Andréa Lima de Souza Cozzi TESSITURAS POÉTICAS: EDUCAÇÃO...

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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Núcleo de Pesquisa e Pós-Graduação Mestrado em Educação Linha de Saberes Culturais e Educação na Amazônia Andréa Lima de Souza Cozzi TESSITURAS POÉTICAS: EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E SABERES EM NARRATIVAS DA ILHA GRANDE/BELÉM- PARÁ BELÉM/PA 2015

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Universidade do Estado do Pará

Centro de Ciências Sociais e Educação

Núcleo de Pesquisa e Pós-Graduação

Mestrado em Educação – Linha de Saberes Culturais e

Educação na Amazônia

Andréa Lima de Souza Cozzi

TESSITURAS POÉTICAS: EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E

SABERES EM NARRATIVAS DA ILHA GRANDE/BELÉM-

PARÁ

BELÉM/PA

2015

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Andréa Lima de Souza Cozzi

TESSITURAS POÉTICAS: EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E

SABERES EM NARRATIVAS DA ILHA GRANDE/BELÉM-

PARÁ

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação –

Mestrado, Linha de Pesquisa Saberes Culturais e Educação na

Amazônia, do Centro de Ciências Sociais e Educação, da

Universidade do Estado do Pará, como requisito parcial para obtenção

do título de Mestre em Educação.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Josebel Akel Fares.

BELÉM/PA

2015

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Dados Internacionais de Catalogação na publicação

Biblioteca do CCSE/UEPA

Cozzi, Andréa Lima de Souza

Tessituras poéticas: educação, memória em saberes e narrativas da Ilha grande/Belém-PA/

Andréa Lima de Souza Cozzi. Belém, 2015.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2015.

1.Narrativas poéticas. 2. Práticas educativas – Ilha Grande (PA). I. Fares, Josebel Akel.

(orientador). II. Comunicação oral – Ilha Grande (Pará). III. Título.

CDD.21. Ed. 371.3

____________________________________________________________________________

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Andréa Lima de Souza Cozzi

TESSITURAS POÉTICAS: EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E

SABERES EM NARRATIVAS DA ILHA GRANDE/BELÉM-

PARÁ

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação –

Mestrado, Linha de Pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia,

do Centro de Ciências Sociais e Educação, da Universidade do Estado do

Pará, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em

Educação.

Orientadora: Prof.ª Drª. Josebel Akel Fares.

Data da defesa: 25/09/2015

Banca examinadora

__________________________________

Prof.ª Dr.ª Josebel Akel Fares – Orientadora

Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

_________________________________

Prof.ª Dr.ª Denise de Souza Simões Rodrigues – Examinadora Interna – UEPA

Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará

__________________________________

Prof.ª Dr.ª Maria Roseli Sousa Santos – Examinadora Interna – UEPA

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Pará

_________________________________

Prof.ª Dr.ª Regina Estela Barcelos Machado– Examinadora Externa – USP

Doutora pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

BELÉM/PA

2015

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Aos Contadores de histórias que estão sempre comigo nas travessias...

Maria Francisca Medeiros de Lima (Vovó Mirica – em memória);

Delani Alves (Iara-lani – em memória)

Patyco Tembé (Tuerarup – em memória)

Aos Contadores de histórias que proporcionaram o mergulho no rio de minhas memórias...

Ana Cristina Ramos;

Grupo Tuerarup de Contadores infantis de histórias;

Daniel Munduruku;

Francisco Gregório;

Juraci Siqueira, Rodrigo Grillo e Sônia Santos (Cirandeiros da Palavra)

Simeão Monteiro (mestre na arte de narrar)

Bel Fares

Regina Machado

Aos Contadores de histórias que hoje seguem como o fluxo do rio...

Sofia Cozzi;

André Cozzi

A Eliana Pojo, que me trouxe para as travessias...

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AGRADECIMENTOS

A todos os rios que atravessam meu ser... Encharcada de saberes.

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VELHO SIMEÃO

(Douglas Richard, morador do Furo do Maracujá - Belém/PA)

Quem quiser ouvir histórias,

Histórias eu tenho pra contar,

Ouça e guarde na memória,

As lendas do meu lugar.

O velho Simeão contou...

Criançada parou para ouvir,

É visagem, é assombração,

Cobra grande que vem por aí!

Ele mora na beira do rio,

A boiuna ele viu surgir,

E a canoa passou por cima,

Carregada de açaí!

E se diz namorador...

Que até com a Matinta ele namorou,

Se é verdade ou mentira,

Ou se é pura ilusão,

São muitas histórias do velho Simeão!

Simeão é o contador,

Suas histórias fazem viajar,

Por um mundo cheio de magias,

Que fazem os meus olhos brilhar,

Por um mundo cheio de magia,

Que encanta quem o escutar...

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A MARGEM OCULTA

... Eu sou. Tu és. Nós somos afluentes

desse rio – medula do universo

que nasce no infinito e desemboca

no âmago do Ser que somos parte.

Agora que já sabes que és rio

deves saber também que o teu destino

é fazer teu caminho caminhando:

tu és ao mesmo tempo oleiro e barro

tu és num só momento o boi e o carro!

E como rio deves morrer todas as noites

e renascer todos os dias sempre menino

e sempre outro – embora sendo o mesmo

que há milênios corre entre delírios

de lendas e contendas reveladas

nas pedras que circundam mil segredos!...

É preamar. Em plenilúnio a Lua desponta

e monta guarda enquanto o Sol descansa.

Indiferente o rio corre na Vida

e a Vida por sua vez corre no rio;

o rio fez do correr perene lida

e a vida do viver eterno cio...

Antônio Juraci Siqueira

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RESUMO

COZZI, Andréa Lima de Souza. Tessituras poéticas: educação, memória e saberes em narrativas da

Ilha Grande/Belém-Pará. 2015. 156 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado

do Pará, Belém, 2015.

O trabalho aqui apresentado está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado)

da Universidade do Estado do Pará, na linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia.

Tem como problemática: Quais os saberes e práticas educativas expressos nas vozes dos intérpretes da

Ilha Grande? O objetivo central da pesquisa é cartografar processos educativos em narrativas orais

imersas nos saberes e práticas cotidianas de Simeão Monteiro, contador de histórias da Ilha Grande.

Como eixo metodológico, a abordagem será qualitativa, pautada na existência de uma relação

dinâmica e viva entre o sujeito e o objeto, além da aproximação, do contato direto com os sujeitos da

pesquisa. A história oral e a entrevista narrativa são as técnicas utilizadas para a coleta de dados. Os

referenciais teóricos apreciados foram: Barbero (2002) e a exortação na busca pelos buracos na

construção cartográfica; Deleuze e Guattari (1995) e Kastrup (2009), sobre as pistas do fazer

cartográfico; Fares (1997, 2008a, 2008b, 2010) com as cartografias da voz na Amazônia; Freitas

(2003) e os debates sobre história oral e o registro dos fatos na voz dos próprios protagonistas;

Zumthor (1993, 1994, 2005), com a definição de poéticas orais, performance, tradição e esquecimento,

categorias preciosas para o entendimento da Literatura caracterizada pela presença da voz; Bachelard

(1988, 1990), com a concepção de imaginação criadora; Bosi (1994), com a problematização da

história oficial ao estabelecer como fonte de pesquisa a memória de velhos; Durand (1997, 1998), com

as concepções de imaginário; Loureiro (1995), para compreensão do tempo da significação na

Amazônia, fluido como o rio; Freire ( 1987, 1992, 1995) que apresenta no conjunto de sua obra a

necessidade de envolvimento com a cultura e a história dos indivíduos presentes na experiência;

Brandão (2002) e o conceito de currículo a partir da complexidade das relações entre educação e

escola; Mclaren (1997), com o multiculturalismo crítico e a pedagogia de resistência. O desenho da

dissertação apresenta-se da seguinte forma: capitulo I, Fio da meada, traz inicialmente o mergulho nas

memórias de infância, encontros iniciais com as poéticas da voz, e a inserção do universo da oralidade

nas práticas educativas no meu lócus de atuação como professora. Em seguida, são traçados os

caminhos percorridos na pesquisa: motivações, objetivos, tema, objeto de estudo, questões

norteadoras, abordagem, tipo de pesquisa, técnicas, estado da arte e referenciais teóricos. O Capítulo

II, Belém e sua trama insular, contextualiza o ciclo das demarcações cartográficas na referida cidade a

partir do século XVII com a chegada dos conquistadores na Amazônia. O olhar presente é dos

cronistas de viagem e demais pesquisadores interessados na complexidade cartográfica amazônica. O

Capitulo III, Bastidor de histórias, discute os fios da memória presentes na voz do narrador. O

Capitulo IV, Riscos do bordado: ensaio cartográfico dos saberes e práticas educativas da Ilha traça o

mapa desenhado a partir da voz do narrador da comunidade. As Aproximações (in)conclusivas são os

registros dos resultados da pesquisa e as possíveis contribuições para os diálogos entre os saberes e as

práticas educativas.

Palavras-chave: Educação – Saberes – Poéticas orais.

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ABSTRACT

COZZI, Andréa Lima de Souza. Poetic tessitura: education, memory and knowledges in Ilha Grande’s

storytellings/ Belém-Pará. 2015. 156 f. Disssertation (Master’s in Education) – State University of

Pará, Belém, 2015.

This paper is bounded by the State University of Pará’s Post-Graduation Program (Master’s in

Education), line of research Cultural Knowledges and Education in the Amazonia. Having as guiding

questions: what are the knowledges and educative practices expressed in Ilha Grande’s interpreters

voices? The central aim of this research is cartographing educative processes in oral narratives

immersed in the everyday life of Simeão Monteiro, storyteller of Ilha Grande. In a qualitative

approach, it focus on the existence of a dynamic and vivid relation between the subject and the object,

in addition to the closeness, direct contact with the subjects of the study. Oral History and the

narrative interview were the techniques used for the data collection. The theoretical references were:

Barbero (2002) and the exortação na busca pelos buracos na construção cartográfica. Deleuze and

Guattari (1995) Kastrup (2009) sobre as pistas do fazer cartográfico. Freitas (2003) e os debates sobre

história oral e o registro dos fatos na voz dos próprios protagonistas. Zumthor (2005) with the

definition of oral poetry, performance, tradition, and forgetfulness, precious categories for

understanding the Literature in which the presence of a voice is the main characteristic. Bachelard

(1990) With the notion of creative imagination. Bosi (1994) brings the problematisation of the original

history when establishes the elderly’s memories as the source of research. Loureiro (1995) for

comprehending the time of signification in the Amazonia, fluid like the river. Freire (1995) presents in

his studies the necessity of enrolling with culture and the history of the individuals, also enrolled with

the experince. Brandão (2002) and the notion of curriculum dealing with the complex relation between

education and school. Critic Multiculturalism and the Pedagogy of resistence from Mclaren (1997).

The dissertation is presented like the way that follows: Chapter I, Fio da meada, it brings a dive in

children’s memories, initial meetings with the voice poetry, and the inclusion of oral universe in the

educative practices at my locus of actuation as a professor. Then, the motivations, aims, theme, object

of study, guiding questions, approach, type of research, techniques, state of art, and theoretical

references are presented. Chapter II, Belém e sua trama insular, contextualizes the cycle of

cartographic demarcations in the city since XVII century with the explorers come to the Amazonia.

The present look belongs to the travel chroniclers and other researchers interested in the cartographic

complexity of Amazonia. Chapter III, Bastidor de histórias, discusses the threads of memory present

in the narrator’s voice. Riscos do bordado: ensaio cartográfico dos saberes e práticas educativas da

Ilha Grande. Finally, chapter IV draws the map designed by the community narrator’s voice. Ponto de

espinha: aproximações (in)conclusivas are recordings from the research results, and the possible

contributions dialogues between knowledges and the educative practices.

Keywords: Education – Knowledges – Oral poetries.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Roteiro de Orellana ao percorrer o rio Amazonas......................................... 32

Figura 2 – As Amazonas................................................................................................. 34

Figura 3 – Mapa de La Condamine................................................................................. 36

Figura 4 – Planta da Praça da cidade de Belém do Pará de 1751.................................... 37

Figura 5 – Planta Geométrica da cidade de Belém o Grão Pará de 1753........................ 38

Figura 6 – Planta da cidade de Belém em 1761.............................................................. 38

Figura 7 – Mapa da proposta de aprofundamento da área do alagado do Piri................ 39

Figura 8 – Imagem aérea da cidade de Belém................................................................ 43

Figura 9 – Rio Guamá entre Belém e a Ilha do Combu à direita.................................... 44

Figura 10 – Mapa dos bairros da Cidade de Belém........................................................ 47

Figura 11 – Localização geográfica da Ilha Grande (mapa 01)..................................... 48

Figura 12 – Localização geográfica da Ilha Grande (mapa 02).......................................... 48

Figura 13 – Caminhos do rio que levam a Ilha Grande.................................................. 49

Figura 14 – Caminhos na Ilha Grande............................................................................. 50

Figura 15 – Porto da escola............................................................................................. 50

Figura 16 – Localização da Unidade Pedagógica São José............................................ 53

Figura 17 – Boto - Pintura rupestre em Monte Alegre/PA.............................................. 60

Figura 18 – Logo do Movimento de Contadores de histórias da Amazônia................... 93

Figura 19 – Cartaz do I Encontro de Contadores de histórias da Amazônia................... 95

Figura 20 – Cartaz do II Festival Pororoca de Histórias................................................ 95

Figura 21 – Cartaz do II Encontro de Contadores de Histórias...................................... 98

Figura 22 – Rizoma......................................................................................................... 152

Figura 23 – Imagem do diário de bordo.......................................................................... 109

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Figura 24 – Simeão Monteiro, no momento da performance.......................................... 110

Figura 25 – Mapa da Ilha Grande pelos professores....................................................... 116

Figura 26 – Visão a partir da escola da outra margem do rio onde mora Seu Simeão.... 118

Figura 27 – Visão a partir da escola da outra margem do rio onde mora Seu Simeão.... 119

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SUMÁRIO

1. FIO DA MEADA........................................................................................................... 15

2. BELÉM E SUA TRAMA INSULAR....................................................................... 30

2.1. EU VI....................................................................................................................... 30

2.2. CICLO DAS DEMARCAÇÕES: CARTOGRAFIAS DE BELÉM........................ 33

2.3. BELÉM ADONARDA: GUIRLANDA DE ILHAS................................................ 40

2.4. ILHA GRANDE....................................................................................................... 46

2.5. MULTICULTURALISMO CRÍTICO E EDUCAÇÃO: TRAMA DE

SÍMBOLOS E SENTIDOS NA ILHA GRANDE..........................................................

49

3. BASTIDOR DE HISTÓRIAS................................................................................... 57

3.1. PONTO CASEADO – OS FIOS DA MEMÓRIA PRESENTES NA VOZ DO

CONTADOR DE HISTÓRIAS.......................................................................................

57

3.2. PONTO HASTE – MNEMOSYNE E LESMOSYNE: MEMÓRIA E

ESQUECIMENTO INSEPARÁVEIS NA GRÉCIA......................................................

59

3.2.1. PONTO HASTE ALTERNADO EM CORRENTE – ELOS DA MEMÓRIA.... 61

3.3. PONTO DE VANDYKE – MEMÓRIA VIVA, A PALAVRA ENTRELAÇADA

NA ÁFRICA....................................................................................................................

63

3.4. PONTO CHATO – O NÃO-LUGAR DA ORALIDADE PARA OS POVOS

ÁRABES.........................................................................................................................

67

3.5. PONTO ROCOCÓ – POVOS EUROPEUS NA IDADE MÉDIA – A

LITERATURA ORAL....................................................................................................

71

3.6. PONTO TEIA DE ARANHA – PARA CINCUNDAR A VIDA COM A VOZ..... 76

3.7. PONTO DE CADEIA – A ORALIDADE E O NARRADOR

CONTEMPORÂNEO.....................................................................................................

81

3.7.1. PONTO DE CADEIA – A ORALIDADE E O NARRADOR EM BELÉM........ 87

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4. RISCOS DO BORDADO: ENSAIO CARTOGRÁFICO DOS SABERES E

PRÁTICAS EDDUCATIVAS DA ILHA GRANDE.....................................................

4.1. PESPONTO: OS DESENHOS DA CARTOGRAFIA............................................

94

4.2. CHULEAR: SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS ARREMATADAS.......... 101

4.3. PONTO A PONTO: FIOS EPISTEMOLÓGICOS DA CARTOGRAFIA.............. 107

4.4. CONTRAPONTO: SER E SABER NA AMAZÔNIA, TENSÕES E

COMPLEXIDADES NO DESENHO DO MAPA.........................................................

112

APROXIMAÇÕES (IN)CONCLUSIVAS................................................................... 136

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................ 139

ANEXOS........................................................................................................................ 144

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1. FIO DA MEADA

E de noite em casa, enquanto cerzia meias, pregava botões, fazia

bainhas, sua voz contava as histórias que tinha ouvido de outros

fiapos de voz. Montes de histórias de mulheres e fiapos, fios e linhas

de todo tipo, ponto a ponto se tecendo e virando novas tramas.

Ana Maria Machado

“Eu tentei compreender a costura da vida, me enrolei, pois a linha era muito

comprida, e o que eu vou fazer para desenrolar?”1, quem borda sabe muito bem que a linha

colocada na agulha não deve ultrapassar o tamanho do antebraço, a medida é feita para que a

linha não enrole e o bordado possa ser feito aos poucos, serenamente.

A indagação colocada na música ressoa e leva meus pensamentos a buscar a resposta,

e, então, o que é eu vou fazer para desenrolar meu fio de vida e deixá-lo livre para enredar-se

na teia da existência humana? Entre tantas idas e vindas do fio no novelo, encontro uma ponta

e tento puxá-la, eis que encontro o fio da meada, na verdade, o fio da memória... Agora é hora

de sentar no batente da porta dos fundos. Meus olhos fitam um grande e comprido quintal,

cheio de árvores e zelosamente ancinhado para retirada das folhas caídas, mas só depois das

15h, horário em que diariamente a vida se refaz despertada pelo cheiro do café coado no saco

de pano, tão bem remendado pelas habilidosas mãos da Dona Mirica. O olhar é atraído para o

pé de abiu, meu preferido, gostava de sentir meus lábios presos pela resina que sai da fruta, a

brincadeira era tentar descolar os lábios, ou então passar um tempo sem dizer uma palavra.

Ah, nesse momento de brincar de silêncio, eu ouvia tantos outros sons daquele quintal...

encontro finalmente o fio das minhas memórias... Pego o tecido, coloco no bastidor, desenho

o risco do bordado, ao meu redor coloco as meadas, separando-as por tons e matizes,

seleciono as linhas e faço a composição das cores, enfio a linha na agulha e dou o primeiro

ponto...

Cresci entre histórias de rio e rua, minha infância foi povoada com as narrativas

contadas por minha avó materna, o contar histórias iniciava após a Ave Maria e o lusco-fusco,

ou crepúsculo, como é comumente conhecido. Elementos que consentiam o início da

contação, era preciso reconhecer a chegada do lusco-fusco para ter a permissão das histórias.

Segundo dizia Vovó Mirica, o crepúsculo era o momento mágico da partida do dia e da

chegada da noite, no limiar entre o dia e a noite abre-se um portal, e as encantarias transitam

entre os mundos, e os que foram ensinados a ver com os olhos do poético conseguem perceber

1 Trecho da canção Costura da vida, de Sérgio Pererê Belo Horizonte/MG.

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a transição: os passarinhos começam a se recolher com seus últimos gorjeios, as formigas

invertem sua marcha preparando-se para descansar, as cigarras cantam alto, o vento e as águas

dos rios acalmam seus movimentos, então o contador de histórias tem a permissão de chamar

para suas narrativas os seres encantados.

As temporalidades determinavam o repertório apresentado por ela nas suas contações.

Contar histórias de dia nasce rabo de macaco! Aos encantados eram reservadas as noites. Pela

manhã, as narrativas que chegavam aos nossos ouvidos eram sobre os acontecimentos

cotidianos e vinham junto com o cigarro desfrutado após o almoço, uma mão pitando e a outra

apoiada na porta dos fundos à espera das notícias da Rádio PRC-5. Ao som da música de

abertura do programa A Patrulha da Cidade2 – ... é uma tristeza, uma infelicidade, ouvir meu

nome na Patrulha da Cidade... –, o silêncio tomava conta para dar passagem às histórias do

jornalismo policial ou, como foi batizado pela Vovó, “as histórias de crime”. Entre as notícias

trazidas pelo radialista Adamor Filho, juntavam-se as da Vovó: “... lembra daquele caso que

aconteceu lá na... parece com esse...” – o fio condutor das histórias vespertinas começava a

ser tramado.

Ela era uma vó contadora de histórias, e eu vivia emaranhada pelas narrativas

contadas. Aquela casa cheirava a histórias e era habitada por tantos personagens, às vezes

ficava tão cheia que mal conseguíamos andar.

A porta dos fundos que dava para o quintal era lúdica para nós, dividia-se em duas,

uma parte em cima e outra em baixo, e assim permitia brincar de passar por cima ou por

baixo. Os tapetes eram feitos pela vovó com retalhos coloridos cortados e amarrados, numa

composição de cores que dava gosto de olhar. Quantas vezes acompanhei sentada no pé da

máquina de costura Singer o processo de tessitura destes retalhos de vida. Nas cômodas, ela

colocava panos de crochê, um conjunto para cada ocasião, tinha os do Círio, Natal,

aniversários.

No processo de rememoração para a escritura do texto, recuperei um tesouro que

pensei não mais encontrar, a história que mais gostava que a Vó Mirica contasse, A Senhora

Holle. Ao lê-la, senti a força dos versos de um poeta curitibano, Ricardo Corona, “sentir, eu

2 A Patrulha da Cidade estreou na Marajoara em 1965. Era produzido pelo então diretor da rádio, Advaldo

Castro. O nome e o formato do programa foram adotados da Rádio Tupy do Rio de Janeiro. Até então, não havia

no Rádio paraense um programa específico sobre os fatos policiais. As notícias eram veiculadas em outros

noticiários e durante a programação. Os primeiros repórteres policiais foram Adamor Filho, Osvaldo Rodrigues e

Aclésio Moura. O programa também trazia muita informação de utilidade pública, o que era a garantia da

participação popular. J. Miranda redigia o roteiro do programa, que era apresentado em duas sequências: A

Ronda da Cidade – mostrava em pequenas histórias os fatos investigados na Central de Polícia; e Os dramas da

Cidade – com bom humor, transformava os fatos trágicos do dia a dia em novela, cuja tônica era a comédia.

Fonte: http://www.oparanasondasdoradio.ufpa.br/60novafase.htm. Acesso: 05/09/2014

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sentirei até o fim, nascem flores com o tempo, flores nos vasos é com vocês, eu vou regar um

jardim”, um contentamento profundo me invadiu, alguma coisa em mim foi recuperada. No

percorrer das linhas do texto, ouvi a voz da vovó utilizando a matriz dos irmãos Grimm para

“amazonear” seu conto ao dizer que a moça boa havia limpado o igarapé a mando da senhora.

Os contos que ouvira de seus parentes portugueses ganhavam a voz da floresta. A história

acima citada foi escrita e batizada por mim de O igarapé encantado, o registro foi feito no

livro Apanhadores de histórias3, volume II. O reconto nasceu das águas revoltas e turvas da

memória afetiva, com a morte de Vovó Mirica. A princípio, suas histórias ficaram quietas,

adormecidas, ou esquecidas, por um tempo o entendimento que tive da situação esquecimento

e memória parecia negativo. O profundo hiato instaurado na memória de uma criança que

cresceu sob a sombra generosa das narrativas parecia uma incapacidade de lembrar, e, mais

ainda, de honrar a voz de um antepassado tão importante!

Desconforto era o sentimento surgido após os momentos de reflexão sobre o

esquecimento das narrativas ou de trechos delas, até ter contato, através dos seminários

realizados pelo Núcleo de Pesquisas Culturais e Memórias Amazônicas/CUMA da

Universidade do Estado do Pará, com os estudos da pesquisadora Jerusa Pires Ferreira, sobre

memória e esquecimento, que atiçaram o desejo de compreender minhas próprias lacunas.

O entendimento foi instalando-se ao ler os ensaios de Jerusa no livro Armadilhas da

Memória. O primeiro reajustamento foi descobrir que a aparente incongruência entre memória

e esquecimento faz-se necessária para o processo criador da narrativa:

A dupla esquecimento/memória, portanto, é apenas uma aparente oposição. Numa

grande medida, estas oposições são instrumentos conjuntos e indispensáveis em

projetos narrativos que dão conta de eixos de conflito. Há também o caso de, no

corpo da própria narratividade, formarem-se núcleos em que lembrar é um fluxo, um

processo, uma razão de ser e então o ato de esquecer se faz pivô daquilo que se

desenvolverá, detonando uma série de transformações ou a transformação

(FERREIRA, 2003, p.92-93).

O esquecer remete à criação, morrer para ressuscitar, deixar as lembranças chegarem

novamente, com novo corpo, reencarnar. A premissa aqui apresentada assegura o processo

vivido desde o contato com as narrativas, A Senhora Holle, dos Irmãos Grimm, de As Fadas,

de Charles Perrault, até chegarem aos meus ouvidos pela voz de Vovó Mirica e agora renascer

na forma de O igarapé encantado. Recriação apontada por Ferreira (2003, p.94) através dos

“buracos” do esquecimento, “O lapso, hiato, fratura, ressurgimento têm a ver com a

3 Projeto de edições de livros com as narrativas preferidas recontadas por contadores de histórias da Amazônia.

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interrupção de um projeto, tanto de vida e de ação como de narrar. Formam uma espécie de

morte momentânea, ritualizada, que daria lugar ao fluxo da vida”.

Sendo assim, as histórias influenciaram profundamente a forma de ver o mundo e as

pessoas, e se fortaleceram e nutriram minha trajetória de vida até hoje. Certa vez, ouvi de um

índio contador de histórias que também cresceu entre as histórias de seu avô que as narrativas

ouvidas ficam por algum tempo guardadas no rio de nossas memórias, como as areias do

fundo de um igarapé, quietas, tranquilas, e somente são agitadas quando alguém as revolve,

então elas se mostram.

Acredito que as histórias da Vó Mirica são as responsáveis pelo caminhar e pela

necessidade da troca singular que a educação oferece a mim. Que gostosura de infância!!

Posso até sentir o cheiro daquelas noites... Ah, se todos pudessem ter um encantador de

histórias. Mergulhei no rio das memórias e retornei encharcada com as lembranças da

infância, e assim me percebi educadora, emaranhada por fios de vida tecidos por muitas

vozes, com a crença na possibilidade de uma educação que privilegie o ser e sua diversidade,

em que o saber construído faça o caminho inverso do que está posto, emane de seu meio.

As experiências que tive com a literatura oral foram a matriz para o caminho

profissional que busco: o diálogo entre as vozes silenciadas, o saber local e a instituição

escolar.

Pautei minha vida acadêmica e profissional em narrativas. Assim como minha Avó

Mirica, contei diariamente histórias aos alunos que cruzaram meu caminho no exercício

docente. O desejo e a necessidade pelo entendimento sobre este trabalho com as narrativas

proporcionaram a busca por meus pares, pessoas que também comungam do amor pela

literatura oral, pelas poéticas orais.

O encontro com os pares aconteceu no ano de 2000, na Escola Municipal Professora

Terezinha Souza. Ana Cristina Cordeiro e eu, professoras do Ciclo II (correspondente a 3ª e 4º

série do ensino fundamental), após observações em pouco mais de um mês de aulas,

descobrimos que enfrentávamos problemas parecidos: a maioria dos alunos não conseguia ler

e interpretar textos, bem como expressar suas ideias através da escrita, e, consequentemente,

estas dificuldades refletiam nas outras áreas do conhecimento.

Nós duas havíamos crescido sob a sombra refrescante e generosa das narrativas, e após

reflexões feitas sobre nossas memórias de infância decidimos colocar em prática um projeto

que trouxesse as histórias para dentro do espaço escolar, já que a escola localiza-se no bairro

da Castanheira, comunidade que vive às margens do Utinga, local fértil de histórias.

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Fizemos o primeiro ensaio cartográfico. Saímos com os alunos pela comunidade a

mapear os Contadores e suas histórias, que foram registradas pelas crianças num livro que

usamos como base para as aulas, além da formação de um grupo de Contadores Infantis de

histórias intitulado Tuerarup (significa “para sempre” na língua indígena Tembé).

Outra inserção na pesquisa cartográfica ocorreu na Ilha Grande, Belém, intitulada

“Apanhadores de histórias da Ilha Grande: saberes do rio e da mata pelas vozes dos seus

sujeitos”. Realizado em conjunto com a coordenadora das ilhas, professora Eliana Pojo,

coordenação pedagógica, professores e alunos da Unidade Pedagógica4 São José, vinculada à

Secretaria Municipal de Educação, teve como objetivo mapear os saberes presentes no

cotidiano da comunidade ribeirinha que vive às margens do Rio São Benedito.

O caminho da pesquisa na Ilha Grande segue agora na perspectiva do Mestrado do

Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará, na linha de

Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Os primeiros passos trilhados vieram

acompanhados da necessidade da busca teórica para dar suporte à pesquisa. Inicialmente,

precisei compreender os processos educativos a partir das vozes dos sujeitos, revelados em

um fazer que envolvesse a transposição do olhar para o entendimento de outras realidades que

margeiam a escola, constituindo-se o fluxo constante das conexões entre tais saberes

expressos nas visões de mundo, na prática social cotidiana, nas histórias de vida de cada

grupo.

O ingresso no Mestrado desvelou possibilidades de aportes teórico-metodológicos. As

disciplinas cursadas vieram acompanhadas de discussões que qualificaram os passos da

pesquisa. A correlação dos pensamentos dos autores trabalhados e o caminho da pesquisa

pretendida foram determinantes para lançar as bases das tessituras poéticas.

Ao passar da proa e adentrar na embarcação rumo à Ilha Grande, deparo-me ainda

mais com a necessidade do aporte teórico para entender a construção cartográfica a partir das

vozes, da história de vida dos moradores, em especial do Sr. Simeão, o intérprete analisado

nesse percurso da travessia, e os processos que configuram as categorias de análise

pretendidas na pesquisa, que concebam a educação além da visão positivista carregada de

conceitos binários.

A escola, enquanto espaço plural, que congrega diferentes saberes, como tem

potencializado esses saberes e práticas educativas? Tem dado ouvido ou silenciado? De que

forma os intérpretes da comunidade dialogam com a escola?

4 Unidades Pedagógicas são anexos das escolas, não possuem um diretor, apenas um coordenador pedagógico, a

unidade é vinculada a uma escola sede (localizada na região continental de Belém).

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Compreender o diálogo feito entre a escola e a cultura expressa na dinâmica de vida

dos moradores da ilha, através da oralidade, nos incita a percorrer os caminhos para os ensaios

do contorno do mapa da Ilha Grande, que nos mostrará os processos educativos através das

narrativas orais imersas nas práticas cotidianas dos amazônidas que ficam à margem da

escola. Apesar de não ser o cerne central da pesquisa, a recorrência do tema nos leva a

problematizá-lo. A temática proposta tem como foco as narrativas orais dos moradores da Ilha

Grande, em Belém do Pará, e os saberes expressos pela voz.

Paulo Freire (1996, p.25), em Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática

educativa, utiliza o exemplo do velejador para trazer o entendimento da aplicação dos

conceitos “saberes” e “práticas educativas”, ao dizer que, para alguém chegar à prática do

velejar, é importante conhecer os saberes envolvidos no ato, como conhecer o barco, o motor,

as marés, a posição das velas para receber os ventos etc. No entanto, na prática do velejar, os

saberes vão se organizando, sendo confirmados ou modificados. A partir de então, nesse

processo dialético, vão se legitimando, se constituindo, os saberes necessários às práticas

educativas. O conhecimento dos saberes alimenta a prática e nos coloca diante de um

posicionamento, “Quanto mais penso sobre a prática educativa, reconhecendo a

responsabilidade que ela exige de nós, tanto mais me convenço do dever nosso de lutar no

sentido de que ela seja realmente respeitada” (FREIRE, 1996, p.107).

Na escolha das linhas para tessitura poética na Ilha Grande, a abordagem foi

qualitativa, pautada na existência de uma relação dinâmica e viva entre o sujeito e o objeto,

além da aproximação, do contato direto com os sujeitos da pesquisa. Segundo André (1995,

p.17), uma característica importante desse tipo de abordagem é a fundamentação numa “visão

holística dos fenômenos, isto é, leva em conta todos os componentes de uma situação em suas

interações e influências recíprocas”.

A compreensão holística do fenômeno estudado na Ilha Grande leva-nos a percorrer os

caminhos etnográficos para ampliação do olhar além da visão dominante. O desafio reside no

afastamento da contemplação generalista ou panorâmica do objeto de estudo, a visão do

pesquisador precisa buscar os silenciamentos, as vozes periféricas reveladoras da densidade

das práticas que para outras abordagens podem ser comuns, ou naturalizadas. Beaud e Weber

(2014, p.10) testificam a premissa ao dizerem:

A etnografia não julga, não condena em nome de um ponto de vista “superior”. Ela

procura, antes de tudo, compreender, aproximando o que está distante, tornando

familiar o que é estranho. Agindo assim, torna as coisas, as pessoas e os eventos

mais complicados do que parecem. Pelo fato de o etnógrafo limitar-se a um longo

trabalho de descrição – interpretação – os dois andam em par – ele põe às claras a

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complexidade das práticas sociais mais comuns dos pesquisados, aquelas que são de

tal forma espontâneas que acabam passando desapercebidas, que se acredita serem

“naturais” uma vez que foram naturalizadas pela ordem social como práticas

econômicas, alimentares, escolares, culturais, religiosas ou politicas, etc.

O exercício da pesquisa etnográfica aproxima-se da cartografia por envolver a

transposição do olhar para o entendimento de outras realidades que margeiam a escola,

constituindo-se o fluxo constante dos fios que ligam a rede de saberes expressa nas visões de

mundo, na prática social cotidiana, nas histórias de vida de cada grupo.

As técnicas utilizadas foram a história oral e a entrevista narrativa. Para Freitas (2002),

a história oral oportuniza a recuperação dos testemunhos abafados pela História oficial, o

registro das memórias margeadas traz para o centro do debate pontos de vista diferentes sobre

os fatos e quase sempre desprezados pela dominação. Será apreciado no trabalho com história

oral, o olhar de Thompson sobre a derrubada de barreiras na construção do conhecimento:

A história oral não é necessariamente um instrumento de mudança; isso depende do

espírito com que seja utilizada. Não obstante, a história oral pode certamente ser um

meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da história. Pode ser

utilizada para alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de

investigação; pode derrubar barreiras que existam entre professores e alunos, entre

gerações, entre instituições educacionais e o mundo exterior; e na produção da

história – seja em livros, museus, rádios ou cinema – pode devolver às pessoas que

fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias

palavras (THOMPSON, 1992, p.22).

A história oral dialoga com a entrevista narrativa no sentido de estimular os sujeitos a

dizerem de si e suas experiências:

As entrevistas narrativas são infinitas em sua variedade, e nós as encontramos em

todo lugar. Parece existir em todas as formas de vida humana uma necessidade de

contar; contar histórias é uma forma elementar de comunicação humana e,

independentemente do desempenho da linguagem estratificada, é uma capacidade

universal (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002, p.91).

A entrevista narrativa, de acordo com Jovchelovitch e Bauer (2002), é uma técnica que

privilegia o ouvir, a escuta dos relatos e opiniões no momento da coleta de dados. As

perguntas são abertas, objetivando a expressão dos pensamentos com o mínimo de

interferência do pesquisador, as perguntas feitas levam à condução de uma conversa pautada

na decisão do entrevistado sobre o que é importante ser dito.

O pesquisador, ao propor-se utilizar a técnica da entrevista narrativa, necessita estar

ciente de que o tempo da entrevista é ditado pelo sujeito, deixando-o livre para elaborar e

reelaborar suas ideias, respeitar os silêncios, as lágrimas roladas, a pausa para passar o café...

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As travessias realizadas têm como foco cartografar os saberes partilhados a partir da

história de vida e memória de Simeão Monteiro, morador da ilha apontado pelos alunos da

Unidade Pedagógica São José como referência na prática de narrar histórias. A pesquisa foi

norteada pelos seguintes passos: (1) Levantamento bibliográfico para fundamentar conceitos

sobre educação e cultura, cartografia, memória, história oral, imaginário, performance, entre

outros; (2) Levantamento documental dos registros sobre a Ilha Grande; (3) Sensibilização da

escola para referendar os contadores de histórias; (4) Elaboração do roteiro de entrevista; (5)

Recolha das narrativas; (6) Transcrição das falas; (7) Construção do mapa; (8) Geração de um

registro dos saberes e práticas educativas cartografadas.

Segundo as reflexões apresentadas, o objeto de estudo construído apresenta-se através

da seguinte pergunta:

Quais os saberes e práticas educativas expressos na voz do intérprete da

Ilha Grande?

Norteando a pesquisa, surgiram as seguintes questões:

Como se estabelece a relação entre indivíduos e culturas mediada pela

oralidade?

Ocorre o diálogo entre os saberes presentes no repertório das narrativas do

intérprete da Ilha Grande e os demais pontos de saberes da comunidade, como

a escola, por exemplo?

A partir do objeto identificado e das questões norteadoras, o objetivo geral da pesquisa

é:

Cartografar os saberes e práticas educativas expressas em narrativas orais do

intérprete da Ilha Grande.

Os objetivos específicos são:

Inventariar no repertório de narrativas dados sobre: 1. Saberes do lugar; 2.

Saberes ambientais; 3. Saberes escolares; 4. Saberes mitopoéticos;

Analisar o diálogo entre os saberes presentes no repertório das narrativas do

intérprete da Ilha Grande e os demais pontos de saberes da comunidade; e

Gerar um registro dos saberes cartografados para ser utilizado pela escola e

pela comunidade em geral.

As ponderações aqui expostas revelam um anseio em problematizar as situações

vivenciadas no lócus de atuação enquanto educadora que transita entre o continente e a região

insular, fazendo formações para os professores, já que pertenço ao do quadro de profissionais

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da Rede Municipal de Educação de Belém destinado a assessorar e acompanhar as Escolas,

Unidades Pedagógicas e Unidades de Educação Infantil5.

Nos diálogos com os professores lotados nas ilhas de Belém, crescia a necessidade de

apreciação dos saberes locais no cotidiano escolar, suscitando o aprofundamento

epistemológico para fornecer suporte para tais apontamentos.

Ao aportarmos na instituição escolar, necessitamos haurir as discussões acerca das

relações estabelecidas entre os saberes locais e as práticas educativas, compreendendo que

não podemos desvincular os processos educativos e culturais, pois ambos são fios que

compõem a mesma teia, a da vida. Galeano chama a atenção para a necessidade da visão

crítica ao depararmos com as relações de poder instituídas entre os povos latinos e os centros

de poder, ao esclarecer que:

É a América Latina, a região das veias abertas. Do descobrimento aos nossos dias,

tudo sempre se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e

como tal se acumulou e se acumula nos distantes centros do poder.

Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas ricas em minerais, os homens e sua

capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O

modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar foram sucessivamente

determinados, do exterior, por sua incorporação à engrenagem universal do

capitalismo (GALEANO, 2010, p.8).

A afirmação acima revela a profundidade dos debates que precisam ser travados por

educadores e educadoras, alunos e alunas e comunidade em geral em meio à crise

educacional, e não se reduz ao que a escola acredita ser seu campo de atuação: metodologias,

ensino/aprendizagem, avaliação, tecnologias etc. Envolve a percepção de que fazemos parte

de um todo conectado com a vida cotidiana fora dos muros das escolas, com sujeitos

históricos possuidores de anseios, sonhos, valores, histórias, quase sempre silenciadas,

negadas, excluídas do cânone histórico. Ao dizer que somos sujeitos e não apenas objetos da

história Freire propõe a intervenção humana no mundo:

O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente,

interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no

mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém

como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito

igualmente (FREIRE, 1996, p.85).

Partindo de tais considerações, estabelecer as relações dos saberes e práticas

educativas da comunidade visa tornar possível a interlocução dos diversos sujeitos, o ir e vir

constante de saberes através das vozes, cartografar os movimentos do cotidiano a partir de

5 Compreendem os espaços escolares destinados ao atendimento das crianças da Educação Infantil, com a faixa

etária de 0 a 5 anos.

