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b. /UFC A R T I G O ANCHIETA E OS íNDIOS EM IPEROIG: REFLEXÃO SOBRE SUAS RELAÇÕES A PARTIR DA NOÇÃO DE CULTURA HISTÓRICA1 INTRODUÇÃO MARIA REGINA CELESTINO DE ALMEIDA* religiosa, política e, pode- se dizer, etnográfica. RESUMO A A noção de cultura histórica entendida em termos de Além das visões precon- aproximação da His- processo e cada vez mais presente nos trabalhos de ceituosas e etnocêntricas historiadores e antropólogos permite a reinterpretação tória e da Antropo- de textos de missionários e uma nova compreensão típicas do universalismo logia, cada vez mais sobre as relações de alteridade. A carta escrita pelo cristão do século XVI, Padre José de Anchieta sobre os acontecimentos em intensa nos últimos anos, seus textos revelam Iperoig é rica em contradições. expressando a forte tem contribuído para a influência que a vida cotidiana na região e o contato acurado senso de observa- direto com as populações indígenas tiveram sobre seus ampliação de alguns con- comportamentos. atitudes e concepções. Nessa pers- ção e considerável sensi- ceitos largamente utilizados pectiva. as relações de contato podem ser percebidas bilidade e abertura ao em toda sua complexidade e os índios podem deixar por essas disciplinas, o que de ser vistos como vítimas passivas de um processo conhecimento do outro, o permite repensar as rela- de imposição cultural. As entrelinhas dos textos que permite, acredito, m isionários revelam que se os padres influenciaram e ções estabelecidas entre dominaram, sobretudo no campo ideológico, foram tam- consider â-l O como etnó- índios e missionários no bém influenciados e, muitas vezes, recuaram e trans- grafo "avant Ia lettre". Tal formaram seus pontos de vista em função do que Brasil colonial. A partir de viviam e percebiam. característica, sem dúvida, novas concepções teóricas, contribuiu para intensifi- historiadores e antropólo- Mestre em História pela Universidade Federal car a influência que a vida gos analisam situações de Fluminense, Professora Assistente do Departamento cotidiana na região e o de História da Universidade Federal Fluminense, contato, repensando e Doutoranda do Departamento de Ciências Sociais contato estreito com os ín- problematizando alguns da Universidade Estadual de Campinas. di os tiveram sobre suas conceitos básicos referentes a essa ternática: formas de pensar, sentir e agir na colônia. a noção de cultura histórica cada vez mais A noção de cultura histórica, dinâmica e fle- presente em estudos antropológicos e históri- xível, permite perceber nas inúmeras con- cos conduz à ampliação dos conceitos de tradições presentes nos textos e discursos aculturação e resistência. Fontes primárias, tais dos inacianos a imensa complexidade das como relatos dos cronistas e jesuítas, têm sido relações de contato. essa perspectiva, os reinterpretadas a partir dessas novas posturas índios tornam-se sujeitos ativos na coloni- teóricas, revelando, em suas entrelinhas, toda zação, respondendo a ela de formas varia- a riqueza e complexidade das relações de das, buscando também, nas relações com alteridade. os europeus, vantagens e benefícios de acor- O objetivo deste trabalho é refletir do com suas culturas e organizações soei- obre a obra do Padre José de Anchieta, ais, que igualmente se alteram no decorrer missionário jesuíta, cujo indiscutível talento do processo histórico. É o que se pode :10 ofício das letras, nos legou farto material depreender da vasta e diversificada obra de revelador não apenas da situação colonial Anchieta, que inclui a Gramática da Língua o século XVI, mas de sua consciência Tupi, várias informações sobre a terra, seus ALMEIDA, MARIA REGINA CELESTINO DE. ANCHIETA E OS íNDIOS EM IPEROIG: REFLExllES SOBRE SUAS ... P. 109 A 119 109

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b. /UFC

A R T I G O

ANCHIETA E OS íNDIOS EM IPEROIG: REFLEXÃO SOBRE SUASRELAÇÕES A PARTIR DA NOÇÃO DE CULTURA HISTÓRICA1

INTRODUÇÃO MARIA REGINA CELESTINO DE ALMEIDA* religiosa, política e, pode-se dizer, etnográfica.

RESUMO

A A noção de cultura histórica entendida em termos de Além das visões precon-aproximação da His- processo e cada vez mais presente nos trabalhos de ceituosas e etnocêntricas

historiadores e antropólogos permite a reinterpretaçãotória e da Antropo- de textos de missionários e uma nova compreensão típicas do universalismologia, cada vez mais sobre as relações de alteridade. A carta escrita pelo cristão do século XVI,

