Anarquismos Amigos

25
a n a r q u i s m o s a m i g o s RESENHAS apresentadas pelos pesquisadores do Nu-Sol e mestrandos no Programa de Estudos Pós- Graduados em Ciências Sócias da PUC-SP, Gustavo Simões, Gustavo Ramus, Gabriel Prestes Espiga e Bruno Andreotti, em SEMINÁRIO DO NU-SOL, em 11 de fevereiro de 2008 : Edgar Leuenroth. Roteiro de uma libertação social. Rio de Janeiro/São Paulo: Achiamé/Centro de Cultura Social, 2007. Edson Passetti. Anarquismo Urgente. Rio de Janeiro/São Paulo: Achiamé/Centro de Cultura Social, 2007.

description

Excelente análise.

Transcript of Anarquismos Amigos

  • a n a r q u i s m o s

    a m i g o s

    RESENHAS apresentadas pelos pesquisadores do

    Nu-Sol e mestrandos no Programa de Estudos Ps-

    Graduados em Cincias Scias da PUC-SP, Gustavo

    Simes, Gustavo Ramus, Gabriel Prestes Espiga e

    Bruno Andreotti, em SEMINRIO DO NU-SOL,

    em 11 de fevereiro de 2008 :

    Edgar Leuenroth. Roteiro de uma libertao

    social. Rio de Janeiro/So Paulo: Achiam/Centro

    de Cultura Social, 2007.

    Edson Passetti. Anarquismo Urgente. Rio de

    Janeiro/So Paulo: Achiam/Centro de Cultura

    Social, 2007.

  • 2

    Dois livros lanados, no segundo semestre de 2007, pela editora anarquista Achiam em

    parceria com o Centro de Cultura Social de So Paulo, Anarquismo: Roteiro da libertao

    social, escrito por Edgar Leuenroth e Anarquismo Urgente de Edson Passetti, animam os

    libertrios de diferentes procedncias a problematizar as prticas do anarquismo hoje,

    momento em que passam jovens cada vez mais interessados apenas em manifestar uma

    insossa indignao passageira ou que procuram no anarquismo um refgio covarde, porto-

    seguro oportunista e medroso, palatvel manual de sobrevivncia alternativa.

    Edgar Leuenroth expe aos leitores no incio do livro de 208 pginas, divididas em

    quinze captulos, compostos por breves escritos seus e de militantes libertrios brasileiros e

    do mundo, os motivos para a redao do livro: os militantes, simpatizantes e estudiosos

    recorrem s obras estrangeiras, que mandam vir das editoras de pases da Amrica e da

    Europa. Patenteia-se, portanto, a urgncia, de novas edies brasileiras de obras clssicas

    dos tericos do anarquismo ou de novos livros que correspondam necessidade da

    divulgao, no Brasil, de princpios libertrios1. Os primeiros textos de Anarquismo:

    Roteiro da Libertao Social, como o assinado pelo jornal portugus A Batalha

    desassossegam o leitor acostumado com a militncia apartada dos riscos do combate ao

    expor a coragem dos anarquistas que mesmo aps violentos confrontos, refazem-se de

    foras, para continuar2. Outro jornal, o Umanit nova completa: ser anarquista (...) no

    fcil. Significa tomar todos os dias, em face de todos os problemas, grandes e pequenos, da

    vida, uma posio terica e prtica que contrasta e se choca com as convenincias do 1 Edgar Leuenroth. Anarquismo: Roteiro da Libertao Social. So Paulo/Rio de Janeiro: CCS-SP/Achiam, 2007, p.16. 2 Idem, p.22.

    gustavo simes

  • 3

    prximo, que suscita suspeitas, dio e furor no seio dos guardies da ordem, que so todos

    aqueles que se vem beneficiados pelos seus privilgios3.

    Afastando-se dos marxistas e das suas prticas de luta e assumindo a perspectiva de

    uma revoluo libertria, Victor Franco afirma: o que caracteriza o anarquismo como

    sistema a coerncia lgica de suas finalidades com os meios empregados para realiz-las

    (...) Portanto, para os anarquistas, defender a revoluo manter seu carter anrquico, e,

    para mant-lo, logicamente necessrio que esse carter exista desde o incio4, e Ugo

    Fidelli interessado em liberar os libertrios da reduo simplificadora da luta de classes diz

    que o anarquismo no se limita a essa viso restritiva dos conflitos sociais: procura atingir

    com sua crtica a todas as espcies de sujeio, seja esta econmica, ou religiosa, seja

    poltica ou moral5. Em Por qu os anarquistas no aceitam a ao poltica eleitoral?,

    texto em que Edgar Leuenroth responde ao interesseiro convite para sua candidatura a um

    cargo representativo na cmara da cidade fica mais ntida a inconcilivel relao entre as

    prticas libertrias, as marxistas e as liberais. Como libertrio, no aceito a ao

    parlamentar, que implica a delegao de poderes, o que constitui sria divergncia

    doutrinria com o anarquismo6; e no texto seguinte, conclui: a liberdade s se chega

    seguindo o roteiro da liberdade7.

    Entretanto o flego de Leuenroth no pra no mero contraposicionamento com o

    marxismo. No texto Presena atual, o militante libertrio questiona a noo numrica que

    define a maioria como representante dos interesses do povo citando acontecimentos

    histricos como a Alemanha nazista e a Itlia de Mussolini para mostrar como a multido

    facilmente se transforma em combustvel que anima a emergncia de fascismos. Em face

    de tais maiorias numricas, os anarquistas representam, certamente, um movimento de

    minoria. E isso constitui motivo de satisfao e, por que no dizer, de orgulho para os

    libertrios, pois preciso ter coragem, muita coragem e deciso, alimentada pela

    capacidade de resistncia de uma inabalvel tica social (...) Jamais pretendero os

    anarquistas reunir em seu movimento multides majoritrias8. Leuenroth afirma que o

    3 Idem, p. 32. 4 Idem, p.55. 5 Idem, p.56. 6 Idem, p.59. 7 Idem, p.68. 8 Idem, p.91-92.

  • 4

    anarquismo em nenhum momento deixou de combater a emergncia de fascismos no

    planeta atravs da incessante produo da imprensa libertria e na luta permanente de seus

    militantes, que, no desenvolvimento de sua atuao corajosa, chegam a suportar at o

    sacrifcio de suas vidas9.