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mapas que tragam em seus traçados a problematização da realidade vivida, como na

encontrada pelo cartógrafo Barbero (2004, p.18), ao apresentar o mapa noturno:

Mapa noturno: um mapa para indagar a dominação, a produção e o trabalho, mas a

partir do outro lado: o das brechas, o do prazer. Um mapa não para fuga, mas para o

reconhecimento da situação desde as mediações e os sujeitos, para mudar o lugar a

partir do qual se formulam as perguntas, para assumir as margens não como tema,

mas como enzima. Porque os tempos não estão para síntese, e são muitas as zonas

da realidade cotidiana que estão ainda por explorar, zonas cuja exploração não

podemos avançar se não apalpando, ou só com o mapa noturno.

Em Zumthor (1994, p.304), aportamos a referência de cartografia percorrida pela

humanidade:

Se há mantenido, no sin rázon, que la cartografia precedió a la escritura entre los

inventos del hombre. Alguns croquis pré-históricos,trazos sobre huesos o corteza de

los indígenas de la América precolombina, alineamentos de piedras o dibujos em la

arena entre los aborígenes australianos. Se trata de indícios de una voluntad

universal de representar el espacio em que vivimos y nos despalzamos; de um deseo

de ordernar el mundo estableciendo uma correlación entre los

lugares,funcionalizando la distancia. Se trata de calmar uma necesidad vital com este

esfuerzo de representación: definir y apropiarse um sector del espacio.

Conforme observado em Barbero e Zumthor, cabe alargarmos a compreensão de

cartografia, termo antes utilizado na área da geografia e associado a mapas físicos, traz em sua

essência forma e conteúdos o desejo de representar o tempo e espaço vivido. Em distintos

momentos históricos, os mapas assumiram as configurações necessárias para as finalidades as

quais foram propostas pelos cartógrafos em seus anseios de testemunhar. Ao adentrarmos na

história dos mapas, perceberemos nuances nos feitios de representação, como, por exemplo,

as formas geométricas em que são desenhados (ovais, circulares, retangulares, quadrados), a

introdução de imagens e as possibilidades de leitura da cartografia, como as imagens de

animais, barcos, habitações etc., encontrados nos mapas medievais, ícones que dão suportes

ao diálogo entre cartógrafo e leitor.6

Outros mapas surgem, desenhados pela multiplicidade de sentidos e significados que

os homens atribuem aos movimentos da vida cotidiana. Os desenhos são diversos, aqui serão

apreciados os contornos feitos através da memória e da voz para compor a cartografia. A

proposição do mapeamento de saberes e práticas educativas dos grupos possibilita o diálogo

entre universidade – escola – comunidade, para além da observação do cotidiano ou da coleta

de dados, mas na tentativa da escuta sensível dos protagonistas da cartografia indicando-nos o

itinerário do mapa, os caminhos a serem percorridos pelas memórias coletivas. “O cartógrafo

6 Para obter informações detalhadas sobre as formas utilizadas pelo homem para representar a terra desde os

primórdios até as formas atuais de cartografias, ver o artigo “Por uma cartografia da cidade: hologramas

teóricos”, de Josebel Akel Fares, que compõe o livro Abordagens teóricas e metodológicas na pesquisa em

educação (2011).

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deve pautar-se numa atenção sensível, para que possa, enfim, encontrar o que não conhecia,

embora já estivesse ali como virtualidade” (KASTRUP, 2009, p.49).

No Sonho do cartógrafo, obra de James Cowan (1999), encontramos a senha para o

espaço do indizível no caminho da pesquisa, os suspiros, os silêncios, olhares perdidos no

horizonte, o riso, o choro, e demais sensações e sentimentos tantas vezes desconsiderados

durante a coleta de dados:

A ideia de que o conhecimento pode abrigar sentimentos, tanto quanto observações,

certamente me deixou perplexo. Sempre que abria missivas que me eram enviadas

de longe, ou ouvia as reflexões pessoais dos mercadores e aventureiros que me

visitavam em San Michele, ficava preso ao perceber que suas observações não eram,

absolutamente, isentas. Elas eram afetadas por sentimentos que cada um julgava

serem expressões de si próprio. Ou seja, o mundo que eles me ofereciam era um

reflexo deles mesmos (COWAN, 1999, p.78-79).

Mapear os saberes que perpassam as experiências educativas exige o que Freire (1996,

p.98) chamou de exercício da curiosidade:

O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as emoções, a

capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização, do objeto ou do

achado de sua razão de ser. Um ruído, por exemplo, pode provocar minha

curiosidade. Observo o espaço onde parece que se está verificando. Aguço o ouvido.

Procuro comparar com outro ruído cuja razão de ser já conheço. Investigo melhor o

espaço. Admito hipóteses várias em torno da possível origem do ruído. Elimino

algumas até que chego a sua explicação.

O pesquisar, nesta perspectiva, assume o compromisso com as histórias de homens,

mulheres e crianças, que refletem também as vozes dos rios, florestas, com seu contingente de

vida pulsante. Aprender na convivência com os sujeitos, seu meio e suas experiências é a

proposição do campo de atuação do pesquisador da cartografia, em consonância com as

palavras de Paulo Freire, levando-nos à reflexão dos ligamentos entre os saberes, “abrir-se à

alma da cultura e deixar-se, „molhar-se‟, „ensopar-se‟ das águas culturais e históricas dos

indivíduos envolvidos na experiência” (FREIRE, 1995, p.110).

Ou ainda, segundo Brandão, essa investigação deve considerar a rede de saberes que

nos acompanha desde o nascimento, como expressão da diferença, da diversidade, da

heterogeneidade, das vozes silenciadas pela História, abafando a polifonia dos sujeitos que

engendra o repertório simbólico de cada grupo, e que não encontra ressonância na escola,

quase sempre de ouvidos fechados e ocupada em estabelecer hegemonias padronizadoras da

diversidade cultural. Encontrarmo-nos enredados pressupõe o entendimento da complexidade

dos fios da teia da vida:

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Todo complexo de tecidos e teias, de redes e de sistemas de símbolos, de

significados e de saberes em/com que estamos envolvidos e “enredados” desde o

momento de nosso nascimento, constitui o mundo da cultura. A cultura é “isto” e

fora dela não existe a possibilidade de uma existência humana. Somos seres da

natureza vivida como alguma experiência de cultura (BRANDÃO, 2002, p.400).

Vivenciar novos modos de existência na construção dos traçados imagéticos do mapa

de saberes requer, como observamos nas reflexões aqui expostas, a indissociabilidade entre

pesquisa e intervenção, em oposição aos pressupostos científicos positivistas, rigorosos,

objetivos e neutros. O pesquisador cartográfico preocupar-se-á não apenas com os registros do

objeto de pesquisa, mas também com o processo e com os desdobramentos dele. A

preocupação acompanha os estudiosos que se debruçam sobre o fazer cartográfico por se

tratar não de um aglomerado de regras a serem seguidas, e sim do refinamento na experiência

da pesquisa ao buscar compreender a multiplicidade de saberes que compõem o rizoma com

seus fios interconectados.

Em educação, a pesquisa cartográfica encontra solo fértil por tratar de interligar os fios

que compõem o rizoma, uma vez que a escola não é o centro, e, sim, uma parte do sistema, o

mapeamento dos saberes que estão nas comunidades nos mostrará os processos educativos

expressos nas práticas cotidianas que necessitam ser problematizados e potencializados no

espaço escolar. Brandão (2002b, p.156-157) apresenta pertinente proposição ao dizer:

O que estou propondo é uma espécie de passagem do cotidiano da escola para a

educação do cotidiano. Isto significaria, em primeiro lugar, o abrir as portas da

escola e sair a buscar compreender os mundos circunvizinhos, antagônicos,

próximos e remotos onde estão, onde vivem e convivem com suas culturas do

cotidiano os próprios personagens da vida escolar. Significaria, em seguida, o trazer

para o campo da educação todas as interligações possíveis com todos os outros eixos

internos e exteriores das experiências sociais e simbólicas da vida da pessoa, da

sociedade e da cultura. Significaria, portanto um re-centrar da educação. Isto poderia

parecer uma enorme perda “de seu lugar próprio”, para quem está acostumado a

preservar a educação em um terreno cercado de muros e com raras portas abertas a

tudo o mais.

Os referenciais teóricos trazidos para fundamentar o texto são os seguintes: Deleuze e

Guattari (2003), com a proposição do sistema rizomático; Kastrup (2009) e as orientações do

fazer cartográfico; Freitas (2003) e a introdução da história oral para os debates e pesquisas no

âmbito da academia; Zumthor (1993, 1994, 2010), ; Martin-Barbero (2004) e a construção

cartográfica; Bachelard (1988,1990) e a poética do devaneio; Durand (1997, 1998), trazendo a

teoria do imaginário; Loureiro (1995), com o imaginário amazônico; Bosi (1994), com as

discussões sobre a memória de velhos enquanto fonte de pesquisa; Freire (1987, 1992, 1995),

e suas contribuições acerca da educação; Fares (1997, 2008a, 2008b, 2010), com as

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cartografias poéticas; Brandão (2002) e as pesquisas sobre o enredamento dos sujeitos com a

cultura; McLaren (1997), com as vertentes do multiculturalismo; dentre outros presentes na

intenção da pesquisa cartográfica da Ilha Grande, os quais são referenciados nos momentos

oportunos.

A revisão da literatura (estado da arte) foi feita inicialmente no banco de dissertações

do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Pará e no Programa de Pós-

Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará, no site de ambos os programas,

PPGED/UEPA7 e PPGED/UFPA

8.

Na Universidade do Estado do Pará, sete dissertações trabalharam com a construção

cartográfica, práticas educativas e saberes locais, são elas:

1. Cartografia de saberes nas práticas educativas cotidianas do movimento dos

trabalhadores rurais sem terra – MST na Amazônia paraense (LIMA, 2007);

2. Entre o rio e a rua. Cartografia de saberes artístico-culturais emergentes das práticas

educativas na ilha de Caratateua, Belém do Pará (SANTOS, 2007);

3. Vozes e olhares que Mur[u]Mur[u]am na Amazônia: cartografia de saberes

quilombolas (VALENTIM, 2008);

4. Narrativas orais na comunidade remanescente de quilombo Menino Jesus:

processos de educação e memória (PADINHA, 2009);

5. Casas de farinha: espaço de (con)vivência, saberes e práticas educativas (SILVA,

2011);

6. Fronteiras entre campo e cidade: saberes e práticas educativas no cotidiano de

uma escola nucleada em Rio Maria/PA (CAVALCANTE, 2011);

7. Relações entre práticas educativas, saber ambiental-territorial ribeirinho e o

desenvolvimento local (PERPÉTUO, 2012); e

7 Disponível em: www.page.uepa.br/mestradoeducacao - Acesso em: 05 de Jan de 2014.

8 Disponível em: http://www.ppged.belemvirtual.com.br – Acesso em: 07 de Jan de 2014.

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8. Cartografias poéticas em narrativas da Amazônia: Educação, Oralidades,

Escrituras e Saberes em diálogo (PIMENTEL, 2012).

No banco de dissertações e teses Universidade Federal do Pará, foram mapeadas

quatro dissertações defendidas com as temáticas cartografia, educação ribeirinha e currículo

escolar:

1. Cartografias da educação na Amazônia rural ribeirinha: estudo do currículo,

imagens, saberes e identidade em uma escola do Município de Breves/Pará (CRISTO, 2007);

2. Currículo e seus significados para os sujeitos de uma escola ribeirinha

multisseriada do Município de Cametá (PINHEIRO, 2009);

3. Saberes culturais e modos de vida de ribeirinhos e sua relação com o currículo

escolar: um estudo no município de Breves/PA (LIMA, 2011); e

4. Saberes ribeirinhos quilombolas e sua relação com a educação de jovens e adultos

da comunidade de São João do Médio Itacuruçá, Abaetetuba/PA (CARDOSO, 2012).

As observações das produções acadêmicas nas duas instituições revelam a

preocupação em compreender a complexidade da educação na Amazônia, envolvendo a

reorientação curricular tão necessária para o ingresso da contextualização do real, das

problemáticas percebidas e vividas pelos sujeitos, da reorganização do tempo escolar de

acordo com as vivencias de cada grupo, outro modo de avaliar. Enfim, a busca de referenciais

epistemológicos além da seleção dos conteúdos escolares estéreis da vida que os cercam, de

historicidade, da indissociável relação entre escola e vida, cada uma com suas temporalidades

e territorialidades.

Não obstante, apenas uma das dissertações traz Belém sob o signo insular, através do

mapeamento de saberes artístico-culturais emergentes das práticas educativas na ilha de

Caratateua (SOUSA, 2007). Partindo de tais considerações, confirmo a relevância da intenção

da pesquisa em ouvir as vozes dos sujeitos da Ilha Grande, visando tornar possível a

interlocução, o ir e vir constante de saberes através das narrativas. Na travessia pelas águas, a

proposição aporta-se nas vivências a experiências metodológicas de feitura da cartografia de

saberes locais e práticas educativas na Ilha Grande, município de Belém, como forma de

demonstrar que a escolha dos caminhos estéticos, éticos e demais aspectos que margeiam a

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ação pedagógica dialoga com os diversos olhares da comunidade e, de alguma forma,

ressignifica a escola, em especial a escola que fica às margens dos rios, banhada pelas culturas

que compõem a identidade amazônica.

O desenho da dissertação aqui proposta apresenta-se da seguinte forma: Capítulo I, o

presente, Fio da meada, traz inicialmente o mergulho nas memórias de infância, encontros

iniciais com as poéticas da voz e a inserção do universo da oralidade nas práticas educativas

no meu lócus de atuação como professora (os primeiros ensaios cartográficos com Contadores

de histórias). Em seguida, traço os caminhos percorridos na pesquisa: motivações, objetivos,

tema, objeto de estudo, questões norteadoras, abordagem, tipo de pesquisa, técnicas, estado da

arte e referenciais teóricos.

O Capítulo II, Belém e sua trama insular, contextualiza o ciclo das demarcações

cartográficas na referida cidade a partir do século XVII, com a chegada dos conquistadores na

Amazônia. O olhar presente é dos cronistas de viagem e demais pesquisadores interessados na

complexidade cartográfica amazônica. Até chegarmos ao complexo desenho da Belém atual, e

finalmente aportarmos na Ilha Grande, lócus da pesquisa.

O Capítulo III, Bastidor de histórias, discute os fios da memória presentes na voz do

narrador através dos conceitos: memória, oralidade, performance, repertório, narrativas.

IV Capítulo, com o título de Risco do bordado: cartografia de saberes e práticas

educativas da Ilha Grande, traça o mapa desenhado a partir da voz do intérprete da

comunidade.

Ponto de espinha: aproximações (in) conclusivas são os registros dos resultados da

pesquisa, e as possíveis contribuições para os diálogos entre os saberes e as práticas

educativas através da cartografia.

Agora, por favor, sente-se ao meu lado, o batente da porta é largo, convido a

experimentar colocar a linha na agulha e dar um ponto no têxtil e outro no texto bordado pelas

poéticas orais...

Agora era ponto de honra. Juntaria um fio a outros, somaria sua voz, faria um canto,

um tanto... que chegasse a todos nós...Venham, filhas, venham cá. Venham ouvir

novos contos: nunca mais entrego os pontos. Um mundo vamos bordar. Minha linha

agora eu traço, num bordado que eu invento. Ponto a ponto, passo a passo, por um

caminho que eu faço, modelo que eu mesma tento.

Foi-se o tecido cobrindo, de cor em cor enfeitado.

Foi-se a história construindo, mãos em risco do bordado.

Mães e filhos, ponto a ponto, fazem um mundo em contraponto.

(Ana Maria Machado)

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2. BELÉM E SUA TRAMA INSULAR

2.1- “Eu vi”1

Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado,

graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que

se levanta no céu da história.

Walter Benjamin

A ocupação da região Amazônica pelos povos indígenas remonta ao período de 12 mil

anos. A população estimada era de 05 a 06 milhões, antes da dizimação sofrida a partir da

chegada dos europeus.

Os indígenas tinham sua forma de mapeamento para determinar os ciclos de plantio e

colheita, de pesca, de caça, segundo os períodos do ano. Traçavam cartas celestes2 que os

ajudavam na realização de atividades do seu cotidiano. Interessante notar os desenhos feitos

no céu de elementos do dia a dia, como: a anta, a ema, o beija-flor, o jabuti, a canoa. Cada

desenho indica um tempo certo para cada atividade realizada na comunidade. Os

mapeamentos, as cartografias já eram traçadas pelos habitantes amazônicos, no entanto, neste

capítulo, iremos nos ater às cartografias feitas pelos viajantes.

A Amazônia começa a ser ocupada pelos “brancos” no período que compreende os

séculos XV até a primeira metade do século XIX. Pizarro (2012, p.38) categoriza os

navegantes que por aqui passaram como: os ocupantes, os missionários e os cientistas

viajantes. A inserção no território é feita paulatinamente, seguem inicialmente a margear os

rios, adentrar profundamente nas florestas, um processo lento que requer coragem e

reconhecimento da área, e as histórias fantasiosas construídas em torno do grande rio e seus

afluentes e das florestas causavam estranhamento e cautela.

Sentimentos diversos a povoar o imaginário dos primeiros navegadores foram a

princípio o refreador do avante dos grupos de viajantes. Os primeiros relatos encontravam-se

envoltos numa áurea de mistérios e fantasias, cidades recobertas em puro ouro, mulheres

guerreiras, criaturas inimagináveis e tantas outras coisas produzidas no imaginário e que

ganharam corpo no registro dos cronistas.

1 Segundo Pizarro (2012, p.42, apud CARVAJAL, 2007, p.2), a expressão usada no tópico, refere-se à utilização

do termo por parte do Frei Gaspar de Carvajal para afirmar a veracidade dos seus relatos. “Mas o que daqui em

diante disser será como testemunha de vista e homem a quem Deus quis dar parte em um tão novo e nunca visto

descobrimento, como é este que adiante direi”. 2 Para maiores informações, consultar o livro O céu dos índios Tembé (2000).

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Um exemplo são os relatos do Frei Gaspar de Carvajal, membro da expedição de

Gonzalo Pizarro, que teve início em 1541 em Quito, no Peru, com o objetivo de encontrar o

País da Canela. Após navegarem pelos Andes, a especiaria foi encontrada, mas pouco

lembrava em qualidade a canela trazida do Oriente, e, assim, após a frustrante tentativa, o

grupo dividiu-se em dois, um capitaneado por Francisco de Orellana, que segue o rio em

busca de suprimentos, e outro que permanece no local com Pizarro. Após quase um ano de

espera, o último grupo decide retornar a Quito, e o que estava sob a responsabilidade de

Orellana continua navegar em busca do El Dourado3, o mito amplamente divulgado no

período, a busca por Manoa, a cidade, o lugar das riquezas.

A expedição de Francisco de Orellana realiza um feito até então nunca conseguido por

nenhum viajante, percorrer toda a extensão do rio Amazonas, desde os Andes até o oceano

Atlântico. Um empreendimento ousado para o período, com muitas adversidades, as quais

foram relatadas nas crônicas de Frei Gaspar de Carvajal.

Figura 1 – Roteiro de Orellana ao percorrer o rio Amazonas

Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/francisco-orellana-conquistador-amazonas-

735039.shtml

O pequeno panorama serviu para mostrar as circunstâncias em que surgiram os relatos

Carvajal, partícipe da expedição que desceu o Amazonas com Orellana, conforme observado

anteriormente através de seu relato. Carvajal é o primeiro e um dos principais disseminadores

3 O mito, segundo Pizarro (2012, p.80-81), fala da existência de um cacique que se banha numa lagoa e recebe

um banho de ouro em pó. A tríade composta pelo mito: o cacique Dourado, a lagoa e o ouro em pó trazem os

elementos fortes e presentes no imaginário.

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do olhar inicial do europeu para a região amazônica, e que muitas vezes perdura até a

atualidade!

Recorremos novamente às pesquisas de Pizarro (2012, p.44-45), para trazermos alguns

dos relatos de Carvajal sobre o imaginário fantasioso apontado nas suas crônicas de viagem:

1. A aparência dos indígenas; 2. Riquezas; 3. Alimentação; 4 e 5. Contato com as índias

guerreiras:

1. “Cada um era mais alto um palmo do que o mais alto cristão”;

2. “Nos disseram os índios que tudo o que nesta casa tinha de barro tinha também terra

adentro de ouro e prata, e que eles nos levariam lá, que era perto”;

3. “a terra é mui alegre e vistosa e mui abundante de todas as comidas e frutas”;

4. “E, na verdade, que houve destas mulheres que meteram um palmo de flechas em

um dos nossos bergantins4, e outras que menos, que nossos bergantins ficaram

parecendo um porco espinho”;

5. “Estas mulheres são muito brancas e altas, tem o cabelo muito longo, trançado e

solto na cabeça, são de membros grandes e andam totalmente nuas tapadas suas

vergonhas, com seus arcos e flechas nas mãos armando tanta guerra como dez índios”.

O relato de Carvajal traz o olhar da realidade por ele conhecida. Se observarmos o

relato número cinco, a percepção tida é de ler a descrição de uma mulher do período

renascentista europeu. O cronista revela em seus escritos o misto de ficção e realidade a partir

do pensamento europeu. O lugar penetrado pela expedição de Orellana era o paraíso na terra,

abundância de riquezas naturais e materiais.

Como vemos, no relato de Gaspar de Carvajal realidade e ficção possuem o mesmo

status, na medida em que as imagens que ele aporta são as que modelam a realidade

por ele percebida. O discurso que inaugura a descrição do mundo amazônico tem

inicio com a projeção do imaginário europeu sobre uma realidade natural e humana

que nada tem a ver com ela, mas que o discurso trata de modelar: a sociedade

medieval, o imaginário greco-latino, a descrição paradisíaca do clima da zona tórrida

(PIZARRO, 2012, p.73-74).

4 Escuna com velas quadrangulares em dois mastros. Fonte: Dicionário Online de Português.

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Figura 2 – As Amazonas

É inegável o poder das crônicas do Frei Carvajal, suas palavras fundantes sobre o que

viu e viveu ao navegar por toda a extensão do grande rio, determinou, por exemplo, o nome

recebido pelas águas percorridas na expedição – rio Amazonas. Como negar a presença do

mito no lugar em que a geografia vista é a do imaginário?

2.2. Ciclo das demarcações: Cartografias de Belém

No século XVII, com a chegada dos conquistadores na Amazônia, uma das

preocupações centrais abrangia a obtenção de informações sobre o espaço geográfico, os

territórios explorados eram cartografados. A geração de dados envolvia um projeto maior, o

da dominação lusitana. De acordo com Silva (2004), a Amazônia portuguesa nascia sob a

égide de problemas políticos, culturais, econômicos, medidas de fortificações e defesa contra

outros domínios configuraram-se entre outras estratégias na elaboração de Projetos

cartográficos visando à defesa das fortificações, o discurso do período era conhecer para

defender.

Fares (2008, p.31) faz referência ao vasto material registrado pelos viajantes que

navegaram o Amazonas:

Nos documentos de viagem sobre Amazônia, encontra-se a construção de um espaço

edificada através de leituras subjetivas e imaginárias, mesmo considerando-se o

momento do “racionalismo das luzes”, de negação dessa prática. As expedições

movem-se pelo desejo de conquistas de bens materiais, da vontade de redimir almas

e de exploração científica. As imagens de uma geografia exótica são fundadas na

descoberta da América, com as promessas de encontro do paraíso terrestre, do

Eldorado e do reino misterioso das Amazonas, composto por tesouros e por fábulas.

Alguns destes relatos organizam-se cronologicamente, outros não. De forma geral,

todos registram desde os tipos de embarcações, instalações, formas de

sobrevivências, até o contato com as pessoas. E estabelecem, em síntese, as relações

entre cultura e natureza. Mapas, gravuras e outros desenhos também fazem parte do

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acervo anexo aos relatórios, daí que as equipes de trabalho das viagens científicas

são formadas não só de especialistas nas ciências naturais, mas também cartógrafos,

pintores, desenhistas e outros técnicos.

Conforme observamos na sessão anterior deste trabalho – quando tratamos do olhar do

cronista Frei Gaspar de Carvajal –, a vinda das expedições encontrou impulsos nos relatos das

riquezas aqui existentes. Agora pelo olhar de outro cronista, temos a visão do ciclo das

demarcações cartográficas na Amazônia.

Padre João Daniel, da Companhia de Jesus, viveu na região entre 1741 e 1757, até ser

preso a mando do Marquês de Pombal. Nos dezoito anos passados na prisão, local do qual não

sairia com vida, ele registrou sua passagem pela região Amazônica.

Nas suas crônicas, encontramos também o relato pela busca das riquezas guardadas ao

longo do rio, especialmente a procura pelo ouro. Várias eram as narrativas sobre a riqueza

abundante a ser encontrado no grande rio, histórias de lagos dourados ou de uma cidade feita

de puro ouro, com todas as edificações de seus moradores encobertas do metal precioso. As

narrações sobre a imensa riqueza submersa causaram o frenesi entre os dispostos a navegar ao

encontro da prosperidade. João Daniel (2004, p.45) nos relata:

Sempre a cobiça do ouro, e o amor às riquezas foram no mundo o maior incitamento

dos homens para as maiores empresas e mais árduas navegações... Esta mesma

cobiça do ouro foi a causa do primeiro descobrimento, e navegação do Amazonas...

Espalhou-se em Quito a fama de que no Amazonas havia um grande lago dourado,

cujo ouro era mais que as areias das suas praias, ou que suas margens e fundo eram

tudo ouro. Aumentou-se a fama, e cresceu mais a cobiça, porque além do lago já

afirmavam que nele estava fundada uma cidade chamada Manoa toda fabricada de

ouro, porque de ouro eram as suas casas e tetos, e de ouro tosa a serventia dos seus

moradores. Esta fama e a cobiça de tanto ouro incitou os ânimos de muitos

aventureiros espanhóis a descobrirem tão rica cidade e o tesouro do logo Dourado,

em que prometiam riquezas a montes.

Em 1735, La Condamine, jovem cientista francês membro da Academia de Ciências,

chega a Quito em companhia de outros pesquisadores, e eles instalam-se na fronteira entre o

Peru e o Brasil como participantes de uma missão geodésica5. Em 1743, ele separa-se dos

companheiros com o intuito de retornar à Europa descendo o rio Amazonas passando pelo

Pará até chegar a Caiena, e finalmente em 1744 segue para a França.

Na bagagem, La Condamine levava um valioso tesouro, informações sobre sua viagem

pelo Amazonas. Fruto da persistente pesquisa, os estudos versam sobre: física, botânica,

astronomia, hidrografia e finalmente cartografia, aspecto importante para o texto aqui

5 O termo geodésia foi utilizado pela primeira vez na Grécia Antiga, por Aristóteles, e significa divisões

geográficas da terra, ou ato de dividir a terra. A geodésia é a ciência que analisa a determinação da forma, das

dimensões e do campo de gravidade da Terra. As atividades geodésicas proporcionaram uma revolução na

cartografia com a implantação do Sistema de Posicionamento Global (GPS).

Fonte: http://www.mundoeducacao.com/geografia/geodesia.htm. Acessado em: 23/02/2015.

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apresentado por se tratar de ser o primeiro mapa baseado cientificamente em medidas do

curso do rio. Neste mapeamento, ele apresenta provas cabais da comunicação entre o rio

Amazonas e o Orinoco através do rio Negro, versão desprezada até então pelos outros mapas:

Passando pelo forte do rio Negro, soubemos noticias mais especificas sobre a

comunicação desse rio com o Orinoco, e, por conseguinte, do Orinoco com o

Amazonas. Não farei a enumeração das diferentes provas dessa comunicação, que

recolhi cuidadosamente no meu trajeto a mais decisiva foi o testemunho não

suspeito de uma índia das missões espanholas das bordas do Orinoco, com quem

falei, e que viera de bote, de sua terra até o Pará. Todas essas provas se tornam

doravante inúteis e cedem lugar a uma ultima. Acabo de saber por carta escrita do

Pará pelo reverendo padre João Ferreyra, reitor do colégio dos jesuítas, que os

portugueses do acampamento volante do rio Negro (no ano passado, 1744), tendo

subindo rio por rio, encontraram o superior dos jesuítas das missões espanholas das

margens do Orinoco, com quem os mesmos portugueses retornaram pelo mesmo

caminho, sem desembarcar, até seu acampamento do rio Negro, quem faz a

comunicação do Orinoco com o Amazonas. Esse fato, portanto, não pode mais ser

posto em duvida (LA CONDAMINE, 1992, p.83-84).

Figura 3

Eidorfe Moreira (1989), em suas Obras Reunidas, dedica quase um volume inteiro a

Belém e sua geopolítica. Apresenta em ordem cronológica o Ciclo das demarcações

cartográficas. Segundo o pesquisador, durante todo o século XVII, o da fundação da cidade,

não são encontrados registros cartográficos específicos da Belém, apenas no século XVIII, era

Pombalina, é o período áureo na cartografia da cidade.

1749 - Carte des routes de Mr de La Condamine tant par mer

que par terre dans le cours du voyage à l'Equateur.

Fonte: [Illustrations de Journal du voyage fait par ordre du roi à

l'Equateur servant d'introduction historique à la mesure des trois

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Em 1751, na administração de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, meio irmão do

Marquês de Pombal, se tem notícia da primeira cartografia de Belém, intitulada “Planta da

Praça da Cidade de Belém do Pará em 1751”6. O primeiro ensaio de mapeamento abrangeu as

áreas não edificadas, as terras pertencentes aos padres da Companhia de Jesus e as áreas

atingidas pelas grandes marés.

Figura 4

6 É um dos registros urbanísticos mais antigos da cidade de Belém (1751) e nos mostra, à direita e à frente, a

igreja e o Colégio jesuítico de Santo Alexandre, ainda hoje existentes. Mais ao fundo, na mesma direção,

indicado pela letra A, está o Palácio do Governador. No centro do desenho, aparece a vala que permitia a

drenagem do alagado do Piri, que se formava nos meses de março a setembro. Essa área foi aos poucos

conquistada com aterros, sendo ocupada no início do século XIX. Mas, na época da elaboração dessa imagem, o

governo português tinha em vista uma reutilização dos terrenos próximos ao Colégio dos Jesuítas, com os quais

já se estabelecia uma situação de conflito. Fonte: http://www.sudoestesp.com.br/file/colecao-imagens-periodo-colonial-para/679/. Acessado em 12/07/2014.

1751 - Planta da Praça da Cidade de Belém do Pará

Fonte: Original manuscrito da Mapoteca do Itamarati

(Ministério das Relações Exteriores), Rio de Janeiro.

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1753 - Planta Geométrica da Cidade de Belém do Grão Pará. Tirada por

Ordem De S. Ex.Ca O S.R Don Francisco Xavier de Mendonça Furtado,

Capitão General e Governador do mesmo Estado.

Fonte: Original manuscrito da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

Figura 5

Figura 6

“Planta da Cidade de Belém, Capital do Estado do Grão Pará, e do que se tem

projetado para se fortificar a sua Marinha” por Governador Manoel Bernardo

de Mello de Castro. Fonte: Original manuscrito do Arquivo Histórico do Exército, Rio de

Janeiro.

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Figura 7

Em 1753, o engenheiro militar alemão João André Schwebel traça, em companhia da

Comissão Demarcadora, o segundo mapa de Belém, intitulado “Planta Geométrica”7,

abrangeu toda a região metropolitana, o que, para Moreira (1989), mereceria ganhar o status

de primeira planta oficial da cidade.

O próximo mapa de Belém, datado em 1761, não possui autoria, provavelmente de um

dos companheiros de trabalho de Schwebel. Tem-se conhecimento que foi solicitado pelo

Governador Manoel Bernardo de Melo e Castro, o mapeamento tinha como objetivo a defesa

da cidade frente às ameaças constantes, sobretudo da Guiana Francesa, surgindo assim a

necessidade de mapear os pontos estratégicos para a criação de uma política de defesa da

região. O anseio em defender o território é expresso até mesmo na denominação do mapa,

“Planta da Cidade de Belém, Capital do Estado do Grão Pará e do que se tem projetado para

se fortificar sua marinha”8.

7 Nessa planta de Belém, já podemos ver os dois bairros da cidade, sendo à direita o mais antigo, conhecido

como 'Cidade', com área inundável ao fundo e a vala de drenagem do alagado do Piri, na faixa ao seu lado. À

esquerda, vemos o bairro da 'Campina'. Este exemplar é parte do acervo da Biblioteca Nacional no Rio de

Janeiro, mas existe uma planta idêntica em Lisboa. Fonte: http://www.sudoestesp.com.br/file/colecao-imagens-

periodo-colonial-para/679/. Acessado em 12/07/2014. 8 Executada durante o governo de Manoel Bernardo de Melo e Castro, essa planta data provavelmente de 1761.

Podemos notar que repete os elementos contidos naquela, que provavelmente serviram de base para sua

elaboração. Apresentam algumas diferenças, correspondentes a ampliações e aperfeiçoamentos executados

Proposta de aprofundamento da área do alagado do Piri, para transformá-lo em um

lago permanente, contornando e protegendo a área fortificada pelo lado leste.

Autor: Gaspar João Geraldo de Gronsfeld.

Fonte: Original manuscrito do Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa.

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Sendo assim, o mapa de 1761 veio acompanhado da preocupação em preparar uma

série de projetos cartográficos visando, conforme observado anteriormente, a defesa do

território. Os projetos foram organizados pelo também engenheiro militar alemão João

Geraldo de Gronfeld, o mesmo que, tempos depois, apresentou ao Governador Francisco da

Costa de Ataíde Teive o projeto de transformar Belém numa Veneza, utilizando o Piri e

outros cursos de águas que a ele seriam interligados.

Após os mapeamentos de Gronfeld, encontramos, em 1784, a cartografia feita pela

expedição científica naturalista batizada de “Viagem Filosófica”, de Alexandre Rodrigues

Ferreira, que tinha como objetivo pesquisar os recursos naturais da região. Por seus objetivos

distintos dos outros mapeamentos até aqui citados, a sua marca reside no legado científico

deixado.

O encerramento do Ciclo das demarcações cartográficas de Belém ocorre em 1791,

com o “Plano Geral da Cidade do Pará” feito pelo engenheiro militar Teodósio Constantino

de Chermont. É considerado o mapa mais minucioso do século XVIII. Fecha-se um momento

da história cartográfica de Belém produzida especialmente por profissionais que tiveram parte

na delimitação das fronteiras.

O período compreendido entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do

século XIX apresenta escassez de cartografias. Para Moreira (1989), o fato talvez possa ser

explicado pelos extravios ou omissões das fontes de dados. Ainda segundo o pesquisador,

apenas na segunda metade do século XIX, com o crescimento e a modernização da cidade de

Belém, surgem novamente os impulsos para as produções cartográficas.

A relevância das cartografias organizadas no decorrer dos tempos está diretamente

ligada ao desejo presente e universal de referendar o espaço e organizar o ambiente vivido,

pois, ao mapear os grupos, delimitam, demarcam suas territorialidades. Desta forma, ocorre a

apropriação. Representações do espaço advindas de olhares parciais, conforme admoestado

por Fares (2008, p.25): “O mapa iconiza o espaço, mas a imagem construída não é igual ao

que representa, e com frequência só representa parte de um elemento determinado. Implica,

pois, num sistema semiótico complexo”. A compreensão da premissa aqui apresentada ajuda-

nos a ampliar o entendimento dos contextos em que se erguem as cartografias no decorrer da

história humana.

durante os oito anos de diferença entre ambas. Facilmente observáveis são as mudanças junto às margens do rio,

sendo de se destacar um recorte junto ao canal de drenagem do alagado do Piri, um trapiche para desembarque

de mercadorias, pouco à esquerda. Na mesma direção e mais adiante, após o forte das Mercês (indicado com a

letra C no desenho de 1753), há uma série de construções instaladas em aterros, sobre o rio, inclusive uma ponta

fortificada, na extremidade, que avança sobre o rio. Pequenas diferenças, do mesmo porte, podem ser observadas

nas outras extremidades da cidade.

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O breve percurso histórico do ciclo das demarcações na cidade aqui exposto revela as

transformações, os avanços e os recuos no espaço geográfico. Sendo assim, é a própria

história da cidade contada através dos mapas. Cabe a nós questionarmos: Qual o olhar que os

traçados cartográficos aqui expostos trazem? Que interesses, tensões e complexidades vêm

acompanhadas de seus nascimentos? É possível traçar na atualidade um mapa a partir do olhar

dos sujeitos amazônicos, das histórias narradas pelos habitantes e do seu entorno?

2.3. Belém adornada: guirlanda de ilhas

Pizarro (2012) inaugura seu livro Amazônia: as vozes do rio com o relato do século

XVI de José de Acosta trazendo o rio como presença forte:

Mas, tratando-se de rios, com razão se fala daquele rio sobre todos os demais, que

uns chamam das amazonas, outros Marañón, outros o rio de Orellana, o qual

acharam e navegaram nossos espanhóis, e tenho minhas duvidas se devo chama-lo

rio ou mar. Corre este rio a partir das serras do Peru, das quais recebe grande

imensidão de águas, das chuvas e dos rios, que vai guardando em seu leito, e

passando os grandes campos e planícies do Paytiti, do Dorado, das Amazonas, chega

por fim ao oceano, onde entra quase na fronteira das ilhas Margarita e Trinidad. Mas

vão tão alargadas suas ribeiras, especialmente na ultima parte onde se formam

muitas e grandes ilhas, o que parece incrível, que quem vai pelo meio do rio só

consegue ver céu e rio, e dizem que mesmo os montes mais altos próximos a suas

margens são encobertos pela grandeza do rio (ACOSTA apud, PIZARRO, 2012,

p.18).

Ao esclarecer a escolha pelo relato de Acosta, Pizarro usa o termo “geografia das

águas” para mostrar a imensidão de furos, igarapés, lagos, afluentes por onde passaram os

primeiros navegantes e que foram impulsionadores da construção de seus olhares sobre a

região. No olhar estrangeiro, a riqueza de recursos hídricos representou uma das grandes

marcas deste espaço em “... que quem vai pelo meio do rio só consegue ver céu e rio...”

(reiterando Acosta, anteriormente citado). A imensidão da bacia hidrográfica amazônica faz

parte do modo de ser e estar dos habitantes. Ao longo dos séculos, os caminhos das águas

foram constituintes na relação do homem com seu meio, são um dos elementos balizadores da

construção das identidades e culturas aqui encontradas.

La Condamine, ao chegar a Belém (refere-se em seus escritos como a cidade do Pará),

depara-se com uma cidade posicionada na confluência de muitos rios, segundo reza o relato

de viagem:

É na borda oriental de Moju que está situada a cidade do Pará, imediatamente abaixo

da foz do rio Capim, que acaba de receber outro, chamado Guamá. Só a visão de um

mapa pode dar uma ideia precisa da posição dessa cidade, na confluência de tantos

rios, e mostrar que não é sem motivo que seus habitantes estão muito longe de

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imaginar na margem do Amazonas, do qual nem uma só gota, aparentemente, banha

o sopé das muralhas de sua cidade; mais ou menos como se pode dizer que as águas

do Loire se comunicam com o Sena pelo canal de Briare. Com efeitos, há motivos

para crer que a grande quantidade de águas correntes que separam a terra firme do

Pará e a ilha de Joanes não ficaria sensivelmente diminuída se a comunicação dessas

aguas com o Amazonas fosse interceptada pela obstrução ou o desvio do pequeno

braço desse rio, que vem tomar posse, por assim dizer, de todos esses rios, fazendo-

os perder seus nomes. Admite-se que tudo isto não passe de uma questão de nome; e

não deixarei de dizer, para me adaptar à linguagem aceita, que o Pará está na foz

oriental do rio Amazonas: basta ter explicado como isso deve ser entendido (LA

CONDAMINE, 1992, p.97).

Portanto, Belém, enquanto cidade do estuário amazônico, tem seu cotidiano

influenciado direta ou indiretamente pelo curso das águas. Vejamos a seguir a presença do rio

na cidade.

Belém, capital do Estado do Pará, atualmente com sua população de quase dois

milhões de habitantes (IBGE), está localizada a 01º 27’20” de latitude Sul e 48º30’15” de

longitude W-Gr, situa-se no delta9 do rio Amazonas, na junção entre os rios Pará e Guamá. A

localização geográfica de Belém abriga em sua dimensão, aproximadamente, 43 ilhas, apenas

34,36% compreende a área continental, as outras 65,64%10 fazem parte da área insular, os rios

margeiam a cidade que vive sob o signo das águas. Diariamente, um significativo número de

habitantes das ilhas faz a travessia rumo à cidade para abastecê-la com os produtos que se

entrecruzam entre as duas realidades. Um complexo contorno cartográfico quase sempre

despercebido pelos habitantes da Belém urbana. Segundo Eidorfe Moreira (1989, p.157),

É digno também de nota que as ilhas que defrontam com Belém não se acham

isoladas, mas dispostas à semelhança de uma guirlanda envolvendo parte da cidade,

o que lhes reforça os efeitos cênicos em termos geográficos. Das mais próxima para

as mais distante, rumo ao Norte as mais importantes desse grupo são as seguintes:

Ilha das Onças, Arapiranga, Longa, dos Patos, Urubuoca, Jararaca, Paquetá-mirim,

Paquetá-açú, Jutuba, Cutijuba e Tatuoca. Algumas dessas ilhas sofreram

modificações toponímicas, umas leves, outras radicais, razão por que nem sempre

concordam os mapas e compêndios corográficos a respeito dessa toponímia.