Padre José de Anchieta sobre os acontecimentos emintensa nos últimos anos, seus textos revelamIperoig é rica em contradições. expressando a fortetem contribuído para a influência que a vida cotidiana na região e o contato acurado senso de observa-

direto com as populações indígenas tiveram sobre seusampliação de alguns con- comportamentos. atitudes e concepções. Nessa pers- ção e considerável sensi-ceitos largamente utilizados pectiva. as relações de contato podem ser percebidas bilidade e abertura ao

em toda sua complexidade e os índios podem deixarpor essas disciplinas, o que de ser vistos como vítimas passivas de um processo conhecimento do outro, opermite repensar as rela- de imposição cultural. As entrelinhas dos textos que permite, acredito,

misionários revelam que se os padres influenciaram eções estabelecidas entre dominaram, sobretudo no campo ideológico, foram tam- consider â-l O como etnó-índios e missionários no bém influenciados e, muitas vezes, recuaram e trans- grafo "avant Ia lettre". Tal

formaram seus pontos de vista em função do queBrasil colonial. A partir de viviam e percebiam. característica, sem dúvida,novas concepções teóricas, contribuiu para intensifi-historiadores e antropólo- Mestre em História pela Universidade Federal car a influência que a vidagos analisam situações de Fluminense, Professora Assistente do Departamento cotidiana na região e o

de História da Universidade Federal Fluminense,contato, repensando e Doutoranda do Departamento de Ciências Sociais contato estreito com os ín-problematizando alguns da Universidade Estadual de Campinas. di os tiveram sobre suasconceitos básicos referentes a essa ternática: formas de pensar, sentir e agir na colônia.a noção de cultura histórica cada vez mais A noção de cultura histórica, dinâmica e fle-presente em estudos antropológicos e históri- xível, permite perceber nas inúmeras con-cos conduz à ampliação dos conceitos de tradições presentes nos textos e discursosaculturação e resistência. Fontes primárias, tais dos inacianos a imensa complexidade dascomo relatos dos cronistas e jesuítas, têm sido relações de contato. essa perspectiva, osreinterpretadas a partir dessas novas posturas índios tornam-se sujeitos ativos na coloni-teóricas, revelando, em suas entrelinhas, toda zação, respondendo a ela de formas varia-a riqueza e complexidade das relações de das, buscando também, nas relações comalteridade. os europeus, vantagens e benefícios de acor-

O objetivo deste trabalho é refletir do com suas culturas e organizações soei-obre a obra do Padre José de Anchieta, ais, que igualmente se alteram no decorrer

missionário jesuíta, cujo indiscutível talento do processo histórico. É o que se pode:10 ofício das letras, nos legou farto material depreender da vasta e diversificada obra derevelador não apenas da situação colonial Anchieta, que inclui a Gramática da Línguao século XVI, mas de sua consciência Tupi, várias informações sobre a terra, seus

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habitantes e o desenvolvimento da coloni-zação, sermões, cartas, poemas e os famo-sos autos. este trabalho, procuro refletirde forma mais específica sobre a carta querelata o famoso episódio da pacificação emIperoig (Anchieta, 1988: pp. 206-254), ex-cepcionalmente significativa para esta dis-cussão, por tratar-se de situação inusitada,na qual as relações se dão no ambiente dospróprios índios, o que sem dúvida, contribuipara intensificar sua influência sobre os pa-dres; influência essa que se manifesta nasmuitas contradições e ambigüidades do texto.

CULTURA HISTÓRICA: NOVAS ABORDAGENS NA ANÁLISEDE SITUAÇÕES DE CONTATO

o surgimento de uma área comum depesquisa entre a História e a Antropologia, ba-sicamente no campo da história cultural, tor-nou-se possível face às novas perspectivasteóricas de ambas, que lhes permitiram ultra-passar antigas concepções redutivistas (comoo positivismo e o estruturalismo), que as man-tinham em posições tão distantes e fechadas".

É sobretudo na área da cultura, onde afronteira entre História e Antropologia torna-se cada vez mais tênue, que o debate entreos especialistas tem se aprofundado nos últi-mos anos. Trata-se de um termo extremamentecomplexo e muitíssimo controvertido. Se osantropológos estão de acordo de que é o con-ceito mais básico no campo da Antropologia,estão longe de um consenso quanto à suadefinição (Mintz, 1982: p. 501; Mckay,1981'1982). o âmbito deste trabalho serãodiscutidos apenas alguns problemas relativosà historicidade da cultura, fundamentais parase entender as relações de alteridade no Bra-sil colonial e para repensar os conceitos deaculturação e resistência.

Pensar a cultura em termos históricos eantropológicos implica refletir sobre alguns

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dilemas básicos nas ciências sociais; implica,na verdade, tentar conciliar o que parece in-conciliável, sobretudo, se considerarmos aforça do estruturalismo na Antropologia. Comoestabelecer relações entre estruturas sociais(e culturais) e processos históricos; ações au-tõnomas dos homens na História e determina-ções estruturais; estruturas e evidênciasempíricas? (Mckay, 1981'1982: p.193). Se emnossos dias, já não há mais forte oposição porparte dos antropólogos quanto à aceitação deuma perspectiva histórica para a análise dacultura, outras questões se colocam, princi-palmente sobre as relações entre cultura esociedade, que envolvem uma discussão so-bre mudanças culturais, processos históricose estruturas sociais.

Nos anos 50 e 60, os estudos antropoló-gicos no Brasil sobre relações interétnicas esituações de contato avançaram teoricamenteem relação às escolas inglesa e norte-ameri-cana, principalmente, por incluir em suas aná-lises preocupações de ordem política,econômica, sociológica e histórica. Valoriza-ram a interação entre cultura e sociedade, ocontexto histórico e os aspectos sociológicose econômicos presentes e ativos nas relaçõesculturais (Oliveira, 1963). Cabe, no entanto,refletir sobre algumas limitações presentes emsuas abordagens, que partem da própria no-ção de historicidade e dinamismo da cultura.Apesar de terem valorizado o contexto histó-rico na análise das relações culturais e suasmudanças em situações de contato, estes es-tudos percebiam tais situações mais como es-tado do que como processo. Isto teveconseqüências sérias nas interpretações so-bre relações culturais estabeleci das entre ín-dios e europeus, sobretudo, no que diz respeitoa questões como aculturação e resistência.