    A partir do nono capitulo de Anarquismo: Roteiro da libertao social, chamado

    Origem e desenvolvimento do anarquismo, os textos de Edgar Leuenroth e dos demais

    militantes afastam-se das explicaes e sistematizaes sobre as bases, mtodos e

    definies do anarquismo e comeam a mapear a irrupo de experincias libertrias no

    Brasil e no mundo. Leuenroth relata a vital participao dos libertrios na atuao junto ao

    movimento contra a carestia da vida em So Paulo para a criao de feiras-livres e na

    formao da Liga dos Inquilinos, que intervinha nos despejos ocorridos na cidade. No

    entanto, entre todas estas experincias abordadas, a que marcou mais o militante e a que ele

    dedicou maior espao foi Nossa Chcara. Para Leuenroth, a Nossa Chcara era a

    utopia dos anarquistas transformada em realidade, com o objetivo, segundo ele, de

    desenvolver a sociabilidade entre os participantes do movimento, promover festivais de

    msica, literatura e teatro. Reunindo-se o til ao agradvel, consegue-se, por esse meio,

    um proveitoso resultado educacional (...) e constituindo, ainda, ambiente propcio para criar

    e reforar antigas amizades.10

    Aos parceiros, amigos vindos de outros cantos, Leuenroth concentra em algumas

    pginas toda a energia e intensidade de alguns que passaram e agitaram no Brasil, ao

    escapar com vida dos embates contra o poder ao redor do mundo como Paulo Bertholot,

    anarquista francs, que segundo o autor do livro aqui aportou com notvel bagagem de

    cultura, depois de uma peregrinao por vrios pases, foi morrer nos sertes de Gois,

    numa tentativa de convivncia comunitria com os ndios11; Herrerita, poeta bomio vindo

    do Uruguai que alm dos originais de valiosos trabalhos, levou uma lata de goiabada e

    uma coleo de nmeros, com colees suas, de A Lanterna12; e o conhecido Gigi

    Damiani, pintor de profisso, jornalista e escritor, sempre com um sorriso irnico, pouco

    amigos

    9 Idem, p. 94. 10 Idem, p.135. 11 Idem, p.113. 12 Idem, p.114.

  • 5

    falador13. Muitos destes anarquistas foram expulsos do pas enquanto outros eram

    presos junto com os libertrios brasileiros em So Paulo, no Rio de Janeiro e mais tarde no

    campo de concentrao da Clevelndia. Leuenroth grava sua revolta em caracteres de

    sangue pela existncia destes anarquistas que foram detidos, mantidos presos em srdidos

    presdios, depois metidos no poro de um navio em promiscuidade com outras vtimas da

    reao e de desgraados marginais criados pelos desajustamentos da sociedade capitalista,

    e, no final de penosa viagem deixados sem nenhum recurso, nos confins do norte, vindo a

    sucumbir, aps horrveis sofrimentos, sem o mnimo socorro, nas matas da Clevelndia14.

    Para resistir a poltica que tinha como objetivo prender, matar e expulsar os anarquistas do

    pas, Leuenroth e outros anarquistas inventaram os Comits Pr-Presos e Deportados com o

    objetivo de ajudar e socorrer na priso os militantes e prestar auxlio a suas famlias.

    Leuenroth, em todos os seus textos atenta para as diferentes resistncias libertrias.

    Dedica boa parte do livro s experincias coletivistas na Espanha, a emergncia dos

    mahknovistas e a atuao dos libertrios na Revoluo Russa, na Comuna de Paris, mas

    tambm no deixa de dirigir seu olhar para pequenas insurgncias annimas que no

    constam nos livros que pretendem fazer a Histria do anarquismo. Com sensibilidade

    apurada, ele conta sem revelar os nomes, a histria menor de um casal anarquista espanhol

    que fora detido pelas foras fascistas de Franco durante a guerra civil. Como requinte de

    malvadeza no foi permitido que o casal ficasse no mesmo edifcio presidirio, nem mesmo

    na mesma localidade, com o propsito de serem evitadas, comunicaes com parentes ou

    amigos. Ela, depois de submeter a processo e condenada, foi transferida para o presdio de

    Mlaga. Ele, aps o processo e a condenao, viu iniciada sua peregrinao por 17

    presdios, sendo transferido de uma priso para outra e para campos de concentrao de

    diversas localidades. Aps sete anos de priso, num processo cheio de episdios cada qual

    mais curioso, conseguiram libertar-se e atravessar as fronteiras em busca de outras

    paragens15.

    Em Anarquismo: roteiro para libertao social, Edgar Leuenroth e seus

    companheiros de luta apresentam desde os conceitos tradicionais do anarquismo, seus

    embates histricos, suas diferenas com os demais socialismos e os mtodos de ao

    13 Ibidem. 14 Idem, p.125. 15 Idem, pp.156-157.

  • 6

    empregados nas lutas at o momento em que ele foi redigido em 1963. A militncia

    cotidiana pela revoluo libertria prepondera, assim como a formao de uma conduta

    militante. H tambm a nfase no investimento libertrio no presente, atravs de

    experincias de sociabilidade como a Nossa Chcara, a inveno de peas de teatro, de

    festivais de msica e literatura. Os textos do livro formam um roteiro que busca a formao

    de militantes coerentes e corajosos, anarquistas com disposio para arriscar sua prpria

    pele.

    Edgar Leuenroth se intitulou segundo Jaime Cubero um fazedor de jornais16.

    Leuenroth militava com seriedade: o movimento libertrio tem a imprensa como seu

    principal veculo de propaganda e combate. (...) No abrigam publicidade paga, sendo

    sustentados por meios de subscries voluntrias. (...) Alguns deles traziam em seus

    cabealhos a legenda: sai quando pode e com prazer deve se consignar que toda essa

    labuta executada aps as jornadas de trabalho profissional de cada um, avanando noite

    adentro em ambiente de animada convivncia 17.

    Os trs primeiros textos do livro de ensaios Anarquismo urgente, de Edson Passetti,

    anarquizam o branco da pgina inventando um espao diferente, surpreendendo o leitor

    acostumado diagramao e ao espao bem delimitado entre linhas e pargrafos. Em

    anarquizar os anarquismos, Passetti afirma a inveno anarquista, a sua fora e provoca

    aqueles que ainda crem na utopia revolucionria anarquia preciosa, no se ajeita numa

    jaula esperando pelo futuro (...) arrebenta a jaula, derrete as grades com fogo e sexo18 e no

    texto seguinte, habitado por outras experimentaes libertrias com as palavras, grava nas

    estranhezas aquilo que singulariza a luta dos anarquistas contra a priso: a afirmao de que

    todo preso um preso poltico. Em Arte e resistncias: ensaio entre amigos, abre sua

    reflexo com o canto e a leveza intensa de Maria Betnia, para depois associar a atitude

    corajosa do abolicionismo penal com a obra instalao Carandiru de Lygia Pape, na qual a

    artista questiona: O que o Carandiru faz? Prepara as pessoas para a morte. Como que o

    Brasil, que est se tornando um pas de velhos, d-se ao luxo de destruir esta juventude?

    16 Jaime Cubero. Edgar Leuenroth, o homem e o militante. In Verve 10, Nu-Sol, p.216. 17 Edgar Leuenroth. Anarquismo: Roteiro para libertao social. So Paulo/Rio de Janeiro: CCS-SP/ Achiam, 2007, p.101. 18 Edson Passetti. Anarquismo Urgente. So Paulo/Rio de Janeiro:CCS-SP/ Achiam, 2007, p.9.

  • 7

    No s uma questo poltica, tambm uma questo de esprito e conceito. No se abre

    mo da vitalidade19.

