX. A ocupação destas duas
famílias tem início com sua chegada à região conhecida como Sertão do Sinfrônio, no alto
da Serra do Sinfrônio, que ladeia o vale hoje ocupado pela família Leite, e que é conhecido
como Alto da Serra.
A exploração de carvão vegetal se deveu à escassez das jazidas de carvão mineral,
concentradas no sul do país. Característica do sudeste brasileiro, segundo documento do
IBGE (Coelho de Souza, 1970), a exploração do carvão vegetal pode assumir diferentes
configurações, encarregando-se o carvoeiro, em geral, de “alguns alqueires da mata
arrendada pelo ‘empreiteiro’, que é o empregador(...) Geralmente o carvão é vendido aos
cargueiros e tropeiros, que nas suas tropas de burro transportam-no do meio da mata para a
cidade onde será vendido. Às vezes, o carvão é adquirido por intermediários que o
transportam em caminhão. Outras vezes, ainda, são os próprios carvoeiros que partindo de
madrugada de seus sítios vão à cidade vender o produto de seu trabalho. Muitos carvoeiros
trabalham por conta própria, sendo que os outros trabalham para ‘empreiteiros’”.
No Vale do Paraíba, a atividade carvoeira era implementada por “empresários”, que
agenciavam o trabalho de carvoeiros, vendendo a produção de carvão para as indústrias
metalúrgicas. A condição de empresário estava vinculada à propriedade de um armazém
local, onde o carvão era negociado, e de onde partiam as cargas para as empresas para as 54 “Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se não fosse assim, vo-lo teria dito: vou preparar-vos lugar” (S. João 14:3).
126
quais era vendido. O empresário podia ser proprietário ou não da área explorada. Um ex-
carvoeiro de Resende aponta para uma das formas como se dava a relação entre proprietário
e empresário: “a mata pertencia ao dono, e o dono passava a mata para o empresário, e
recebia por ‘metragem’, por saco”55.
No caso de Lídice, alguns armazéns ficavam no centro da “vila”, outros podiam
ficar mais próximos às áreas de exploração do carvão, como era o caso dos empresários que
atuavam no Sertão do Sinfrônio. O carvão era trazido para o armazém das áreas de
“carvoagem” (onde era produzido pelos carvoeiros, espalhadas no meio da mata) por tropas
de mulas, conduzidas pelos “tropeiros”. O tropeiro tanto podia ser um empregado do
empresário como podia conduzir suas próprias mulas, o que, neste caso, lhe dava a
condição de autonomia. Quando chegava a tropa de burros com o carvão trazido das áreas
de carvoagem, o apontador anotava a carga referente a cada um dos carvoeiros,
contabilizando sua produção mensal.
O armazém era também o local onde o carvoeiro se abastecia, comprando “na
caderneta” e acertando no final do mês. As compras eram feitas no início do mês, e a
caderneta era fechada, em geral, no dia 30. O armazém onde o carvoeiro se abastecia era
necessariamente o armazém do empresário para o qual produzia carvão, e apesar de uma
mesma região contar com mais de um empresário, como era o caso do Sertão do Sinfrônio,
cada carvoeiro trabalhava para apenas um deles. Segundo Benedito Leite, era comum
algum carvoeiro ficar devendo no fim do mês, mas era mais comum ter saldo; dependia
sempre “de quem trabalhava mais e quem trabalhava menos”. Mário Biondi, filho de um
antigo empresário de carvão de Lídice, Giuseppe Biondi, conta que era mais comum que os
carvoeiros ficassem devendo, e anos mais tarde, já depois de falecido seu pai, chegou a
receber, no velho armazém ainda em funcionamento, antigos carvoeiros que voltaram para
saldar suas dívidas.
Em alguns casos, a relação entre o empresário e o carvoeiro era mediada pelo
“empreiteiro”. Este ficava com um “pedaço de mato” pelo qual era responsável,
respondendo diretamente ao empresário. Terezinha Leite faz referência a empresários que
55 “O Vale” (2000, João Moreira Salles e Marcos Sá Correa).
127
“arrendavam” ou “alugavam mato” (provavelmente para empreiteiros). Segundo Benedito
Leite, o empreiteiro, onde houvesse, comprava carvão dos carvoeiros, repassando ao
empresário. O empreiteiro podia ser um dos carvoeiros: Sebastião Rodrigues, amigo da
família Leite, conta que atuou como empreiteiro durante muitos anos, mas nunca deixou de
ser carvoeiro.
O nomadismo era condição fundamental para a atividade carvoeira: o carvoeiro e
sua família se deslocavam para a área que oferecesse melhores condições de trabalho, e lá
permaneciam até que a oferta de trabalho se esgotasse ou até que tomassem conhecimento
de uma área que pagasse melhor, ou para trabalhar para um “patrão melhor”. Segundo
Benedito Leite, liderança da comunidade, “era assim, quando a gente tava trabalhando num
lugar, quando via que o outro tava pagando mais, a gente mudava, num tinha lugar,
paradeiro certo não”. Quando tinha notícia da oferta de trabalho, o carvoeiro ia até o local
“pra ver se agradava”; caso agradasse, o carvoeiro fazia a casa no local, ou ocupava com
sua família alguma casa já pronta e abandonada, definindo seu “taião”, a área onde
exploraria madeira para a produção de carvão, e construindo seus fornos. O processo
utilizado para a produção de carvão na região do Médio Paraíba era rudimentar, utilizando-
se fornos construídos de barro ou escavados nas encostas. A exploração do “taião” era feita
pela família, unidade de trabalho da “carvoagem”, e os filhos mais velhos de Benedito
trazem a memória do trabalho no carvão junto a seu pai. O abandono de uma área de
“carvoagem” era determinado também pelo esgotamento dos recursos:
“Eu vim pra Resende porque finalmente o serviço que eu estava nele já
não estava dando mais; a mata estava acabada, estava uma mata fraca,
só capoeirão, e a gente também não estava produzindo uma produção
adequada com as despesas da gente (...) quando mudava de lugar em
lugar é porque a mata onde estava já tinha acabado e o meu patrão que
era o dono da mata queria me colocar em lugar que outros carvoeiros
deixaram pra trás, então era donde eu me mudava de lugar.”56
56 “O Vale” (2000, João Moreira Salles e Marcos Sá Correa).
128
Tal nomadismo era incentivado pelos próprios empresários de carvão, que
buscavam trabalhadores mais competentes em áreas exploradas por outros empresários.
Sebastião Rodrigues, antigo empreiteiro, conta que, na época, trabalho de carvoeiro “era o
trabalho mais fácil de arrumar que tinha”. Este amigo da família Leite, que foi
“empreiteiro”, mas também carvoeiro, poderia estar fazendo referência tanto à facilidade
dos carvoeiros em encontrar trabalho quando à facilidade dos empresários em arregimentar
mão-de-obra. Dona Maria de Lourdes lembra que sua família veio para o Sertão do
Sinfrônio em um caminhão, agenciado pelo próprio empresário.
As condições de moradia desta força de trabalho nômade eram caracterizadas pela
precariedade: a famílias de carvoeiros moravam espalhados pela mata, mais ou menos perto
de onde fizessem sua carvoagem, em casas de palha oferecidas pelos empresários enquanto
lhes prestassem serviço na região. Benedito se refere à época em que, criança, chegou a
morar em casas de palha com sua família, e Maria de Lourdes, sua irmã, lembra que,
quando viviam no Sertão do Sinfrônio, “vizinho era muito difícil”. Souza chama a atenção
para as condições de moradia deste “tipo característico” da região sudeste: “o carvoeiro
vive sempre no mato, em grande isolamento, morando em toscas palhoças de pau-a-pique
de palmito, cobertas de sapê, sem nenhum conforto e higiene” (IBGE, op. cit., pág. 294).
Os empreiteiros também moravam em áreas próximas à carvoagem.
O sertão do Sinfrônio fica localizado no alto de uma das serras que ladeia o atual
território da comunidade, a Serra do Sinfrônio, e tinha sua produção de carvão explorada
principalmente por dois “empresários”, chamados Sebastião Bernardino e Levino das
Neves. Hoje abandonada, tendo umas poucas casas, a área era, segundo relatos, espaço
preferencial para a exploração de carvão na década de 50, e os moradores mais velhos de
Alto da Serra se lembram da efervescência da vida e da produção na época. Segundo relatos
dos moradores, o sertão “era cheio”. A área central da ocupação era conhecida como
“Serraria”, às margens do Rio Papudo, onde ficavam os dois armazéns, as casas dos dois
empresários, uma serraria e um depósito; era também onde os caminhões iam buscar a
produção de carvão, e onde aconteciam festas e jogos de bola. Uma escola funcionava na
casa de Levino das Neves. Muitos caminhões, muita criança, muita gente morando, o
Sertão do Sinfrônio “parecia uma cidade”, segundo Benedito Leite. “Hoje, diz ele, só tem
129
onça e três pessoas”; “só sobrou uma capoeira”, completa um dos seus filhos. Segundo
Maria de Lourdes, a carvoagem no Sertão do Sinfrônio acabou por causa da “dismatação”:
“não tinha mais mato pra derrubar”. Dentre os poucos remanescentes hoje no Sertão do
Sinfrônio estão Geraldo Angola, filho de carvoeiro do local, e a família de Levino das
Neves, o antigo empresário.
Habitado por famílias de carvoeiros, um registro fotográfico da família Leite sugere
que a ocupação do Sinfrônio, na época, era predominantemente negra (vide foto em anexo).
Caminhões faziam o transporte do carvão produzido no Sertão, e a produção chegava a
trinta caminhões por mês, ou 4.000 sacos de carvão57. Sebastião Bernardino trabalhava com
quatro tropas de cinco animais por dia e seus tropeiros não eram fixos, sendo por ele
recrutados dentre os carvoeiros que soubessem “mexer com animais”. Benedito Leite conta
que, apesar de trabalhar no Sertão do Sinfrônio produzindo carvão, sabia trabalhar bem
com animais, razão pela qual, certa ocasião, lhe fora atribuída a função de tropeiro por seu
então “patrão”, tocando tropa por três anos. O ofício de tropeiro, conta Benedito, era menos
rentável que o de carvoeiro, mas oferecia a vantagem de um ganho regular, já que sua renda
como carvoeiro era variável: dependia do quanto viesse a produzir.
O carvão produzido era vendido para indústrias siderúrgicas, provavelmente de
Barra Mansa. Paulo, filho mais velho de Benedito, conta que a empresa que comprava
carvão no Sertão do Sinfrônio e no Alto da Serra era a Barbará, sediada em Barra Mansa.
Hoje chamada Sangoban, a Barbará fabricava tubulação para água e esgoto, e usava o
carvão como combustível para seus fornos. Segundo Benedito, o carvão era comprado pela
“siderúrgica”, e também pelos “portugueses”, que compravam carvão para mandar para o
Rio de Janeiro. Mário Biondi diz que o carvão que seu pai produzia era vendido para a
Barbará e para a Siderúrgica Barra Mansa.
57 Um cálculo feito por um ex-carvoeiro pode dar a idéia da velocidade na qual a exploração de carvão esgotava os recursos naturais: segundo ele, 50 árvores produziam, em média, 100 sacos de carvão (“O Vale”, 2000, João Moreira Salles e Marcos Sá Correa). Isto significa que a exploração de carvão no Sinfrônio derrubava uma média de 2.000 árvores por mês.
130
A secretária de Desenvolvimento do município chega a ser referir à existência, na
região, de um “ciclo do carvão”, cujos resultados foram, na sua avaliação, deletérios para o
município, nos mais variados aspectos:
“O ciclo do carvão foi horrível. Primeiro pela exploração da natureza,
segundo pela exploração humana. Ele não traz nada pro município, traz
uma devastação, tanto no aspecto humano, se você vir os testemunhos
de quem trabalhou neste ciclo, é uma coisa de horror. As pessoas viviam
em barracões provisórios, caiam nos fornos. Por exemplo, a família
Biondi veio pro município pra comercializar o carvão, eles compravam
carvão do sertão inteiro, e até hoje o Mário Biondi tem um armazém,
onde é aquele esquema, o cara vendia o carvão e comprava o alimento.
Ele conta o seguinte, o carvão não podia passar do ponto, porque ele
podia queimar, né, aí quando começava a soltar a fumaça branca,
quando acabava a fumaça branca é que tava no ponto do carvão. As
pessoas tinham que ir correndo, no meio da noite, com frio, criança
trabalhando, todo mundo analfabeto, até bem pouco tempo o município
chegou a ter 72% de analfabetos. Ficamos aí com 12000 habitantes por
30 anos, 70, 80, 90, ou seja, todo mundo indo embora.
A família Antero foi a primeira das duas famílias a se estabelecer no Sertão do
Sinfrônio. Separado de sua mulher, Domingos Antero, que segundo sua filha Terezinha era
de Santa Isabel do Rio Preto, chegou ao Sinfrônio em 1953, acompanhado de seus filhos
Sebastião, Miguel e Teresa, que tinha, à época, seis ou sete anos. Miguel, já falecido, tinha
um ano a mais que Terezinha, e Sebastião, à época, tinha 10 a 11 anos. Terezinha nasceu
em 1947 em Passa Três, 4º distrito de Rio Claro, onde seu pai já trabalhava fabricando
carvão para o Comendador Geraldo Osório, notório empresário do ramo de transportes de
Barra Mansa, eternizado em um painel localizado na estação rodoviária que leva seu nome,
no qual comanda uma tropa de carvoeiros. O impacto do represamento do rio Piraí para
empreendimentos hidrelétricos foi sentido pela família: segundo Dona Terezinha,
Domingos teria contraído certa “febre maleta” (malária?), na época muito comum na
região, que quase lhe tirou a vida. Segundo Terezinha, a experiência da febre teria feito
131
com que seu pai se “contrariasse” com o lugar e fosse embora. Ao explicar o semi-
nomadismo de sua vida de infância, Dona Terezinha articula esta característica pessoal de
seu pai: era um homem que se “contrariava” facilmente com os lugares onde vivia, se
mudando constantemente.
Provavelmente em 1950 a família chega a um lugar chamado “Bocaina”, segundo
Terezinha localizado ao lado de Bananal, município paulista, onde Domingos produziu
carvão para certo Candido Silva, e onde ele e sua esposa, Benedita, se separaram. Benedita
partiu para Amparo, próximo a Santa Isabel. Três anos depois Domingos e seus três filhos
se mudaram para outro lugar, referido por Dona Terezinha como “estado de São Paulo”, e
dois anos depois chegaram ao Sinfrônio, onde o pai não trabalharia diretamente na
produção de carvão, mas retirando madeira para sua produção, “cortando lenha”,
trabalhando para um empresário chamado Duca das Neves, filho de Levino das Neves. No
entanto, segundo ela, seu pai desceu logo para o Alto da Serra, o vale abaixo do Sertão do
Sinfrônio, não chegando a ficar um ano completo naquela localidade. Segundo Terezinha,
seu pai desceu contrariado com o frio característico do Sinfrônio, e passou a fabricar
carvão, já no Alto da Serra, para certo João Medeiros. Apesar das sucessivas mudanças do
pai estarem referidas por Dona Terezinha ao seu temperamento, ela relata que o pai teria
sido “trazido” por este empresário: “o homem que trouxe ele pra cá, João Medeira, aí...
colocou ele numa casinha lá”.
Já em Alto da Serra, Domingos continuaria ligado à economia carvoeira,
progressivamente migrando para a atividade agrícola que caracterizaria o grupo com o
declínio da produção de carvão, “formando sítio” no local onde seu “patrão” lhe alocou.
Esta passagem para a atividade agrícola é entendida, em uma entrevista de Terezinha Leite,
como indicativa de uma maior “liberdade”, possivelmente porque não estava marcada pela
relação cotidiana com um “patrão” e não era monetarizada. Segundo Dona Terezinha, seu
pai
“trabalhou na fazenda, fazedor de carga, caminhão. Aquelas cargas de
carvão, meu pai fazia todas aquelas cargas. Eu me lembro que ele... fazia
aquelas cargas. Carregava caminhão. Ia pra Barra Mansa (...). O serviço
132
dele mais era assim. E nisso, que tá aí... ele foi ganhando liberdade pra
plantar, mais tempo, mais liberdade pra plantar alguma coisa. Em volta
da casa onde ele morava, né? Onde a gente morava lá. Aí ele começou a
fazer uma produçãozinha, uma coisa e outra, e dali, plantando, formou o
sítio”.
Alcides Leite, sua mulher Benedita e seus então seis filhos chegaram ao Sertão do
Sinfrônio cerca de cinco anos depois da descida dos Antero, em 1959, “já no fracasso do
carvão”. Benedito Leite conta que “depois que nós chegamos, não chegou muita gente
mais, não. Nós, quando chegamos no Sertão do Sinfrônio, o serviço de carvão já estava
indo pro final, já estava terminando, muita gente já estava indo embora. Em vez de chegar,
estava indo. E a gente chegou já na restinga do serviço”. Alcides, no Sertão do Sinfrônio,
trabalharia para Sebastião Bernardino, notório empresário de carvão da região, que depois
empregaria seus quatro filhos homens. Alcides vinha de Engenheiro Passos, distrito de
Resende, localizado no extremo oeste do estado, na fronteira com São Paulo. Engenheiro
Passos, hoje localizado no último ponto da Presidente Dutra antes do estado de São Paulo,
foi também notório pela produção de café no século XIX. Mais tarde, Resende se destacou
no processo de industrialização do Vale do Paraíba fluminense, juntamente com Barra
Mansa e Volta Redonda, contando hoje com um parque industrial de 23 milhões de metros
quadrados, com destaque para o setor metal-mecânico (dados da Prefeitura de Resende). A
industrialização do município tornou intensa também ali a produção de carvão, atividade de
Alcides naquela região.
Após deixar Engenheiro Passos, provavelmente em 1943, a família se mudou para o
Sertão da Barra, em Bananal (SP), depois para localidade chamada de Roseira, no Norte de
Resende, e então para Madeireira, Mutuca e Invernada, todas no município de Bananal,
sempre em função da atividade carvoeira. Em uma entrevista, Benedito Leite se refere a
outra localidade, para onde teriam ido logo após deixarem Engenheiro Passos, “Sertão da
Bela Aurora”. Em Bananal, a família se separou de Francisco Leite, irmão de Alcides que
também trabalhava na produção de carvão. Em Madeireira a família Leite permaneceu por
cerca de dez anos até que, em 1959, com 16 anos, Benedito chegou com seus pais e irmãos
ao Sertão do Sinfrônio, onde a família permaneceria por mais uma década. Dos 11 filhos
133
vivos de Alcides e Benedita, três nasceram em Engenheiro Passos (Benedito, Sebastiana e
Ondina), cinco nasceram em Bananal (Maria de Lourdes, Maria Aparecida, Alcidéia,
Anésio e Juventino) e três nasceram já no Sertão do Sinfrônio (Geraldo, Dionésia e Célia).
A ocupação do território do Alto da Serra pelas famílias Leite e Antero
esteve ligada, portanto, ao agenciamento do trabalho dos que desciam do Sertão do
Sinfrônio na atividade carvoeira. Neste processo, “formaram sítios” em áreas de
propriedade dos empresários de carvão, ou em áreas de outros supostos proprietários,
alocados, entretanto, por seus “patrões”. Esse foi o caso de Domingos Antero, que chegou
ao Alto da Serra agenciado por João Medeiros, empresário de carvão, mas foi posto por
Medeiros para morar em área que seria de propriedade de certo José Maria Rola. Mais
tarde, quando já não produzia carvão para Medeiros, tomou conhecimento de que as terras
que ocupava não eram de propriedade de seu “patrão”. A permanência na área, sempre
consentida pelos supostos proprietários, está vinculada, no discurso do grupo, à tarefa de
“tomar conta” do terreno, aliada ao desinteresse ou à indisponibilidade dos supostos
proprietários em ocupar a área. Como conta Terezinha Leite,
“ele [seu pai] veio morar, justamente, dentro do terreno do José Maria
Rola (...) foi trabalhar pro João Medeira (...) um fazendeiro, que tinha na
fazenda. Fica lá em cima, né? Mas ele tocava o movimento aí, né? O
movimento no terreno do José Maria Rola. O José Maria Rola morava no
Rio (...) ele foi pro Rio e as terras ficou aí. E aí... e nisso de o meu pai
descer do Sertão do Sinfrônio pra cá, o João Medeira colocou o meu pai
dentro do terreno do José Maria Rola. E o meu pai não sabia. Esse
homem não explicou ao meu pai (...) Mas depois o meu pai descobriu (...)
Então... ele continuou trabalhando, né? No lugar onde ele tava morando,
um lugar muito bonito, pra fazer um sítio, e ele fez, ele gostava muito de
plantação, né?... aí ele ficou. Aí com tempo apareceu... O genro do José
Maria Rola veio encontrar meu pai, porque lá ele descobriu que tinha um
homem morando dentro do terreno dele. (...) Esteve dentro da casa do
meu pai. Aí conversou com meu pai, meu pai mostrou pra ele o sítio, disse,
“eu tô morando aqui, o João Medeira me colocou aqui, eu não sabia que
134
esse terreno era do seu sogro, né?”(...) [o genro] disse: “tudo bem, o
senhor vai continuar aí, o senhor tá aí, o senhor tá cuidando, o senhor
continua cuidando... continua cuidando. O senhor fica aí, o senhor
continua plantando, porque ele tá cansado, ele nem, aqui ele não vai se
esforçar de vir, e eu tenho trabalhos pra lá também (...) então, o senhor tá
aí, o senhor não tem idéia de sair, pois então fica aí”. Meu pai ficou. Meu
pai ficou com essa ordem. (...) Foi trabalhando, né? E prestando atenção
nas divisas, nas terras. (...) Depois parece que ele morreu, o rapaz veio
umas três vezes, depois o rapaz também sumiu, não voltou mais. (...) O
rapaz falou, “se o senhor precisar fazer casa, o senhor faz, não fora
daqui, faz dentro do terreno mesmo. O senhor faz aí...” Isso o meu pai fez.
O vínculo meramente jurídico surge, nos discursos do grupo, como um vínculo
fraco, se comparado com a ocupação efetiva, ou seja, a moradia e a produção. Benedito
conta que ninguém na área chegou a conhecer José Maria Rola, de quem se diz que visitou
a área “há uns cinqüenta anos”. Ainda segundo Benedito, Rola seria um comprador de
terras em leilão, terras que ia “abandonando”, sendo proprietário de terras “pra todo lado”,
e “que todo terreno que ia a leilão ele comprava e largava”. No início da década de 70,
parte da área passou a pertencer a outro fazendeiro. Segundo relatos, Sebastião Bernardino
intermediou o contato de certo Araquém Faissol com proprietários da área. Araquém, conta
Terezinha Leite, “tava comprando um terreno por aí fora, comprando sítio”. Segundo
Benedito, Araquém comprava terras para usá-las como garantia de empréstimos bancários,
e comprou, na ocasião, terras em Alto da Serra, Cameru, Sertão do Sinfrônio, Rio das
Pedras e Serra D’Água. A área onde residiam os pais de Benedito, supostamente
pertencente a José Antonio de Lima, foi a primeira a ser comprada por Araquém Faissol,
que logo em seguida comprou também o sítio de Domingos Antero, que pertenceria a José
Maria Rola.
Neste ponto os relatos ficam confusos: ora a relação de compra e venda teria
acontecido entre Araquém e Rola, o suposto proprietário da área (o “dono”), ora teria sido
entre Araquém e Domingos Antero, que “formou sítio” no local. Tal confusão, entretanto, é
reveladora das concepções locais de posse e propriedade. Se, como vimos, a condição de
135
proprietário aponta para um vínculo fraco, ela oferece condições mais estáveis para a
realização de transações de compra e venda. O termo posse, por outro lado, diz respeito a
uma relação jurídica ainda mais fraca que a propriedade. Como define Benedito, “terreno
de posse é o seguinte, às vezes a pessoa compra o terreno de posse mais barato, né? Que o
terreno que é tudo legalizado, direitinho, às vezes é mais caro, e posse, não, eu acho que
não é”. Essa definição local de posse – terreno mais barato porque não totalmente
legalizado, mas ainda assim negociável – constitui uma concepção ainda abstrata de relação
com a terra e faz referência a uma relação jurídica, e não factual, não coincidindo com o
conceito jurídico de posse, ou seja, relação objetiva do sujeito com a terra.
O termo articulado pelo grupo que mais se aproxima do sentido jurídico-estatal de
posse é justamente o “tomar conta”, que remete a uma relação objetiva com a terra,
diretamente contraposta à condição de proprietário. A princípio, “tomar conta” faz
referência a um conjunto de obrigações mútuas, a uma relação entre o ocupante (o posseiro)
e o proprietário legítimo, mas efetivamente esta é uma relação “frouxa”: o proprietário não
assume qualquer compromisso com o ocupante, apenas lhe permitindo usar a terra,
enquanto o posseiro não assume nenhuma obrigação efetiva, senão a tarefa difusa de
“tomar conta” do terreno para um proprietário que, na maioria das vezes, nunca mais volta
ao local. Na prática, trata-se de uma categoria agenciada para explicar o processo de
ocupação e produção na terra e, como veremos, para articular uma concepção de direitos
adquiridos sobre ela.
Em 1965 ocorreu a primeira troca matrimonial entre as famílias Leite e Antero.
Benedito ainda morava com seu pai no Sertão do Sinfrônio, mas passava pela casa de
Domingos Antero no caminho que tomava para a estação ferroviária de Alto da Serra, ainda
em funcionamento, quando conheceu Terezinha, com apenas 14 anos. Terezinha Antero e
Benedito Leite se casaram quatro anos depois e foram morar na casa do pai da noiva, no
“sítio” que ele “formou”. Benedito passou a trabalhar para Sebastião Bernardino “puxando
carvão”, já em Alto da Serra, enquanto seu pai continuava a trabalhar para o mesmo
“patrão” no Sertão do Sinfrônio. Em 1969, Benedito e Terezinha Leite se mudaram para
uma casa próxima à estação ferroviária de Alto da Serra, dentro do “terreno” de Sebastião
Bernardino. Em 1975, em razão de derrame cerebral sofrido por Domingos Antero, o casal
136
se mudou para a casa do pai de Dona Terezinha, para que esta cuidasse da casa e seu
Benedito, da lavoura. Segundo Terezinha Leite, nesta época, apesar da desarticulação da
produção carvoeira no Sertão do Sinfrônio, Benedito ainda “tinha patrão” e trabalhava na
tropa “puxando carvão”, o que podia deixar o sítio “parado”. Logo depois, entretanto,
Benedito deixaria de trabalhar para Sebastião Bernardino, dedicando-se exclusivamente à
lavoura. Na época em que Araquém teria comprado as terras de Rola, Benedito e
Terezinha, já casados, moravam no sítio de Domingos Antero. Segundo Terezinha Leite,
Acho que, sei lá, eu não sei se ... ele [seu pai], naquele fracasso de doença
que ele tava, ou sei lá, ele dispôs do sítio, foi a pior coisa que ele fez,
passou o sítio pra esse Dr. Araquém.(...) E nessa época, eu ia fazer uma
casa pra mim no sítio do meu pai. Aí ele falou, “não precisa fazer casa
aqui não. Faz o seguinte, [se referindo a Benedito] eu vou colocar você
pra trabalhar pra mim também, não vai ficar só o Sebastião Raimundo.
Eu compro o sítio do seu sogro, e você vai ficar trabalhando pra mim.
Porque é melhor, que você vai resolver, você é o homem da família, é o
genro dele, você vai resolver o problema pra mim. Porque você sabe
divisas de terra, você conhece tudo, você fica. Você é casado com uma
filha dele, então vê se você faz uma casa lá pra você, aí você mora lá no
sítio. Dessa casa aqui. Você desce pra lá. Ele comprou essa casa aqui de
porteira fechada. Comprou esse sítio aqui, de porteira fechada. Aí, nós
fomos descer pra cá [a casa onde moram hoje]. Desceu comigo pra cá e
meus filhos. A gente veio morar aqui, mas só que tem uma coisa. Seu
Araquém, falou pro meu esposo que ele ia tomar a responsabilidade que
ele precisasse, apesar disso tudo, ele ia assinar a carteira dele, de ser...
empregado dele de carteira assinada. Uma coisa bem arrumada que ele ia
arrumar. Então, você vai ser meu empregado “fictivo” de carteira
assinada. E acabou que esse Araquém não ajeitou nada que foi preciso.
Parece que enrolou tudo, não sei como é lá. Porque eu acho que ele saiu
assim, fazendo besteira, uma coisa e outra, ele foi se enrolando, acabou se
enrolando tudo. E nós ficamos aqui.
137
Assim, na passagem da economia do carvão para a atividade agrícola, persiste a
lógica interna da relação com os “patrões”, qualificados como tais pela relação de
propriedade com a terra. Ao comprar as terras de Domingos, Araquém teria proposto a
Benedito que “tomasse conta” não apenas das terras que ele já ocupava, mas de todas as
outras que ele comprara. Neste caso, o papel de “patrão” se limitou à permissão de que
Benedito fizesse uso da terra à vontade, “tomando conta” do terreno. Dona Teresinha
sugere, entretanto, que apesar de Araquém não pagar o salário de Seu Dito, em algum
momento prestou alguma assistência à família, ou na forma de salários iniciais, ou de
alguma outra maneira: “ele passou a dar pouca assistência pra gente, né, começou a
diminuir mais a assistência que pudesse...”. Uma assistência que seria obrigação sua como
dono do terreno: “ele tinha que tá dando assistência, sempre junto, né? E apresentando,
que ele é o dono das terras, dono do sítio que ele tinha comprado, das áreas, ele tinha que
dar assistência”. Dona Teresinha dá a entender que Seu Dito teria considerado inclusive a
possibilidade de voltar às tropas de carvão, depois do “desamparo” de Araquém, mas que
preferiu ficar na terra: “eu também botar meus filhos na estrada (...) isso eu não vou fazer”.
Sebastião Bernardino empregaria também três irmãos de Benedito, Anésio,
Juventino e Geraldo, além de dois de seus cunhados. Os irmãos de Benedito permaneceram
vivendo em terras de Sebastião Bernardino, mas trabalhando na área que teria pertencido a
José Antonio de Lima, que as teria vendido a Araquém. Segundo os relatos, ao se tornar
“patrão” de Benedito, Araquém lhe teria dado por atribuição “tomar conta” de todas as suas
novas terras, o que incluiria as terras que pertenceram a José Antonio de Lima e as do
Camerú (outro suposto proprietário). Benedito afirma, entretanto, que já era sua atribuição
“tomar conta” das terras para José Antonio de Lima. A memória da relação de “tomar
conta” faz referência a uma condição de autonomia e liberdade no que diz respeito ao uso
da terra: “a ordem dele [Araquém] comigo era a seguinte: nas terras dele, eu podia fazer o
que eu quisesse, ele inclusive um dia falou assim: ó, se eu chegar aí e achar um prédio que
você fez, não tem problema. Você pode fazer o que você quiser. Foi onde eu plantei muito
bananal, fiz roça. Porque tinha liberdade”.
Outros dois irmãos Antero se casariam com duas irmãs Leite: em 1966, Sebastião
Antero e Sebastiana Leite casaram-se e foram morar em outra casa nos limites do sítio de
138
Domingos, onde moram até hoje. Já na década de 1970, Miguel Antero e Alcidéia Leite
também se casaram, indo morar no centro de Lídice, fora do território. Anos depois, Miguel
faleceu, e Alcidéia se mudou para a Várzea do Inhame, localidade próxima a Alto da Serra,
jamais voltando a morar entre os Leite. Em 1971, Alcides Leite desceu com sua família do
Sertão do Sinfrônio para o Alto da Serra, indo morar também na área de Sebastião
Bernardino, para quem continuaria a trabalhar na produção de carvão. Três de seus filhos,
ao se casarem, permaneceram na área de Bernardino, lá construindo suas casas: Anésio,
Maria de Lourdes e Maria Aparecida. O marido de Maria Aparecida, José de Carvalho,
passou a trabalhar também para Sebastião Bernardino. José Urbano, marido de Maria de
Lourdes, veio de Minas Gerais com o irmão para trabalhar na rede ferroviária, constituindo
família na área. Enquanto era funcionário da ferrovia, combinava essa atribuição com a
lavoura de subsistência e pequenas criações, atividades nas quais permaneceu após sua
aposentadoria.