Partindo dessa perspectiva, as transfor-mações culturais "sofridas" pelas sociedadestribais eram vistas em termos de perdas cultu-rais, numa escala neo-evolutiva, que no pen-

samento de Darcy Ribeiro (982), por exem-plo, atravesssava fases sucessivas, que iam doíndio isolado (culturalmente "puro") ao total-mente integrado e, portanto, culturalmentedescaracterizado. Os grupos indígenas que so-friam a "aculturação", entendida como esvazi-amento progressivo das culturas originais, eramvistos como pobres vítimas indefesas, num sis-tema que não lhes permitia nenhuma margemde manobra. A resistência, em oposição àaculturação, era entendida como ato de extre-ma bravura, de rebelião contra a dominaçãocolonial que, no entanto, uma vez reprimida,reservava aos seus heróis o triste papel devencidos, cuja única opção era aceitar passiva-mente a nova ordem que se impunha sobreeles. Nesta perspectiva, embora os índios fos-sem vistos como sujeitos, que se rebelavamcontra a situação colonial, continuavam víti-mas. Vítimas não tão passivas, porque eramagentes, mas agentes a partir da negação, istoé, capazes somente de reagir a um estímuloexterno. Dessa forma, as relações entre índiose europeus continuavam sendo vistas a partirdo ângulo ocidental. Mantinha-se o pressupos-to da limitação das culturas indígenas, no sen-tido de uma visão restrita de mundo, com fortesconstrangimentos culturais (parentesco, tradi-ções, etc ...), que só lhes permitia agir de acor-do com sua lógica própria, impedindo qualquertipo de ação que não fosse a reação.

Em nossos dias, tais concepções têm sidocritica das e ultrapassadas, sobretudo, a partirdas novas posturas teóricas que enfatizam odinamismo, a variabilidade e a historicidadeda cultura. Cabe ressaltar a contribuição deSidney Mintz (982), antropólogo que desta-cou a importância de se perceber a existên-cia de mais de uma cultura por grupo socialou por sociedade e valorizou as mudançasculturais decorrentes também das escolhashumanas, já que os padrões sociais não sãomalhas de ferro, permitindo, pois, aos homense mulheres, opções e alternativas, que vari-

am conforme as condições e abertura dos di-ferentes grupos sociais. Salientaram, ainda, ofato de que os indivíduos se comportam con-forme seus lugares sociais e que, portanto,um mesmo comportamento pode ter signifi-cados e conseqüuências diferentes, segundoa posição social de seus agentes. A culturadeve ser vista, então, em sua relação dinâmi-ca com o social, mas sempre em termos deprocesso. Em sua concepção de cultura, Mintzaproxima-se de Thompson (987), entenden-do-a como algo que se forma no tempo, juntocom as classes, através da experiência (Mintz,1982). Thompson 0987:p.9) valorizou o cul-tural, associando-o ao conceito de classe econsciência de classe que, segundo ele, seformam conjuntamente no processo histórico,num fazer-se contínuo, num "...processo ati-vo que se deve tanto à ação humana comoaos condicionamentos"(Thompson, 1987: p.9). Cultura é, pois, um produto histórico edinâmico, que deve ser apreendido no pro-cesso histórico, no qual homens e mulheresvivem suas experiências empiricamenteobserváveis (Thompson, 1987).

A idéia de cultura como processo é fun-damental e foi, sem dúvida, uma grande con-tribuição da história para a antropologia, namedida em que nos permite perceber a mu-dança cultural, não apenas como perda ouesvaziamento de uma cultura dita autêntica,mas em termos do seu dinamismo, mesmoem situações de contato, quando as transfor-mações se fazem com muita intensidade. Nestesentido o conceito de aculturação se alteracompletamente e, ao invés de se opor à re-sistência, passa a caminhar junto com ela, cons-tituindo ambas, segundo Stern (s.d.), lados deuma mesma moeda.

-essa perspectiva, os índios do Brasilcolonial, em situação de contato, deixam deser vistos apenas como vítimas passivas deum processo de imposições e mudanças cul-turais. A obra dos jesuítas interpretada a par-

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tir dessa noção de cultura histórica, dinâmicae flexível permite perceber situações diver-sas das que têm sido apresentadas pelahistoriografia tradicional: não foram apenas asculturas indígenas que se transformaram; osjesuítas também, fortemente influenciados porsuas vivências, buscaram adaptar suas orto-doxias à realidade cultural dos trópicos (Ne-ves: 1978; Vainfas: 1989; Haubert:1990). Alémdisso, diversas situações foram possíveis e sedesenvolveram a partir dos interesses dos pró-prios índios, como é o caso da famosa "con-versão de Iperoig", tão bem compreendida eexplicitada pelo próprio Anchieta, apesar detão deturpada na historiografia tradicional.