    Das resistncias dad, arte que arruna museus, Passetti segue para a vida artista de

    Nise da Silveira que, com sua contundncia, no se deixou apanhar pela psiquiatria e nem

    pelos mecenas e crticos que julgavam como obras de arte os objetos inventados pelos

    loucos do hospcio. Segundo Passetti, Nise investiu na Casa das Palmeiras, em parceiros e

    no mais em pacientes, num pequeno territrio livre em resistncia ditadura da

    psiquiatria. Associando a vida da antipsiquiatra apaixonada por gatos, Machado de Assis e

    Dostoievski, e sua constante luta contra a uniformizao, ele conclui A vida no isso ou

    aquilo disse-me Nise durante a gravao do vdeo que leva seu nome. (...) Entre os

    anarquistas sempre foi muito ntida a impossvel separao entre isto e aquilo. Nas

    maneiras pelas quais nos associamos livremente podemos exponencialmente ampliar as

    relaes de liberdade ao mesmo tempo em que reduzimos potencialmente as de autoridade,

    traando percursos surpreendentes que compe tenses prprias da vida e impossvel de ser

    pacificada20. Loucura solta de Nise e Antonin Artaud.

    De maneira libertria Edson Passetti apresenta Deleuze e sua filosofia da diferena,

    a relao do entre estabelecida com Guatarri, o nomadismo, as invenes e conceitos do

    filsofo e para alm da divergncia acerca do desejo e do prazer estabelecida entre ele e

    Michel Foucault, inventa um jeito seu de lidar com o problema, potencializando a parceria,

    ao afirmar: Que o desejo seja a vontade de gozo no encontro atual!21. Sobre a vinculao

    que alguns autores interessados realizam entre a obra de Foucault e o anarquismo, Passetti

    demonstra que esta proximidade s acontece no campo da atitude demolidora na fronteira

    e que pretender vincular diretamente anarquismo e Foucault se propor a andar em

    crculos tentando apanhar o prprio rabo, que devido a tantos giros termina ferido e fedido.

    (...) Foucault desafia os anarquistas a sarem do bolor, da mesma maneira que estes foram

    abalados por Stirner e cujas ressonncias aguardam outros inventivos percursos de

    liberdade22. Contudo, ele chama a ateno para a problematizao do filsofo francs, as

    difceis tentativas de filsofos, anarquistas e poetas no sculo XIX, para reconstituir uma

    19 Idem, p.22. 20 Idem, pp.42-43. 21 Idem, p.57. 22 Idem, p.61.

  • 8

    etica do eu. Passetti ao lidar com esta noo de esttica da existncia mostra como o

    retorno a si, presente na reflexo destes pensadores, inclui a livre escolha dos exerccios

    no como regra de vida , mas arte de viver para fazer da prpria vida uma obra e conclui

    que o sujeito, no caso o anarquista, volta-se para uma converso a si, um retorno a si, uma

    navegao. (...) Navegar implica arte, saber, tcnica em pilotagem23. No texto seguinte, o

    autor do livro se refere ao Centro de Cultura Social de So Paulo como generoso espao de

    acolhimento para foras parceiras e no curto e intenso texto sobre o amigo, companheiro de

    viagens, e risadas, Jaime Cubero, pergunta: quem gosta de comemorar morte de amigo?

    (...) Jaime est vivo, amigo estelar, enquanto estiver vivo o anarquismo no Brasil, no

    planeta24.

    Em De conversa em conversa: parrsia anarquista, Passetti retorna as constataes

    de alguns militantes institucionais e acadmicos aps a guerra civil espanhola que

    apressadamente decretaram a morte da anarquia, passando pelos desdobramentos e

    acontecimentos anarquizantes de 1968, quando, segundo ele, os anarquismos estavam

    vivos, menos como resistncias e mais como foras inventivas intensas25, at a atualidade,

    com os efeitos conservadores ps 1968, respostas do medo conservador, democrata,

    social-democrata e socialista, as ousadias dos nomadismos da anarquia26. justamente

    neste momento que a democracia traz consigo a utopia de uma outra globalizao que entre

    posicionamentos e contraposicionamentos, se encontram os anarquismos, restritos e

    confinados a resistncia no interior de um movimento social. O ensaio analisa a atuao

    libertria afirmando que hoje no se trata apenas de resistir, pois do ponto de vista

    anarquista, isto seria restringir-se a atuar contra a ordem. Adotando uma posio como esta

    se acaba aceitando a condio de sujeio, seja pela imobilidade gerada pela espera ou

    dedicao utopia da sociedade igualitria e mais uma vez basta lembrar que as utopias

    consolam, ou pela inevitvel adeso s lideranas organizadoras27.

    Nos embates no interior da universidade, Edson Passetti questiona o equvoco

    redutor do antroplogo David Graeber, que interessado em trazer o anarquismo para

    23 Idem, p.67. 24 Idem, p.74. 25 Idem, p.82. 26 Ibidem. 27 Idem, p.84.

  • 9

    dentro da academia28, restringe a histria dos anarquismos a um confronto entre o

    anarquismo cientfico de Kropotkin e o socialismo cientfico de Marx. A tentativa de

    Graeber para dar estatuto cientfico ao anarquismo, Passetti responde afirmando uma

    diferena vital: A universidade no sinnimo de academia e (...) diante da pequena teoria

    talvez seja mais interessante reconhecer-se como menor. No uma minoria numrica ou

    social, mas aquela capaz de transtornar. Os anarquismos podem ser menores, mas no

    nasceram pequenos29. Num outro ensaio adiante, Anarquismos na universidade, retoma

    a histria no Brasil da emergncia dos primeiros coletivos e pesquisadores no interior da

    universidade, abrindo um campo antes dominado por marxistas e considerado pelos

    libertrios como um lugar para no sujarem os ps. Tudo isto ocorreu segundo Passetti

    com a chegada dos estudantes anarquistas, suas associaes, desacatos e incmodos, que

    propiciaram a coexistncia com professores libertrios e os integrantes de centros de cultura

    no final dos anos 1970 e incio dos anos 198030.

    Dos trs ensaios que encerram o livro, dois se voltam para jovens e crianas.

    Enquanto no texto Educao e fluxos libertrios, Passetti mostra como os pr-socrticos

    inventaram uma maneira de lidar com as crianas e jovens arruinando o culto obedincia

    na autoridade superior e investindo numa educao que no teme a autoridade, exercitando

    o que os gregos chamaram parrsia, ato de falar francamente com um superior, em Pintar

    o Sete, a conversa com jovens pesquisadores que no desejam engrossar o rebanho de

    lambe-botas sem vida que habita a universidade apenas para obter um diploma ou a

    garantia de um emprego. Pesquisar. Indagar a respeito e no mais inquirir. Esquecer o

    inqurito. Lidar com polticas da verdade e romper com a Verdade, a Vida, o Homem, a

    Cincia, e pesquisar. Livre da moral, destruindo a moral, enfrentando suas foras. (...)

