Anatomia cardíaca em TC e RM - sprmn.pt · anatomia cardíaca e coronária. Neste artigo iremos...

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ARP 25 Acta Radiológica Portuguesa, Vol.XVIII, nº 72, pág. 25-27, Out.-Dez, 2006 Introdução A melhoria na qualidade dos aparelhos de Tomografia Computorizada Multidetectores (TCMD) e de Ressonância Magnética (RM) tem condicionado um rápido aumento das aplicações destas técnicas ao sistema cardiovascular. Um dos pré-requisitos fundamentais para reconhecer as alterações patológicas é o conhecimento da anatomia normal da região em estudo, neste caso em particular a anatomia cardíaca e coronária. Neste artigo iremos efectuar uma revisão da anatomia cardíaca e coronária normal em TC e RM. Pericárdio O pericárdio recobre o coração e os grandes vasos, sendo constituído por dois folhetos, parietal e visceral, separados por um espaço virtual. O folheto visceral ou epicárdio é aderente ao miocárdio. O folheto parietal é livre, excepto inferiormente onde se une ao tendão central do diafragma e superiormente onde se funde com o revestimento dos grandes vasos. O pericárdio é visível em TC e RM como uma linha fina a envolver o coração com uma espessura até 2 mm (Fig. 1). Entre o epicárdio e o miocárdio existe uma pequena quantidade de gordura que aumenta com a idade. Grandes vasos A aorta ascendente tem início na válvula aórtica que se situa ao nível do bordo inferior da terceira cartilagem costal. Na sua origem é posterior ao tracto de saída do ventrículo direito e tronco da artéria pulmonar. Os primeiros centímetros da aorta ascendente e do tronco da artéria pulmonar encontram-se envolvidos por uma baínha comum de pericárdio. O arco aórtico tem uma orientação posterior da direita para a esquerda e da sua superfície superior nascem três vasos (artérias braquiocefálica, carótida comum esquerda e subclávia esquerda – Fig. 2) que são cruzados anteriormente pela veia braquiocefálica esquerda. O istmo aórtico representa a zona de união entre o arco aórtico e a aorta descendente. É uma área relativamente fixa pelo que sujeita frequentemente a lesão nos traumatismos torácicos fechados. Anatomia cardíaca em TC e RM António J. Madureira 1 , Isabel Ramos 2 1 Assistente Hospitalar de Radiologia e Assistente Convidado de Radiologia 2 Directora do Serviço de Radiologia e Professora Catedrática de Radiologia Hospital de S. João e Faculdade de Medicina, Porto Fig. 1 - RM ponderação T1 “black-blood” no plano coronal. O pericárdio normal (setas) é claramente identificável, com uma espessura de 2 mm. Fig. 2 - AngioTC das coronárias. MIP na projecção LAO. Os folhetos da válvula aórtica são visíveis sem artefactos de movimento, tal como a origem da artéria coronária esquerda a partir da aorta ascendente. Identificam-se ainda os três ramos com origem no arco aórtico: artéria braquiocefálica, carótida comum esquerda e subclávia esquerda.

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ARP 25

Acta Radiológica Portuguesa, Vol.XVIII, nº 72, pág. 25-27, Out.-Dez, 2006

IntroduçãoA melhoria na qualidade dos aparelhos de TomografiaComputorizada Multidetectores (TCMD) e de RessonânciaMagnética (RM) tem condicionado um rápido aumentodas aplicações destas técnicas ao sistema cardiovascular.Um dos pré-requisitos fundamentais para reconhecer asalterações patológicas é o conhecimento da anatomianormal da região em estudo, neste caso em particular aanatomia cardíaca e coronária. Neste artigo iremos efectuaruma revisão da anatomia cardíaca e coronária normal emTC e RM.

PericárdioO pericárdio recobre o coração e os grandes vasos, sendoconstituído por dois folhetos, parietal e visceral, separadospor um espaço virtual. O folheto visceral ou epicárdio éaderente ao miocárdio. O folheto parietal é livre, exceptoinferiormente onde se une ao tendão central do diafragmae superiormente onde se funde com o revestimento dosgrandes vasos. O pericárdio é visível em TC e RM comouma linha fina a envolver o coração com uma espessuraaté 2 mm (Fig. 1). Entre o epicárdio e o miocárdio existeuma pequena quantidade de gordura que aumenta com aidade.