Ainda com Eidorfe Moreira (apud, MARANHÃO, 2000, p.44-45), encontramos a

presença do rio na cidade de Belém:

Num sentido mais restrito e particular, “rio” designará também a Baía de Guajará e o

Rio Guamá, pelas suas relações mais diretas e imediatas com a cidade. Desses dois

acidentes hidrográficos a baía é o que mais tem influído na vida da cidade. Do seu

9 Em geografia, designa-se por delta a foz de um rio formada por vários canais ou braços do leito do rio. Esse

tipo de foz é comum em rios de planícies, devido à pequena declividade e, consequentemente, à pequena

capacidade de descarga de água, o que favorece o acúmulo de areia e aluviões na foz do rio.

Fonte: Enciclopédia On-line Wikipédia. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Delta. Acessado em

Fevereiro de 2015. 10

Fonte: Companhia Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém - CODEM

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lado estão a zona comercial e fabril, o porto e a base naval. O próprio crescimento

da urbe se faz sentir mais ativamente desse lado do que do lado do Guamá.

(...) complexa e variada é a moldura hídrica de Belém. Nessa moldura coexistem rio,

baía e estuário, compondo um soberbo e grandioso estendal de aguas. Sem exagero,

pode-se dizer que nenhuma cidade do Brasil se mostra tão portentosa e interessante

sob o ponto de vista hidrográfico. A água figura aí como peça fisiográfica e como

elemento cênico, como moldura e como agente modelador.

Tanto geográfica como historicamente, a cidade floresceu em função da agua. “Flor

das águas” – eis uma antonomásia que se ajustaria muito bem à capital paraense, tal

significação do elemento hídrico na sua vida.

Figura 8 – Imagem aérea da cidade de Belém

Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1432600

Figura 9 – Rio Guamá, entre Belém e a Ilha do Combu, à direita.

Fonte: Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1432600

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A “Flor das águas”, “moldura hídrica” e “cidade-chave”, “cidade-síntese”, “cidade-

símbolo”, “a capital da fluviocracia”, as nomenclaturas atribuídas à cidade por Moreira são

frutos de sua localização geográfica, um importante traço característico da cidade de Belém:

Belém não é somente a capital de um Estado brasileiro, mas também a capital

natural da maior região ou unidade fisiográfica do continente e como tal a “cidade-

chave”, a “cidade-síntese” e a “cidade-símbolo” da Amazônia.

Embora repartida entre vários países, a bacia do Rio Amazonas tem seu ponto de

convergência e de gravitação em Belém, que por isso mesmo se tornou o centro de

captação politica e econômica de toda essa imensa bacia. Quando não efetiva,

virtualmente pelo menos, as “Amazônias”, da Bolívia, do Peru, do Equador e da

Colômbia se acham por força disso sob a influência da capital paraense.

Na qualidade de capital dessa fluviocracia, a sua área de influência e de captação

suplanta, em termos hidrográficos, a de qualquer outra cidade do país e do

continente, o que importa em dizer que Belém é a capital natural da maior parte do

Brasil e da América do Sul (MOREIRA apud MARANHÃO, 2000, p.122-123).

A cidade possui uma singular caracterização de seu território, com o corpo hídrico

superior às terras continentais. Conforme observado, a riqueza de sua localização é notada nos

aspectos, geográfico, econômico, no clima, na vegetação. Esta última possui uma distinção

interessante, as florestas encontradas em Belém são ombrófilas, termo grego que significa

gosta de água ou amigo das chuvas, certamente a influência das águas na capital do Pará

possui presença marcante.

Edna Castro (2006) apresenta-nos o desenho da Belém urbana demarcado pelo curso

das águas, uma cidade fluvial margeada pelos rios que compõem o estuário amazônico,

peculiar traço encontrado nos lugares em que o rio marca sua presença, determinantes para a

(re)criação tanto dos bens materiais quanto dos simbólicos. Os portos assumem nesta

perspectiva o espaço do encontro da integralização entre as pessoas, fios de saberes que

compõem as teias culturais amazônicas. Não é somente o lugar da comercialização, da troca

das mercadorias, por lá circulam a diversidade humana:

Uma extensa rede de rios e igarapés drena a cidade, compondo um fluxo de

travessia e de escoamento das águas provenientes das chuvas. Ao norte, ela

está voltada para a baía do Guajará e ao sul para o rio Guamá, tendo assim

uma extensa orla densamente ocupada, onde encontramos diferentes usos:

portos, trapiches, indústrias, comércios, turismo, instalações militares e

administrativas. Dezena de pequenas e médias serrarias alinham-se lado a

lado na Estrada Nova, misturando-se a fábricas de castanha, de palmito, de

tecelagem e metalúrgicas que recebem a matéria-prima dessa região do

estuário.[...] Nos diversos portos localizados na orla de Belém, Ver-o-Peso,

Porto da Palha, Porto do Sal, Genipapo, Vila da Barca, Mata-fome, Icoaraci e

Maguari, entre outros –, as atividades industriais e de comércio são intensas.

Esses portos ainda tem, como tiveram no passado, significado na relação

entre Belém e as vilas e cidades ao seu redor (CASTRO, 2006, p.14-15).

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A dinâmica da cidade de Belém e dos demais municípios que se localizam às

proximidades é pautada na relação com os rios, e assim criam uma conexão entre eles através

dos portos, comunicação cotidiana que se insere na sustentabilidade da economia, nas

atividades sociais e culturais.

O modo de vida das populações das cidades amazônicas possui como característica a

diversidade, as trocas econômicas, culturais, sociais etc., que são efetivadas diariamente

através dos caminhos do rio, o ir e vir das embarcações provoca a tessitura da rede complexa

de vida da Amazônia.

Por estar estrategicamente posicionada entre portos e trapiches, a cidade se vê como

ponto de circulação de bens materiais e simbólicos, como a metrópole da Amazônia. Belém

acaba sendo o lugar dos encontros, das confluências. Dessa forma, a história da cidade nasce e

tem continuidade a partir de grupos heterogêneos:

A cidade é o retrato em movimento de diferentes atores – é um lugar de sujeitos que

reconstroem suas trajetórias, mas na relação com os lugares de origem que pode ser

uma outra cidade, as ilhas, ou as áreas rurais.[...] De certa forma tem sua história

escrita também por esses personagens que transitam, que se movem entre os portos

localizados, de uma margem a outra, dos rios que trafegam dos rios que trafegam, e

que religam o mundo paradoxalmente de fora e de dentro, das áreas rurais e da

cidade, confundindo-os na diversidade desses espaços. O transito através desse

mundo das aguas, dá uma particularidade às relações e à experiência social. Os

pequenos portos de Belém, espalhados e contornando essa quase península que

desenha sua orla abrigam um sem numero de trabalhadores chegados das ilhas ou de

lugares entre rios e furos, em suas proximidades. Ou ainda viajantes de lugares mais

distantes, descendo o rio Amazonas e seus afluentes ou pela sua embocadura

(CASTRO, 2006, p.32).

Em Belém, atualmente, encontra-se a maior concentração demográfica de toda a

região amazônica, migração intensificada a partir de 1960, com a implantação de políticas de

desenvolvimento que atraíram os olhares para a cidade. O aumento populacional intensificado

ocasionou vários problemas, e o crescimento desordenado da cidade trouxe suas mazelas

percebidas nas cidades com grandes índices demográficos. No entanto, na capital do Pará

ainda há recantos pouco ocupados, os que compreendem a região insular, mesmo as ilhas

mais próximas à parte continental, onde a travessia é feita em média de 15 a 20 minutos, e a

população é deveras menor em comparação aos números urbanos. Muitos dos moradores da

Belém urbana desconhecem a existência e especialmente o cotidiano das ilhas que compõem

sua geografia.

Moreira (1989) já havia anunciado a falta de conhecimento e interesse por parte dos

pesquisadores em trazer para seus objetos de estudo as ilhas que compõem a cidade de Belém.

Para desconstruir tal imagem, Moreira acrescenta o aspecto histórico. Duas ilhas, Tatuoca e

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Arapiranga, foram, no período da Cabanagem, sede política da Província e quartel-general da

ofensiva aos cabanos. O estudioso enumera alguns pontos relevantes, tais como: produção

agrícola, caça e pesca, atividades oleiras, fins recreativos e a construção de educandários.

O rio dita um ritmo próprio, cadenciado pelo fluxo das marés, na partida e chegada das

embarcações, o diálogo com as águas se faz presente além das relações econômicas. Loureiro

(1995, p.121) traz a presença do rio como elemento rítmico ao cotidiano das populações

ribeirinhas, pois

dele dependem a vida e a morte, a fertilidade e a carência, a formação e a destruição

de terras, a inundação e a seca, a circulação humana e os bens simbólicos, a política

e a economia, o comercio e a sociabilidade: o rio está em tudo.

A rede de símbolos e significados tecidos pela relação do homem com o fluxo das

águas revela-nos o modo de vida das comunidades através das práticas educativas e dos

saberes do cotidiano, tão necessárias para a compreensão dos aspectos culturais das

populações amazônicas.

Figura 10 – Mapa dos bairros da cidade de Belém

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2.4. Ilha Grande

No percurso dos rios que banham Belém, aportamos na comunidade ribeirinha da ilha

Paulo da Cunha Grande, mais conhecida como Ilha Grande, às margens do rio São Benedito.

Ela ocupa 929,16 ha., está situada a 12,2 km ao sul de Belém11

, à margem esquerda do rio

Guamá. Sua população é estimada em cerca de 400 habitantes divididos aproximadamente em

70 famílias. O acesso a Ilha Grande é feito por barcos dos moradores da própria ilha quando

vão comercializar seus produtos no Porto da Palha, no bairro da Condor. A travessia entre o

Porto da Palha e a Ilha Grande dura cerca de 40 minutos.

Figura 11 – Localização geográfica da Ilha Grande (mapa 01)

Figura 12- Localização geográfica da Ilha Grande (mapa 02)

11

Fonte: Companhia Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém – CODEM.

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Segundo informações obtidas no Projeto Politico-Pedagógico de uma das escolas da

ilha, em que, mais adiante no texto, iremos aportar, encontramos o relato da situação da Ilha

Grande mediante os órgãos públicos como o IBGE e o INCRA:

A ilha foi considerada propriedade particular, até 1998. Atualmente, segundo

informações do (IBGE, 2006), continua registrada com o nome de Ilha Paulo da

Cunha.

Esse nome, segundo moradores, não tem relação com o antigo “proprietário” da

ilha, pois o mesmo se chamava Salomão Nonato de Araújo e que segundo alguns

relatos este senhor Salomão comprou a ilha de um estrangeiro e talvez esse nome

tenha alguma relação com esse estrangeiro. Embora esta área seja de propriedade da

União.

Atualmente o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em

parceria com a Gerência do Patrimônio da União (GRPU), estão realizando reuniões

na ilha para cadastrá-los e, consequentemente, distribuir títulos de permissão de

moradia para cada família, residente na ilha. As reuniões também tinham como

objetivo, conscientizar os moradores da comunidade ribeirinha sobre a

responsabilidade quanto ao uso, cuidado e zelo na preservação do meio ambiente

colaborando assim com a dimensão cultural do país com as vidas das pessoas. Cada

morador será responsável por um pedaço de terra na ilha (Projeto Politico-

Pedagógico da Unidade Pedagógica São José, 2009-2011).

Os habitantes da Ilha Grande vivem basicamente da produção do açaí, da pesca e da

extração de outros produtos frutíferos como o cupuaçu, a pupunha e o cacau. Diariamente, os

moradores fazem a travessia para abastecer a cidade.

Figura 13 – Caminhos do rio que levam à Ilha Grande

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Figura 14 – Caminhos na Ilha Grande

Figura 15 – Porto da escola

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Conhecimentos sobre o cotidiano amazônico fazem parte do modo de vida da

comunidade. As marés lançantes12, a safra do açaí, o tempo das fortes chuvas, o período de

proliferação de carapanãs13 refletem na relação do homem com o meio, alteram e influenciam

o movimento diário. Tais práticas fundamentam as representações sociais nas quais os

indivíduos lançam o sentido de suas existências, criando e recriando temporalidades, espaços,

culturas.

Esses saberes são quase sempre expressos na oralidade. A trama de símbolos e

sentidos que representam as histórias é experiência de comunicação entre grupos. Sendo

assim, é experiência de cultura mediada pela voz. Segundo Zumthor (1997, p.139), “A voz

poética assume a função coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social não poderia

sobreviver”. Cada grupo possui um acervo de narrativas que são repassadas de boca em boca,

como registro, testemunho, da maneira de se colocar no mundo. Ouvir tal acervo envolve a

percepção da complexidade, das tensões em se ver a história a partir de outra ótica, um

movimento das margens para o centro, aprender com a escuta dos sujeitos. “Com a palavra, o

homem se faz homem. Ao dizer a sua palavra, pois, o homem assume conscientemente sua

essencial condição” (FREIRE, 1987, p.13).

2.5. Multiculturalismo crítico e educação: trama de símbolos e sentidos na Ilha

Grande

A embarcação que nos conduz nas travessias rumo à Ilha Grande aporta na instituição

escolar. A necessidade sentida para o desembarque no trapiche da escola deve-se à vivência

da pesquisadora com a instituição escolar, enquanto servidora da Secretaria Municipal de

Educação de Belém.

O cerne da pesquisa não reside nas discussões de cunho pedagógico, no sentindo de

buscar as vozes dos teóricos da educação. Mas, ao afirmar “A educação como cultura”, como

fez Brandão (2002), e conceber o conhecimento enquanto possibilidade rizomática, conforme

Deleuze e Guattari (1995), estamos nos colocando abertos e dispostos ao enredamento na teia

de saberes e práticas educativas da Ilha Grande com todos os seus pontos de nutrição. E a

escola é um dos pontos do fluxo de retroalimentação!

Aportamos na instituição escolar. A Ilha Grande possui duas escolas sob a

responsabilidade da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Belém. As escolas são

12

Marés grandes de intenso movimento, dificultando a navegação de pequenas embarcações. 13

Ocorre no período de agosto a dezembro.

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denominadas de Unidades Pedagógicas São José e Nazaré, administrativamente vinculadas à

escola-sede Sílvio Nascimento, localizada no bairro da Condor, parte continental da cidade. A

proposta curricular é demandada pela Secretaria de Educação, o corpo docente, em sua

maioria, é composto de moradores da ilha, exceto a coordenadora pedagógica, as professoras

de arte e educação física. O atendimento escolar compreende os níveis da Educação Infantil e

Ensino Fundamental do 1º ao 5º ano.

Os prédios das duas unidades pedagógicas são da comunidade, necessitam de reforma,

implantação de equipamentos e adaptações para abrigar os espaços da biblioteca, refeitório,

sala dos professores, sala da coordenação pedagógica, depósito etc.

O deslocamento de alunos e professores é feito através de cinco barcos que

diariamente fazem o percurso da Praça Princesa Izabel até a ilha, parando em determinados

pontos para receber e conduzir os alunos que muitas vezes são moradores dos Furos14

do

Bijogó e Guarapiranga15

e precisam viajar de canoa até o trapiche para então embarcar no

transporte escolar disponibilizado pela Secretaria de Municipal de Educação.

Segundo o Caderno de Educação 01, da Secretaria Municipal de Educação de Belém

(2011, p.50),

A história da educação na ilha começa com a professora Maria José desde quando

ela ministrava aula em sua casa e recebia seus proventos do seu Salomão, dono da

ilha. Nesse meio tempo foi construído um barracão que servia tanto de escola como

de centro comunitário, sob o domínio da prefeitura do município do Acará. Em

2002, após reinvindicação da comunidade, foi construída a UP [São José] e a ilha

passou para a jurisdição do município de Belém.

Inicialmente, a escola da professora Maria José atendeu os chamados do então dono da

ilha, Sr. Salomão, após um tempo passou a ser parte do domínio do município de Acará, e

quando, por fim, passou para ser coordenada pela SEMEC/Belém, algumas reorganizações

administrativas e pedagógicas trouxeram significativas mudanças.

14

Furo, na região amazônica, é o nome dado á um espaço navegável que corre entre as árvores e serve

de comunicação entre dois rios. Fonte: http://www.dicionarioinformal.com.br/furo/. Acesso: 17/08/2015. 15

Para localização dos Furos do Bijogó e Guarapiranga, ver figura 10.

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Figura 16 – Localização da Unidade Pedagógica São José

Fonte: Caderno de Educação da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Belém.

Ao acessar o Projeto Politico-Pedagógico/PPP da Unidade Pedagógica São José,

construído com a participação da escola e da comunidade, encontramos palavras reveladoras

do desejo em conectar os fios que compõem o rizoma da Ilha Grande:

A UP não pode ser uma instituição isolada em si mesma, mas integrada e em

interação com a vida social de sua comunidade e do meio que a cerca.

Educadores e educados precisam engajar-se social e politicamente, percebendo as

possibilidades da ação social e cultural na luta pela transformação das estruturas

sociais. Para isso, antes de tudo necessitam conhecer a sociedade em que atuam, e o

nível social, econômico e cultural de seus alunos e alunas.

É preciso considerar finalmente a prática pedagógica, mais especificamente a UP na

qual trabalhamos. Para isso precisamos fazer uma reflexão sobre o exercício da

prática docente, revendo a realidade, buscando alternativas para alcançar a escola

ideal, pois a real ainda tem muito a ser feita. Expectativas, curiosidades, vontade de

crescer e mudar, são sentimentos que afloram nesse momento quando pensamos em

uma educação de qualidade para nossos educandos e para que isso acorra

precisamos entrelaçar a UP e a comunidade uma vez que sem a comunidade não há

UP.

O PPP da Unidade Pedagógica preocupa-se em legitimar o diálogo entre escola e

comunidade. Em vários trechos do documento, como anteriormente citado, encontramos

textos que expõem o desejo de religação. A escola está atenta ao movimento de sair de seus

“muros” e ouvir as vozes da comunidade a fim de obter subsídios para compreender o

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contexto em que a UP encontra-se inserida ao perceber as relações estabelecidas entre os

saberes locais e as práticas educativas sem desvincular do fazer cotidiano da escola.

A construção curricular de uma escola que tem seus fios enredados com a comunidade

alimenta-se com os saberes que margeiam a instituição escolar e, por tantas vezes, são

invisibilizados ou silenciados quando passam pela porta da frente da escola. O autor apresenta

o espaço escolar enquanto possibilidades de trocas simbólicas ao dizer que:

a escola é um território de luta e que a pedagogia é uma forma de política cultural.

Em ambos os casos, querendo defender o argumento de que as escolas são formas

sociais que ampliam as capacidades humanas, a fim de habilitar as pessoas a intervir

na formação de suas próprias subjetividades e a serem capazes de exercer poder com

vistas a transformar as condições ideológicas e materiais de dominação em praticas

que promovam o fortalecimento do poder social e demostrem as possibilidades da

democracia. Queremos argumentar a favor de uma pedagogia critica que leve em

conta como as transações simbólicas e materiais do cotidiano fornecem a base para

repensar a forma como as pessoas dão sentido e substancia ética às suas experiências

e vozes. Não se trata de um apelo a uma ideologia unificadora que sirva de

instrumento para a formulação de uma pedagogia critica; trata-se, sim, de um apelo a

uma política da diferença e do fortalecimento do poder, que sirva de base para o

desenvolvimento de uma pedagogia critica através das vozes e para as vozes

daqueles que são quase sempre silenciados. Trata-se de um apelo para que se

reconheça que, nas escolas, os significados são produzidos pela construção de

formas de poder, experiências e identidades que precisam ser analisadas em seu

sentido politico-cultural mais amplo (GIROUX e SIMON, 2013, p.109-110).

Essas vozes relegadas ao ostracismo encontram ressonância nos debates do

multiculturalismo crítico que tem seus pés plantados nos movimentos sociais dos anos de

1960 e 70, nas lutas dos grupos excluídos, particularmente nos movimentos étnicos dos

Estados Unidos, pela garantia da igualdade de direitos e da justiça social. Eis o diferencial do

multiculturalismo crítico, seu nascimento nas bases sociais e não nas instituições acadêmicas,

sua entrada na universidade vem se dando gradualmente.

O multiculturalismo crítico será estudado a partir das reflexões apresentadas por Peter

McLaren, pesquisador canadense, radicado nos Estados Unidos, docente da Universidade da

Califórnia. O autor tem como cerne de seu trabalho o multiculturalismo crítico e a pedagogia

de resistência, a ele cabe o mérito de ajudar na divulgação das ideias de Paulo Freire no

exterior.

Seu estudo por e com a educação de resistência tem início ainda no Canadá, ao

trabalhar nas escolas periféricas da cidade de Toronto com alunos filhos de imigrantes de

diversas nacionalidades. Tal contato marcou profundamente sua práxis, as heterogêneas

experiências vivenciadas ajudaram-no nas reflexões acerca de uma pedagogia de resistência e

transformação.

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McLaren (1997) traz para reflexão as ramificações do multiculturalismo. Embora

procure analisar e colocar no campo do debate as formas de poder, seus representantes

acabam afirmando a dominação ao deixarem escapar, em meio aos intermináveis debates

estéreis e distantes da vida, que pulsa fora dos muros das instituições a práxis de libertação.

Tal olhar é consonante com a proposição de Freire ao dizer que:

Se antes a transformação social era entendida de forma simplista, fazendo-se a

mudança, primeiro das consciências, como se fosse a consciência, de fato, a

transformadora do real, agora a transformação social é percebida como processo

histórico em que subjetividade e objetividade se prendem dialeticamente (FREIRE,

1992, p.30).

Como educar sem problematizar o papel da escola frente ao escamoteamento e à

banalização feita pelo capitalismo neoliberal amplamente utilizado e aceito na atualidade,

como o significado de democracia, o culto heroico do modernismo ao homem branco detentor

de amplos poderes e privilégios, na passividade dos intelectuais livre-flutuantes, que falham

ao negarem a necessidade de trazer para os debates as relações materiais e as experiências

vividas pelos grupos excluídos e silenciados? Cabe aqui mais um questionamento: De que

lugar falamos enquanto educadores? Embora muitos analisem, problematizem as formas de

poder, opressão, o capitalismo ocidental, a cultura de massa, falha-se ao ancorar na

superficialidade, no que McLaren (1997, p.67) denomina de pós-modernismo lúdico, ou “a

um relativismo epistemológico que demanda uma tolerância por uma gama de significados

sem defender nenhum deles”. Sendo assim, as ideologias, a essencialização da diferença, o

pensamento ocidental binário (branco-preto, bom-ruim, razão-emoção, teoria-prática etc.)

continuam sendo perpetuados.

Como forma de crítica e superação ao pós-modernismo lúdico, o pós-modernismo de

resistência avança ao ver a diferença permeada de embates históricos e sociais, na luta de

classes, e para tal necessita de estratégias que possibilitem a resistência e a reversibilidade dos

grupos excluídos. Para McLaren, não basta discutir, problematizar, as questões de inclusão e

exclusão social, há de se criar estratégias para uma relação crítica a respeito de dominação:

O pós-modernismo de resistência traz a crítica lúdica uma forma de intervenção

materialista uma vez que não está somente embasado em uma teoria textual da

diferença, mas em vez disso, em uma teoria que é social e histórica. Desta maneira a

crítica pós-moderna pode servir como uma crítica intervencionista e transformadora

da cultura (MCLAREN, 1997, p.67-68).

A escola confronta-se urgentemente com a necessidade de superar o modelo

multicultural liberalista, que trata de forma homogênea e harmoniosa as diferenças, e assume

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uma abordagem multiculturalista crítica, que não negue as contradições, que questione os

interesses ideológicos construídos a partir das metanarrativas, dos grandes discursos, que

sugerem uma única verdade ou concepção, como, por exemplo, a metanarrativa trazida pelo

iluminismo de que a razão, o progresso científico e tecnológico conduziriam a humanidade à

emancipação e à felicidade. Cabe à escola problematizar os discursos que chegam sob a égide

dos consensos universais, propondo a reescrita das narrativas dominantes.

Hall (1991, apud MCLAREN, 1997) diz que, para nos posicionarmos, é necessária a

descoberta do que ele chama de “etinicidades emergentes”, que estão proporcionalmente

atreladas ao reconhecimento das nossas próprias histórias, contar e ouvi-las envolve a

complexidade de relações construídas a partir das tradições e heranças, que expressam as

culturas:

– as etinicidades emergentes – têm uma relação com o passado, mas é uma relação

que se dá parcialmente através da memória, parcialmente através das narrativas, é

uma relação que tem que ser recuperada. É um ato de recuperação cultural (HALL,

1991, apud MCLAREN, 1997, p.18-19).

Desconstruir as metanarrativas através da partilha das histórias marginalizadas e

deixar que as narrativas que circundam a escola sejam ouvidas e contadas pelos estudantes

são tarefas de um currículo multiculturalista, oriundo da Pedagogia de resistência

comprometida com a luta contra a opressão, partindo da prática pedagógica que permita a

problematização das relações cotidianas com os processos ferozes de globalização, a ligação

dos fios que compõem a teia de saberes locais com o currículo escolar.

O currículo tradicional e seletivo, na maioria das vezes, ancora-se no livro didático

como norteador da organização dos conteúdos, com a percepção e a contextualização

distantes da realidade local e mais apropriados ao eixo sul-sudeste, no caso específico do

Brasil, imagens e textos que não contemplam a diversidade brasileira, carregados de

ideologias, centrismos e relativismo epistemológico.

Um currículo multicultural crítico envolve mais do que textos, imagens, cálculos,

datas, medidas, vocabulários etc. É embasado em referenciais ontológicos, filosóficos e

epistemológicos que vão além dos conteúdos escolares. Este currículo traz para o círculo de

debate as situações problemas vividas e percebidas pela comunidade local e pela totalidade, e,

através das constantes problematizações feitas, favorece o questionamento das posições

dominantes e a prática da transformação das relações sociais.

Vivenciar novos modos de existência na construção do currículo escolar requer, como

observamos nas reflexões aqui expostas, a indissociabilidade entre intervenção e libertação,

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em oposição aos pressupostos científicos positivistas, rigorosos, objetivos e neutros. O

educador crítico preocupar-se-á não apenas com os o repasse de conteúdos, mas também com

o processo e com os desdobramentos dele, preocupação pertinente apresentada por McLaren

ao chamar atenção de educadoras e educadores a estarem porosos ao mundo que os cerca,

rejeitando toda e qualquer forma de homogeneização tão apreciada nas práticas neoliberais.

Essas chegam até nós com a capa de multiculturalismo, mas precisam ser alvo de atenção por

nossa parte, caso não queiramos continuar legitimando o modelo opressor de concentração de

riqueza, “centrismos” e desintegração moral tão comum na atualidade.

Um enfoque sobre as relações materiais e globais de opressão pode nos ajudar a

evitar a redução do “problema” do multiculturalismo a simplesmente uma questão,

atitude ou estado de espírito, ou como no caso da academia, a um caso de

discordância textual, ou guerra de discursos. Também ajuda a enfatizar o fato de

que, aos EUA, a poção mágica chamada “multiculturalismo” que tem resultado em

uma busca retórica pela igualdade e pela mistura política do caldeirão, que há muito

vem cozinhando, tem produzido uma aversão, em vez de respeito com a diferença

(MCLAREN, 1997, p.59).

Embarcar nas águas do multiculturalismo crítico envolve a predisposição ao fazer, ao

engajar-se nas lutas pela transformação, pela cidadania híbrida e pela solidariedade tão

necessária aos que ousam fazer a travessia sem medo das intempéries, sabendo que elas são

indispensáveis para compreendermos os espaços de tensões e negociações entre as culturas.

A convocação da Pedagogia de resistência aos educadores e educadoras é a de orientar

para a busca de um mundo mais justo, onde a opressão, os grilhões ideológicos, a negação da

diferença sejam problematizadas no espaço escolar.

A escolha pelos caminhos do multiculturalismo crítico envolve a crença na

legitimação dos conhecimentos que margeiam as instituições, em especial, a escolar,

contornos desenhados sob o signo da multiplicidade. A escola não é o centro, e os saberes que

estão ao seu redor se retroalimentam através das linhas que formam as redes que compõem os

conhecimentos contidos na comunidade.

Pensar a escola não apenas a partir do conhecimento institucionalizado, padronizado,

com moldes definidos de homem para atender a demanda de uma sociedade favorável à

formação de sujeitos subordinados. Ao contrário, a escola, enquanto espaço de convergência

de múltiplos saberes, precisa que as discussões de classe, gênero e raça encontrem-se

presentes no cotidiano escolar.

Compreender a complexidade da educação, na Amazônia, envolve a reorientação

curricular de demandas da contextualização do real, das problemáticas percebidas e vividas

pelos sujeitos, a reorganização do tempo escolar de acordo com as demandas de cada grupo,

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outros tempos e espaços, modos de ensinar e de avaliar, enfim, a busca de referenciais

epistemológicos além da seleção dos conteúdos escolares estéreis da vida que os cercam, de

historicidade, da indissociável relação entre escola e vida.

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3. Bastidor de histórias

3.1. Ponto caseado1 – Os fios da memória na voz do Contador de histórias

Antes de mais nada viver uma cultura é conviver com e dentro de um

tecido de que somos e criamos, ao mesmo tempo, os fios, o pano, as

cores o desenho do bordado e o tecelão.

Carlos Rodrigues Brandão

As narrativas surgem nesta pesquisa como parte essencial da teia simbólica tecida por

sentidos e significados da capacidade humana de entender e explicar o mundo em que o

homem habita.

O fio da meada surgiu com a própria humanidade. A história diz mais ou menos assim:

no tempo de dantes, tempo muito, muito distante, os habitantes das cavernas relatavam suas

histórias imprimindo nas paredes a capacidade de fabular. Encontramos vestígios da relação

do homem com as narrativas desde os primórdios. Há registros de desenhos feitos mostrando

o cotidiano dos povos, e datam mais de 30 mil anos a.C. em pinturas e gravuras rupestres. A

distinção feita entre as duas palavras grifadas serve para o esclarecimento das especificidades

de cada uma, as pinturas fazem parte do acervo de imagens trabalhadas a partir dos

pigmentos, já as gravuras envolvem imagens gravadas em talhos na própria rocha.

Para não cortar o fio da proposta desta pesquisa, podemos dizer que essas pinturas e

gravuras representam um outro tipo de bordado. Para bordar nas paredes, nas pedras e nas

rochas, era necessário usar outro tipo de linha, e foi assim que a tinta cumpriu esse papel.

Todas essas imagens pintadas, talhadas, bordadas pelos homens revelam-nos as narrativas

sobre as caças, as crenças, as celebrações. Tais inscrições testemunham as culturas dos povos

antigos em várias partes do mundo.

Na Amazônia, certamente, encontramos os vestígios das narrativas impressas nas

pedras, rochas e grutas. Muitas informações, que chegam até nós, são frutos do olhar dos

viajantes e naturalistas, que aqui passaram desde o século XVII até a primeira metade do

século XX. Sejamos, então, mais um viajante que, ao entrar na gruta 15 de março, em Monte

Alegre/PA, poderá ver duas pinturas rupestres que chamam a atenção por se tratarem da

imagem de animais que abrigam a mitopoética dos povos amazônicos, o boto e a cobra,

criaturas que sempre aguçaram o imaginário dos habitantes da região.

1 O ponto caseado é aquele que arremata o tecido deixando-o firme e protegido.

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Figura 17 – Boto - Pintura rupestre em Monte Alegre/PA

Fonte: Arquivo pessoal Antônio Juraci Siqueira

Antes da descoberta da capacidade de fabular através das gravuras rupestres, o mundo

poderia parecer sem forma. A humanidade precisava descobrir as formas de linguagem. E foi

assim que a agulha atravessou o bastidor e no ponto caseado saiu da linguagem visual, para a

linguagem oral.

Muitos povos ao redor do mundo encontram suas bases na oralidade, na voz ancoram

o desejo de atravessar os tempos narrando os acontecimentos, os saberes e as ciências de suas

culturas. Não raramente nas pesquisas dos historiadores, apenas para citar uma área do

conhecimento que tem como objeto de pesquisa o passado, observamos a citação da presença

e da relevância da oralidade.

O historiador e paleógrafo francês Serge Gruzinski, em suas pesquisas sobre a

colonização do imaginário nas sociedades indígenas e a ocidentalização no México espanhol

no período que compreende os séculos XVI a XVIII, apresenta, como característica destes

povos, a oralidade e as subdivisões organizadas pelos próprios grupos, traço peculiar de

outros povos, conforme veremos no decorrer deste capítulo:

As culturas do México central são, antes de tudo, orais. Dedicavam-se com afinco ao

cultivo das tradições orais, a sua codificação, controle e transmissão. As fontes

nauas da época colonial guardavam as marcas dessa criatividade em suas mais

diversas expressões. [...] Os nauas distinguiam pelo menos dois grandes conjuntos,

que reuniam gêneros numerosos e variados: cuicalt e tlahtolli. Os cuicalt eram os

cantos guerreiros, os cantos de “amizades, amor e morte”, hinos dirigidos aos

deuses, poemas que aliavam especulação intelectual e metafisica. Os tlahtolli, por

outro lado, remetiam ao âmbito do relato da narração, do discurso e da arenga;

incluíam-se aí tanto as “palavras divinas” (teotlahtolli), que falavam da gesta dos

deuses, as origens, a cosmogonia, os cultos e os rituais, como os “relatos sobre as

coisas antigas”, de tom histórico, as fábulas, as zazanilli e os famosos

huehuehtlahtolli, “palavras antigas”, discursos elegantes sobre os mais diversos

assuntos: o poder, o circulo doméstico, a educação ou os deuses (GRUZINSKI,

2003, p.26).

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Os diversos olhares históricos nos mostram tantos fios tramados que escolheremos

apenas alguns para dar o arremate! O alinhavo para casear o percurso aqui apresentado passa

pela Grécia, puxa um pedaço de linha para a África, aumenta um ponto com os povos árabes e

os povos europeus, para finalmente chegarmos ao Brasil.

3.2. Ponto haste2 – Mnemosyne e Lesmosyne: memória e esquecimento inseparáveis na

Grécia

Desde a antiguidade, encontramos relatos de povos que utilizavam a voz como forma

de transmissão de conhecimentos. Na Grécia arcaica, o patrimônio cultural era transmitido e

preservado através das narrativas míticas, fossem elas cosmológicas, fossem de origem ou

escatológicas, de fim, morte. Neste período, não havia se desenvolvido a escrita, os

responsáveis pela transmissão eram os Aedos, guardiões da memória em sua comunidade, que

se reuniam em praças públicas para narrar. O Aedo tinha a inspiração de Mnemosyne, mãe

das musas, Zeus havia dado a ela a função de conservar e transmitir a memória dos deuses.

Segundo Vernant (1990, p.137), possuído pelas musas, o poeta é intérprete de

Mnemosyne, a poesia é um estado de delírio, possessão, revelação, que muitas vezes escapa

da percepção humana. Neste sentido, Vernant tece, no seu bastidor, aproximações e distâncias

entre o poeta e o adivinho, sujeitos que trazem em si a vinculação com as divindades ao

transmitirem palavras inspiradas. O primeiro, já revelado anteriormente, tem sua função

poética adquirida através de Mnemosyne, o adivinho, por meio de Apolo, o patrono do

oráculo de Delfos, o deus símbolo da inspiração profética. Outra diferenciação reside no

conteúdo de suas revelações: para o adivinho, os presságios são a matéria de suas evocações,

o futuro e seus mistérios chegam a sua boca como preocupação recorrente do porvir; o poeta,

ao contrário, volta-se quase exclusivamente ao passado. Vejamos a linha na agulha de

Vernant (1990, p.138):

O poeta tem uma experiência imediata dessas épocas passadas. Ele conhece o

passado porque tem o poder de estar presente no passado. Lembrar-se, saber, ver,

tantos termos que se equivalem. É um lugar-comum da tradição poética por o tipo de

conhecimento próprio ao homem simples – um saber por ouvir dizer, baseando-se

no testemunho de outrem, em propósitos transmitidos – ao aedo entregue à

inspiração e que é, como o dos deuses, uma visão pessoal direta. A memória

transporta o poeta ao coração dos acontecimentos antigos, em seu tempo. A

organização temporal da sua narrativa não faz senão reproduzir a serie dos

acontecimentos, aos quais ele assiste de certo modo, na mesma ordem em que se

sucedem a partir de sua origem.

2 Ponto de bordado que trabalhamos com a agulha da esquerda para a direita, fazendo pontos levemente

inclinados, regulares e, principalmente, entrelaçados, ao longo da linha do desenho.

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O poeta, mesmo com a onisciência dada por Mnemosyne, tem em seu caminho a

necessidade de assegurar passos firmes ao garantir uma árdua preparação! O aprimoramento

da arte poética é um requisito aos que recitam, narram e até improvisam. Havia a preocupação

com as temáticas ou repertórios, com o bom uso da voz, através do trabalho com a dicção e,

em especial, com a memória, com treinamentos e exercícios mnemotécnicos diversos, como a

recitação de longos trechos. Ainda trazendo o bastidor de Vernant (1990), ele nos apresenta

trechos da Ilíada de Homero com listas enormes de nomes de homens, regiões, povos, os

melhores guerreiros, os melhores cavalos, os nomes dos deuses, árvores genealógicas etc.,

treinamentos da memória determinantes para a conservação e a transmissão dos

conhecimentos gregos.

A memória divinizada para os gregos nos diz sobre sua complexidade e importância

aos povos da oralidade, lembrar e esquecer, faces da mesma moeda que lhes é tão cara para

sobrevivência. Esquecer para lembrar, memória e esquecimento, pares a explicar a

circularidade de vida e morte.

Descer ao Hades pressupõe beber das fontes de Lethe e Mnemosyne. Ao tomar da

primeira água, esquecemo-nos do percurso de vida humana, como se entrássemos no domínio

da noite, as lembranças, a consciência é perdida. Há que se esquecer para ter a entrada no

mundo dos mortos. Entretanto, beber da segunda fonte era necessário, significava guardar as

recordações, guardar na memória o que se havia vivenciado no outro mundo:

Não se admirará, pois, de encontrar, no oraculo de Lebadéia, onde se mimava no

antro de Trofônio uma descida ao Hades, Lethe, esquecimento, associada a

Mnemosyne e formando com ela um par de forças religiosas complementares. Antes

de penetrar na boca do inferno, o consultante, já submetido aos ritos purificatórios,

era conduzido para perto das duas fontes chamadas Lethe e Mnemosyne. Ao beber

na primeira, ele esquecia tudo na vida humana, e, semelhante a um morto, entrava

no domínio da noite. Pela água da segunda, ele devia guardar a memória de tudo o

que havia visto e ouvido no outro mundo. À sua volta, ele não se limitava mais do

conhecimento do momento presente; o contato com o além lhe havia trazido a

revelação do passado e do futuro (VERNANT, 1991, p.144).

Em Platão, o conceito de reencarnação traz a presença da memória e do esquecimento

como partes constituintes da vida e da morte. Aqui, Mnemosyne transforma-se, a ordem

cosmológica dá passagem à escatologia. No ciclo das reencarnações humanas, esquecer o

presente é a passagem para o retorno à vida terrena, as reminiscências são trazidas através do

esquecimento, as águas do Lethe não são mais a passagem para o Hades, sim o retorno para a

vida, as almas agora esquecem sua estada pelo mundo celestial para então terem permissão a

reencarnar:

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A transposição de Mnemosyne do plano da cosmologia ao da escatologia modifica

todo o equilíbrio dos mitos de memórias; se conservam os temas e os símbolos

antigos, transformam profundamente seu sentido. As imagens que eram, na

descrição tradicional, ligadas ao Hades – região desolada, morada gélida, reino das

sombras, mundo do esquecimento – aplicam-se agora à vida terrestre concebida

como um lugar de provação e de castigo. O exilio da alma não é mais quando ela

esvoaça sob a terra, ao deixar o homem sem vida, como fantasma sem força e sem

consciência; mas, ao contrário, quando ela volta à terra para se juntar a um corpo. A

alma é tanto mais “lúcida”, tanto menos “esquecida” quanto mais pôde se liberar

dessa união. As águas da Lethe não acolhem mais, à entrada do Hades, os que ao

passarem da vida para a morte vão esquecer no mundo infernal a luz do sol. Ela

apaga, naqueles em sentido inverso, voltam à terra para uma nova encarnação, a

lembrança do mundo e das realidades celestes às quais a alma se aparenta. A água

do esquecimento não é mais símbolo de morte, mas de retorno à vida, à existência

no tempo (VERNANT, 1991, p.146-147).