    Pesquisar a vida com vida, sem governar os outros31. O ltimo texto do livro,Controle e

    rebeldia, com apenas um pargrafo e flego intenso, problematiza as resistncias e

    contraposicionamentos hoje, na atual sociedade de controle e conclui que esta sociedade

    atual, no suporta os rebeldes, porque estes desestabilizam at revolues. Os rebeldes no

    aceitam acomodao em seu interior, nem se consolam com utopias ou votos vlidos,

    28 Idem, p.98. 29 Idem, p.99. 30 Idem, p.101. 31 Idem, p.118.

  • 10

    brancos ou nulos. So artistas da vida, amigos das experimentaes da liberdade, no se

    amedrontam diante de ameaas. Resistem. Na era da comunicao instantnea e dos

    efmeros, repare no rebelde que se aproxima, agora, de perto, quase imperceptvel,

    invisvel. Vrus? Tuuuuuuuuuuuuuimmmmmm. MQUINAS DE GUERRA32.

    O Anarquismo urgente de Edson Passetti se afasta da perspectiva revolucionria de

    alguns anarquistas e da militncia reprodutora de condutas. No segue um roteiro

    itinerrio ou descrio escrita dos pontos que preciso conhecer para se fazer uma viagem

    por mar33. Atua como insurgncia e levante agora, inventando percursos. Livro que

    investe na abolio do autor em detrimento da pessoa. Livro mais para parceiros do que

    leitores. Livro de ensaios curtos-circuitos, sabotagens, associaes inesperadas que

    arrunam a moral. A voz de um recalcitrante perguntar: o que pr no lugar? No por mais

    nada nem ningum dentro. Livre. Convite para deixar de contemplar a vida estando na

    margem e atirar-se no rio.

    .

    32 Idem, p.120. 33 Aurlio Buarque de Holanda. Pequeno Dicionrio da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, p.1071.

  • 11

    Edgard Leuenroth lutou junto de outros anarquistas propagando o pensamento libertrio por

    meio de peridicos e na convivncia e experimentao dentro do Centro de Cultura Social

    de So Paulo. Nascido no dia 31 de outubro de 1881, Edgar Leuenroth participou das

    greves gerais de 1917 e 1919, sendo preso na primeira e acusado de ser agitador e

    idealizador. Em seu livro Anarquismo: roteiro da libertao social, publicado em 1963 e

    reeditado recentemente pela editora Achiam e o Centro de Cultura Social de So Paulo,

    nos apresenta uma coleo de textos seus e de outras personagens memorveis do

    anarquismo como Elise Reclus, Errico Malatesta, Piotr Kropotkin, Mikhail Bakunin,

    George Woodcock, Luce Fabbri; e textos de peridicos anarquistas como A Plebe, cujo

    jornal foi editor e fundador, Ao Direta do rio de Janeiro, Reconstruir e La Protesta,

    ambos de Buenos Aires e Tierra y Libertad do Mxico. Traz, tambm, textos de alguns

    companheiros seus, como o portugus Neno Vasco, Souza Passos e Jos Oiticica.

    Outro livro, Anarquismo Urgente, tambm lanado recentemente pelos mesmos

    editores apresenta um novo olhar sobre o anarquismo, atual e desestabilizador. Edson

    Passetti anda ao lado de Friedrich Nietzsche, Max Stirner, Herclito, Gilles Deleuze, Jaime

    Cubero e Michel Foucault, este ltimo considerado por muitos como nocivo ao

    anarquismo. E ainda Lygia Pape, John Cage, The Living Theatre, Antonin Artaud e o

    dadasta Marcel Duchamp. Um livro-viagem, nico, de um homem nico. Sangue novo nas

    veias do anarquismo. Anarquia no se compra, no se copia, no se empresta, inventa-se.

    Para experiment-la basta ousadia e coragem, no para todos, mas para uns, seres

    eleuterfilos. Um livro para homens e mulheres crianas. Velhos-jovens e jovens-

    guerreiros.

    gustavo ramus

  • 12

    A generosidade desses autores torna-se evidente quando ambos nos elucidam

    experimentaes anarquistas. Edgard Leuenroth descreve encontros libertrios,

    conferncias e congressos, experincia de livres associaes como a Colnia Ceclia no

    Paran, a Nossa Chcara, stio freqentado pelos militantes do centro de Cultura Social de

    So Paulo. Ou ento as comunas mahknovistas da Ucrnia no incio do sculo, os kibutz,

    colnias comunitrias em Israel, a presena anarquista no Uruguai, na Argentina e no

    interior da guerra civil espanhola. Edson Passetti nos brinda com a arte. No aquela esttica

    aprisionada no museu, mas aquela que atravessa corpos e no se desassocia da vida. A vida

    como obra de arte. No uma exclusividade para artistas. Delicadezas que fazem uma

    existncia livre e prazerosa. Assim como a Via Invertida de Lia Chaia, um desassossego,

    subverso. A arte resiste. Causa rudos muitas vezes insuportveis. Dionsio, onde est

    voc? No h identidade ou domesticao, no h brechas para capturas, e se h, Dionsio

    no est mais, desabitou. Sumiu! emocionante a sutileza com que Passetti nos mergulha

    em Nise da Silveira, um anti-modelo da psiquiatria, ou como escreve Passetti, uma

    antipsquiatria. Nise propiciou experimentaes livres em espaos fechados. Inverso!

    Desconstruo da doena. Expanso da vida. A emoo de lidar. Como no vibrar no caso

    de Luiza? Uma paciente que ao saber que uma enfermeira havia delatado Nise polcia,

    reagiu dando-lhe uma imensa surra e estendendo-a no cho. como dizia a prpria Nise da

    Silveira: A vida no isso ou aquilo, a vida isso e aquilo!1

    Onde quer que o poder se manifeste haver insurgncias, espaos para novos

    anarquismos, no h modelos para serem seguidos, mas sim possibilidades de invenes e

    experimentaes de liberdades. O anarquista no aquele que sonha com a revoluo e

    nem deposita suas esperanas numa vanguarda. Anarquistas so aqueles que fazem de sua

    vida uma revoluo diria. Existncias perturbadoras. Edgar Leuenroth pensava o

    anarquismo como uma transformao social. Nada imutvel. O vislumbre por um futuro

    de uma sociedade crata, sem misrias e crimes, onde a bondade seria um sentimento

    comum, sem, no entanto, sonhar com uma perfeio e, muito menos, impor receitas

    prescrevendo um dever ser de tal sociedade, e tampouco elaborar projetos universais.

    Assim como muitos anarquistas do sculo XIX, Edgar Leuenroth entendia o problema

    social como uma questo de m organizao. No confunde socializao dos bens sociais 1 Edson Passetti. Anarquismo Urgente. So Paulo/Rio de Janeiro:CCS-SP/Achiam, 2007, p. 42.

  • 13

    com estatizao, prezava pelo coletivismo, pela ajuda-mtua e o federalismo. Preocupava-

    se com a integridade e autonomia do indivduo.

    Para Edson Passetti h uma inquietao clara e urgente: preciso anarquizar o

    anarquismo. Inventar novos anarquismos, novas insurgncias. a morte do reformador

    social. Anarquia no entendida como projeto societrio. Passetti dialoga com Stirner:

    acabar com a sociedade, deixar que ela morra! Matar a sociedade sim, para estabelecer

    associaes livres, para proliferar existncias, subjetividades, potncias e experimentaes

    de liberdade. Utopia agora! No para um futuro, mas no presente. Heterotopias anarquistas!