Logo depois da descida do Sinfrônio, no mesmo ano, Alcides Leite morreu “de
anemia”, segundo seus filhos. Geraldo e Juventino moraram no território imediatamente
após seus respectivos casamentos, e Juventino produziu na área até a década de 1990. Hoje,
Juventino mora em uma região de Lídice conhecida como “Estação”, e é funcionário
aposentado da rede ferroviária e taxista em Lídice, enquanto Geraldo mora em Angra dos
Reis. Ondina e Dionésia muito cedo se mudaram para o município de Barra Mansa para
trabalhar, na década de 70, e não voltaram a morar em Alto da Serra. Célia, a filha mais
nova de Alcides, se casou na década de 80 e construiu uma casa no território; hoje, apesar
de morar em área residencial da Frangos Rica, também na Várzea do Inhame, onde
trabalha, mantém sua casa no Alto da Serra58.
A ocupação, pelos Leite e Antero, do território de Alto da Serra na década de 1950
deve ser entendida como o resultado de um processo de desagregação da população rural no
Vale do Paraíba. As famílias Leite e Antero, em três décadas de exploração de carvão,
atravessaram os vales do Paraíba e do Piraí, se superpondo à área que, na primeira metade
do século XIX, correspondia à exploração do café, formando um triângulo cujos vértices
58 Na dinâmica da economia local, tais empregos apresentam um caráter precário, bem como as alocações residenciais que lhes acompanham, razão pela qual é estratégica a manutenção do vínculo residencial anterior.
139
foram Resende, Valença e Rio Claro (figuras 2 e 3). A decadência do café submeteu a mão-
de-obra da região a uma mobilidade precarizante das relações de trabalho e das condições
de vida, e à subordinação a relações não-capitalistas de produção subsidiárias ao
capitalismo industrial. Essa mobilidade já se desenhava como característica antes mesmo da
crise do café: em 1864 o então Ministro da Agricultura, Domiciano Ribeiro, apontava para
o fato de que “o lavrador, entre nós, é um verdadeiro nômade, que hoje cria e destrói aqui,
para amanhã criar e destruir acolá (...). A respeito dos municípios mais florescentes, pode-
se dizer que o dia de sua maior prosperidade é a véspera da sua decadência”59. A
concentração da produção do café em São Paulo, o fim da escravidão e o esgotamento dos
recursos naturais impuseram a estes trabalhadores o constante deslocamento como condição
para a sua reprodução.
Figura 3 – trajetórias das famílias Leite e Antero nos vales dos rios Paraíba e Piraí entre as décadas de 1930 e 1950.
No vértice inferior do triângulo, antes mesmo que pudesse se recuperar dos
impactos da dinâmica da economia cafeeira, Rio Claro, que não logrou êxito nas tentativas 59 “O Vale” (2000, João Moreira Salles e Marcos Sá Correa).
Família Leite (décadas de 1940-1950) Família Antero (décadas de 1930-1950)
140
de reagir ao declínio econômico, foi duramente atingido pelo alagamento de Ribeirão das
Lages, produzindo novo deslocamento de trabalhadores e empreendimentos. Finalmente,
com a exploração do carvão, o deslocamento deixa de ter um caráter contingente para
tornar-se estrutural ao padrão de acumulação. Neste sentido, o caso da família de Alcides
Leite é exemplar: seus filhos nasceram em pelo menos três municípios diferentes do Vale
do Paraíba. Com o fim da atividade carvoeira, na passagem da década de 1950 para 1960,
esta força de trabalho circulante se fixa em áreas de pouco interesse econômico e passa a ter
como principal atividade a agricultura de subsistência, “formando sítios” em áreas que são
sabidamente propriedades de outrem. A segunda geração dos Leite no Alto da Serra se
divide, assim, entre aqueles que, no declínio da atividade carvoeira, abandonam a área em
busca de postos de trabalho, e aqueles que trocaram a submissão no carvão pela lavoura de
subsistência e pela venda do pequeno excedente formando, como veremos, um campesinato
livre e comunal.
O entendimento do grupo estudado como formando um campesinato negro exige
que se reflita sobre o conceito sociológico de camponês, cujos balizamentos encontram-se
naquela sociologia que, a partir da década de 1960, se dedicou tanto ao entendimento do
mundo rural quanto às condições de seu processo de modernização. Maria Isaura Pereira de
Queiroz (1973) identifica duas orientações principais para a definição do camponês. A
primeira, de base histórica, cuja principal referência é Marc Bloch, define o campesinato, a
partir do século X, pela sua relação de subordinação, ora com a instituição senhorial, ora
com estratos camponeses que, na derrocada do feudalismo, ascendem economicamente.
Distingue-se das modernas empresas agrárias, a partir da Revolução Agrícola do século
XVIII, por não objetivar a venda da produção, tendo por meta a satisfação das necessidades
da família, unidade social de trabalho e exploração da terra. A família constitui uma
unidade autárquica de posse, trabalho e consumo, sob a autoridade patriarcal, com forte
tendência à centralização. Embora possam estar dispersos em grupos de vizinhança ou
“comunidades” que podem desenvolver “todo um sistema de direitos coletivos” (pág. 17), o
habitat comum dos camponeses é a aldeia. As relações de solidariedade estão restritas ao
grupo de vizinhança, inexistindo consciência de classe.
141
A esta orientação Queiroz contrapõe outra, antropológica, cuja melhor expressão é o
trabalho de Robert Redfield. Nesta chave, o campesinato é definido como grupo rural
incidente em sociedades modernas baseadas no binômio cidade-campo, nas quais tal
convivência é relativamente equilibrada. Só há campesinato, segundo Redfield, onde há
uma cidade que, não tendo se tornado uma metrópole, estabelece com o meio rural uma
relação de complementaridade econômica, subordinada a uma dominação política. O
campesinato, estrato de uma sociedade global “votado às lides agrárias”, se caracteriza
pelas unidades domésticas de produção, voltadas prioritariamente para a subsistência da
família, e caracterizada pela policultura. Esse modo de produção rudimentar não é
convivente, na definição de Redfield, com a moderna empresa agrária, o que caracterizaria
outro tipo de sociedade, fundamentada no desequilíbrio cidade-campo. O camponês, por
sua vez, é definido a partir de características como valorização do trabalho como ordem
divina, maior preocupação com a segurança que com a aventura, valorização da procriação,
uma ética fundamentada na junção entre trabalho e justiça social, uma atitude ambígua em
relação à cidade e seus moradores (a valoriza, mas a tem como “centro de difusão de erros e
vícios”).
Definido o campesinato por oposição às sociedades primitivas, Eric Wolf (1976) o
caracteriza como um grupo social pertencente à “sociedade estatal”, a uma ordem social
“mais vasta e complexa”. A produção do camponês objetiva a garantia do mínimo calórico
de sua unidade produtiva, a família, de um fundo de manutenção para a produção e dos
“fundos cerimoniais”, necessários para a preservação da rede de relações sociais, garantida
pelos rituais e festas. Além disso, como o modo de vida camponês estaria submetido a
relações sociais assimétricas, torna-se necessária a produção de um “fundo de aluguel”,
excedente necessário à manutenção de relações de poder. Wolf, entretanto, distingue o
camponês do trabalhador agrícola, aqueles que trabalham por salário “da mesma forma que
um trabalhador industrial”, constituindo o campesinato um grupo envolvido em atividades e
relações não-capitalistas em um contexto capitalista de produção.
As análises do meio rural brasileiro passam, necessariamente, pela tentativa de dar
conta deste estrato autônomo que se encontrou, desde a ordem escravocrata, entre o grande
proprietário e a força de trabalho agenciada por ele (seja escravo, colono, ou trabalhador
142
assalariado), e que a literatura chama genericamente de sitiante. Dentre as possibilidades de
participação residual da população livre pobre na ordem mercantil escravocrata, a condição
de sitiante explicitava, segundo Franco (op. cit.), as formas de dominação que barravam a
ascensão deste contingente. Aparentemente nivelado ao fazendeiro, como faria parecer a
instituição do compadrio, este pequeno “dono” de terra, posseiro ou proprietário,
encontrava-se em uma relação de dependência. O tratamento como “pessoa”, antes de
trazer consigo qualquer crença igualitária, constituía uma estratégia de dominação baseada
em critérios fluidos de hierarquia, entre agentes que se reconheciam publicamente como
iguais. A relação de compadrio implicava toda uma série de dívidas e obrigações mútuas:
se, por um lado, respondia à demanda do sitiante por proteção e a garantia de ascensão para
o afilhado, em contrapartida trazia consigo o compromisso da filiação política por parte do
“cliente”, o que pressupunha a disponibilidade deste para a prestação de uma série de
tarefas.
O sitiante, como ator social característico da ordem escravocrata, constitui apenas
uma das possibilidades de inserção do homem branco livre no meio rural, segundo Franco.
A emergência da grande empresa rural escravista submeteu o pequeno lavrador
independente à condição de morador em terra alheia, dando origem a outra categoria social
em condição de submissão: o agregado, que buscará reproduzir seu antigo modo de vida,
“embora carente de suas próprias bases: a livre disposição da terra e a participação em
pequenos grupos sociais coesos” (pág. 99). Por outro lado, com a concentração de terras, as
propriedades tornaram-se maiores que a capacidade de produção; os limites para a sua
exploração possibilitaram a sobrevivência do lavrador independente que, periférico à
cultura do café, produzia em terras “cedidas de favor”. Com o proprietário, este agregado
mantinha um vínculo pessoal, calcado na cordialidade e na reciprocidade. Eventualmente
trabalhava para o proprietário, mas não exclusivamente, vivendo uma inserção mercantil
descontínua e não-necessária.
Renato da Silva Queiroz (2006), ao tratar de uma comunidade de camponeses
formada por descendentes de escravos no Vale do Ribeira na primeira metade do século
XX, assim caracteriza o que chama de “sitiante tradicional brasileiro”: lavradores auto-
suficientes, vivendo em economia de subsistência (com a possibilidade de comercialização
143
de um pequeno excedente agrícola), organizados de forma igualitária, produzindo por
métodos e instrumentos rudimentares (o que torna predatória a forma de produção), tendo a
família por unidade fundamental de produção e consumo.
Uma variante da definição brasileira de campesinato é a de caipira, elaborada por
Antonio Candido (2001). A definição de caipira apresenta menor capacidade de
generalização, já que faz referência explicitamente a formas de organização social
derivadas do processo de ocupação do estado de São Paulo, a partir das bandeiras. O
bandeirismo, entendido como uma forma particular de sociabilidade constituída a partir do
contato entre portugueses e índios e de uma forma de ocupação semi-nômade, teria
marcado “a dieta e o caráter do paulista”, resultando o caipira dos “tipos de ajustamento do
grupo ao meio”. Assim, segundo Candido, “na habitação, na dieta, no caráter do caipira,
gravou-se para sempre o provisório da aventura” (pág. 48).
Essa “gente do sítio”, na expressão de um dos informantes de Candido, se
caracterizava pela extrema rusticidade das construções, padrão de “habitação primitiva”
que se manteve até o século XX. Viviam em condição de autonomia em relação à sociedade
abrangente, produzindo suas próprias roupas e utensílios. O ritmo de trabalho era lento em
relação ao do trabalhador assalariado, e o tempo excedente era usado fundamentalmente
para o lazer, “parte integrante da cultura caipira”. A produção de subsistência estava
ancorada em um modelo de agricultura extensiva, de caráter itinerante, com base em
técnicas rudimentares como a queimada, o que produzia o esgotamento do solo. Tal modelo
se tornou possível em razão da reserva de terra disponível ao apossamento, mas
condicionou uma economia fechada, com um produtor caracterizado pelo isolamento e
independência, produzindo uma sociabilidade que não apenas era pouco dinâmica, mas
com tendências à regressão a formas sociais “mais simples”. Os homens eram preguiçosos,
de costumes rudes, esquivos, lacônicos e irascíveis, “matando-se uns aos outros com
freqüência” (pág. 52).
Essa condição de isolamento, entretanto, não era absoluta. A unidade de
agrupamento desta população dispersa, “estrutura fundamental da sociabilidade caipira”,
era o “bairro”, agrupamento de famílias “mais ou menos vinculadas pelo sentimento de
144
localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-
religiosas” (pág. 81). Havia bairros centrífugos, de unidade frouxa, com casas mais
distantes umas das outras, e bairros centrípetos, em que os laços de vizinhança eram mais
sólidos. Este sentido de “bairro” é, segundo o autor, particular do contexto caipira paulista,
e pode ser definido como “uma porção de território subordinado a uma povoação, onde se
encontram grupos de casas afastadas do núcleo do povoado, e umas das outras, em
distâncias variáveis” (pág. 82). O bairro é definido pelo sentido de pertencimento; “bairro é
uma naçãozinha”, como declara um caipira, o bairro é uma autarquia. Apesar da base
familiar da produção da lavoura, o bairro é definido também como uma unidade de trabalho
coletivo – é considerado membro do bairro quem convida ou é convidado para atividades
de ajuda mútua, os “mutirões”, que podem ser convocados inclusive para atividades
referentes à lavoura.
Podemos elencar, agora, características presentes em todas as definições
encontradas para o campesinato. Caracteriza-se economicamente pela produção própria dos
meios de vida, pela policultura e produção de subsistência, com pequeno e eventual
excedente. As relações de trabalho são não-capitalistas, as técnicas agrícolas são
rudimentares e a família opera como unidade de trabalho, produção e consumo. Do ponto
de vista da organização social, caracterizam-se pelo relativo isolamento das unidades
familiares, articuladas, entretanto, na forma de um bairro rural. A relação com a terra
caracteriza-se pela diversidade, encontrando-se, entre os camponeses, proprietários,
posseiros, parceiros, arrendatários, ou agregados. Entretanto, a condição de subordinação,
política, social ou econômica, é regra, constituindo o campesinato uma reserva de mão-de-
obra nem sempre agenciada.
Neste sentido, na contramão de estudos que apontaram como indicador do processo
de industrialização no Brasil a complexificação da divisão social do trabalho, o divórcio
entre trabalhador e meios de produção e a racionalização das relações de produção
(Guimarães, 2002, pág. 17), a trajetória das famílias negras envolvidas na economia do
carvão aponta para a emergência residual de um campesinato cujas condições para a
manutenção foram, entretanto, contingenciais, como a geração seguinte dos Leite
perceberia rapidamente.
145
“o pessoal do Dito Leite”: a família camponesa como grupo étnico
Ao processo de ocupação pela segunda geração da família Leite da região do Alto
da Serra se superpõe outro, dos netos e netas de Alcides e Benedita Leite, ou seja, da
terceira geração: três núcleos familiares compostos por filho e filhas de Benedito (Maria,
Ilda e Gilson), dois núcleos familiares formados por filhas de Maria Aparecida (Rosane e
Marinalva) e um núcleo familiar formado por filho de Sebastiana. Existem hoje, portanto,
no território de Alto da Serra, 12 núcleos familiares dos Leite, sendo seis da segunda
geração dos Antero e Leite na região, e seis da terceira geração, dos netos de Domingos e
Alcides (figura 2). Além disso, outros dois filhos de Benedito estão construindo casas na
área. A este tipo de ocupação pela moradia se superpõe outro: a área é também espaço de
produção, e alguns filhos de Benedito mantêm lavouras em Alto da Serra, embora morem
fora; é esse o caso de Isaías, Edson e Benedito Filho, que se mudaram após o casamento
para morar nos terrenos das famílias das esposas, e de Hélio e Paulo, que se mudaram para
zonas urbanas em razão dos postos de trabalho.
146
Figura 4 - Mapa da região do Alto da Serra, com as residências da família Leite e de ocupantes não-quilombolas (intervenção do autor a partir de mapa do IBGE).
Dois critérios são utilizados pelos Leite de Alto da Serra para a definição do
pertencimento à comunidade remanescente de quilombo: a descendência das famílias
Antero e Leite, que chegaram à região na década de 1950, e a ocupação do território, quer
seja para moradia, quer seja para a produção. Cumpridos tais critérios, temos que doze
núcleos familiares ocupam o território morando e produzindo, enquanto outros cinco
núcleos familiares, apesar de não residirem no território, produzem nele. As famílias da
comunidade e do território de Alto da Serra contam, assim, com 84 componentes.
Desconsiderando a primeira geração dos Leite e dos Antero no território de Alto da Serra,
temos a seguinte discriminação de seu contingente, por sexo e geração:
147
Tabela 2 – Membros da comunidade remanescente de quilombo de Alto da Serra, discriminados por sexo e geração. 2ª. geração 3ª. geração 4ª. geração Total Homens 6 22 12 40 Mulheres 6 16 22 44 Total 12 38 34 84
O perfil socioeconômico da comunidade de Alto da Serra foi levantado em relatório
preliminar, realizado por Fabiene Gama, no âmbito do projeto Balcão de Direitos
Humanos, financiado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos e implementado por
Koinonia, sob coordenação de José Maurício Arruti. Participei desta pesquisa como
assessor voluntário. Atualizados os dados daquele relatório, temos doze questionários
familiares, sendo oito de ocupantes que moram no território e quatro de ocupantes que não
moram no território. Das famílias residentes, quatro são formadas por filhos e filhas de
Alcides e Benedita Leite (2ª. geração), enquanto quatro são formadas por seus netos e netas
(3ª. geração).
Estratificados por sexo, temos um universo de 31 homens (52,5%) e 28 mulheres
(47,5%). A comunidade de Alto da Serra é jovem: foram levantadas 26 crianças, entre zero
e 14 anos, o que significa 44% do universo pesquisado. Doze quilombolas encontram-se
entre 15 e 24 anos (20,3%), oito entre 25 e 34 anos (13,5%), seis entre 35 e 44 anos
(10,2%) e seis entre 45 e 62 anos (10,2%). No gráfico abaixo, vemos a estratificação etária
discriminada por sexo:
148
Gráfico 1 – Distribuição das faixas etárias por sexo.
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18
0 - 14 anos
15 - 24 anos
25 - 34 anos
35 - 44 anos
45 - 62 anos
mulhereshomens
Nas trocas matrimoniais da terceira geração, outra família começa a ganhar espaço
na composição da família Leite e nas representações de seus próprios membros. Isaías Leite
e Benedito Leite Filho, irmãos, reproduziram o padrão de casamento instaurado por seus
pais e tios e casaram-se, respectivamente, com Simone e Délbora dos Santos, irmãs. Essas
não foram, entretanto, as primeiras trocas matrimoniais entre os Leite e os Santos: Ilda
Leite, irmã dos dois rapazes, já havia se casado anos antes com Sebastião dos Santos, primo
das duas moças. Como veremos, a absorção da família Santos será apropriada pelo grupo
na articulação de sua identidade quilombola, em razão da origem desta terceira família
negra: Sebastião dos Santos e João dos Santos, pai de Simone e Délbora, são originários do
município de Valença, mais especificamente do distrito de Santa Isabel, local de onde vem
a família Antero e próximo ao já reconhecido quilombo da Fazenda São José; Seu João traz
consigo a memória de antepassados escravos.
A disposição dos núcleos residenciais na região de Alto da Serra não deixa dúvidas
de que se trata de uma ocupação de caráter familiar. A área apresenta apenas três ocupantes
não-quilombolas, sendo dois deles não-residentes, embora mantenham casas no local, e
outro um empregado do proprietário com quem os membros da comunidade estabeleceram
uma relação de antagonismo há cerca de quinze anos. Recentemente, não se sabe ao certo
149
se com autorização do proprietário ou não, este empregado passou a vender pequenos
“lotes”, delimitados por ele a terceiros.
A idéia de família aparece como central tanto nos discursos sobre a formação do
grupo quanto nas práticas de sociabilidade. Assim, as relações sociais aparecem restritas à
organização familiar. Só se visitam os membros da família, salvo em caso de doenças, mas
visitas aos doentes fazem parte das obrigações cristãs. Por conseqüência, a organização
política do grupo passa também pela família. As reuniões em torno da questão da terra são
enunciadas como reuniões da família. Ao se referir à freqüência às “reuniões” a partir das
quais o grupo organizou suas demandas territoriais, Ilda, filha de Benedito e Terezinha, diz
que “é mais as pessoas da família”: “aí a gente senta, reúne a família (...) pra chegar tudo
num acordo. Pra chegar tudo entre família mesmo, né?”. É o caráter familiar das reuniões
que garante a confiabilidade nas decisões coletivas. Segundo outra filha do casal, Maria,
“quando eu não posso tá, eles vêm e comunicam comigo: eu vou fazer tal coisa, assim,
assim, tá de acordo? Essas coisas assim. Entre nós da família ali. E quando não é da família
aí reúne todo mundo na Igreja”. Segundo Maria, quando não é assunto da família, é assunto
“da associação”, ocasiões nas quais participam também alguns “vizinhos”. Alguns
assuntos, segundo Edson, outro filho de Benedito, reúnem um número maior de “vizinhos”,
como aqueles relativos às condições das estradas, ou ainda aqueles que dizem respeito à
produção, como lembra seu irmão Paulo.
Quando articulada como marca identitária, a família se destaca por sua “união”, e é
usada com o mesmo sentido de “comunidade”, unidade social capaz de suplantar as
diferenças. A categoria utilizada pelo grupo para se contrapor a família é a de vizinhos.
Gilson, filho de Benedito, distingue os vizinhos da família por esta união: “tem muita
vizinhança aqui perto, que eles assim não têm uma união tipo assim igual a da gente. São
mais diferentes. Destoa assim, o ritmo deles é mais diferente que o da gente. São mais
sozinhos. Só é mais é entre si só. Entendeu? Não é assim tipo reunido na família não”.
Entre os vizinhos encontram-se aqueles que estabelecem com a família uma relação de
parceria, mas também aqueles cuja relação é marcada pelo antagonismo, caracterizados
pelo grupo como “invejosos”. Tanto Dona Maria de Lourdes quanto Ilda fazem referência a
vizinhos invejosos; Ilda precisa: “é a questão da terra mesmo, porque eu acho que as
150
pessoas acham que a gente não pode ter o que tem. Acham que não é um direito da gente”.
Maria também faz referência aos vizinhos invejosos: “não sei se é porque a família é
grande, ou o que o papai tem, então eles acham que o papai não pode ter. Muitos pensam
isso aqui”. Paulo e Gilson também fazem referência aos “vizinhos invejosos”, referindo-se
àqueles que quereriam se apropriar da terra, ameaçando “ocupar o terreno”.
Essa pertença familiar operou como um dos critérios definidores do estatuto de
membro da “comunidade de remanescentes de quilombo de Alto da Serra”. A partir do
momento em que optou pela via da regularização fundiária como território quilombola, a
família Leite precisou eleger os termos pelos quais seriam definidos os que poderiam
postular legitimamente a condição de membros da associação de remanescentes de
quilombo, o que significava dizer: aqueles sobre os quais incidiriam os direitos territoriais
correspondentes a esta classificação. Dois critérios aparecem, menos nos discursos do que
nas práticas classificatórias: o pertencimento familiar e a prática de ocupação do território,
para moradia ou produção.
Como vimos, todos os cinco núcleos de não-moradores que produzem na área são
formados por membros da terceira geração dos Leite, mais especificamente filhos de
Benedito, os únicos a preservarem os vínculos territoriais, apesar dos deslocamentos
produzidos pelos casamentos ou por oportunidades de trabalho. Recentemente, outro
membro da família passou a participar das discussões em torno do território quilombola,
apesar de não residir na área. Júlia, filha de Maria Aparecida Leite e José de Carvalho, que
morava até pouco tempo na área e se mudou para a vila de casas da Rica, em razão do
casamento com um dos funcionários da empresa, não produz no território, mas têm a
pretensão de produzir. Apesar de não ocupar o território em nenhum dos dois sentidos, o
interesse de Júlia é legitimado pelo fato de pertencer à família de Maria Aparecida e José de
Carvalho, que sempre moraram e produziram no local.
Diferente de Júlia, outros Leite da terceira geração não são entendidos como parte
da comunidade remanescente de quilombo de Alto da Serra porque nunca residiram no
local, ou se mudaram ainda muito jovens, já que seus pais, da segunda geração, muito cedo
deixaram a área, alguns deles após o casamento. Uma das lideranças articulou, certa vez,
151
um argumento segundo o qual alguns membros da terceira geração não teriam direito à
terra porque os pais teriam se mudado da área antes mesmo de seu nascimento. Neste
sentido, assume uma condição liminar o caso de Juventino Leite, um dos filhos de Alcides
e Benedita. Apesar de envolvido na ação de reintegração de posse movida por Mário
Bolgenhagen, há anos reside em outra área de Lídice, conhecida como Estação. Ao tempo
da ação judicial, Juventino não apenas residia no território da comunidade como também ali
produzia; hoje, não mora ou produz no território, e não demonstra qualquer interesse em
participar da organização do grupo como quilombola, apesar de sua atuação como diácono
na congregação da Assembléia de Deus de Alto da Serra. Seus filhos, apesar dos contatos
com a família, quase sempre através da igreja, também não demonstram interesse em
integrar a comunidade de remanescente de quilombo.
Assim, parece que o direito ao uso do território foi construído a partir do interesse
dos membros da segunda geração, consubstanciado na permanência na terra. A iniciativa de
ocupar o território por parte da terceira geração, neste sentido, seria legitimada ou não pela
trajetória de seus pais. Tendo deixado o território, Juventino não demonstra mais interesse
na sua ocupação, o que acaba por distanciar seus filhos da comunidade, enquanto a
integração de Maria Aparecida e José de Carvalho legitima a aproximação de Júlia que,
apesar de nunca ter produzido na área, faz parte de uma das famílias entendidas como parte
da comunidade. Assim, o direito territorial parece estar vinculado à trajetória dos filhos e
filhas da primeira geração dos Leite e dos Antero no território, que teriam formado as
“famílias”, entendidas como núcleos familiares. As famílias cujos pais permaneceram no
território fizeram estender a seus filhos o direito ao uso da terra.
No entanto, apesar da relevância prática do critério ocupação, é a identidade familiar
que funciona como critério fundamental. Membros da família que não ocupam nem têm
pretensões de ocupar o território são, por vezes, mesmo que quase nunca participem,
chamados para participar das reuniões; são convidados, entretanto, quase sempre quando já
estão na casa de Benedito, em visita ou em cerimônias da Igreja.
A categoria família é agenciada tanto como elemento de construção de identidade
quanto de diferenciação interna ao grupo. Uma das filhas de Benedito e Terezinha apontou,
152
em entrevista, para a divisão do grupo entre “famílias”, formadas a partir dos casamentos
dos filhos de Domingos Antero e Alcides Leite: “uma família, quando eu falo que é uma
família, como vou dizer, do meu pai, né? Aí meus tios têm, mora lá em cima, mas cada um
tem a sua casa lá em cima, né? Mas aqui dentro mesmo é nosso, os filhos dele mesmo. Aí
formaram dentro do sítio dele mesmo”. A esta unidade social, “família”, corresponde outra,
de natureza espacial, o “sítio”. Não se trata, neste caso, de núcleos residenciais, tampouco
de unidades produtivas familiares, mas de uma distinção entre as descendências dos vários
filhos e filhas de Alcides e Benedita Leite: cada um dos Leite da segunda geração (da qual
faz parte Benedito) permanece chefe de uma “família”, organizada em torno do seu “sítio”,
mesmo nos casos dos filhos que, casados, já compõem seus próprios núcleos residenciais.
Esta diferenciação interna da família Leite em várias famílias, ou em vários sítios,
pode ajudar a entender os eventuais conflitos internos instaurados em torno da terra. Um
dos membros da terceira geração da família, ao falar dos vizinhos e dos possíveis conflitos
por conta do “terreno”, se refere a uma época em que a irmã de sua sogra teria intencionado
“expulsar” da terra a ele e sua mulher. Explica ainda que mora em um terreno “cedido” pela
tia de sua mulher, e manifestou a pretensão de ter “seu próprio terreno”, saindo do terreno
dos parentes. Na medida em que aponta para os possíveis conflitos entre os membros do
grupo, o uso da categoria família como elemento de diferenciação interna tende a ser menos
articulado pelas lideranças do que aquele outro, agenciado para significar unidade.
A divisão da comunidade em “famílias” opera como critério de estratificação
política, ao mesmo tempo em que desaparece dos discursos politicamente articulados por
sua liderança. Do mesmo modo que qualquer organização de natureza política, uma
comunidade quilombola se organiza na forma de círculos concêntricos. Em qualquer delas
encontraremos um grupo mais próximo da liderança, mais coeso e com um discurso
político mais articulado, em relação ao qual os outros círculos internos de relação se
aproximam mais ou menos. Em Alto da Serra este círculo interno é composto
majoritariamente pela família de Benedito e Terezinha Leite: seus filhos e filhas, genros e
noras. Como veremos mais tarde, ao tratar do processo de organização política do grupo,
153
são eles que transpõem para o plano formal a liderança natural de Benedito, traduzida na
diretoria das duas associações formadas pela comunidade60.
A esta identidade familiar se superpõe outra, de natureza religiosa: há cerca de 30
anos, quase todos os membros da segunda geração da família Leite se converteram ao
protestantismo. A princípio, Juventino Leite e Terezinha Antero, irmão e esposa de
Benedito, ingressaram na Igreja Assembléia de Deus. Poucos anos depois, Benedito
também se converteu e, a seguir, quatro de seus irmãos e irmãs. Há cerca de 15 anos uma
congregação da Assembléia de Deus de Lídice foi construída em Alto da Serra, no quintal
da casa de Benedito e Terezinha Leite, e Benedito e seu irmão Juventino constituem, hoje,
lideranças religiosas locais, ocupando o cargo de diáconos e sendo responsáveis pela
liturgia da congregação. Hoje, dos 89 membros da segunda e terceira geração da família
Leite, 29 são assembleianos e membros da congregação local, ou seja, 32,6%. Se
considerarmos apenas os membros da segunda e terceira gerações que ocupam o território
de Alto da Serra, entendendo ocupar como morar ou plantar, esse número sobe para 41,2%:
de 51 membros da família que ocupam o território, 21 são membros da igreja local. Como
veremos mais adiante, a filiação religiosa não apenas adensou os laços comunitários e
reforçou a liderança familiar de Benedito Leite, como também colaborou para a criação de
condições políticas para a organização do grupo, quando se viram em situação de flagrante
fragilidade.
As festas na Igreja são apontadas como eventos que afirmam a sociabilidade entre a
família e os vizinhos. Junto com as reuniões, as festas destacam a importância da Igreja
como pólo agregador da comunidade e de comunhão desta com aqueles que ela elege como
parceiros. É nas festas da Igreja que os vizinhos estabelecem as relações face a face com a
família: festas da Mocidade, aniversários, casamentos. “Tem dia que de carro ali naquele
terreiro ali não cabe”, segundo Maria. Em contrapartida, os membros da comunidade
também são convidados pra festas em outras igrejas, e esses convites são entendidos como
endereçados à família, que deve ser representada por um ou mais de seus membros: “agora
mesmo casou uma menina, a minha menina não foi não, mas os meus irmãos foram, meu 60 Uma afirmação com tal grau de generalidade precisa, obviamente, ser modulada por uma análise dos processos de formação. Assim, veremos também mais tarde que, da formação de uma associação para outra, as demais famílias foram se aproximando da liderança, ocupando cargos na associação.
154
filho foi (...). Ela casou, aí eles convidaram direitinho. Aí a gente faz o possível. Quando
não vai um, vai um bocado da família”.