esse sentido, cabe ressaltar a grandecontribuição de Viveiros de Castro (992),que enfatizou o caráter fundamental das re-lações de alteridade na cultura Tupinambá,na qual "...0 outro não era apenas pensável,mas indispensável". No Brasil colonial, osestrangeiros foram inseridos nas relaçõesintertribais já existentes; os índios busca-vam estabelecer com eles relações que pu-dessem completar ou ultrapassar sua própriaidentidade, daí a a receptividade e aberturaao contato, que tanto surpreendeu os euro-peus e possibilitou a colonização. OsTupinambá não pretendiam dominar nemnegar o outro, mas vívenciâ-Io: aliados ouinimigos, os europeus, vistos em suaalteridade, tinham um papel a desempenharna sociedade Tupinambá. Analisadas por esteângulo, as situações de contato no Brasilcolonial adquirem um outro sentido, sobre-tudo, quanto ao papel desempenhado pe-los índios e suas relações com os missionários.Há 400 anos, Anchieta percebeu muitas des-sas características da tradição Tupinambá eprocurou adaptá-Ias e adaptar-se em pro-veito de seus propósitos. essa perspecti-va, é possível perceber que as aldeiasmissionárias e as relações nelas estabelecidasnão se desenvolviam apenas a partir dos

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interesses e motivações dos padres. Ao co.•-trário disso, pode-se perceber nos reIa osdos jesuítas um processo de construção co -tínuo de seus interesses e motivações, quepodiam alterar-se na experiência do conta-to e interação com os índios em situaçãocolonial. É o que se pode depreender daobra de José de Anchieta.

ANCHIET A - CONSCIÊNCIA RELIGIOSA, POlÍTIcA E

ETNOLÓGICA NA PRÁTICA DA CATEQUESE

Se Anchieta chegou ao Brasil imbuídode suas verdades, certo de que deveria civili-zar e catequizar os índios, como rezava acartilha dos jesuítas, sua vivência cotidiana naregião e o contato direto com as populaçõesindígenas tiveram forte influência sobre ele,levando-o a atitudes e comportamentos con-traditórios e, por vezes, pouco coerentes coma ortodoxia católica. Das entrelinhas de seutexto é possível inferir considerável tolerân-cia com práticas indígenas consideradas abo-mináveis pelos "civilizados" e algumasobservações de cunho etnográfíco demons-tram razoável compreensão da lógica de fun-cionamento da sociedade tupinambá. Asresistências cotidianas e as apropriações cul-turais (por parte dos índios e dele próprio)foram percebidas e registradas em inúmerosepisódios tensos e amistosos, nos quais des-creve as exigências e recuos não apenas dosíndios, mas também dos missonários.

A obra de Anchieta revela o perfil deum homem profundamente religioso, muitopolítico e portador de notável sensibilidadeetnográfica, características essas, que secomplementam, se alternam e, por vezes,parecem se contrapôr nas inúmeras contradi-ções presentes em seus escritos. Uma análisesimplista dessas contradições poderia sugerira alternância de comportamentos diversosconforme as diferentes situações vividas pelo

autor. Tal visao implicaria, no entanto, umextremo redutivismo das complexas relaçõesculturais e humanas, que emergem dos textosde Anchieta com tanta riqueza e vivacidade.É preciso refletir sobre a obra prática e escri-ta desse missionário de forma globalizante,considerando o autor em toda sua complexi-dade de ser humano, social e histórico; jesuí-ta do século XVI, no qual o teórico e oempírico interagiam constantemente, criandoe recriando comportamentos, atitudes e con-cepções. Não é possível tentar dicotomizar apersonalidade de Anchieta para buscarexplicar o que parece inexplicáve1, isto é,determinados comportamentos e atitudes apa-rentemente não condizentes com sua consci-ência religiosa, política e etnográfica. Alémdisso, o mais nobre ideal não retira de umindivíduo suas características humanas e opróprio Anchieta revela isso no decorrer desua obra, ao refletir inúmeras vezes sobre oslimites e fraquezas de sua condição de ho-mem: o amor e o ódio; a coragem e o medo;as certezas e as dúvidas articulam-se e inter-calam-se nas diversas situações vividas e nar-radas por ele.

Se na Europa do Antigo Regime, sobre-tudo nos reinos ibéricos, o temporal e o espi-ritual se associavam tão fortemente, comoestabelecer dualismos e análises estanquespara interpretar as relações entre missionári-os e índios? Ao profundo sentimento de reli-giosidade e extrema dedicação à catequesedos gentios, Anchieta, tal qual Nóbrega, porquem foi fortemente influenciado, aliava sem-pre forte e declarada preocupação de ordempolítica. Cabe lembrar o momento especialvivido pelo autor: período de conquista e con-solidação do poder lusitano na região e, por-tanto, de constantes e intensos conflitos eguerras contra estrangeiros e ameríndios. Osucesso da conversão e a própria sobrevivên-cia da Companhia no Brasil estavam forte-mente associados ao sucesso da colonização.

Nóbrega e Anchieta serviam a Deus e ao Reide Portugal; sua missão era essencialmenteespiritual, mas dependia de bases políticas eeconômicas, que ambos se empenharam for-temente em construir.