Grandes vasosA aorta ascendente tem início na válvula aórtica que sesitua ao nível do bordo inferior da terceira cartilagemcostal. Na sua origem é posterior ao tracto de saída doventrículo direito e tronco da artéria pulmonar. Osprimeiros centímetros da aorta ascendente e do tronco daartéria pulmonar encontram-se envolvidos por uma baínhacomum de pericárdio.O arco aórtico tem uma orientação posterior da direita paraa esquerda e da sua superfície superior nascem três vasos(artérias braquiocefálica, carótida comum esquerda esubclávia esquerda – Fig. 2) que são cruzadosanteriormente pela veia braquiocefálica esquerda.O istmo aórtico representa a zona de união entre o arcoaórtico e a aorta descendente. É uma área relativamentefixa pelo que sujeita frequentemente a lesão nostraumatismos torácicos fechados.

Anatomia cardíaca em TC e RM

António J. Madureira1, Isabel Ramos2

1 Assistente Hospitalar de Radiologia e Assistente Convidado de Radiologia2 Directora do Serviço de Radiologia e Professora Catedrática de RadiologiaHospital de S. João e Faculdade de Medicina, Porto

Fig. 1 - RM ponderação T1 “black-blood” no plano coronal. O pericárdionormal (setas) é claramente identificável, com uma espessura de 2 mm.

Fig. 2 - AngioTC das coronárias. MIP na projecção LAO. Os folhetosda válvula aórtica são visíveis sem artefactos de movimento, tal como aorigem da artéria coronária esquerda a partir da aorta ascendente.Identificam-se ainda os três ramos com origem no arco aórtico: artériabraquiocefálica, carótida comum esquerda e subclávia esquerda.

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A aorta descendente percorre o mediastino posterior àesquerda da coluna vertebral, atravessando o diafragmaao nivel de T12.A artéria subclávia direita resulta da bifurcação da artériabraquiocefálica atrás da articulação esterno-claviculardireita, sendo o outro ramo a artéria carótida comumdireita.O tronco da artéria pulmonar tem início na válvulapulmonar, sendo anterior à aorta. Após um trajecto de cercade 5 cm bifurca-se, originando as artérias pulmonaresesquerda e direita. A artéria pulmonar direita tem umaorientação horizontal em direcção à direita, passando atrásda aorta ascendente e à frente do brônquio principal direito,sendo ainda cruzada anteriormente pela veia pulmonarsuperior direita. A artéria pulmonar esquerda dirige-se paraa esquerda e situa-se anterior e depois superiormente aobrônquio principal esquerdo. É cruzada anteriormente pelaveia pulmonar superior esquerda e encontra-se unida àconcavidade do arco aórtico através do ligamento arterioso.As veias braquiocefálicas formam-se pela confluência dasveias jugular interna e subclávia de cada lado, atrás daextremidade medial das clavículas. À direita a veia segueao longo do bordo direito do esterno enquanto à esquerdadesce obliquamente atrás do manúbrio e cruza a origemdas artérias carótida comum e subclávia esquerdas.Da junção das veias braquiocefálicas resulta a veia cavasuperior que drena na aurícula direita. A sua únicatributária é a veia ázigos.

CoraçãoO coração tem uma forma piramidal e encontra-seorientado obliquamente no tórax com a base de formaquadrangular dirigida posteriormente e o vértice dirigidopara a esquerda e inferiormente.

Morfologia auricularA aurícula direita morfológica recebe a veia cava superiore a drenagem venosa hepática através da veia cava inferior.As suas estruturas características são o apêndice auriculardireito e a crista terminalis. O apêndice auricular direito éuma extensão da cavidade auricular de base larga e formatriangular, localizado anterior e medialmente ao bordocardíaco direito. A crista terminalis é o remanescentefibroso da válvula do seio venoso embriológico e divide aaurícula direita numa porção posterior lisa e noutra porçãoanterior moderadamente trabeculada (que inclui o apêndiceauricular).A aurícula esquerda morfológica forma a base ou regiãoposterior do coração e nela desembocam as quatro veiaspulmonares, duas superiores e duas inferiores. O apêndiceauricular esquerdo é longo e estreito, em forma de dedo epassa inferiormente ao tronco da artéria pulmonar (Fig.3). As paredes da aurícula esquerda são lisas e não temcrista terminalis.

Morfologia ventricularOs ventrículos direito e esquerdo diferem em váriascaracterísticas, nomeadamente na sua forma, aspectotrabecular e na relação entre as válvulas auriculo-ventriculares e semilunares. O ventrículo esquerdo forma

o vértice e o bordo esquerdo da silhueta cardíaca, formandoo ventrículo direito a sua parte anterior.O ventrículo direito morfológico apresenta trabeculaçõesmusculares mais espessas do que as do ventrículo esquerdo.Os músculos papilares da válvula tricúspide têm origemdo septo interventricular e da parede livre do ventrículodireito. Outra característica deste ventrículo é a bandamoderadora, que consiste numa banda muscular espessalocalizada no ápex ventricular. O melhor método dedistinguir os dois ventrículos é pela demonstração de uminfundíbulo muscular, banda circunferencial de miocárdio,que separa a válvula tricúspide da válvula semilunar e queé característico do ventrículo direito.O ventrículo esquerdo morfológico apresenta umasuperfície endocárdica mais lisa e os músculos papilaresnesta câmara apenas se originam da parede livre e não dosepto. O ventrículo esquerdo não tem banda moderadoranem infundíbulo muscular, existindo continuidade fibrosaentre a válvula mitral e semilunar (Fig. 4).