Esta identidade familiar é reconhecida pelos vínculos comunitários que o grupo
estabelece em Lídice, e mesmo no município de Rio Claro. Segundo um dos filhos de
Benedito e Teresa, “aonde chegar em Lídice e perguntar sobre a nossa família aqui,
qualquer um informa, é muito conhecida a nossa família”. Délbora, esposa de Benedito
Leite Filho e uma das lideranças jovens da comunidade, conta que conhece a família desde
pequena, e revelou a existência de um termo local para o grupo que as assessorias e os
órgãos de governo passaram a chamar de Alto da Serra, e que faz referência ao seu caráter
familiar:
“Eu conheço eles [a família Leite] desde pequena, eu ia pra escola, eu
estudava lá no Benes [escola local], e eu via eles subindo, era uma turma
de gente, todos escuros, aquela turma. Tudo pequeno. E eles desciam pra
estudar, as pessoas mexiam com eles, eles mesmos contam, gritavam
‘jogaram pedra no bambuzeiro’, quer dizer, falavam assim pra eles, eles
contam até hoje, na escola (...). Na escola sempre falavam: a turma do
Dito Leite, porque eles eram todos eles iguais. E aqui, a família, eles são
reconhecidos. Quando o Nelson começou esse trabalho com eles foi
através do nome deles na escola: Leite. Todos eles, pode ir lá que é a
mesma raça. Todos eles sempre foram reconhecidos: o pessoal do Dito
Leite. E seu Dito sempre foi o destaque da família. Tem os outros irmãos,
mas sempre é o Dito Leite, a família do Dito Leite”.
Por um destes imponderáveis da pesquisa de campo, neste mesmo dia em que
Délbora me concedeu a entrevista, ao cair da noite, na biblioteca municipal, me explicava à
bibliotecária porque estava interessado na história da cidade, e assim defini minha tarefa:
“estou pesquisando um quilombo aqui perto”. Ao que a bibliotecária prontamente
respondeu, esclarecida: “ah, você está no Dito Leite?”. Em outra ocasião, ao entrevistar a
diretora da escola local, uma das professoras, ao ouvir minha referência às comunidades
negras rurais, pergunta se eu falava “dos Leite”. A própria diretora se refere aos Leite como
155
uma família das mais antigas e conhecidas na região, e usa como termo de comparação uma
outra família negra, os “Bento Manuel”, que seriam descendentes direitos dos escravos que
construíram a fazenda Santanna. A secretária municipal de Desenvolvimento Econômico e
Turismo, Elvira Soares, também uma historiadora diletante local, refere-se à família como
“os Leite do Alto da Serra do Mar”, e usa o mesmo recurso de compará-los com outra
família negra da região, os “Glória”; segundo ela os grupos “tem a mesma estrutura, é um
patricarcado”. Segundo Elvira Soares, a prefeitura pretende também apoiar os Glória para a
titulação de suas terras. Também a vice-prefeita de Rio Claro, moradora de Lídice, refere-se
ao grupo como “o pessoal do Dito Leite”.
Assim podemos entender a família Leite como um grupo étnico, no sentido no qual
o define Fredrik Barth (1998): organização social que define critérios de pertencimento (e
não-pertencimento) de forma contrastiva, ou seja, classificando, por oposição, aqueles que
fazem parte e aqueles que não fazem parte do grupo. Apesar de sua afinidade inicial com o
conceito de cultura, sobretudo na definição de seus objetos empíricos, o conceito de
etnicidade se define fundamentalmente pela natureza da relação entre os grupos, como
lembra Cardoso de Oliveira, ao se referir à definição de Abner Cohen, cunhada na mesma
década que a de Barth: “diferenças entre chineses e hindus, consideradas dentro de seus
respectivos países, seriam diferenças nacionais, mas não étnicas. Mas quando grupos de
imigrantes chineses e hindus interatuam numa terra estrangeira enquanto chineses e
hindus, eles podem ser referidos como grupos étnicos. Etnicidade é essencialmente a forma
de interação entre grupos culturais operando dentro de contextos sociais comuns” (Cohen
apud Cardoso de Oliveira, op. cit., pág. 23).
Entretanto, ainda que a identidade étnica seja definida pelas fronteiras demarcatórias
daqueles que pertencem e dos que não pertencem ao grupo, e ainda que a definição de um
etnômio seja elemento possível de alinhavar tal distinção, pude perceber que em Alto da
Serra o nome pode não ser percebido como tal pela comunidade. Assim, em condições que
avaliaremos em breve, ao escolher um nome pelo qual pudessem construir sua identidade
pública de remanescentes de quilombo, na ausência de um que fosse regularmente utilizado
pelo próprio grupo, optaram por um toponômio, Alto da Serra, ao invés do patrinômio
consagrado localmente, os Leite. Como observou Claude Lévi-Strauss, “o etnômio é
156
essencial no exterior e secundário no interior” dos territórios étnicos (apud Cardoso de
Oliveira, op. cit., pág. 25). Entretanto, apesar de não se darem conta cotidianamente desta
identidade, ela corresponde às imagens produzidas localmente acerca do grupo,
aproximando-se da definição barthiana de grupo étnico.
Este reconhecimento comunitário também assume a forma de reconhecimento da
relação com o território. É comum que, no período de férias, moradores de Lídice e
adjacências recorram a Benedito Leite, pedindo-lhe permissão para acampar próximo à
cachoeira que fica dentro do território. Uma professora local perguntou, certa vez, se a
cachoeira tinha nome e, diante da negativa, brincou: “então está batizada de Cachoeira da
Família Leite”. Além de reconhecer direitos territoriais, tais atitudes ratificam a liderança
constituída internamente em torno de Benedito Leite. Recentemente, um grupo de biólogos
percorreu parte do território, principalmente o entorno do Rio Piraí. Causaram
estranhamento entre os Leite, por não terem recorrido a Benedito para pedir permissão.
Sentida pelo que considerou um desrespeito, Terezinha Leite comentou: “como entram
assim na casa dos outros sem falar nada?”
Seu Dito exerce o papel de liderança da família e sobre o território, por um lado por
ser o filho mais velho de Alcides, que falecera um ano depois da descida do Sertão do
Sinfrônio, por outro lado porque passou a “tomar conta” não apenas do sítio de seu sogro,
mas de toda a área de Alto da Serra. Além disso, iria se somar a estes motivos a liderança
religiosa que ele passaria a exercer após sua conversão ao protestantismo. O fato de “tomar
conta” do terreno estabeleceu um papel para Benedito, de “assentar” a família na área, a
princípio os irmãos e irmãs que casavam e, anos mais tarde, seus filhos e filhas, o que
implicava delimitar espaços de moradia e produção. Maria de Lourdes, irmã de Benedito,
mora hoje no trecho que pertencia a Sebastião Bernardino, do qual ela e o esposo teriam
comprado o “direito de posse”, mas foi “assentada” em uma área para produção por Seu
Dito, segundo ela “um incentivo que ele passou pra mim”: “é, porque aí ele deu pra gente
plantar, né, que era bastante terra, aí ele pegou e deu pra gente fazer plantação, cultivar”.
Ao se referir às áreas de plantio, faz diferença entre a parte ocupada por ela e outra, onde
Seu Dito planta, dizendo que “lá é dele”. Em seu discurso, portanto, há duas formas de se
referir a uma área como sendo “de Benedito”: área na qual ele planta para si, e área que ele
157
cedeu para as irmãs e irmãos e que, no uso e administração, é deles, mas que, em última
instância, é entendida como parte da área de Seu Dito. Ao explicar por que se refere à área
onde planta como sendo de Seu Dito, e não sua, Dona Maria faz referência à relação de seu
irmão com os proprietários: “porque o terreno era do Mário, né? Desse terreno lá do Rola,
aí era dele”. Dona Maria reconhece a autoridade familiar de Benedito, já que foi ele que a
“trouxe para cá” (do Sertão do Sinfrônio para o Alto da Serra). Ao se referirem à casa
ocupada por Célia, irmã mais nova de Benedito, todos os relatos fazem referência ao fato
de que Benedito teria “assentado” a irmã naquele local. Marinalva, filha de Maria
Aparecida, outra irmã de Dito, mora hoje em terreno que foi cedido por Célia, “no terreno
de Célia”, como se refere Aílton, seu esposo. Ao ser perguntado sobre de quem é o terreno,
entretanto, Aílton não sabe responder se pertence ao fazendeiro da região ou a Benedito.
Uma dinâmica semelhante seria produzida no processo de ocupação da área pelos
filhos de Benedito. É ele quem determina o padrão de ocupação da área por parte dos
filhos, tanto para moradia quanto para plantio, como relata Gilson: “eu falei com ele que ia
fazer uma casa, aí ele falou: naquele cantinho lá era bom você fazer uma casa”. O relato de
Gilson revela uma estratégia de ocupação da área, já que sua casa foi construída na
fronteira do território do grupo: “um lugar mais distante um pouquinho, tipo assim uma
divisa”. De fato, a casa de Gilson está ao lado de dois limites do território: o sítio que
pertenceu a José Aniceto e a linha férrea. Gilson conta, ainda, como se daria a distribuição
do espaço para plantar e morar entre os familiares: “Aí um fala: tô com vontade de fazer
isso assim e assim, o outro também, entendeu? Aí o outro já tem um outro lugar, aí olha, eu
planto assim e assim lá esse ano. O outro ano aí eu vou plantar o feijão. Aí assim ta tudo
certo. É revezando, entendeu?”
Seu Dito também relata o modo como a terra é distribuída entre os filhos. Quando
um filho quer “morar fora”, o que pode significar casamento ou ainda saída da comunidade
para trabalhar na cidade, ele indica a área a ser ocupada com a casa e/ou a plantação.
Gilson, Maria e Ilda saíram pelo casamento, e continuaram na área. Isaías, Benedito e
Edson saíram para morar nas áreas de posse ou propriedade das famílias das esposas.
Paulinho e Hélio saíram para trabalhar (“negócio de trabalhar pra companhia”) e possuem
apenas roças na área. Segundo Seu Dito, todos os que não estão morando na área vão
158
construir, mesmo os solteiros, que podem ficar sem emprego ou “de repente pode arrumar
um casamento”. A área destinada para construção é, em geral, a mesma na qual o
interessado em morar já produzia. Assim, a determinação de uma área de ocupação por
parte dos filhos ajuda à preservação dos vínculos familiares, que os filhos que moram com
eles ainda mantêm. Seu Dito aponta para o fato de que “separar terra” para os filhos sempre
implica a diminuição do terreno; essa limitação aparece em uma fala de Gilson, na qual se
refere a uma diminuição no espaço de sua plantação para a formação de pastagem, o que
demandaria uma discussão entre a família acerca da área a ser utilizada para este fim.
A comunidade apresenta um conjunto de nomes para descrever seu território,
dividindo-o em sub-áreas, cada uma delas referida por um nome específico: Alto da Serra,
Variante, Camerú, Carlos Bernardo, José Maria Rola, Boa Vista. Tais formas locais de
nominação atendem à lógica da relação de “tomar conta” do terreno. Seu Dito descreve o
território tomando por parâmetros proprietários ou supostos proprietários, com os quais
estabeleceu, ao longo do tempo, uma variedade de relações jurídicas ou quase jurídicas,
numa superposição de nomes de lugares e proprietários. Na verdade, mais que a
proprietários, os nomes das áreas podem estar referidos a determinadas cadeias dominiais.
Assim, Alto da Serra e Boa Vista, áreas vizinhas, pertenceram ambas a Araquém
Faissol. Entretanto, Alto da Serra teria sido comprada de José Antonio Lima, enquanto Boa
Vista teria pertencido antes a uma mulher conhecida como Dolores. Alto da Serra, cuja área
é estimada por Benedito como medindo 36 alqueires, foi arrematada em leilão anos mais
tarde por um advogado chamado Mário Bolgenhagen, episódio que, como veremos, foi
decisivo para o processo de organização do grupo, enquanto Boa Vista mediria apenas 2
alqueires. Há outra parte de Alto da Serra que não pertenceria hoje a Mário, mas que é
posse de três dos irmãos de Benedito: Maria Aparecida, Maria de Lourdes e Anésio. A área
comprada pertenceria a Sebastião Bernardino, também chamado de Sebastião Raimundo,
outrora “patrão” da família, e que, segundo Dona Terezinha, teria chegado “junto com
Araquém” para comprar terras. Quando decidiu se mudar, Sebastião se dispôs a vender sua
área a um criador de cavalos da região, mas resolveu vender “um pedacinho” para os
irmãos de Seu Dito que trabalhavam para ele (o que implicou, segundo Maria de Lourdes, a
diminuição da área que efetivamente ocupavam). Estas terras eram constituídas de 58
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alqueires, sem nenhuma relação com os alqueires comprados por Mário. Além deles, outro
ocupante comprou, na mesma ocasião, a “posse” de um terreno de Sebastião Bernardino, ao
lado da casa de Maria de Lourdes: um veranista residente em outro município conhecido
pelos moradores como “Pavão”.
Pertencem ainda a Araquém o Camerú, cujo nome seria uma referência a um antigo
proprietário e que mediria 33 alqueires, ocupado por plantações de banana de Anésio, o
Sertão do Sinfrônio, de 30 alqueires e o Rio das Pedras, de 58 alqueires, em relação aos
quais Seu Dito tinha o “compromisso de olhar” (ou “tomar conta”), mas não tem mais, já
que essas terras também foram vendidas em leilão. Em relação a outra área de Araquém,
conhecida como Serra D’Água, Benedito conta que nunca chegou a “tomar conta”. O lugar
onde se situam as casas de Seu Dito e de uma das filhas, além da igreja, ao lado de Boa
Vista e medindo cerca de 10 alqueires, é conhecido como Variante, e pertenceria a certo
“Capitão”. É ainda onde seu dito tem uma “plantação de fruteira” e cria gado. Em Boa
Vista, entre Variante e Alto da Serra, moram mais dois filhos de Benedito. Juntos, Variante
e Boa Vista compõem o principal núcleo residencial do território.
Outro caso em que o nome do lugar coincide com o nome do suposto proprietário é
a área conhecida como José Maria Rola, que Seu Dito estima medir 50 alqueires. Parte da
área é ocupada por lavouras de Benedito e quatro de seus filhos, parte é composta pelo que
outrora fora o sítio de Domingos Antero, hoje ocupado pelo casal Sebastiana Leite e
Sebastião Antero. O terreno que originariamente compunha o sítio de Domingos foi
desmembrado com o passar dos anos: outros sitiantes compraram parte do terreno, o que
teria reduzido a área utilizada pela família Leite; segundo Benedito, “a gente ficou com
uma faixa de cinco alqueires, mais ou menos”. Tendo Benedito e Teresa se mudado para
outra casa em Variante, Sebastião Antero, o filho mais velho de Domingos, assumiu o sítio,
onde passou a morar com Sebastiana Leite depois do casamento. Na década de 1970,
Sebastião e Sebastiana legalizaram sua posse, o que, como veremos, produziu um impacto
na definição do território e na adesão do casal às associações organizadas pelo grupo.
Outras localidades aparecem em relatos do grupo, com nomes que fazem também
referência a proprietários. Daniel, um dos filhos de Benedito, fala em “João Gonçalves”,
lugar onde o pai também teria plantação, ao lado de Alto da Serra e do outro lado da via
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férrea. Isaías declara ter roça em “Carlos Bernardo”, “em cima da casa da Maria” (sua
irmã).
Os chefes de família da comunidade remanescente de quilombo de Alto da Serra
lançam mão de estratégias de sobrevivência que combinam a produção autônoma no
território (lavoura e criação) com atividades produtivas externas, na forma de empregos
formais e informais, pequenos serviços e venda de sua produção. Quase todos os chefes de
família têm empregos fora da comunidade: cinco chefes de família são assalariados com
registro, dois são assalariados sem registro. Um dos chefes de família se declarou autônomo
e um é aposentado. Quase todos os que não possuem empregos formais fazem pequenos e
eventuais serviços, que chamam de “biscates”, e dois membros da comunidade fazem
“feira”, que pode significar dispor seus produtos em uma barraca ou vendê-los de porta em
porta. O recrutamento para empregos formais ou informais, em geral, não implica o
abandono da produção: os membros da comunidade empregados mantêm suas roças,
diminuindo a produção ou demandando a um parente que cuide dela. A renda familiar varia
entre R$200,00 e R$1.500,00.
As famílias plantam tanto em seus quintais quanto em áreas exclusivas para a
produção. Apenas uma família residente não produz no território. Os animais são criados
nos quintais ou não em razão de seu porte, e pelo menos uma família aluga um terreno para
pasto. O principal plantio permanente é o de banana, que ocupa a maior área, e os
principais plantios temporários são mandioca, milho e feijão, já que todas as famílias, à
exceção de uma, os cultivam. Também todas as famílias, exceto uma, criam galinhas em
seus quintais, que podem servir como reserva alimentar ou como produto a ser
comercializado.
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Tabela 3 – Produção agrícola da comunidade de Alto da Serra. Produtos dos quintais
Milho, feijão, mandioca, inhame, chuchu, batata doce, jiló, laranja, fruta do conde, ameixa, mamão, abacaxi, pêssego, lima, mexerica, abacate, pitanga, banana, goiaba, abiu, limão, amora, cana-de-açúcar, alface, mostarda.
Produtos de áreas exclusivas para plantio
Banana, mandioca, milho, feijão, batata doce, abóbora, chuchu, inhame, amendoim, café, cana-de-açúcar, laranja, ameixa, kiwi, fruta do conde, tamarindo, abacate, jaca, uva, acerola, jamelão, maçã, pitanga, pêssego, mexerica, limão, caqui, maracujá, cacau, melancia, mamão, alface, acelga, couve, chicória, mostarda, cebolinha, salsa, coentro, brócolis, couve-flor, repolho.
Tabela 4 – Produção pecuária da comunidade de Alto da Serra. Produto Quantidade nº de produtores Frangos 500 15 Ovos 3.000/mês 15 Bovinos 50 4
Além da avicultura e do gado bovino, os membros da comunidade também criam,
em menor quantidade, cavalo, burro, ganso, pato e marreco e peixe (tilápia). Ao declararem
sua produção pecuária bovina, os membros da comunidade se referiram a 80 cabeças, sendo
40 vacas. Entretanto, incluíram na contabilidade um membro da associação de
trabalhadores rurais que não é considerado membro da comunidade quilombola, mas um
vizinho, amigo da família e parceiro econômico, José Hamilton, responsável por 30 das
cabeças contabilizadas e apelidado, na ocasião, em tom de brincadeira, de “rei do gado”.
Tabela 5 – Discriminação da produção por período de plantio Produto Tempo de plantio Banana todo o ano Milho julho a novembro Mandioca Agosto a setembro Feijão Fevereiro a março/ setembro a novembro Abóbora julho a novembro Quiabo Agosto a novembro batata doce julho a novembro Cana-de-açucar todo o ano Amendoim Fevereiro a março/ julho a novembro
A comunidade produz banana d’água (de diferentes tipos) e banana prata, além de
pequena produção de banana nanica, que não é comercializada, sendo usada como ração. O
feijão é plantado duas vezes por ano, na “época das secas”, de fevereiro a março, e na
“época das águas”, de setembro a novembro. A época das secas é considerada menos
trabalhosa que a época das águas, devido às condições da colheita. O milho pode ser
plantado tanto “solteiro” quanto “casado”, ou seja, misturado a outros plantios; o “solteiro”,
162
entretanto, é o mais encontrado na região, pois o feijão “casado” com o milho fica muito
“abafado”. O amendoim é plantado sempre “solteiro”, e pode ser colhido em seis meses. A
cana-de-açúcar, plantada o ano todo, serve para fazer caldo, para alimentar os animais e
adubar a terra com a palha. A abóbora é plantada misturada no meio do milho. O quiabo
“gosta da época quente” e a mandioca é plantada nas luas nova, cheia e minguante, estando
pronto para a colheita em um ano. Entre os meses de março e julho o grupo se dedica à
limpeza do pasto, à manutenção das cercas, aos cuidados com a horta e à colheita do feijão.
Alguns produtos são comercializados, tanto por aquelas famílias que vivem da
produção quanto naquelas em que seus chefes têm outras fontes de renda. Os principais
produtos comercializados são banana, mandioca, milho, feijão, jiló, quiabo, abobrinha,
abóbora, produtos de horta, frango, queijo e doce. A comercialização em “feira” é feita em
Angra dos Reis, no repasse dos produtos a José Hamilton, vizinho que é feirante, ou na
venda dos produtos no município de porta em porta. Alguns membros da comunidade
vendem, na “feira”, tanto a sua produção quanto a de outros membros da família. Apesar
disto, as vendas são de responsabilidade de cada núcleo familiar. A banana, um dos
principais produtos da comunidade, teria sofrido perdas tanto no volume da produção
quanto no seu valor de venda. O queijo produzido é vendido a cerca de sete reais o quilo.
Tabela 6 – comercialização da produção Produtos comercializados
Onde se comercializa
Banana “feira” em Angra, vende para feirante
Mandioca, jiló,quiabo, abobrinha
“feira” em Angra, sacolão, Lídice.
Feijão, milho “feira” em Angra, Lídice Galinha, produtos de horta
Lídice
Abóbora em Angra
As famílias nucleares operam como unidades de produção, e cada chefe de família
tem a sua roça, sua área de plantio. Entretanto, as relações de solidariedade pressupõem
que, em determinadas situações, alguns membros da família assumam as roças dos outros.
Essa solidariedade é mais estreita quanto mais próximos forem os laços de
consangüinidade. Assim, é comum que irmãos tomem conta das roças uns dos outros ou
163
que filhos cuidem das lavouras de seus pais, por motivos vários. Segundo Gilson, “às vezes
tem um que não vai poder plantar, aí não dá, o outro vai e planta”; ele mesmo trabalha em
algumas áreas que são só suas, “fixas”, e outras que seriam “do pai”. Um dos filhos de
Benedito, Paulo, sofre de doença renal crônica, o que o impede de trabalhar na roça há
algum tempo. Os irmãos, entretanto, ainda se referem à área que lhe cabia como sua “roça”,
embora sejam eles que mantenham a lavoura no local. O principal motivo para tomar conta
da roça de outrem é a eventual ocupação em serviços fora do território, o que
indisponibiliza a força de trabalho para a atividade agrícola.
Assim, a terceira geração dos Leite no Alto da Serra mantém padrões de
organização social e produção característicos do campesinato, embora em condições
diferenciadas das de seus pais, em um adensamento da tendência ao abandono das
atividades agrícolas que, ademais, marca todo o município. O movimento de retração
econômica na qual o município de Rio Claro entrou desde a crise do café se faz perceber
numa visada sobre os dados disponíveis. O município, segundo o censo de 2000, tem
16.228 habitantes, em 4.355 domicílios particulares permanentes. Destes, 5.607 habitantes
não tem rendimentos regulares, enquanto, dos 7.530 com rendimentos, 4.567 percebem
rendas de até dois salários mínimos. O rendimento médio do município é de R$ 438,91. O
município apresenta baixa densidade demográfica: 21,54 habitantes por quilômetro
quadrado.
As atividades econômicas do município estão concentradas na pecuária, o que
acompanha a tendência da região. Em relação à pastagem, a MRH de Vassouras e Piraí
segue a tendência do estado, com incremento da área plantada (112,79% na região e 109%
no estado) e redução da área de pastagem natural (11,3% na região e 8% no estado). Em
1985, as pastagens plantadas correspondiam a 44% da superfície agrícola do estado,
embora na MRH de Vassouras e Piraí correspondesse a apenas 7,3%, com predomínio
ainda da pastagem natural (37,55%).
Em 2005, o município de Rio Claro teve a produção de gado bovino estimada em
28.150 cabeças, segundo o IBGE. Para a EMATER-Rio, esta produção foi de 26.940
cabeças, com 348 produtores, discriminadas entre bovinocultura de corte (12.000 cabeças)
164
e bovinocultura de leite (18.940 cabeças). O município não produz leite de tipo “A” e “B”.
A produção de leite “C”, no ano de 2005, foi de 3.195.211 litros, e a de leite “Q”, 3.872.517
litros. Os tipos de leite cru e “Mini-Usina”, para consumo local, somam 4.134.750 litros. A
produção avícola também é destaque no município Segundo a EMATER-Rio, o ano de
2005 produziu 19.929.000 de cabeças de avicultura de corte, concentrado em apenas um
produtor: a Frangos Rica.
A lavoura permanente ocupa, na região de Vassouras e Piraí, apenas 2,1% da
superfície agrícola, acompanhando a tendência estadual à redução. Em Rio Claro, a
produção permanente de 2005 se restringiu à banana, com 6.300 toneladas, e maracujá,
com 60 toneladas produzidas. A lavoura temporária se concentrou na cana-de-açúcar, com
3.600 toneladas, produzindo ainda feijão (270 t), mandioca (100 t), milho (208 t) e tomate
(150 t).
A geração de renda do município está centrada no serviço público: R$ 5.551.000,00
gastos em salário no ano de 2005. Nos setores produtivos, a geração de renda se divide
entre os setores primário (R$ 1.398.000,00) e terciário (R$ 1.780.000,00), com tímida
participação do setor secundário (R$ 320.000,00). Em termos de geração de empregos, o
setor público também se destaca como o maior empregador do município, com 647 postos
de trabalho assalariado, seguido dos setores terciário (260 postos de trabalho), primário
(235) e secundário (43).
O destino do campesinato impõe-se como problema, diante da crescente diluição
das fronteiras entre o rural e o urbano, “categorias simbólicas construídas a partir de
representações sociais que, em algumas regiões, não correspondem mais a realidades
distintas cultural e socialmente”, segundo Maria José Carneiro (1998). O crescimento do
número de pessoas no campo em atividades não-agrícolas, as inovações dos pequenos
agricultores em suas estratégias de reprodução social, combinando atividades agrícolas com
outras fontes de renda (o que se convencionou chamar de “pluriatividade”), a combinação
do “neo-ruralismo” com a ênfase na preservação ambiental, estimulando o ecoturismo,
impõem redimensionamentos que, segundo a autora, articulam de novas formas de
identidade camponesa. Assim, é possível perceber a manutenção de elementos da cultura
165
camponesa, segundo a autora, mesmo nas camadas da população rural empregadas no setor
industrial (como é o caso de membros da comunidade de Alto da Serra).
Trata-se de uma nova forma de pensar o campesinato, em sua relação com o urbano-
industrial, aderindo ao moderno sem abrir mão de valores, visão de mundo e formas de
organização social. Fazendo migrar para o interior do contexto rural a dicotomia rural-
urbano, a heterogeneidade social vivida por estes grupos produz a afirmação contrastiva da
identidade camponesa, que se reestrutura a partir da incorporação de novos componentes.
Neste contexto, a noção de localidade, base da identidade camponesa, parece depender
fortemente da idéia de pertencimento, que contrastivamente pode ser tanto mais forte
quanto maior for o contato (Carneiro, op. cit.). Assim, no esboroamento das fronteiras
rígidas entre o rural e o urbano, tanto no que diz respeito aos elementos materiais quanto
aos simbólicos de definição do camponês, parece restar apenas uma definição de identidade
que se aproxima da clássica noção de grupo étnico derivada de Barth (op. cit.).
Os exemplos apresentados por Carneiro nos são úteis para pensar essa redefinição, e
sua manifestação particular em grupos de camponeses negros. No primeiro exemplo, dos
grupos camponeses dos Alpes franceses, a expansão do turismo como fonte de renda
ampliou a rede de solidariedade dos vilarejos, fortalecendo o processo de construção de
novas identidades que não podem ser traduzidas pela exclusividade das atividades
agrícolas. É nas festas que a identidade camponesa é reelaborada, como produto a ser
exposto e vendido aos turistas, o que implica, em alguns casos, sua caricaturização. No
outro caso, do município de Nova Friburgo, a expansão do turismo levou à desvalorização
da atividade agrícola, e pequenos proprietários passam a combiná-la com outros
investimentos, de caráter turístico. Como aponta Carneiro,
Cabe registrar que a exploração do turismo praticada pelos agricultores
reproduz a mesma lógica familiar que organiza a produção agrícola. A
pousada é construída com o próprio capital familiar recorrendo aos
saberes polivalentes dos membros da família. A manutenção e o
atendimento aos turistas também fica a cargo da mão-de-obra disponível
na família sendo controlada e regulada pelo parentesco. A produção do
lucro é dependente das potencialidades familiares não sendo
166
necessariamente o objetivo principal do empreendimento que, ao menos
nessa fase inicial em que se encontra a exploração turística local, está
mais orientado para a constituição de uma atividade econômica
alternativa à agricultura que responda às necessidades de reprodução dos
membros da família -sobretudo dos jovens- respeitando o valor da auto-
determinação da cultura camponesa. Mesmo as raras iniciativas de
capital vindo de fora se subordinam, por enquanto, às dimensões e formas
de organização dominantes na região.
Assim, conclui Carneiro que as novas relações entre o rural e o urbano não
permitem pensar a ruralidade como “realidade empiricamente observável”, mas como
“representação social, definida culturalmente por atores sociais que desempenham
atividades não homogêneas e que não estão necessariamente remetidas à produção
agrícola”, de que é exemplar o caso dos Alpes franceses. Além disso, é possível que tais
grupos reproduzam a “racionalidade camponesa” em atividades de natureza urbano-
industrial, a exemplo dos “pluriativos” de Nova Friburgo, levando-nos a entender a cultura
camponesa como “uma visão de mundo pautada em relações sociais específicas e que se
expressa ativamente, de forma a transformar e a recriar o seu mundo social e natural”.
Podemos perceber, em Rio Claro, alguns dos dilemas vividos nestes novos
contextos rurais. Segundo a secretária de desenvolvimento de turismo do município, Elvira
Soares, a atual vocação de Rio Claro é a de pólo de ecoturismo, formando, juntamente com
outros municípios do Vale do Paraíba, um corredor de águas. Segundo a secretária, muitos
pequenos produtores transformaram suas propriedades em empreendimentos de turismo
rural, e há projetos para a região, que inclui benefícios fiscais para proprietários ribeirinhos
que preservem os rios. Exemplar da tendência de pequenos proprietários a converter seus
investimentos no ecoturismo é o caso de uma antiga liderança do movimento de
trabalhadores rurais que, mantendo um pouso tradicional na subida da serra, o transformou,
hoje, em uma pequena pousada.
Diante de tais possibilidades, os membros da comunidade de Alto da Serra foram
capazes de manipular os significados em torno do turismo rural, sobretudo no que diz
respeito às novas articulações possíveis das identidades tradicionais: em um encontro com a
167
Secretaria de Turismo, uma das lideranças da comunidade apontava para os interesses em
torno da presença de uma comunidade quilombola no município, e nos produtos que teriam
a oferecer. Diante da objeção da vice-prefeita, uma comerciante local, de que os produtos
poderiam ser comprados “na cidade”, prontamente respondeu que o turista se interessaria
em comprar o queijo e o doce “diretamente do quilombola”.
A condição de camponeses negros cria um novo conjunto de possibilidades tanto
em torno do processo de construção de identidades quanto no de rearticulação econômica
dos grupos interessados, principalmente em razão do conjunto de direitos e políticas que se
fazem acompanhar à caracterização formal como remanescente de quilombo. Alguns dos
elementos agenciados neste processo, antes de conflitar com a classificação dos grupos
como camponeses, lhes são complementares. Já desde a década de 1980, os estudos sobre
campesinato passaram a apontar, no caso de grupamentos negros, para outros dois
elementos que não estavam necessariamente presentes nos estudos agrários das duas
décadas anteriores: a territorialidade, definindo-os como um “campesinato comunal”, e
identidade racial e étnica, caracterizando tais grupos como parte de um campesinato negro,
cuja origem remonta a desarticulação do regime escravista (Bandeira, 1988; Queiroz, 2006;
Sá, 2007). Serão justamente esses dois novos elementos irracionais, não-capitalistas, que
irão compor as novas identidades coletivas a partir da década de 1990, sob os auspícios da
Constituição. Segundo Arruti (2006), foi essa aproximação (tanto teórica quanto política)
com o tema do campesinato que constituiu o núcleo da chamada ressemantização da
categoria quilombo, definida agora pela transição da condição de escravo para camponês
livre.