Nos intermináveis ciclos de vida e de morte apresentados por Platão, o esquecimento é

a ignorância, ter bebido da fonte de Lethe significa esquecer as verdades fundamentais

adquiridas nos domínios celestes. A purificação da alma, a expiação pelos erros, encontra-se

no esforço de evitar beber as águas de Lethe e ter tomado o caminho salutar, ou seja, beber

das águas de Mnemosyne, a fonte da imortalidade. O lago da memória é um esforço de

purificação, lembrar como genuíno esforço espiritual, e assim alcançar a pureza ao pagar o

preço da expiação, deixando a condição humana para trás, elevando-se à condição divina.

3.2.1. Ponto haste alternado em corrente3 – Elos da memória

A memória passa a ser a forma de enredamento da comunidade, laços atados ou fios

interligados quando se requisita a voz presentificada da memória através do narrador. O ponto

haste alternado em corrente vai e volta entrelaçando a linha no risco do bordado. Para chegar

a ser corrente, ora precisa se juntar, ora se afastar, assim como nos estudos sobre memória

encontramos pontos de referência que remontam uma trajetória de entendimento sobre o

fenômeno atribuído à lembrança e ao esquecimento.

Nos estudos de Bergson, a memória é individual, está ligada à subjetividade, a

evocações que trazemos e que se encontram armazenadas desde a infância como totalização

das experiências do passado, vividas e conservadas, evocações que trazem a imagem de um

lugar ou pessoa, um odor, um som:

a memória nessas duas formas, quando recobre com uma camada de lembranças um

fundo de percepção imediata e também quando contrai uma multiplicidade de

momentos, constitui a principal contribuição da consciência individual para a

percepção, o lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas (BERGSON, 2006,

p.87).

3 Consiste em duas carreiras alternadas de ponto haste, de modo que dois pontos se juntem no centro e os

outros dois se afastem, assemelhando-se aos elos de uma corrente.

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Os estados psíquicos vivenciados são conservados para selecionar e trazer à tona os

comportamentos bem sucedidos. Dessa forma, a percepção humana está repleta de

lembranças, perceber não seria apenas uma relação entre ambiente e sistema nervoso, como

estímulo-resposta, entra em cena um outro elemento: a lembrança, como sobrevivência dos

tempos idos, armazenado e conservado no interior de cada ser humano individualmente. Com

Bergson, inicia uma atribuição à memória de “função decisiva na existência, já que ela

permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no curso

atual das representações” (BOSI, 2003, p.36).

Em Maurice Halbwachs (2004), a abordagem para as pesquisas em memória apoia-se

no conceito de memória enquanto fenômeno social e coletivo, isto é, depende das

experiências vividas e experienciadas no grupo em que se encontra inserido, reconstruir o

tempo presente a partir das lembranças do passado.

A premissa de Halbwachs direciona para a ampliação de olhar sobre indivíduos e

memória ao esclarecer que nossas memórias do passado, da infância, não poderiam ser as

mesmas por sermos seres em constante movimento e transformações, o olhar de ontem sobre

as coisas não é o mesmo de hoje, é impossível nos banharmos no mesmo rio duas vezes. As

águas que correm são infinitamente outras, parafraseando o pensamento do filósofo pré-

socrático Heráclito de Éfeso. Percepções são alteradas pelo constante fluxo das águas sociais

em que nos banhamos. A memória de uma pessoa é encharcada pela do grupo, por sua vez

embebida pela memória coletiva de cada sociedade e se assim é:

Não é suficiente reconstruir peça por peça a imagem de um acontecimento do

passado para se obter lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir

de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espirito como no

dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e

reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma

mesma sociedade, Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa

ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída (HALBWACHS, 2004, p.39).

A memória, por evidenciar-se num campo coletivo, conforme anunciado

anteriormente, assume o risco de enquadrar e uniformizar em uma única vertente a memória

coletiva oficial, traço característico do fazer historiográfico que permeou a mentalidade de

estudiosos até o século XIX, a história nacional e dominante era concebida a partir dos relatos

centrados na politica, na narrativa dos acontecimentos, nos grandes vultos, documentos

oficiais, em modelos de explicações parciais e na objetivação dos fatos.

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Com a proposição de reagir ao paradigma tradicional vigente, surge um movimento de

resistência denominado Nova História4, na qual toda atividade humana encontra ressonância

nas pesquisas, as fontes utilizadas são diversas, incluindo a oralidade e não somente as fontes

documentais. As vozes silenciadas e esquecidas encontram ouvidos e travam o que Pollack

(1989), pesquisador da tríade memória, esquecimento e silenciamento, chama de “verdadeiras

batalhas da memória” ao serem colocadas nos campos de disputas, conflitos e tensões:

Aplicada à memória coletiva, essa abordagem irá se interessar portanto pelos

processos e atores que intervém no trabalho de constituição e de formalização das

memórias. Ao privilegiar a analise dos excluídos, dos marginalizados e das

minorias, a história oral ressaltou a importância de memorias subterrâneas que,

como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à “Memória

oficial”, no caso a memória nacional (POLLACK, 1992, p.4).

Instauram-se novos olhares, outras abordagens com as pesquisas sobre memória. A

compreensão necessária é o encontro do lugar de destaque da memória e sua importância para

a continuidade das culturas e identidades. A luta pela resistência e pela reversibilidade dos

povos silenciados e seus saberes tem a função de desestabilizar e até desmoronar as falácias

da história oficial e seus modos perversos e desumanos de estorvar os canais e furos das

lembranças, para que não desaguem no grande rio das memórias humanas.

3.3. Ponto de Vandyke5 – Memória viva, a palavra entrelaçada na África

A memória, para os povos africanos, é a espinha dorsal, o eixo de equilíbrio enredado

pelas narrativas, ela é tecida com o ponto de Vandyke, porque a memória, para esse povo, é a

trança central. Palavra geradora e traz em si o sagrado, o hálito vital das sociedades orais.

Bordar neste tecido a história da África significa referendar a oralidade. Hampaté Bá, mestre

da tradição oral africana e escritor malinês, será nosso interlocutor. Em alguns momentos,

tomará parte da conversa pela grandeza da obra deixada sobre oralidade africana e,

principalmente, por ter vivenciado desde a infância a força da palavra contada.

O elo entre o homem e a palavra encontra-se tão entrelaçado na África subsaariana,

por exemplo, o homem é a própria palavra que profere e legitima, o respeito e o

4 “A expressão “a nova história” é mais conhecida na França. La nouvelle histoire é o titulo de uma coleção de

ensaios editada pelo renomado medievalista francês Jacques Le Goff. [...] mais exatamente, é a história

associada à chamada École des Annales, agrupada em torno da revista Annales: économies, societés,

civilisations” (BURKE, 1992, p.9). 5 Ponto enlaçado em torno de um eixo, uma trança central.

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reconhecimento pelo que sai da boca envolve a teia de transmissão pela qual a voz encontra-

se enredada.

A sacralidade da palavra, sua origem divina, é trazida por Hampaté Bá. A palavra

Kuma é a própria força vinda do Ser Supremo, criador de todas as coisas, chamado de Maa

Ngala. Para esse povo, no mito de criação do mundo e dos seres humanos, o Deus supremo

sentiu necessidade de um interlocutor, então criou Maa, o primeiro humano, o que receberia a

herança, uma parcela do dom divino, a memória e a palavra, a serem transmitidas aos seus

descendentes, iniciando dessa forma a tessitura divina da tradição oral. A força e o ritmo

contidos na fala humana geram o ir e o vir, cadenciados pelo movimento, pelo poder e pela

força emanada pela ligação do homem com a divindade:

Maa Ngala, como se ensina, depositou em Maa as três potencialidades do poder, do

querer e do saber, contidas nos vinte elementos dos quais ele foi composto. Mas

todas essas forças, das quais é herdeiro, permanecem silenciadas dentro dele. Ficam

em estado de repouso até o instante em que a fala venha coloca-las em movimento.

Vivificadas pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar. Numa primeira fase,

tornam‑se pensamento; numa segunda, som; e, numa terceira, fala. A fala é,

portanto, considerada como a materialização, ou a exteriorização, das vibrações das

forças.

Assinalemos, entretanto, que, neste nível, os termos “falar” e “escutar” referem-se a

realidades muito mais amplas do que as que normalmente lhes atribuímos. De fato,

diz-se que: “Quando Maa Ngala fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a

sua fala”. Trata‑se de uma percepção total, de um conhecimento no qual o ser se

envolve na totalidade.

Do mesmo modo, sendo a fala a exteriorização das vibrações das forças, toda

manifestação de uma só força, seja qual for a forma que assuma, deve ser

considerada como sua fala. É por isso que no universo tudo fala: tudo é fala que

ganhou corpo e forma (HAMPATÉ BÁ, 2010, p.170).

Parte da memória viva da África encontra-se nos tradicionalistas, expressão utilizada

por Hampaté Bá, são eles os sabedores da herança transmitida pela oralidade, chamados de

Doma ou Soma, possuem uma memória ímpar, conhecidos e reverenciados por toda

comunidade. Trata-se de um saber total, já que os Domas tinham vários conhecimentos,

abrangendo as ciências das águas, das plantas, da terra, da astronomia, da psicologia e assim

por diante, são os detentores da palavra, fazem parte da teia ancestral iniciada por Maa, o

primeiro Doma.

Aos Domas são segredadas as mais profundas verdades, eles conhecem os mistérios da

vida, seus ensinamentos têm a força interior, dosados pela harmonia e pela veracidade da

palavra proferida.

A voz de um Doma precisa ser temperada, modulada, a prudência faz parte de sua

formação. É preocupação constante desses tradicionalistas o compromisso com a verdade,

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falar a mentira é um defeito moral que implica na perda do exercício de suas funções de

Doma, que, ao falar, invoca as vozes ancestrais para trazer-lhes a memória, eis uma invocação

de um grande Doma bambara:

Oh, Alma de meu Mestre Tiemablem Samaké!

Oh, Almas dos velhos ferreiros e dos velhos tecelões,

Primeiros ancestrais iniciadores vindos do Leste!

Oh, Jigi, grande carneiro que por primeiro soprou

Na trombeta do Komo,

Vindo sobre o Jeliba (Níger)!

Acercai-vos e escutai-me.

Em concordância com vossos dizeres

Vou contar aos meus ouvintes

Como as coisas aconteceram,

Desde vós, no passado, até nós, no presente,

Para que as palavras sejam preciosamente guardadas

E fielmente transmitidas

Aos homens de amanhã

Que serão nossos filhos

E os filhos de nossos filhos.

Segurai firme, ó ancestrais, as rédeas de minha língua!

Guiai o brotar das minhas palavras

A fim de que possam seguir e respeitar

Sua ordem natural”.

Em seguida, acrescentava:

“Eu, Danjo Sine, do clã de Samake (elefante), vou contar tal como o aprendi, na

presença de minhas duas testemunhas Makoro e Manifin”.

“Os dois como eu conhecem a trama. Eles serão a um tempo meus fiscais e meu

apoio” (HAMPATÉ BÁ, 2010, p.180).

Ao fazer de sua palavra prece, os Domas assumem a feitura das cerimônias religiosas

e da iniciação dos griôs, e por reverência aos seus mestres sempre citam o nome do Doma que

os iniciou. Os rituais de iniciação de um griô envolvem a consciência dessa palavra habitada

pela ancestralidade, a cadeia de transmissão encontrada na tradição oral, outras peculiaridades

do processo ritualístico, envolve embrenhar-se na mata para meditar, conhecer e conservar na

memória os contos e cantos dos antigos.

Os griôs ou diélis assumem várias ações que envolvem a voz, são os que narram

histórias, trazem as canções, poesias, animação de celebrações. Cabe a eles deixar a palavra

circular livremente nos diversos lugares e situações das comunidades africanas. Eles dividem-

se em três categorias:

1 – Os griôs músicos, que tocam instrumentos como a kora6, são afinados cantores, e o

som harmonioso extraído da kora canta a memória de sua ancestralidade;

6 Harpa africana de vinte e uma cordas que acompanha as vozes dos griôs por todo o noroeste do continente.

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2 – Os griôs embaixadores ou cortesãos são os que mediam os conflitos entre as

famílias de nobres ou a família real. Uma espécie de diplomata, têm a habilidade de intervir

nas contendas entre os grupos; e

3 – Os griôs genealogistas, historiadores ou poetas, são os contadores de histórias,

viajantes, a eles foi concedido o privilégio de embelezar as crônicas do cotidiano, têm a

licença e a liberdade poética para falar sobre qualquer assunto, usam da sátira para dizer sobre

questões sérias ou sagradas sem que sejam penalizados, diferentes do Domas, que jamais

poderiam acrescentar algo que não fosse a absoluta verdade dos fatos. Conhecidos também

como diélis, eles ganharam um codinome que faz jus ao seu papel na África, “boca rasgada”.

Segundo Hampaté Bá, na presença dos griôs, os ouvintes indagam se a história é de Diéli ou

de Doma, sabem que podem esperar o embelezamento da verdade ou a transmissão fiel,

segundo a resposta dada.

Cabe aos genealogistas conhecer profundamente as histórias das famílias, sua

linhagem e os fatos que as acompanham, para cumprirem seu papel. Eles desenvolvem uma

memória prodigiosa. Os genealogistas, por exemplo, são chamados para recitar toda a

linhagem da família nas ocasiões de nascimentos, casamentos ou funerais. Os historiadores

são os arquivistas da sociedade africana, guardam na memória os acontecimentos passados e

presentes ligados aos fatos.

Para os povos africanos, os griôs eram poupados até das guerras para que

continuassem narrando as proezas, considerados como bibliotecas vivas. Segundo um dito

popular africano, que – em conferência – ouvi da boca de Sunny, “quando um griô morre é

como se toda uma biblioteca tivesse sido arrasada pelo fogo”.

Os responsáveis pelo repasse das tradições orais eram considerados pessoas de grande

importância, conhecedores dos segredos e mistérios, dos acontecimentos passados e presentes,

reconciliadores de conflitos, grandes músicos, embelezadores da palavra, ou seja, seres

dinâmicos, enredados pelas vozes ancestrais e que ocupavam lugares de destaque.

Transitavam entre o ontem e o hoje, entre o povo comum e a nobreza, exerciam forte

influência, e por isso sua palavra vital podia levantar ou derrubar. Não é por acaso que a

palavra diéli, em bambara, traduz-se como sangue, uma forte metáfora, já que o sangue

transita e circula por todo o corpo, assim como os diferentes griôs também transitam por

distintos espaços da sociedade a que pertencem. Queridos e respeitados pela comunidade

local, por serem os guardiões da palavra, a memória viva das sociedades africanas.

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3.4. Ponto chato7 – O não-lugar da oralidade para os povos árabes

A ocupação na península denominada Arábica se deu por povos nômades, a própria

etimologia da palavra árabe quer dizer imigrante. As comunidades que passaram a viver nesta

área têm como particularidade a peregrinação. Encontramos, por exemplo, nas escrituras dos

povos cristãos, a narrativa que traz a origem nômade dos árabes, ao relatar sobre Abraão e

Sara, sua esposa8.

Abraão nasceu em 2018 a.C., provavelmente na cidade de Ur dos caldeus, situada no

sul da Mesopotâmia, casou-se com Sara e deixou Ur para morar em Canaã até o fim de seus

dias. O casal não tinha filhos, Sara era estéril. Pela impossibilidade de deixar descendentes,

Abraão decide tomar como segunda esposa Hagar, empregada egípcia, e com ela tem Ismael,

seu primogênito.

Segundo a narrativa bíblica, quase uma década depois, Sara conseguiu dar à luz Isaac,

e, por desentendimentos constantes entre as suas mulheres, Abraão decidiu expulsar de suas

terras Hagar e Ismael, que seguiram para a região do deserto, tornando-se nômades. De

Ismael, surgiram as tribos beduínas da Arábia, ele é considerado pelos muçulmanos como o

ancestral dos povos árabes.

A característica do nomadismo pode ser a motivadora do apreço pelas narrativas dos

povos árabes, as tantas andanças nutrem as crônicas da voz, deixando-os receptivos ao ouvir e

contar do que viram nas viagens. Walter Benjamin (1999, p.199) tece considerações sobre

dois grupos de narradores com características próprias do seu modo de viver: o camponês e

viajante. O primeiro é sedentário, aquele que, estabelecendo moradia num único local, passa a

ser conhecedor das histórias e tradições de seu país. Em contrapartida, o segundo – que

corresponde ao marinheiro viajante – traz as experiências e os olhares dos locais por onde

passa, o que carrega em suas narrativas outras territorialidades coletadas no cotidiano das

andanças e sendo introduzidas em seu acervo. Este último grupo nos interessa neste ponto em

que tratamos dos povos nômades, pela sua capacidade de intercambiar experiências vindas de

longe e incorporá-las a suas próprias vivências. “A experiência que passa de boca em boca é a

fonte a que recorreram todos os narradores” (BENJAMIN, 1994, p.198).

De acordo com Malba Tahan (2001), na apresentação de As mil e uma noites, os povos

árabes eram fascinados pelas histórias:

7 Ponto dado alternadamente em cada lado, a fim de preencher todo o espaço do desenho a ser bordado. Os

pontos devem ser bem unidos e cruzados uns sobre os outros. 8 O relato sobre Abraão encontra-se registrado no livro bíblico de Gênesis, capítulos de 11-27.

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Não havia aldeia árabe que não tivesse seu contador de histórias... Em algumas

cidades – Cairo, Damasco, Constantinopla – os contadores de histórias reuniam-se

em verdadeiros “sindicatos”. Cada corporação era dirigida por um deles, de maior

prestígio e autoridade, que tinha o título de Cheik el-medar, que significa chefe dos

contadores do café... é um espetáculo curioso acompanhar as impressões que as

histórias produzem na alma ardente e apaixonada dos árabes. Conforme a palavra

sempre eloquente do narrador os ouvintes se agitam ou se acalmam. À cólera

violenta sucedem os sentimentos mais ternos, os risos estridentes são seguidos, não

raro, de prantos e lamentações (TAHAN, 2001, p.15).

Ainda segundo Tahan (2001), a relação entre narrador e ouvinte era ardente e

apaixonada. Como um maestro regendo sua orquestra, o narrador, com sua batuta de histórias,

regia as sensações e os sentimentos dos atentos ouvintes, e, de acordo com a palavra

proferida, as reações iam da euforia ao descontentamento, do riso ao pranto. Outro traço

característico do ouvinte era sua participação ativa nas histórias, e nos momentos de clímax da

trama ouviam-se em uníssono as interferências do público, dependendo da situação

apresentada pela narrativa, as palavras eram proferidas:

“– Não, não, não, Deus não consentirá!”

O coro se levanta em prece pela vida dos protagonistas ao serem ameaçados pelos

perigos, ou se o herói morre em combate ouve-se a seguinte expressão:

“– Que Deus o receba em sua misericórdia! Que Deus o tenha em paz!”

Edmundo De Amicis (apud TAHAN, 2001, p.16), escritor italiano, ao deparar-se com

o narrador, descreve a performance desse agente. O registro ajuda-nos a visualizar a presença

marcante do que narra e a compreender a fascinação causada aos seus ouvintes:

Tivemos a sorte de chegar no momento em que o Cheik el-medah, tendo terminado a

costumeira prece matinal, começava a narrativa. Era um homem de seus cinquentas

anos, quase negro, a barba negríssima e dois grandes olhos cintilantes; trajava, como

quase todos os outros narradores de Bagdá, um enorme pano branco apertado, em

torno da cabeça, por uma corda de pelos de camelo, que lhe dava a majestade de um

antigo sacerdote. Falava com voz alta e vagarosa, ereto no meio do circulo de

ouvintes, acompanhado submissamente por um tocador de alaúde e um tambor.

Narrava, talvez, uma história de amor, as aventuras de um bandido famoso, as

vicissitudes da vida de um sultão. Não lhe percebi nem palavra. Mas o seu gesto era

tão arrebatado, sua voz tão expressiva, seu rosto tão eloquente, que eu às vezes

entrevia, num rápido momento, alguns lampejos do sentido. Pareceu-me que contava

uma longa viagem; imitava o passo do cavalo fatigado; apontava para horizontes

imensos; procurava em torno de si uma gota d‟água, deixava cair os braços e a

cabeça como um homem prostrado.

Árabes, armênios, egípcios, persas e nômades do Hed-jaz, imóveis, sem respirar,

refletiam na expressão dos rostos todas as palavras do orador. Naquele momento,

com a alma toda nos olhos, deixavam de ver, claramente, a ingenuidade e a frescura

de sentimentos que ocultavam sob a aparência de uma dureza selvagem. O contador

de historias andava para a direita e para a esquerda, parava, retrocedia, cobria o rosto

com as mãos, erguia os braços para o céu, e, à medida que se ia afervorando, e

levantando a voz, os músicos tocavam e batiam com mais fúria.

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A narrativa empolgava os beduínos, e quando terminada, os aplausos estrugiram no

ar.

É na descrição de Edmundo De Amicis que o ponto chato se mantém firme, parecendo

ser feito com linha resistente, pois que o narrador, descrito neste momento, parece querer

preencher todo o espaço do desenho bordado na memória e que nesta hora é tecido pelo corpo

e pela voz. E “com a alma toda nos olhos” o narrador prende os ouvintes nos fios da sua

história. E, assim, narrador e ouvintes se confundem com o ponto chato, porque com a trama

feita eles agora estão bem unidos e cruzados uns sobre os outros.

A palavra e o portador dela recebiam a reverência e a aclamação dos ouvintes. A

descrição do escritor italiano anteriormente citado sobre seu encontro com da figura do

contador nos ajuda a visualizar os elementos constituintes na performance do que narra, desde

sua aparência, a vestimenta, o tom e a impostação de voz, os gestos, a memória, a parceria

com músicos, a receptividade dos ouvintes, ajudam a recriar a performance do narrador e

perceber a importância dele!

Havia, para os contadores árabes, uma preocupação com o acervo de narrativas, novas

histórias eram ouvidas através da voz dos viajantes com o intuito de aumentar o repertório. As

histórias em cadeia eram as preferidas, o narrador sempre interrompia a trama num momento

importante a ser continuado no dia seguinte, ou então numa ponte que liga a história narrada

com a seguinte. Dessa forma, os ouvintes se viam estimulados a voltarem a fim de saberem o

desenrolar ou o desfecho dos enredos sempre tão bem tramados pelos narradores árabes.

Uma das mais conhecidas histórias em cadeia é indubitavelmente As mil e uma noites,

um conjunto de contos populares vindos do médio Oriente e do sul da Ásia, transcritos em

língua árabe a partir do século IX. Os contos tornaram-se conhecidos no mundo ocidental com

o trabalho de tradução do francês Antoine Galland, realizados em 1704. As histórias narradas

por Sheherazade, esposa de Chariar, tornam-se um clássico da literatura mundial.

Outro motivo pelo qual as histórias tinham lugar cativo na vida dos árabes residia na

confiança em seu poder curativo, a ponto de curar moléstias como a loucura. O insano ouvia

as histórias em cadeia, ajudando-o a recobrar o juízo, o equilíbrio, a sanidade mental, como

observamos no clássico As mil e uma noites, em que Sheherazade narra histórias nas mil e

uma noites para o sultão Chahriar, acometido de um transtorno mental, que o fazia matar suas

jovens esposas na manhã que se seguia à noite de núpcias. Sheherazade, exímia contadora,

narra suas histórias, interrompendo-as em momentos de clímax, a cada amanhecer, fazendo

com que Chahriar poupe sua vida por mais um dia, a espera da continuação da trama.

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Passando-se as mil e uma noites de histórias da sultana Sheherazade, Chahriar se rende

ao poder da palavra:

Chahriar admirava, no íntimo, a estupenda imaginação de Sheherazade que todas as

noites lhe proporcionava histórias interessantes.

Já haviam passado mil e uma noites, e tudo contribuíra para diminuir o injustificado

rancor do soberano contra as mulheres. O sultão da Índia tornara-se mais brando, e

reconhecia os grandes méritos de sua esposa, que não vacilara em se apresentar

voluntariamente, sem medo da morte. Decidiu, então, conceder-lhe o direito à vida

(GALLAND, 2001, p.538).

O sultão Chahriar, por fim, fez a seguinte declaração:

– Querida Sheherazade – disse-lhe –, vejo que sabeis maravilhosas histórias, e há

muito que com elas me distraís. Foi-se a minha cólera, e é com prazer que a partir de

hoje retiro a cruel lei a mim imposta. Tendes a minha proteção, e sereis considerada

libertadora de todas as jovens que ainda seriam imoladas ao meu rancor

(GALLAND, 2001, p.539).

Instaura-se um outro tipo de poder: o da palavra. Segundo Adélia Bezerra de Menezes

(1995), a magia das palavras transforma almas adoecidas. O processo terapêutico, através das

narrativas, visto em Sheherazade e Chahriar, acontece pela escuta, o sultão recupera sua

capacidade de confiar amorosamente nas mulheres, a mediação simbólica da linguagem como

cura interior:

Sherazade ou do Poder da Palavra. A sultana era uma contadeira de histórias, não

em primeira linha uma escritora: ela as contava de viva voz. Aquelas 1001 noites

eram marcadas pela cálida proximidade da mulher, da mulher na sua inarredável

corporeidade. Não podemos esquecer da carga corporal que a Palavra falada carrega.

Na narrativa oral, a Palavra é corpo modulada pela voz humana, e portanto

carregada de marcas corporais; carregada de valor significante. Que é a voz humana

senão um sopro (pneuma: espírito...) que atravessa os labirintos dos órgãos da fala,

carregando as marcas cálidas de um corpo humano? A palavra oral é isso: ligação de

sema e soma, de signo e corpo. A palavra narrada guarda uma inequívoca dimensão

sensorial (MENEZES, 1995, p.56).

O fato interessante em As mil e uma noites é o conteúdo das histórias de Sheherazade.

De maneira perspicaz, narrava histórias que ajudavam o sultão a resolver seus conflitos

internos, reorganizando o caos psíquico, residindo aí o poder curativo das histórias de

Sheherazade. Força, fervor e fé, na palavra vital proferida pelo contador de histórias, lhe

conferiam o profundo respeito de seus ouvintes inflamados de paixão, porque agora eles

também são sabedores do que pode a arte de contar histórias:

A coragem necessária para descer até níveis inferiores do mundo das histórias pode

conduzi-lo a muitas direções diferentes de uma só vez. De forma similar, nossos

corpos contêm muitas cavernas, clareiras e ramificações circulatórias compostas por

músculos e vasos sanguíneos. Uma história pode iluminar os níveis mais inferiores

de nossa capacidade circulatória (MELLON, 2006, p.45).

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Assim, a psicoterapeuta norte-americana Nancy Mellon vai alinhavando, no ponto a

ponto, o entendimento do valor das histórias para a humanidade. E tantos outros fios de

pensamento se juntam para dar melhor forma ao bordado:

Habitar essas vidas de fantasia é uma forma de refletir sobre destinos possíveis e

cortejá-los com o nosso. Às vezes, uma história ilustra temores de que padecermos,

outras, encarna ideias ou desejos que nutrimos, em certas ocasiões ilumina cantos

obscuros do nosso ser. O certo é que escolhemos aqueles enredos que nos falam de

perto, mas não necessariamente de forma direta, pode ser uma identificação,

enviesada (CORSO, 2006, p.21).

Esse é apenas o começo do ponto dado por Diana Lichtenstein Corso, no livro Fadas

no divã. A autora prende, nos fios dos seus pensamentos, as narrativas sobreviventes, com a

psicanálise, numa tentativa de entender por que essas histórias ainda reverberam e desta forma

nos segreda, mais uma vez, o valoroso lugar que essas narrativas têm.

3.5. Ponto rococó9 – Povos europeus na Idade média – a literatura oral

Para falarmos em oralidade e Idade Média, precisamos antes compreender, à luz de

dois grandes estudiosos do período, o significado das duas expressões, acima citadas, Jacques

Le Goff, historiador francês, referência em Idade Média, e Paul Zumthor, medievalista,

estudioso das poéticas orais. O primeiro desmistifica o rótulo recebido de idade das trevas, ao

defender que o período não pode ser visto apenas como tempos de miséria, ignorância e

guerras, para ele foi um período criativo e dinâmico, bem diferente do que a história oficial

apresenta.

Le Goff fala de um período estendido, que vai do século IV ao começo da era

industrial, século XVIII, e não somente até o século XV, particularmente, em 1453, com a

tomada de Constantinopla pelos turcos, como aprendemos na escola. Paul Zumthor (1993,

p.24) comunga com a ideia acima ao dizer:

De um ponto de vista global, participo da opinião de J. Le Goff sobre a existência de

uma “longa Idade Média” entre o século IV e o início da era industrial. É maior a

necessidade de marcar as nuances e de introduzir alguma periodização. As fronteiras

recortam o tempo tanto quanto o espaço: tão frouxas quanto reais, aqui e ali.

Quanto a oralidade, Zumthor (1993) esclarece que não podemos vinculá-la apenas ao

que é transmitido pela palavra, que é apenas a manifestação material ou evidente da oralidade,

9 Ponto feito a partir de várias voltas de linha na agulha, criando sucessivas camadas sobrepostas, assemelhando-

se a uma rosa.

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existem outros elementos, por ele denominado de Performance, como texto, sonoridades,

ritmos, elementos visuais.

Dessa forma, a oralidade, para Zumthor (1993), é dividida em três categorias

emanadas de três situações de cultura: primária, mista e segunda. A primária não comporta

contato algum com a escrita, reside nas sociedades ágrafas, isoladas. A mista sofre uma

influência parcial da escrita. E, por último, a oralidade segunda emana de uma cultura letrada,

com forte presença da escrita.

Concluímos, a partir das informações de Zumthor (1993), que o período medieval no

ocidente foi predominantemente povoado pela oralidade, e que a voz cercava os caminhos

deste tempo, pouco se fazia o uso da escrita, os textos escritos eram alvo do desejo de tornar

oral, lidos em voz alta nas praças, por exemplo. Havia o reconhecimento da importância da

voz e do seu legado entre os homens, ela era a mediadora, a unificadora da comunidade, de

habitantes dos vilarejos, dos centros urbanos, sua presença marcante estava no espaço rural.

Os intérpretes granjeavam a admiração e o respeito de todos, suas palavras transitavam nos

diversos temas, sendo semeadas pela voz, ora nômade, ora estável, quase sempre alegórica e

carnavalesca. O ir e vir da voz nas situações de oralidade na Europa medieval conferia poder,

reconhecimento e prestígio: “Quando um poeta ou seu intérprete canta ou recita (seja o texto

improvisado, seja memorizado), sua voz, por si só lhe confere autoridade. O prestígio da

tradição é a ação da voz” (ZUMTHOR, 1993, p.19).

Assim, encontramos expressões como jograis, menestréis, trovadores, termos que

trazem em si aproximações e distanciamentos, mas que conservam a unidade da voz.

Pesquisadores, debruçados nos estudos do período medieval, buscaram explicar as

características específicas de cada um dos grupos citados.

Ao trazer a figura dos intérpretes da voz, Zumthor (1993, p.55) também evidencia um

grupo de narradores intitulados Jongleurs: “indivíduos que assumiam a função de

divertimento, as sociedades medievais dispuseram de um vocabulário ao mesmo tempo rico e

impreciso, cujos termos, na mobilidade geral, não param de deslizar uns sobre os outros”. Os

Jongleurs parecem mestres no ponto rococó, pois fazem da voz a linha capaz de dar várias

voltas na agulha, aqui representada pela história, enriquecendo-a pelas camadas dos

vocabulários e de tudo o que tinham que cumprir para assim ser chamados.

Raynor (1981, p.49), em História Social da Música – da Idade Média a Beethoven,

esclarece sobre os Jongleur ou menestréis:

O termo Jongleur medieval que é o nome às vezes dado ao menestrel da baixa Idade

Média, quer fosse ele membro da criadagem inferior de uma residência aristocrática

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ou membro do que, atualmente, chamaríamos de teatro burlesco. Sobreviveram as

regulamentações redigidas para orientação dos músicos ambulantes de

entretenimento na Alemanha medieval; o menestrel tinha de saber inventar, fazer

ritmos, e ser bom espadachim; tocar bem tambor, címbalos e o Bauernleier (realejo);

jogar pequenas maçãs para cima e apará-las na ponta de uma faca; imitar o canto de

pássaros, fazer truques com cartas de baralho e saltar através de argolas; tocar cítara

e bandolim, cravo e guitarra, viola de sete cordas, acompanhar bem com a rabeca,

falar e cantar agradavelmente. Um jogral a serviço da aristocracia devia entreter seu

patrão e os hóspedes dele em tudo o que desejassem, assim como um comediante

ambulante para ganhar a vida tinha de ser contador de histórias, cantor,

instrumentista, acrobata, prestidigitador e tudo o mais que pretendesse

convincentemente ser.

Os Jongleurs eram andarilhos que viviam a vagar de aldeia em aldeia, reino em reino,

sozinhos ou em bandos, viviam com muito pouco, eram considerados escória, párias da

sociedade, não tinham direitos, viviam à margem da lei e dos sacramentos da cristandade. Nos

séculos XI e XII, um novo olhar é lançado a esse grupo, que passa a se organizar em

confrarias, o que impulsiona a obtenção do respeito ao seu trabalho.

Outro grupo encontrado na Europa medieval são os trovadores. Estes narradores

faziam parte da aristocracia, do movimento elitizado, ser um trovador era ter um determinado

poder em mãos, o político. Na Alemanha do século XIV, nasce uma escola de poetas

composta por nobres, inspirada no movimento do trovadorismo do século XI, batizada de

Minnesinger, os representantes desse movimento usavam como matriz as canções de amor,

mas com cunho religioso, inspirado nas Cruzadas. Mais adiante, nos séculos XV a XVI,

passam a compor o grupo dos Minnesinger não somente nobres, mas mercadores e artesãos

burgueses, assim nasciam os Meistersinger.

Figuras marcantes no cenário da oralidade no período medieval, constituem um

amálgama de narradores e narrativas, compondo a herança da literatura oral no ocidente. E,

assim, as histórias foram semeadas de boca em boca, aldeia em aldeia, reino em reino por toda

a Europa, encontram no percurso a visão cíclica, voz virando letra, retornando ao estágio

inicial de voz na movência da tradição oral, apresentada por Zumthor (1993).

Inúmeras narrativas chegaram até os nossos dias através da movência da tradição oral.

Na Europa, alguns representantes ganharam notoriedade na semeadura das histórias. O

primeiro europeu a coletar histórias da memória popular foi o francês Charles Perrault. No

século XVII, durante o reinado do rei Sol, Luís XIV, de sua recolha originou-se o livro

Contos da Mãe Gansa (1697). A coletânea de narrativas passou pelo filtro de Perrault para

agradar ao refinado gosto da corte francesa, incluía, inicialmente, algumas das mais

conhecidas histórias até o tempo presente, são elas: O Barba Azul, A Bela Adormecida no

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Bosque, Chapeuzinho Vermelho, As Fadas, O Gato de Botas, Cinderela, O Pequeno Polegar

e Henrique do Topete.

Burke (1994), em A fabricação do rei, apresenta-nos Perrault como um dos

encarregados na construção da imagem pública do rei Luís XIV, havia pessoas específicas

para cada área de conhecimento, em literatura, pintura, escultura, música e arquitetura, esta

última estava a cargo de Charles Perrault:

No caso da arquitetura, o conselheiro de Colbert foi Charles Perrault – literato

conhecido em nossos dias sobretudo por ter reescrito contos populares, como

Chapeuzinho Vermelho –, que serviu como encarregado das edificações [commis

des bâtiments] quando Colbert se tornou surintendant em 1664. Em suas memórias,

Perrault expôs o plano para Colbert “de ter muitos monumentos erigidos para a

gloria do rei, como arcos do triunfo, obeliscos, pirâmides e túmulos” (BURKE,

1994, p.67-68).

De acordo com as pesquisas de Robert Darnton (1986), historiador cultural,

estadunidense, Perrault era “Um cortesão, „moderne‟ de maneira autoconsciente, e um

arquiteto da politica cultural autoritária de Colbert e Luís XIV, ele não tinha simpatia alguma

pelos camponeses e sua cultura arcaica”. Ao recolher as histórias do domínio oral, fez um

trabalho de arremate para torná-las apresentáveis aos gostos dos requintados salões

parisienses. Seu interesse por narrativas provavelmente se deu, segundo Darnton, pelo contato

costumeiro que pessoas ligadas à nobreza tinham através da voz acalentadora das amas-de-

leite e babás, e suas histórias de encantamentos! Perrault, através da recolha das narrativas,

proporciona o trânsito entre as duas realidades tão distintas, a dos nobres e cortesãos e a dos

camponeses.

No mesmo período, ainda na França, Jean de La Fontaine dedica-se a registrar

histórias de cunho moral, as chamadas fábulas, suas fontes incluem a memória do povo e

fontes documentais históricas, na Grécia, na Roma, as fábulas de Fedro, parábolas da bíblia,

histórias do oriente.

No século XVIII, na Alemanha, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, filólogos,

folcloristas e estudiosos da mitologia alemã, entregam-se à empreitada de sair de aldeia em

aldeia recolhendo narrativas do domínio oral. Segundo se sabe, a história conta que duas

mulheres foram suas principais intérpretes, uma camponesa de nome Katherina Wieckmann e

Jeanette Hassenplufg, amiga da família dos Grimm, que tinha descendência francesa.

Cabe ressaltar que Jeanette Hassenpplufg havia fugido da França após perseguição do

rei Luís XIV, assim trouxe seu próprio repertório de histórias, que, segundo Darnton (1986,

p.23-24), foi uma importante fonte em que beberam os irmãos Grimm:

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Os Grimm o conseguiram, juntamente com “O gato de botas”, “O Barba azul”, e

algumas poucas outras histórias com Jeanette Hassenpplufg, vizinha e amiga íntima

deles em Cassel; e ela ouviu as histórias de sua mãe, que descendia de uma família

francesa huguenote. Os huguenotes trouxeram seu próprio repertorio de historias

para a Alemanha, quando fugiram da perseguição de Luís XIV. Mas não os

recolheram diretamente da tradição popular oral. Leram-nos em livros escritos por

Charles Perrault, Marie Cathérine d‟Aulnouy e outros, durante a voga dos contos de

fadas nos círculos elegantes de Paris, no fim do século XVII.

O trabalho de recolha dos irmãos Grimm foi fértil, muitos dos contos tidos como

clássicos da literatura infantil são frutos dessa safra, como: Branca de Neve e os sete anões,

Os músicos de Bremen, O pequeno polegar, O príncipe sapo, Rapunzel, A gata Borralheira,

A senhora Holle, entre outros conhecidos. Uma das preocupações dos Grimm foi a distinção

dos tipos de contos: os Volksmärchen (contos populares) e os Kunstmärchen (contos

artísticos), estes últimos envolvem a interferência do escritor, a elaboração literária. Marcus

Mazzari (2012, p.18), na a apresentação dos Contos maravilhosos infantis e domésticos,

editado no bicentenário dos Grimm, esclarece:

Jacob Grimm procurou apresentar os Contos maravilhosos infantis e domésticos

como a mais genuína manifestação da “poesia da Natureza”, criação espontânea de

uma coletividade anônima. Esforçou-se igualmente em distinguir os contos

populares (Volksmärchen), que coletara ao lado do irmão, dos artísticos

(Kunstmärchen), os quais ostentariam vestígios nítidos da elaboração literária

individual (como se verifica claramente em fairy tales de Oscar Wilde ou Hans

Christian Andersen, para citar exemplos posteriores). Contos populares, ao

contrário, possuem o seu habitat na tradição oral e, com frequência, iletrada, na qual

ingressam diretamente da “alma do povo”, conforme expressão empregada por

Jacob no espírito romântico então vigente. Por isso, esses contos exigiriam do

compilador a mais estrita fidelidade.

No mesmo texto, Mazzari apresenta a metáfora, trazida por Jacob Grimm, sobre a

polêmica da fidelidade ao texto original, ao dizer que quando se quebra um ovo é difícil evitar

que nenhum resquício de clara fique na casca do ovo, mas deve-se cuidar para que a gema

fique intacta. Assim, segundo os irmãos Grimm, deveria ser com as narrativas orais, conservar

sua essência, deixando-a o mais cristalina possível na passagem para o escrito. No entanto,

sabemos que pesquisas posteriores comprovaram que a gema não ficou intacta, os irmãos

sofreram influências da visão cristã, permeada pelo período do romantismo. O crivo do

ideário cristão foi passado nos textos da segunda edição, e assim os autores suprimiram

episódios de violência e crueldade, os de cunho sexual explícito, além das modificações na

passagem da voz para a letra, como o enxerto nos fragmentos dos textos e na elaboração

estilística.