    As utopias consolam; os heterotpicos so! Realizadores inesperados e surpreendentes,

    provocam fortes abalos, despertam tempestades, destroem sem deixar nada no lugar. A

    anarquia no uma forma de pensamento superior ou uma teoria. Ela desdobra-se numa

    imensido de possibilidades. No h prescrio. Um estilo de vida. Revolta em instantes.

    Anarquia: invente-a, atravesse-a, e por que no, destru-la! Anarquia pra mim, pra voc e

    pra quem quiser e tiver coragem de se atirar nela. Arruinar a moral na afirmao de uma

    tica liberadora. Anarquia agora, j!

    Os anarquistas almejam a abolio do Estado, o fim da propriedade privada e de

    qualquer instituio coercitiva e/ou governamental, fim da explorao e de privilgios.

    Lutam por associaes livres onde exista o interesse comum sobre objetos especficos.

    Sabem diferenciar igualdade de nivelamento de classes. O anarquismo, segundo Leuenroth,

    superou o conceito de classe. No sonham com a uniformidade, com a ausncia das

    diferencias. Ser anarquista ter firmeza de carter! Anarquia nada tem a ver com voto ou

    veto, eleies e partidos, ao contrrio disso, reside em iniciativas e associaes livres.

    A representao impossvel numa perspectiva anarquista. Primeiramente porque

    ningum fala em nome da anarquia, e anarquista algum fala em nome dos outros ou permite

    que falem em seu nome. Segundo Edgar Leuenroth, a representao uma forma de

    subjugar o povo e descrer de sua autonomia. E ainda afirma: o anarquista no elege

    fazedores de leis para no consentir na sua escravido2. Edson Passetti completa: a

    representao o seqestro da vontade, uma idealizao de si. Os direitos dos cidados so

    seus deveres em relao ao soberano. A representatividade, enfim, totaliza as diferenas

    sob um discurso pluralista. Anarquia nada tem a ver com pluralismo e representatividade.

    2 Edgard Leuenroth. Anarquismo: Roteiro da Libertao Social. So Paulo:CCS-SP/Achiam, 2007, p. 37.

  • 14

    Sobre a questo da igualdade, Souza Passos estabelece uma pertinente discusso no

    livro de Leuenroth. A igualdade para os anarquistas no se trata do nivelamento por baixo,

    da socializao da misria e condies precrias de vida. No repudiam novas tecnologias

    ou bens materiais. Pelo contrrio, querem dispor desses conhecimentos a servio de todos.

    No o pouco, mas o muito que est em jogo. A gente no quer s comida... A liberdade

    dos povos passa pela cultura, pelo conhecimento e pela arte. Sobre um olhar diferenciado

    de grande parte dos anarquistas, Edson Passetti afirma que a igualdade se d no exerccio

    da diferena em possveis associaes de nicos. nicos, iguais na diferena! Os nicos so

    insubordinveis, guerreiros, divduos, dissipam identidades, revolues, rebanhos e

    uniformidades. Encontram na amizade uma forma de desestabilizar hierarquias que

    dispensa regulamentaes e normalidades. So atravessados pela generosidade, o oposto da

    solidariedade, uma diferena abissal precisamente colocada pelo autor. Inimigos do

    marasmo normalista lutam pela expanso da vida e no por sua conservao. No admitem

    o controle, nem mesmo de si sobre si mesmo. Desgovernam-se, no traam rotas, inventam

    novos percursos. Parresiastas, no temem seus superiores, so francos e anunciam verdades

    insuportveis. Recusam-se a aceitar valores transcendentes e universais. Proporcionam

    novas linhas de fugas. Tem a vida como batalha, uma guerra incessante. No apaziguam

    nem a si mesmos. E na inveno de si, fazem-se verdadeiras mquinas de guerras.

    Abolir o Estado, no us-lo como um meio como pretendiam os comunistas. Edgar

    Leuenroth aponta rgo e funo como um duplo indissocivel. O Estado seja socialista ou

    liberal, uma mquina de opresso. Um ponto comum entre os dois autores que ambos

    concordam que para se chegar a fins libertrios preciso criar meios libertrios. Passetti

    salienta, ainda, que a anarquia como um movimento de minorias, precisa reconhecer-se

    menor, como potncia liberadora.

    Repdio ao nacionalismo e principalmente a averso s guerras de Estados sempre

    foram pautas no interior do debate anarquista, e muitos militantes se dedicaram luta anti-

    militarista. Em Anarquismo: roteiro da libertao social, Lus Bertoni problematiza a

    resistncia pacifica tolstoiana, da mxima crist de no combater o mal com a violncia.

    Ele afirma que isso pode estar carregado de um forte valor moral, no entanto, no uma

    forma de resistncia eficiente.

  • 15

    Anarquismo Urgente, no um livro para liberais, pluralistas ou condutores de

    conscincia. No esttico, provoca movimentos e deslocamentos, requebra, desconcerta.

    E voc, o que tu danas? A anarquia interessa para aqueles que inventam maneiras de viver

    a diferena no outro e com o outro. Os anarquistas no se resguardam a espera de um

    futuro; realizam insurgncias no presente. No admitem o seqestro da vontade. Saboreiam

    as diferenas. Experimentam a vida e dispensam o controle de si. So heterotpicos,

    inventam resistncias, provocam vrus, pirataria, arrunam a linguagem e fazem-se piratas

    de si mesmos! No h anarquismo melhor ou verdadeiro, nem doutrinas e apstolos. No h

    o que seguir, a desconstruo das formas de saberes superiores que nos subordinam, a

    anti-moral com ticas de liberdades.

    Edgard Leuenroth e Edson Passetti so rios diferentes. guas que se encontram

    sem, no entanto, se misturarem completamente. Afluentes do anarquismo. Seriam mestres?

    Sim, mas na viso de Riobaldo, personagem de Grande Serto Veredas: Mestre no

    quem sempre ensina, mas quem de repente aprende3. Dissolvem hierarquias. Fazem de

    suas vidas batalhas dirias. Habitam zonas de riscos. Pois sabem que viver perigoso.

    Assim como Pierre-Joseph Proudhon, atentam ao poder como relaes de foras. No

    suportam bajuladores e no admitem os saprfilos profissionais da anarquia, que a usam de

    forma vampiresca com o nico intuito de projetar-se e imobiliz-la na polmica. Anarquia,

    diversos fluxos, desassossegos e revoltas. Ela nunca morre, pois se transforma

    constantemente, o novo, o jamais visto ou dito. Viva a anarquia!

    3 Joo Guimares Rosa. Grande Serto: Veredas. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 2001, p. 326.

  • 16

    Primeiro Movimento: Desabafo!