Estes novos estudos podem ser incluídos tanto em uma genealogia dos estudos
rurais como em outra, dos estudos sobre os negros no Brasil. Segundo Bandeira, estariam
incluídos em uma vertente de estudos antropológicos sobre “comunidades negras em
condições rurais”, a enfocar a diferenciação étnica no contexto do modo de vida camponês.
Segundo a autora, as comunidades negras rurais se caracterizariam por uma “convivência
racial total”, de “base geográfica”, na qual a “territorialidade negra” produziria “uma
situação específica de alteridade” (pág. 22). Tais elementos encontram-se agregados na
definição de Alfredo Wagner Berno de Almeida de “terras de preto”, modalidades de uso
168
comum da terra que apresenta, na base do sistema jurídico próprio que regula esta relação,
um elemento identitário de natureza étnica (1989). Colado a esta idéia de territorialidade,
portanto, outra idéia aparecia como fundamental nestes estudos das décadas de 1980 e
1990, e que conformarão a hodierna concepção de remanescente de quilombo: a de um
sistema jurídico próprio, mormente no que diz respeito aos critérios de uso da terra.
A análise da formação e dos modos de organização da família Leite nos aponta para
o quanto a caracterização de determinados grupos como camponeses ou quilombolas
depende de deslocamentos na análise e nos exercícios classificatórios que apresentam
determinantes que são, em parte, teóricos, e em parte, políticos. Nos desdobramentos
políticos de tais mudanças, essas identidades serão ressignificadas primeiro pela teoria, e
logo pelos próprios membros das comunidades.
169
Capítulo 6 - O encontro com a Justiça: a experiência jurídica do
desrespeito
Tendo vivido desde a década de 1950 em situação de relativa autonomia em relação
aos “patrões”, “tomando conta” do território e produzindo livremente, a família Leite
passaria a viver pela primeira vez, a partir da década de 1990, conflitos em relação ao uso
da terra. O conflito assumiu a forma de uma ação judicial, impetrada por um advogado que
comprara, em 1980, parte da área que o grupo ocupa, de nome “sítio Alto da Serra ou Boa
Vista”. Para além dos impactos de ordem material – a área abarca cerca de ¼ do território
pretendido pela comunidade – a ação de reintegração de posse teve fortes impactos
simbólicos sobre o grupo, quer seja porque redundou na sua organização em torno da
identidade quilombola e na demanda por seus direitos territoriais quer seja por seus efeitos
nas representações dos Leite acerca da justiça, dos direitos, da terra e de sua identidade
coletiva.
O Rio de Janeiro tem um “perfil fundiário marcado pela presença dominante do
pequeno imóvel rural” (SEAF, 1991). O estado apresenta um “perfil fundiário atípico”, de
superfície agrícola reduzida61 (3.260.150 há, em 1991), predominantemente formado por
pequenos estabelecimentos (com áreas inferiores a 10 ha), e com baixa penetração do
capital (44% da área agrícola estão cobertos por pastagens naturais). Segundo o Atlas
Fundiário do Estado do Rio de Janeiro, medida a evolução da superfície agrícola entre 1970
e 1985, verifica-se uma ligeira redução da ordem de 0,71%, sendo as únicas microrregiões
homogêneas a verificar aumento significativo da superfície agrícola no período a Serrana
Fluminense (39,34%), a do Rio de Janeiro (43,4%) e a de Vassouras e Piraí (7,44%), onde
se localiza o município de Rio Claro62.
61 Os dados acerca da situação fundiária do Estado do Rio de Janeiro e da região do Vale do Paraíba são do Atlas Fundiário do Estado do Rio de Janeiro (SEAF, Rio de Janeiro, 1991). 62 O Atlas Fundiário do Estado do Rio de Janeiro divide o estado, para fins de análise, em 14 Microrregiões Homogêneas (MRH): Itaperuna, Miracema, Açucareira de Campos, Cantagalo, Três Rios, Cordeiro, Vale do Paraíba Fluminense, Serrana Fluminense, Vassouras e Piraí, Bacia do São João e Macacu, Fluminense do Grande Rio, Cabo Frio, Baía da Ilha Grande e Rio de Janeiro. Os municípios do Vale do Paraíba estão
170
No que diz respeito ao número de estabelecimentos rurais, o estado do Rio de
Janeiro apresentava, no final da década de 1980, tendência ao crescimento: entre 1970 e
1985, o número de estabelecimentos rurais aumentou em 26,09%. Apenas a MRH de
Valença e Barra do Piraí apresentou uma redução da ordem de 7,99%. Desta forma,
enquanto o estado do Rio como um todo apresentava a tendência à retração da área agrícola
e aumento dos estabelecimentos rurais, a MRH de Vassouras e Piraí apontava para
tendência inversa, de expansão da área agrícola e redução do número de estabelecimentos
rurais, o que significava a progressiva concentração da propriedade rural. O índice de Gini
para concentração fundiária na região estava, no início da década de 1990, entre 0,67 e
0,73, o que significa que a distribuição de terras não era mais desigual que na média do
estado (0,69), e menor que em outras regiões como Campos (0,75) e Baía da Ilha Grande
(0,82). No que diz respeito ao grau de ociosidade das propriedades rurais, a apontar para a
incidência de latifúndios por exploração, a média da região de Vassouras e Piraí era menor
que a média do Estado que, entretanto, era bastante alta: 51,74% das propriedades rurais do
estado são consideradas latifúndios por exploração63.
A década de 1980 foi marcada por uma progressiva desvalorização do preço da terra
no estado do Rio de Janeiro, numa taxa média de 3,5% ao ano, em contraposição à década
de 1970, marcada pela valorização do preço. A desvalorização da terra nos anos 1980 não
foi, entretanto, um movimento estável, apresentando elevações e quedas de preço no
decorrer da década, variações que podem ser explicadas pelo uso da terra como reserva
econômica, o que faz com que seu preço suba quando aumenta o nível de incerteza do
mercado. Assim, o preço da terra sofreu uma queda brusca até o ano de 1984, quando o
agravamento da crise econômica iniciou um período de alta do preço que culminaria em
1986, com a ameaça de hiperinflação e a vigência do primeiro plano de estabilização
econômica (o “Plano Collor”).
divididos em duas MRH: Vale do Paraíba Fluminense (Itatiaia, Resende, Barra Mansa, Volta Redonda, Barra do Piraí e Valença) e Vassouras e Piraí (Rio Claro, Piraí, Mendes, Eng. Paulo de Frontin, Miguel Pereira, Vassouras e Pati do Alferes). 63 Para termos de comparação, a MRH do Vale do Paraíba Fluminense, que agrega os municípios do Vale do Paraíba que serviram de palco para o processo de industrialização da região, apresenta tendência à estagnação da área agrícola e ao aumento do número de estabelecimentos rurais, com índice de Gini entre 0,61 e 0,66.
171
Considerando o período entre as décadas de 1950 e 1990, a região do Vale do
Paraíba não se apresenta como foco de conflitos agrários, no que se distingue do quadro
estadual, principalmente de regiões como a Fluminense do Grande Rio e Açucareira de
Campos, já que a história dos conflitos agrários no Rio de Janeiro aponta para a década de
1950 como marco de acirramento das tensões e de intensificação da violência. O baixo grau
de conflituosidade da região provavelmente se deve à pouca atratividade da área para
empreendimentos, depois da crise do café e do ciclo do carvão. A secretária de
Desenvolvimento do município, Elvira Soares, conta que a década de 1970 constituiu
momento de acirramento dos conflitos na região, marcadamente na oposição às tentativas
de expropriação das famílias que viviam “nos altos da serra”64, todas envolvidas na
economia do carvão. Elvira teria acompanhado os conflitos (que segundo ela se
manifestavam tanto no plano jurídico quanto na atuação de capatazes), já que fazia parte do
Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rio Claro.
A década de 70 teria marcado o auge da luta pela regularização fundiária da região,
com participação intensa da pastoral da terra, responsável pela organização da “Via Crucis
do Trabalhador”. Entretanto, se a demanda por regularização fundiária impulsionou a
organização sindical na região, segundo Elvira Soares, “depois eles foram ganhando a terra,
o sindicato morre; o pessoal foi titulando, a luta foi morrendo”. Alguns anos mais tarde, o
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Claro fecharia suas portas. Esta década não se
mostrou conflituosa para a família Leite, já que os supostos proprietários da área não
demonstravam interesse efetivo por sua ocupação. Isso possibilitou que, nesta década,
Sebastião Antero e Sebastiana Leite regularizassem o “sítio” de Alcides Leite a partir da
atuação do sindicato.
a ação judicial
Em 1980, duas glebas de propriedade de Araquém, que correspondem à área
denominada pela comunidade como Alto da Serra e onde membros da comunidade
mantinham roças de banana e outros produtos, foram penhoradas por conta de dívida
64 Aqui, a referência não é à exclusivamente à família Leite, mas a todas as famílias que viviam nas serras do entorno.
172
contraída com a empresa Fiança Cia. de Crédito, Financiamento e Investimentos. Em
1983, um advogado chamado Mário Bolgenhagen arrematou as glebas em leilão por oito
milhões de cruzeiros. A área é descrita no auto de penhora como
“uma área de terra denominada ‘Alto da Serra’, e conhecida também
por ‘Boa Vista’, composta de duas Glebas situada em Lídice, 2º distrito
deste Município de Rio Claro RJ, zona rural, com as seguintes
características: primeira Gleba – uma área de terras no imóvel
Coitinhos no lugar denominado ‘Alto da Serra’ ou ‘Boa Vista’, medindo
23 (vinte e três) alqueires e 33 (trinta e três) litros geométricos e terras
equivalentes a 111 (cento e onze) ha. 35 (trinta e cinco) e 65 (sessenta e
cinco) centiares (...) Segunda Gleba – uma área de terra denominada
‘Alto da Serra’, também conhecida por ‘Boa Vista’, com 638.880,00 m2
(seiscentos e trinta e oito mil oitocentos e oitenta metros quadrados, ou
sejam 63 hectares, 88 ares e 80 centiares, ou ainda treze alqueires e
mais (ilegível) seiscentos e oitenta metros quadrados de terras, consta
desta propriedade uma casa de morada, sede da propriedade, na
fazenda Coitinhos (...)”
Um laudo de avaliação descreve as condições da área:
“a propriedade está localizada no Vale das Serras do Mar, Rio das
Pedras e Sinfrônio. É formada de várzea, parte ondulada e altas. (...) é
servida pelos Rios do Papudo, Piray e Alto da Serra. (...) A propriedade
é formada de pastagens, capoeira e mata virgem(...) possui uma casa
sede assobradada, sendo sua parte baixa de alvenaria e alta de madeira,
é avidraçada e coberta de telhas tipo francesa, estando necessitando de
reparos gerais e pinturas (...) o imóvel em questão é constituído de 2
(duas) glebas de terra, que são contíguas e contínuas, constituindo-se
em região de variado aspecto topográfico, onde há uma várzea de,
aproximadamente, 5 (cinco) alqueires e uma área de 31 (trinta e um)
alqueires, onde se verifica a presença de terreno acidentado(...)”.
173
Figura 5 – “Planta da Medição do Sítio Alto da Serra ou Boa Vista”.
Tendo perdido em todas as fases do processo de execução movido pela Fiança, o
que redundou na venda da área a Mario Bolgenhagen, em 1988, Araquém Faissol Pinto
entrou com uma ação rescisória contra ambos, para desconstituir o auto de arrematação de
1983. Argumentava uma série de falhas processuais, relativas às avaliações judiciais da
área penhorada, bem como irregularidades no processo de arrematação. Quanto às
avaliações, segundo a inicial da ação, “o Sr. Perito avaliou, a seu modo, as terras e a
construção rústica, deixando de considerar as matas virgens e o bananal(...)”, considerados
“bens imóveis” pelo Código Civil (fls. 03 e 04). Ressalta que o engenheiro florestal
responsável por uma reavaliação requerida e concedida pelo juiz, tendo considerado matas
e bananal, chegou ao valor de Cr$ 38.665.631,00. Considerando que o laudo utilizado para
a venda em hasta pública avaliou o imóvel em Cr$ 15.900.000,00, argumenta que “houve
na realidade uma omissão do perito de cerca de Cr$ 23.000.000,00” (fl. 05). Quanto ao
processo de arrematação, argumenta que a venda foi feita sem que os editais de praça
174
fossem publicados, e sem que houvesse licitantes. Em 1989, a 1ª Câmara do Tribunal de
Alçada Cível do Estado do Rio de Janeiro negou provimento ao recurso, argumentando que
a ação rescisória não é instrumento capaz de desconstituir o auto de arrematação, que
ademais fora resultado, como afirma um parecer anterior da Procuradoria Geral de Justiça,
“de um injustificado inadimplemento, que o Executado parece desejar perpetuar”.
Segundo Benedito, Mário Bolgenhagen só ocupou a área após ter “ganho a
propriedade na justiça”. A chegada do novo proprietário à área, para ocupar a casa-sede, é
marcado na memória do grupo como momento de perda da autonomia sobre o seu
território. Como se recorda Isaías, filho de Benedito,
Lembro, eu era garoto, era criança ainda, deveria ter uns oito anos, mas a
minha memória ainda guarda bastante. Eu lembro até hoje, eu tava ali
embaixo, naquele ponto de ônibus, um caminhão grande chegando, aí
tinha um jerico (pequeno trator) novinho em cima, tinha uma carroça,
tinha arado, tinha grade, e eles passaram por aqui, tal, quase não tinha
caminho pro caminhão, eles foram rompendo, e fizeram a volta, subiram
aí e entraram lá. Lá na casa do Mário. A gente aqui tá acostumado a
trabalhar com enxada, foice, enxadão, o cara chega com uma máquina
nova, um caminhão novo, tudo pra chegar, se instalar, arrumar um
casarão que estava um pouco ruim, eles pegaram, reformaram, então pra
gente aquilo foi muito estranho, e mais, a gente tinha um pouco de medo
de ser bandido. Então, começaram a invadir, invadir, invade ali, meu pai
querendo conversar com eles, querendo explicar, eles não aceitavam
explicação, e tal, e querendo invadir, foram invadindo mesmo (...)
A “invasão” do novo proprietário se fez acompanhar de tentativas de interromper as
atividades produtivas do grupo. Cerca de quatro núcleos familiares produziam, na área,
lavoura de subsistência e banana. Em frente à casa-sede, na beira da estrada, ficava o
“ponto de banana”, um cercado de madeira onde a produção era depositada para que fosse
levada no dia seguinte, para a comercialização. Este mesmo “ponto de banana” foi, segundo
relatos, destruído a mando do proprietário quando de sua chegada à região. Segundo
175
Benedito, Mário o teria chamado para combinarem como ficaria a plantação de banana,
estimada por ele em torno de três mil pés. Benedito conta que não pretendia, originalmente,
abandonar a área de plantio, e que foi “combinar” com Mário para continuar “tomando
conta”, como fizera até então com Araquém. Entretanto, segundo ele, Mário teria se
negado a esta “combinação”, razão pela qual Benedito propôs um ressarcimento dos
bananais, para “não ficar no prejuízo”.
A proposta de ressarcimento financeiro foi a saída encontrada diante da
indisponibilidade do novo proprietário em manter a antiga relação de tomar conta, diante do
que Benedito se viu impotente. Nas tentativas de “combinação” com Mário, Seu Dito
articulou o direito relativo ao “tomar conta”. Na narrativa de Dona Teresinha: “que ele deu
pra chegar, e o meu esposo falou eu tenho o meu direito. Caso se você pagar o meu direito
que eu tenho, tá decidido. Mas você chegar e me tirar eu assim, né, donde eu trabalho pra
manter minha família, donde eu já venho vivendo muito tempo, né? Terra que a minha
esposa foi criada. Você me tirar eu assim sem me pagar nada, isso aí eu não vou fazer”65.
Articulado com o tempo de ocupação (“terra que a minha esposa foi criada”), o “tomar
conta” relaciona-se ao acúmulo de trabalho na terra e ao fato de a terra constituir meio de
sustento familiar, extrapolando a noção de um direito por serviço prestado ao suposto
proprietário.
Isaías fala também desse momento em que Mário chegou às terras recém
compradas:
“Aí meu pai queria lançar um acordo com eles(...). Aí ele falou pro meu
pai que ele não dava um centavo pro meu pai. Meu pai tinha plantação de
banana, tinha muita banana, ele falou que banana é nativa, banana nasce
assim”.
Em 1991, Mário Bolgenhagen ajuizou uma Medida Cautelar em face de “Comercial
de Madeiras da Serra de Lídice Ltda. e outros”, sob alegação de que a propriedade estaria
65 KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço. “Relatório da Pesquisa Percepções de Direito e Acesso à Justiça entre duas Comunidades Negras Rurais do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro, Koinonia/SEDH, 2005.
176
sendo indevidamente utilizada. No ano seguinte, solicitou a exclusão da Comercial de
Madeiras da ação judicial, sob argumento de que a empresa teria se retirado da propriedade,
nomeando os “outros”: os irmãos Benedito e Juventino Leite, seu cunhado José de
Carvalho e Paulo Rezende, um morador da região, todos acusados de “desenvolver
atividades essencialmente agrícolas” na área, “alegando que são os ‘donos’ de pequenas
plantações de bananas existentes no local há mais de 20 anos”. Alegando necessitar “da
área devidamente desocupada para poder levar adiante o projeto agropecuário que pretende
implantar”, e para “prevenir direitos”, requeria a vistoria da área.
Em 1993, Benedito, Juventino, José e Paulo constituíram como seus advogados
Luiz Eugenio de Siqueira e Marlene Carneiro, advogados vinculados ao sindicato. Em
1994, a primeira contestação passava por dois argumentos. Em primeiro lugar, “carência da
ação”: como a vistoria fora proposta contra a Comercial de Madeiras da Serra de Lídice
Ltda., com a retirada da empresa do processo, este teria perdido seu objeto, o que exigiria a
propositura de nova ação. O autor contra-argumentou que a Medida Cautelar fora proposta
em face da empresa Comercial e “demais invasores a serem identificados pelo sr. Oficial de
Justiça”, que identificou como “invasores” Benedito, Juventino, José de Carvalho e Paulo.
Em segundo lugar, a contestação argumentava “inépcia da inicial”, já que, naquele
momento, transcorria outra ação, de natureza possessória, contra os mesmos réus, além da
ausência da menção do direito a ser tutelado.
De fato, em fevereiro de 1993, Mário interpôs uma ação de reintegração de posse,
com pedido de liminar, contra os “outros” referidos no pedido de vistoria. Argumentava
que a área denominada “Alto da Serra” era de sua propriedade, e que teria sido invadida
pelos réus, que “alegam ser ‘donos’ de pequenas plantações de bananas, plantações estas
que já existiam no local há mais de vinte (20) anos”, tendo sido infrutíferas as tentativas de
resolução “amigável” do impasse, com a recusa dos réus em desocupar a área “invadida”.
O juiz em exercício, Murilo André Kieling Cardona Pereira, em março de 1993,
negou o pedido de liminar, sob o argumento de que não estava comprovado se a alegada
invasão era de menos de “ano e dia”, determinando o “procedimento comum ordinário”. O
pedido de liminar em ações possessórias tem como condição fundamental que o esbulho da
177
posse tenha ocorrido em um prazo anterior a um ano e um dia da ação, o que a doutrina
convencionou chamar de “posse nova” (art. 924 do Código de Processo Civil). Em caso de
“posse velha”, ou seja, aquela na qual o esbulho se deu há mais de um ano e um dia, cabe
ainda a ação possessória, mas não o pedido de liminar. Assim, o que o juiz contestava, na
decisão, não era a existência ou não de posse por parte de Mário Bolgenhagen, o que seria
questionado mais tarde, mas se a “invasão” dos réus tinha ocorrido ou não há menos de ano
e dia.
O questionamento acerca da posse efetiva de Mário Bolgenhagen da área em litígio
se daria a partir de dezembro de 1993, quando uma contestação dos réus66 argumentou que
os autores formularam o pedido fundamentados na carta de arrematação do imóvel sem,
entretanto, informar se foram ou não imitidos na posse da área, portanto se haveria ou não
posse a ser reintegrada. Neste caso, a ação cabível seria a dominial, e não a possessória.
Além disso, argumenta que a inicial não traz descrição da área, o que tornaria impossível
determinar se os réus estariam, de fato, ocupando as duas glebas em questão. Em seguida,
argumenta pelo direito de posse dos réus: Juventino residia na área até 1989, onde cultivava
com sua família banana e “plantas de ciclo curto”, como feijão, milho e arroz; Benedito
possuía cerca de oito mil touceiras na área e em área contígua, de propriedade de José
Rollas, “havendo dúvidas sobre divisas”; finalmente José de Carvalho, cunhado de
Benedito e Juventino, “por via de sua esposa”, também possuía a área há mais de vinte
anos. Conclui que todos os réus possuíam a área há mais de vinte anos, sem quaisquer
restrições por parte dos proprietários anteriores, em um modelo de “posse comunitária e
familiar”, posse confirmada pelos próprios autores, quando admitem que as plantações de
banana existem na área há mais de vinte anos.
Os autores argumentam, em janeiro de 1994, que “é de mediana sabença que um
dos pressupostos básicos da Carta de Arrematação é a imissão na posse do bem
arrematado”, apresentando como argumento trecho do “Vocabulário Jurídico”, segundo o
qual “para que o arrematante se integre na posse dos bens arrematados, ser-lhe-á passada a
carta de arrematação (...)”. Argumentam pela sua posse da área em uma clara confusão
66 Constam como réus, representados pelo advogado, na Contestação de 02 de dezembro de 1993, apenas Benedito e Juventino Leite e José de Carvalho.
178
entre causa e efeito, já que a Carta de Arrematação é condição para a integração na posse, e
não o contrário. Complementarmente, pretendem descaracterizar os réus como posseiros,
atribuindo-lhes a condição de invasores: Juventino teria confessado ter invadido a área para
plantio de subsistência, mas não residiria na área nem seria lavrador, e sim ferroviário, e
Benedito, que também não moraria na área, “confessa ser um invasor contumaz”, ao
admitir que planta em propriedade de José Rollas. Finalmente, as plantações de bananas
não teriam sido cultivadas pelos réus, mas pelo antigo proprietário, Araquém. Conclui que
“a grande verdade (...) é que, como infelizmente está sendo comum em nosso Estado, as
invasões acontecem diariamente, e os invasores só almejam uma coisa: dinheiro para
desocupar a área invadida, a pretexto de indenização”.
Entre 1993 e 1996, o caso passaria pelas mãos de seis juízes. Em 11 de dezembro de
1995, os advogados dos réus requerem a produção de provas testemunhais e documentais,
no mesmo ato no qual revogam a procuração para a representação dos réus “devido à
dificuldade de se contatar com os mesmos que moram nas Serras de Lídices e de difícil
acesso”, deixando Benedito, Juventino e José de Carvalho sem advogado. Em julho de
1996, a juíza convoca quatro testemunhas, além dos réus e dos autores, para audiência
marcada para o dia 23 de agosto. Esta audiência foi adiada para o dia 28, quando
compareceram réus e autores, além das três testemunhas. Benedito, Juventino, José de
Carvalho e Paulo compareceram sem advogados, já que estes haviam renunciado à causa.
Entretanto, nenhum deles havia sido informado da renúncia, apesar da determinação da
juíza de que isto fosse feito. A juíza, assim, decidiu adiar novamente a audiência, intimando
os réus a que constituíssem novo advogado, “sendo instruídos que esta comarca encontra-se
temporariamente sem defensor público”. A nova audiência aconteceu no dia 01 de
novembro, sob a presidência de um novo juiz, João Augusto de Oliveira Navarro. Foram
tomados os depoimentos de quatro testemunhas, duas dos autores e duas dos réus,
“abrindo-se mão das demais testemunhas arroladas”. Uma nova advogada foi constituída
pelos réus: Ana Paula Horta Salvador. As partes requereram a apresentação de alegações
finais, na forma de memoriais.
Em seu testemunho, José Hamilton de Mendonça disse que as terras em questão
pertenciam a Arakem e que Benedito, empregado de Araken, morava e plantava nas terras
179
há mais de vinte anos. Segundo José Hamilton, Benedito não recebia salário de Araquém, e
que “para morar no terreno, tomava conta do mesmo e tinha direito ao dinheiro conseguido
com a venda das bananas” (Assentada de Testemunha, 01 de novembro de 1996), uma
produção que, segundo ele, era grande, e que Benedito vendia para “intermediários”.
Segundo ele, todos os réus residem em áreas próximas à área em litígio, e Benedito ainda
reside em terreno que pertence a Araken. José Raimundo e Anésio, segundo ele,
trabalhavam na terra “ajudando” Benedito e, antes da compra de Mário, moravam nas casas
lá construídas (provavelmente se referia às casas onde moram até hoje, e que ficam no
limite do terreno em litígio). Conta que, a partir de 1992, “começou a ocorrer problemas
relacionados à posse do terreno”, e que nunca vira Mário na região.
Geraldo Silva declarou que a propriedade foi vendida para Mário e que, quando da
venda, nenhuma pessoa morava nela. Após a venda do terreno, um empregado de Mário
teria passado a morar na casa. Declarou que viu Juventino, Benedito e Paulo plantando no
terreno. Sebastião Raimundo teria sido depositário da propriedade em questão, quando esta
ainda pertencia a Arakém Faissol. Testemunha que entre 1982 e 1988 “a propriedade era
livre, sendo certo que o depoente tomava conta da mesma”, afirmando mais tarde que “não
havia qualquer posseiro na região” e que “nenhuma pessoa de fora plantava bananas na
propriedade”, ou quaisquer outros produtos, só existindo na área bananas “nativas”. Ao
tomar conhecimento da venda do terreno, teria passado a chave da casa, que estava em seu
poder, para Mário Bolgenhagen.
Benedito Reis Inácio se declarou residente da região e sabedor de que Benedito
morava há mais de vinte anos na propriedade em questão, entendendo que se tratava “de
uma coisa só” (a parte vendida para Mário e a que permaneceu pertencendo a Araken).
Disse saber que Benedito vivia no terreno “denominado Alto da Serra, também conhecido
como Boa Vista”, e que Mário comprou a propriedade, ficando a sede com ele e o “restante
do terreno” com Benedito. Dá conhecimento de três casas no terreno, antes de ser vendido:
uma ocupada por Benedito, outra por ele mesmo e uma terceira casa, vazia, que teria sido
ocupada por Mário depois da compra do terreno. Sabia que Araken havia vendido parte do
terreno então em disputa, mas que a casa-sede estaria fora desta disputa judicial. Diz
180
conhecer Mário, que viu conversando com Benedito e Juventino, e diz ainda que ajudou
ambos a plantar banana na área, a partir de 1979, e que teriam plantado a mando de Araken.
Em oito de novembro Benedito e Juventino Leite, José de Carvalho e Paulo
Resende apresentam seu memorial. Argumenta, em primeiro lugar, que o pedido de
reintegração de posse está baseado em uma carta de arrematação, não tendo ficado
comprovado que os autores tivessem sido imitidos na posse. Conclui dos testemunhos que
“a propriedade objeto de litígio, foi e ainda é cultivada pelos réus há mais de 35 anos, pois
inicialmente produzia na referida propriedade o Sr. Alcides Leite, pai do segundo Réu, esta
posse sempre foi mansa e pacífica, a família dos Réus e os próprios sempre produziram
unidos na mesma. A produção é grande, tanto que foi falado por uma das testemunhas que
o Sr. Benedito vendia a intermediários (...) os Réus foram reconhecidos por todas as
testemunhas ouvidas. E todos afirmaram que os mesmo trabalharam na terra em litígio”.
Afirma que a plantação é para sustento das famílias, e chama a atenção para o fato de que o
desmembramento e venda de duas glebas da área é posterior à posse dos réus, que
permanecem (dois deles) morando na área, na parte que ainda pertence a Araken.
Argumenta, portanto, posse superior a vinte anos, pacífica, pública e de boa-fé, reconhecida
pelos próprios autores, cabendo “o reconhecimento legal de seus direitos”, no caso o direito
à usucapião. Caso o juiz reconhecesse a posse dos autores, pede indenização das
benfeitorias e plantações, “para que assim não sejam totalmente prejudicados por sua boa-
fé”. No dia 11 do mesmo mês, Ana Paula renunciou à procuração outorgada pelos réus,
“por motivos pessoais”.
Os autores, em 14 de novembro, argumentam que a imissão na posse se deu pela
expedição da carta de arrematação, registrada em cartório. Em seu memorial, argumentam a
partir dos testemunhos. De Sebastião Raimundo, lembra ter dito que entre 1982 e 1988 não
havia qualquer posseiro na propriedade, nem se plantava nada lá. De Geraldo Silva lembra
que depois que Mário comprou a propriedade, somente um empregado residia na casa, e
que antes não morava ninguém. De Benedito dos Reis Inácio lembra que Benedito morava
em terreno ao lado e que os réus plantaram bananas no terreno por ordem de Araken. De
José Hamilton de Mendonça lembra que Benedito reside em terreno de Araken, e que os
quatro réus moravam próximo, e Benedito plantava banana no terreno em questão, ajudado
181
pelos demais réus. Donde conclui que até 1988, data da compra, o terreno estava livre de
posseiros, que nenhum dos réus jamais morou na área, que as plantações foram feitas até
1988 por ordem de Araken, só havendo plantações de banana, e que os réus invadiram o
terreno após os autores os terem adquirido.
Apesar de a ação judicial citar como réus três membros da comunidade, Benedito
Leite foi quem se mobilizou mais intensamente na tentativa de manutenção de seu direito
de uso da área. Segundo Isaías, apesar do direito ser coletivo, apenas seu pai se mobilizou
naquele momento, entre outras razões por conta das pressões sofridas:
“Porque o direito é nosso, sem dúvida alguma, porque meu pai praticamente foi
nascido e criado em cima dessa terra, nós trabalhamos muito em cima dessas
terras, então a gente não vai deixar barato (...) algumas famílias67 até
abandonaram, chegou pra ele e falou: ó, não vou ficar aí mais não, porque ele
[o empregado do novo proprietário] ficou muito, assim, em cima, em cima, em
cima do pessoal. O único que não abandonou foi meu pai. Mesmo assinando a
“reentregação” de posse ele não abandonou. (...) Porque a minha mãe... esse
terreno que tá aí, meu pai que luta por ele porque foi o nome dele que entrou na
justiça, e tal, mas esse terreno, com certeza, foi do pai da minha mãe, então
veio, minha mãe tem cinqüenta e oito anos, meu avô, se ele estivesse aí, já
deveria estar com uns... mas com certeza essa luta que tá aí, essas terras que
tão andando nas nossas mãos já têm mais de oitenta anos.”
Como relata Dona Terezinha, muitas vezes Seu Dito saía de madrugada “para o
Fórum”, perdendo o dia de trabalho, com seus filhos pequenos em casa, apenas para chegar
sem que nada tivesse sido resolvido. Ilda, uma das filhas de Benedito, mais do que os
custos materiais desta experiência, revela a sensação do desrespeito de quem, tendo perdido
a “altivez”, se submetia a ser “maltratado”, sentando no “banco dos réus”:
“Agora tem muito tempo, ó, tem muito tempo que o meu pai não ia mais à
Justiça (...). Porque muitas das vezes ele deixava a gente em casa e a mãe
67 Na fala de Isaías, o termo “família” é usado como forma de distinção interna entre as casas.
182
aí com um pouquinho de arroz, um pouquinho de fubá, para poder a gente
comer, porque um monte de crianças, fazia aquela sopa de inhame pra
comer? Pra chegar lá e ficar sentado no banco dos réus e pra não ser
atendido. Do jeito que entrava, saía pior ainda. Sendo maltratado,
ouvindo falar mentira. Sem poder ter voz altiva”.