Um longo período marcado por profundas transformações econômicas, sociais,

politicas, como dito anteriormente, esse amálgama constituiu a oralidade no período

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medieval, os intérpretes cantam e contam o cotidiano, propagando louvores ou satirizando o

modo de vida vigente, compondo o bordado do tecido a vestir um período muito

incompreendido até hoje por estudiosos e pesquisadores de vários cantos do mundo. Por isso,

o intérprete assume o papel de medidor do tempo social ao trazer sua voz às mais diversas

situações da vida:

Pela boca, pela garganta de todos esses homens (muito mais raramente, sem dúvida,

pelas dessas mulheres) pronunciava-se uma palavra necessária à manutenção do laço

social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos,

revestida disso de uma autoridade particular. (ZUMTHOR, 1997, p.67)

3.6. Ponto teia de aranha10

– Para cincundar a vida com a voz

Nas leituras feitas para nutrir a escrita do tópico sobre o período medieval,

encontraremos olhares de pesquisadores alinhavando oralidade, período medieval e o Novo

Mundo, ao associarem a oralidade no Novo Mundo à chegada dos colonizadores, em geral

camponeses sem terra, ou desocupados da área urbana em busca de novas oportunidades, que

ao aportarem no litoral brasileiro trouxeram a cultura oral. No entanto, devemos arrazoar na

oralidade já aqui presente, particularmente no Brasil.

Luís da Câmara Cascudo foi historiador, antropólogo, advogado e jornalista,

pesquisador das manifestações culturais brasileiras. Em Literatura Oral no Brasil (1984), o

autor nos leva ao universo da oralidade dos primeiros povos a habitar o Brasil, os indígenas.

Câmara Cascudo referenda a Poranduba, a odisseia indígena, e sua importância para a

continuação das narrativas através da memória dos velhos, ou o que ele denomina de memória

viva do grupo:

É a Poranduba, a Maranduba, expressão oral da odisseia indígena, o resumo fiel do

que fez, ouviu e viu nas horas distantes do acampamento familiar [...] A tradição

oral indígena guardava não somente o registro dos feitos ilustres da tribo, para

emulação dos jovens, espécie de material cívico para excitação, como também as

histórias facetas, fábulas, contos, o ritmo das danças inconfundíveis. [...] Os

guerreiros que envelheciam possuiriam o arquivo das versões orais. Essa

continuidade era tão normal e poderosa que compreendemos como foram

transmitidas aos naturalistas, exploradores, missionários, centenas e centenas de

fábulas e de contos, ainda inesgotáveis mananciais responsáveis por essa

conservação (CASCUDO, 1984, p.79-80).

Para os povos indígenas, as histórias nutriam o cotidiano, explicavam o mundo. E a

sonoridade da voz, que acolhe e ensina, era a maneira peculiar de dizer de si, do outro e dos

demais seres pertencentes ao círculo de vida. A intimidade existente entre os povos indígenas

10 Ponto feito em direção ao centro do círculo, com raios formando a base até preencher a circularidade do

bordado.

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e a fauna, a flora e todo o meio ambiente tornavam-os enredados, fios da teia de histórias da

vida, característica tão preciosa dos povos tradicionais, conforme visto anteriormente. Dessa

forma, os rios, as matas, os animais, o vento, o fogo etc. faziam parte ora como protagonistas,

ora como antagonistas do repertório da literatura oral.

Tal acervo, graças à memória e à oralidade, chegou até nós. Essas histórias falam das

origens: da lua, do sol, do milho, do açaí, da mandioca, da noite, dos animais, do surgimento

dos rios, das estrelas, do fogo, do vento, do tempo em que os bichos falavam com os

humanos, dos seres híbridos, dos fenômenos astronômicos, do caçar e pescar, do

reconhecimento das marés, da saúde pelas plantas. Elas revelam o modo de pensar, agir,

sentir, a forma como, enfim, vivia cada comunidade indígena, tal como evidencia Cascudo

(1984, p.87): “O indígena conta, horas e horas. Conta, dias e dias, ou melhor, noites e noites,

um milhar de estórias de guerra, caça, pesca, origem de várias cousas, o amanhecer de sua

família no mundo”. Esse parecer é detalhado pelo autor em passagem de seu livro:

O indígena tudo explicava naturalmente dentro da vida assombrosa em que vivia.

Estrelas, manchas negras no céu, época das enchentes, chuvas, escuro da noite,

animais, rios, viveram sob outra forma, entre os indígenas, há muito tempo, quando

só existiam os avós das cousas e entes atuais, o avô da tartaruga, o avô dos macacos,

o avô dos mutuns. Depois de uma tragédia, meio escondida no esquecimento das

tribos modernas, esses entes voaram, subindo, subindo para o firmamento e lá se

transformaram em constelações. O mutum é o cruzeiro do Sul. Canopus era um

homem chamado Pechioço, casado com uma mulher-sapo-cururu. As plêiades eram

crianças que os pais não podiam alimentar. A mandioca nasceu primeiro no túmulo

de Mani. O milho do sepulcro de Ainotaré. O guaraná do olho direito do filho de

Onhiámuáçabe. Sentem-se um sabor de História fantástica, vinda de geração a

geração, como uma herança miraculosa, explicando um principio. Localiza-se a

espécie surgida, a tribo é nomeada, às vezes o próprio nome do protagonista. Há um

halo de respeito. Não há ritual, mas uma veneração, visível na maneira grave de

narrar o sucesso maravilhoso (CASCUDO, 1984, p.98).

Mistérios da vida descortinados pelo contar horas e horas, ali o tempo não é medido

pelas 24 horas do relógio, outras temporalidades são protagonistas do tempo, as histórias para

os povos indígenas são saboreadas por muitas luas, algumas duram um ou mais ciclos lunares,

sem pressa, porque precisam transitar entre os mundos internos e externos do contador e do

ouvinte, fazer sentido, sair dos espíritos que habitam em cada ser vivente, o espírito das águas,

das matas, dos ventos, e voltar em forma de pouso suave, como o de um pequeno passarinho,

ou tempestuoso como o banzeiro das águas agitadas. As histórias chegam conforme a

necessidade que o ajuntamento requer, mas, de forma geral, trazem um ensinamento maior, a

busca pela harmonia com as formas de vida e o profundo respeito pelas tradições ancestrais.

Esses ensinamentos são transmitidos eminentemente pela voz com base na memória,

dois componentes vitais para a permanência dos preceitos indígenas. Segundo Daniel

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Munduruku (1999, p.21), “As sociedades tradicionais são filhas da memória e a memória é a

base do equilíbrio das tradições. A memória liga os fatos entre si e proporciona a

compreensão do todo”. Para ele, só conseguiremos compreender os povos indígenas a partir

do entendimento do lugar que a memória ocupa no cotidiano.

Ao puxarmos um fio para a Amazônia, observaremos que o próprio nome surgiu a

partir do imaginário dos viajantes e cronistas de viagem que por aqui passaram. No século

XVI, o explorador espanhol Francisco de Orellana, ao navegar pela região, afirmou ter

avistado uma aldeia apenas com mulheres, índias guerreiras, comparando-as com as

Amazonas, as bravas e corajosas filhas de Ares, o deus da guerra. E assim, a região

exuberante e misteriosa ao olhar do estrangeiro, é batizada de Amazônia, nome nascido sob a

égide do mito:

A voz do mito aparece em narrativas fundadoras da região, como crônicas de

viajantes estrangeiros ou brasileiros, de séculos anteriores ao nosso. Estes textos

inferem saberes sobre a Amazônia e constroem a história da região, como se observa

nos mitos das amazonas e do eldorado.

Assim, este complexo narrativo mítico representa as formas de pensar e indica os

modos de agir dos habitantes das comunidades abeiradas do rio ou moradoras da

floresta, próximas ou não, das zonas urbanas (FARES, 2008a, p.102).

Portanto, inicialmente, o ponto será costurado no período colonial pelo cronista da

companhia de Jesus, Padre João Daniel, que viveu na região entre 1741 a 1757, até ser preso

pelo Marquês de Pombal.

João Daniel (2004), em suas crônicas, traz o olhar sobre a região amazônica em seus

vários aspectos. Um aspecto de grande relevância para esta pesquisa são o contato com os

povos que aqui habitavam e as impressões provenientes deste encontro.

Ao relatar suas impressões sobre a população, o cronista tece comentários sobre o

modo de viver baseado na recepção da voz, ajudando-nos a formar o quadro da importância

da oralidade no período apontado pelos relatos:

É bem verdade que os filhos obedecem com muita sujeição aos pais, os mais moços

aos mais velhos, tendo-lhes tanta veneração, e as velhas, que juram nas suas

palavras; e o que dizem são para eles oráculos, e evangelhos, de sorte que ainda

convertidos e domésticos mais depressa acreditam o que lhes dizem as velhas do que

o que lhes pregam os missionários. E se alguma velha levantou a voz e diz morram

os missionários, tenham esta paciência, porque lhes será difícil o escapar; e pelo

contrario quando os índios amotinados querem matar algum europeu, basta um para

aquietar. Deste grande respeito que têm aos velhos e velhas nasce a grande

veneração os seus contos, que vão passando por tradição de uns a outros (DANIEL,

2004, p.269).

A palavra proferida pelos velhos adquiria status de lei, obediência, sujeição e

veneração, expressões utilizadas para dizer da sacralidade da voz emitida pelos idosos,

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tornando-os conselheiros, mediadores de conflitos, pontos de equilíbrio e harmonização

dentro da comunidade. Os mais novos tinham ciência da sabedoria abrigada nas palavras

ditas, a reverência acompanhava outra preocupação pertinente tanto aos que falavam quanto

aos que ouviam, a necessidade de repassar os saberes para a continuidade das tradições.

Padre João Daniel (2004) cita um aspecto específico da veneração aos velhos e às

velhas: os contos. As narrativas, os mitos, conforme mencionado anteriormente, são a forma

de compreender, ser e estar no mundo, explicações da cosmogonia e do cotidiano indígena

diretamente expressa nos contos, a matriz cosmogônica construída com base na relação do

homem com seu meio, criam laços fortes entre homem e natureza, entre o próprio grupo,

fortalece a noção do todo interligado, do compartilhamento de saberes através da palavra

falada.

A oralidade entre os povos indígenas é uma prática que resiste às influências do

tempo. Cascudo (1984, p.78) mostra em períodos mais recentes a presença da oralidade entre

os indígenas:

Os seringueiros e cortadores de caucho, viajantes e pequenos mercadores, contam a

mesma cena em todas as aldeias indígenas que visitaram, Amazonas, Pará, Mato

Grosso, Goiás. Depois do jantar, noite cerrada, no pátio que uma fogueira ilumina e

aquece, reúnem-se os velhos indígenas, os estrangeiros, para fumar e conversar até

que o sono venha. Evocações de caçadas felizes, de pescarias abundantes, aparelhos

esquecidos para prender animais de vulto, figuras de chefes mortos, lembrança de

costumes passados, casos que fazem rir, mistérios da mata, assombros, explicações

que ainda mais escurecem o sugestivo apelo da imaginação, todos os assuntos vão

passando, examinados e lentos, no ambiente tranquilo.

Ao redor da fogueira, as chamas alimentavam as evocações dos feitos, dos

acontecimentos, trazem a função fabuladora, dita e redita, e, ao mesmo tempo, sempre nova

no hálito vital do narrador. Bachelard (1990, p.52-53) traz a metáfora da fênix em Fragmentos

de uma Poética do Fogo ao exemplificar que “A imagem da Fênix é essencialmente uma

imagem tornada Verbo, uma imagem que suscita uma multiplicidade de metáforas”. A

palavra é proferida com seus nascimentos, em seu estado polissêmico, dizemos estar

acontecendo a arte de contar histórias.

A atração exercida pelo fogo configura-se em várias metáforas, uma delas mencionada

anteriormente é a ligada ao mitológico pássaro Fênix, com suas penas brilhantes, douradas,

com tons entre o vermelho e o roxo, que tinha a capacidade de morrer em autocombustão e

renascer de suas próprias cinzas. A transmutação do pássaro de fogo, como era conhecido por

alguns povos, revela-nos o significado da perpetuação, do renascimento, como trouxe

Bachelard (1990) ao dizer que o pássaro Fênix vive no fenômeno da linguagem, renascendo

na existência poética.

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Tal como o fogo, como os movimentos flamejantes das chamas, a imaginação humana

incandesce, por isso muitos povos reúnem-se ao redor das fogueiras para aquecer a alma ao

contar e ao ouvir as narrativas. Os povos indígenas fazem parte dos seduzidos pelo fogo!

Saberes e práticas educativas são transmitidos em noites iluminadas pela fogueira. Narrativas

que renascem a cada performance do contador reencontram a existência poética nas

flamejantes chamas da fabulação da linguagem.

Na Amazônia, o movimento das poéticas orais é parte constituinte da vida dos

habitantes. Loureiro (1995, p.55) esclarece que a cultura amazônica encontra-se imersa num

ambiente onde predomina a transmissão oralizada.

As narrativas na Amazônia são parte constituinte da vida dos habitantes, o narrar é em

primeira pessoa, as histórias ocorreram com o próprio contador, foi ele quem deixou o café e

o tabaco para a Matinta, após uma noite de assombramento e assovios estridentes, ou foi a

filha, a esposa ou outra mulher muito próxima quem dançou com o Boto a noite inteira,

tremer de medo ao pensar que a qualquer momento a Cobra Grande, que mora embaixo de

Belém do Pará – a cabeça sob a Catedral da Sé e cauda sob a Basílica de Nazaré – possa

despertar de seu sono e afundar a cidade com um simples remexer de seu corpo? Assim se

nasce e se cresce na Amazônia, reverenciando os narradores e as narrativas, o repertório do

contador de histórias é transmitido por parentes ou conhecidos, o narrar é uma ato natural para

quem tem o rio e a mata como casa, é a maneira de ser, estar e compreender o mundo:

Na Amazônia as pessoas ainda veem seus deuses, convivem com seus mitos,

personificam suas ideias e as coisas que admiram. A vida social ainda permanece

impregnada do espirito da infância, no sentido de encantar-se com a explicação

poetizada e alegórica das coisas. Procuram explicar o que não conhecem,

descobrindo o mundo pelo estranhamento, alimentando o desejo de conhecer e

desvendar o sentido das coisas ao seu redor. Explicam os filhos ilegítimos pela

paternidade do boto; os meandros que na floresta fazem os homens se perderem pela

ação do curupira; as tempestades pela reação enraivecida da mãe-do-vento etc.

(LOUREIRO, 1995, p.103).

Loureiro (1995, p.194) utiliza o termo “contemplação devaneante” para explicar o

entrelaçamento do homem e os elementos constituintes do seu cotidiano. Ao caboclo

amazônico, são reservadas longas horas de devaneio e contemplação necessários a sua

sobrevivência material, o pescador perdido em seus pensamentos a espera do peixe, ou o

extrativista a contemplar a mata em busca de subsistência, desse encontro, nasce a explicação

para tudo, um cotidiano povoado, seres encantados, rezas para curas, ritos etc. O devaneio

contemplativo liga o caboclo do barranco da beira do rio às estrelas, como o cordão umbilical

que liga seu ser imaginativo ao grande útero cósmico do universo:

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Para o nativo da Amazônia, a contemplação é um estado de sua existência. O

principio e o fim de suas relações com a vida cotidiana e a raiz de suas

peculiaridades de expressão. Evidentemente que não é uma contemplação de caráter

teologal ou místico, mas uma contemplação que é a extensão de sua humanidade e

geradora do humanismo. É uma contemplação que estabelece o equilíbrio de limite e

grandeza do homem com a natureza. Diante dessa natureza magnifica e desmedida,

ele dimensiona segundo as medidas de sua humanidade. Confere à natureza uma

dimensão espiritual, povoando-a de mitos, recobrindo-a de superstições, destacando-

lhe uma emotividade sensível, tornando-a lugar do ser, materializado nela sua

criatividade, ultrapassando sua contingência na medida em que faz dela um lugar de

transcendência. Assim o caboclo se reconhece nessa natureza e amplia sua realidade,

eliminando as barreiras com o ilimitado do imaginário (LOUREIRO, 1995, p.195).

Neste cenário, em que a mitopoética das águas e da mata sinaliza o modo de

compreender o mundo, as histórias são cadenciadas pelo fluxo das marés, as que trazem a

presença do rio, como o Boto, a Cobra Grande, e as de mata, como Curupira, Matinta Perera,

para citar apenas algumas das fecundas narrativas que abrigam o imaginário amazônico.

As histórias na Amazônia fazem parte do legado das culturas aqui encontradas. Fares

(2008, p.102), pesquisadora das poéticas orais na Amazônia e pioneira na construção das

cartografias poéticas, nos alerta sobre a multiplicidade de culturas e identidades aqui

encontradas:

Não existe uma cultura, uma identidade amazônica no singular, a compreensão deste

espaço é sempre concebida no plural. As diferentes manifestações culturais trazem

marcas do híbrido e da mestiçagem, e reconhecem as presenças indígenas, africanas,

libanesas, nipônicas, entre tantas outras. São essas vozes poéticas de múltiplos

sotaques e línguas que fundam a Amazônia, mesmo sem ser necessário comprovar

quais os desenhos mais fortes e os rascunhos mais claros.

Dificilmente um amazônida ousa tomar banho nos rios nas horas mortas ou horas

grandes (00:00, 06:00, 12:00, 18:00 e), ou uma mulher banhar-se no rio ou igarapé

menstruada. Como dito anteriormente, as narrativas fazem parte do nosso cotidiano,

semeamos as histórias ouvidas com naturalidade, elas são abrigo e proteção para a memória e

a tradição dos povos que aqui habitam.

3.7. Ponto de cadeia11

– A oralidade e o narrador contemporâneo

O ato de narrar é muito antigo, cada povo, de sua forma, possui um acervo de

narrativas. É certo que hoje não encontramos mais “sindicatos de contadores de histórias”.

Vivemos em outros tempos, houve mudanças na mentalidade atual, mas a presença das

narrativas continua a encontrar lugar na grande teia de histórias da vida. A percepção de que

somos parte desta tessitura permite-nos olhar o outro e a nós mesmos.

11

Ponto formado por argolas feitas a partir da introdução da agulha no mesmo lugar de onde saiu a última vez.

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Narrar pressupõe olhar nos olhos, beber da experiência que anda de boca em boca,

visitar mundos e criar outros, exercer o ouvir e o falar, elaborar e reelaborar o que está sendo

narrado, entre tantos outros benefícios que o narrador/ouvinte adquire.

Até o final do século XIX, frequentemente as pessoas reuniam-se para ouvir histórias,

porém no início do século XX, mais precisamente pós-Primeira Guerra Mundial, a Europa

presenciou o desaparecimento rápido do ouvir e contar histórias. O fenômeno repetiu-se no

Oriente Médio, os contadores de cidades como Cairo e Túnis começam a não ser encontrados

mais narrando proezas.

Na África, semelhante processo ocorreu, mas devido ao processo de colonização

europeia. A escola ocidental era legitimada em detrimento dos saberes locais repassados pelos

griôs, suas palavras passaram a ser vistas como supersticiosas e enganadoras pelos

colonizadores.

Na América do Sul, os contadores também não eram encontrados nos centros urbanos,

processo que chegou ao interior a partir de 1960, com a chegada da TV, palavras ditas por

Machado (2004, p.14), “Se por um lado os velhos contadores tradicionais estão

desaparecendo, porque nas comunidades rurais a televisão ocupa implacavelmente seu lugar,

nos grandes centros urbanos a quantidade de gente que se dedica a essa arte está crescendo.”

Machado apresenta um limiar entre o desaparecimento do contador tradicional e o

ressurgimento de um contador encontrado em outro território, e com diversas necessidades.

Os efeitos da modernidade apontavam outros caminhos para o narrador, a palavra essencial do

contador não morreu, apenas ficou quieta aguardando ouvidos generosos.

Os Contadores de histórias resistiram! Suas palavras calorosas e acolhedoras

encontraram abrigo mesmo em tempos de desiquilíbrio, prova disso é a reinvenção da “gente

das maravilhas”, como são chamados os contadores de histórias pelo povo árabe.

Um ponto de alinhavo para apresentar em um contador brasileiro, nascido em 1895, no

Rio de Janeiro, Júlio César de Mello e Souza, mais conhecido como Malba Tahan,

pseudônimo usado por ele por gostar de ler e contar histórias árabes. Machado (2004) conta-

nos do legado deixado por ele, através da arte de contar histórias:

Malba Tahan formou-se como professor primário, depois concluiu o curso de

Engenharia Civil na Escola Politécnica da USP – profissão que nunca exerceu – e

chegou a estudar um tempo numa escola de arte dramática. Durante muitos anos foi

professor em escolas publicas do Distrito Federal, trabalhou na formação de

professores, deu aula para alunos deliquentes numa escola no final da década de

1920. Lecionou História e Geografia e foi catedrático de Matemática no famoso

Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, durante doze anos.

No instituto de Educação do Rio de Janeiro foi professor de Matemática, Literatura

Infantil, Folclore e Arte de Contar Histórias, titulo também de um de seus livros.

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Nessa obra, escrita para professores, pode-se perceber claramente uma época da

História da educação brasileira com suas tendências pedagógicas e o estilo fluente e

direto de um contador de histórias, aliado a um propósito bastante didático de

oferecer recursos e técnicas uteis para o magistério (MACHADO, 2004, p.186).

Não temos como puxar o fio da teia das histórias no Brasil sem citar o trabalho de

Malba Tahan, que, já na década de 1920, preocupava-se em contar, pesquisar e produzir

materiais escritos sobre a arte de contar histórias. Tahan ressignificou a entrada dos contos

tradicionais na escola, não enquanto perspectiva pedagógica, mas como possibilidade da

educação humanizadora e integral tão buscada na atualidade do contexto educacional. Nos

seus escritos, Tahan nos chama ao mergulho na capacidade criadora e fabuladora presente em

cada um de nós, educar através do sensível.

No puxar o fio para bordar o ponto de cadeia, nos deparamos com a linha matizada de

Rubem Alves (2003, p.12) ao apresentar duas tarefas da educação. A primeira diz respeito ao

conhecimento científico, o currículo formal praticado pelas instituições escolares. Alves nos

traz a imagem de tal conhecimento como sendo o primeiro olho, a legitimada e acolhida nas

escolas.

A segunda tarefa, ou o segundo olho, tem a ver com o despertar das funções anímicas,

do encontro entre conhecimento e deleite, com saborear o mundo e as formas existentes e

contidas nele, conhecer e lapidar o mundo interior que chamamos de alma, compreender a si

para compreender o outro, construindo o impulso de amorosidade, solidariedade,

comprometimento e alegria entre os povos:

Daí a necessidade de se abrir o segundo olho. O segundo olho nos leva à alma dos

seres humanos onde estão adormecidos os sonhos de beleza e bondade. E, como na

história de Aladim, a porta só se abre quando a palavra certa é pronunciada.

“Trouxestes a chave?” A chave é a poesia. A poesia é a palavra que fala a mesma

linguagem do nosso corpo. O Verbo se faz carne: o corpo é a poesia encarnada

(ALVES, 2003, p. 13).

Assim, a obra de Malba Tahan é repleta de imagens para serem vistas através do

segundo olho, o do poético, conhecimento como parte constituinte do amor, das metáforas, da

alegria, da harmonia entre todos os seres enredados na teia da vida. Tahan encontra destino

certo na história dos contadores de histórias, seu trabalho serve de referência para os que se

dedicam à pesquisa das poéticas orais e ao caminho precioso de ouvir e contar histórias.

Por volta dos anos de 1970, pessoas de diversas áreas do conhecimento, em especial

educadores, voltam sua atenção para pesquisas e vivências sobre o ato de contar e ouvir

histórias.

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Matos (2005, p.17) apresenta-nos a culminância do retorno do contador através da

realização de um Colóquio Internacional, realizado no Musée National des Arts et Traditions

Populaires, em 1989, na cidade de Paris, com trezentos e cinquenta participantes de quatorze

países, que se reuniram para discutir a volta dos contadores de histórias no cenário urbano.

Foram ouvidos os depoimentos sobre a retomada do narrador. Ainda na década 1970, em

Londres, a afegã Amina Shah reunia pessoas para o chá das cinco e costumava narrar histórias

do Oriente. No mesmo período, na França, um estudante de letras, Henri Gougaud, socializou

as lendas de todo mundo através da rádio TSF.

A pesquisadora Gyslaine Matos pontua o movimento de contadores de histórias

realizado na França, ao dizer:

Na França, primeiro país em que tomei contato com esse movimento, nos anos

1980,contos e contadores mostravam seu vigor em diversas formas de manifestação.

Espetáculos semanais de contadores de histórias eram oferecidos a um público cada

vez maior e mais interessado; reedições e novas publicações sobre o tema apareciam

com frequência nas livrarias; festivais regionais e internacionais de contadores de

histórias eram realizados em várias cidades; oficinas de formação e de

aperfeiçoamento destinadas a contadores de histórias proliferavam, e a publicação de

duas revistas especializadas: a Ouïrdire, Bulletin du collectif – contes des

bibliothèques municipales de Grenoble, fundada em 1981, e a Dire, editada a partir

de 1987 pela Association pour la Promotion de la Culture Orale e publicada pelo

Centre National de Lettres – Paris, eram a confirmação de que os contadores de

histórias tinham vindo para ficar (MATOS, 2005, p.19-20).

No Brasil, o reaparecimento do contador urbano ocorreu nos anos de 1980, através de

iniciativas individuais e coletivas de pessoas desejosas em semear as narrativas. Em alguns

casos, o início se deu em espaços em que a palavra encontrava possibilidades de fluir, há

notícias de impulsos do contar e ouvir em bibliotecas, universidades, escolas, e demais

espaços onde a palavra encontrasse abrigo.

No livro Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias, Regina

Machado registra sua experiência como contadora de histórias e fala sobre sua trajetória de

pesquisa na área e o consequente comprometimento com o narrador e as narrativas. O relato

remonta ao início da década de 1980:

Os contos entraram na minha história no início da década de 1980, e desde 1984

meu trabalho foi ganhando contorno mais preciso no curso de Especialização em

Arte e Educação que coordenei na Escola de Comunicações e Artes da universidade

de São Paulo, durante 16 anos. Em torno dessa ideia de formação que chamo de

teórico-poética, desenvolvo minha pesquisa na Universidade. Não me considero

acadêmica de gabinete, ao contrario, tenho necessidade de ver as palavras pularem

do papel e se mexerem dentro das pessoas, de preferencia na vida de todos os dias

[...]

Ao mesmo tempo, tornou-se importante compreender melhor esse material com que

estava trabalhando. Afinal, do que trata a arte de contar histórias? Como esses

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contos desabrocham dentro das pessoas? Então o segundo eixo da pesquisa trata da

arte de narrar. Do mesmo modo que a melhor forma de aprender sobre natação é

entrar na agua e nadar, tive de aprender a contar histórias para compreender minhas

perguntas. Fui descobrindo devagar o que um contador de histórias precisa saber,

que recursos internos e externos tem de buscar, como reconhecer bons contos

(MACHADO, 2004, p.14).

Na década de 1990, em Belo Horizonte, começaram a surgir grupos de contadores de

histórias organizados pela Biblioteca Pública Infantil e Juvenil, além de um Festival de

contadores, “Os melhores contadores de histórias”, promovido também pela Biblioteca acima

citada no ano de 1992 (MATOS, 2005, p.20). Temos notícias de muitos encontros e festivais

sobre a arte de contar. Sisto (2012, p.64-65) nos traz um panorama:

Havia ainda, há mais de dez anos, uma serie de festivais de contadores de histórias

em vários países. Em Buenos Aires, ainda há o Encontro Argentino e Latino-

Americano de Narração oral, como parte da Feira do Livro de Buenos Aires e havia

o Festival Nacional de Narração Oral. O Festival das Ilhas canárias, em Tenerife,

mais precisamente, no povoado de Los Silos – Festival Internacional do Conto – é

um dos mais antigos e costuma reunir contadores de vários partes do mundo,

mobilizando uma grande parcela da população local. Lá também atuavam (e ainda

atuam) ótimos contadores, como Ernesto Rodríguez Abad e Ruth Dorta.

Os Festivais, encontros, cursos e escolas espalhadas pelo país e pelo mundo também

se multiplicaram. No Brasil, em especial, o Simpósio Internacional de Contadores de

Histórias (SESC do Rio de Janeiro), o Boca do Céu (SESC São Paulo), o Seminário

A arte de contar histórias (Feira do Livro de Porto Alegre), o Seminário

Internacional de Contadores de Histórias (Jornada nacional de Literatura de Passo

Fundo) e o Instituto Aletria (Belo Horizonte- MG) continuam atraindo um enorme

público e reunindo os profissionais e os futuros profissionais da área.

Um redescobrir da arte de contar histórias nos espaços urbanos, diversas pessoas de

diferenciadas áreas do conhecimento se voltam para a prática milenar e ancestral de narrar,

cada vez mais há o crescente interesse em oficinas, cursos, disciplinas e até pós-graduação

sobre a temática. Contadores individuais ou em grupos semeiam a palavra em bibliotecas,

hospitais, praças, aniversários, escolas, livrarias e demais espaços receptivos à voz e à

performance do novo contador.

Em Belém do Pará, cidade lócus desta pesquisa, também temos muitas histórias para

contar sobre a figura do narrador, muitos dos contadores que hoje atuam no circuito acima

citado beberam na fonte da oralidade, fato comprovado pelos próprios contadores ao

partilharem suas memórias, a imagem do idoso narrador (avós, vizinhos, tios etc.) geralmente

é trazida.12

“Na Amazônia, contam-se histórias nas esquinas, nas portas, nas calçadas, nos bancos,

e quanto mais se adentra a mata ou se abeira o rio, mais o repertório se enriquece e se

12

Ver página 14 da introdução sobre a memória de infância da pesquisadora.

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avoluma” (FARES, 2010,p.90). Aqui se cultivou por longos anos o hábito de reunir-se nas

portas das casas para contar e ouvir histórias. Até meados da década de 1990, ainda podíamos

encontrar nos bairros periféricos as cadeiras dispostas em círculo na porta das casas, famílias

inteiras e vizinhos eram cobertos pelo manto de histórias ricamente bordado pelo sereno das

noites quentes de Belém.

Em Duarte (2008, p.56), em sua dissertação de mestrado intitulada Memórias

(in)visíveis: narrativas de velhos sobre suas infâncias em Belém do Pará (1900-1950),

ouvimos a história de Dona Corila, de 93 anos, sobre as rodas de conversas noturnas: “Havia

história à noite, a gente via aquelas velhinhas, aquelas cozinheiras que sentavam na frente das

casas pra contar histórias. A gente fazia aquela roda pra ouvir história”.

O ritual de ajuntamento era prazeroso a ponto de ter lugar cativo na memória dos que

viveram de forma mágica e intensa a cultura da conversa. No entanto, Dona Corila acrescenta

em seu depoimento memorialístico o duro golpe sofrido pelas rodas de conversas noturnas, ao

citar a proibição imposta pelo Código de Postura da administração municipal, criado em 1900,

para disciplinar os habitantes.

A inserção do Código de Postura fazia parte de uma ampla campanha de

modernização da cidade com normas rígidas e punições aplicados aos que desobedecessem.

Situações do cotidiano que fossem contra o projeto de urbanização vigente eram proibidas e

banidas. Entre as práticas que passaram a sofrer as sanções por parte das autoridades, foram as

conversas noturnas entre familiares e vizinhos, nas portas das casas. A proibição está no

artigo 110 do Código de Postura do Município de Belém, de 1900.

Num lugar chamado Amazônia, a tentativa de “civilizar” o narrador e as narrativas é

tarefa nada fácil! Eles estão presentes entre nós até hoje reinventando jeitos, características,

repertórios, performances de acordo com as territorialidades e temporalidades. Ainda hoje, no

século XXI, encontramos contadores tradicionais em Belém espalhando a palavra nas

calçadas, casas. Para nosso contentamento e profunda felicidade, os encontramos em diversos

recantos da Amazônia como testemunho vivo da força da palavra.

3.7.1. Ponto de cadeia – A oralidade e o narrador em Belém

O surgimento da pesquisa, ora apresentada, ocorreu a partir do encontro com um

desses contadores na Ilha Grande/Belém. Seu Simeão, morador da ilha, é reconhecido pelas

crianças da Unidade Pedagógica São José como um contador de histórias. No caminhar da

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pesquisa, em contato com outros moradores de diversas idades, a mesma referência foi dada.

Seu Simeão é o contador.

Nos espaços urbanos, encontramos várias iniciativas de pesquisas e trabalhos voltados

para o Contador e as histórias, citaremos apenas algumas.

Em 1981 em Belém, Paulo Nunes, Josse Fares e Ciro Pimenta, professores de Língua

Portuguesa, criaram no Colégio Estadual Deodoro de Mendonça o grupo lítero-musical Mãos

Dadas, para semear a literatura aos alunos, através da arte, celebrar a palavra e tornar

prazeroso o contato dos alunos com a leitura literária.

Na década de 1990, a Universidade Federal do Pará, através da disciplina Mito e

Literatura, vinculada ao curso de Letras, inicia um trabalho de recolha de narrativas orais,

coordenado pela professora Socorro Simões. Do trabalho com o acervo, surgiram, no segundo

semestre de 1993, os contadores de histórias itinerantes, juntamente com o Projeto Integrado

IFNOPAP (O Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense),

com o intuito de recolher as narrativas, criar um acervo para disponibilizar a alunos e

professores.

Em 1997, a Prefeitura Municipal de Belém, por meio da Secretaria de Educação/

Coordenadoria de Esporte, Arte e Lazer e UNICEF, implantou o Projeto “O contador de

histórias”, com o objetivo de levar contadores às Escolas, Unidades de Educação Infantil e

Unidades Pedagógicas.

No final de década de 1990, precisamente em 1999, a Universidade do Estado do Pará

começa um projeto de extensão, coordenado pela professora Renilda Rodrigues Bastos,

intitulado Griô, alunos do curso de Formação de Professores participavam de reuniões

semanais de estudos e vivências sobre o contar histórias.

No início de 2000, na Escola Municipal Terezinha Souza, localizada na Castanheira,

bairro periférico de Belém do Pará, foi iniciado um projeto de formação do grupo infantil de

contadores de histórias TUERARUP (significa “para sempre” na língua Tembé), que nasceu a

partir de um projeto maior: “A Ciência do povo na escola”, pensado no início do ano letivo,

por duas professoras do Ciclo básico II da escola, Ana Cristina Ramos e Andréa Cozzi. Tal

instituição de ensino está localizada na Castanheira, bairro periférico de Belém do Pará.

Estendemos um pouco os pontos deste último bordado, por se tratar de uma

experiência inaugural com a formação de crianças contadoras de histórias e por eu estar

diretamente envolvida no projeto que mudou o curso dos ventos em meu trajeto pessoal e

profissional. Por esta razão, o que aqui chamamos de ponto de cadeia começa a formar uma

argola e introduzir a agulha nesta história de vivências e mudanças.

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A proposta inicial do projeto era trazer para a sala de aula as narrativas que invadem o

imaginário popular da comunidade da Castanheira e, assim, do amazônida. O grande desafio

era trazer para a sala de aula as narrativas. Após o período de contação de histórias, que durou

aproximadamente um mês, as crianças foram orientadas a buscar na comunidade outras

histórias. Em pouco tempo, as duas classes passaram a conhecer e a socializar com os colegas

as histórias narradas por seus vizinhos, pais e avós.

Todas as histórias foram transcritas pelos alunos, sob a orientação dos professores,

dando origem ao livro texto Histórias Pai d’égua, que expressa, em mais de 50 histórias, o

imaginário popular da comunidade da Castanheira. O livro-texto passou a ser trabalhado

sistematicamente, não apenas na disciplina Língua Portuguesa, como nas outras áreas do

conhecimento. O fascínio das crianças ao lerem e discutirem as histórias contribuiu para que a

coordenação do projeto repensasse os novos caminhos a serem seguidos. Aquele era o tempo

de concluir que o projeto tinha que atingir alunos dos outros ciclos de estudo, através da

contação de histórias.

Em pouco tempo, o grupo de contadores de histórias começou a estruturar-

se democraticamente. Todos os encaminhamentos foram retirados em assembleias dos alunos

envolvidos no projeto. As crianças passaram a apreciar todo o universo de encantamento

amazônico, nossa ancestralidade indígena é contada e cantada pelos pequenos contadores. O

uso de cocares nas contações, bem como o nome do grupo TUERARUP (“para sempre”),

aprendemos com os Tembé, que, apesar do pouco contato, foram presença forte e constante

para nós. As histórias narradas constituíram um movimento de resistência e reversibilidade,

contribuindo para a circulação das narrativas.

Nas contações, além das histórias, introduzimos poemas e músicas de ritmos

amazônicos como carimbó, toadas de boi e cantos indígenas, os instrumentos foram

confeccionados com elementos da floresta (sementes, cipós, troncos de árvore etc.).

No início de 2001, o grupo de contadores de histórias estava formado por 15 alunos,

entre 07 e 12 anos, ou seja, de vários ciclos, e dois professores que, inicialmente, se reuniam

aos sábados pela manhã, sendo deslocadas as reuniões para as quintas-feiras após o término

das aulas. Em menos de dois anos, a contação de histórias, antes restrita à escola, foi levada

para outros espaços (feiras de livros, encontros de educadores, abertura de congresso, outras

escolas etc.).

Os alunos anteriormente com dificuldades na leitura e escrita, agora, estavam

organizados em um grupo de contadores infantis de histórias, revelando nossa identidade em

forma de arte, a arte da palavra falada e escrita. As coletas de histórias proporcionaram o

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prazer de editarmos, mesmo que artesanalmente, três livros, que foram usados como

referência para atividades em turma, e a produção do jornal da escola, o Cheiro do Pará, com

artigos, entrevistas, poesias, produzidos por alunos, pais e professores. Houve também a

premiação de três crianças do grupo no Prêmio Escrevendo o Futuro, da Fundação Itaú Social,

nas categorias poesia, reportagem turística e texto de opinião.

No final de 2002, realizamos, na própria escola, o I Encontro de Contadores Infantis

de Histórias, com a presença de três grupos infantis de contadores formados a partir da

experiência do TUERARUP e do grupo Griô, da Universidade do Estado do Pará. O momento

foi de troca de saberes, afetos e muitas histórias. Neste momento, já contávamos com a

participação de duas coordenadoras pedagógicas da escola, Sônia Situba e Eliene Seabra, e da

assistente administrativa Vanja Silva.

Na primeira metade da década de 2000, observamos um aumento considerável de

contadores de histórias em todo o Pará, especialmente em Belém, espaços foram abertos para

receber vozes e ouvidos, como as Livrarias Jinkings, através do Clube do Menino

Maluquinho, Fox, Saraiva, em que, semanalmente, aos sábados, há a presença de contadores

de histórias, o SESC, a Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, o Mangal das Garças, a

Estação das Docas, Casarão dos Bonecos, Biblioteca Pública Avertano Rocha, por meio do

Projeto “Buca da nuite”, além de outros. Em hospitais, também são reservados momentos

dedicados ao ouvir e contar histórias.

Em 18 de abril de 2011, um ajuntamento de contadores de diversos grupos, ou os que

fazem trabalhos individuais, firmou parceria para a formação do Movimento de Contadores de

Histórias da Amazônia/MOCOHAM, com os seguintes objetivos iniciais:

Realizar o I Encontro de Contadores de Histórias da Amazônia, a fim de iniciar um

fórum de discussões sobre a arte de contar histórias na região, por meio de palestras,

mesas-redondas, relatos de experiências, rodas de histórias etc., congregando

contadores, arte-educadores, pesquisadores, professores, alunos e público em geral que

se identifiquem com a arte de contar de histórias e sua importância para a

sensibilização da sociedade contemporânea, suas inúmeras possibilidades e

potencialidades;

Construir uma cartografia dos múltiplos agentes sociais envolvidos na arte de contar

histórias na Região Amazônica; e

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Promover a troca de experiências no âmbito do trabalho com a contação de histórias

entre os educadores, mantendo discussões permanentes para incorporar e ampliar nos

espaços educativos.

Figura 18 – Logomarca do Movimento de Contadores de Histórias da Amazônia/MOCOHAM

Em 20 de março de 2011, dia comemorado internacionalmente como o do contador de

histórias, foi dado o primeiro passo de ação do Movimento de Contadores de Histórias da

Amazônia, com a realização do I Festival Pororoca de Histórias, ocorrido no Cine Líbero

Luxardo, da Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves/CENTUR, com alunos, professores e

público em geral de cerca de 100 pessoas. Entre os objetivos do Festival, estavam:

Promover o movimento de contação de histórias com educadores e alunos das redes

pública e particular de ensino e demais interessados;

Marcar o Dia Internacional do Contador de Histórias;

Reunir contadores de histórias em seu ofício essencial de narrar histórias; e

Disseminar a prática da contação de histórias entre educadores e público em geral.