    CERTOS ANARQUISTAS

    Para alguns, liberdade religio! Aprendem depressa a louvar os vultos antepassados e

    transformar as palavras em dogmas ou novas jaulas. Buscam respostas para os problemas

    atravs de frmulas, modelos e sentenas que pretendem simplificar a soluo dos conflitos

    sociais. So legies arrebanhadas em teorias e utopias consoladoras. Reproduzem a

    sociedade de controle agindo como sentinelas ou polcias do anarquismo, e acabam por

    deixar suas resistncias aposentadas em pardieiros democrticos. Usam da filantropia para

    fazer propaganda e projetar suas verdades. Negociam polticas de liberdade e reproduzem

    diplomacias burocrticas. So os verdadeiros profissionais do anarquismo, pois fazem do

    anarquismo um ofcio, um anarco-isso e anarco-aquilo, amestram e esquadrinham

    liberdades, dividindo suas vidas entre jornadas pblicas e particulares. Trabalham dia-a-dia

    para impor o anarquismo como um remdio aos males que assolam o convvio em

    sociedade. Querem reformas e substituies de governos. Vomitam o anarquismo como

    cincia, presos ao sujeito, ao objeto e s sintaxes gramaticais. So lambe-botas de

    escolsticos e academicistas submersos na razo ou revolucionrios de planto dizendo

    amm aos seus pastores, rebolando em conceitos e fazendo de anarquistes moderninhos

    verdadeiros messias. Com tanta devoo acabam se transformando em apstolos,

    discpulos, soldados ou sacerdotes.

    gabriel prestes espiga

  • 17

    Segundo Movimento: Desassossego!

    ANARQUISMO URGENTE!

    Anarquizar anarquistas e anarquismos se torna URGENTE, como alerta Edson Passetti em

    seu livro Anarquismo Urgente!

    No h o anarquismo, mas anarquismos. No h os anarquistas, mas anarquistas.

    Por isso mesmo, o livro de Edgar Leuenroth, Anarquismo Roteiro da libertao social

    no para ser engolido, mas qui ruminado! para ser percorrido, atravessado, vivido e

    sentido, pelo menos por anarquistas. Seu contedo expressa anarquismos que atravessam o

    tempo, que revivem sries histricas, no falando da histria, mas velejando sobre ela, sem

    a pretenso de encontrar um porto seguro. Assim passamos por noes inventadas por

    anarquistas, princpios estudados e utopias alimentadas. Atravs de esse navegar possvel

    conhecer mtodos variados de ao anarquista, desde as velhas lutas de classe ao

    federalismo anarquista, diferenciar o movimento anarquista do socialismo de Estado,

    conhecer vidas e vivncias libertrias, informar-se sobre acontecimentos anarquistas no

    Brasil e no mundo, aproximar-se das experincias relatadas e recolocar em ebulio o

    sangue anarquista.

    Anarquistas prescindem de rtulos, pois vivem ao invs de denominar condutas.

    Desconcertam verdades e dissolvem governos com a vida, com o riso, com a dana e com a

    msica, em uma concepo, vivendo a vida como obra de arte.

    Anarquizar postura de guerreiros, de combatentes que lutam constantemente

    contra soberanos, profetas, pastores, rebanhos, saberes e fantasmas, numa palavra,

    governos. Trata-se de estilos de vida, no de ocupao de ofcios. deixar que a vida seja

    eterno campo de batalha, fundindo pblico e particular no um, no singular que estraalha

    verdades, que se reencontra criana e sente o gozo sutil que vem do prazer em lutar/brincar.

    O infante acaba com humanos, Estados, direitos, superiores, templos, leis, cincias,

    famlias, religies e sociedades.

    Anarquismos so potencializados na vida em associabilidade, conjunto de uns, de

    singulares, libertrios amigos ou melhores inimigos. Associados anarquistas demolem

    universalismos, experimentam heterotopias ou utopias presentes, inventadas criativamente

    para lidar com o devir, transitam entre federaes descentralizadas.

  • 18

    Revoluo no coisa de vanguarda de partidos comunistas ou de anarquistas

    profissionais, mas de anarquismos cotidianos, que revolucionam a vida a cada momento,

    provocando transformaes atentas aos cuidados de si.

    Anarquistas tornam os saberes nmades, de acordo com as experimentaes do

    momento histrico, deixando os barcos do conhecimento livres no litoral, prontos para

    partir em qualquer momento. Usam guas e atravessam cachoeiras nos rios heraclticos,

    com a correnteza no contra-fluxo ou aproveitando o terreno acidentado para fluir em

    corredeiras violentas, guas turvas! No esto interessados em superfcies lisas, muito

    menos audes ou guas empoadas.

    Anarquismos e anarquistas no cessam, provocam tenses at transpor os limites

    ou reterritorializar suas fronteiras, ocupando espaos transitrios. So mquinas de guerra e

    provocam acontecimentos experimentando liberdades.

    Quem navega est disposto a correr o risco, pois viver estar em perigo!

    Anarquistas se arriscam surpreendendo os costumes, os domesticados gestos de pessoas

    docilizadas. A ira se transforma em furaco com potncia para a destruio do que h de

    civilizatrio e politicamente correto.

    Anarquias Por qu?

    No momento que atravessamos esta era de difuso de direitos, pedagogias do

    medo e do castigo, prevencionismos controlados, reformismos eternos, penas alternativas,

    punitivismos tolerados, albergues prisionais, aprisionamentos rasteiros, confinamentos

    abertos, criminalizao de condutas, tolerncia zero, segurana eletrnica, policiamento full

    time, humanizao de truculncias, belicismos biotecnolgicos, vrus devastadores,

    inimigos invisveis, genocdios humanitrios, performances diplomticas, solidariedades

    civis, comunidades como campos de concentrao, capitalismos civilizatrios, vigilncia

    tele-computacional, liberdades virtuais, ecopolticas de governo sobre o planeta, qualidades

    de vida, inteligncias capturadas para o trabalho intelectual, credos moralizantes,

    domesticao dos instintos, medicalizao de condutas, reivindicaes silenciosas,

    movimentos de no-violncia, indstrias de reformas do corpo, equilbrio zen, programas

    de desenvolvimento, culturas instantneas, conhecimentos sintticos, iseno de valores,

    rebanhos reacionrios, progressismos conservadores, drogas moderadas, sexo seguro,

    cincias salvadoras, escolarizao infantil, desestruturaes familiares, despovoamentos de

  • 19

    si, pluralismos democrticos, permaculturas, farmaculturas, transterritorialidades,

    multiculturas, diplomacias, negociaes, digitalizaes, telerrealidades, meritocracias e

    tantos outros controles inominveis, resta viver ou sobreviver. Anarquismos para viver!

    necessrio estancar os relativismos com interferncia nos fluxos de controle,

    potencializando as resistncias em mirades de associaes libertrias. Aproximar-se de

    nicos e expandir o convvio com ticas de amigos. Trata-se da afirmar a existncia como

    esttica e cuidado de si. Viver s possvel liberada e libertariamente, como estilo de vida.

    Associados, inventamos heterotopias para viver o gozo no presente, utopia agora!

    Fazer arte da existncia investir contra a sociedade e deixar que ela perea. As

    resistncias anarquistas surpreendem pela intensidade com que atravessam a vida. O que

    fazemos de nossas vidas um cuidado especial, brincando srio, como crianas em guerra

    contra os objetos do jogo, em regras mveis, transformando as relaes de poder em foras

    ativas. O cotidiano o prprio campo de batalha, onde dissolvido o tribunal sem medo,

    castigo, propriedade privada, relacionamentos hierrquicos e autoritarismos. Apenas a

    conversao basta como troca de idias e a conciliao capaz de facilitar a inveno de

    respostas-percurso para a soluo dos conflitos.