Além do desgaste e da perda de tempo de trabalho, a família sofria pressões por
parte do fazendeiro e seu empregado: “ele vinha em cima da gente com uma pressão, mas
uma pressão mesmo braba mesmo que se a gente não se apegasse com Deus mesmo a gente
ficava até com medo”. De sua parte, além da pressão sofrida, inclusive com intimações para
prestar depoimento na polícia, Benedito sentia a incapacidade de uma atuação mais
contundente junto aos órgãos de justiça:
“Depois é que foi pro Fórum. Aí no Fórum eu fiquei pelejando. Arrumava
um advogado na causa hoje, amanhã aquele largava, defendia também até
de eu pagar, e eu não tinha dinheiro pra pagar. (...) aí eu fiquei
recorrendo, pelejando no Fórum, pra modo de ir lá pro juiz, né? Mas eu
não era bem atendido, eles faziam o que queriam. Uma advogada de
Barra Mansa saiu da causa. E eu não sabia, não tinha instrução, né?
Porque como é que podia fazer? Aí sumiu. Eu não fui lá saber como é que
tava andando o processo. Não ia porque não tinha orientação, e eles
também não mandaram avisar nada, como é que tava o processo lá (...)”68
Os relatos dão conta dos graves entraves no acesso à justiça por parte do grupo, não
apenas no que diz respeito às instituições do direito – Rio Claro não contava, na época, com
um defensor público – mas também na acessibilidade aos conhecimentos relativos a uma
ação judicial. Benedito não tinha qualquer controle acerca do processo que estava sofrendo.
Assim Isaías explica a impotência do pai e dos demais membros da comunidade
envolvidos, como falta de conhecimento cujo acesso, mais tarde, será valorizado pelo grupo
no seu processo de organização:
68 KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço. “Relatório da Pesquisa Percepções de Direito e Acesso à Justiça entre duas Comunidades Negras Rurais do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro, Koinonia/SEDH, 2005.
183
“A justiça é assim, se ela olhar pra você e ver você com cara de bobo,
vamos falar assim, se ela vê você assim com uma carinha de que não sabe
muita coisa, e tal, aí tem o outro que já é inteligente, que é advogado, isso
e aquilo, que tem um forte conhecimento, com certeza vai cair pr’aquele
lado, né?”
Apesar das ameaças anteriores de Mário de derrubar os pés de banana, segundo
Benedito, no decorrer do processo ele continuou plantando sem que houvesse qualquer
conflito. A ausência de qualquer tipo de pressão, no momento em que ele e os demais réus
estavam sem advogados, o levou a pensar que o pleito se houvesse extinguido. Seria
durante o trabalho no campo que ele tomaria ciência do resultado, através de um oficial de
justiça. A decisão do juiz foi proferida em 06 de dezembro de 1996, quase quatro anos
depois. Nela, o magistrado nega a preliminar de inépcia da inicial, pois segundo ele os
autores anexaram os documentos indispensáveis. No mérito, considerou
Que os réus não conseguiram demonstrar o alegado, no sentido de que os
autores não foram imitidos na posse, não havendo, portanto, nenhum
depoimento que ratifique estas alegações e venham convencer a este
Juízo. Ao contrário, alegam os autores que adquiriram a propriedade, o
que foi confirmado pelos documentos apresentados, e tomaram posse da
mesma, o que é provável, pois dificilmente alguém arremata em leilão
determinada área, sem conhecê-la bem. Além disso, os depoimentos das
testemunhas corroboraram as declarações autorais e fazem crer que não
existia qualquer pessoa detendo a posse da área em litígio, antes ou ao
tempo da aquisição pelos autores, havendo, ao que as provas indicam,
apenas plantações de banana, autorizadas pelo antigo proprietário.
(grifos meus)
Diante disto, decide pela procedência da ação, reintegrando os autores na suposta
posse da área. Esta decisão faz referência às duas ações: à de reintegração de posse e àquela
relativa ao pedido de Vistoria. Em 26 de setembro de 1997 os quatro réus são intimados a
pagar as custas judiciais e os honorários advocatícios de ambos os processos. Em 20 de
184
março de 2002 é expedido o Mandado de Reintegração de Posse. Em 19 de junho de 2002 o
Oficial de Justiça notifica que a posse foi reintegrada, e que Benedito Leite recebeu a
contrafé e se recusou a exarar o ciente. Em 13 de setembro, Mário informa que foi
reintegrado na posse, mas que, além de não exararem o ciente, os réus ainda não haviam
desocupado a área. Pede o uso de força policial, e que em caso necessário alugará um trator
para, “sob as vistas dos Oficiais de Justiça”, “promover as medidas cabíveis” para a efetiva
reintegração. Em 29 de outubro os oficiais de justiça retornam à área, acompanhados de três
policiais, para “reiterar todo o teor do mandato”. Na ocasião, além de Benedito e Juventino,
foram contatados (e citados na certidão) José Urbano e Maria de Lourdes, Benedito de
Carvalho e esposa. Nos relatos dos moradores, a presença da força policial em suas casas e
locais de trabalho foi percebida como marcas da continuidade da pressão e da violência
sofridas, alguns deles fazendo referencia inclusive a abusos no uso da força policial.
Dona Terezinha se recorda do momento em que a ação judicial chega ao final como
o momento em que o direito da família é deslegitimado pelas instituições do direito formal,
o que produziria a percepção, jamais sentida, da necessidade de encontrar alternativas para
a regularização fundiária. Tal expectativa se traduziria, mais tarde, na demanda pela
titulação do território quilombola:
“Foi onde a oficial de justiça que veio trazer essa intimação pro meu
esposo conversou muito com ele, falou com ele. Ele falou: eu tenho meu
direito, né? (...) eu quero que ele respeite meu direito. Aí ela falou pra ele:
ó, mas eu me admiro muito do senhor tá há quarenta anos trabalhando
nessa terra, né? E o senhor não tem um papel na sua mão escrito, né? O
seu direito. Direito de posse. O senhor tem que ter o seu direito de posse.
Eu tô aqui com os papéis dele. Cadê o seu?(...) Mas aí essa oficial falou
comigo. É pra mim chamar ele, e conversar com ele daquele dia em
diante, que ele precisava de ter um papel escrito na mão dele de direito
185
dele, esse papel ia se chamar o direito dele, direito de posseiro, tem
direito de posse.”69
Em 19 de fevereiro de 2003, Mário e Benedito celebraram um acordo judicial, no
qual Mário doava parte da área a Benedito, comprometendo-se a outorgar escritura e a
oferecer mão-de-obra para construção de via de acesso, e abrindo mão da queixa relativa a
“eventuais registros policiais pela hipotética prática de esbulho”. Nos termos do acordo,
Mário Bolgenhagen “reconhece a posse” de Benedito como “anterior a sua aquisição da
área”, em contraposição ao seu argumento central na ação de reintegração de posse, que foi
acolhido pelo juiz.
É curioso perceber de que modo os membros da família de Benedito se referem à
ação judicial sofrida: não como “reintegração” da posse a Mário Bolgenhagen, mas uma
“re-entregação” da posse comunal. A pronúncia “reentregação” é usada diversas vezes nos
discursos, menos como um erro e mais como uma compreensão local da realidade a que ela
se refere. É Isaías quem a interpreta como ato de entregar a posse que pertencia ao grupo a
terceiros:
“Teve um dia que o meu pai recebeu uma reentregação de posse aqui. Aí
meu pai, com pouco conhecimento, pegou e assinou a reentregação de
posse. Assinou... mas isso não tem tempo... assinou uns quatro anos atrás.
Aí assinou a reentregação de posse. Eles vieram com três polícias junto,
mais um oficial de justiça, e o Gaúcho tava junto, mãe? O Gaúcho tava
não, né? Veio aqui. Aí, quando vimos que assinou a reentregação de
posse, reentregação de posse, a gente parou bem pra pensar, reentregou a
posse... assinou, ele... aí depois que ele viu que tinha assinado a
reentregação de posse que o Gaúcho... assinou pro Gaúcho entrar...
A experiência judicial teve poderosos impactos sobre o grupo, fundamentalmente
sobre a casa de Benedito Leite, em torno da qual se deu a organização política da
comunidade. Apesar de dizer respeito a cerca de ¼ do território da família Leite, a 69 KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço. “Relatório da Pesquisa Percepções de Direito e Acesso à Justiça entre duas Comunidades Negras Rurais do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro, Koinonia/SEDH, 2005.
186
importância da ação de reintegração de posse está muito mais no plano simbólico,
sobretudo porque seu resultado não implicou a interrupções das atividades produtivas do
grupo na área. Assim, sua análise evoca questões importantes acerca da dimensão jurídica
do reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombo. Em primeiro lugar, a
experiência jurídica manifestou o embate entre duas concepções distintas de direito à terra,
cada uma delas com um conjunto de termos e significados que lhes são próprios. Em
segundo lugar, o agenciamento das instituições do direito não redundou no reconhecimento
destas diferenças, antes implicou sua exclusão e criminalização. Finalmente, a comparação
com outros casos de reconhecimento de comunidades quilombolas no estado do Rio de
Janeiro aponta para a articulação de novos atores e instâncias, cabendo aos profissionais e
espaços do mundo do direito, no caso de Alto da Serra, apenas o papel de evocarem no
grupo a demanda pelo reconhecimento, resultado da experiência jurídica de desrespeito.
os vários sentidos de posse e propriedade
Em Alto da Serra, as categorias que informam o processo de ocupação do território,
muitas delas apropriadas do vocabulário do direito formal, compõem um sistema jurídico
próprio, a regular as relações de produção, entendidas como relações dos membros do
grupo entre si e destes com a terra. Mas em que medida podemos nos referir a este conjunto
de noções como um direito local? Da resposta a esta pergunta depende a compreensão não
apenas dos modos como o grupo legitima sua forma de ocupação, mas também dos
possíveis encontros, mediações e conflitos entre as formas e concepções locais e estatais de
direito. Mas respondê-la depende de uma questão ainda mais elementar, relativa ao
conceito de direito a que se está referido, e diante da qual Boaventura de Souza Santos
(1988) evoca o aporte teórico da antropologia, segundo ele vocacionada para uma leitura
crítica do direito, em razão da distância entre seus objetos clássicos e as elaborações
teóricas tradicionais da ciência jurídica.
O debate antropológico, segundo o autor, não apenas garantiria o acesso a
ferramentas conceituais capazes de dar conta de formas locais de regulação do
comportamento, como permitiria a construção de um conceito mais amplo e menos formal
de direito. A partir desta reflexão, Boaventura de Souza Santos empreende o esforço de
187
construir um conceito de direito adequado às necessidades de sua investigação empírica
acerca das formas de regulação de conflitos em uma favela do Rio de Janeiro. Um conceito
suficientemente amplo para dar conta de diversos fenômenos jurídicos, para além dos
estatais, mas que distingam o direito de outras formas e processos de controle social; que
escape das armadilhas da especificidade e da generalidade ao mesmo tempo. Define o
direito, neste sentido, como “o conjunto de processos regularizados e de princípios
normativos, considerados justiciáveis num dado grupo, que contribuem para a criação e
prevenção de litígios e para a resolução destes através de um discurso argumentativo, de
amplitude variável, apoiado ou não pela força organizada”.
O direito à terra da família Leite está fortemente vinculado a valores relacionados à
moralização do trabalho e ao tempo e caráter familiar da ocupação. Tais princípios podem
ser articulados em momentos dramáticos, como a experiência do conflito pela terra, para
sustentar sua permanência, ou ainda quando da definição territorial, quando os membros da
família organizados em torno da associação se viram diante da possibilidade - o que quer
dizer legitimidade - de pressionar outros, coibindo a pretensão de venda de lotes. Estamos,
portanto, diante de um conjunto de orientações normativas que, ancoradas em um conjunto
de valores, podem ser articuladas em um discurso com pretensões de validade não apenas
para resolução, mas, por vezes, para a instauração de conflitos.
Este direito próprio foi constituído a partir da apropriação, por parte da comunidade,
de termos e instituições advindos do direito formal. Assim, a figura jurídica da propriedade
está presente no reconhecimento do estatuto de “donos” dos “patrões”, para os quais o
grupo “toma conta” do terreno. Entretanto, como já apontado, esta condição de dono se
apresenta como um vínculo fraco, já que não se faz acompanhar de uma efetiva ocupação
da terra, e o “tomar conta” não implica nenhuma obrigação nem cria expectativa de
qualquer contraprestação. Do mesmo modo, a figura jurídica da posse se apresenta com
certa dubiedade entre o grupo, já que o que os Leite chamam de “posse” corresponde a um
contrato de compra e venda de precária segurança jurídica, correspondendo à
institucionalização local da lógica da propriedade privada, já que implica a disponibilização
da terra para vendê-la a terceiros. O instituto local que expressa a efetividade da posse
como facticidade da ocupação é o “tomar conta, que tem, entre os Leite, implicações
188
familiares e coletivas. Em alguns momentos, o “tomar conta” se aproxima, em sua
formulação, do dispositivo jurídico da usucapião, como na formulação de Dona Maria de
Lourdes:
“Ah, por que faz muito tempo que a gente toma conta, né? Que a gente,
assim, faz plantação, que mexe nela. Tem muito tempo! Pois é. Tem
inclusive, não sei, mas vocês sabem, que eles falam que parece que a
pessoa... assim, tendo plantado dentro de um terreno um ano já tem
direito, né? Eu vim pra cá, comecei a mexer tava com 21 anos. Tô com
quase 55, tem bastante tempo”70.
As formas locais de direito, portanto, da mesma forma que a identidade étnica, se
constroem de forma contrastiva. As fórmulas jurídicas costumeiras do campesinato
comunal estabelecem relações de ordens diversas com o direito formal, ora constituídas a
partir de releituras de dispositivos jurídicos positivos, ora encapsuladas e redefinidas pelo
aparelho estatal. Assim é o caso da instituição jurídica das “terras da santa”, a operar como
dispositivo legitimador do direito à terra por parte do campesinato comunal de Alcântara e
Betimão (MA). Tal formulação constitui uma derivação da antiga relação de propriedade
das Ordens do Carmo e das Mercês, após a extinção de ambas. Neste caso, tem papel de
destaque a permanência, nos povoados, do antigo cargo eclesiástico de “encarregado da
terra”, cuja reinterpretação como cargo hereditário é possibilitada, dentre outros fatores, por
sua pouca efetividade formal (Sá, op. cit.). De outro modo, a comunidade negra do
Cangume (SP) viu a apropriação, por parte da municipalidade, do cargo costumeiramente
atribuído de “administrador”, então formalmente nomeado de “inspetor de quarteirão”.
Além de assumir a responsabilidade dos “administradores” pela “roçança dos caminhos”,
limpeza das estradas nas quais os bairros definiam suas fronteiras, os então tornados
“inspetores de quarteirão” assumiram um conjunto de novas obrigações diante do
município. Por outro lado, a não-formalização dos critérios de admissão destes “inspetores
de quarteirão” permitiu fossem recrutados dentre aqueles que gozassem de maior prestígio
nos povoados, ou seja, os que ocupariam os cargos de “administradores” (Arruti, 2007).
70 KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço. “Relatório da Pesquisa Percepções de Direito e Acesso à Justiça entre duas Comunidades Negras Rurais do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro, Koinonia/SEDH, 2005.
189
Também é o caso do papel, entre os quilombolas de Preto Forro (RJ), do “dono da terra”,
cargo hereditário que, apesar de fazer referência à tarefa de marcar os limites do território e,
posteriormente, recolher e pagar impostos territoriais, foi apropriado em tentativas jurídicas
de expropriação por parte de um grileiro, em analogia à condição de proprietário (Koinonia,
s.d.).
Do mesmo modo, o “tomar conta” como atribuição dos quilombolas de Alto da
Serra, constitui a derivação de um vínculo empregatício informal em um dispositivo
legitimador de uma demanda por direito à terra, reconhecido e validado pelo grupo, e
mesmo pelo entorno. Assim, o “tomar conta” ganha o sentido de posse, ocupação efetiva
que confere direito sobre o território, diante da qual a propriedade se caracteriza como
relação fraca, embora confira àquele que a detém a condição de “patrão”. Tais concepções
locais de direito não foram construídas pelo grupo em condições de isolamento, mas,
justamente ao contrário, contrastivamente aos sentidos de posse e propriedade no direito
formal.
No âmbito da ação judicial, um dos advogados dos membros da comunidade se
apropriou das formas locais de direito, argumentando por uma modalidade de posse
“comunitária e familiar”, o que fica claro ainda quando argumenta que José de Carvalho
teria direito à terra “por via de sua esposa”. Entretanto, esta fórmula local de direito, o
direito coletivo ao uso da terra pelo “tomar conta”, não encontrou espaço de legitimidade
no tribunal, e a decisão judicial, neste sentido, ao transformar uma probabilidade em
decisão71, não reconheceu a posse anterior do proprietário, mas apenas consagrou a
primazia do direito à propriedade individual. Diante disto, a fala de Dona Terezinha,
referente à conversa com oficial de justiça, aponta para a percepção do grupo da
necessidade da regularização fundiária. Mais do que garantir a efetividade de um direito, o
fetiche do documento torna o “papel” o próprio “direito de posse”, sua materialização
(“esse papel ia se chamar o direito dele”).
71 “alegam os autores que (...) tomaram posse da mesma, o que é provável, pois dificilmente alguém arremata em leilão determinada área, sem conhecê-la bem”.
190
Posse e propriedade operam, neste caso, como lógicas distintas de relação com a
terra, mais do que como institutos jurídicos. A lógica da posse aponta para o seu caráter
consuetudinário e coletivo, dispondo a terra como valor de uso, e não de troca, cuja
legitimidade reside em elementos como tempo, trabalho e caráter familiar da ocupação,
manifestos no termo “tomar conta”. Os marcos desta forma de ocupação estão todos no
campo da produção: a permanência dos fornos de carvão, alguns deles espalhados pelos
bananais, cuja manutenção marca não apenas a presença da família no território, mas a mas
a constância de seu investimento em trabalho, explicitada em seus argumentos na ação
judicial. A lógica da propriedade, por sua vez, apresenta um caráter legal-formal,
representado pela garantia do “papel”, elemento legitimador sempre individual, a dispor a
terra como valor de troca e reserva de capital, mesmo quando se manifesta na forma de
“posse”, forma de propriedade menos rígida.
Diante do não-reconhecimento da legitimidade de sua ocupação, Benedito propôs ao
proprietário que este lhe “pagasse seu direito”, estipulando uma quantia para os bananais.
Esta monetarização do direito à terra, para além de seu sentido mais prosaico de alternativa
econômica diante da iminência da perda da plantação, pode apontar para as complexas
relações que o grupo manteve, no decorrer dos anos, com a lógica da propriedade privada.
Esta relação se torna mais explícita quando analisamos o processo pelo qual o grupo definiu
a área a ser titulada como território quilombola.
A perspectiva e os critérios para a regularização fundiária, como vimos,
converteram o debate em torno daqueles que fazem parte ou não da comunidade em outro,
em torno daqueles que fariam ou não parte da associação de remanescentes de quilombo.
Na construção da demanda do grupo, formar uma associação de remanescentes de
quilombo era colocar em jogo quem e que terras seriam incluídos na titulação coletiva,
principalmente porque já haviam formado, como veremos, outra associação que ocupara o
papel de espaço de organização política. Entretanto, apesar de haver poucas dúvidas em
relação àqueles que fariam ou não parte da comunidade, ou mesmo sobre aqueles que
poderiam requerer a inscrição na associação quilombola, detendo direitos sobre o território
coletivo, tal consenso não se verificou no que tange à definição do próprio território,
elemento definidor dos interesses de cada família e integrar ou não a “comunidade”.
191
Dentre as questões relativas à composição do território, a primeira delas dizia
respeito às famílias que, de uma forma ou de outra, haviam acessado outras formas de
regularização das terras onde vivem. Assim, as famílias de Maria Aparecida, Anésio e
Maria de Lourdes Leite compraram suas terras de Sebastião Bernardino quando este
abandonou seus investimentos na área, havendo dúvidas quanto à validade jurídica dos
documentos de compra e venda de que dispunham. A inserção de Sebastião Antero e
Sebastiana Leite também era questionada, já que haviam regularizado o sítio de Domingos
Antero na década de 1970. Finalmente, havia dúvidas quanto à participação de Célia que,
apesar de ter sido “assentada” em parte do território por Benedito, trocou esta área por
outra, menor, em negociação com o empregado do proprietário litigante.
A condição de Sebastião e Sebastiana foi pensada e resolvida a partir da noção de
“interesse”. Desde a organização da associação de trabalhadores rurais, o interesse desta
família é pensado pela liderança do grupo. Segundo Délbora,
“O seu Tião é uma pessoa muito difícil, negro daqueles muito antigo
mesmo, e não aceita qualquer conversa, é na dele, agora ele tem vindo
nas reuniões da associação, tem se interessado, tem participado. Ele tem
falado que ouve na Voz do Brasil falar de terras de quilombola, então ele
ouve lá e ouve aqui, ele ta querendo associar, saber o que tá acontecendo
no Brasil, nas terras de quilombo, então a gente explicou pra ele que toda
pessoa quilombola, remanescente que está ali na terra, que vive da terra,
ele tem o direito, que tem um artigo que garante o direito dele na terra. A
gente tem passado pra ele e ele tem se interessado bastante (...) você
falava com ele, ele falava assim ‘ah, isso é pra dar terra pra governo’. Até
que ele viu que o assunto quilombola, o mesmo assunto que tá em debate
no Brasil todo é o mesmo debate que tá acontecendo aqui, então eles estão
se interessando.”
O interesse da família de Sebastião em participar da organização do grupo não se
estendeu à titulação do território coletivo, justamente em razão de já ter regularizado suas
terras de moradia e produção. Entretanto, isso não significa que esta casa não seja entendida
192
como parte da comunidade de remanescentes de quilombo. Quando uma emissora de
televisão incluiu o grupo em uma série de matérias sobre comunidades quilombolas, a
liderança levou a equipe à casa de Sebastião e Sebastiana para uma entrevista. Assim,
embora a formação de uma associação de remanescentes de quilombo seja requisito para a
titulação de seu território, a condição de associado não é entendida, pelo grupo, como
necessária para que alguns parentes sejam entendidos como membros da comunidade. No
caso da família de Sebastião, a não participação na associação de remanescentes de
quilombo tem significados que se esgotam nos critérios para a regularização fundiária,
sendo entendidos como de seu interesse todos os outros assuntos que sejam concernentes à
comunidade.
O mesmo critério informa as decisões em torno das famílias de Maria Aparecida,
Anésio e Maria de Lourdes. Neste caso, a inserção na associação de remanescentes de
quilombo partiu da percepção de que os documentos de compra e venda de que dispunham
não ofereciam a necessária segurança jurídica em relação à posse da terra. Além disso,
diferente da família de Sebastião, essas famílias produziam em outras áreas do território, ou
seja, sua ocupação não se dava de forma autônoma em relação ao restante do grupo. A
compra dos terrenos por parte das três famílias aconteceu no início da década de 1990,
simultânea à ação de reintegração de posse, sob as ameaças de outro proprietário, Sebastião
Bernardino, antigo patrão, de vender a área para outro. Assim, do mesmo modo que a
proposta de Benedito de “vender seu direito” a Mário, neste caso a lógica da propriedade
privada se manifestava como única alternativa viável de garantia de direitos em tempos de
perigo.
Finalmente, o caso de Célia aponta para a adesão de alguns membros da
comunidade à lógica da propriedade privada, subjacente às formas então disponíveis de
regularização fundiária. Segundo a forma comunitária de divisão e ocupação do território,
Célia fora disposta, após seu casamento, em parte da área que acabou por coincidir com a
propriedade de Mário Bolgenhagen. Entretanto, Célia construiu uma casa em um lote do
outro lado da estrada, “cedido” por Gaúcho, empregado de Mário, em troca de sua retirada
da área em litígio. Assim, quando da organização do grupo em torno da identidade
quilombola, Célia não aderiu a princípio à proposta de titulação coletiva, por ocupar um
193
“lote” que teria sido “cedido” pelo proprietário. Ainda que não tenha constituído uma
estratégia de regularização, estava em jogo a legitimidade da apreensão privada da terra. No
caso de Célia, entretanto, o grupo articulou o direito coletivo ao território para convencê-la
a aderir à associação, já que foi esta mesma lógica coletiva que a “assentou” na área que,
mais tarde, foi “negociada” com Gaúcho. A composição do território coletivo exigiu,
portanto, que o grupo desse conta das contradições produzidas pela interferência, na lógica
coletiva de apropriação do território, de valores subjacentes ao instituto jurídico da
propriedade privada, o único recurso disponível, até determinado momento, para a desejada
regularização fundiária.
Se, como aponta Arruti, “fazer parte da ‘comunidade quilombola’ implica um
deslocamento em relação à noção local de comunidade”72, no caso de Alto da Serra integrar
a associação de remanescentes de quilombo aponta para um segundo deslocamento, da
comunidade quilombola para a associação de remanescentes de quilombo, que passa não
apenas pela percepção do pertencimento, ou pela legitimidade para a participação na
organização do grupo, mas pela relação formal com a terra. Em vários momentos, os
discursos dos membros da comunidade se alternam no uso dos termos associação e
comunidade, por vezes se confundindo, por vezes usados de modos distintos; mas em
nenhum momento os membros da família Leite deixam de perceber a diferença de sentido.
Em uma conversa informal, Isaías me apresentou esta distinção, ao se questionar “quem vai
fazer parte da comunidade”, embora fosse “todo mundo comunidade”.
A interferência da lógica da propriedade privada aparece também em dois casos nos
quais membros da comunidade negociaram partes da área com ocupantes não-quilombolas.
Tanto Benedito quanto Anésio trocaram pequenos pedaços de terra por dois automóveis
que eram utilizados, entre outros fins, para transportar a produção. Como relatam os
próprios membros da comunidade, esses carros não foram vendidos, eles “acabaram” por
falta de manutenção, e ainda hoje se pode encontrar uma carcaça de carro no território. Tais
negociações devem ser entendidas não como uma tentativa de acumulação por parte do
grupo, ou de especulação sobre a terra, mas da venda de terras como única alternativa de
financiamento da produção, na ausência, naquele momento, de outras iniciativas. A 72 Relatório preliminar da comunidade remanescente de quilombo do Cabral.
194
descaracterização do território, nesse caso, foi a conseqüência perversa das tentativas do
grupo de mantê-lo, e não o contrário. A possibilidade da titulação coletiva da terra a partir
da identidade étnica possibilitou que o grupo significasse positivamente as formas
familiares de apropriação do território, o que implicou a conversão das atitudes em relação
às vendas de lotes, que passaram a ser reprimidas, a partir das fórmulas de direito local.
Assim, diante da impossibilidade de legitimar a posse comunal, explicitada quando
da ação de reintegração de posse, alguns membros da família lançaram mão, em suas
trajetórias, de estratégias individualizantes de regularização fundiária, como a “compra de
posses” ou a regularização através da atuação do sindicato. Instrumento para a expropriação
da comunidade, a propriedade privada acaba por entrar nos cálculos de resistência do
grupo, e sua lógica passou a organizar as estratégias para a garantia territorial. A descoberta
do artigo 68-ADCT apontou para outras possibilidades no que tange à regularização
fundiária, a partir da legitimação da propriedade comunal pelo próprio direito estatal.
Entretanto, os resultados daquelas estratégias de regularização não puderam ser
completamente ignorados pelo grupo quando da articulação deste novo recurso jurídico,
sobretudo diante das incertezas acerca de sua efetividade.
Finalmente, um último critério foi fundamental para a constituição da demanda
territorial do grupo: as relações de vizinhança. Um dos ocupantes não-quilombolas do
território, conhecido como “Pavão”, apesar de ter comprado seu “lote” há relativamente
pouco tempo (quatro anos) e não residir na pequena casa que construiu, estabeleceu com os
membros da família Leite relações de vizinhança. Ao definir a demanda territorial, a
comunidade, em um primeiro momento, incluiu a área ocupada por Pavão, um pequeno lote
no meio do território. A repercussão em torno desta decisão, e os impactos sofridos e
previstos nas relações de vizinhança, levaram a família Leite a dispor desta área e de outra,
contígua, onde vivem os irmãos Maria Aparecida, Anésio e Maria de Lourdes. A decisão de
abrir mão desta área da comunidade juntamente com o lote de Pavão teve dois elementos
motivadores. Em primeiro lugar, apresentava uma solução para o possível conflito em torno
de outro ocupante não-quilombola, Sílvio, cuja condição era agravada pelo fato de se tratar
da parte trocada por um carro com Anésio. Em segundo lugar, a garantia, ainda que frágil,
da posse da terra em razão dos contratos de compra e venda de que os três irmãos dispõem.
195
Apesar disto, as famílias de Anésio, Maria de Lourdes e Maria Aparecida integram a
associação de remanescentes de quilombo.
Figura 6 – Proposta territorial da comunidade remanescente de quilombo de Alto da Serra (intervenção do autor a partir de mapa do IBGE).
A interferência da lógica da propriedade privada aparece também na forma de
tensões entre os membros do grupo, ou ainda entre as famílias. Assim, se é verdade que a
condição de Benedito de liderança familiar lhe conferiu o direito e a atribuição de assentar
sua família no território, por outro lado, em alguns momentos, essa sua condição pode ser
entendida como a de “dono” da terra, gerando conflitos entre as famílias. Marinalva, filha
de Maria Aparecida, argumenta pelo seu direito à terra “porque são todos parentes”, mas
196
ressalta que “uns têm muita terra e outros nada”, ao manifestar a pretensão de ocupar parte
do terreno que “pertenceria” a Benedito. Uma das filhas de Benedito, ao ser perguntada
sobre o direito à terra, fala do direito de seu pai: “todo esse terreno [a parte ocupada por
Benedito e seus filhos] é um direito dele porque ele cultivou muito ali, trabalhou muito
ali”. Essa primazia do direito de Benedito pode estar também relacionada à sua liderança
na resistência à expropriação, na verdade uma derivação do papel familiar que ocupara por
anos: “se ele tá vivendo lá é porque ele lutou muito. E lutou mesmo.”
Estamos diante de um campesinato negro livre e comunal que, dispondo-se na terra,
conjugou sua forma não-capitalista de ocupação com a apropriação alternativa dos códigos
do direito formal, com resultados distintos, dependendo do momento e dos atores
envolvidos. Ora a relação entre estas diferentes formas de direito à terra reafirmou a
concepção coletivista de ocupação, ora a enfraqueceu, fazendo brotar dentro do grupo o
princípio da propriedade privada, ainda que na forma do apossamento. Finalmente, a
exigência da definição do território quilombola a ser titulado operou como drama que
forçou a família Leite a explicitar estas contradições, caracterizando seu processo de
territorialização (Arruti, 2006) pelo rearranjo formal da territorialidade coletiva, apontando
para a capacidade do grupo de resolver tais impasses.
a juridificação dos conflitos como forma de desrespeito
A experiência da ação de reintegração de posse produziu, entre os moradores de
Alto da Serra, uma percepção do mundo do direito como um espaço social de exclusão de
classe. Os advogados entravam e saiam da causa, sem que os interessados fossem
informados. Os espaços formais do direito e do Estado, como a delegacia e o fórum, eram
percebidos como lugares hostis, onde não se é bem tratado. Os trâmites e termos eram
completamente estranhos aos Leite, tornados réus no processo. A decisão judicial, por sua
vez, ao traduzir os conflitos do mundo da vida para os termos do direito, operou a
criminalização da pobreza rural: a condição de posseiro e de camponês foi interpretada pelo
juiz como de “invasor” da propriedade privada.
O direito pode ser definido como campo simbólico fundado em um ato de
desapossamento, a distinguir aqueles autorizados a operar seus princípios e normas
197
daqueles que são desqualificados pela sua condição de não-especialistas (Bourdieu, 1989).