A redução dos índios e o estabeleci-mento das missões era a grande preocupaçãodo século XVI e foi tema privilegiado nasmuitas "Informações" que, como Provincial doBrasil, Anchieta enviava ao Reino. Tal qualNóbrega, acreditava que as aldeias deviamser amplas, reunindo índios de diversos gru-pos, cujo tempo seria totalmente preenchidocom trabalho e orações. Não tinha dúvidasquanto ao papel dos índios na colonização:deveriam ser súditos cristãos, trabalhando paraa Coroa, para os colonos e para a Companhiavoluntariamente, mediante pagamento e sis-tema de rodízio. Nas "Informações" (escritasmais para o final do século) há uma nítidapreocupação de Anchieta em defender a causadas missões religiosas, que aparecem comomais essencial para a Coroa do que para ospróprios índios, apresentados como elemen-tos básicos no combate aos negros, estrangei-ros e índios hostis. A guerra era uma constantenesse período e entendida como justa e ne-cessária. Ao lado de Nóbrega, Anchieta exal-tou Mem de Sá, o maior exterminador de índiosda época. Animava-se com as conversões emmassa resultantes da grande mortalidade cau-sada pelas guerras empreendidas pelo gover-nador, ao qual dedicou um poema. A violênciaa serviço da Coroa e da Igreja Católica erajustificável, bem como a escravidão negra etambém a indígena, sob condições considera-das justas (Vainfas: 1986).

Além de político, Anchieta era portadorde uma profunda religiosidade. Se no Diálo-go sobre a Conversão do Gentio, Nóbrega0988: pp.229-245) explicitou as dúvidas quepairavam no interior da Companhia sobre aspossibilidades da conversão do gentio, tal pre-ocupação parece ausente nos textos de

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Anchieta, para o qual, os índios sempre fo-ram passíveis de conversão. Suas atitudes"bestiais e carniceiras" eram atribuídas ao de-mônio que, no entanto, não era, absolutamen-te, identificado com os índios. Existia e atuavafora deles, simples vítimas de suas artima-nhas: até os inimigos e os convertidos queretornavam aos antigos costumes, eram vistoscomo desencaminhados e, portanto, sujeitosà recuperação.

Sem abandonar os desígnios e os prin-cípios da Ordem que abraçava, Anchieta es-forçou-se por conhecer e viver comintensidade a realidade da colônia. A ideolo-gia cristã não o impediu de se aproximar dosíndios e de sua cultura, procurando entendê-Ias. Percebeu regras sociais, embora tenhaafirmado inúmeras vezes que elas não existi-am: as práticas matrimoniais, por exemploforam claramente ídentificadas por ele que,junto com óbrega, procurou consentimentoda Igreja para a realização de casamentos en-tre tios e sobrinhas (Anchieta, 1988: pp.456-464). Não se restringiu a aprender a língua,como muitos fizeram, mas escreveu uma gra-mática, esforço que, sem dúvida, evidenciaatitude de dedicação e valorização da línguae da cultura do outro. Escreveu orações e au-tos em tupi e em português, inovando no te-atro moderno, ao ousar introduzir o profanoem temas sagrados. Percebendo a importân-cia dos diálogos, ensinou a doutrina a partirdeles, introduzindo novos personagens paradivulgar mensagens que julgava essenciais.Nos autos, misturava elementos da cultura in-dígena e da tradição católica, demonstrandosua certeza nas possibilidades da catequese:a aldeia missionária era para ele locus da sal-vação (Baumann, 1993). Foi acusado de per-verter rituais católicos e de excesso detolerância ao permitir adaptações por demaisprofanas ao culto sagrado.

A mistura do sagrado com o profano tí-pica da época foi excepcionalmente forte em

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Anchieta, refletindo a interação dos três as-pectos de sua personalidade anteriormentereferidos: a religiosidade, o senso político e oolhar etnográfico, que, longe de se contrapo-rem, influenciavam concomitantemente suaação e pensamento, conduzindo-o por cami-nhos tortuosos e repletos de ambigüidades.Foi sobretudo em Iperoig, na convivência comos índios, em seu próprio ambiente, que ascontradições de Anchieta mais fortementeafloraram.

ANCHIET A EM IPEROIG

A carta de Anchieta sobre o período emque esteve entre os Tamoio de Iperoig, como objetivo de convertê-los e torná-los aliados,é rica em ambigüidades, que permitem refle-tir sobre a complexidade das relações cultu-rais e humanas. A peculiaridade da situaçãovivida pelo autor contribuiu para intensificarsuas contradições: encontrava-se numa aldeiade origem, entre índios inimigos, na condiçãode visitante, que vinha negociar a paz, de-vendo portanto, em princípio, submeter-se àsregras de seus anfitriões. Se em aldeias reli-giosas, atitudes e comportamentos dos missi-onários eram influenciados pelo contatoestreito e direto com os índios, o que nãodizer de uma situação como essa, na qual opadre além de não ter nenhuma autoridadeoficial sobre eles, estava sujeito a suas possí-veis e prováveis hostilidades? A carta foi es-crita do Colégio de São Vicente ao Geral DiogoLainez mais de um ano depois do início dosacontecimentos narrados- e trata provavelmen-te do episódio mais difícil da vida rnissionâriade Anchieta, no qual emergem situações inu-sitadas, que apontam para a influência da vidacotidiana sobre os dogmatismos teóricos.