Nos dias 01 e 02 de dezembro do mesmo ano da formação do MOCOHAM, foi

realizado, em parceria com a Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, o I Encontro de

Contadores de Histórias da Amazônia, intitulado “Mergulhar na memória, revolver histórias”,

com um público heterogêneo estimado em 400 pessoas participando ativamente de palestras,

bate-papos, mesas redondas, oficinas e rodas de histórias.

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Figura 19 – Cartaz do I Encontro de Contadores de Histórias da Amazônia

Nos dias 20 a 22 de março de 2013, acontece a segunda edição do Encontro, que

excepcionalmente ocorreu concomitante com o II Festival Pororoca de Histórias. Foi preciso

ampliar os dias do Encontro e o número de contadores convidados para a programação.

Pessoas que hoje são referências nas pesquisas e vivências sobre a arte de contar histórias

foram convidadas a trocar saberes e experiências, entre elas: Regina Machado (SP), Francisco

Gregório (RJ), Maurício Leite (DF), Josebel Fares (PA), Margareth Marinho (MG), Juraci

Siqueira (PA), Joca Monteiro (AP), Adriana Cruz (PA), Paula Velozo (AC), Joana Martins

(PA), Marluce Araújo (PA).

O Encontro, a partir de então, passou a ser intitulado “Nem te Conto – Um encontro de

muitas vozes”, o número de participantes entre o Festival e o Encontro saltou de 400 para

1000 pessoas na segunda edição. O crescente interesse pela arte de contar histórias foi um

indicativo para o aumento do público.

Figura 20 – Cartaz do II Festival Pororoca de Histórias

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Figura 21 – Cartaz do II Encontro de Contadores de Histórias

Congregar e fortalecer o movimento das histórias aqui na Amazônia foi o desejo de

vários contadores que doaram seu tempo e disposição para realizar um momento importante

para os que creem no poder da palavra e na sua capacidade de transformações. As palavras de

Regina Machado, uma das contadoras de histórias participantes do encontro, traduzem o

sentido da necessidade dos ajuntamentos entre os contadores e os ouvintes:

A natureza fundamental da narração viva de contos é justamente essa qualidade

especial de encontro entre as pessoas. Tenho vontade de defini-la como uma troca de

significações “à moda da eternidade”. Uso a palavra eternidade para falar de um tipo

de situação que nunca sai de moda, por assim dizer. Como, por exemplo, a

contemplação do fogo. Imagino que, desde sempre, toda vez que um ser humano se

senta à beira de uma fogueira numa noite escura e pra pensar em circunstâncias

exteriores, deixando-se entreter pelo vaivém das labaredas, alguma coisa especial

acontece. Não é por acaso que o momento de contar histórias está ligado na nossa

memoria como a presença de algum tipo de fogo (MACHADO, 2004, p.34).

Ao terminar o bordado com as imagens dos contadores de histórias espalhados pelo

mundo, podemos ver diferenciados pontos e nuances matizadas, cores diversas e vibrantes. E

o resultado final? O fiar e tecer o manto para então bordar foi um trabalho árduo, foi preciso,

tal como Penélope, tecer de dia e destecer à noite, perceber pontos que antes pareciam do

nosso conhecimento, mas, ao enfiar a linha na agulha e tentar reproduzir, observamos que a

delicadeza dos pontos tinha que vir acompanhada de movimentos firmes e precisos. Aqui

apresentamos o manto agora bordado, com a utilização de muitos fios que ajudaram na

escolha do tecido, bastidor, agulhas, desenhos do bordado e os pontos.

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Perde-se porque já não se tece e fia, a afirmação foi feita por Walter Benjamim,

teórico do século XX, já citado aqui, que se preocupou em pesquisar o papel do narrador

frente à modernidade. Benjamim associou o ato de narrar ao tecer, as histórias aos fios. A

metáfora é apropriada, pois quando falamos em narrativa nos referimos a enredo, trama, fio da

meada, novela (novelo). A trama é tecida pelos fios de vida do contador de histórias, cabe a

cada um de nós encontrarmos o fio da meada e enredar-se na grande teia de histórias da vida.

Tecer e fiar histórias nos tempos atuais ainda é possível? A resposta é um sonoro sim!

“É nesse caos de começo de milênio que a imaginação criadora pode operar como

possibilidade humana de conceber o desenho de um mundo melhor. Por isso, talvez a arte de

contar histórias esteja renascendo por toda parte” (MACHADO, 2004, p.15). O desejo em

redescobrir o narrador e sua arte reflete a retomada do homem em religar os fios com uma das

mais essenciais formas de comunicação humana: a voz.

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4. Riscos do bordado: ensaio cartográfico dos saberes e práticas educativas da Ilha

Grande

Aqui o tempo é outro. Nosso tempo não é o mesmo, o rio é quem

manda!

Professor da UP São José, Ilha Grande.

4.1. Pesponto1 – Os desenhos da cartografia

É possível ouvir as vozes do rio e da mata? Quem já atravessou os rios da Amazônia e

se deixou emaranhar no novelo das suas águas há de nos contar tudo o que ouviu da mata e do

rio. Os segredos começam a ser ditos pelo rio tão logo embarcamos no popopô. Aos que não

sabem, este é o nome dado pelos nativos à pequena embarcação amplamente utilizada na

região e que tem um som peculiar e proveniente do motor que a faz funcionar. O som das

águas do rio indo ao encontro do casco da embarcação é também outra forma de nos falar. E

os ventos? Eles parecem não ser dados ao silêncio. Os ventos daqui entram no diálogo

ritmado ao incidirem nas lonas usadas para aplacarem as chuvas que costumeiramente

chegam nesta região.

Ao aportarmos, outros sons ocupam os espaços do não silenciar na Amazônia, é a

mata pedindo vez e voz. Os ventos novamente entram em cena ao tocarem nas folhas das

árvores, produzindo, do encontro de galhos, folhas, frutos e troncos, uma espécie de assovio.

Animais trazem suas vozes para o concerto abrolhando melodias múltiplas.

Essas são as vozes geralmente percebidas aos que cruzam o continente rumo à região

insular, sons que compõem indubitavelmente este espaço e que, muitas vezes, são tidos como

exóticos, fazem parte da exuberância de um lugar que, desde a chegada dos primeiros

navegantes, é alvo de olhar parcial, preconceituoso ou alegórico. Conforme somos

esclarecidos por Fares (2008b, p. 23),

Nas narrativas dos primeiros cronistas viajantes da América – especialmente das

regiões tropicais – há uma tendência a alegorizar alguns aspectos do território, com

finalidades comerciais, sem se importar com os demais elementos.

Certamente, não podemos desconsiderar os elementos constituintes do meio e do

modo de vida ribeirinho, o contato do homem com a diversidade da fauna e da flora

amazônicas foi determinante para a formação das culturas aqui encontradas, mas há vozes

1 Pesponto: costura pelo lado direito da roupa em cima dos pontos feitos pelo lado do avesso.

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silenciadas neste curso de rio, sons que atravessam temporalidades e territorialidades e

mostram-se indizíveis no percurso tantas vezes feito.

Os contornos do mapa, iniciado através dos registros feitos durante esta pesquisa no ir

e vir entre a Belém continental e a insular, buscam uma composição cartográfica a partir das

vozes silenciadas, das narrativas orais contadas por um morador idoso, referendado pela

comunidade e, particularmente, pelos alunos da Unidade Pedagógica São José como narrador:

Seu Simeão Monteiro.

Para a construção cartográfica de saberes e práticas educativas da Ilha Grande, serão

trazidas para compreensão de sua feitura as pesquisas feitas por Fares (2003) à luz de

Zumthor (1994), Barbero (2004), Cowan (1999), Deleuze e Guattari (1995).

Zumthor (1994, p.304) nos diz que a cartografia é anterior à escritura e expressa o

desejo universal de representar o lugar em que se vive, desenhos traçados, iconizados a partir

da necessidade de fixar distâncias, pontos peculiares, fronteiras e o que mais for tido como

importante de conceber através dos ícones. Fares (2008, p.25) estabelece itens tantas vezes

ignorados ou que passam despercebidos nos mapas: os registros culturais, a forma como os

povos se veem e se organizam em cada localidade:

O mapa objetiva a terra concreta e constitui importante registro cultural. Neste

sentido, o conjunto de seu contexto é como um holograma, em que cada um dos

pontos contém informações do todo. Este ícone arquiva conhecimentos de um grupo

humano, memoriza a história, articula os espaços em uma globalidade, projeta e

direciona um itinerário. Renega o nômade, toma partido pela estabilidade.

A carta é um signo que tem uma lógica própria, é instrumento de referência e

mensagem, que remete mais a representação condicionada pelas tradições culturais,

que a própria realidade espacial. Como texto, o mapa exige ao mesmo tempo uma

leitura e uma interpretação e atua sobre a imaginação de quem o consulta.

Do que nos serve fazer uma cartografia das vozes dentro daquele espaço chamado Ilha

Grande? Qual a troca necessária e urgente que essas vozes nos entregam e ao mesmo tempo

esperam ter dos que as escutam? O que sonhamos cartografar na Ilha Grande se perdeu das

malhas do mundo objetivo, obstinado pelo que se pode ver de imediato e quer se manter vivo

enquanto saber que não se faz em laboratórios ou não pede para ser tão previsível. E é assim

que, em consonância com o pensamento de Cowan (1999, p.28-29) e dos demais estudiosos

em cartografia, aportamos o desejo de mapear os saberes da Ilha Grande, pois:

Cada lugar que gravo em minha mente me conduz a uma terra imaginária. Estou à

procura de novas ideias e visões. Não quero afirmar o que já sei. Cada mapa que

desenho é feito tanto com as informações que recebi de visitantes à minha cela,

quanto com as minhas próprias ideias, inspirados por seus conhecimentos e,

frequentemente, por seus comentários precisos e fantásticos. De maneira estranha,

entretanto, me encontro vivendo na presença do que para eles já é passado.

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Conversando comigo, eles podem relembrar tudo o que tinham pensado estar

completamente perdido [...] Estudamos os mapas que nossos olhos gravaram no

coração de cada um. Juntos, cartografo e aventureiro discutem sobre distâncias e

rotas sabendo, silenciosamente, que nada mais são do que diversão, pois o que

estamos tentando é dar um sentido a conhecimentos disparatados. Somos iguais ao

remo e à cavilha, tentando determinar a medida do poder de cada um, mesmo que

saibamos que estamos viajando em direção ao mesmo destino.

Quanto de fuga da objetividade cabe no que aqui chamamos de cartografia de saberes

e práticas educativas da Ilha Grande? Para o proposto, é preciso saltar de uma ponte

construída por longos anos e que separa os saberes populares dos saberes científicos. E, para

ganhar força necessária ao que está sendo pretendido, ouvimos com atenção a voz de Brandão

(2002, p.24), que nos diz dos ―mapas simbólicos‖ construídos a partir das experiências dos

grupos:

A cultura configura o mapa da própria possibilidade da vida social. Ela não é a

economia e nem o poder em si mesmos, mas o cenário multifacetado e polissêmico

em que uma coisa e a outra são possíveis. Ela consiste tanto de valores e imaginários

que representam o patrimônio espiritual de um povo, quanto das negociações

cotidianas através das quais cada um de nos e todos nos tornamos a vida social

possível e significativa.

O desejo de dizer de si e do espaço vivido refaz e recria a noção de mapeamento a que

fomos acostumados a conceber, e chegam até nós outras vozes dos pesquisadores que se

aventuram em longos voos capazes de expulsar os pés do chão e chegam até nós ampliando

conceitos e transitando por territórios antes pouco percorridos.

Para cartografar os saberes e práticas educativas da Ilha Grande, precisaremos aguçar

os sentidos, estar porosos para ouvir as histórias contadas e recontadas pelos moradores.

Entrelaçados em redes, os símbolos e sentidos, que representam as histórias, são experiências

de comunicação entre grupos. Sendo assim, são experiências de cultura, mediadas pela

oralidade. Ouvir tal acervo envolve a percepção da complexidade, das tensões em se vê a

história a partir de outra ótica, a do saber múltiplo. A proposição é ―enredar‖ os saberes entre

universidade-comunidade-escola, partindo da disposição rizomática do conhecimento

desenvolvida pelos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995, p.33):

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as

coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente

aliança. A árvore impõe o verbo ―ser‖, mas o rizoma tem como tecido a conjunção

―e... e... e...‖ Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo

ser.

A compreensão da multiplicidade de conhecimentos envolve a mudança do

pensamento, centrado como unidade principal, exercendo o controle rígido sobre os demais

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saberes. A proposição do sistema rizomático surge para nortear a construção dos mapas dos

saberes daquele lugar de encantarias com seus contornos reversíveis, desmontáveis, passíveis

de espaços de entradas e fugas. Afinal, nos alerta El Khouri (2015, p.1):

Trata-se, portanto, de uma valorização da experiência sensível, daquilo que é vivido

individualmente, em que não se enquadram conceitos puros, rígidos. Em Deleuze, o

conceito expressa um acontecimento, e não uma essência. Ele reflete multiplicidades

criadas a partir da experiência, e não uma verdade única. E devem ser os conceitos

utilizados como ferramenta de reflexão.

Para o entendimento do sistema rizomático aplicado ao conhecimento filosófico e

epistemológico, acreditamos ser necessário entendermos o conceito de rizoma sob a égide dos

estudos biológicos:

Em botânica, chama-se rizoma a um tipo de caule que algumas plantas

verdes possuem que cresce horizontalmente, muitas vezes subterrâneo, mas podendo

também ter porções aéreas. O caule do lírio e da bananeira são totalmente

subterrâneos, mas certos fetos desenvolvem rizomas parcialmente aéreos. Certos

rizomas, como em várias de capim (gramíneas), servem como órgãos de reprodução

vegetativa ou assexuada, desenvolvendo raízes e caules aéreos nos seus nós.

Noutros casos, o rizoma pode servir como órgão de r e s e r v a d e

e n e r g i a , n a f o r m a d e , t o r n a n d o - s e t u b e r o s o , m a s c o m u m a

estrutura diferente de um tubérculo.2

Para a botânica, o rizoma é uma estrutura encontrada em algumas plantas cujo caule

cresce horizontalmente interligado por pequenos brotos quase sempre subterrâneos, porém em

algumas espécies encontramos ramificações aéreas. As plantas com essas características

apresentam a estrutura descentralizada, ou a-centrada, sem uma única raiz, um eixo-tronco

que dê a sustentação. As conexões do rizoma fortalecem a planta, proporcionando resistência

frente a situações adversas ao beneficiar-se das ligações, por exemplo, com seus domínios

mais extensos e heterogêneos. Isso permite que uma parte da planta seja beneficiada caso

ocorra falta de água, pois a outra parte do rizoma pode suprir a carência caso esteja mais

próxima do líquido.

As gramas da família das gramíneas (Gramineae) são uma das mais conhecidas

representantes das plantas rizomáticas. De estrutura simples, utilizam o rizoma para

reprodução e são nutridas pelo mesmo até poderem sobreviver sozinhas. Caso necessitem da

mudança de espaço, são plantas fortes, adaptam-se às intempéries em locais que outras

encontram dificuldades para se estabelecer. Esse tipo de vegetal estende-se a grandes e

diferenciados territórios, como savanas, estepes, pradarias etc. As características apresentadas

2 Enciclopédia On-line Wikipédia. Disponível em <http://www.wikipedia.org/rizoma>.

Acessado em Janeiro, 2014.

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demostram dentro da botânica a importância das plantas com a estrutura do rizoma, que são

resistentes, preenchem as ausências no solo, crescem entremeio de outras espécies, no

―intermezzo‖ das coisas, constituidoras de relações de cooperação entre os diversos

segmentos que a compõem, cada parte possui sua importância indispensável dentro da

organização do sistema.

Deleuze e Guattari (1995) partiram do conceito biológico de rizoma para propor a

teoria da multiplicidade, contrária à lógica dicotômica que ancora o sistema totalitário,

validado pelos polos antagônicos bom/mau, dominadores/dominados, perfeição/imperfeição e

assim por diante. A ideia de raiz centrada remete ao totalitarismo que inicia e encerra em si

mesmo, excluindo o que se localiza ao redor, a sua margem. Assim:

Resumamos os principais caracteres de um rizoma: diferentemente das árvores ou de

suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada

um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe

em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos

(DELEUZE, GUATTARI,1995, p.31).

Eis a imagem do rizoma em consonância com a definição proposta anteriormente.

Nela, podemos observar que um ponto se conecta a outro, se entrelaça e forma o que aqui

chamamos de teia de saberes:

Figura 22 - Rizoma

Fonte: http://escoladeredes.net/profiles/blogs/rizomas-1

O rizoma, conforme observamos antes, conecta-se de um ponto a outro, privilegiando

as linhas que os ligam, que se encontra no meio. Mesmo quando há rupturas, o rizoma trata de

reordenar o sistema, garantindo a necessária sobrevivência e o crescimento, o que Deleuze e

Guattari chamam de desterritorialização e reterritorialização3. A complexidade é um traço

3 Gilles Deleuze & Félix Guattari trazem no livro Mil Platôs, vol. I, os conceitos de desterritorialização e

reterritorialização. O primeiro conceito envolve a ruptura, o deslocamento, e nesse processo de movimento,

construção e reorganização ocorre a reterritorialização. Os processos são complexos e não acontecem

isoladamente.

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característico, as conexões, rupturas e reorganizações são constantes, há sucessivos

movimentos de desterritorialização e reterritorialização.

Com o conhecimento, o modelo rizomático traz-nos à reflexão a multiplicidade do

saber, reinventando a lógica hierarquizada do conhecimento arbóreo, centrado nas

instituições, contrariando tal organização epistemológica, não há uma instituição ou um único

saber que funcione como eixo, e sim uma rede que pode ser acessada de vários pontos do

sistema, rompimentos de fronteiras entre saber popular e saber científico dialogam na

proporção que o pesquisador amplia seu olhar e se entrelaça no cotidiano, nos processos

envolvidos no foco da pesquisa. E mais uma vez El Khouri (2015, p.6) nos esclarece:

Entender a educação na perspectiva rizomática, seja na escola ou na universidade,

como um campo de construção de conhecimento, requer, sobretudo, a compreensão

de que existem diversas formas de conhecimento, e que elas dialogam entre si dentro

de contextos históricos e sociais. Os conteúdos abordados criam conexões múltiplas

com elementos de outros campos do saber. Mito, ciência, filosofia, artes, religião e

senso comum se comunicam entre si e estabelecem redes interligadas de construção

de conhecimento. Mesmo as ciências naturais, como a matemática, estabelecem

relações com saberes de outras áreas, como as ciências humanas.

Deleuze & Guattari (1995), a partir desse pressuposto, estabelecem as bases teóricas

para o trabalho cartográfico, uma vez que na obra Mil Platôs não encontramos em si a

aplicação metodológica, mas a partir dos estudos sobre o sistema rizomático diversas áreas do

conhecimento voltam-se para a construção da cartografia a fim de conectar o pesquisador ao

objeto de estudo, atendendo as necessidades de repensar os possíveis caminhos do fazer

científico.

A cartografia de saberes e práticas educativas através da voz dos moradores da Ilha

Grande surge como um caminho metodológico possível para legitimar conhecimentos que

margeiam as instituições, em especial, a escolar. O mapeamento tem os contornos desenhados

sob o signo da multiplicidade, a escola não é o centro, os saberes que estão ao seu redor se

retroalimentam através das linhas que formam as redes que compõem os conhecimentos

contidos na comunidade, ―o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído,

sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas,

com suas linhas de fuga‖ (DELEUZE, GUATTARI, 1995 p.32).

A maleabilidade apresentada pelo método cartográfico de forma alguma pode ser vista

como negativa, sem a seriedade investigativa, o estudioso adentrará no campo da pesquisa

com o olhar da diversidade, com atenção voltada também para o que está no meio ou nas

margens, nas múltiplas entradas ou saídas, características do sistema rizomático. Tal

pensamento é trazido por Kastrup (2009, p.07):

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Essa reversão consiste numa aposta na experimentação do pensamento – um método

não para ser aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude. Com

isso não se abre mão do rigor, mas se é ressignificado. O rigor do caminho, sua

precisão, está mais próximo dos movimentos da vida ou da normatividade do vivo,

de que fala Canguilhem4. A precisão não é tomada como exatidão, mas como

compromisso e interesse, como implicação na realidade, como intervenção.

Não se trata de romper ou desconsiderar o conhecimento instituído, mas alinhavá-lo

com a participação intensa de todos os envolvidos, considerando que os fios que compõem a

rede nem sempre são desvelados de início, exigindo a leitura das entrelinhas, no que está

porvir, nos dados ainda não revelados. Por esse motivo, o exercício do cartógrafo envolve não

apenas acompanhar o processo, mas habitar um território investigativo antes não habitado,

ainda conforme afirma Kastrup (2009, p.56):

Sempre que o cartógrafo entra em campo há processos em curso. A pesquisa de

campo requer a habitação de um território que, em princípio, ele não habita. Nesta

medida, a cartografia se aproxima da pesquisa etnográfica e lança mão da

observação participante. O pesquisador mantém-se no campo em contato direto com

as pessoas e seu território existencial.

Kastrup (2009) apresenta pistas na aplicação do método da cartografia com as bases

teóricas no pensamento de Deleuze e Guattari, demandando do pesquisador procedimentos

mais abertos e inventivos. Assim, a cartografia, como estratégia metodológica, aproxima-se

do trabalho etnográfico ao apresentar o caráter processual da investigação, ao mesmo tempo

em que lança o olhar da observação, participa do cotidiano, intervindo na realidade, mas

também sofrendo modificações, sendo imprescindível a disponibilidade do pesquisador para a

diferença, para o novo. Não é possível o fazer cartográfico isolando o objeto das linhas que o

interligam a sua rede histórica, a busca excessiva pelas informações, pelos dados, dará lugar à

abertura do pesquisador ao encontro, por intermédio do acesso às vivências das comunidades.

Ir a campo pressupõe estar junto, vivenciar o cotidiano do grupo, lançar mão da escuta

sensível, que sinalizará, além das informações precisas coletadas, também as observações e

impressões percebidas pelo pesquisador no contato com as múltiplas vozes. Bem

compreendido novamente por El Khouri (2015, p.6):

Os princípios de cartografia e de decalcomania mostram que os rizomas não podem

ser modelados, seguindo estruturas ou assumindo pontos específicos que orientam o

conhecimento. Eles são sempre esboços incompletos. Deleuze e Guattari falam de

mapas. Os mapas norteiam, indicam caminhos, mas também requerem novos traços.

4 Georges Canguilhem, filósofo e médico francês. Especialista em epistemologia e história da ciência. Sua tese

principal é de que a vida não pode ser deduzida a partir de leis físico-químicas, ou seja, é preciso partir do

próprio ser vivo para compreender a vida. Fonte: Enciclopédia On-line Wikipédia. Disponível em

<http://www.wikipedia.org/ Georges_Canguilhem>. Acessado em Janeiro, 2013.

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Eles expressam algo por vir, um devir. Assim, os mapas podem ser revistos,

rediscutidos, ressignificados, remapeados. Para Deleuze e Guattari não existem

cópias, sobreposições perfeitas de ideias. Existem releituras, recriações a partir de

algo criado. É o que eles chamam de roubo criativo, em que transformamos os

conceitos dos quais nos apropriamos para criar algo novo.

A experiência cartográfica instiga o pesquisador a estar aberto e atento às ocorrências,

a ida ao campo não deve ser norteada apenas pelo roteiro, estrutura das entrevistas etc., há de

se espiar, espreitar, mergulhar, conhecer, escutar a polifonia das vozes acompanhando de

perto os movimentos de vida.

A utilização de um diário de campo, ou diário de bordo, para os que fazem a travessia

é, para Kastrup (2009, p.69), uma prática preciosa por possibilitar ao pesquisador cartográfico

o registro das entrelinhas, das falas significativas, de seu olhar atento sobre o que lhe

contaram, mas também do que viu, ouviu e viveu no campo da pesquisa, como imagens,

memórias, expressões, e o que demais apresentar-se como parte integrante da composição do

mapa a ser construído:

Podemos dizer que para a cartografia essas anotações colaboram na produção de

dados de uma pesquisa e têm a função de transformar observações e frases captadas

na experiência de campo em conhecimento e modos de fazer. Há transformação de

experiência em conhecimento e de conhecimento em experiência, numa

circularidade aberta ao tempo que passa (KASTRUP, 2009, p.70).

Pontuamos ainda sobre os procedimentos adotados na produção escrita dos relatos na

pesquisa cartográfica:

Para a pesquisa cartográfica são feitos relatos regulares, após as visitas e as

atividades, que reúnem tanto informações objetivas quanto impressões que emergem

no encontro com o campo. Os relatos contêm informações precisas – o dia da

atividade, qual foi ela, quem estava presente, quem era responsável, comportando

também uma descrição mais ou menos detalhada – e contêm também impressões e

informações menos nítidas, que vêm a ser precisadas e explicitadas posteriormente.

Esses relatos não se baseiam em opiniões, interpretações ou análises objetivas, mas

buscam, sobretudo, captar e descrever aquilo que se dá no plano intensivo das forças

e dos afetos. Podem conter associações que ocorrem ao pesquisador durante a

observação ou no momento em que o relato está sendo elaborado (KASTRUP, 2009,

p.70).

4.2. Chulear5 – Saberes e práticas educativas arrematadas

Impressões iniciais após a primeira travessia para a Ilha Grande, registradas no Diário

de bordo, aqui chamadas de ―Apanhadores de histórias‖, foram determinantes para a

construção do texto dissertativo.

5 Chulear: é o arremate feito na parte de dentro do pano com o objetivo de evitar que haja o desfiamento.

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Em posse da compreensão dos registros no Diário de bordo, a pesquisa aporta-se no

entre-lugar, no espaço de articulação que o olhar do pesquisador precisa buscar para ler e

(des)ler os movimentos encontrados no lócus de pesquisa. As anotações assumem um papel

relevante ao trazerem as impressões detalhadas nas falas, no ambiente, nos silêncios, em

pormenores que muitas vezes escapam da memória quando o registro não é feito. Recorto

trechos do Diário de bordo no meu contato inicial com a Ilha Grande:

Os ventos sopraram... Atendemos o chamamento das águas! O barco aportou.

Chegamos para contar e ouvir histórias. O grupo de Contadores de histórias,

Cirandeiros da Palavra, com Rodrigo, o filho do Grilo Falante, Juraci Siqueira, o

filho do Boto e eu, filha dos retalhos das linhas e dos bordados, aprontamo-nos para

a festa das palavras. As crianças foram chegando... Algumas mães sentaram no lado

esquerdo do barracão ao lado da UP São José.

As ações da escola procuram enredar-se com os saberes da comunidade, a observação

foi feita nas atividades propostas pelos professores. No momento, a atenção voltou-se às

turmas do Professor Cecílio, os alunos haviam preparado uma performance, uma cantiga de

bem-querer aos elementos encontrados na Ilha Grande: a água, a mata, os bichos e as pessoas.

Os alunos foram se arrumando, Professor Cecílio dedilhando no violão, as dançarinas,

com suas saias rodadas e floridas, e o seu Mané, apanhador de açaí, estavam prontos, mas

faltava a garota do açaí!

Procurada pelos arredores, pode ser que estivesse a amassar o fruto! Posteriormente,

ela vem, e um coro de pequenos passarinhos solta a voz.

Na Ilha Grande, os alunos acalentam os dias sem que o desencanto tente chegar,

fazendo-nos crer na renovação da vida como as marés do rio-mar que aportam no trapiche da

escola.

A canção de bem-querer dos alunos e alunas chega com a voz do professor dizendo

sobre os elementos encontrados na ilha, conforme se pode observar na Figura 23.

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Figura 23 – Imagem do Diário de bordo

Os Cirandeiros da Palavra agradeceram fazendo a palavra circular, o filho do Boto

contou as histórias de rio, o filho do Grilo Falante trouxe o conto popular chinês O menino a

sua semente. A Maria-vai-com-as-outras, da Sylvia Orthof, aquela ovelha sem personalidade

própria, deu os ares da sua graça na forma de história contada por mim e ouviu em coro das

crianças:

– Nós conhecemos essa história!! A professora já leu!

Encontrei o livro Maria-vai-com-as-outras no Baú das histórias, projeto da Semec

através do Sistema Municipal de Bibliotecas Escolares, que leva acervo inicial de 300

exemplares de livros literários às Unidades Pedagógicas e Unidades de Educação, espaços que

não possuem bibliotecas escolares.

Como em toda Roda de histórias, a palavra circulou livremente. A literatura oral saltou

e mergulhou na forma de Boto (seria o pai do Juraci Siqueira?), vimos a Cobra Grande que foi

parar na rede de uma moradora, ouviu-se o assovio estridente da Matinta, e sentiu um arrepio,

medo de atravessar o rio e entrar na casa mal-assombrada. Tantas histórias que, assim como

os contadores indígenas, ficaríamos muitas luas a narrar e ouvir:

Histórias moram dentro da gente, lá no fundo do coração. Elas ficam quietinhas num

canto. Parecem um pouco com areia no fundo do rio: estão lá, bem tranquilas, e só

deixam sua tranquilidade quando alguém as revolve. Aí elas se mostram

(MUNDURUKU, 2001, p.7).

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Brincantes da palavra, a chuva poética caiu encharcando todos nós com poesias de

Cecília Meireles, José Paulo Paes, Vinicius de Moraes, Heliana Barriga, Paulo Vieira, José

Ildone, Juraci Siqueira, entre outros poetas. ―Uma chuva caiu, / duas, três ou muitas mais, / a

mim não importa nada, / nem que volte a chover outra vez...‖ – o Professor Cecílio recheou a

chuva com esse antigo brega, estilo musical bastante apreciado na região, e o filho do Boto,

nosso poeta/trovador/contador/filósofo etc., etc., mandava as advinhas para as crianças, e

assim os livros enviados pela Professora Roseli Sousa foram ganhando novas casas, novos

donos.

A revoada de borboletas brancas, azuis, amarelas e pretas finalizou nossa Ciranda da

Palavra.

Após a Roda de histórias, outro convite. Uma mesa posta, açaí com camarão, farinha

de tapioca, farinha d’água e o almoço como complemento! As merendeiras da Unidade

Pedagógica têm mãos de fada, sorriso aberto e braços que abraçam o mundo.

Rever os escritos do Diário de bordo foi determinante para escolha do objeto de

pesquisa. A cada página percorrida, as vozes eram ouvidas novamente, crianças, desde as bem

pequenas até os adolescentes, contando e ouvindo histórias, forte movimento de oralidade

entre os alunos da Unidade Pedagógica, e chegava aos nossos ouvidos, através deles, a

indicação da pesquisa ora apresentada e dos seus intérpretes:

A identidade de um intérprete manifesta-se com evidência tão logo abre a boca: ele

se define em oposição às outras identidades sociais, que com relação à sua são

dispersas, incompletas, laterais, e as quais assume, totaliza, magnifica (ZUMTHOR,

1993, p.68).

4.3. Ponto a ponto – fios epistemológicos da cartografia

A circulação dos saberes através da memória é o que alimenta a literatura oral,

mantendo-a viva e atravessando o tempo e os espaços. Quase todas as narrativas contadas

pelas crianças na roda de histórias emergem da voz do contador de histórias. Aqui nas páginas

desta pesquisa, ele será chamado de intérprete, termo usado pelo crítico literário e historiador

da literatura Paul Zumthor, para designar os que se utilizam da oralidade com o propósito de

semear e nutrir a memória viva. ―O intérprete é o indivíduo que se percebe na performance, a

voz e o gesto, pelo ouvido e pela vista‖ (ZUMTHOR, 2010, p.239). Ainda sobre o intérprete:

―são os portadores da voz poética [...] os detentores da palavra pública; é sobretudo, a

natureza do prazer que eles têm a vocação de proporcionar: o prazer do ouvido; pelo menos,

de que o ouvido é o órgão‖ (ZUMTHOR, 1993, p.57).

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O intérprete, o narrador, o contador de histórias, nomenclaturas para dizer dos que

enredam a comunidade pelos fios da voz e que estão presentes entre nós desde os tempos

antigos a testemunharem o poder da palavra dita:

Pela boca, pela garganta de todos esses homens (muito mais raramente, sem dúvida,

pelas dessas mulheres) pronunciava-se uma palavra necessária à manutenção do laço

social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos,

revestida nisso de uma autoridade particular, embora não claramente distinta daquela

que assume o discurso do juiz, do pregador, do sábio (ZUMTHOR, 1993, p.67).

No momento inicial da pesquisa, foram ouvidos quatro moradores da Ilha Grande, os

critérios seguiram os requisitos: moradores antigos, localização geográfica da residência do

morador (diferentes pontos da ilha), um morador de outra ilha que tenha relação com a Ilha

Grande, liderança na comunidade. No total, foram ouvidos quatro moradores, aqui

identificados por números, Morador 01, Morador 02, e assim por diante, todos trouxeram

importantes contribuições por meio de olhares, visões de mundo diferenciadas, fios de vida

que se entrelaçaram na rede de conhecimentos encontrada na ilha.

Como intérprete da cartografia da Ilha Grande, já na perspectiva da pesquisa do

Mestrado em Educação, ouvimos a voz de Simeão de Sousa Monteiro, nascido em 05 de

janeiro de 1940, em Itaquá-mirim, que foi morar na ilha ainda criança com a irmã que se

casou com um rapaz também morador da referida comunidade. Seu Simeão tinha um apego

muito grande pela irmã, não conseguiu ficar longe dela após o casamento, passava as férias

escolares na Ilha Grande e depois retornava para casa. A chegada de uma enfermidade na mãe

fez com que ela deixasse o menino Simeão aos cuidados permanentes da irmã.

Seu Simeão é referência na comunidade como o contador de histórias. Visivelmente,

observa-se o prazer em narrar, suas histórias, assim como as de Sheherazade, são contadas em

cadeia, o término de uma é passagem para uma nova. Fazem parte de seu repertório histórias

ligadas ao imaginário amazônico como: Matinta, Uiara, Boto, Cobra Grande e outros seres

encantados da mata e do rio, além das histórias do que viu e viveu ao longo dos seus 75 anos,

memória viva dos fatos históricos da Belém continental e insular. E para um estudo que tem

como proposição a cartografia através das poéticas orais, Seu Simeão tornou-se o intérprete

da pesquisa.

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Figura 24 – Simeão Monteiro, no momento da performance

A palavra pede passagem pela voz do intérprete. ―A performance é a ação complexa

pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida‖

(ZUMTHOR, 2010, p.31). Ao ouvir Seu Simeão contar histórias, percebe-se a ação complexa

que envolve a performance: o corpo, a memória e a voz em movimentos interligados na

poética oral. Os gestos, o olhar, os suspiros, os silêncios, a sonoplastia etc., elementos que

compõem a orquestra do narrador oral. ―A oralidade não se reduz à ação da voz. Expansão do

corpo, embora não o esgote. A oralidade implica tudo o que, em nós se endereça ao outro:

seja um gesto mudo, um olhar‖ (ZUMTHOR, 2010, p.217).

O ritual de chamamento de Seu Simeão inicia com ―eu vi, aconteceu comigo...‖,

constatando que na Amazônia o contador narra em primeira pessoa, os fatos são sempre

presentificados pela pessoa que narra ou por alguém muito próximo que igualmente relata o

ocorrido em primeira pessoa. Desde cedo, por essas bandas, aprende-se a gramática do

chamamento para a vinda das encantarias da mitopoética amazônica:

Olha só, essa cobra grande eu já vi três vezes, já vi ela boiar, urrando

parece um boi e boiando duas vezes ali perto da cada da dona Quinha;

ninguém percebeu de lá e nós daqui vimos...

É verdade, eu cansei de ver umas, muita assombração... Quando eu era

solteiro, fui entrando dentro de um igarapé, aí eu ia remando pra ir pra uma

festa, dentro do Carará, sabe o Carará?

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Então, eu era solteiro, ai fui remando no casco, quando de repente me deu

um assopro, horrível assim, quando olhei assim, um homem todo de branco

na beira do igarapé, olhando pra mim, aí eu fiquei adormecido né, meu

deus, aí continuei remando e ele batendo na beira do casco...

No igarapé aqui eu vi um lobisomem virado num porco, ele queria me

pegar olha, queria no igarapé, mas eu fui sabido, porque ele queria me

pegar numa passagem e eu varei muito mais rápido que ele... Quando ele

chegou na passagem eu já tinha passado...6

Ser escolhido e legitimado como contador de histórias envolve um ―saber-fazer‖, um

―saber-dizer‖ e um ―saber-ser‖, que Zumthor (2010, p.166) atribui à performance de quem

narra:

Performance implica competência. Além de um saber-fazer e de um saber-dizer, a

performance manifesta um saber-ser no tempo e no espaço. O que quer que, por

meios linguísticos, o texto dito ou cantado evoque, a performance lhe impõe um

referente global que é da ordem do corpo. É pelo corpo que nos somos tempo lugar:

a voz o proclama, emanação do nosso ser. [...] A partir desse sim primordial, tudo se

colore na língua, nada mais nela é neutro, as palavras escorrem, carregadas de

intenções, de odores, elas cheiram ao homem e à terra (ou àquilo com que o homem

os representa).[...] É por isso que a performance é também instancia de

simbolização: de integração de nossa relatividade corporal na harmonia cósmica

significada pela voz; de integração da multiplicidade das trocas semânticas na

unicidade de uma presença.

Ao apresentar as narrativas de Seu Simeão para o campo de pesquisa científica,

buscamos trazer para os debates epistemológicos conceitos sobre performance, tradição oral,

corpo, voz, memória e outros elementos fundamentais das poéticas orais, enquanto

enredamento com diversas áreas do conhecimento, como História, Antropologia, Sociologia,

Psicologia, Pedagogia etc., além da tentativa de trazer para o centro das atenções e das

intenções da pesquisa aqui apresentada o fluir do rio das memórias daquele que sabiamente

cumpre o desígnio de ser um dos guardiões da palavra falada, permitindo que a escola e os

demais moradores possam também usufruir de tais águas.

4.3. Contraponto – Ser e saber na Amazônia, tensões e complexidades no desenho do

mapa

Os caminhos percorridos rumo às travessias poéticas da Ilha Grande incidem na

compreensão de parte de uma complexa região chamada Amazônia. Nesse sentido, alguns

conceitos e elementos teóricos chegam à nervura do processo para o nosso entendimento

6 As falas do intérprete estão dispostas no texto em itálico.

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acerca de tensões, conflitos, negociações dos habitantes da região conhecida desde os tempos

da chegada dos primeiros navegantes como um lugar exótico, isolado, habitado por criaturas

fantásticas, coberta pelo manto do mistério na vastidão das águas dos rios e dos caminhos da

mata.

Adentrar na densa floresta e mergulhar nas águas turvas e barrentas dos rios parece ser

o constante imaginário construído sobre a região, como algo fictício, irreal, uma anomalia da

razão. Durante muito tempo, o conceito de imaginário permeado pelas ciências foi o de

reducionismo e o de desvalorização, pois as ciências naturais privilegiavam a razão como

única possibilidade de conhecimento, mentalidade amplamente observada. Por exemplo, no

século XVII, Galileu e Descartes, pensadores que lançaram o alicerce da física moderna, têm

suas experiências puramente ligadas à racionalidade, aos cálculos e às medidas,

desconsideram o lugar e o papel do imaginário:

A partir do século 17, o imaginário passa a ser excluído dos processos intelectuais.

O exclusivismo de um único método, o método, ―para descobrir a verdade das

ciências‖ – este é o titulo completo do famoso Discurso (1637) de Descartes –

invadiu todas as áreas de pesquisa do ―verdadeiro‖ saber. A imagem, produto de

uma ―casa de loucos‖, é abandonada em favor da arte de persuasão dos pregadores,

poetas e pintores. Ela nunca ascenderá à dignidade de uma arte demonstrativa

(DURAND, 1998, p.12-13).

Para Durand (1998, p.14-15), o pensamento positivista, com as lógicas binárias e

sistemas cartesianos, e a filosofia da História do século XVIII encarregam-se de banir de vez

o imaginário:

As duas filosofias que desvalorização por completo o imaginário, o pensamento

simbólico e o raciocínio pela semelhança, isto é, a metáfora, são o cientificismo

(doutrina que só reconhece a verdade comprovada por métodos científicos) e o

historicismo (doutrina que só reconhece as causas reais expressas de forma concreta

por um evento histórico). Qualquer ―imagem‖ que não seja simplesmente um clichê

modesto de um fato passa a ser suspeita. Neste mesmo movimento as divagações

dos ―poetas‖ (que passarão a ser considerados os ―malditos‖), as alucinações e os

delírios dos doentes mentais, as visões dos místicos e a sobras de arte serão expulsas

da terra firme da ciência.