Tal ato de expropriação conta com a instituição de uma linguagem jurídica, a se distinguir
da linguagem vulgar por estar referida a um conjunto de princípios que lhe conferem uma
“postura lingüística exclusiva” e “global” (pág. 227). A “situação judicial”, neste sentido,
opera um “efeito de neutralização” pelo distanciamento, quer seja através da condição de
“terceiros desinteressados” de seus profissionais, pela sua atitude de reserva ou ainda pela
submissão dos fatos às doutrinas e aos precedentes, convertendo o conflito social em
conflito jurídico, fundado na oposição entre verdadeiro e falso, a produzir um resultado
imparcial. “Descapitalizados” e reduzidos à condição de consumidores da verdade jurídica,
os litigantes deverão submeter-se às regras do direito, aos resultados produzidos por ele73 e
a seus critérios de reconstrução (entendido como tradução) dos fatos e de definição de
relevâncias.
Tal construção simbólica, desenhada por Bourdieu, esconde o fato de que a decisão
judicial se funda em uma escolha do juiz, não entre verdadeiro ou falso, mas entre duas
pretensões de direito, legitimando uma delas a partir de suas posições políticas. Se a
linguagem jurídica tem por objetivo evitar a “colisão homonímica”, o encontro de dois
significados no mesmo espaço, no caso das diferentes concepções de posse e propriedade
expressas na ação judicial sofrida pelo grupo, o conflito entre as “duas posturas
lingüísticas” foi dissolvido pela deslegitimação da forma comunitária de posse.
A este ato de expropriação simbólica corresponde o processo objetivo de
desapossamento das comunidades negras rurais. A juridificação dos conflitos, em tais
casos, surge como uma alternativa de expropriação por parte dos supostos proprietários,
quer seja simultaneamente agenciada, quer seja utilizada quando do esgotamento da
eficácia da coerção física. No estado do Rio de Janeiro, tal estratégia foi aplicada não
apenas por um proprietário rural, no caso de Alto da Serra, mas pela própria Marinha, como
no caso da Marambaia. Além destes dois casos, também em Preto Forro, na zona rural de
São Pedro d´Aldeia, , diante da resistência dos remanescentes de quilombo às tentativas de
73 O que não impede que, na prática, os litigantes componham a demanda jurídica com outras formas de conflito.
198
proibição de construção de novas casas, a apontar para o esgotamento de seu poder de
coerção e persuasão, o grileiro lançou mão da estratégia judicial.
Se não podemos aferir ao Rio de Janeiro a incidência da judicialização como forma
de construção e garantia dos direitos quilombolas, é inegável o protagonismo do Ministério
Público no contexto estadual. No caso do estado do Rio de Janeiro, a atuação do MPF foi
fundamental para a configuração do campo quilombola74. A primeira iniciativa do órgão no
estado se deu na forma de um “procedimento administrativo”, em 1997, provocado pelo “I
Encontro Nacional sobre a Atuação do Ministério Público Federal na Defesa das
Comunidades Indígenas e Minorias”. Antes disto, dois projetos de lei estadual foram
propostos, em uma iniciativa que apresentou baixo grau de efetividade: o primeiro deles
tratava fundamentalmente do aspecto histórico-cultural e da perspectiva da
preservacionista, o segundo seria vetado pelo Executivo por inconstitucionalidade.
O procedimento administrativo do MPF, endereçado à secretaria de cultura do
estado, a instituições da sociedade civil e a algumas prefeituras, produziu uma primeira lista
de “comunidades”, das quais ao menos duas se apresentaram como comunidades
contemporâneas: Campinho da Independência, no município de Paraty, e Santana, no
município de Quatis. Se o resultado do procedimento do MPF não se desdobrou em
nenhuma outra atuação imediata do órgão, por outro lado mobilizou um conjunto de atores
governamentais e não-governamentais, redundando no processo de reconhecimento e
titulação das comunidades de Campinho da Independência e de Santana, além da produção,
em 1999, de outros quatro laudos antropológicos no estado75.
Este conjunto de comunidades, a formar o que chamamos de primeira configuração
do campo quilombola fluminense (Arruti e Figueiredo, 2005, pág. 80), apresentava algumas
características fundamentais. No que interessa a esta discussão, é importante perceber que o
reconhecimento daquelas comunidades não fora resultado das demandas das locais, ou do
exercício da auto-atribuição de uma identidade quilombola, mas da atuação de agentes
74 Analisamos o campo quilombola fluminense, particularmente no que diz respeito aos aspectos jurídicos do reconhecimento, em Arruti e Figueiredo, 2005. 75 São elas, além de Campinho e Santana: Caveira (São Pedro D’Aldeia), Rasa (Búzios), Santa Rita do Bracuí (Angra dos Reis) e São José da Serra (Valença).
199
externos, a partir da identificação de um conjunto de traços característicos. Além disso, o
reconhecimento não resultou em um processo de formação das comunidades envolvidas
acerca das implicações jurídicas e políticas do reconhecimento.
Uma segunda configuração se desenharia a partir da identificação de três novas
comunidades76, resultado de uma nova articulação de agentes locais, formada por
militantes, acadêmicos, advogados populares, defensores públicos e procuradores da
república. Os casos em tela apresentavam uma distinção importante em relação àqueles da
primeira lista: a adesão destas comunidades ao rótulo constitucional se deu a partir de um
investimento das assessorias na formação de seus membros, resultando seus processos de
reconhecimento de discussões acerca das estratégias políticas e das alternativas jurídicas
disponíveis.
Se a observação dos processos de reconhecimento da primeira configuração aponta
para um baixo impacto do Judiciário na afirmação dos direitos étnicos no estado, nesta
segunda configuração os tribunais se tornam espaço privilegiado de reconhecimento. Preto
Forro e Marambaia constituem, como Alto da Serra, exemplos da juridificação dos
conflitos como forma de desrespeito, mas também se apresentam como exemplos do papel
do Judiciário como espaço de garantias de direitos, já que, nos dois casos, ações civis
públicas impetradas pelo Ministério Público constituíram recursos capazes de interromper
os processos de expropriação vividos pelos dois grupos. O campo do direito se converteu,
nestes casos, de instrumento de expropriação em espaço de resistência, através da
coletivização e constitucionalização dos conflitos jurídicos.
A articulação de uma segunda configuração se deveu, em boa parte, portanto, ao
novo padrão de atuação do Ministério Público. Assim, como ressaltamos,
“se no primeiro contexto estes processos, provocados pelo MPF, são
encampados pelo Executivo e pelo Legislativo na forma de leis e atos
administrativos, neste segundo momento, o campo jurídico torna-se
espaço privilegiado para a luta por reconhecimento, ou ainda para a
76 Marambaia (Mangaratiba), Preto Forro (São Pedro D’Aldeia) e Alto da Serra (Rio Claro).
200
resistência às estratégias da Marinha e dos grileiros, pelo recurso ao
artigo 68 ADCT. Esta nova configuração aponta para um novo padrão de
atuação do MPF, agora na titularidade de ações civis públicas (nos casos
de Marambaia e Preto Forro)” (pág. 85).
Se na primeira configuração o órgão agiu a partir de orientações vindas do plano
nacional, na segunda foi provocado pelos atores sociais locais. Parecia-nos inegável,
entretanto, o protagonismo do MPF nas duas configurações, quer fosse na primeira,
atuando extra-judicialmente na forma de procedimentos administrativos, na provocação dos
Executivos municipais e estadual, dando contorno à questão quilombola no estado, quer
fosse na segunda, em uma atuação eminentemente jurídica, na provocação do Judiciário via
ação civil pública, levando à judicialização do tema.
Ainda que tenhamos, naquele texto, considerado Alto da Serra como compondo a
segunda configuração do campo, é preciso ressaltar distinções importantes acerca do
processo de reconhecimento do grupo. Em primeiro lugar, a total ausência do campo do
direito em seu processo de reconhecimento. Apesar de ter surgido a partir desta mesma
articulação de mediadores – o debate sobre a identificação como remanescentes de
quilombos começou quando da visita de um procurador da república, em 2002, à
comunidade – seu processo de identificação não se deu a partir de ações judiciais que
trabalhavam com caracterizações substantivas, mas a partir de uma escolha orientada da
própria comunidade quanto aos instrumentos jurídicos disponíveis, constituindo um caso
cujo processo de reconhecimento parte de uma demanda da própria comunidade, anterior a
qualquer ato de reconhecimento oficial ou formal.
A esfera jurídica, neste sentido, constituiu o lugar onde o grupo viveu a experiência
de desrespeito, motor moral para a demanda por reconhecimento. Importante para entender
tal mudança é o protagonismo assumido pelo INCRA, em razão das mudanças de
atribuições no plano legislativo federal, deslocando a questão da esfera jurídica para a
administrativa. Em 2006, a superintendência do órgão no Rio de Janeiro abriu mais oito
processos de titulação, dentre os quais o referente à comunidade de Alto da Serra. Além
disto, como veremos, o processo de reconhecimento da comunidade de Alto da Serra
201
passou não apenas por um investimento na formação que teve consideráveis impactos
materiais e simbólicos sobre o grupo, mas contou com a marcação, por parte da própria
comunidade, do momento a partir do qual os membros da família Leite se auto-atribuíram a
identidade quilombola.
202
Capítulo 7 - O “Caminho Quilombola”: processo de identificação e
reconhecimento da comunidade quilombola de Alto da Serra.
“Cada um é do seu jeito”, foi o modo como Isaías explicou sua identidade
quilombola em um encontro ecumênico. Isaías Leite é um jovem trabalhador rural de 25
anos, negro, evangélico ortodoxo, presidente da Associação de Trabalhadores Rurais de
Alto da Serra, entidade que agrega a comunidade negra cuja liderança natural é seu pai,
Benedito Leite. Na ocasião, ele compunha uma mesa sobre comunidades quilombolas do
Rio de Janeiro e do Espírito Santo, representando as comunidades negras rurais de seu
estado na Jornada Ecumênica Sudeste de Koinonia. Na platéia, lideranças religiosas do
candomblé, antropólogos, padres e pastores ecumênicos. Isaías falou da luta de sua
comunidade pela posse da terra, das diversas formas de assédio do grileiro, do processo de
organização do grupo, do contato com atores do mundo do direito e da sociedade civil e da
discussão acerca do reconhecimento como remanescente de quilombo. Não falou de
costumes dos antigos, de tradições de matriz africana ou de uma identidade vinculada a
qualquer tipo de resgate cultural, elementos discursivos presentes na percepção de senso
comum acerca da “identidade quilombola”. Atento a tudo que via e ouvia, e questionado
por um de seus ouvintes sobre a (im)possibilidade de os membros de sua comunidade, na
maioria evangélicos assembleianos, se identificarem como remanescentes de quilombos,
Isaías não titubeou: “cada um é do seu jeito”.
De certa forma, a resposta de Isaías sintetiza a percepção de que a aderência ao
rótulo constitucional comunidade remanescente de quilombo não se dá de forma
homogênea, nem entre os grupos, nem no interior das próprias comunidades. Tal percepção
suscita o esforço de compreender não apenas as condições de adesão dos grupos a uma
categoria de nomeação atrelada a um conjunto de direitos específicos, mas também as
implicações de tal adesão no auto-reconhecimento e no reconhecimento externo de tais
grupos. Neste processo, a comunidade remanescente de quilombo de Alto da Serra viveu
uma série de influências externas, quer seja de instituições, quer seja de atores individuais.
Estas mediações disponibilizaram um repertório de categorias e significados que foram
203
seletivamente agenciados pelo grupo, no seu processo de auto-reconhecimento como
quilombola. Este capítulo empreende uma análise do processo pelo qual o grupo se
organizou em torno da temática quilombola, o que produziu, nos debates sobre as
alternativas de regularização fundiária, seu auto-reconhecimento como remanescentes de
quilombo. A questão fundamental é acerca dos modos como a comunidade aderiu ao rótulo
“comunidade remanescente de quilombo”, atuando como comunidade de intérpretes do
texto constitucional.
a mediação dos intelectuais
A experiência jurídica da reintegração de posse produziu um amargo encontro entre
a comunidade negra rural de Alto da Serra e as instituições do mundo do direito. Na
percepção de seus membros, particularmente aqueles mais diretamente envolvidos com o
conflito jurídico, a sensação de serem estranhos aos espaços formais e oficiais do direito, a
impotência diante de processos, formalidades e discursos sobre os quais não tinham o
menor controle, a inevitabilidade da lesão de direitos conjugaram-se à ineficácia das velhas
formas de representação. A experiência com os advogados ligados ao sindicato de
trabalhadores rurais apontava para o esgotamento desta forma de representação de
interesses que, na década de 1970, fora responsável pelo movimento de regularização
fundiária na região. A ação de reintegração de posse é vivida pela família como um drama
que punha em questão a necessidade de uma nova forma de articulação do direito à terra,
que contemplasse a posse comunitária e familiar que se estabeleceu no seu processo de
ocupação da área. A partir destas percepções, a família Leite foi capaz de mobilizar um
novo conjunto de atores e conceitos, e reformular suas estratégias de organização política.
O desfecho da ação de reintegração de posse coincidiu com o momento no qual, na
Escola Estadual Presidente Benes, no distrito de Lídice, um professor de nome Nelson
empreendia, junto a seus alunos, a iniciativa de levantar comunidades negras rurais da
região que pudessem ser consideradas “remanescentes de quilombos”. Isaías Leite, então
cursando o ensino médio, era aluno de Nelson, que através dele conheceu “os Leite de Alto
da Serra”. Oriundo do município de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro,
Nelson era ligado a uma organização do movimento negro urbano, e, progressivamente, se
204
envolveu com o drama da comunidade, chegando a figurar como testemunha no acordo
celebrado entre Benedito Leite e Mário Bolgenhagen. Sua inserção no movimento negro
lhe permitiu o conhecimento da existência não apenas do artigo 68-ADCT como dispositivo
para regularização fundiária de comunidades negras rurais, mas também de instituições que
trabalhavam com o tema, o que o levou a procurar o Programa Egbé-Territórios Negros de
Koinonia Presença Ecumênica e Serviço.
A relação da família Leite com instituições e atores externos, neste primeiro
momento, era mediada pelo contato com Nelson, que levou à comunidade, além dos
assessores de Koinonia, membros da ONG da qual fazia parte, o Instituto Palmares, além
de um cinegrafista que teria produzido, juntamente com o próprio Nelson, imagens de
membros da comunidade em seu território. No contato que estabeleceu com as instituições,
Nelson apresentava já uma hipótese acerca da condição quilombola do grupo, relacionando
sua história à trajetória da população negra no município de Rio Claro, sob argumento de
que o alagamento da represa de Ribeirão das Lages produzira uma dispersão da população
negra oriunda das fazendas de São João Marcos, em parte formando as comunidades negras
do município. Assim, antes mesmo da passagem desta forma pessoal de mediação para o
plano institucional propriamente dito, a atuação política junto à comunidade exigia, daquele
intelectual orgânico, a construção de uma versão acerca da etnicidade do grupo. Diante da
percepção da ausência da ocupação ancestral do território, Nelson estabeleceu uma “ponte
interpretativa” (Arruti, 2006) entre a história particular do grupo e uma narrativa de
diáspora a partir do alagamento, que serviu como motor moral não apenas dos primeiros
movimentos da comunidade, mas da convergência dos interesses institucionais que se
manifestaram.
O primeiro encontro da equipe de Koinonia com o grupo se deu na viabilização do
contato de suas lideranças com atores do mundo do direito e representantes do Estado.
Benedito e Terezinha Leite já haviam tido um encontro com um Procurador da República
na cidade do Rio de Janeiro77, no qual puderam contar a história da comunidade e expor sua
77 É bom lembrar que o Ministério Público Federal tinha assumido, naquele momento, papel importante nos avanços da questão quilombola no Estado, sendo já autor de duas ações civis públicas (Marambaia e Preto Forro). Além disso, a demanda de Alto da Serra se apresentou, a princípio, na forma de uma demanda jurídica, o que a aproximava dos outros dois casos.
205
demanda. Em 2003, Koinonia promoveu uma visita à comunidade da qual participaram,
além do Procurador, uma defensora pública, estudantes e professores de direito, além de
representantes do IPHAN e da Fundação Cultural Palmares. Na reunião produzida neste
encontro, a regularização fundiária era a pauta, mas já se discutia a possibilidade de que a
comunidade se caracterizasse como remanescente de quilombo.
Neste primeiro momento, o contato com esta pluralidade de atores produziu
orientações diversas, resultado das diferentes interpretações sobre o tema. Tal diversidade
de orientações pode ser entendida como resultado do pouco conhecimento de alguns destes
atores acerca da questão, como no caso da sugestão do procurador da república de que se
produzisse, naquele momento, um abaixo-assinado para o reconhecimento, ou ainda de
interpretações mais culturalizantes, como no caso da tentativa da funcionária da FCP de
verificação de traços de “remanescência”. Mais tarde, os membros da comunidade fariam
relatos bem-humorados do quão pouco teriam entendido acerca do que se dizia naqueles
primeiros encontros. Naquele momento, ficou claro para alguns dos agentes externos a
pouca intimidade do grupo com os termos apresentados, o que demandava um trabalho de
formação, e o quanto o que estava efetivamente em jogo, em termos de demanda, era a
regularização do acesso à terra, ameaçado pela decisão judicial. Aquele encontro, do qual
não se retirou nem lista de traços nem abaixo-assinado, funcionou como o início de um
processo de construção de conhecimento por parte do grupo que levaria, dois anos mais
tarde, à sua auto-atribuição da identidade quilombola.
Por incentivo de Nelson, a família organizou-se, naquele mesmo ano, em uma
associação de trabalhadores rurais, para resolver “o problema da terra”. Segundo Délbora
dos Santos Leite, atual vice-presidente da Associação de Trabalhadores Rurais de Alto da
Serra, os membros da família formaram a associação “pensando na regularização da terra”,
apesar de Nelson dizer que uma associação permitiria o acesso a “várias outras coisas”. De
fato, o estatuto da Associação de Trabalhadores Rurais do Alto da Serra, elaborado por
Nelson e uma advogada popular que passou a atuar junto ao grupo, abria espaço para uma
série de atividades que não estavam diretamente ligadas à regularização fundiária (objetivo
em tela para os Leite) ou às relações de produção (objetivo de uma associação de
206
trabalhadores rurais), criando espaço para outros empreendimentos, como educação e
pesquisa, por exemplo.
A iniciativa de Nelson não era clara para os membros da comunidade, que em certo
momento começaram a identificar um possível conflito de interesses. Nos termos de um
dos líderes da comunidade, “essa associação que a gente montou foi uma associação
assim, montada pra regularização das terras. O pessoal começou a participar quando
ouviu falar que teria a posse da terra. E ele [Nelson] chegou com uma coisa diferente, de
movimentar as coisas, fazendo disso aqui um condomínio, e não era o pensado”.
A escolha por uma associação de trabalhadores rurais se deveu fundamentalmente à
orientação daquele agente externo, mas pode ser relacionada ainda a uma série de fatores,
entre eles o desconhecimento do grupo acerca das exigências para a regularização fundiária
de um território quilombola, a possibilidade de que o grupo se organizasse antes mesmo de
definida sua posição em relação ao reconhecimento étnico e a participação de
companheiros e vizinhos que não se identificassem como quilombolas. O nome da
associação, que corresponderia ao nome da comunidade, “Alto da Serra”, parecia coincidir,
em um primeiro momento, com o nome da localidade – possivelmente um território – na
qual vivia o grupo. Entretanto, desde os primeiros contatos, percebi que “Alto da Serra”
correspondia ao nome dado a uma parte da área onde vivia a família Leite, de modo que,
dependendo da casa na qual eu estivesse, referir-me ao local como “Alto da Serra” soava
estranho aos ouvidos locais, já que poderia estar em áreas que recebiam outros nomes,
como Variante, José Maria Rola ou Boa Vista.
A nomeação da associação e, conseqüentemente, da comunidade, como “Alto da
Serra” parecia também ter partido daquele agente externo, tendo sido assumida pela família
Leite. Tal escolha encontra relação com alguns dos termos usados para se referir à família,
como “os Leite do Alto da Serra do Mar”, mas revela a estratégia política em torno da
constituição de um nome. Além de ter permitido a adesão de aliados que não fizessem parte
da família, o termo também cria uma relação imediata da comunidade com a área em
litígio, o “sítio Alto da Serra”, comprado por Mário Bolgenhagen. A associação trazia
também outro nome, “Nós da Roça”, pensado por Nelson como uma marca dos produtos
207
locais, basicamente queijos e doces que passariam a ser produzidos e comercializados
coletivamente. Entretanto, esse papel de associação de produtores nunca foi realizado pela
“Nós da Roça”, que operou, efetivamente, como um espaço político de organização do
grupo e de construção de uma identidade coletiva. Pouco tempo depois, em 2004, em meio
ao seu desligamento da escola municipal e do crescimento da autonomia da comunidade em
função do seu contato com o movimento quilombola e organizações da sociedade civil, que
levou a discordâncias entre as propostas do Nelson e as idéias da comunidade, aquele ator
se distanciou da comunidade.
Outra forma de intervenção promovida pelos agentes externos junto à comunidade
de Alto da Serra foi a prestação de assessoria jurídica por parte de advogados populares. A
princípio referida ao conflito da família Leite com Mário Bolgenhagen, voltada para a
reflexão acerca das possibilidades de revisão da decisão judicial desfavorável, esta
assessoria acabou por se estender a outras demandas, como a envolvendo um dos membros
fundadores da associação de trabalhadores rurais, José Hamilton. Morador da região,
pequeno produtor rural e feirante, José Hamilton é um amigo da família, com quem
também estabelece comércio, comprando a produção de banana e queijo. Detentor de uma
posse familiar, José Hamilton sofria também uma ação de reintegração de posse, por parte
de outro proprietário, o que o aproximou da associação e dos assessores que atuavam na
comunidade naquele momento.
A atuação desta assessoria jurídica ganhou destaque no processo de organização do
grupo muito mais por seus efeitos simbólicos do que por seu impacto material. Essa
presença de advogados populares, bem como de outros assessores, consubstanciada tanto
na prestação de serviços jurídicos quanto em encontros com a associação, assumiu entre os
Leite um forte caráter ético-pedagógico.
Em primeiro lugar, porque operou a progressiva descriminalização da relação entre
a comunidade e as autoridades locais, sobretudo em relação às instâncias policiais,
descaracterizando-os como invasores. Nas então freqüentes idas à delegacia, em 2003,
Benedito Leite agora se fazia acompanhar de “sua advogada”, e se não era possível,
naquele momento, aferir os impactos desta atuação na imagem pública do grupo, era
208
inegável seu papel na reconversão das imagens internas. A substituição do sentimento de
vergonha por outro, de indignação, pode ser entendida como resultado de uma pedagogia
dos direitos, pela qual os sujeitos, diante ainda das mesmas relações de submissão, deixam
de se sentir humilhados para sentirem-se lesados. Nos relatos posteriores dos membros da
família, esta mudança foi paulatinamente percebida pelos Leite como reconhecimento
positivo de sua identidade étnica e da legitimidade de sua territorialidade, manifesta no
tratamento diferenciado que as autoridades policiais passavam a lhes dispensar, mesmo em
fortuitos encontros na cidade ou nas estradas.
Em segundo lugar, porque permitiu que os membros da família mais próximos da
associação aderissem a uma forte retórica dos direitos, nova forma de expressar tanto a
relação com o território quando as demandas do grupo. No que diz respeito à terra, essa
nova retórica dos direitos articulava de forma particular a noção jurídica de posse. O uso
desta categoria ultrapassava a especulação das possibilidades de uso do dispositivo jurídico
da usucapião, constituindo uma tentativa de descaracterizar, sobretudo internamente, a
relação dos Leite como de “tomar conta”, expressão interpretada, naquele momento, como
reveladora da relação de submissão ao proprietário, substituindo-a pela percepção da
relação de posse, definidora de direitos fundiários. Mais de uma vez presenciei gentis e
bem-humorados senões dos assessores quando um dos quilombolas usava o termo “tomar
conta” para referir-se a sua relação com a terra e, pelo menos uma vez, o contentamento
com o uso, por Benedito, do uso da categoria “posseiro” para referir-se a si mesmo.
Por outro lado, os encontros dos assessores com a comunidade tinham, entre seus
objetivos, o de evidenciar as implicações jurídicas e políticas do reconhecimento como
remanescente de quilombo. Sem perder de vista o caráter coletivo da ocupação, a
articulação da posse como forma de produzir direito, mais como idéia-força do que como
categoria jurídica, pretendia, portanto, disponibilizar dois instrumentos jurídicos
alternativos à comunidade: a usucapião e o reconhecimento como remanescente de
quilombo, cabendo ao próprio grupo efetuar os cálculos em torno das duas alternativas.
Se, por um lado, os encontros e reuniões buscavam democratizar o debate acerca
dos conteúdos em torno do artigo 68-ADCT entre a família Leite, por outro lado a atuação
209
dos agentes externos junto à comunidade passava, desde o primeiro momento, pela
assessoria à sua liderança, no sentido de qualificá-la naqueles conteúdos bem como inserí-
la em uma rede de relações em torno da questão quilombola. Em 2004, Koinonia Presença
Ecumênica e Serviço organizou, juntamente com a Associação de Defensores Públicos do
Estado do Rio de Janeiro (ADPERJ), o seminário “A Defensoria Pública e as Comunidades
Negras Rurais Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro” do qual participaram lideranças
de diferentes comunidades quilombolas do estado, e membros da Associação de
Trabalhadores Rurais de Alto da Serra estiveram presentes.
Além disto, em 2005, uma nova forma de intervenção se articulou junto à
comunidade. Dois projetos financiados pelo governo federal foram implementados, sob
coordenação do Programa Egbé-Territórios Negros. O projeto Balcão de Direitos,
financiado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República,
contava, em sua equipe, com duas antropólogas, um advogado e três estagiários de direito.
O projeto assumia três objetivos: atendimento jurídico, produção de conhecimento acerca
da percepção e do acesso a direitos e capacitação das comunidades em determinados
conteúdos jurídicos. Assim, para além da mera prestação de serviços jurídicos de natureza
individual, o projeto ofereceu um conjunto de oficinas, cada uma delas tratando de um tema
específico ligado à expansão do acesso à justiça: direitos econômicos, sociais, culturais e
ambientais, direitos territoriais de comunidades quilombolas, direito agrário, direito
previdenciário, direito do consumidor, direitos trabalhistas, segurança pública e
associativismo.
Embora o projeto apresentasse objetivos voltados para o campo do direito, não
apenas na prestação de serviços jurídicos, mas também na formação voltada para tais
conteúdos, tal intervenção consagrava a orientação de cunho antropológico que marcou os
primeiros contatos do Programa Egbé-Territórios Negros com o grupo (e que orienta, ainda
hoje, o próprio lugar que a instituição ocupa no campo quilombola). Tal orientação,
fundada na compreensão da antropologia acerca das comunidades quilombolas como grupo
étnico e no valor político e moral da autonomia dos grupos, criou condições para que a
família Leite figurasse entre o público-alvo da instituição sem que isto exigisse sua auto-
declaração como comunidade quilombola.
210
Naquele mesmo ano, o Ministério do Desenvolvimento Agrário financiou o projeto
Etnodesenvolvimento Quilombola, também coordenado por Koinonia, cujo objetivo era
capacitar três comunidades negras rurais do estado para a formulação e aplicação de
projetos de desenvolvimento sustentável. Além da equipe de coordenação do projeto,
formada por dois antropólogos78, uma psicóloga e uma engenheira agrônoma, o projeto
contou com a participação de outros profissionais, envolvidos tanto na aplicação de oficinas
nos mais variados temas – direitos, associativismo, educação ambiental, desenvolvimento
sustentável, políticas públicas - quanto na consultoria junto aos grupos envolvidos para a
consecução dos projetos.
Segundo relatos dos membros da família Leite, foi no decorrer das oficinas do
projeto Balcão de Direitos que o grupo se auto-atribuiu a identidade quilombola. Até então,
entre 2003 e 2005, a comunidade empreendeu uma aproximação das assessorias que
redundou em um consistente trabalho de formação, com participação ativa de sua liderança
em diversos eventos relacionados à questão quilombola. Efetivamente, Alto da Serra estava
entre as três comunidades que, no contexto fluminense, constituíam o público-alvo primário
do programa Egbé-Territórios Negros, juntamente com Marambaia, em Mangaratiba, e
Preto Forro, em São Pedro d´Aldeia.
Estava claro, entretanto, tanto para os assessores envolvidos quanto para os
membros da comunidade que, naquele momento, a adesão ao rótulo constitucional de
“comunidade remanescente de quilombo” estava condicionado a alguns fatores. Em
primeiro lugar, à suficiente compreensão, por parte dos membros do grupo, acerca das
implicações desta adesão, sobretudo no que dizia respeito ao regime jurídico da terra. Era
neste sentido que se discutia as duas alternativas de regularização fundiária: a usucapião e a
titulação de um território quilombola. Em segundo lugar, diante da verificação da
reincidência tanto das presenças quanto das ausências às reuniões, à certeza de que tal
compreensão teria se estendido a um número considerável de membros da comunidade.
Finalmente, ao consenso coletivo acerca da escolha a ser feita.
78 Atuei neste projeto na condição de supervisor, tendo participado também do projeto Balcão de Direitos como assessor voluntário.
211
Ao elaborarem publicamente, em uma atividade do projeto Etnodesenvolvimento
Quilombola, o lugar onde se encontravam no processo de reconhecimento, entendiam que o
momento no qual a comunidade teria se auto-atribuído a identidade quilombola fora o de
realização de uma oficina sobre direitos territoriais de comunidades quilombolas, no âmbito
do Projeto Balcão de Direitos. A assunção da identidade, neste caso, estava referida
diretamente ao consenso, que se teria produzido no grupo, quanto à compreensão acerca do
artigo 68-ADCT.
Do conjunto de profissionais que se destacou neste processo de mediação, duas
categorias ganharam destaque na produção de discursos autorizados sobre o campo dos
direitos étnicos: os advogados e os antropólogos. A atuação dos advogados na comunidade
de Alto da Serra está diretamente relacionada à constituição de um grupo de profissionais
que tem se organizado, tanto no plano estadual quanto no nacional, pela proposta de uma
“advocacia popular”. À exceção de um advogado, cuja trajetória se deu em proximidade
com a questão quilombola, a assessoria jurídica a Alto da Serra foi exercida por advogadas
(entre elas uma estudante de direito, na condição de estagiária) ligadas à Rede Nacional de
Advogados e Advogadas Populares (Renap) e que se organizaram, mais tarde, no Centro de
Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola.
Formado pelas advogadas ligadas à Renap do estado do Rio de Janeiro, o Mariana
Criola estende suas atividades à assessoria de outros movimentos populares, como os
movimentos de trabalhadores sem-terra e pela moradia urbana, mas têm atuado, desde a sua
formação, como assessoria jurídica de Koinonia, especialmente na questão quilombola. A
inspiração para o nome do Centro, referência à escrava que, tendo liderado uma insurreição
quilombola no século XIX, foi poupada pela Justiça devido à sua condição de mulher,
aponta para o impacto simbólico das lutas por reconhecimento de gênero e etnia. A atuação
das advogadas do Mariana Criola segue as orientações político-ideológicas adotadas pela
Renap, como ressalta uma de suas componentes:
(...) As advogadas da Mariana Criola têm uma trajetória de assessoria
jurídica popular aos Movimentos Sociais e articulação dos demais
advogados e advogadas, que atuam nessas causas.(...) Acreditamos na
212
construção de um novo tipo de assessoria jurídica, que denominamos de
popular, porque tenta romper com a fórmula existente de que o
advogado sabe mais que a comunidade, ou com a apropriação das
demandas. Acreditamos que o diálogo de vários operadores do direito e
de estudantes com a comunidade desencadeia novas teses que
apresentadas ao Judiciário, podem criar novas interpretações do
Direito. Ademais, não acreditamos no advogado isolado do povo. Quem
requer ao Judiciário é o Povo Organizado e por isso somos contra as
mágicas processuais descontextualizadas da luta diária da comunidade.