Trata-se de documento bastante conhe-cido e amplamente explorado pela historio-grafía, sobretudo para exaltar as virtudes do

"Apóstolo do Brasil", apresentado, em geral,como o grande herói do episódio. Helio A.Viotti 0984: 15), por exemplo, não consideraas ambigüidades claramente expressas pelopróprio autor e ressalta sua profunda religiosi-dade, defesa e dedicação extrema aos índios efé inabalável, que o teriam sustentado "...natemerária missão pacificadora entre os tamoiosda fronteira (região de Ubatuba) a fim de atrairesses truculentos selvagens para o cristianis-mo e para a aliança com os colonizadores por-tugueses, abandonando a aliança com osfranceses invasores". O Padre Anchieta, queviveu em Iperoig, expressou em sua carta muitomais do que isso: alternava sentimentos dedescrença e desconfiança em relação aos índi-os com outros de reconhecimento e gratidãopor sua lealdade e dedicação aos cristãos; omedo e a tentação da carne desafiavam suadeterminação religiosa e política; e até a antro-pofagia, chegou a ser vista com consideráveltolerância em algumas ocasiões.

Anchieta 0988: 207) iniciou a carta, re-ferindo-se às dificuldades com o trabalho daconversão e, logo a seguir, discorreu sobre ossucessivos ataques dos Tamoio do Rio de Ja-neiro, considerando que a Justiça Divina de-via estar ao lado deles, dadas as vitóriasalcança das sobre os portugueses e os muitosmales que estes lhes haviam causado. Éinstigante que Anchieta tenha buscado umajustificativa religiosa para a vitória de índiosselvagens comedores de cristãos e aliados doshereges franceses, portanto, duplamente ini-migos da Igreja e da Coroa. Este parágrafo,no entanto, antecede outro, no qual é apre-sentada e reiterada a intenção de Nóbregaem negociar a paz com esses índios e a justi-ficativa poderia, então, se colocar como for-ma de corroborar essa idéia. Não deixa de sersurpreendente, porém, a alusão à Divindadecomo responsável pelos sucessos daquelesque" ... levando, continuamente os escravos,mulheres e filhos dos Cristãos, matando-os e

comendo-os, e isto sem cessar ..." (Anchieta,1988: 207), evidentemente, causando gran-des prejuízos ao estabelecimento dos colonose das aldeias religiosas em São Vicente eadjacências. Estaria o Anchieta político e reli-gioso dando lugar ao etnógrafo capaz de en-tender que matar e comer homens podia serculturalmente compatível com a organizaçãosocial dos Tupinambá, podendo, portanto,apresentar-se como resposta adequada aosmaus-tratos que os índios vinham sofrendo?Se pensarmos que Anchieta escreveu um anodepois do episódio, quando esses índios, comos quais convivera por oito meses, já haviamse tornado aliados, pode-se admitir que, semabdicar de seus princípios básicos, ele tenhase permitido abertura e sensibilidade sufici-ente para justificar e, talvez, quase aprovarum procedimento hostil que, na verdade, ape-nas antecedera o momento da conversão. Sejacomo for, cabe problematizar a questão res-saltando que, ao contrário de Viotti, Anchietanão apresentou os índios como os "truculentosselvagens" que iam ser pacificados por doissantos missionários a serviço da colonização.A descrição do primeiro contato com os inimi-gos foi feita, também, com certa imparcialidadee compreensão quanto ao comportamento re-servado dos índios, cujo temor em relação aeles e exigência de troca de reféns foramexplicados por Anchieta como conseqüênciade atitudes negativas dos portugueses em si-tuações anteriores.

O sexto parágrafo demonstra conside-rável conhecimento do autor sobre os costu-mes indígenas, revelando igualmente suaestratégia para utilizá-lo em proveito da cau-sa política e religiosa a que se propunha.Anchieta entrou na aldeia,

... falando em voz alta por suas casas como éseu costume, dizendo-lbes que se alegrassemcom a nossa vinda e amizade: que quería-mos ficar entre eles e ensinar-lbes as causas

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de Deus, para que eles lhes désse abundanciade mantimentos, saúde, e vitória de seus ini-migos e outras cousas semelhantes, sem su-bir mais alto, porque esta geração sem êsteescalão não querem subir ao céu, e a pri nci-pai razão que os moveu a quererem a paznão foi o medo que tivessem aos cristãos (. ..)mas o desejo grande que têm de guerrear comseus inimigos Tupis, que até agora foramnossos amigos, epouco ba se levantaram con-tra nos outros ... dos quais, porque sempreforam vencidos e maltratados com favor dosPortugueses, queriam eles agora com o mes-mo favor ser vencedores e vingar-se bem de-les, matando e comendo á sua vontade ...(Anchieta, 1988: p.209)