O imaginário encontrou resistência por se tratar de um traço importante para a vida

humana e a simbolização que dá o sentido ao mundo e as coisas. Com o passar dos tempos,

porém, encontra lugar novamente no campo científico, e pesquisas são feitas para contrapor a

visão racional instaurada sobre a capacidade de criar imagens. Tomamos, para a compreensão

do imaginário, os estudos de Gilbert Durand (1997, p.18), ao dizer que:

o Imaginário – ou seja, o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o

capital pensado do homo sapiens – aparece-nos como o grande denominador

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fundamental onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano. O

imaginário é esta encruzilhada antropológica que permite esclarecer um aspecto de

uma determinada ciência humana por um outro aspecto de uma outra.

A vivacidade do imaginário faz parte de um grupo de imagens que gera a significação

ao mundo. Não há, portanto, segregação entre o pensamento racional e as imagens formadas,

esta última carrega os sentidos da imagem ligados aos arquétipos, signos e símbolos. Para os

habitantes da Amazônia, o imaginário é parte constituinte do cotidiano, ―o imaginário

poético-estetizante, que preside o sistema cultural na Amazônia‖ (LOUREIRO, 1995, p.36), o

estético passa a ser compreendido, segundo Loureiro, como uma realidade geradora baseada

na relação com o sensível, esta será a maneira singular de contato entre o homem e sua

realidade. Logo, pensar numa região como a Amazônia é atribuir um grau elevado de fator

estético, pois se trata de um espaço em que as relações culturais estão entrelaçadas com a

natureza, a permissão para o devaneio faz parte do modo de vida ribeirinho, ―o imaginário

exerce um papel deflagrador desse processo‖ (LOUREIRO,1995,p.81). Cada povo possui

traços estéticos característicos que emergem das culturas. Na Amazônia, há ―Uma cultura

dinâmica, original e criativa, que revela, interpreta e cria sua realidade. Uma cultura que,

através do imaginário, situa o homem numa grandeza proporcional e ultrapassadora da

natureza que o circunda‖ (LOUREIRO, 1995, p.30):

Era muito linda essa ilha... Tipo tudo de tipo de caça, tatu, paca, veado,

preguiça, cotia... A gente ia andando no mato a gente, quando via a cotia

pá, passava entrava no buraco, a gente ia pegar, às vezes tava a mãe, os

filhos, tudo... Aí pegava a mãe e deixava os filhotes... Aí acontecia isso, né,

porque quando grande a gente pegava muito... Tudo que a gente precisava

aí tinha nessa ilha, tinha canteiro daquele, canteiro do jutaí, lago do Mané,

aí tudo aqueles negócio que caí do jutaí, que breia a canoa, pois é uma

pedrinha desse tamanho, ela fica dentro da terra aí dentro do ano ela tá

desse tamanho, aí vai crescendo... Não sei como é esses mistérios, a gente

passava nesses canteiros aí tinha muito, aí tinha às arvores que tinha aí,

maçaranduba, mata-matá, tudo que é tipo de madeira, tauari, esses pau que

tem aí, paujazeiro, bacabeira, tucumãzeiro, todos... É uma maravilha essa

ilha aí... Conto porque aí eu morei, andava tudinho isso aí, muito lindo aí

dentro...

A grandeza do espaço em que reside o amazônida influencia diretamente no modo de

olhar o meio que o circunda, as tentativas de compreensão dos fenômenos expressos em seu

cotidiano remete ao imaginário fundante dos nativos enquanto seres que habitam entre rios e

florestas. As imagens criadas para dar explicações fundem-se entre o mundo material, o físico

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e os devaneios, o elucidamento que muitas vezes chega do imaginário, das criações e

representações para dar significado aos tempos e espaços, e, quando não chegam na forma de

conceitos organizados e reorganizados pelos próprios sujeitos, são expressos por ―Não sei

como é esses mistérios...”.

A multiplicidade do modo de vida na Amazônia constitui sua forma de enredamento

cultural, a teia de significações, estudada por Geertz (2008, p.4), na qual os grupos estão

entrelaçados:

Acreditando como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de

significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua

analise, portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como

uma ciência interpretativa, à procura do significado.

A criação e a recriação da vida estão de acordo com as necessidades humanas de

produzir sentidos e significados, um constante ir e vir de transformações da natureza em

cultura. A partir dessa perspectiva, é uma forma de existência que engendramos para o

encontro e o reconhecimento das possibilidades de aprender a viver e conviver enquanto

sujeitos culturais:

Tudo aquilo que criamos a partir do que nos é dado, quando tomamos as coisas da

natureza e as recriamos como objetos de utensílios da vida social representa uma das

múltiplas dimensões daquilo que, em uma outra, chamamos de: cultura. O que

fazemos quando inventamos os mundos em que vivemos: a família, o parentesco, o

poder de estado, a religião, a arte, a educação e a ciência, pode ser pensado e vivido

como outra dimensão (BRANDÃO, 2002b, p.22).

Os saberes construídos e estabelecidos dentro das culturas serão os desenhos do

mapeamento da Ilha Grande, que começou a ser traçado, conforme dito no início desta

dissertação, enquanto necessidade de um grupo de educadores preocupados em interligar os

fios dos saberes presentes na ilha, no entanto, muitas vezes enrolados no carretel das

dificuldades, dos obstáculos que o sistema lhes entrega. Enquanto isso, a Equipe Técnica da

Secretaria Municipal de Educação de Belém e funcionários da Unidade Pedagógica São José

tomaram como ponto de interesse o religamento dos fios de conhecimentos através da

construção cartográfica de saberes da Ilha Grande, para melhor compreender o espaço vivo e

pulsante do lócus que abriga a escola e a geração de um registro escrito. Esse foi o intuito

inicial dos educadores que agora se lançavam ao universo desconhecido da função de

cartógrafos.

As impressões iniciais de professores e alunos da Unidade Pedagógica São José, no

exercício cartográfico, são anotadas no intuito de que a partilha do caminho percorrido seja

necessária para que outros possam juntar-se a nós no tecer, destecer e (re)tecer.

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Embarcar rumo a Ilha Grande era algo feito muitas vezes. No entanto, hoje tudo

parece diferente, lembro da Grécia antiga, de Heráclito e da sua expressão Panta Rhei, ―tudo

flui‖, nada é imutável, constante, há o ir e vir permanente das coisas. Quarenta minutos de

travessia, e aportamos no trapiche da Unidade Pedagógica São José, onde os educadores

aguardavam-nos.

Eliana Pojo, coordenadora das ilhas na Secretaria Municipal de Educação de Belém,

lançou o convite para um trabalho extensivo com oralidade na Ilha Grande. Decidimos, além

de organizar as Cirandas da Palavra, conhecer as narrativas que abrigam o imaginário da

comunidade e trazer para a escola os narradores e suas narrativas.

Buscamos aportar nos conhecimentos da Prof.ª Roseli Sousa, por já ter navegado por

essas águas ao pesquisar a Ilha de Caratateua em sua dissertação de mestrado pela

Universidade do Estado do Pará e pelo trabalho desenvolvido frente à Coordenadoria de

Educação do município de Belém. Após os diálogos feitos, compreendemos a necessidade de

cartografar os saberes locais a partir da história de vida dos moradores.

Os trabalhos iniciaram com o relato dos professores sobre as atividades desenvolvidas

na UP. O Projeto Político-Pedagógico foi socializado, e a sensação é que muito deste rio já

fora percorrido, a cartografia nos ajudaria a organizar as ideias, a sistematizar, a conhecer o

chão dessa história através da voz dos moradores. As histórias de vida de alunos, educadores,

comunidade, barqueiros se cruzam com o rio. Pensando nessa afirmação, iniciamos com a

seguinte problematização feita aos presentes no encontro: onde minha história se cruza com o

rio?

Com o desenho do mapa da ilha no quadro negro, cada um dos presentes respondeu a

pergunta traçando o caminho feito entre o embarque e a Unidade Pedagógica São José.

Figura 25 – Mapa da Ilha Grande feito pelos professores

Fonte: Diário de bordo

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Durante o traçado do caminho percorrido rumo à ilha, cada um falou um pouco da sua

história.

Educador 01 – Voltei no tempo, na infância, vim do Acará. Fui acostumada com isso,

me sinto em casa. Comecei na beira do rio e voltei para a beira do rio.

Educador 02 – Não queria ser professora, mas dou o máximo!

Educador 03 – Faço de tudo um pouco! Meu trabalho sempre foi dentro do mato, cada

lugar é diferente. Queria seguir outra profissão. Despenquei na educação. Sou muito

alegre, falo muito alto, entrei em conflito, hoje já aceito que faz parte de mim. As

mudanças na Unidade Pedagógica não foram fáceis.

Educador 04 – Busco a essência, escolhi vir para a ilha, tem a ver comigo, pessoal e

profissional. Sou de Oriximiná. Tenho experiência com crianças infratoras e trabalho

com o teatro. A viagem de barco é normal para mim. Estou resgatando o teatro. Meu

desafio é aprender a trabalhar com os menores, estou começando do nada, não é nem

recomeço, e ó começo! Arte é sensibilizar! A história de vida deles é minha matéria.

Educador 05 – Em 2005 vim de Benevides morar aqui na Ilha Grande. Fui professor

não por opção e sim por necessidade, queria ser radialista. Aqui o tempo é outro,

nosso tempo não é o mesmo, o rio é quem manda! O senso de cooperação é grande, se

atraso todos atrasam (referência ao barco), não temos portão para fechar na escola.

Após a socialização das histórias de cada um, seguimos com a discussão sobre o

calendário da SEMEC versus calendário das águas. Definimos o nossas problemáticas: qual o

Projeto Politico-Pedagógico da escola? O que queremos saber sobre o entorno da escola? O

que a realidade dos sujeitos da Ilha Grande nos mostra?

Para chegarmos à resposta a tais questões, havia dois caminhos a percorrer:

1. As memórias dos moradores da comunidade;

2. Documentos produzidos sobre a ilha.

Chegou enfim o momento de organizar as duas primeiras etapas. Com o tema e os

subtemas escolhidos, a técnica da coleta de dados foi a escuta, mas ainda assim fizemos um

pequeno roteiro para nos basearmos no momento da visita aos moradores.

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A proposição era fazer a visita domiciliar para o movimento de escuta, mas também

levar os moradores para a escola. A entrevistas deles foi no espaço da Unidade Pedagógica,

acompanhada de perto pela comunidade escolar. Fomos divididos em três grupos, incluindo

educadores e alunos.

Grupos organizados, fomos ouvir as vozes dos protagonistas da cartografia de Saberes

da Ilha Grande, roteiro, máquinas, MP3. Dois barcos saíram, um rumo a Guarapiranga, para a

Unidade Pedagógica Nossa Senhora de Nazaré, e o outro atravessou a ilha para o furo do

Bijogó. O terceiro grupo caminhou para a residência de um dos moradores. Saímos então para

nosso primeiro ensaio cartográfico!

Um outro grupo fez a travessia para a residência do Sr. Simeão e foi recebido pelos

trabalhadores que estavam separando a folha da maniva no barracão ao lado. A casa estava

com ares de quem aguarda visitas: paninhos de crochê na estante, flores nos vasos e um cheiro

de café passado na hora pela esposa do Sr. Simeão.

Fomos convidados a sentar, os alunos ora iam à janela, ora sentavam-se espalhados na

sala, ou corriam para a pequena ponte que liga a casa de Simeão a de altos e baixos que fica

bem ao lado (a referida casa é enredo de uma das narrativas contadas pelas crianças na

Ciranda da Palavra e, segundo elas, a casa é mal-assombrada).

A conversa iniciou em tom amistoso, pessoas acolhedoras, e nós dispostos a ouvir suas

histórias! E foram tantas e tantas histórias que ficamos extasiados diante da capacidade de Seu

Simeão de contar histórias, ele é deveras o Guardião da Palavra.

Figura 26 – Visão a partir da escola da outra margem do rio onde mora Seu Simeão

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Figura 27 – Visão a partir da escola da outra margem do rio onde mora Seu Simeão

Esse foi o primeiro contato com aquele que seria o intérprete da continuação da

cartografia da Ilha Grande, já que não conseguimos dar andamento à cartografia inicial, feita

coletivamente. Ao relembrar os momentos passados em companhia de um mestre na arte de

narrar, o sentimento foi de que a preamar havia chegado para o desejo e a intenção da

pesquisa, agora no âmbito do mestrado.

Após o ingresso no Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da

Universidade do Estado do Pará/UEPA, na linha de Saberes Culturais e Educação na

Amazônia, os caminhos trilhados para a construção cartográfica da Ilha Grande passaram a ter

como intuito mapear os saberes da ilha a partir da voz de Simeão Monteiro, o morador

apontado por alunos e demais habitantes como o contador de histórias da comunidade. Essa

foi a temática da dissertação desenvolvida para a obtenção do título de Mestre em Educação.

A cartografia através da voz consiste na identificação dos seguintes pontos: I. Saberes

do lugar; II. Saberes ambientais; III. Saberes escolares; e IV. Saberes mitopoéticos.

I – Saberes do lugar

As informações obtidas através dos relatos de moradores sobre a história da Ilha

Grande nos conta que ela tinha um único dono, Salomão Donato. Os primeiros moradores

possuíam um pedaço de terra, mas tinham que dividir o excedente da pequena produção para

subsistência com o suposto dono da Ilha:

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Não nossa vida aqui na ilha isso eu não vou negar nem vou encobrir era

uma vida de escravidão o dono da Ilha Salomão Donato quando eu casei aí

eu já tinha minha casa aí eu mandei buscar minha família como eu falei

cada um tinha sua casa, mas se a gente criasse 04 casais de galinha dois era

dele mesmo o meu marido que era o braço direito dele, mas isso acontecia,

o açaí, se o meu marido tirasse 08 latas de açaí 04 era dele nós não

tínhamos o direito de vender nosso gênero e quem vendia era o gerente da

fazenda e nos passava quanto ele queria. Aí já depois da minha irmã aí nós

já tinha nossos filhos descobrimos que a ilha não era dele. (Morador 01)

O período em que a intérprete se refere compreende as décadas de 1950, 1960, em que

a ilha vivia sob a tutela do que se intitulava ―dono‖, permanecendo nesta situação até quase o

final da década de 1990, quando o próprio intérprete que nos traz o relato descobre que as

terras são da União. De acordo com Violeta Loureiro (2011, p.21), nos anos de 1950 e 1960, a

ocupação das terras amazônicas se encontrava na seguinte situação:

A maior parte das terras da Região Amazônica pertencia basicamente à União e aos

Estados, sendo portanto, terras públicas. As terras públicas são aquelas que

pertencem aos municípios, aos Estados ou à União; não são terras de particulares.

Assim sendo, essas terras podiam ser ocupadas pelas populações locais (ou por

quem viesse de fora), desde os tempos coloniais, sem disputa e conflito (grifo da

autora).

A informação obtida de que a ilha era de posse da União e que qualquer morador

poderia requerer livremente seu pedaço de chão fez com que os moradores se organizassem

para terem o direito à terra e às benfeitorias feitas nela, como a construção da moradia, as

plantações, a criações de animais etc. Segundo relato, a Gerência Regional do Patrimônio da

União no Estado do Pará/GRPU auxiliou para a tomada de posse das terras pelos moradores:

É aí passamos pra ele, Salomão Donato, não, essa terra aqui é da união. Aí

foi que ele começou a trabalhar em cima disso. Isso eu posso dizer nós

temos um apoio muito grande do GRPU, muito grande mesmo pra hoje nos

sermos uma pessoa livre, termos nosso documento da terra. (Morador 01)

O relatório 2008 de gestão do GRPU/PA7 esclarece sobre os projetos de inclusão

sócio-territorial das populações tradicionais, que inclui, entre outros, o reconhecimento de

terras quilombolas e dos moradores das áreas ribeirinhas. O objetivo central é a

regulamentação fundiária de tais populações. No caso específico dos ribeirinhos, o Projeto

Nossa Várzea destina-se a essa finalidade:

7Fonte:http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/arquivo/acesso-a-informacao-1/auditorias/processos-

de-contas/spu_regionais-1/spu_pa/2008/spu_pa2008_relatorio_de_gestao.pdf . Acesso em: 10/07/2015.

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Esse projeto envolve a celebração de parcerias com Ibama, Incra, Ministério da

Justiça, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, governos

estaduais e municipais, comunidades ribeirinhas, universidades e sociedade civil. O

objetivo é promover a regularização fundiária das ocupações de populações que

habitam as margens de rios federais, por meio da entrega de Termo de Autorização

de Uso – um instrumento de inovação administrativa, que constitui o fundamento

expressivo da iniciativa.

O Termo de Autorização de Uso, instrumento prévio à titulação das famílias

ribeirinhas, permite o reconhecimento do direito à ocupação e à exploração

sustentável das áreas de várzeas, a comprovação oficial de residência e também

assegura o acesso a linhas de crédito e a programas sociais do Governo Federal, tais

como aposentadoria e recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da

Agricultura Familiar – PRONAF.

A luta por um pedaço de chão em terras tão vastas, onde a concentração de bens está

nas mãos de um restrito grupo, parece ser, até o presente, uma realidade na região. A política

desenvolvimentista visando o crescimento e a integração da Amazônia, e aclamada pelo

governo militar, na década de 1960, para atrair empresas nacionais e estrangeiras, a fim de

implantar os grandes projetos de desenvolvimento, gerou consequências nefastas para o

habitante da região e o meio ambiente. Em nome do progresso, populações foram degradadas

de suas comunidades de origem, a natureza foi explorada e devastada, mudando modos

viventes e paisagens, corroborando para a violência cultural, de que somos alvo desde os

tempos coloniais.

Com o território da Ilha Grande, não foi diferente, a luta foi travada para o

reconhecimento dos títulos de terras de todos os moradores, contribuindo para a

descentralização e combatendo o mau uso do poder.

Nos relatos do Seu Simeão e dos demais moradores, observamos o fluxo de chegada

das famílias para a Ilha, o que chamamos de Saberes do lugar. Seu Simeão conta que não

nasceu na Ilha Grande, mudou-se quando criança e, entre idas e vindas, acabou ficando:

A minha irmã se casou com um rapaz daqui, gostou dele, se casou, e eu era

muito ligado a ela, que ela lhe dava comigo quando minha mãe adoeceu, me

entregou pra ela, eu era pequeno, menor do que esse aí [aponta para um

menino que o escuta], pra ela tomar conta de mim. Quando ela se casou, eu

não me sentia... Lá eu ficava triste, porque eu queria tá do lado dela, ai eu

disse, “não, eu vou me embora, lá no Itaquá, eu estudava com um e com

outro, quando faltava as aulas, quando dava às férias, caía praí, ia pro lado

dela. Aí foi, foi, foi, até...que eu não quis mais voltar pra lá, estudava por

aqui e não quis mais voltar pra lá, ficava aí...

Aí fui crescendo, crescendo, aí quando eu estava com doze anos, eu ainda

voltei pra lá pra fazer a segunda, pra acabar de estudar, né... Porque

naquele tempo ainda ia pro Acará, né?! Aí eu voltei, digo agora eu não vou

mais voltar, né?! Já tô mais entendido, vou aprendendo com um e com outro

o resto, então, aprender é isso, aí fiquei pra cá, fui morando aí com ela, fui

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crescendo, trabalhando com meu cunhado, cortando seringa com ele no

meio do mato, aí aprendi já, já trabalhava por minha conta, mas sempre

aqueles deles, era dominado deles... E com isso nós moramos um tempo aqui

e se mudamos pra essa linha grande, nós moramos ali no seu Zeca mora,

naquele barracão grande, mas essa área aqui agente trabalha tudinho, dali

donde Dona Maria José mora...

Pensar o espaço geográfico, a partir das relações estabelecidas entre homem e

ambiente, mutuamente influenciados e modificados, cria uma dinâmica própria dos grupos.

Ao criar e recriar seu meio, laços de identificação são atados, garantindo a sobrevivência dos

grupos. Nessa lógica, os contornos geográficos modificam-se para atender as necessidades das

populações:

Poucas famílias. Aí se contava; olha, se eu lhe disser que aqui tinha duas

casas, uma lá perto da casa da Eliza, aliás três, que era uma do finado

Guilherme, que era marido da Eliza, uma do finado Zinho, uma do Zarapari

e uma do Tonhão, lá embaixo, eram quatro casas que tinham, ali perto da

torre... Agora aqui, tinha uma casinha bem aqui, entrando aqui e a outra lá

onde mora o Vadico, olha só essa uma... Desse lado tinha uma na boca da

varada do Paciência [furo do rio], tinha a da Tia da minha senhora, que

morava bem perto da torre aí e agora tinha a deles bem aqui perto de onde

o Afonso mora e a outra na boca do igarapé do rego grande e do finado

Ageniro lá em cima. Olha só essa tristeza, era muito triste, soturno, soturno,

soturno, basta dizer que quando a gente morava na frente da ilha e quando

o meu cunhado arrumou um terreno e pediu para a gente passar pra cá, que

nós voltamos pra ilha de novo, voltamos pra essa aí nos viemos pra esse

Bijogó [furo do rio] e eu não queria vir de jeito nenhum porque era muito

triste, muito triste, porque lá pra frente da ilha era mais alegre... “Poxa, nós

vamos para aquela tristeza lá...” Aí foi movimentando, foi aparecendo um

daqui outro de acolá, movimentando de gente, né? Movimentando,

movimentando e hoje em dia do jeito que está, que não tem onde fazer uma

casa quase, né?! E daqui mais uns tempos como é quer vai ser, por que,

olha, vão crescendo.

Para Rodrigues e Oliveira Neto (2008), a complexidade das relações homem e

ambiente torna os espaços únicos, característicos da dinâmica peculiar de um lugar chamado

Amazônia. Porém, uma advertência chega para refinar o olhar sobre as culturas dos grupos

que aqui habitam:

Fica clara, então, a necessidade de se respeitar a dinâmica de cada grupo social

amazônico. Respeitar suas especificidades e modos de vida, pois estes, em grande

parte, estão diretamente ligados à cultura e as tradições desses grupos.

A criação do lugar por esses sujeitos adquire uma conotação de resistência à

violência simbólica que representa a globalização, com sua visão homogênea e

arbitraria de sociedade, imposta pela logica do capital. Essas comunidades valorizam

o convívio e formam um espaço diferenciado, capaz de responder aos seus

verdadeiros anseios e aspirações, onde, como dissemos, transformam, sofrem as

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influências de sua transformação e identificam-se com esse novo lugar, que sempre

estará em mudança/construção, pois e uma das características fundamentais do ser

humano (RODRIGUES; OLIVEIRA NETO, 2008, p.31).

II – Saberes ambientais

Os meios de produção descortinam as paisagens em movimento, e as transformações

do espaço natural através do trabalho do homem determinam o modo que grupos encontram

para sobreviver, da maneira em que utilizam e reutilizam os recursos naturais que estão ao seu

redor. A subsistência dos grupos depende da interação com o ecossistema, pois dele retiram a

porção diária para manutenção da vida:

Aí nos cortava seringa aí... Nesse tempo ainda não se trabalhava com

palmito, tava falando pra ele aí que a gente se mantinha com moru-moru,

andiroba, ucuúba, era o que a gente se mantinha, né?! Além da seringa... Aí

ia vender, era uma alegria, porque não era muito dinheiro, não era que

fosse muito, mas naquele tempo, era muito porque tudo era barato, eu digo

pra esses moleques, pra essa rapaziada de hoje e eles não acreditam, que

naquele tempo, se a gente fazia trinta cruzeiros em dinheiro, a gente fazia

todas as compras d’a gente, trazia tudo pra casa e ainda trazia dinheiro.

Porque um quilo de charque era barato, pirarucu era barato, o café não

tinha nem peso, o açúcar era baratinho, tudo era barato, o peixe... não tinha

por que... A gente fazia dez reais, doze reais dava pra tudo, a farinha, o

açúcar, o café... Vinha alegre pra casa...

Os produtos extraídos na Ilha Grande, na sua maioria, são comercializados no Porto da

Palha, na Av. Bernardo Sayão, em Belém. Seu Simeão traz a lembrança de um tempo de

fartura, o lucro pelo comércio dos produtos levados na travessia rumo a Belém possibilitava o

usufruto das compras dos gêneros alimentícios na parte continental. A memória de Seu

Simeão abriga também um tempo de fartura dos recursos naturais:

Aí enquanto ela estava fazendo o cafezinho, a maré estava boa, eu dizia

“vou pegar uns peixes ali...”, dentro de quinze minutos eu voltava com vinte,

trinta pescadas, aí eu jogava, ela fritava... é verdade... Era muito bom. Aí

ela dizia, “não vai mais de tarde...”, se eu fosse de tarde era outra quantia

de novo, mas hoje em dia você chega na beira de novo, você reza, pede pra

tudo quanto é santo e não pega uma pescada...

Não achava um camarão pra pescar, foi embora... Mas quando ele vinha,

vinha muito e agora mudou, porque todo tempo têm, não dá mais aquela

inquantidade daquela época. Põe o matapi e pega, não pega muito, mas

pega todo tempo...

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O caranguejo é outra coisa, o caranguejo só vinha no inverno, mas quando

vinha, vinha muito, e agora hoje em dia não falha mais, não é como era,

mas não falha... O problema é que nem cresce mais o bichinho, não é?!

A razão das mudanças para escassez dos recursos naturais é explicada por Seu Simeão.

O narrador detém o saber do que está acontecendo em sua volta, ainda que não tenha se

comprometido com o rigor do sistema educacional e não exponha qualquer diploma

emoldurado na parede da sua casa. Seu Simeão pescou saberes com a linha e o anzol da sua

sensibilidade, porque soube ouvir os rios e a mata, porque soube sentir o cheiro dos ventos e

reconhece a direção das tempestades, porque sabe a cor que tem o céu em dias de chuva ou

sol. Ele reconhece as atuais perdas ambientais, porque traz na sua memória o tempo vivido da

fartura da pesca:

Olha o peixe e camarão já deu muito aqui, mas esse negócio da poluição é

que estraga, né, afasta, afasta o produto...

Aí a gente maneja, por que aí, tem a malhadeira, a gente já pega um, dois,

três, porque não pega como pegava antes... Olha, eu trabalhava com

espinhão, aí você coloca um espinhão na água, aí quando você levanta é

saco plástico, é aqueles redes, rede de tempero, vem tudo quanto é coisa, na

malhadeira é a mesma coisa... E no camarão dava em grande quantidade...

Eu jogava quinze matapi na água, aí eu pegava um balaio de camarão,

nessa época agora, e agora pra você pegar, três, quatro quilos de camarão,

é difícil... Dava grande quantidade, mas agora não...

E ele também se refere ao término da abundância na agricultura:

Olha, por que quando eu vim pra esse Bijogó [furo do rio] aqui, taí minha

senhora que não deixa eu contar mentira, a gente morava nesse igarapé bem

ali, aí eu trabalhava no roçado que eu tinha, trabalhava com roça, quiabo,

maxixe, chicória, esses negócios todos...

A poluição é um dos fatores apontados no relato do intérprete como o causador das

mudanças no meio ambiente no rareamento dos mariscos e peixes nos rios que banham a ilha.

O conceito de sustentabilidade é trazido por Seu Simeão ao chamar atenção dos moradores

sobre a necessidade do cuidado com o lugar em que habitam:

Tem que ter uma união que é pra fazer um movimento numa ilha dessa, que

é pra ficar como era de primeiro, porque a pessoa não pode só desplantar,

desfrutar, vamos fazer o plantio, assim como se tira vamos colocar, porque

se tira e não põe, vai acabando... Se você derruba uma árvore, plante uma

semente, duas, pode não servir pra nós, mas depois vai servir, serve para os

netos...

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Essa é a voz do Seu Simeão anunciando a necessidade do desenvolvimento sustentável

para o meio em que vivem, saberes sobre o plantio, a semeadura da terra como garantia da

sobrevivência. O sentido de interligação com todos os seres e o desejo do religamento dos fios

que compõem a teia da vida para a geração presente e as vindouras mostram-se como

pertinentes preocupações na voz do intérprete:

Têm pessoas que dizem assim, “olha eu não vou plantar porque eu não vou

colher...”; não pode ser assim, porque se os antigos não plantassem nós não

tínhamos pra colher, né verdade? E então temos que nos lembrar disso.

Olha, têm muitas crianças aí, vai servir pra eles, para os filhos deles, a

geração vai embora e nós vamos... A semente vai ficando, vai ficando...

Silva (2008, p.59) esclarece sobre a problemática recorrente na Amazônia sobre o

manejo sustentável para conservação da fauna e da flora e consequentemente da vida humana:

as formas de manejo dos recursos da natureza utilizados pelas comunidades locais,

em alguns casos, tem um custo social e ambiental muito alto, hipotecando as

condições de reprodução material, na medida em que algumas práticas produtivas

vão sendo subsumidas em função do desgaste do solo, da falta da mata ciliar, etc.

Certamente ai reside uma problemática que o saber prático por si só não é suficiente

para superá-lo, na medida em que começa a haver um comprometimento da

―sustentabilidade‖ local, uma vez que a organização social e modos de vida se

constroem em relação direta com a natureza.

Os saberes do cotidiano são acumulados e repassados aos mais jovens, são as formas

de se organizarem e reorganizarem tanto nos aspectos materiais quanto os simbólicos. Nesse

sentido, as comunidades ribeirinhas encontram sua própria ciência para o manejo das questões

sobre as práticas produtivas. Por exemplo, Seu Simeão conta do seu ressentimento pela

postura do IBAMA ao proibir a extração do palmito sem apresentar justificativa ou

proposições, pois, segundo o saber do cotidiano trazido pelo intérprete sobre o manejo e

extração do açaí, é necessária a derrubada das velhas palmeiras para dar espaço ao

desenvolvimento das mais novas. Esse tipo de manejo advém do conhecimento utilizado pela

comunidade como forma de subsistência, sobrevivência, a derrubada para o consumo, ―matar

a fome‖:

O que é comercializado aí é o açaí e o palmito, palmito nem muito, porque

eles não deixam a gente tirar, porque tem uma lei, o IBAMA não deixa.

Alguma coisa tá errado, porque, olha minha filha, se a gente não limpasse

isso aí, não tratasse de limpar, não existia tanto açaí como tá agora, porque

nesse tempo que não entendia, os açaizal eram tudo fechado, mas agora, ele

dava muito açaí. Mas numa época não tinha, não dava nada... E hoje em dia

vai derrubando os velhos, vai levantando os novos, vai ficando novo o

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açaizal a pessoa tem que saber ajeitar também, saber fazer o manejo, e não

falha mais o açaí. Você vê que em canto nenhum falha o açaí... Se eles do

IBAMA viessem conversar comigo, eu dizia, “vocês tão certo por um ponto,

mas vocês devem autorizar e dar explicação de como deve acontecer e não

maltratar”, mas eles só dizem, “vocês não vão tirar”, mas agente sente fome

também, criança sente fome, têm dias aqui que a gente não têm do que se

manter, não concorda comigo?! Aí vem o cara e corta o palmito e não dá

nada para a gente, aí como é? Fica ruim, fica difícil, né?! Por que os

produtos que nós temos, que tem hoje em dia aqui, é só o palmito e o açaí...

O saber do cotidiano construído a partir da observação e da experiência foi estudado

por pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária/EMBRAPA, e estão em

sintonia com a forma de manejo trazida na voz do intérprete, apreciando as etapas do semeio,

das mudas, a roçagem e os desbastes dos estipes8, até o raleamento das matas

9, são estratégias

de agricultura sustentável:

Os fatores que determinam a intensificação da mão de obra, usada pelos ribeirinhos

no açaizal, tendo em vista o aumento da produção de açaí fruto são: a estabilidade na

terra ocupada, a quantidade de mão de obra familiar disponível e as limitações de

renda das outras atividades.

Para aumentar o rendimento de açaí fruto, os ribeirinhos estão enriquecendo os

açaizais por meio do semeio e de transplantes de mudas de açaizeiro, raleando a

mata e fazendo o desbaste dos estipes, além da intensificação da mão de obra para

roçagem.

Considerando que o tipo intensivo delineia uma estratégia de incremento de mão de

obra, as propostas de manejo de açaizal para aumento da produção de açaí fruto são

muito bem-vindas nesses agroecossistemas, pois encontram-se bem alinhada aos

horizontes de uma agricultura sustentável (AZEVEDO e KATO, 2014, p.13).

Outro saber emergido da observação do cotidiano apresentado pelo intérprete é o

fenômeno da sepacuema:

Agora presta muita atenção como o maruim vem, quando a água vai fazer

sepacuema seis horas da manhã, meu camarada... É a maré que dá seis

horas da manhã... É que dá o maruim, são três dias... Antes dela encher eles

vem, a pessoa não pode nem ir na beira que tá fumaçando, o maruim,

passou essa fase, já vai terminar, a maré dobrar, quando já dá oito horas aí

já vai terminar, acabou... Porque Deus é bom, porque o bichinho é

atentado...

8 O desbaste é realizado na maioria das touceiras, deixando-se de um a três estipes jovens e também de um a três

estipes adultos. Esta prática é feita no momento da roçagem do açaizal. A função dos estipes jovens é a de

substituírem os estipes adultos ou aproveitá-los para a produção de palmito. Fonte:

http://www.alice.cnptia.embrapa.br/bitstream/doc/409228/1/23.pdf. Acesso em: 20 de Novembro de 2014. 9 É um termo empregado em agricultura que consiste em retirar as plantas em excesso, deixando o espaçamento

ideal para o desenvolvimento das demais. Fonte: http://www.dicionarioinformal.com.br/raleamento/. Acesso em:

20 de Novembro de 2014.

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Nos saberes cartografados na voz do Seu Simeão, encontramos memórias da paisagem

de Belém continental, dados históricos, situações do cotidiano e mudanças sofridas pelo

espaço geográfico: um tempo que se foi, mas encontra lugar cativo nas reminiscências por ter

os contornos de um mapa de sentidos, que são imperecíveis entre os que viveram. Alguns

desenhos traçados pela memória do intérprete remetem ao saudosismo presente no

alinhamento entre homem e espaço geográfico – ―o pessoal ia é se deitar lá no meio da rua e

dormir, porque só passava carroça...‖, e, nos dias atuais, ―a gente cruza os braços porque não

consegue atravessar... Meu Deus do céu, quem viu isso aqui, quem vê...‖. A visão e os demais

sentidos atentos às mudanças ocorridas na cidade, aqui ele traz na memória as mudanças no

terreno da Universidade Federal do Pará:

Eu me trato lá na Universidade, aí eu tava dizendo, quem viu essa

universidade... Porque eu morei uns cinco anos na Barão, em Belém... Eu

andava aí nesse lugar da Universidade, era horrível... Era uma mata muito

horrível... Quando que eu dizia que eu ia ver carro correndo dentro

daquelas matas, do jeito que tá, como eu tava conversando com um senhor

lá dentro do hospital assim... “É verdade, conheci isso aqui...”

O Porto da Palha, uma referência para os moradores da Ilha Grande, por ser o espaço

de embarque e desembarque de pessoas e produtos, é trazido nas lembranças de Seu Simeão

como o lugar do trânsito, da passagem, nos tempos em que se podia ―deitar lá no meio da rua

e dormir‖, uma paisagem modificada com a explosão demográfica da cidade e as implicações

que isso acarreta:

Esse Porto da Palha aí era só um caminho, varava lá na Alcindo Cacela, no

tempo do inverno a gente via o povo andando, uns pra cá, outros prali. Essa

estrada aí, Bernado Sayão, né, que vai varar na Copala, o pessoal ia é se

deitar lá no meio da rua e dormir, porque só passava carroça, era... (risos),

alguma carroça que passava, o carro da olaria, às vezes da Copala, que

varava... Mas era horrível, era horrível, era horrível, e agora a gente cruza

os braços porque não consegue atravessar... Meu Deus do céu, quem viu

isso aqui, quem vê... O Porto da Palha ali era antigo, mas de primeira era

só um aterro, nunca tinha visto, né, o Padre vira santo, né, o santo vira

padre, agora como vê como foi, antes era só um aterro, aí virou Padre

Eutíquio, se lembra?! Até um certo tempo chamavam de São Mateus... Foi o

santo que virou padre... (risos)

A vida agitada na Belém continental, em detrimento à calmaria da Ilha Grande,

encontra lugar no relato. A violência é apontada como um dos fatores determinantes para o

retorno à comunidade ribeirinha. Os constantes assaltos, a falta de segurança, a prisão

domiciliar em que os moradores são confinados fazem com que a vida na ilha seja vista como

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uma maravilha, inevitável comparação do intérprete com as ocorrências da violência urbana

versus a calmaria da ilha:

Uma maravilha aqui pra nós, a gente morar aqui é maravilha, sob o negócio

do clima e outras coisas aqui. Vê como é que estão as coisas do assalto em

Belém, a pessoa que não pode nem sair... Eu morei em Belém, quando

estava com dezoito anos fui pra Belém e voltei com vinte e pouco aí, naquele

tempo era bom lá, mas hoje em dia, é dose... A pessoa não pode sair, não

pode usar mais nada, não pode fazer nada... Até aqui no interior, você não

pode dizer eu tenho muito dinheiro... Passamos uma situação bem difícil,

mas agora em outros casos, pra nós é bom aqui, porque é tranquilo, a gente

pode estar de porta aberta, pode de noite se quiser, se tiver calor, pode abrir

a janela e lá em Belém? Aqui o clima é bom, é agradável, a gente se sente

alegre por isso, é tranquilo... Lá em Belém, como diz o cara, o homem

falando no jornal, a gente vive atrás das grades, em vez de ser o bandido...

III – Saberes escolares

A dificuldade em encontrar escola para as crianças da comunidade também é vista no

depoimento, e um fluxo contínuo de alunos precisa deslocar-se para as áreas urbanas a fim de

buscar escolas. O quadro agrava-se no ensino médio, em que são quase nulas ou inexistentes

as ofertas de vagas. Ao mesmo tempo, se reconhecem as mudanças ocorridas na escolarização

das crianças e dos jovens da ilha com o advento das duas Unidades Pedagógicas da Prefeitura

Municipal de Belém na comunidade:

Não tinha, não tinha... Meus filhos pra estudar foram lá pra Boa Vista... Aí

tinha Dona Maria José que veio morar aqui e ensinava, meus filhos

aprenderam um bocado com ela, mas não tinha... Aí quando ela saiu daí, só

no Boa Vista, aí era muita dificuldade, hoje em dia tá bom, por que a

criança, só não estuda, se não quiser, o barco vem buscar no porto, né?

Naquele tempo se não tivesse canoa, às vezes molhava o livro, caderno,

porque o barco era pequeno, tudo isso acontecia, era muito atrasado

mesmo...

Um dado é recorrente em todos os relatos dos moradores ouvidos, a referência ao

trabalho pioneiro na educação formal feito pela Professora Maria José:

Há, aqui nessa ilha não tinha educação, a primeira professora que veio

para cá foi a Maria José, irmã da Quinha, meus filhos estudaram com ela,

Manoel, Antônio, Maria. A primeira professora foi ela, a Maria José.

(Morador 02)

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De acordo com outro relato, do Morador 01, a Professora Maria José foi a passeio

visitar os irmãos que moravam na Ilha Grande e, ao deparar-se com o quadro grande de

analfabetismo, decidiu pedir permissão ao senhor Salomão Donato (dono da ilha) para

lecionar. A resposta foi positiva, e Maria José mudou-se para a Ilha Grande e iniciou seu

trabalho como professora, alfabetizando crianças de dia e os jovens e adultos à noite, sob a luz

da lamparina. Após quatro anos de trabalho, recebeu o convite do então prefeito de Acará,

Orlando Cunha de Oliveira, para trabalhar em regime de contratação, recebendo seus

proventos como professora do município do Acará.

Durante a gestão do Prefeito Edmilson Rodrigues, a escola passou a fazer parte do

quadro da Secretaria Municipal de Educação de Belém/SEMEC. A comunidade entrava com

o espaço físico e a SEMEC com os funcionários, materiais permanentes e de consumo,

transporte escolar. A partir de então, há notáveis melhorias, mas ainda precisa ser trilhado um

longo caminho para de fato ser garantido o direito à educação de qualidade, especialmente no

que se refere à infraestrutura dos prédios que abrigam as escolas das ilhas.