Artérias coronárias

A artéria coronária dominante é aquela que origina a artériadescendente posterior. Em cerca de 85% dos casos é aartéria coronária direita que origina este vaso (dominânciadireita), sendo a esquerda dominante em 7-8% dos casos(através de ramos distais da artéria circumflexa). Nosrestantes 7-8% dos casos o septo interventricular inferioré irrigado por ramos distais da coronária direita ecircumflexa, sendo a circulação descrita como co-dominante.A artéria coronária direita tem origem no seio anterior(ou direito) de Valsalva, passa entre o tronco da artériapulmonar e a aurícula direita, descendo através do sulcoauriculo-ventricular direito e irrigando o ventrículo direitoe a parede inferior do ventrículo esquerdo. A artéria parao conus arteriosus é normalmente o seu primeiro ramo,podendo no entanto ter origem isolada a partir da aorta. A

Fig. 3 - AngioTC das coronárias. MIP no plano RAO demonstra a formaalongada e estreita do apêndice auricular esquerdo e a sua relação como tronco da artéria pulmonar imediatamente superior.

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artéria para o nó sinusal é normalmente o seu segundoramo, seguida de pequenos ramos anteriores para a paredelivre do ventrículo direito. A artéria aguda marginal é oramo para o ventrículo direito que tem origem na junçãodo terço médio e distal deste vaso (Fig. 5). A artériacoronária direita distal divide-se na artéria descendenteposterior e ramo posterior do ventrículo esquerdo (noscasos de circulação coronária direita dominante).A artéria coronária esquerda nasce do seio de Valsalvaesquerdo, tem cerca de 5 a 10 mm de comprimento e irrigao ventrículo esquerdo restante. Passa por trás e à esquerdado tronco da artéria pulmonar e no início do sulco auriculo-ventricular esquerdo bifurca-se, originado a artériacircunflexa e a artéria descendente anterior (Fig. 6).

Ocasionalmente existe uma trifurcação da artéria coronáriaesquerda, originando esta os dois vasos atrás descritos eoutro chamado ramo intermédio, que tem um trajectosemelhante ao da artéria primeira diagonal (ramo dadescendente anterior).A artéria descendente anterior passa à esquerda dotronco da artéria pulmonar e segue inferiormente ao longodo sulco interventricular em direcção ao ápex. Forneceramos diagonais para a parede livre anterior do ventrículoesquerdo e ramos septais para o septo interventricularanterior.A artéria circumflexa percorre o sulco auriculo-ventricular esquerdo e origina ramos (artérias obtusasmarginais) para a parede lateral do ventrículo esquerdo.Nos casos de circulação dominante esquerda ou co-dominante esta artéria origina a artéria descendenteposterior ou ramos posteriores do ventrículo esquerdo.A drenagem venosa do coração é efectuada através de veiasque acompanham as artérias coronárias e que drenam noseio coronário, situado no sulco auriculo-ventricularposterior. Este por sua vez desemboca na parede posteriorda aurícula direita, à esquerda do orifício da veia cavainferior.

Fig. 6 - Reconstrução 3D de angioTC das coronárias. A artéria coronáriaesquerda tem um trajecto curto (cerca de 5 a 10 mm de extensão),bifurcando-se e originando a artéria descendente anerior e circumflexa.

ReferênciasBoxt LM, Rozenshtein A. MR imaging of congenital heart disease. MagnReson Imaging Clin N Am 2003; 27-48.

Kim SY, Seo JB, Do K-Y, et al. Coronary artery anomalies: classificationand ECG-gated multi-detector row CT findings with angiographiccorrelation. Radiographics 2006; 26: 317-334.

Schoepf, UJ, Becker CR, Hofmann LK, Yucel EK. Multidetector-rowCT of the heart. Radiol Clin N Am 2003; 491-505.

Fig. 4 - AngioTC das coronárias. MIP no plano LAO demonstra acontinuidade fibrosa entre as válvulas aórtica e mitral, característico doventrículo esquerdo morfológico.

Fig. 5 - Reconstrução 3D de angioTC das coronárias. A artéria coronáriadireita apresenta normal calibre, sendo possível identificar os seus ramospara o conus arteriosus, nó sinusal e artéria aguda marginal.