A atuação do advogado/a deve sempre contribuir com a formação e
mobilização da comunidade79.
Assim, embora opere com o conhecimento jurídico especializado e, muitas vezes,
na condição de especialista, esta assessoria trabalha no registro da democratização do
direito entendida como horizontalização da relação entre advogado e assistido. Além disso,
fundada explicitamente em ideais socialistas, opera com uma concepção do direito como
excrescência, mero instrumento de dominação de classe, a apontar para a primazia do
político sobre o jurídico, o que acaba por privilegiar, no campo, o trabalho de “formação e
mobilização da comunidade”. Sua prática constitui uma apropriação política do pressuposto
do pluralismo jurídico, de que formas autônomas de normatividade podem se originar das
práticas sociais.
A atuação dos antropólogos no campo, em contrapartida, constituiu a contraface da
sua atuação como intelectuais, como apontada no capítulo 2. Embora cumpram, aqui, outro
papel, o de interventores nas condições específicas de um dado grupo, os profissionais
reproduzem a mesma lógica de atuação que pudemos perceber no plano nacional: embora
encontrem na Universidade sua “plataforma de autoridade” (Coelho, 2004), apresentam
uma pauta de caráter fragmentário, característica do campo de atuação formado hoje pela
rede de organizações da sociedade civil (Carvalho, 2007) espaço que, com o esvaziamento
79 Entrevista concedida por Francine Damasceno Pinheiro ao Grupo Tortura Nunca Mais, disponível em http://www.torturanuncamais-rj.org.br/sa/Artigos.asp?Codigo=41.
213
do papel da universidade, opera como “instancia subsidiária de alocação institucional da
intelligentsia” (pág. 17).
O papel do antropólogo apresenta nuances que lhes são próprias, e para abordá-las
penso que seja útil refletir acerca de minha própria trajetória. A atuação do pesquisador em
contextos de intervenção vem sendo tomada como objeto da antropologia contemporânea,
não apenas para a reflexão estrita de tais contextos, mas ensejando uma análise acerca das
próprias condições da pesquisa, entendida necessariamente como evento de natureza
política. Tal debate tem tomado lugar entre os antropólogos tanto em função dos
instrumentos metodológicos de que dispõem quanto em razão da natureza do contato que
definiu historicamente a disciplina, tradicionalmente contatos de natureza interétnica. A
própria historia da disciplina, portanto, qualifica os antropólogos para a reflexão acerca das
condições sociais da pesquisa. Segundo Clifford (2002), a antropologia, nascida no
contexto colonial e como instrumento colonial, se afirmou historicamente como ciência
autônoma pela afirmação daquilo que os antropólogos não eram: “não somos escritores de
viagem”, “não somos funcionários coloniais”, “não somos missionários”.
A partir da trajetória de Maurice Leenhardt, Clifford se propõe a pensar a produção
do conhecimento antropológico em suas implicações políticas, como as produzidas pelas
relações coloniais, a partir do pressuposto de que o pesquisador atua como sujeito histórico
das relações que pretende observar. Leenhardt era um missionário cuja atuação só pode ser
pensada a partir de um dado contexto colonial; a análise de sua trajetória permite que se
perceba o exercício da reflexão sociológica como um ato de tradução, com todas as suas
condições e limites. Se o “nós não somos missionários” afirmaria que o pesquisador em
campo não é um sujeito que pretende “mudar a cultura nativa” ou interferir no grupo
estudado, a trajetória de Leenhardt permite, a partir da percepção das fronteiras do
conhecimento antropológico, analisar a possibilidade de que o pesquisador seja, ele mesmo,
ator social de um processo de mudança.
Leenhardt é um caso limite, um etnógrafo que era também um missionário
protestante, e por isto mesmo exemplar da natureza do fazer antropológico. O missionário,
segundo Clifford, apresenta o tipo ideal daquele que não pretende essencializar o modo de
214
vida de um grupo, já que está a serviço da mudança. Segundo Clifford, isto permite que o
pesquisador pense a cultura sobre outras bases, reduzindo o risco de reificações: para
Leenhardt “cultura é mudança, cultura é sincretismo” (pág. 261). Sua condição de
missionário, ao invés de constituir um impeditivo ao experimento etnográfico, foi condição
para que este fosse feito em outro nível, “dialético” como aponta Clifford. A condição de
missionário não comprometeu a qualidade da interpretação antropológica, na medida em
que ela constituiu posição privilegiada para revelar o verdadeiro objeto de análise: a
interação entre o pesquisador-missionário e o nativo, e as transformações produzidas em
ambos a partir desta interação.
Este debate assume particular importância no caso da atuação dos antropólogos na
produção de peças técnicas relativas a comunidades remanescentes de quilombo. Em
primeiro lugar, pela própria natureza do objeto, já que a adequação à “identidade
quilombola” se dá como produto de um processo de transformações pelas quais grupos
passam quando tomam conhecimento das alternativas em torno do artigo 68-ADCT:
organizam-se formalmente em torno de uma associação, passam a transitar em espaços
institucionais, assumem novas categorias de classificação. Em alguns casos, a própria
dinâmica de produção do relatório orienta as transformações pelas quais o grupo ainda
passa, na formalização de associações ou na definição dos limites do território. Em segundo
lugar, pela natureza da relação entre pesquisador e pesquisado. Por se tratar de um exercício
de pesquisa acerca do processo de adequação do grupo a conceitos e procedimentos
formais, e do contato entre formas locais de territorialidade e identidade e institutos
jurídicos, o antropólogo deverá orientar a comunidade, em certos casos, acerca dos
significados em torno da questão quilombola e das implicações de suas decisões,
assumindo, ele mesmo, o papel de formador.
Pensar esta prática é particularmente importante no momento em que o debate em
torno do tema produz reações diversas (e adversas) ao ofício do antropólogo, levantando-se,
inclusive, questões acerca do seu grau de isenção. Neste caso, parafraseando Clifford, um
mero “não somos militantes” não ajuda a entender os limites e abrangência do trabalho do
antropólogo. Negar a condição de participante do processo de transformação pelo qual
215
passam as comunidades, sob a capa da objetividade do trabalho científico, não constitui
opção melhor do que tematizar esse papel.
Parte do conjunto de novos atores externos em relação com as comunidades, o
antropólogo opera como mediador entre a diversidade das formas locais de organização e
representação e as formulações generalizantes do direito, cujo encontro só pode ser
entendido como um duplo movimento de tradução. Por um lado, atua no processo de
formação do grupo, tornando compreensível a linguagem das instituições político-jurídicas
e explicitando as implicações da adesão, trabalho que caracterizei aqui como de
“assessoria”. Por outro, o trabalho etnográfico, no qual traduz as formas de organização e
de produção da identidade dos grupos, não apenas objetivando torná-lo mais claro para o
leitor, produzindo “piscadelas de piscadelas” (para lembrar a célebre expressão de Geertz),
mas criando um efeito de homologia entre as formas locais e as categorias classificatórias
do direito. Na verdade, o trabalho de produção de uma peça pericial antropológica pode ser
mais bem entendido como o esforço de consolidação e validação deste exercício de
tradução; o que pressupõe, entretanto, que aos membros da comunidade seja
disponibilizado previamente o repertório de significados em torno dos dispositivos formais.
Em Alto da Serra, o trabalho na produção do relatório sucedeu o investimento anterior
de participação no processo de aquisição, pelo grupo, deste repertório significativo. Assim,
o caso explicita a natureza dupla desta intervenção, que pode assumir configurações
variadas, mas que será, sempre, um constante exercício de mediação entre as formas locais
de manifestação de identidades e territorialidades e as formulações generalizantes do
direito. Quer seja no bojo das assessorias, no processo de formação dos grupos
interessados, quer seja nas macro-relações do campo quilombola nacional, onde atuam
como intelectuais num sentido francês, através de manifestos e cartas, o trabalho destes
mediadores é o de agir como empresários morais que, acumulando um conjunto de recursos
políticos advindos de uma variedade de espaços, dentre os quais universidade, sociedade
civil e aparelho de Estado, qualificam e legitimam a versão da identidade quilombola
encampada por uma determinada comunidade de intérpretes no plano local.
216
as formas de organização e a formação da liderança
As duas formas mais importantes de participação dos descendentes dos Leite e dos
Antero que ocupam o território de Alto da Serra são a participação na Igreja Assembléia de
Deus, da qual boa parte da família é membro e participa dos cultos e atividades regulares
que acontecem em uma congregação localizada no quintal da casa de Benedito, e a filiação
à Associação de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do Alto da Serra. O quadro abaixo
apresenta o cruzamento das três formas de afiliação que agregam os quilombolas de Alto da
Serra: a família, a igreja e associação, distinguindo também os Leite que ocupam o
território e aqueles que fazem parte do núcleo familiar de Benedito e Terezinha (seus filhos
e filhas, genros e noras). Uma melhor compreensão do quadro depende de algumas
ressalvas.
Em primeiro lugar, os membros da família estão distinguidos pela geração de
ocupantes do território de Alto da Serra; a contagem das gerações considera a primeira
geração a ocupar o território como sendo formada por Alcides e Benedita Leite e Domingos
e Benedita Antero. Todos os membros da família foram classificados segundo a geração de
ocupantes, mesmo aqueles que hoje não ocupam mais o território; os que não aparecem
classificados pela geração no diagrama não pertencem à família. Como o objetivo do
diagrama é avaliar as formas de participação, foram excluídos os Leite da quarta geração,
por se tratarem, em sua quase totalidade, de crianças. Em segundo lugar, ao me referir à
participação na igreja, usei como critério a inscrição (“matrícula”) na “escola dominical”,
atividade que agrega os participantes da igreja aos domingos pela manhã, na congregação
de Alto da Serra. Alguns destes matriculados podem não participar mais das atividades da
igreja, o que lhes confere o status de “desviados”.
217
Figura 7 – Formas de participação da família Leite, em particular da comunidade remanescente de quilombo de Alto da Serra .
Dos 90 membros da família Leite pertencentes às segunda e terceira gerações, 59
não participam nem da igreja, nem da associação, o que significa 65,5%. Entretanto, dentre
os 50 membros da família Leite que ocupam a área, apenas 22 não apresentam qualquer
igreja
M3 H3 M3
M2 H2 M2 M2 H2 H2 H3 M3 M3 M3 H3 H3 H3 M3
M2 M3 M3 H3 M3 H3 H3 H3 M3 M3 H3 H3 M3 M3 H3 H3 M3 M3 H3 H3 M3
M3 H3 H3 M3 M3 H3 H3 H3 M3 M3 M3 H3 H3 H3 H3 M3 H3 H3 M3
família
associação
H3 H2 M3 M2 M3 H3
M3 M3 M2
H3 M3 H3 H2 M2 H3 H2 H3 H3 M2 H3 M3 M3 M3 M2
M3 M3 H3 H3 H2
M3 H3 H3 H3 M2 M3 H2 H3 H3 M3 H3 M2
M M M H
H H H H
M H H H H
Negrito: ocupam a área Sublinhado: núcleo familiar de Benedito H: homem; M: mulher 2: 2a. geração dos Leite 3: 3a. geração dos Leite
218
forma de participação, ou seja, 44%80. Dos 32 familiares membros da associação, 25
ocupam a área. A ocupação da área aumenta o grau de participação nas duas formas
associativas, embora não seja condição sine qua non para ela.
Dentre os 50 membros da família Leite que ocupam o território de Alto da Serra, 21
fazem parte da congregação da Assembléia de Deus e 26 participam da associação,
enquanto 18 membros apresentam as duas modalidades de participação81. Isso aponta para
o fato de que a participação religiosa operou como facilitadora da organização política do
grupo, que orbitou, desde 2003, em torno da associação de trabalhadores rurais.
Entre os 32 familiares membros da Associação de Trabalhadores Rurais de Alto da
Serra, 14 fazem parte do núcleo familiar de Benedito e Terezinha Leite, ao passo em que
dos 58 familiares não-associados, apenas quatro fazem parte daquele núcleo familiar, o que
revela o protagonismo desta família no processo de organização política da comunidade de
Alto da Serra. Considerando as quatro formas de pertencimento analisadas aqui, família,
ocupação, religiosidade e associativismo, temos 18 membros da comunidade, sendo dez
destes pertencentes ao núcleo familiar de Benedito e Terezinha.
A filiação protestante constitui elemento fundamental para a compreensão do
processo de organização da família Leite em torno do reconhecimento como remanescente
de quilombo. Apesar da aparente contradição de um grupo assembleiano articulado em
torno de uma identidade carregada de conteúdos significacionais de matriz africana, a
organização religiosa cumpriu, entre eles, o papel de base para a organização política: as
reuniões aconteciam, em sua maioria, no salão da pequena congregação localizada no
quintal de Benedito, quase sempre aos domingos, após a escola dominical.
A ênfase do protestantismo histórico em uma pedagogia da hermenêutica, com forte
conteúdo democratizante, manifesta localmente na forma de uma “escola dominical”,
parece ter sido determinante dos investimentos do grupo na compreensão dos significados
em torno do artigo 68-ADCT. A valorização da cultura escrita, derivação necessária desta 80 Dos 22 membros da comunidade não-participantes da segunda e terceira geração, entretanto, cinco são crianças e um sofre de doença mental, o que reduz o percentual de não-participação para 36,4%. 81 Apenas outros dois membros da família (dois irmãos) participam tanto da igreja quanto da associação, sem que ocupem o território.
219
ênfase hermenêutica, surge como característica a destacar a comunidade de Alto da Serra
de outros grupos do entorno. De fato, antes mesmo da organização do grupo em torno da
identidade quilombola, a inscrição protestante produziu mudanças importantes, como a
alfabetização de alguns adultos não escolarizados após a conversão82. É perceptível a
preocupação de boa parte dos quilombolas de Alto da Serra em ler, estudar e armazenar
qualquer material escrito ou publicado sobre a temática quilombola, o que levou a equipe
de Koinonia a oferecer, em 2007, uma “oficina de arquivo”.
Além de espaço de organização da família Leite em torno do tema da regularização
fundiária, a associação de trabalhadores rurais vem cumprindo, até hoje, o papel de
representação formal de uma comunidade quilombola já reconhecida no plano político.
Como somente em 2008 foi instituída uma associação de remanescentes de quilombo, até
então fora a “Nós da Roça” que exercera o papel de representação formal da comunidade
quilombola de Alto da Serra. Foi a partir desta representação formal que os Leite se
articularam ao movimento quilombola fluminense, compondo os quadros da Associação de
Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), assim como tem sido
através da associação de trabalhadores rurais que têm demandado a implementação de
políticas públicas, algumas delas voltadas para populações quilombolas.
As reuniões internas da associação83 constituem espaço não apenas para avaliações
e decisões relativas aos interesses diretos do grupo, mas para análises da conjuntura
quilombola no plano estadual e nacional. A demanda pela formação de outra associação,
esta de remanescentes de quilombo, se deveu não apenas à percepção das exigências legais
para a titulação coletiva, já que poderiam ter optado por alterar o estatuto da associação já
formada, mas a uma escolha que pretende preservar laços constituídos em torno da “Nós da
Roça” com parceiros não-quilombolas.
Além disso, a Associação de Trabalhadores Rurais de Alto da Serra passou a
cumprir um papel de exemplaridade em relação às possibilidades de organização de 82 Os cruzamentos entre identidade étnica e pertencimento religioso, sobretudo o papel das organizações religiosas de diferentes matrizes na articulação política dos grupos, é tema relevante de pesquisa que, entretanto, não me dispus aqui a enfrentar. 83 Distintas, aqui, do termo genérico “reunião”, usado pelo grupo para se referir a qualquer tipo de evento, dentro ou fora da comunidade, com a presença ou não de agentes externos.
220
trabalhadores rurais em torno dos seus direitos fundiários, ainda que nem sempre essa
resistência redundasse na conquista efetiva do direito. Seus associados recorrem a ela como
amparo político em situações de ameaça em relação à terra, quer seja para articular
novamente canais para assessoria jurídica popular, quer seja para dar visibilidade local às
possíveis violações de direitos. Délbora cita o caso de dois associados não-quilombolas que
recorreram à associação para fins de regularização fundiária:
“Ele vinha vindo nas reuniões, e ouvindo, ouvindo, até que um dia ele
chamou a mim, ao Isaías e ao Bené e veio conversar com a gente, falando
que ele também queria participar, porque ele também precisava dessa
ajuda pra terra dele, porque a terra dele tava sem regularização
nenhuma, e que ele precisava de se associar à gente pra conseguir o título
da terra dele. Então a gente passou pra ele o caso do usucapião que a
gente já teve as oficinas explicando, passamos o caso do remanescente de
quilombo, que quem tem a titulação por essa área não pode vender (....)
Tem um outro rapaz também, que o pai dele morreu, a mãe, tá ele e o
irmão sozinho, e onde ele tá a terra não tem titulo, e ele tem medo, agora
que o pai morreu, alguém aparecer dizendo que comprou. Ele veio aqui
junto com o seu Zé procurar a gente, pra gente ajudá-lo. Então a conversa
não tá só interna não”.
O cumprimento do papel de representante da comunidade quilombola na
implementação de políticas públicas tem adensado a condição da associação como pólo
agregador dos interesses de trabalhadores rurais do entorno, e mesmo de outros bairros do
distrito de Lídice. O recente trabalho conjunto da Secretaria de Meio Ambiente do
município e da ONG Instituto Terra na comunidade tem ampliado esta possibilidade.
Inserida nas políticas ambientais relativas ao corredor Tinguá-Bocaina, a família Leite,
hoje, parece ser alvo dos investimentos da municipalidade para a consecução de políticas
agrárias e ambientais na região. A sede da antiga escola municipal é dividida, hoje, entre o
Centro de Desenvolvimento Sustentável e o Centro de Cultura Negra que, segundo a vice-
presidente da Associação Nós da Roça. “somos nós”. Na placa nova, à entrada da antiga
escola, sob o nome dos dois centros ali abrigados, as instituições responsáveis são listadas,
221
entre elas, Prefeitura Municipal de Rio Claro, Secretaria Municipal de Meio Ambiente,
Instituto Terra e Nós da Roça.
Objetivamente, os membros da comunidade entendem ter ganhado uma sede, um
local para reuniões e para a realização de oficinas de artesanato, atividade que parece estar
vinculada à proposta de um “Centro de Cultura Negra”. Tal posição, entretanto, adiciona
novos significados ao papel exercido pela família Leite em sua região. Os novos assessores,
de origem externa à questão quilombola e vinculados a uma outra militância, a da
agroecologia, apostam na sua condição de exemplaridade em termos de aplicação de
políticas agrícolas e ambientais. Os pequenos produtores do entorno começam a perceber
tais investimentos, e têm comparecido às reuniões na percepção de que elas se tornaram
foros públicos para expressão de demandas por políticas. Neste redimensionamento de seu
papel, os membros da Associação de Trabalhadores Rurais de Alto da Serra se vêem, não
sem alguma apreensão, diante da alternativa de agregar mais recursos, ampliando suas
bases, e se encontra hoje diante da necessidade de um novo cálculo, protegidos, entretanto,
no que diz respeito à composição da associação de remanescentes de quilombos.
No processo durante o qual a família começou o movimento de discussão interna
acerca das implicações da adequação ao rótulo jurídico-político de “comunidade
remanescente de quilombo”, uma nova liderança começou a se formar, entre os membros
da terceira geração, em torno dos cargos formais da associação de trabalhadores rurais.
Fundamentalmente a partir dos contatos com a equipe do programa Egbé-Territórios
Negros, os membros da diretoria da Associação de Trabalhadores Rurais do Alto da Serra
do Mar puderam participar de diferentes eventos ligados à temática quilombola. Assim, já
em 2003, dois dos filhos de Benedito, Daniel e Isaías, este, então, o presidente da
associação, presenciaram a fundação da Associação de Comunidades Quilombolas do
Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), na comunidade de Campinho da Independência, no
município de Parati. Isaías participaria, ainda naquele ano, de um curso para lideranças
quilombolas organizado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo. Se, no encontro em
Campinho, Isaías ainda se sentia pouco à vontade (“eu não entendia nada”), a experiência
do curso em São Paulo é tida como marco para o exercício da liderança:
222
“Ali eu comecei. Dali pra cá, mudou minha expectativa. Conheci pessoas
do Maranhão, do Rio Grande do Sul, São Paulo, do Norte, de Conceição
das Crioulas, do Espírito Santo, Marambaia, Campinho (...) foi nesse
processo que eu avancei de 1% pra 50%. Porque lá foi mais uma
formação, uma capacitação para lideranças de comunidades quilombolas,
então eu me encaixei bem nisso daí.(...) Quando eu voltei de lá, não me
senti capaz de conversar com a comunidade ainda, mas trouxe muita
novidade, trouxe livros, distribuí livros, distribuí cartazes, tudo falando
sobre quilombola.”
Naquele momento, a movimentação em torno da família Leite começava a chamar a
atenção do entorno da comunidade, o que exigia que seus membros elaborassem
explicações para os contatos. Apesar de entender que tal mobilização se dava em torno do
tema da terra, e que a caracterização como remanescente de quilombo era o elemento
central das discussões, o grupo ainda não dominava o discurso acerca de tais idéias,
tampouco se havia definido em face das opções disponíveis. Lembrando este momento,
Isaías comenta:
“O pessoal ficava perguntando(...), aí então na sala de aula o pessoal
ficava falando, sobre o trabalho da gente, admiravam o trabalho até
mesmo de vocês, né, do Rio, que vinham trabalhar com a gente aqui.
Como é que era essa equipe que vinha trabalhar, qual era a intenção, a
gente não sabia como dar uma definição, mas sabia que estava indo por
um caminho quilombola.”
Nos anos seguintes, diferentes integrantes da diretoria da Associação de
Trabalhadores Rurais do Alto da Serra do Mar participaram de um conjunto de atividades,
que não apenas produziram a inserção do grupo no movimento quilombola fluminense, mas
223
também em fóruns de discussão sobre agricultura e meio ambiente de abrangência estadual
e nacional84.
Em 2005, os Leite foram convidados pela primeira vez pela Acquilerj para um
encontro no Palácio Guanabara, e em 2006 dois membros da comunidade participaram de
um encontro organizado pela representação estadual na comunidade de Sacopã, na cidade
do Rio de Janeiro, encontro que articulou políticos ligados ao movimento negro e
instituições do estado, como INCRA e Fundação Cultural Palmares. Em 2007, realizada a
assembléia ordinária da organização, um membro da comunidade de Alto da Serra,
Benedito Leite Filho, foi eleito para o conselho fiscal, e dois membros da comunidade
deverão ser escolhidos para o conselho consultivo da Acquilerj.
Benedito Filho, ou Dico, como é conhecido entre os familiares, começa a despontar
como nova liderança, tendo sido eleito para ocupar o cargo de presidente da nova
associação, esta de remanescentes de quilombo. Dico “faz feira” em Bracuí, um bairro do
município de Angra dos Reis que abriga outra comunidade remanescente de quilombo, a
comunidade de Santa Rita do Bracuí. Recentemente, Dico articulou um encontro entre os
membros de sua comunidade e alguns moradores do bairro, interessados em ouvir falar
acerca do reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo. O grupo que
participou do encontro, em Angra dos Reis, era quase todo formado a partir do núcleo
familiar de Benedito Leite.
Assim, a liderança que, a princípio, era exercida de forma espontânea por Benedito
e Terezinha Leite, passa a ser exercida de maneira formal por seus filhos e filhas, noras e
genros. A liderança de Benedito Leite foi definida, a princípio, pelo seu papel familiar, logo
reforçada pela tarefa de “tomar conta” da terra. A isto se somou, no decorrer da história do
grupo, um elemento voluntarista: um dos três envolvidos diretamente na ação judicial de
reintegração de posse movida por Mário Bolgenhagen, Benedito Leite não apenas foi
aquele que mais se articulou para a sua defesa jurídica, mas que foi também capaz de lançar
mão da relação com agentes externos, o que possibilitou a organização da comunidade.
84 Em 2006, Isaías representou a comunidade de Alto da Serra no Encontro Nacional de Agroecologia, depois de ter participado do encontro estadual preparatório.
224
Finalmente, a hierarquia religiosa local parece ter se superposto às relações familiares,
influenciando, ambas, o padrão de organização política do grupo: organizados em torno da
igreja, os membros da família de Benedito começaram a exercer também a liderança
política.
Na articulação da comunidade em torno de organizações formais, tal liderança foi
paulatinamente sendo assumida pelos mais jovens e com “mais estudo”, mas ainda em
torno do núcleo familiar de Benedito. Recentemente, outros membros dentre os mais jovens
vêm se aproximando deste núcleo duro, como é o caso de Júlia, sobrinha de Benedito. Esta
divisão do trabalho político, no qual um grupo assumiu a tarefa da representação, criou um
acirramento das diferenças na compreensão acerca da questão quilombola. O grau de
participação nos eventos, projetos e reuniões, aliado a outros fatores como idade e
escolaridade, redundou na qualificação diferenciada de membros do grupo, não apenas na
compreensão dos conteúdos, mas na articulação de um discurso afirmativo. Assim, se o
reconhecimento público do grupo como remanescente de quilombo demanda, em grande
medida, a capacidade de seus membros de traduzirem seus signos identitários para o
vernáculo próprio ao debate político e constitucional, a apreensão desta gramática jurídico-
moral não se dá, no interior da comunidade, de forma homogênea.
A aferição da condição democrática da comunidade de intérpretes da Constituição,
como vimos, não é contraditória à percepção de que, em diferentes condições sociais, os
atores apresentarão distintas habilidades interpretativas. Podemos afirmar, portanto, que a
interpretação constitucional se dá em círculos de constitucionalidade concêntricos, em
relação aos quais alguns indivíduos e grupos encontram-se mais no centro, e outros mais
periféricos85. As comunidades negras rurais estiveram, desde o início, na periferia do
debate constitucional e, portanto, suas interpretações produziam pouco impacto na
produção do consenso acerca dos significados em torno da categoria. A intervenção dos
assessores dos movimentos sociais constituiu um duplo esforço de deslocamento centrípeto
de tais comunidades, tanto no que diz respeito ao acesso às informações quanto no que
85 A idéia de uma “constitucionalidade periférica” é de Fábio Feliciano Barbosa, que embora não a tenha ainda publicado, me permitiu usá-la, pelo que agradeço.
225
tange à construção de redes políticas através das quais tais grupos acessem espaços de
decisão e neles tenham voz.
Entretanto, tal atuação também trouxe para o interior dos grupos a tensão centro-
periferia que marca a comunidade aberta de intérpretes da Constituição. Por força das
mediações, os líderes passam a ocupar, no interior das comunidades, um lugar nuclear na
interpretação constitucional, uma centralidade que se verifica tanto na compreensão quanto
na capacidade de manipulação da categoria, mas com a permanência de um contingente na
periferia. Assim é possível identificar, nas relações internas das comunidades quilombolas,
aqueles que participam ativamente das práticas interpretativas da Constituição e de sua
própria identidade, aqueles que assumem a condição de consumidores qualificados do
conhecimento construído, dominando relativamente as categorias agenciadas para o
reconhecimento, e aqueles que se encontram na condição de consumidores alienados, a
oferecer sua adesão à iniciativa coletiva. Tal percepção não escapa àqueles que ocupam a
condição de liderança, como revela a preocupação de Isaías, em Alto da Serra, com a
compreensão dos membros da assembléia acerca do estatuto da associação quilombola.
O conhecimento do direito e o reconhecimento dos direitos
Ao avaliar a trajetória do grupo, os membros da comunidade de Alto da Serra mais
diretamente envolvidos com a militância articulam o “conhecimento” como o elemento
fundamental, tanto para explicar os avanços contabilizados quanto para compreender os
diferentes graus de participação dos membros da família. Articulado com o conhecimento,
o interesse é também utilizado como variável explicativa do grau de envolvimento: maior
interesse produz mais conhecimento, embora o pouco conhecimento seja incapaz de
despertar interesse. A desigual manifestação de interesse e conhecimento, segundo Isaías,
não é fenômeno recente, se fazendo perceber já quando da ação judicial, mas aparece mais
claramente nas tentativas de organização do grupo:
“De certa maneira, dá pra você perceber que onde tem cem pessoas nem
todos são iguais, às vezes vinte são os que pegam, às vezes oitenta ficam
de fora, também não se interessam pelo conhecimento. (...) Algumas
pessoas têm um conhecimento muito forte, alguns, o conhecimento ainda é
226
fraco. Eu não posso dizer que todos têm o mesmo conhecimento, porque
não têm. Não têm, não é porque é culpa minha, culpa sua, culpa do meu
pai, culpa das pessoas que já têm o conhecimento. Porque às vezes você
faz uma reunião, ‘ó, hoje a gente vai discutir tal, tal e tal coisa, a história
de remanescentes de quilombos’ (...) mas às vezes o cara tá na reunião
mas ele não tá ligado no remanescente de quilombo, ele tá ligado num
campo de futebol, num barzinho(...). Ele não dá aquele soco na mente
assim, e pára, e vamos começar daqui pra frente. Que é assim: ‘o que é
remanescente de quilombo, deixa eu escutar o que é isso. Vamos ver no
dicionário o que significa isso aí’.”
É nas “reuniões”, termo geralmente usado para referir-se a qualquer encontro da
associação, seja entre seus membros, seja destes com agentes externos, que o grupo é capaz
de ampliar seu “conhecimento”. É preocupação constante das lideranças garantir o máximo
de participação nas reuniões, que, apesar de contar com freqüência variável, apresenta certa
regularidade entre aqueles que participam e não participam. Quando da aprovação do
estatuto da associação de remanescentes de quilombo, foi decisão dos presentes na
assembléia extraordinária que redundou na versão final do documento adiar a votação para
uma assembléia nas semanas seguintes, tendo em vista a necessidade de que mais membros
estivessem presentes e pudessem compreender o seu conteúdo. Do mesmo modo, o tempo
necessário para a auto-atribuição da identidade quilombola corresponde, nos discursos dos
Leite, ao tempo de construção do conhecimento acerca do tema. Ao falar do início da
trajetória do grupo, Isaías revela o papel das reuniões para a ampliação do conhecimento:
“Já porque o conhecimento era pouco, pouquíssimo, a associação
continua, mas ficou só no nome, parada, porque a associação com
presidente, vice-presidente, secretário e tesoureiro, se os quatro não
tiverem um processo de conhecimento não vai pra frente (...). E fomos
fazendo reunião, fomos explicando, conversando, surgindo dúvida entre a
gente, a gente foi tentando, tentando, tentando.”
227
Apesar de terem vivido outros encontros cujo objetivo era ampliar o debate acerca
dos instrumentos jurídicos em torno do artigo 68-ADCT, o projeto Balcão de Direitos é
definido pela comunidade de Alto da Serra como o marco de seu auto-reconhecimento
justamente por ter sido o momento em que, através do “conhecimento”, assumiram
autonomia em relação a este repertório. O pleno acesso ao direito passava, nos discursos
dos membros da comunidade, pelo acesso ao pleno conhecimento acerca dos direitos.
Como aponta Délbora, o reconhecimento se deu “a partir dos cursos, das oficinas que a
gente teve, explicando o que era remanescente de quilombo. Então a partir daí a cada
oficina que tinha a gente foi se reconhecendo, se auto-reconhecendo como remanescente
de quilombo”.