    Destas experimentaes libertrias decorrem abolicionismos, em especial do

    sistema penal. Abolir a punio, o medo e o castigo em si lidar com o meio de vida de

    uma outra maneira, com um jeito prprio a cada situao em especial.

    Atravs do abolicionismo penal abolimos a presena do Estado em nossas vidas, e

    por fazer dos abolicionismos constantes liberaes, reverberamos anarquismos. Mas

    tambm porque o estilo de vida abolicionista leva o convvio supresso de hierarquias,

    percorrendo percursos horizontais como busca de solues aos problemas vividos. Os

    abolicionistas negam o confinamento ou o aprisionamento a cu aberto, mas tambm

    rejeitam a tecnoburocracia instaurada em torno da criminalizao, destruindo tribunais,

    tcnicos, polcias, leis, conceitos, enunciados, controles, vigilncias, vtimas, estatsticas,

    cincias e outros saberes que preenchem o sistema penal.

    O direito penal fornece receitas medocres na lei. Aplica uma mecnica corrosiva

    desde a seleo do conflito, o seqestro dos sujeitados, a encenao circense dos

    personagens ubuescos da justia e a execuo da pena. No permite o encontro de uma

  • 20

    soluo situao-problema, pois simplesmente afasta os agentes de um convvio

    originrio, retribuindo a pena como implicao de dor e sdica vingana para a clientela.

    Anarco-abolicionistas no tm receitas elaboradas e nem pretenses

    universalistas. Ao contrrio, querem lidar com o imprevisto. Estamos todos presos e o

    percurso abolicionista, heterotpico, proporciona rebentar as jaulas. investir em educao

    libertria, em ticas de liberdade, em viver o acaso. Trata-se de enfrentar o devir insurgindo

    no instante com toda a potncia.

    s situaes-problemas, respondemos com respostas-percurso, onde o percurso

    realizado com o talento de cada um, com a vontade dos envolvidos e com pessoas

    interessadas em solues sinceras.

    Terceiro movimento: intempestivos!

    TRANSGRESSES

    Sabemos de tudo isso. No est sendo falado em nome da anarquia ou em nome de, mas

    simplesmente de anarquismos e estilos de vida libertrios. So nossas invenes, nossas

    artes, nossos ensaios e nossas brincadeiras. So pequenas ilustraes do que fazemos de

    nossas vidas, mostrando que existe vida sem o imprio da sociedade, em associao de

    amigos, libertrios se aventurando pelo universo.

    Respondemos revoluo com nossa dana e nossas cores, desestabilizando os

    sacerdcios anarquistas. No possvel revoluo sem alegria e bom-humor. No somos

    soldados, somos guerreiros. No temos chefes, patres, lderes, messias, sacerdotes,

    profetas, pastores, governantes, representantes, cientistas, academicistas e profissionais do

    anarquismo. No usamos carteirinhas, cartes, marcaes ou carimbos. Ocupamos a

    academia para nela atravessar nossas resistncias e rebeldias. Nossas revolues ocorrem

    todo o dia, a cada instante.

    E para quebrar a monotonia dessas palavras, uma surpresa! Uma transgresso

    artstica, uma brincadeira gostosa entre amigos, uma chuva de ptalas ao estilo anarquista

    para alegrar a noite! Anarquistas, Sade!

  • 21

    Proponho uma leitura comparada do livro de Edgard Leuenroth, Anarquismo: Roteiro

    de Libertao Social Antologia de Doutrina Crtica-Histria-Informaes e o livro de

    Edson Passetti, Anarquismo Urgente, sob a perspectiva da concepo de anarquia,

    anarquismo e anarquista presente nesses dois livros, dentre outras infinitas

    possibilidades que estes nos abrem.

    Comecemos pelo livro de Leuenroth, na verdade uma coletnea por ele

    elaborada contendo textos de diversos outros autores, alm do prprio. Nele, o

    anarquismo visto como uma doutrina: a doutrina anarquista nos apresenta o ideal de

    uma ordem social sem explorao privada ou estatal, no qual a administrao das coisas

    acabar com a dominao do homem (...) O movimento libertrio caracteriza-se,

    portanto, menos pelo seu ideal de uma sociedade perfeita, mais pela dinmica de suas

    tendncias libertadoras. um desenvolvimento voluntrio no sentido da realizao de

    formas sempre mais livres, mais perfeitas e harmnicas da vida social, no sendo,

    porm, a liberdade, a harmonia ou perfeio em si (...) O anarquismo menos utpico

    do que as demais doutrinas sociais1.

    O anarquismo seria a doutrina preconizada pela Anarquia, definida como a

    concepo de um estado social em que o indivduo, como dono e soberano de sua

    pessoa, se desenvolver livremente e no qual as relaes sociais se estabelecero entre

    os membros da sociedade segundo suas opinies, as suas afeies e as suas

    necessidades, sem a constituio de uma autoridade poltica. a negao do Estado e

    sua substituio pela iniciativa individual2, ainda que se defina menos por esse ideal que

    pela dinmica de suas tendncias libertadoras, menos utpico sem deixar de s-lo.

    Ainda mais uma definio de anarquismo: conjunto de princpios e mtodos que

    animam o movimento representativo das atividades de toda natureza desenvolvidas com

    1 Edgard Leuenroth. Anarquismo Roteiro de Libertao Social. So Paulo/Rio de Janeiro:CCS-SP/Achiam, s/d. pp.19-20, do prefcio escrito por Agustin Souchi. 2 Idem, p.40. Escrito por Andr Girard, encerrando texto de Leuenroth.

    bruno andreotti

  • 22

    o fim de preparar os elementos necessrios para substituir o regime capitalista pela

    organizao libertria da sociedade3.

    Portanto anarquismo so os princpios e mtodos que substituem o capitalismo

    pela organizao libertria da sociedade. O anarquismo menos ou no h: Estado,

    Autoridade, Coao, Propriedade Privada, Salariato, Concorrncia, Centralismo e

    Dogmatismo, e mais ou h: Organizao livre, Livre acordo, Liberdade, Socializao

    de bens sociais, Comunismo, Apoio mtuo, Federalismo e Livre exame4. Esses so seus

    princpios, e seu mtodo prprio de ao baseia-se na livre iniciativa e na solidariedade,

    na ao direta capaz de levar os espoliados reivindicao do que seu, meio certo de

    vencer, pois amedronta o capitalismo. Abala a ordem estabelecida, faz a revoluo, e

    aps ir criar o novo mundo e a nova Humanidade5.

    O livro de Leuenroth destinado conduta dos anarquistas6: para ser-se

    anarquista no basta ler os livros que e a imprensa libertria, abeberando-se nas suas

    doutrinas, e freqentar atos promovidos pelo movimento. assimilao ideolgica deve

    aliar-se a conduta, o procedimento conseqente com a doutrina e a moral do

    anarquismo. O militante anarquista vale mais pela coerncia de suas atitudes, de seu

    modo de proceder, no lar e na atuao pblica, do que por sua capacidade de escrever

    ou discursar. Por isso, e essa uma caracterstica entre anarquistas, constitui

    preocupao constante do militante libertrio procurar vencer os imperativos

    desvirtuadores do meio capitalista e libertar-se daqueles que dele haja recebido (...). No

    movimento anarquista, h um permanente esforo de autocontrole individual e coletivo,

    procurando-se prever, evitar e corrigir qualquer procedimento incompatvel com a razo

    de ser do movimento libertrio. Da verificar-se, entre os anarquistas, a possibilidade de

    um teor de coerncia mais homogneo7.