A apropriação cultural parece clara econsciente: Anchieta não se limitou a produ-zir um discurso político, prometendo bensmateriais para atraí-I os à sua causa, mas o fezsegundo o próprio ritual do grupo, à maneirapoderíamos dizer de um caraíba. Observa-setambém um recuo tático quanto às recrimina-ções sobre a prática do ritual da vingança,pois Anchieta sabia perfeitamente que seuinteresse na aliança era motivado pela vonta-de de vingar-se dos inimigos, matando-os ecomendo-os. Isso, no entanto, não o impediude prosseguir no seu intento, dando-se porsatisfeito por conseguir incluir como condi-ção para a paz, a integridade física dos seusaliados, ficando, de certa forma, implícito queos demais seriam sacrificados. Isso não signi-fica dizer que o Padre não se horrorizassecom essa prática, pois logo a seguir, referin-do-se à partida dos demais cristãos (à exce-ção dele e de óbrega, que ali permaneceriamcomo reféns), destacou a temeridade de ficarcom "... esta brava e carniceira nação, cujasqueixadas ainda estão cheias de carne dosPortugueses ..." (Anchieta, 1988: p.210)

Dando prosseguimento à narrativa,Anchieta seguiu alternando julgamentos

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etnocêntricos e preconceituosos com obser-vações acuradas e muitas vezes de aprova-ção quanto às atitudes dos índios. Aoinstalarem-se na casa de um Principal, que jáhavia sido prisioneiro dos portugueses,Anchieta ressaltou que tendo este toda razãopara odiá-Ios, "... determinou de olvidar-sedele e convertê-Io todo em amor, mostrando-se como um dos principais autores destapaz ..."(Anchieta, 1988: 210) As palavras deuma índia agradecida aos padres, por justiçasque anteriormente lhe haviam feito, contribu-íram, segundo ele, para essa atitude do Prin-cipal. Afirmações como essas demonstramadmiração e simpatia do jesuíta em relação aatitudes dos índios, contrastando com a opi-nião muitas vezes manifesta de desconfiançatotal em relação a eles, por ser "...esta gentede maneira que cada um faz lei para si, e nãodá nada pelos pactos e contratos que fazemcom os outros" (Anchieta, 1988: 210).

A importância da antropofagia nas rela-ções de aliança e conflito parece ter sido vis-lumbrada por Anchieta, quase percebendo oque Florestan Fernandes (970) e Viveirosde Castro (992) explicitariam quatro séculosdepois: a função social da guerra e do ritualde vingança na sociedade Tupinambá. Con-denou, evidentemente, essa prática selvagem,mas essa condenação foi permeada de recu-os e concessões intensificados, sem dúvida,pela situação peculiar em que o Padre se en-contrava. Esse foi um dos costumes mais ar-raigados e difíceis de serem extirpados,conforme exemplos em diferentes regiões daAmérica indígena, mas especialmente aí, nascondições vividas por Anchieta, a situação setornava muito mais delicada. Em várias ocasi-ões, Anchieta fez vista grossa a esse bárbarocostume e parece ter tido consciência das ra-zões que o levavam a tais níveis de tolerân-cia. Ainda no início da carta, ao tratar danecessidade de dissuadi-Ios desse péssimohábito, afirmou que mesmo em Piratininga

...eles diziam que ainda haviam de comer deseus contrarios, até que se vingassem bem de-les, e que devagar cairiam em nossoscostumes,e na verdade, porque costume em que eles têmposta sua maior felicidade não se lbes há dearrancar tão presto... (Anchieta, 1988: 211)

o medo intenso era freqüente no insó-lito cotidiano de Nóbrega e Anchieta emIperoig. Tendo permanecido por muitos me-ses como reféns de índios com os quais bus-cavam aliança, os padres sentiram-se,inúmeras vezes, seriamente ameaçados demorte, sobretudo, quando o grupo que os abri-gava e com os quais já desenvolviam umarelação de amizade, recebia visitantes clara-mente hostis e, às vezes, com claro propósitode matá-Ias. De acordo com a narrativa, Prin-cipais hostis e aliados disputavam entre si oataque e a proteção aos padres (Anchieta,1988: 213-217). Apesar do medo e das ame-aças constantes, que levaram Anchieta a afir-mar que" ... cada dia bebiamos tragos de morte..."(Anchieta, 1988: 216), os padres, segundoo autor, permaneciam fiéis ao seu propósitode "praticar com eles a paz", garantindo comocondição mínima, a integridade física de seusaliados. Referindo-se a um Principal que acei-tara a paz, mas insistia em comer a carne dosaliados dos portugueses, o texto de Anchietaexpressa sua coragem e fidelidade aos prin-cípios cristãos, mas ao mesmo tempo revelarevolta e um certo sentimento de vingançameio à moda dos índios, ao relatar que ospadres não só recusaram a paz naquelas con-dições, como ainda, se Deus o permitisse,lhe quebrariam a cabeça "... mui de gradopor causa tão justa, porque não só nos pedi-am carne humana para comer, mas ainda aosinocentes que por nos defender se haviamfeito inimigos dos seus e posto suas vidaspelas nossas" (Anchieta, 1988: 218).