O projeto Etnodesenvolvimento Quilombola, financiado pelo Ministério do
Desenvolvimento Agrário, iniciado naquele mesmo ano, apresentou como novidade a
realização de encontros entre os três grupos envolvidos: além de Alto da Serra, Preto Forro,
no município de Cabo Frio, e Marambaia, no litoral de Mangaratiba86. Tais encontros
constituíram, segundo os membros da comunidade, momentos de construção de
“conhecimento”, desta vez não de conteúdos formais, mas acerca das condições de vida e
de luta de outras comunidades quilombolas. Neste caso, o conhecimento teve como
resultado a identificação da família com outras comunidades remanescentes de quilombo,
fundamentalmente a partir da idéia de resistência na luta pela terra.
Para além desta identificação através da luta pela terra, o contato com outras
comunidades negras do estado, somado aos investimentos na ampliação do
“conhecimento”, levou o grupo a construir versões acerca da história da escravidão na
região nas quais eles passavam a estar inseridos. Neste sentido, foi de particular impacto o
contato do grupo com a comunidade remanescente de quilombo da Ilha da Marambaia, cuja
origem está vinculada às atividades escravistas do Comendador Breves no século XIX.
Mais de uma vez os membros da comunidade de Alto da Serra se referiram aos
quilombolas da Marambaia como “irmãos”, termo que era correntemente usado pela
comunidade para expressar outros vínculos, de natureza religiosa. A Marambaia passou a 86 O projeto, que teve a duração de um ano e meio, foi marcado por três encontros, cada um sediado em uma das três comunidades: um encontro na primeira fase do projeto, o segundo no final da primeira fase e o terceiro no encerramento.
228
ser entendida pelo grupo como ligada ao próprio processo de formação da população negra
da região, da qual faziam parte. Seu Dito aponta para este novo momento, marcado pelo
conhecimento da própria história:
“Nunca ouvi falar porque naquela região [Serra da Bocaina] o pessoal
não se interessava, né? Mas já tinha. Existia. Inclusive, lá onde eu morei
na Madeireira tinha umas coisas velhas, lá... que disse que, que era de lá
[da fazenda de escravos]. (...) Porque pelos livros, fala que ele [o
Comendador Breves] tinha fazenda por aqui afora, São João Marcos,
Resende, Sertão da Bocaina, por aí afora, tudo aí...ele era dono disso aí
tudo. Ele comprava aqueles lotes de pessoas e colocava na fazenda pra
trabalhar, né? Que quando ele ouviu que ia ser posto em liberdade, ele
até morreu mais depressa...Então, tem essas coisas. (...) Eu lembro que a
nossa descendência foi mais nascida do lado da Marambaia pra cá. Sabe
por causa de quê? Porque esse povo que nasceu aqui, é... negro, ele saiu
aqui muito do lado da Marambaia, São João Marcos, tem a represa, e
atingindo até pro lado de Resende. Será que a gente também não é de uma
dessas descendências, não? Pode ser, né? (...) O movimento negro que eu
digo é... descendência, né? Descendência... porque, saíram lá da África,
na época que muitos negros foram vendidos, né? Pra cá. Eu creio, que às
vezes, quem sabe, a gente também não estava nesse meio, né? Porque
inclusive, o Comendador Breves, é... eu não sabia, agora já... passei a
saber. Fui conhecer, né? Até onde ele morou, até onde ele morreu, onde
foi sepultado, da onde ele casou... Através desses trabalhos que nós tem
feito aí, eu já passei a... ele morreu aqui na Fazenda da Grama.”
Os esforços para inserir a história do grupo no contexto da escravidão no Vale do
Paraíba levaram os Leite a estabelecer relações não apenas entre a comunidade e a Ilha da
Marambaia, mas entre eles e outro grupo, a comunidade remanescente de quilombo de São
José da Serra. A família de Sebastião, Délbora e Simone, noras e genro de Benedito, é
originária de Santa Isabel, em Valença, mesmo local de onde vêm os Antero, e próxima ao
território de São José da Serra, o que tem despertado a curiosidade do grupo acerca daquela
229
comunidade. Assim, na forma como Délbora organiza sua fala, o cruzamento da família
Leite com os Santos de Valença fortalece a identidade quilombola:
“Depois que eu entrei pra associação... eu antes, meu pai contava tantas
coisas pra mim, e eu olho o meu pai como uma pessoa que tem tanta
coisa, tanta historia pra contar, e eu vou falar a verdade, eu não dava
muito valor pra essas coisas não. Depois que eu vim a conhecer esse
trabalho, hoje em dia eu vejo que o que meu pai me falou era...
[interrompido] Eu, no inicio, não me ligava muito nessas coisas não,
apesar do que meu pai me conta histórias da família dele, pela história
que ele me conta eu creio que meu pai, a trajetória da família dele é mais
do que evidente a raça de onde ele veio, que eles são realmente
remanescentes de quilombo, eles sabem de onde os avós deles vieram,
bisavós, ele sabe todas essas histórias. E assim que eu me envolvi nisso,
que eu passei a estudar, a ler as historias sobre os negros, e hoje a família
de Seu Dito, que acabou juntando com a minha família, então eu acho que
a gente hoje tá mais do que envolvida nisso, através da parte do meu
marido e através do meu pai.”
A “remanescência” é verificada não apenas na especulação acerca da descendência
da família, mas também na caracterização das antigas condições de trabalho nas quais o
grupo se encontrava. É ainda Délbora quem fala:
“O seu Dito, quando veio pra cá, ele pode não ter vindo como escravo,
assim, de dizer ‘é escravo’, mas ele veio pra trabalhar no carvão; ele
trabalhava, às vezes não tinha salário, ele e a família inteira, então eles
eram muito discriminados, então na verdade eles eram escravizados,
porque eles não tinham salário, e trabalhavam de sol a sol. Seu Dito
falava que ele tinha que levantar pra ver o forno de carvão, lá, virar... eu
não entendo nada disso, mas eu ouço ele falar aí. Então eu acho que eles
vieram pra cá livres, mas livres em termos. Livres entre aspas, porque o
trabalho deles aqui eu creio que era escravizado. (...) Até que esse patrão
230
dele, que colocou ele aqui, ele vinha pra cá o seu Dito tinha muitas mulas,
cavalos, essas coisas, aí quando o homem vinha, ele andava a cavalo e
seu Dito ia puxando, sem comer, sem tomar água. Eu falei pro meu pai:
não adianta ninguém dizer pra mim que isso não é escravidão, porque é.
Uma pessoa que não come o dia inteiro puxando um rei em cima... porque
ele era como um rei, né? Puxado num cavalo branco, o dia todo, as
crianças às vezes em casa, ele vinha e não trazia dinheiro, não trazia
nada”.
Assim, na ausência de uma memória vinculada à escravidão, e diante da percepção
das interpretações diversas acerca da identidade quilombola, desde aquelas assumidas pelos
atores diretamente vinculados à questão até aquelas de senso comum, os membros da
comunidade se apropriam, em seus discursos, do que poderíamos chamar de condições
análogas à escravidão. Articulando a forma como se davam as relações de trabalho no
período do carvão, o discurso dos membros da comunidade se alinha a um dos critérios
legais de definição de uma comunidade remanescente de quilombo, qual seja, a “presunção
de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (decreto
nº. 4887).
A comunidade apresenta, ainda, um discurso de identificação fortemente
racializado, relacionando diretamente a condição de quilombola à de negro. Quando dos
primeiros encontros com outras comunidades, dentre os pontos em comum, além das
histórias de expropriação fundiária, era ressaltada a condição de coletivo negro. Articulada
por alguns membros com expressões como “somos todos parentes”, essa identificação
apresentava tons biologizantes.
Quando da inscrição nas oficinas do projeto Etnodesenvolvimento Quilombola,
perguntados acerca de sua auto-atribuição de cor, 24 moradores inscritos responderam da
seguinte maneira: 10 se auto-declararam negros, três se disseram pretos, dois escuros, dois
mulatos, seis morenos e um branco. É interessante, neste caso, compararmos tais auto-
declarações com aquelas colhidas, na mesma ocasião, entre os inscritos da comunidade
quilombola da Marambaia: dos 21 inscritos, três negros, um escuro, sete pardos, sete
morenos e três brancos. Dos três auto-declarados negros, uma é a atual presidente da
231
associação, e outro é o presidente da gestão anterior, moradores que, por certo, estão mais
próximos do discurso dos movimentos sociais. Apesar de tais números, em qualquer dos
dois casos, não constituírem amostra acerca da auto-declaração de cor, podem operar como
indícios dos modos como os diferentes grupos articulam sua identidade étnica à percepção
de corte racial. No caso da Marambaia, os investimentos simbólicos de sua liderança estão
ancorados na percepção da especificidade cultural, materializada nos grupos de capoeira e
de jongo.
O processo de identificação, exercício segundo o qual o grupo ressignifica sua
história e suas experiências na produção da demanda por reconhecimento, exige a
constituição de uma “racionália auto justificadora” (Becker, op. cit., p. 84), na qual se
produzem as “pontes interpretativas” de que fala Arruti (2006), implicando não apenas um
olhar seletivo sobre sua própria história, mas a sua releitura a partir da relação com outras
narrativas e outros significados. No caso de Alto da Serra, a ausência de uma memória da
escravidão vinculada ao território, ou de signos ligados à especificidade cultural, levou à
articulação de uma versão vetorial da identidade quilombola, marcada pela percepção do
trânsito dos escravos na região do Médio Paraíba, desde o tráfico negreiro praticado na
Marambaia até a ocupação quilombola em São José da Serra.
Ao identificarem um dos caminhos que atravessa o território, descendo a serra no
sentido do litoral, como sendo o “caminho do ouro”, marcado no mapa produzido pela
comunidade e citado no estatuto da associação como patrimônio material a ser preservado,
os quilombolas de Alto da Serra estendem essa versão vetorial da identidade ao seu próprio
território. A marca do trabalho escravo no espaço, na ausência de senzalas ou de engenhos,
é uma marca de passagem, marca que, como vimos, acompanha a história do grupo, dos
camponeses negros do Vale do Paraíba e do distrito de Lídice, antiga “Vila do Parado”.
Somada à ressemantização da própria idéia de escravidão, em uma referência mais ampla à
exploração do trabalho de corte racial fora do contexto propriamente escravista, esse
exercício interpretativo adota o sentido da ressemantização do artigo 68-ADCT em sua
radicalidade, assumindo uma versão estendida da identidade quilombola.
232
as formas de reconhecimento
O acesso a programas de aplicação de políticas públicas na forma de “projetos”
oferecidos por organizações da sociedade civil permitiu a articulação de outras demandas
por parte do grupo, para além da regularização fundiária. Tal ampliação das demandas por
direitos se deu não apenas porque o reconhecimento político da comunidade apontou para a
possibilidade de acessar um pacote mais amplo de políticas públicas, mas porque produziu
uma inflexão na relação entre o grupo e a municipalidade, ampliando o reconhecimento
local.
Antes dos projetos promovidos pela Secretaria de Meio Ambiente, os quilombolas
de Alto da Serra foram convidados pela Secretaria Municipal de Turismo para participar,
em certa ocasião, de uma reunião cujo objetivo era traçar um projeto de turismo para Rio
Claro, com ênfase ambiental e histórica. Segundo Délbora, a comunidade fora convidada
por se tratar de uma comunidade remanescente de quilombo, constituindo, juntamente com
as fazendas da região, parte do patrimônio histórico do município. Outras instituições,
como Furnas e Emater, também convidaram a comunidade para projetos e cursos. Délbora
aponta para o quanto tais iniciativas indicam uma mudança no modo como a comunidade
passou a ser vista por seu entorno:
“eu vou dizer que respeitada. Porque todo acontecimento, evento que vá
ter no município de Rio Claro, a comunidade está sendo convidada. Eles
mandam ofício, aviso, pra convidar a comunidade pra estar. Há poucos
dias esteve aqui o Instituto Terra (...) na reunião que eles tiveram
falaram: vamos fazer um trabalho no município de Rio Claro, mas nesse
intervalo, alguém citou a comunidade de quilombo de Alto da Serra, e que
o trabalho fosse feito, mas que não esquecesse que aqui tinha uma
comunidade quilombola e que ela tinha que participar do trabalho
também.”
Esta inserção do grupo nas políticas municipais aponta para uma mudança nas
representações locais acerca da família Leite, constituindo uma forma de reconhecimento
positivo. Tal mudança foi paulatinamente percebida pelos membros da comunidade, não
233
apenas como reconhecimento da identidade étnica, mas também da legitimidade de sua
territorialidade. Como comentou certa vez Benedito Leite, “antes a gente era chamado pra
prestar depoimento na polícia, agora a gente fala com o procurador. Mudou, né?”
A produção da identidade pode ser pensada como escolha estratégica, considerados
os interesses em jogo. Mas trata-se de uma escolha da “identidade possível” (Cardoso de
Oliveira, op. cit.), constrangida não apenas pelos outros significativos envolvidos na ação
social, mas também pela necessidade de manutenção da integridade dos Selves, agências
não apenas das escolhas de identidades, mas dos valores mais desejáveis a serem
agenciados para a produção de um “Nós” coerente. Tais escolhas, em casos como o de Alto
da Serra, podem estar referidas, a princípio, a uma demanda concreta por direitos
articuláveis a uma identidade específica, orientando o processo de identificação por um
considerável nível de racionalidade. Por outro lado, a ressignificação da trajetória e das
formas de organização do grupo incorre, ao mesmo tempo, na ressignificação das relações
intersubjetivas, que podem passar a ser entendidas como desrespeitosas, produzindo
demandas mais densas por reconhecimento. Novas demandas de direitos, para além do
fundiário, surgiram na comunidade de Alto da Serra a partir do processo de identificação, e
da conseqüente experiência de reconhecimento vivida pelo grupo, levando-os a um
desenvolvimento espiral do reconhecimento, no qual novas formas de reconhecimento
produziam novas demandas, cuja correspondência adensava as próprias relações de
reconhecimento.
Estas relações de reconhecimento são estabelecidas, antes de qualquer coisa, entre a
comunidade e seu entorno, na alteração das formas de consideração social. As relações
locais de reconhecimento, como formas contrastivas pelas quais os entes significativos
trocam representações e expectativas, definindo as fronteiras étnicas, constituem as bases
sobre as quais a identidade será construída. É sobre elas que os significados agenciados na
interpretação constitucional deverão assentar, mesmo quando esse reconhecimento se
manifesta de forma distorcida, e a adesão à identidade étnica tenha que subverter a forma
de reconhecimento, tendo em vista significá-la positivamente. Por conseguinte, as formas
de reconhecimento local sofrem forte impacto diante do reconhecimento da identidade
étnica na esfera pública.
234
No caso de Alto da Serra, a percepção do reconhecimento do grupo como
remanescente de quilombo, manifesto em matérias jornalísticas, na freqüente presença de
agentes externos, na atuação dos advogados, produziu uma alteração na forma como os
vizinhos, moradores do entorno e a própria municipalidade se relacionavam com os Leite.
O que se manifestou, a princípio, como freqüentes referências dos moradores de Lídice às
mudanças na vida da família, tomadas como elogiosas pelos quilombolas, redundou em um
tratamento diferenciado por parte das autoridades policiais e judiciárias (ou, ao menos, em
sua percepção), em inclusão nos debates políticos pelos agentes locais, em investimentos
em políticas municipais, na ação estratégica de aproximação por parte dos vizinhos e
pequenos produtores do entorno e mesmo na consideração, por parte da secretária de
desenvolvimento do município, do caráter de exemplaridade do grupo para a definição de
políticas de reconhecimento municipais87. De família conhecida por todos à condição de
atores políticos relevantes, passando pelo período em que eram tratados como ameaça aos
direitos fundiários dos proprietários da região, o reconhecimento político da comunidade
quilombola de Alto da Serra produziu crescentes impactos sobre o reconhecimento local.
Distingo, aqui, reconhecimento local de reconhecimento político na medida em que
o primeiro corresponderia ao modo como se efetivam as relações face-a-face dos membros
da comunidade quilombola com os atores sociais locais (vizinhos, trabalhadores rurais do
entorno, proprietários, autoridades locais, moradores em geral). Na medida em que
corresponde à forma como o grupo é diferenciado por seus outros significativos, o
reconhecimento local aproxima-se do conceito de etnicidade como definida pela afirmação
intersubjetiva de fronteiras de pertencimento e não-pertencimento. Entretanto, seria mais
correto dizer que, na medida em que tais relações operam como definidoras do espaço
social do grupo em seu contexto local, apontam para as fronteiras possíveis, cuja
construção dependerá das escolhas operadas pelo grupo a partir da atuação classificatória
de um conjunto de agentes externos (Cardoso de Oliveira op. cit.; Arruti, 2006).
Percebido positivamente pelos membros do grupo, o reconhecimento local gera uma
ampliação da auto-estima nas relações sociais cotidianas. Se é verdade que a luta pelo
87 Elvira Soares se referiu a uma outra comunidade negra da região, os Glória, como sendo “igual aos Leite do Alto da Serra do Mar”, no sentido da organização familiar relativamente fechada: “tudo um patriarcado”.
235
reconhecimento étnico da comunidade quilombola de Alto da Serra teve como motor inicial
a demanda específica por regularização fundiária, logo o grupo passou a contabilizar como
avanço e como “vitória” a mudança na forma como eram tratados nas relações sociais
locais. Tal reconhecimento local, aliado ao trabalho de formação política dos assessores,
ampliou a percepção do grupo acerca dos eventos em torno da ação de reintegração de
posse como formas de desrespeito, mais do que ameaça material à permanência na terra.
Em contrapartida, o que chamo aqui de “reconhecimento político" pode ser
entendido como a inserção da comunidade em um campo mais amplo de relações sociais,
para além dos contextos locais, e que inclui movimento social, assessorias, organizações da
sociedade civil, intelectuais e organismos públicos. A passagem do reconhecimento local
para o reconhecimento político, no caso de uma comunidade quilombola, corresponde à
passagem dos outros significativos concretos para um “Outro” generalizado, capaz de
ampliar o grau de eticidade das relações. Num sentido mais concreto, o grau de
reconhecimento político colabora para a ampliação do reconhecimento local, na medida em
que manifesta mudanças neste plano, verificáveis na atuação dos profissionais in loco, na
percepção local do aporte de recursos para a comunidade, etc.
O grau de reconhecimento político corresponde ao grau de consenso criado na
esfera pública em torno da legitimidade do grupo em requerer determinados direitos, na
articulação de sua identidade étnica. Diante do esgotamento de certas identidades sociais
tradicionais e das possibilidades políticas que elas ensejavam, o reconhecimento político
cria condições para a afirmação de um grupo como sujeito coletivo de direitos. A expressão
máxima do reconhecimento político seria a reificação da condição quilombola de uma
comunidade, enquanto a precariedade desta forma de reconhecimento se revelaria nos casos
limites, nos quais a identidade quilombola de um grupo é fortemente questionada, se
tornando alvo dos ataques sistemáticos dos opositores da política quilombola.
Aqui se constitui um campo de disputas entre os inúmeros empresários morais, a
articular seus diferentes argumentos e capitais, na disputa pela legitimidade de elaborar
traduções das categorias locais e dos conteúdos jurídicos. É também, por conseqüência, o
espaço de ampliação da interpretação das normas jurídicas e constitucionais acerca das
236
comunidades quilombolas, radicalizando a ressemantização a partir dos casos concretos (do
que é exemplo, além da própria comunidade de Alto da Serram os não poucos casos de
quilombos urbanos). É a partir deste feixe de relações que os membros das comunidades
obterão as condições para efetuar as pontes interpretativas que lhes possibilitarão articular o
discurso étnico de forma coerente. Este reconhecimento político apresenta algumas
instâncias privilegiadas: as instituições político-representativas, os órgãos do sistema de
justiça, a rede de organizações da sociedade civil, os órgãos de imprensa, os foros do
movimento.
O reconhecimento político é condição para que uma comunidade seja, enfim, objeto
de iniciativas para seu reconhecimento formal. A atual legislação apresenta duas formas
pelas quais pode se reconhecer formalmente uma comunidade remanescente de quilombo: a
certificação da condição de quilombo pela Fundação Cultural Palmares (FCP) e a abertura
de processo de regularização fundiária no Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA). O reconhecimento formal depende do reconhecimento político, na
medida em que este opera como legitimador da ação normatizadora do Estado. Entretanto,
o caso de Alto da Serra mostra que o contrário não é verdadeiro: o reconhecimento político
pelo próprio Estado pode prescindir do reconhecimento formal. A comunidade participou
dos projetos Balcão de Direitos e Etnodesenvolvimento Quilombola, ações promovidas
pela Secretaria Federal de Direitos Humanos e pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário, antes mesmo da abertura do processo de regularização fundiária no INCRA, e
mesmo antes de assumirem a identidade quilombola.
Se a passagem do reconhecimento local para o reconhecimento político88
corresponde àquela do respeito pelos outros concretos para o reconhecimento por um Outro
generalizado, o reconhecimento formal de sujeitos jurídicos corresponde, por sua vez, ao
deslocamento para o respeito por um Outro burocratizado e juridicizado na forma Estado.
Se entendermos as agências de representação de que nos falava Goffman, cujo objetivo se
restringia à produção de versões públicas positivas para formas estigmatizadas de ser, como
demandantes de reconhecimento político, podemos perceber a passagem deste para o 88 A afirmação de tal “passagem” não tem, entretanto, um sentido cronológico necessário, mas apenas um caráter analítico, já que o reconhecimento político pode ser simultâneo ao (ou mesmo anteceder o) reconhecimento local.
237
reconhecimento formal como um adensamento das relações éticas, resultado da ampliação
das expectativas de reconhecimento por parte dos grupos.
238
Considerações Finais
A Constituição de 1988, em seu espírito comunitarista e multiculturalista, abriu
espaço para a consecução de uma política de reconhecimento étnico que permitiu que
categorias subalternizadas lançassem mão não apenas de novos direitos territoriais, mas de
um conjunto ampliado de direitos, a partir de novos conteúdos e novas práticas
classificatórias. O direito, nesta chave, opera como princípio de ordenação das novas
identidades coletivas, convertendo-as em sujeitos de direitos, criando condições sociais e
epistemológicas para a construção de consensos. Foi a partir do campesinato negro do Vale
do Paraíba, e de seu movimento para adequação a uma identidade etnicizada ligada à
afirmação de direitos, que me propus a pensar as políticas de reconhecimento étnico no
Brasil contemporâneo como exercício de interpretação constitucional por uma comunidade
aberta, da qual participam as comunidades demandantes, na materialização de seus
significados.
Alto da Serra constitui um exemplo feliz justamente pela percepção de sua liderança
acerca das implicações deste processo de interpretação constitucional. Em uma espécie de
“sociologia nativa”, Isaías Leite sintetizou, em diferentes momentos, seu entendimento do
reconhecimento como interpretação do direito. Ao apontar, para o fato de que, antes de
aderir à identidade quilombola percorreram um “caminho quilombola”, no qual, em
condição de liminaridade, experimentavam um processo de formação acerca de conteúdos
da política e do direito, ao mesmo tempo em que viviam intensamente uma moralização de
seus conflitos, aponta para a construção da identidade como um processo, do qual
participam os grupos interessados e seus mediadores.
Quando se referiu, na aprovação do estatuto da ARQUISSERRA, à conversão do
que considerava “coisa da gente” para “coisa jurídica”, expressava a percepção deste
movimento de identificação étnica e conversão em sujeitos de direitos como movimento de
dupla tradução. Tendo lido o dispositivo constitucional como uma narrativa generalizada na
qual sua história é passível de ser inserida, os grupos investem, por conseqüência, na
conversão de suas formas de organização para a linguagem do direito e do Estado,
239
convertendo comunidade em associação, vínculos locais e afetivos em contrato jurídico. Se
este movimento corresponde à consagração de suas formas locais de identidade e
territorialidade no plano formal do direito, também implica a necessidade de adequação de
determinadas práticas a estas condições formais. As novas orientações sobre o território,
conseqüências do processo de territorialização, devem ser entendidas de forma complexa,
revelando ao mesmo tempo moralização da relação territorial e adequação a estas condições
formais.
Finalmente, quando, ao se referir às particularidades de sua comunidade no que diz
respeito à ausência de “traços quilombolas”, Isaías responde, com tranqüilidade, que “cada
um é do seu jeito”, revela a percepção de que, apesar da necessária conformação do grupo a
um conjunto de procedimentos formais, resultado do processo de territorialização, os
conteúdos do direito não operam um congelamento das formas de manifestação das
identidades étnicas. Muito pelo contrário, são essas formas locais de manifestação que,
cotidianamente, oferecem ao direito os elementos para sua atualização, informando novas
práticas interpretativas, capazes de estender a capacidade hermenêutica da ressemantização
como idéia-força. Mais do que isto, o que a concepção de remanescentes de quilombo como
grupo étnico oferece aos grupos concretos (e deles exige) são procedimentos, mais que
conteúdos, o que confere a possibilidade de que tais grupos articulem diferentes formas
legítimas de ser quilombola. Dessubstancializada pelo conceito de grupo étnico, a categoria
constitucional se permite a uma diversidade de investimentos de conteúdos, desde que
adequáveis aos dispositivos fundados no exercício do contraste e na titularidade coletiva.
Apropriei-me, para pensar este processo, da concepção beckeriana acerca da
produção e imposição das normas, tendo em vista ponderar sobre dois elementos que
operam como determinantes do reconhecimento como interpretação jurídica. Por um lado,
os valores, entendidos como conjunto de orientações genéricas para a escolha das ações
consideradas moralmente superiores, a produzir em nós uma demanda ética por
reconhecimento das distintas formas (nossas e dos outros) de estar no mundo. Por outro
lado, os interesses, a partir dos quais os sujeitos sociais irão operar suas escolhas
estratégicas, tanto por padrões de ação, quanto por identidades possíveis de serem
articuladas. O reconhecimento da comunidade quilombola de Alto da Serra aponta para as
240
configurações possíveis da relação entre valores e interesses no processo de construção da
identidade étnica. Nos debates em torno da definição da unidade territorial a ser
demandada, a decisão sobre as pessoas e terras que seriam ou não incluídas foi objeto de
um cálculo racional individual que, entretanto, era ponderado pelos interesses e valores
morais da coletividade.
Entretanto, este efeito vinculante meramente moral pode não ser suficiente.
Primeiro, porque nem todos os atores interessados que estão envolvidos ativamente na
condição de membros da comunidade de intérpretes apresentam vinculações identitárias
coletivas, a constranger moralmente as pretensões individuais de verem validadas suas
interpretações. Segundo, porque mesmo no caso de intérpretes reunidos em uma identidade
étnica, a boa compreensão dos significados em jogo nos planos do direito e da política
depende de elementos externos às suas formas próprias de moralidade, sendo determinada
pela natureza da mediação. Assim, parece surgir nos discursos contrários à política
quilombola, hoje, um argumento pela segurança jurídica, a identificar sua ameaça no
protagonismo exercido pelos próprios grupos no processo de identificação étnica. Trata-se
de uma versão conservadora do processo de reconhecimento, a deslegitimar o saber de si
construído pelos próprios grupos em nome do saber especializado do jurista, do técnico ou,
na melhor das hipóteses, do antropólogo. Ela é, entretanto, a expressão radicalizada da
questão em torno dos limites interpretativos de uma categoria constitucional, mormente
quando ela enuncia direitos e sujeitos de direitos.
A emergência das comunidades étnicas no interior da comunidade ética, como
demandantes do reconhecimento de suas próprias versões de vida boa, revela que Estado e
sociedade se organizam em torno de interesses e valores de grupos em disputa por uma
melhor versão do sistema de direitos. Considerando a sociedade como compondo uma
grande comunidade de intérpretes do direito, estratificada em grupos de diversos matizes e
de diferentes níveis de recursos, o juiz (e o legislador) deve ser entendido como o
conformador do resultado das disputas interpretativas, nas quais cada grupo interessado
mobilizou, na medida de suas possibilidades, seus empresários morais. No caso da garantia
jurídica dos direitos territoriais das comunidades remanescentes de quilombo, se o
dispositivo constitucional não foi produto dos conflitos morais das comunidades concretas,
241
foi no jogo interpretativo que ele foi deslocado para outra esfera de conflitos morais,
“etnicizado” no processo de ressemantização.
Entretanto, os elementos garantidores da integridade do direito permanecerão
constrangendo as interpretações, a garantir que o sistema jurídico mantenha sua condição
de romance em cadeia. É assim que, como vimos, a definição de povos tribais como grupos
étnicos, a garantir a primazia da auto-atribuição como critério caracterizador da identidade,
cria condições para a abertura interpretativa (a incluir comunidades urbanas, ou que não
tenham ocupação ancestral do território, como no caso de Alto da Serra), sem que a
integridade do direito seja ferida.
No caso do direito ao reconhecimento da identidade quilombola, o ordemamento de
princípios que garantem a integridade do direito caminha, pari pasu, com um sistema de
valores que garante a integridade da própria comunidade étnica, entendida como
comunidade ética, e que também opera como constrangedor da liberdade interpretativa.
Isso quer dizer que a adesão de um grupo à identidade quilombola é produto de uma
hermenêutica constitucional entendida como processo aberto cujos limites são os
princípios, mas também de uma auto-hemenêutica, entendida como processo aberto cujo
limite é a integridade do Eu coletivo. O grau de razoabilidade da construção identitária
dependerá, portanto, de um conjunto de considerações acerca do que constitua, para aquele
caso, a melhor interpretação do direito constitucional; do quanto determinadas pontes
interpretativas entre categorias e narrativas internas e externas aos grupos se mostrem mais
ou menos consistentes; do quanto uma versão seja capaz de angariar reconhecimento
político, produzindo maior ou menor grau de consenso. Do ponto de vista objetivo, a
integridade se manifesta na necessária pretensão à titulação coletiva, sem a qual uma
coletividade dificilmente se disporá a ser reconhecida como remanescente de quilombo.
O caso de Alto da Serra constitui a realização da possibilidade de que este princípio
de abertura, disponibilizado à comunidade a partir de certo grau de reconhecimento
político, se encontre em uma situação de equilíbrio com o princípio de integridade,
manifesto nas formas de reconhecimento local. Os quilombolas de Alto da Serra parecem
ter entendido como é possível, no processo de converter o que consideram “coisa da gente”
242
em “coisa jurídica”, constituir um espaço de representação na esfera pública, sem que com
isso subvertam suas próprias formas de pertencimento. Ao realizarem tal tarefa, adensam a
caminhada ética por seu “caminho quilombola”, cada vez mais confiantes na possibilidade
de abrir novas trilhas.
243
Anexo – Fotos da Comunidade e do Território de Alto da Serra
Foto 1 – Franquilino Leite e Quirina Cruz, pais de Alcides Leite (autor e data desconhecidos)
Foto 2 – Crianças no Sertão do Sifrônio, década de 1950 (autor e data desconhecidos)
244
Foto 3 - Família Leite
Foto 4 - Benedito Leite
245
Foto 5 - Netos de Benedito e Terezinha Leite
Foto 6 - Escola dominical em Alto da Serra
246
Foto 7 - O terreiro após a escola dominical: espaço de sociabilidade
Foto 8 – Isaías Leite na colheita da banana
247
Foto 9 - Edson Leite ordenhando
Foto 10 - Forno de carvão remanescente, em meio ao bananal
248
Foto 11 – Desenhando o mapa do território, Edson, Sebastião, Hélio, José Urbano, Benedito e Anésio.
Foto 12 - Mapa êmico do território de Alto da Serra (oficina de território)
249
Foto 13 - Membros da associação em reunião com equipe de Koinonia (oficina de arquivo)
Foto 14 - Benedito em entrevista para o Canal Futura, no quintal de sua casa
250
Foto 15 - Casa de Benedito, com a congregação da Assembléia de Deus ao fundo
Foto 16 - Casa de Anésio, com casa de Rosana ao fundo
251
Foto 17 - Casa de Célia
Foto 18 - Casa de Maria Aparecida
252
Foto 19 - Casa de Maria de Lourdes
Foto 20 - Casa de Gilson, em reforma
253
Foto 21 - Casa de Ilda
Foto 22 - Casa de Maria
254
Foto 23 - Casa de Marinalva
255
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