    O anarquismo tem uma doutrina e tambm uma moral. O anarquista aquele

    que age conforme essa doutrina, vista acima, e essa moral, que superior, pois nada

    ordena, no modela o indivduo em nome de uma idia abstrata (como a religio, por

    exemplo), deixa o indivduo em sua plena liberdade, uma constatao de fatos, uma

    cincia, pois est baseada nos instintos naturais do ser humano8.

    3 Ibidem, p.76. Texto de Leuenroth. 4 Ibidem, p. 80. Texto de Leuenroth. 5 Ibidem, p. 54. Texto de Jos Oiticica. 6 Ibidem, p. 59. Texto de Leuenroth. 7 Ibidem, p. 136. Texto de Leuenroth. 8 Ibidem, p. 45 e 48. Juno de textos de Kropotkin e B. Cano Ruiz.

  • 23

    O anarquismo que est nas pginas no livro de Leuenroth, como indicado j no

    ttulo, um roteiro de libertao social: contm em si uma utopia, uma doutrina, uma

    moral, princpios e mtodos. O anarquista aquele que se mantm coerente na sua

    conduta com esse referencial, ainda que no negue a importncia de experimentaes de

    liberdade, aqui e agora, ainda preso a um ideal de transformao da sociedade, e nisso

    est seu contedo utpico e libertador.

    Comecemos tambm pelo ttulo no livro de Edson Passetti, Anarquismo

    Urgente, ttulo que atenta para a necessidade de anarquizar os anarquismos, aqui e

    agora. Essa indicao j abre uma importante pista para entender o que o autor entende

    por anarquismo: ele no existe em si. S se pode falar em anarquismos, em anarquistas

    que inventam anarquismos9. Destroem hierarquias, criam libertarismos, inventam

    costumes libertrios, abalam a propriedade, corroem os Estados, estraalham os

    indivduos. Em uma palavra, desassossegam10. Cada anarquismo uma heterotopia,11

    entendida como utopia realizada aqui e agora, experimentada nas maneiras pelas quais

    nos associamos livremente, ampliando relaes de liberdade, reduzindo as de

    autoridade, um fazer constante e inacabado. A associao nmade. Ao colocar o

    anarquismo como heterotopia entra-se no combate com um outro tipo de anarquismo,

    que quer a utopia da Sociedade no lugar do Estado12. Anarquia pode ser libertao, mas

    liberao13.

    Se anarquismo heterotopia, o que a anarquia? No se pode falar em seu

    nome, ela no uma representao14, nem passvel de ser representada. imanncia,

    uma estranha unidade que abarca o mltiplo, chamado Anarquia15. um acontecimento,

    e, como tal, inesgotvel em seu devir, passvel de mltiplas atualizaes.

    Anarquizar os anarquismos, alm de colocar-se no combate contra a utopia da

    Sociedade no lugar do Estado tambm se colocar no combate contra qualquer Moral e

    qualquer Conduta. inventar percursos, espaos de experimentaes, expanso da

    vida16, vida como obra de arte que no se aparta da vida na associao: vivemos uma

    poca da possvel associao de nicos inventando existncias, subjetividades e

    experimentaes surpreendentes. O nico dissolve identidades, negociaes, 9 Edson Passetti. Anarquismo Urgente. So Paulo/Rio de Janeiro:CCS-SP/Achiam, 2007. p.5. 10 Idem, p. 31. 11 Ibidem, p.32. 12 Ibidem, p. 43 e 66. 13 Ibidem, p.10. 14 Ibidem, p.31. 15 Ibidem, p.56. 16 Ibidem, p.67.

  • 24

    composies tticas, revolues. Ele no teme seu prprio poder. um guerreiro que

    no admite ser governado! Provoca insurreies saudando a morte da Sociedade! Um

    nico jamais poder ser apanhado; ele a imensido. O nico um anarquista que

    deixou de ser reformador social. Vive na associao combatendo desigualdades,

    conservadorismos, os ismos que engrandecem autoridades superiores, os seus ntimos e

    os devotos das obedincias. O nico um insurgente que no impede as

    experimentaes de outros anarquistas, ao contrrio, as incentiva. Seu alvo obstruir

    absolutos e confirmar ticas potencializadoras e intensificadoras de liberdades17.

    Conduzir-se de maneira tica, tica de, sem abstraes, romper com o universal.

    Viver como crianas livres de moral, de hierarquias, de transcendentais. Vida como

    batalhas por objetos, estabelecer relaes de reciprocidade, associaes18. A heterotopia

    do soberano de si no espao heterotpico, governar a si mesmo sob o alerta constante do

    perigo da captura. Para isso, o amigo um importante aliado:

    Amigos elaboram ticas como abrigos precrios, associaes mveis,

    experimentaes da criana enquanto abalo ao consagrado mundo da razo, dissolvendo

    distines como o pblico e o privado. Arte de viver provocando reviravoltas

    afirmadoras da vida como ensaio (...) Amigos provocam coexistncias no seu dia-a-dia,

    so seus melhores inimigos, desassossegam a formalidade e provocam prazeres:

    inventam associaes e anarquizam quando se requer identidades, afinidades,

    coerncias. So artistas e no arteiros: a vida de cada um nica, no apanhada pela

    uniformidade19.

    O amigo como melhor inimigo tambm o parresiasta do outro, que

    desestabiliza, ajuda o outro a no se estancar em uma identidade, ajuda a fugir da

    captura, propicia lealdades e exerccios de parrsia: o parresiasta, aquele que fala

    francamente, sabe dos riscos de sua atitude e a dirige com o intuito de romper com a

    tirania do superior, fortalecendo a democracia direta. Reconhece nessa relao uma

    superioridade a ser dissolvida estabelecendo a zona da lealdade. Falar francamente

    prprio dos amigos que inventam ligaes, que no seguem mestres, que se apartam das

    criaes20.

    Diante disso tudo quem o anarquista? Simplesmente aquele que experimenta

    anarquias, que inventa anarquismos. 17 Ibidem, p.5-6. 18 Ibidem, p.118. 19 Ibidem, p.22. 20 Ibidem, p.44.

  • 25

    Vemos que o livro de Passetti estabelece uma ligao muito clara com o livro de

    Leuenroth. aquele anarquismo que preciso anarquizar, escapar da Utopia, da Moral

    e da Conduta. Dois livros que se colocam em luta, inimigos, e, como tais, estabelecendo

    uma relao de amizade. No h necessidade de ficar constatando e debatendo quem

    est certo, quem est errado, quem tem razo e quem no tem. Isso necessrio apenas

    queles que procuram o conforto das teorias e das coerncias. O que interessa o

    combate.

    ***