Dados constatam a realidade da educação do campo, a oferta de vagas aos moradores

das comunidades rurais-ribeirinhas é apenas uma das problemáticas enfrentadas, mas sinaliza

a primeira exclusão a que são confrontados, o desrespeito ao direito a frequentar uma escola:

De fato a inexistência de escolas suficientes no campo tem imposto o deslocamento

de 48% dos alunos dos anos iniciais e de 68,9% dos alunos dos anos finais do ensino

fundamental para as escolas localizadas no meio urbano em todo país, problema este

que se agrava à medida que os alunos vão avançando para series mais elevadas, em

que mais de 90% dos alunos do campo precisam se deslocar para as escolas urbanas

a fim cursar o Ensino Médio, segundo o Censo Escolar de 2002 do INESP. Se

adicionarmos a esses dados as dificuldades de acesso às escolas do campo, as

condições de conservação e do tipo de transporte utilizado, bem como as condições

de tráfego das estradas, concluímos que a saída do local da residência torna-se uma

condição para o acesso à escola, uma imposição, e não uma opção dos estudantes do

campo (ROCHA e HAGE, 2010, p.17-18).

O quadro negativo associado às escolas do campo, envolvendo professores sem

qualificação, prédios em condições precárias, falta de materias didáticos, dificuldades ou

ausências no transporte escolar etc., coloca as escolas que compreendem a educação do

campo no patamar de inferioridade, despreparo. Arroyo (2010, p.10-11), no prefácio do livro

Escola de direito: reinventando a escola multisseriada, coloca-se no lugar de estranhamento

diante da visão empreendida:

Difícil superar essas visões tão negativas do campo e de suas escolas porque

reproduzem visões negativas dos seus povos e das instituições do campo. [...] A

quem interessa essa visão tão negativa da escola do campo? Porque ver o campo

como problema? Para ver o Estado, as politicas como solução? Para reduzir seus

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povos a meros destinatários agradecidos de nossas políticas e intervenções-solução?

Essas imagens tão negativas do campo e de suas escolas tiveram e tem uma

intencionalidade política perversa: reduzir o campo, suas formas de existência e de

produção de seus povos à inexistência. A escola do campo é, assim, considerada

como não escola, não educandário, sem qualidade; os educadores-docentes, como

não educadores, não docentes; a organização curricular não seriada, multisseriada,

como inexistente; os diversos povos do campo, na pré-história, na inferioridade

cultural.

A resposta aos questionamentos suscitados na presente pesquisa é de igual maneira

exposta pelo autor: ―Enquanto esses imaginários e paradigmas hierarquizantes,

inferiorizantes, segregadores persistirem as pesquisas e analises nascerão viciadas,

preconceituosas‖ (ARROYO, 2010, p.11). Olhar a escola do campo com suas problemáticas e

complexidade, com a diversidade que lhe é tão peculiar, é um passo necessário para um tempo

mais fértil, fecundo para a organização do pensar e fazer pedagógicos, ―um currículo que

respeite os tempos humanos‖, como propôs Arroyo (2010, p.10-11):

Reconhecida a especificidade desse tempo final da infância na especificidade do

campo, define-se a organização escolar, a enturmação. Seria por idades? Por

interidades ou por temporalidades humanas mais próximas? Como organizar os

conhecimentos, os saberes, que trazem das especificidades de suas experiências

infantis na especificidade do viver no campo? [...] A partir dessas especificidades

coletivas, tenta-se organizar conhecimentos: modos de ver o mundo, de se ver;

modos de pensar o real e a especificidade desses tempos e das formas de vivê-lo no

campo; modos de ver a terra, de aprender a lutar pela terra. Que agrupamentos são

mais próximos em vivencias, saberes, socializações? Respeitar as vivências e

saberes, os valores e modos de pensar o real e de pensar em si, de aprender e

socializar-se nos convívios coletivos que não são diferentes por idades cronológicas,

por anos de idade, mas que são próximos por temporalidades geracionais, pré-

adolescentes, adolescentes, jovens ou adultos.

Compreender a complexidade da educação na Amazônia é o desafio apresentado a

todos os sujeitos envolvidos neste processo. No que se refere às escolas margeadas pelo rio, as

problemáticas envolvem desde questões de infraestrutura, até as questões pedagógicas

vinculadas à apropriação dos saberes cotidianos necessários à organização da prática

educativa da escola, enquanto instituição responsável pelo desenvolvimento integral de

competências, habilidades e capacidades dos educandos.

IV – Saberes Mitopoéticos

Um elemento fundante na cartografia da Ilha Grande é o imaginário mitopoético

expresso nas narrativas do intérprete, reconhecido na comunidade como o contador de

histórias, o guardião da memória. As histórias de Seu Simeão percorrem todos os espaços da

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ilha, inclusive são semeadas no solo da escola, resta-nos saber se encontrarão solo fértil entre

os educadores, já que os alunos recontam as histórias contadas pelo intérprete e fazem circular

as palavras poéticas. E é tudo o que temos:

Os textos que circundam através da voz nos rios, nas matas, nas estradas, retratam o

cotidiano das comunidades amazônicas e se comparam àqueles ditos nas praças ou

nas feiras pelos aedos clássicos, ou nos serões medievais pelos vassalos, ou ainda

mais tarde pelas classes populares. No caso das populações mais pobres, na maioria

das vezes, essas narrativas são uma das poucas formas de convívio com o poético.

Um estético envolto em magia e em sangue marcado pelo difícil cotidiano (FARES,

2010, p.95).

A imagem é a de um senhor sentado na cabeceira da mesa. Ao abrir de sua boca,

somos enredados por sua voz e transportados para as temporalidades e as territorialidades que

abrigam suas histórias. O medo na descrição da Cobra Grande, a alegria e o alívio de livrar-se

da Matinta, os arrepios ao ouvir o som do tambor da Uiara, sensações latentes provocadas

pela voz, pela palavra dita, especialmente num lugar como a Amazônia.

Na performance de Seu Simeão, observamos um corpo que fala através da voz viva. O

intérprete desenvolve sua performance sentado, e, ao narrar, sua voz ultrapassa os limites do

corpo, suscitando em quem escuta evocações sensoriais, atributo característicos dos

contadores de histórias tradicionais. Zumthor (2010, p.13) relata sobre um aluno da região de

Volta, Gana, África, que na sua etnia ―a confidência é feita em posição deitada, a palavra

séria, sentada; aquilo que é dito em pé não tem importância‖. São estruturas e codificações de

que os grupos apropriam-se para a organização e o entendimento do elo entre corpo e voz:

O som-elemento, o mais sutil e mais maleável do concreto – não constituiu e não

constitui, no futuro da humanidade como do individuo, o lugar do encontro inicial

entre o universo e o inteligível? Ora, a voz é querer dizer a vontade de existência,

lugar de ausência que, nela, se transforma em presença; ela modula os influxos

cósmicos que nos atravessam a capta seus sinais: ressonância infinita que faz cantar

toda a matéria... (ZUMTHOR, 2010, p.9).

Narrador e ouvinte ficam enlaçados, configurando inclusões estabelecidas a partir de

uma ―relação emocional que se estabelece entre o executante e o público [...] que exigem uma

grande destreza, mas engendram liberdade‖ (ZUMTHOR, 2010, p.167). O ouvinte é partícipe

da performance do intérprete, ao emprestar seus ouvidos generosos, narrador e ouvinte se

unem ao experenciar os desdobramentos trazidos no momento da história que chega até o

ouvinte, causando-lhes marcas e impressões únicas. Então, acontece o processo de recepção, a

propósito da qual explica Zumthor (2010, p.258):

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A componente fundamental da ―recepção‖ é assim a ação do ouvinte, recriando, de

acordo com seu próprio uso e suas próprias configurações interiores, o universo

significante que lhe é transmitido. As marcas que esta recriação imprime nele

pertence a sua vida íntima e não se exteriorizam necessária e imediatamente. Mas

pode ocorrer que elas se exteriorizem em nova performance: o ouvinte torna-se por

seu turno intérprete, e, em sua boca, em seu gesto, o poema se modifica de forma,

quem sabe, radical. É assim, em parte, que se enriquecem e se transformam as

tradições.

Este movimento é observado na relação entre as crianças e os jovens, alunos da

Unidade Pedagógica São José, e o Seu Simeão. A recepção é observada na semeadura das

narrativas por parte dos pequenos ouvintes. Zumthor (2010, p.55), ao questionar ―Que tipo de

conhecimento o conto veicula, que papel sociológico desempenha este conhecimento e que

finalidade lhe é atribuída? Trata-se de um simples divertimento, de uma narrativa iniciática,

ou do que mais?‖, comenta:

Nas sociedades arcaicas, o conto oferece à comunidade um terreno de

experimentação em que, pela voz do contador, ela se exerce em todos os confrontos

imagináveis. Disto decorre sua função de estabilização social, a qual sobrevive por

muito tempo às formas de vida ―primitiva‖ e explica a persistência das tradições

narrativas orais, para além, das transformações culturais: a sociedade precisa da voz

de seus contadores, independentemente das situações concretas que vive

(ZUMTHOR, 2010, p.56).

No repertório de Seu Simeão, encontramos os personagens do imaginário amazônico,

tais como: Matinta Perera, Boto, Uiara, Cobra Grande, entre outros. De acordo com os saberes

do intérprete sobre a Matinta Perera, encontramos as categorias Matintas vivas e mortas:

Porque a Matinta Perera é quem já se foi desse mundo, é a alma, é

assombração... Porque tem a viva e tem a que já morreu; essas que são

vivas são as piores, porque vem perturbar a gente...

Na categoria Matinta viva, há aquelas que se apaixonam e fazem o cortejo ao par

desejado:

Quando eu era novo, eu namorava com uma que fosse Matinta Perera, ela

não veio me abraçar e me beijar de noite?! Me abraçou e me beijou de

noite, quase me matou...Lá numa casa que eu morava, eu ainda era solteiro,

aí ela veio comigo, eu olhei ela, enxerguei quando ela entrou e ela me disse

“oi...”

Muitos passam pela metamorfose sem ter ciência do fato:

É porque tem gente, assim como tem moças, tem rapaz que viram bicho e

não sabem, saem pra malinar, porque tem pessoas que já vem na veia... A

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Matinta Perera, por exemplo, não sabe, vem saber tempos depois... E esse

que me atacou era um rapaz, que virava lobisomem...

Elas são conhecidas pelo seu local de origem:

A gente via Matinta Perera, mas ela já conhecia agente... Ela assobiava e a

gente dizia, “Matinta Perera da onde? De tal lugar...” Aí ela achava

graça...

Ai eu disse, que o que me impressionou mesmo foi que uma vez eu perguntei,

“Matinta Perera da onde? Aí ela disse de Cametá...”.

Segundo Fares (1997), a Matinta na mitopoética amazônica, é um ser noturno e

solitário que vaga na escuridão atormentando os moradores, ela se mostra através do ouvir, do

estridente assobio, ―fiiiiiiitttt, Matinta Perera...‖, até conseguir a promessa do café e do

tabaco, que será entregue no dia seguinte. A autora apresenta três configurações de Matintas:

a invisível, a voadora e a terrena:

A matinta não se materializa, ela se dá a conhecer através do assobio noturno. Às

vezes, o narrador utiliza no discurso o verbo ver, mas com significado de ouvir —

eu vi o assobio dela. A mudança semântica atenta para a visão do imaginário: o

narrador vê a imagem construída pela imaginação simbólica ou pelo imaginário

coletivo, ou só consegue enxergar com os olhos da ilusão, resultado do medo ou da

coragem. Os olhos da razão estão cegos. E como não se está mais nos tempos em

que os bichos falavam, fica-se sem argumentos para defender ou negar o fato.

A personagem que vem a lume é a humana que vira matinta, ela assume a condição

do fado que carrega, a penitência no vagar noturno. O movimento dos contos é o

seguinte: escuta-se o assobio durante a noite, oferece-se a prenda, na manhã seguinte

uma pessoa se identifica como a bruxa que vem buscar o prometido. Essa pessoa,

grande parte das vezes, é conhecida da comunidade. O jogo noite-dia, ente invisível-

visível são partes da invariância narrativa (FARES, 1997, p. 61).

As narrativas de Matinta Perera são amplamente contadas tanto nas áreas ribeirinhas,

quanto na urbana. A personagem é geralmente uma idosa que vive sozinha, situação vivida

por muitos velhos nos diversos espaços habitacionais, com facilidade encontramos as histórias

envolvendo as Matintas, diferente do Boto ou da Cobra Grande que necessitam do elemento

água para banhar o imaginário.

Elas convivem, são parte do cotidiano, podem ser qualquer pessoa que conhecemos,

talvez façam parte dos nossos laços familiares, estão vividamente entre nós, assim como o

devaneio está para o amazônida:

A matinta pode ser essa identidade saída da alma do poeta-caboclo; pode ser o efeito

dos resíduos dos espíritos indígenas habitantes do entre-lugar dos vivos e dos

mortos, das aves agourentas ou dos pássaros adivinhos portugueses, das bruxas

medievais e das entidades vampirescas; pode conter partes da negritude do saci, da

gargalhada do curupira, do fado da mula-sem-cabeça, da licantropia do lobisonho;

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pode existir para ajudar as mães a assustar crianças desobedientes, ou para a

sociedade justificar a solidão dos velhos. Todas essas qualidades fazem dela, uma

personalidade múltipla: latino-americana — brasileira — amazônica (FARES, 1997,

p.163).

No campo das metamorfoses, humanos se transformam em outros animais, as

Matintas, como observamos anteriormente, são ligadas ao tempo noturno e podem

transformar-se em pássaros, aves – predomínio do regime noturno da imagem, de que fala

Durand (1997). No entanto, na voz do intérprete da pesquisa há pessoas que viram os mais

diversos bichos, sem a necessidade da chegada da noite:

E esse que me atacou era um rapaz, que virava lobisomem...

Soube por que eu discuti com ele, vigiava meu matapi, aí eu fui e

esculhambei sem saber que ele virava bicho, quando foi de noite... Aí, rapaz,

depois que ele quis me comer, ele não falava comigo, quando foi um dia, que

eu cheguei no Porto da Palha, falei meu nome, ele tava meio bêbado, pediu

uma cachaça e eu, pois não, aí comprei meia garrafa de cachaça pra ele,

pronto! Daquela data em diante ele ficou meu amigo, me deixou, eu não

podia sair aí no igarapé que ele vinha me pertubar... De dia, na verdade,

não tinha hora pra ele virar... Porque a pessoa que vira bicho, vira tudo que

tipo de bicho, vira aranha, vira cobra, vira pássaro, vira tudo...

A relação do ser amazônida com os personagens das narrativas contadas é

naturalmente estabelecida no cotidiano, a ponto de narrador e personagem negociarem a

trégua, a paz. O visível, o material, no caso aqui a meia garrafa de cachaça, diminuindo as

distâncias entre o dizível e o indizível, corroborando para o assentamento do imaginário,

enquanto partícipe do cotidiano das populações rurais-ribeirinhas.

Loureiro (1995, p.37-38) dispõe um conceito de imaginário trazido das pesquisas de

Leonardo da Vinci sobre suas experimentações com pintura: o sfumato, ou seja, a zona difusa

de sombreamento no desenho, efeito conseguido através do uso da estopa e não do uso do

pincel, que causa uma fusão sutil, não determinada com linhas demarcando e separando os

desenhos, um jogo de luz e sombra que causa nos apreciadores da obra de arte um impulso

poético.

No imaginário amazônico, o conceito de sfumato remete à interseção do cotidiano com

os fenômenos poéticos, gerando um entre-lugar característico da cultura amazônica, o espaço

do devaneio, da contemplação, pois ―O devaneio assim ajuda-nos a habitar o mundo, a habitar

a felicidade do mundo‖ (BACHELARD, 1988, p.23):

Coabitando, convivendo, deparando-se com o surreal como contíguo à realidade, o

homem amazônico navega culturalmente num mundo sfumato que funde os

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elementos do real e do irreal numa realidade única, na qual o poético vibra e envolve

em sua atmosfera. Dessa maneira, o homem amazônico cria uma cultura de grande

beleza e sabedoria, transformando o habitat, onde desenvolve seu projeto pessoal e

social de vida e sonho (LOUREIRO, 1995, p. 38).

A água, nossa casa primeira, refúgio, abrigo, proteção, o elemento que nos constitui,

nutrindo, hidratando, deixando fluir a vida. As águas para os amazônidas significam corpo

vivificado, presente nos diálogos entre seres viventes e o cotidiano, o rio está em tudo,

serpenteando a própria existência.

Conhecer os ditames das águas amazônicas, seus desejos e caminhos é, para as

populações desta região, questão de sobrevivência. Compreender o fluxo das marés, a

geografia hídrica, com seus furos, igarapés etc., faz parte dos saberes adquiridos desde a

infância. As crianças aprendem logo cedo a reverenciar o rio, nadar é tão importante quanto

começar a dar os primeiros passos.

O tempo é medido pelo ir e vir das águas, elas ditam os espaços e tempos de

habitação, as cheias dos rios impelem a reinvenção do cotidiano, o rio, sem pedir licença,

passa a morar nas casas dos ribeirinhos, quando não, toma como empréstimo a pequena casa

de palafita e passa a viver até seu corpo fluido e corrente encontrar a calmaria.

Neste cenário de imensidão e propício ao devaneio, encontramos, nas histórias

contadas por Seu Simeão, os mitos ligados às águas, daí considerarmos tais textos como

verdadeiras aquonarrativas – para usar o conceito elabora por Paulo Nunes acerca da obra do

romancista Dalcídio Jurandir (2001) –, o Boto, a Cobra Grande, a Preguiça Gigante, os

Poraquês e a Uiara.

O Boto se vira em pessoa, já vi ele em terra, já de branco, chapéu, se vira...

Aí na pontinha eu vi ele me olhando, tudo de branco... Aí eu não mexi com

ele, mas quando foi uma noite ele me carregou nas costas... Olha eu vinha

da casa dela, tava namorando ainda com ela, aí tinha um lugar que eles só

viviam lá, nunca tinha passado por lá, quando foi nessa noite eu resolvi

passar por lá, aí eles entraram, dois, ai eu passei nessa beira e eles iam

voando também, rapaz, pintaram o sete e eu só faltei morrer, aí quando foi

uma noite eu vi eles em pé, me olhando, tudo de branco... O Boto é uma

coisa incrível, na água ele se joga, aqui ele tomava banho, subia no pau, se

jogava igual uma pessoa, parece uma pessoa se jogando na água... Agora o

que eu fiquei muito incrível foi que, eu vou contar pra vocês, se lembra

quando o Diquinho morreu ali, tava só eu e meu genro na ponte, minha

senhora tava pra lá, quando eu vi vem dois Botos, vinham jogando pedra,

uma pedra grande, colocavam na boca e jogavam, um pro outro, brincando

com a pedra, tô com essa idade e nunca tinha visto isso... Se fosse só eu

falando as pessoas não acreditariam, mas foi eu e meu genro, vendo eles

brincando bola... (grifo nosso)

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Segundo Loureiro (1995, p.209), o Boto é um mamífero cetáceo de águas doces, na

Amazônia os mais conhecidos são os da espécie Boto preto, conhecido como o que

salvaguarda em caso de naufrágios e afogamentos, e os da espécie Boto vermelho, o ―grande

amante insaciável das mulheres ribeirinhas‖, o ―D. Juan das águas, sedutor de moças donzelas

e mulheres casadas‖, que em noites de lua cheia metamorfoseia-se em um belo rapaz de

vestes brancas e chapéu. Como exímio dançarino, chega às festas nas comunidades ribeirinhas

e põe-se a dançar com as mulheres, que logo são encantadas pela graça e pela elegância do

sedutor rapaz, ou aparece nos quartos das mulheres e, sem licença, deita-se nas redes para

consumar a cópula. Também as moças que se encontram em seu período menstrual, ao

olharem para o Boto, correm o risco da gravidez.

Do fruto desse amor híbrido nasce o ―filho do Boto‖, uma criança sem pai presente,

aceita pela comunidade. A situação é compreendida por se tratar de algo sobrenatural, que

foge ao domínio das mulheres. De acordo com Fares (1997, p.51), ―Eufemiza situações e

liberta a mulher de três interditos – a perda da virgindade ou o adultério, a relação entre

humanos e animais e a cópula no período menstrual‖.

A Cobra Grande, ou Boiúna10

, é um elemento da mitopoética indígena, ser encantado

que habita os rios, e assume a forma de uma navio iluminado, ou a de humanos, como na

narrativa da Cobra Honorato, para citar apenas duas das diversas variações que a Cobra

assume. Na Ilha Grande, umas das narrativas mais recorrentes na voz da população são as

ligadas ao personagem da grande cobra que serpenteia os rios e furos do entorno da

comunidade:

Olha só, essa cobra grande eu já vi três vezes, já vi ela boiar, urrando

parece um boi e boiando duas vezes ali perto da casa da dona Quinha;

ninguém percebeu de lá e nós daqui vimos... A cobra grande quando ela vem

do fundo ela dá um pulo e vem mais alto que essa casa aí, põe a cabeça lá

em cima e depois vai ficando normal, na altura do rio... E nós, olhando

daqui...

Eu e meu cunhado, quando a gente viu, “olha, olha a cobra, ela boiou”; não

tem aquela mangueira, mas abaixo um pouco, o pessoal num movimento lá,

ela escutando tudinho, ela boiou, arriou de novo na água e ficou horas e

depois sentou de novo... Aí no outro dia de novo, seis horas, aí estava eu,

meu cunhado, o Valdinho, o Arley no porto dele... Pois quando eu ia

embarcando na canoa eu vi, “olha a cobra grande, espia, espia”, aí todo

mundo olhando, aí ela boiando, ficou uns cinco minutos e foi embora... Aí

aqui eu vi ela de novo, aqui defronte, eu remando numa canoa.

10

Segundo Loureiro (1995, p. 222), uma das criações do fabulário indígena povoador das encantarias do fundo

dos rios da Amazônia é a Boiúna: mboi, cobra, una, preta.

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Ih, muito grande, do tamanho de um camburão... É muito grossa, aí esse

Milton que tá aqui, pega uma boia dessas que tem no canal, de primeiro

fugia, aí fugiu uma saiu por aqui, varou por aqui e quando ia passando na

casa dele, ele pegou a boia e amarrou na beira...

Eu saia com um primo que eu tinha pra vender açaí em Belém, aí tinha um

senhor que morava defronte da boca do igarapé, de primeira onde morava o

Tococá, aí eu fui apanhar o açaí dele, dez latas de açaí embarquei lá. Nesse

tempo eu fumava, aí o rapaz me deu um cigarro, quando vi assim de peito,

quando eu olhei ela estava de peito, ia batendo nela, meu Deus do Céu, ela

estava olhando pra luz, ela não fez nada por causa da luz... De fronte da

Copala eu já vi uma boiar, essa foi horrível, quando ela nos pega, quando

eu vou pilotando, o barco cheio de gente, cheio de mercadoria, bem em

frente a Copala, olhando pra Universidade, as luzes...Aí, a cobra grande,

ela veio do fundo só duma vez, do lado do barco, eu só dobrei, enorme...

Rapaz, ela foi lá em cima, ela ficou olhando pra nós, ela lá em cima, agente

via tudinho ela se movimentando, e agente conta pra certas pessoas e eles

ainda dizem que não existe, porque eles nunca andaram de noite e nunca

viram... Eu já vi muita cobra grande no rio, ali no Tucunduba vinha uma

correndo em cima d’água como eu nunca tinha visto, correndo igual um

barco n’água... Quem anda de noite vê as coisas... Quem não anda não vê...

De dia é mais difícil...

Segundo o intérprete, o lugar de moradia da Cobra Grande não é o rio. Por este

motivo, as embarcações não são atacadas, ela costuma habitar num buraco subterrâneo e se

alimenta nos furos. Algumas são bravas, urram e expelem odor desagradável, outras são

mansas, convivem bem com a presença dos barcos no rio:

Agora eu vou te dizer onde essas cobras estão, não pega muita gente,

porque ela nunca mora no rio, ela tem um buraco que passa por debaixo da

terra, ali na ponta negra mora uma enorme. Agora, a de lá é braba, porque

esses meninos do Sabazinho foram pescar pra lá e ela ia pegando eles, ela

só não pegou porque eles largaram a canoa e correram pra terra... Eles

amanheceram no galho do poste e ela urrando na beira, ela solta uma

catinga muito horrível...

Na boca desse Paciência [furo do rio] aí, boiava uma cobra que ela

atravessava a boca do paciência e nós passamos três vezes por cima dela,

mas ela era mansa, porque tinha um barco igual a esse que tá fechado aqui,

aí nos passamos e ela não fez nada... Passamos três vezes, o rabo pra lá e a

cabeça ali perto da casa da piroca. Agora outra vez eu fiquei com medo, eu,

com meus dois filhos, de noite, passando no furo. Fui deixar um senhor que

estava aqui em casa, lá em Belém, lá no ponto certo, na minha lancha, na

lancha que se chamava Darlene, mas ela já se acabou por aqui, aí eles

funcionaram o motor, levaram rede, se deitaram na rede, e eu, pilotando o

motor... Quando ele chegou ali na casa do Boá, beirando aquele lado, ah

meu caro, quando passei do lado de um negócio escutei um barulho, que me

jogou lá do outro lado, a lancha quase emboca de cabeça pra baixo, eles

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caíram da rede, “Que foi papai? Eu não sei dizer, passei de um lado de um

negócio aí...”; acho que era a cobra grande, porque ela não marisca no rio

grande de noite, ela marisca num rio estreito, a pessoa tem que ter muito

cuidado...

Mariscar, pra pegar o bicho, porque o que ela pegar, ela vai comendo...

Então, ela num rio, que nem nesse Guamá, de noite é difícil, só em estreito

como o Itaquá, no furo do prazer, tem que ter muito cuidado a noite, porque

o bicho entra pra mariscar...

Os movimentos da Cobra Grande são acompanhados pelo intérprete, ele sabe que

―quando ela vem do fundo ela dá um pulo e vem mais alto que essa casa aí, põe a cabeça lá

em cima e depois vai ficando normal, na altura do rio‖, que ―ela não marisca no rio grande de

noite, ela marisca num rio estreito‖. Eis um olhar contemplativo e peculiar ao amazônida,

apresentando-se como parte constituinte de sua existência no mundo das águas, ou, como

disse Loureiro (1995, p.231), as ilhas são os locais de refúgio das grandes cobras:

Um dos lugares de morada ou refúgio da Boiuna são as ilhas. Componentes

importantes da paisagem amazônica, elas desempenham os mais diversos papeis do

imaginário. Há, por exemplo, os periantãs ou marapatás, que são ilhas flutuantes

levadas pela correnteza dos rios; há as ilhas de capins que oscilam no movimento

das marés, como verdes cabeleiras flutuantes; há as ilhas que aparecem e

desaparecem no período das enchentes e vazantes; há as ilhas que mudam de lugar;

há as ilhas imaginárias na vaga geografia do pensamento errante [...] A ilha – circulo

fechado, imagem do cosmo, mundo reduzido – apresenta-se como um território de

sonho e de desejo. Lugar de refúgio, silêncio e paz. Circularidade mágica. Cobra

enovelada em torno de si mesma. Uma espécie de valor concentrado da natureza.

Não é por acaso que abriga importantes fabulações do imaginário relacionado à

Boiuna.

No rio que banha a Ilha Grande, seu Simeão ainda nos conta da existência de uma

preguiça de aparência horrenda e que costuma devorar as pessoas:

A Preguiça, ela boiava bem aqui, não tem esse igarapé aí, o Jaime uma vez

pescando, quando ele deu, ela boiou, ela de braço aberto pra ele, a valença

é que ela sentou... O Jaime chegou aqui quase morto, disse que ela é muito

feia, que come as pessoas, ataca... Acho que ela se mudou daí, por causo do

barulho, porque ninguém viu mais nada.

Outra história trazida pelo intérprete diz respeito a um poraquê muito grande que

habita num buraco em frente ao barracão onde fica localizada a escola, o peixe é temido pelos

ribeirinhos. Por causa da presença de células eletrócitas em seu corpo, ele pode produzir

energia de mais de 500 volts. Por esse motivo, poraquê, na língua tupi, significa ―o que coloca

para dormir‖:

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Outra coisa, ali onde mora, ali onde é o barracão da D. Quinha, morava um

poraquê, muito enorme... Olha, eu te juro, porque o poraquê tinha um

buraco que dobrava a água assim, era enorme, enorme... O Boré, tu não te

lembras dele, ele morava aí, quando ele queria ir pra Belém, ele chamava

nós, pra nós ir de cumpanha, quando uma noite ele deixa a canoa dele no

maral, fora, né, aí tinha um pau do lado da canoa, mas o pau sentava,

quando é a noite que ele vai pra puxar a canoa o pau tá boiado, ele achou

estranho; quando ele avistou o poraquê tava olhando, a cabeça pra terra, aí

ele viu o olho do poraquê na lamparina, que ele disse meu Deus... Já ia

pisar, em cima dele, já pensou... Aí, ele só recuou, porque o poraquê faz

assim [gestos, como que serpenteando com as mãos]. E agora pra ele pegar

essa canoa? Ele pegou uma vara que tinha em terra, botou no berço da

canoa, no barranco e foi puxando...

Eu disse, “olha, esse poraquê mora aí, quando vê ele derruba, porque o

casco é fundo, o poraquê é muito horrível, ele derruba, onde ele encosta ele

derruba...”. Ele quis morar ali perto de onde o Nonato mora, lembra que

caiu um bocado de barranco lá.

A Mãe d’Água, Iara ou Uiara vem ao nosso encontro nos igarapés da Ilha Grande.

Fares (1997, p.51) apresenta uma configuração de Iara.

A iara é uma espécie de sereia amazônica ou mãe-d’água brasileira. Na nossa região,

ela aparece cercada de vitórias-régias e mururés, encanta pela beleza do corpo e dos

cabelos e, principalmente, pelo canto. O caboclo, seduzido, segue o som do canto e

conhece os mistérios do fundo do mar para onde ela o leva e não o traz de volta. E se

volta é mundiado.11

A Uiara revelada por seu Simeão não entoa canções, como costumeiramente é

observado nas narrativas, ela toca tambor, uma espécie de batucada – segundo o intérprete –,

conserva os longos cabelos como nos arquétipos femininos da sedução das sereias, nereidas e

ondinas, ao mesmo tempo em que não permite que vejam seu rosto, ―quem tiver visto seu

rosto uma única vez jamais poderá esquecê-lo, pode até, no primeiro momento, resistir-lhe

aos encantos por medo ou precaução. No entanto, mais cedo ou mais tarde acabará por se

atirar no rio em sua busca...‖ (LOUREIRO, 1995, p.261):

Uiara tem sim, aqui tinha, ali no igarapé perto de onde o Raimundo morava,

eu pescava, quando eu era mais novo, ela é idêntica uma pessoa, fica

batendo um tamburinho... Aí eu era novo, né, essas pequenas eram tudo

nova também, andavam no igarapé... Aí um dia eu ia andando de tarde,

umas quatro horas, eles vinham na batucada, entrando pra tentar ver,

quando se aproximou de mim o batuque, passou e eu não vi nada... Era ela,

11

Na Amazônia, usa-se a expressão para definir as pessoas encantadas por algum ente sobrenatural. Elas

parecem entorpecidas ou magnetizadas por um mundo desconhecido (FARES, 1997, p.51).

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meu Deus... Eu disse pro meu cunhado, olha o nome desse Igarapé é Uiara

porque ela ainda aí por dentro...

Isso, só ouvia... Agora lá no Itaquá, quando eu era moleque lá, tinha um

igarapé, perto da casa do Eduardo, tinha um lugar bonito lá que ficava uma

sentada, ele só não deixa ver o rosto dela, mas ela é muito linda, um cabelão

na costa, ela não olha pra pessoa...

Tem, não, não, elas não cantam, ela só batia o tambor, batucando, isso era

certo... Elas cansaram de ver também, bate tambor igual uma pessoa, muito

tamburinho, o cara ficava assim, eras, parece uma banda... A Uiara, mas se

ela quiser judiar da gente ela judia, fica olhando pra pessoa, até a pessoa

ser viva ela não pega, mas ela mundia...

Os saberes aqui mapeados pela voz do intérprete fazem parte das culturas praticadas

pelos povos amazônicos. O universo mítico em que habitamos confronta-se com a feroz e

devastadora modernização, das mais agressivas às mais sutis formas de dominação a que

somos confrontados e até violentados, que concorrem para modificações em vários campos,

inclusive no modo de vida do amazônida. No entanto, o imaginário se mantém vívido,

ocupando um lugar de grande importância dos que habitam essa região, com toda a força e a

beleza das encantarias, dos seres que transitam entre os mundos.

Não perdemos nossa cultura, reinventamo-la continuamente como forma de

sobrevivência. Cartografar saberes através da voz é uma forma de resistência, de pontuar,

registrar, deixar impresso, entre as epistemologias hoje legitimadas, o nosso modo de ser, de

ver o mundo que nos cerca:

O professor é alguém que fez uma viagem e voltou. Ele foi até terras desconhecidas

e teceu suas teias. Ao voltar, mostra-as àqueles que não foram. Ele lhes diz como é o

mundo. Suas teias de palavras são mapas que mostram os caminhos seguros e

indicam as trilhas que não levam a lugar algum.

Ensinar é mapear o mundo, fazer visíveis, pelo poder da palavra, os lugares

desconhecidos [...] Sem mapas, a vida seria muito difícil, o mundo seria

permanentemente desconhecido, impossível de ser aprendido (ALVES, 2003, p.37).

Essa fala de Alves é o espelhamento para todo trajeto percorrido nesta pesquisa, de

modo que não poderia haver acabamento mais apropriado para o término do capítulo

principal, aquele em que o sujeito-chave da pesquisa – o narrador – expõe as nuanças de sua

arte de tecer com as palavras.

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Ponto de espinha1: aproximações (in)conclusivas

Ao lançar a proposta das tessituras poéticas e fazê-la acontecer, a sensação é de ter

cartografado não somente os saberes enredados na Ilha Grande, mas de ter mapeado a minha

própria existência como pessoa nascida e criada num lugar ímpar, chamado Amazônia. Em

cada linha percorrida, os ventos das memórias da pesquisadora também sopravam forte na

face, nos cabelos, no corpo de quem também viveu nos arredores do Seu Simeão...

Haveria ainda tempo para a agulha atravessar o tecido das águas barrentas daquela ilha e

saber que nem mesmo o nome do local foi dado como um pequeno lugar, ou qualquer coisa

sem tamanha importância? Cada lugar aqui visitado ficou no bordado desta pesquisa,

conduzindo o leitor a uma terra imaginária.

Ainda haverá tempo de pegar a agulha, molhar a linha na saliva, e fazê-las atravessar

cotidianamente aquele lugar chamado Ilha Grande, para sempre costurar os saberes dos seus

moradores no tecido que veste a história da humanidade. Mas, por enquanto, aporto aqui –

após essa travessia, não haverá mais como para descansar o nosso pensamento nas formas

impostas de saberes julgando-os certos e imutáveis. Essa concepção foi lavada e levada pelas

águas que banham a Ilha Grande.

Sem querer sempre afirmar o que já sabemos, o nosso tempo agora é o rio que dita. E,

se ele corre na direção contrária ao que aprendemos, ousar pensar que é chegado o tempo da

mudança, de romper com os paradigmas e – quem sabe? – tentar sermos mais felizes. E é a

voz de James Cowan (1999, p.28) que, agora, ecoa nos ouvidos, quando chamados a finalizar

esta pesquisa:

Cada mapa que desenho é feito tanto com as informações que recebi de visitantes à

minha cela, quanto com as minhas próprias ideias, inspirados por seus

conhecimentos e, frequentemente, por seus comentários precisos e fantásticos. De

maneira estranha, entretanto, me encontro vivendo na presença do que para eles já é

passado. Conversando comigo, eles podem relembrar tudo o que tinham pensado

estar completamente perdido.

Assim como o cartógrafo sonhador, também sonhamos com a travessia que nos

levasse para a terceira margem do rio – para usar a mais que apropriada expressão que dá

título ao famoso conto de Guimarães Rosa (2001) –, para ilhas andarilhas, o lugar que apenas

é compreensível aos que ouvem a voz da tradição, escutam com os ouvidos do sensível as

1 Ponto feito da direita para a esquerda, arrematado com um pequeno ponto na horizontal em uma camada e

depois na outro, visando o cruzamento das linhas. Ponto que, mesmo deixado fixo, proporciona movimento para

o tecido.

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palavras ditas pelos povos, que convivem irmanamente em sintonia com o cosmos e todos os

seus elementos. A estes, é reservado aportar na Ilha das encantarias, um entre-lugar onde

passado e presente navegam no mesmo popopô em busca deste porto tão (in)seguro e

(in)constante como as marés que banham o imaginário amazônico.

Os caminhos percorridos no desenho do mapa de saberes da Ilha Grande fizeram com

que fosse possível trilhar locais nunca antes visitados, ir mais longe do que as iniciais

indagações previam ao adentrar no campo da pesquisa no âmbito do mestrado.

O objeto de estudo, as questões norteadoras e os objetivos que se completavam foram

sendo elucidados no momento em que deixamos os ouvidos e os demais sentidos porosos ao

universo percebido e vivido no campo de pesquisa. O aporte teórico é um fio de linha

dourado, diz respeito a homens e mulheres que já fizeram o caminho, percorreram longos e

distintos lugares e trazem no cerne de seus estudos olhares e conceitos necessários para o

entendimento da pesquisa ora apresentada, mas encontrar na voz do intérprete a interlocução

dos saberes, o emergir das memórias abafadas, silenciadas, foi o movimento central para as

problematizações e conclusões a que se chegou.

Enquanto não reaprendermos (ou será que um dia aprendemos?) a educar pelo

sensível, através da criação, da percepção e da sensibilidade, em contraposição ao pensamento

cartesiano, binário, homogeneizador, com verdades únicas e paradigmas imutáveis, não

seremos capazes de desconstruir os discursos opressivos, que nos aprisionam sob a égide de

conhecimento científico legitimado!

Nas linhas aqui costuradas, reside um desejo de compreender e assim fazer entrar, na

circularidade das discussões em educação e cultura, a presença da voz, da memória, do

imaginário, dos saberes mediadores de relações entre povos e meio ambiente, deixar

registrado para uso da comunidade da Ilha Grande, inclusive a escola, como um dos pontos

conectáveis do rizoma, os saberes partilhados pela voz de Seu Simeão Monteiro, de 75 anos, a

partir de sua história de vida.

A bússola indica o território pretendido, mas não aquele já estabelecido pelos seus

supostos descobridores. Não aquele que a ciência não deu conta de explicar. Não o Norte

pretendido, mas o Norte esquecido, deixado de lado, afogado, silenciado. E o sonho se

amplia, faz a releitura bruta da bússola para o desenho de um novo mapa traçado. Sonho fazer

um mapa que, de tempos em tempos, possa ser ouvido, um mapa falante, com voz de histórias

estremecendo as embarcações, os rios e as matas.

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Talvez o mapa aqui sonhado seja pouco compreendido, mas há de ser um mapa

traçado pela voz dos silenciados com suas histórias recuperadas pela agulha de marear. Eis o

sonho de mais um cartógrafo.

A pesquisadora, nestas últimas linhas, ouve a voz de tantos contadores de histórias que

generosamente compartilharam seu hálito vital, seu sopro encarnado no verbo amar, amar e

amar, porque também ouviu a voz da avó lhe falar do que aprendera com as histórias. E assim

há de ser, de geração em geração.

Fechar os olhos e sentir a brisa fria, apesar do sol do verão amazônico, é saber que o

vento forte, quando toca o rosto, é sinal de chamamento para a tomada de consciência da

essência formada pelos elementos vitais. A água, nossa casa primeira, refúgio, abrigo,

proteção... é que hoje conduz esta pesquisadora em seu útero-rio trazendo serenidade no seu

balançar, a sensação é de fazer parte do todo! E então ela se inquieta: como pode uma

amazônida viver tanto tempo sem esta troca, que é a própria troca da vida? E ela sente o hálito

de Deus neste cheiro de rio, em que o céu e rio se encontram formando uma unidade tão

múltipla...

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REFERÊNCIAS

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Anexos

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ANEXO 1 – ESPAÇO NÁUTICO (AO LADO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO

PARÁ), ATUAL PORTO UTILIZADO PELOS PROFESSORES DA SEMEC.

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ANEXO 2 – TRAVESSIA PARA BELÉM, VENDA DO FRUTO DO AÇAIZEIRO

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ANEXO 3 – OS CAMINHOS DO RIO QUE LEVAM A ILHA GRANDE

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ANEXO 4 -A ESCOLA E SUAS CERCANIAS

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ANEXO 5 – RESIDÊNCIA DE SEU SIMEÃO

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ANEXO 6 – SEU SIMEÃO EM PERFORMANCE

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ANEXO 7 – PONTOS DE BORDADO

PONTO 1 – CASEADO

PONTO 2 – HASTE

PONTO 3 - VANDYKE

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PONTO 4 – CHATO

PONTO 5 – ROCOCÓ

PONTO 6 – TEIA DE ARANHA

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PONTO 7 - CADEIA

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Universidade do Estado do Pará

Centro de Ciencias Sociais e Educação

Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia

Travessa Djama Dutra s/n - Telégrafo

66113-200 Belém- Pa