Situação especialmente constrangedorapara os padres ocorria quando os índios já

seus amigos e defensores encontravam-seausentes das aldeias e visitantes hostis se apro-ximavam. A carta apresenta um determinadoepisódio em que Anchieta e óbrega foramobrigados a fugir em condições muito difíceispelo fato de estarem sós quando canoas doRio de Janeiro se aproximavam (Anchieta,1988: 221). Tendo tomado conhecimento dadifícil situação que os padres atravessavam,os índios aliados compadeceram-se eretor naram dispostos a pr otegê-Ios. Aoencontrá-los salvos, ficaram tão alegres, quecomemoraram no seu estilo:

... como se ressuscitáramos âquela hora, fa-lando-nos palavras de muito amor, efoi-se logoá outra aldeia a convidar aos outros que vies-sem a beber á sua, onde lbes tinha grandesvinhos, e andando bebendo e bailando comgrande festa, lhes disse que não queria queninguém nosfizesse mal, nem falasse algumapalavra aspera, e não estortassem aspazes queelefazia com nós outros, que determinava denos defender ainda que soubesse quebrar comeles e a uns deles mais ruins disse: 'Vosoutrosnão me enojeis, que eu já matei um dos vossoe o comi" ... (Anchieta, 1988: 223)

Dando seqüência à confraternização, oíndio mandou vir uma canela de perna quetinha guardado para fazer flauta e "... pedin-do farinha, um por uma banda e outro poroutra, começaram a roer em ela como perros:assim toda a cousa passou em festa e ficaramgrandes amigos" (Anch ieta , 1988: 224).Anchieta encerrou a narrativa do episódio di-zendo que apesar de falarem a favor deles,seu maior guardião era Deus, pois pouco po-deriam esperar de "gente tão má e carnicei-ra" capaz de matá-los só para tomar um novonome. Cabe considerar que a recriminaçãodo evento foi feita com certa parcimônia e,na verdade, os padres participaram das co-memorações e festejos que, afinal, se fazia

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em homenagem a eles. À crítica sobre "roer acanela como perros", segue-se a idéia de quetudo se "passou em festa e ficaram grandesamigos", prevalecendo pois, no texto, o as-pecto positivo do evento.

O episódio mais significativo quanto àtolerância com a antropofagia ocorreu após apartida de Nóbrega, quando, uma vez só,Anchieta presenciou uma grande festa, na qualos índios beberam o dia todo, preparando-separa matar e comer um prisioneiro. O padretentou, em vão, evitar o evento, ao qual dedi-cou uma descrição enojada e recriminatória.Instigante, porém, é o relato do que se passouno dia seguinte ao sacrifício: algumas mulhe-res foram censurar os índios, admoestando-oscom a provável vingança dos missionários, oque levou os primeiros a achar por bem matartambém o Padre, para que os seus tivessemmaior motivo de vingança. Anchieta foi entãofalar pessoalmente com os executores, dizen-do "...que não se fiassem das palavras de mu-lheres, que os nossos não haviam de fazer casoda morte de um escravo ..." (Anchieta, 1988:227). Este acontecimento narrado pelo próprioAnchieta, que a seguir refletiu sobre sua fra-queza, rogando à Divindade ajuda para com-bater o medo da morte e até desejá-Ia, sugere,a meu ver, a substituição da imagem de inaba-lável defensor dos índios pela de um jesuítafervoroso em seus ideais, cujas atitudes e con-cepções construíam-se e alteravam-se nasvivências cotidianas da situação colonial. É in-teressante ressaltar que num outro momento, oepisódio teria sido aproveitado para demons-trar o sucesso da conversão na atitude da índiaque admoestara seus próprios companheirosem defesa do cristianismo. Esse possível signi-ficado do evento, que não passaria desperce-bido em outra ocasião, parece ter se tornadoirrelevante para Anchieta face à preocupaçãomaior com sua própria sobrevivência ou tal-vez com a preservação da aliança política quebuscava. Numa outra situação subseqüente, o

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Padre, correndo seno risco da própria vida,negou-se a entregar seus aliados a um grupode índios, que os exigia como forma de ga-rantir a paz. A diferente condição social entreas vítimas (escravo e aliado) nos dois episó-dios não me parece suficiente para explicaratitudes tão diversas. Mais do que buscar ra-zões para compreender as contradições deAnchieta, cabe reconhecê-Ias, percebendo quelonge de denegrir sua imagem, elas a en-grandecem, porque o revelam como homemreligioso e político de seu tempo, que semabandonar seus ideais, soube aproximar-se dosíndios, conhecer seus costumes e relacionar-se com eles, buscando avançar e recuar emseus propósitos, conforme as situações epossiblidades que se lhe apresentavam. Nesseprocesso, Anchieta e os índios influenciavam-se mutuamente, mudando comportamentos econcepções.

A obra de José de Anchieta é vasta e,como qualquer fonte histórica, permite mui-tas leituras. o âmbito deste trabalho foi apre-sentada apenas uma possibilidade referente auma determinada carta muito longa, cujo con-teúdo sequer foi esgotado. As complexas re-lações de alteridade no Brasil colonial aindatêm muito a revelar, através do rico diálogoentre o farto material deixado pelos jesuítas eo conceitual teórico, ambos permanentemen-te repensados numa perspectiva histórico-an-tropológica.

NOTAS

Versão original deste trabalho foi apresen-tada no XIX Simpósio acional de Histó-ria, Belo Horizonte, MG, de 21 a 25 dejulho de 1997.Para um histórico sobre o desenvolvimen-to dessas discipinas e sua aproximação, ver:COHN, Bernard S. "Toward aRapprochement"; e ADAMS, John W.

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3 A carta deve ter sido iniciada em dezem-bro de 1564, pois, refere-se à partida paraIperoig 08 de abril de 1563), como tendoocorrido no ano anterior e provavelmentefoi concluída na data que apresenta: 8 dejaneiro de 1565.

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